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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LIBÉLULA NO ÂMBAR - P.2 / Diana Galbadon
A LIBÉLULA NO ÂMBAR - P.2 / Diana Galbadon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Houve uma explosão no Arsenal Real, no começo de maio. Soube mais tarde que um carregador descuidado descansara uma tocha no lugar errado e, um minuto depois, o maior sortimento de pólvora e armas de fogo de Paris fora pelos ares com um estrondo que assustou os pombos da Notre Dame.

Trabalhando no Hôpital dês Anges, não ouvi a explosão propriamente dita, mas sem dúvida notei os ecos. Embora o Hôpital ficasse do outro lado da cidade em relação ao Arsenal, houve tantas vítimas da explosão que um bom número delas superlotou os outros hospitais e as demais foram levadas para nós, mutiladas, queimadas e gemendo na parte de trás de carroças ou em macas carregadas por amigos pelas ruas.

Já estava completamente escuro antes de a última vítima ser atendida e o último corpo envolto em ataduras ser delicadamente colocado entre as fileiras de pacientes sujos e anônimos do Hôpital.

Eu mandara Fergus para casa com a notícia de que chegaria tarde, quando vi a magnitude da tarefa que aguardava as irmãs do dês Anges. Ele voltara com Murtagh e os dois aguardavam nas escadas da entrada para nos escoltar até em casa.

Mary e eu emergimos, exaustas, das portas duplas e encontramos Murtagh fazendo uma demonstração da arte de atirar facas para Fergus.

 

 

 

 

— Vamos, ande — ele dizia, de costas para nós. — O mais direto possível, quando eu contar até três. Um... dois... três! — No “três”, Fergus lançou a enorme cebola branca que estava segurando, deixando-a bater e saltar no terreno irregular.

Murtagh permaneceu relaxado, o braço virado para trás numa posição negligente, a adaga segurada pela ponta entre os dedos. Quando a cebola passou girando, seu pulso fez um único movimento, rápido e certeiro.

Nada mais se moveu, nada além de uma sacudidela em seu kilt, mas a cebola saltou de lado, atravessada pela adaga, e caiu mortalmente ferida, rolando debilmente na terra a seus pés.

— M-muito bem, Murtagh! — Mary gritou, sorrindo. Surpreso, Murtagh virou-se e eu pude ver o rubor subindo às suas faces magras à luz que atravessava as portas abertas atrás de nós.

— Mmmuhm — ele disse.

— Desculpe-nos por ter demorado tanto — eu disse. — Foi preciso tempo para que todos fossem medicados.

— Ah, claro — o pequeno escocês respondeu laconicamente. Virou-se para Fergus. — É melhor encontrarmos uma carruagem, garoto. É tarde para as senhoras irem a pé.

— Não há nenhuma aqui — Fergus disse, encolhendo os ombros. — Há uma hora que subo e desço a rua. Toda carruagem da Cite foi para o Arsenal. Mas talvez a gente consiga alguma coisa na rue du Faubourg St Honoré. — Apontou mais para baixo na rua, para uma brecha estreita e escura entre edifícios que denunciava a presença de uma passagem para a rua seguinte. — É rápido por ali.

Após uma pequena pausa com o cenho franzido para pensar, Murtagh concordou.

— Está bem, garoto. Então, vamos.

Estava frio na viela e eu podia ver meu hálito em pequenas baforadas brancas, apesar da noite sem luar. Por mais escuro que ficasse em Paris, sempre havia luz em algum lugar; o clarão de lampiões e velas filtrava-se pelas persianas e frestas nas paredes das casas de madeira; e sempre havia poças de luz em torno das barracas dos vendedores de rua e espalhadas pelas pequenas lanternas de metal e de chifre que se balançavam da traseira de carroças e dos mastros das carruagens.

A rua seguinte era de mercadores e aqui e ali os proprietários das diversas casas comerciais haviam pendurado lampiões de metal perfurado acima de suas portas e pátios de entrada das lojas. Não satisfeitos em confiar na polícia para proteger suas propriedades, freqüentemente vários homens de negócios uniam-se e contratavam um vigia para tomar conta de seus edifícios à noite. Quando vi uma dessas figuras em frente à loja do fabricante de velas de navio, agachada nas sombras, em cima de uma pilha de lonas dobradas, balancei a cabeça em resposta ao seu ríspido: “Bonsoit, monsieur, mesdames.”

Quando passamos pela loja do fabricante de velas, no entanto, ouvi um grito repentino de alarme do vigia.

— Monsieur! Madame!

Murtagh girou nos calcanhares instantaneamente para enfrentar o desafio, a espada já silvando ao ser desembainhada. Mais lenta em meus reflexos, eu só estava parcialmente virada quando ele deu um passo à frente e meu olho avistou o tremular de um movimento no vão da porta atrás dele. O golpe pegou Murtagh pelas costas antes que eu pudesse gritar avisando-o e ele esparramou-se no chão de rosto para baixo, as pernas e braços frouxos e sem forças, a espada e a adaga voando de suas mãos e batendo nas pedras com estrondo.

Abaixei-me depressa para pegar a adaga quando ela passou perto dos meus pés, mas um par de mãos segurou meus braços por trás.

— Cuide do homem — ordenou uma voz atrás de mim. — Depressa! Debati-me nas mãos de meu captor; suas mãos desceram para meus pulsos e torceu-os bruscamente, fazendo-me gritar. Viu-se um movimento branco, fantasmagórico, na rua sombria, e o “vigia” curvou-se sobre o corpo de bruços de Murtagh, uma tira de pano branco nas mãos.

— Socorro! — gritei. — Deixe-o! Socorro! Bandidos! Assassinos! SOCORRO!

— Fique quieta! — Um rápido sopapo no meu ouvido fez minha cabeça girar por um instante. Quando meus olhos pararam de lacrimejar, pude divisar uma forma branca e longa como uma salsicha na sarjeta; Murtagh, enrolado e bem amarrado numa sacola de lona, das usadas para guardar vela. O falso vigia estava agachado sobre ele; levantou-se, sorrindo, e pude ver que ele estava mascarado, uma faixa de tecido escuro da testa ao lábio superior.

Um filete de luz proveniente da loja do fabricante de velas recaiu sobre seu corpo quando ele se levantou. Apesar da noite fria, ele não usava mais do que uma camisa que momentaneamente lançou um reflexo verde-esmeralda com a passagem da luz. Calças até os joelhos, presas com fivelas, e o que surpreendentemente pareciam ser meias de seda e sapatos de couro, não os pés descalços ou tamancos que eu esperava. Portanto, não eram bandidos comuns.

De relance, avistei Mary, para o lado. uma das figuras mascaradas segurava-a firmemente por trás, um braço preso com força entre seu tórax e abdômen, a outra revolvendo-se sob suas saias como um animal «itocando-se.

O homem diante de mim colocou uma das mãos de forma insinuante atrás da minha cabeça e me puxou mais para perto. A máscara cobria seu rosto da testa ao lábio superior, deixando a boca livre por razões óbvias, enfiou a língua em minha boca,com um gosto forte de bebida e cebolas. Engasguei, mordi sua língua e cuspi quando a removeu. Ele me deu uma Orte bofetada, derrubando-me de joelhos na sarjeta.

Os sapatos com fivelas de prata de Mary chutavam perigosamente perto do meu nariz, enquanto o facínora que a segurava sem nenhuma cerimônia levantou suas saias até a cintura com um puxão. Ouviu-se o barulho de cetim rasgado e um grito agudo de cima quando seus dedos mergulharam entre suas coxas que se debatiam violentamente.

— Uma virgem! Peguei uma virgem! — proferiu, exultante. Um dos homens fez uma reverência debochada para Mary.

— Mademoiselle, meus parabéns! Seu marido terá motivo para nos agradecer em sua noite de núpcias, já que não encontrará nenhuma incômoda obstrução impedindo seu prazer. Mas não somos egoístas, não pedimos nenhum agradecimento pelo cumprimento de nossos deveres. A recompensa pelo serviço é o prazer em si.

Se eu precisasse de alguma coisa além da meia de seda para me dizer que nossos atacantes não eram bandidos de rua, esse discurso – saudado com estrondosas risadas — teria sido suficiente. Colocar nomes nos rostos mascarados era outra história.

As mãos que agarraram meu braço para me colocar de pé eram bem manicuradas,com um pequeno sinal, uma pinta falsa usada para embelezamento, logo acima da forquilha do polegar. Lembrar-me-ei disso, pensei soturnamente. Se nos deixarem vivas depois, isso pode ser útil.

Outra pessoa agarrou meus braços por trás, puxando-os com tanta força que eu gritei. A postura assim forçada fez meus seios se sobressaírem no colete decotado, como se estivessem sendo oferecidos numa bandeja.

O homem que parecia a cargo das operações usava uma camisa folgada de uma cor fraca, decorada com marcas escuras — bordados, talvez. Ela lhe dava uma silhueta imprecisa nas sombras, tornando difícil olhá-lo mais cuidadosamente. Entretanto, quando se inclinou para frente e correu um dedo avaliador por cima dos meus seios, pude ver os cabelos escuros emplastrados de brilhantina grudados na cabeça e sentir o cheiro forte do cosmético. Possuía orelhas grandes, melhores para segurar os cordões de sua máscara.

— Não se preocupem, mesdames — disse o da camisa com manchas escuras. — Não queremos lhes causar mal algum. Pretendemos apenas lhes proporcionar um pouco de delicado exercício, seus maridos ou noivos não precisam jamais saber, e depois nós as libertaremos.

— Primeiramente, devem nos honrar com seus lábios doces, mesdames — anunciou, dando um passo para trás e puxando os laços de suas calças.

— Não esta daí — protestou o de camisa verde. — Ela morde.

— Não se ela quiser conservar seus dentes — retrucou seu companheiro. — De joelhos, madame, por favor. — Empurrou meus ombros para baixo com força, e eu dei um safanão para trás, tropeçando. Agarrou-me para impedir que eu fugisse e o capuz da minha capa caiu, libertando meus cabelos. Os grampos haviam se soltado na luta e meus cabelos caíram nos ombros, mechas voando como estandartes no vento da noite, cegando-me conforme açoitavam meu rosto.

Cambaleei para trás, afastando-me do meu agressor, sacudindo a cabeça para livrar os olhos dos cabelos. A rua estava escura, mas eu podia ver algumas coisas na claridade fraca de lampiões que atravessava as persianas vitrines das lojas ou na luminosidade da noite estrelada que clareava as sombras da rua.

As fivelas de prata de Mary refletiam a luz, esperneando. Ela estava de costas, debatendo-se,com um dos homens em cima dela, xingando enquanto lutava para descer as calças e controlá-la ao mesmo tempo. Ouviu-se o barulho de tecido rasgado e suas nádegas brilharam, brancas, num facho de luz do portão de um pátio.

Os braços de alguém me agarraram pela cintura e me arrastaram para trás, tirando meus pés do chão. Raspei o salto do meu sapato por toda a extensão da canela de sua perna e ele deu um berro agudo de raiva.

— Segure-a! — ordenou o da camisa com manchas escuras, saindo das sombras.

— Segure-a você! — Meu captor lançou-me sem a menor cerimônia nos braços do amigo e a luz do pátio brilhou nos meus olhos, cegando-me temporariamente.

— Santa Mãe de Deus! — As mãos que seguravam meus braços afrouxaram-se e eu libertei-me com um safanão, a tempo de ver o de camisa com manchas escuras, a boca aberta em horrorizada surpresa sob a máscara. Recuou, afastando-se de mim, benzendo-se enquanto recuava.

— In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti — balbuciava, repetindo o sinal-da-cruz sem parar. — La Dame Blanche!

— La Dame Blanche! — O homem atrás de mim repetiu o grito como um eco, a voz aterrorizada.

O de camisa com manchas escuras ainda recuava, agora fazendo sinais no ar que eram consideravelmente menos cristãos do que o sinal-da-cruz, mas que presumivelmente tinham a mesma função. Apontando o dedo indicador e o dedo mínimo para mim no antigo sinal de chifres contra o mal, ele desfilava ininterruptamente uma lista de autoridades espirituais, desde a Santíssima Trindade a poderes em um nível consideravelmente inferior, balbuciando os nomes em latim tão depressa que as sílabas se misturavam.

Permaneci de pé, parada no meio da rua, abalada e atordoada, até que um guincho terrível, vindo do chão perto dos meus pés, me fez recobrar os sentidos. Ocupado demais com o que estava fazendo para prestar qualquer atenção a questões acima dele, o homem em cima de Mary emitiu um grito gutural de satisfação e começou a mover os quadris ritmadamente ao acompanhamento dos gritos dilacerantes de Mary.

Agindo puramente por instinto, dei um passo na direção deles, lancei uma perna para trás e chutei-o nas costelas com todas as minhas forças. O ar explodiu de seus pulmões com um perplexo “Uuuf!”, e ele rolou para o lado.

Um de seus amigos lançou-se para frente e agarrou-o pelo braço, gritando ansiosamente:

— Levante-se! Levante-se! É La Dame Blanche! Corra!

Ainda mergulhado no frenesi do estupro, o homem olhava estúpidamente e tentava voltar para Mary, que se torcia e contorcia freneticamente, tentando libertar as dobras de suas saias do peso que a mantinha presa. Tanto o de camisa verde quanto o de camisa com manchas escuras puxavam o atacante de Mary pelos braços, até conseguirem colocá-lo de pé. Suas calças rasgadas enrolavam-se em suas coxas, o pênis sujo de sangue tremendo entre as pontas soltas da camisa, numa ânsia indiferente ao que se passava ao redor.

O barulho de pés correndo e aproximando-se pareceu finalmente acordá-lo de seu estupor. Os dois ajudantes, ouvindo o barulho dos passos, largaram as armas e fugiram precipitadamente, deixando-o entregue à própria sorte. Com uma imprecação abafada, fugiu pelo beco mais próximo, saltando e mancando, enquanto tentava puxar as calças para a cintura.

— Au secours! Au secours! Gendarmes! — Uma voz ofegante gritava pela viela, pedindo socorro, enquanto o dono da voz precipitava-se em nossa direção, tropeçando em lixo e entulho no escuro. Eu dificilmente imaginaria que um ladrão de rua ou outro patife qualquer estaria cambaleando por uma viela, gritando la gendarmes, embora em meu atual estado de choque quase nada pudesse me surpreender.

No entanto, fiquei surpresa quando o vulto escuro que saiu da viela com as roupas esvoaçando mostrou ser Alexander Randall, envolto numa capa preta e com um chapéu de aba larga desabada.

Olhou desesperadamente à volta do pequeno cul-de-sac, de Murtagh, parecendo um saco de lixo, para mim, paralisada e arquejante junto a uma parede, para a figura encolhida de Mary, quase invisível no meio das sombras. Ficou imóvel por um instante, desamparado, depois girou nos calcanhares e subiu no portão de ferro do qual nossos atacantes haviam emergido. De cima do portão, conseguiu alcançar o lampião suspenso do caibro acima.

A luz foi um conforto; apesar do doloroso quadro que iluminava, ao menos bania as sombras furtivas que ameaçavam se transformar em novos perigos a qualquer momento.

Mary estava de joelhos, encolhida. A cabeça enterrada nos braços, ela tremia, em total silêncio. Um dos seus sapatos estava caído nas pedras do calçamento, a fivela de prata reluzindo na luz oscilante do lampião.

Como um pássaro de mau agouro, Alex precipitou-se a seu lado.

— Senhorita Hawkins! Mary! Senhorita Hawkins! Está bem?

De todas as perguntas idiotas! – exclamei com certa rispidez, enquanto ela gemia e se esquivava dele. — É claro que ela não está bem. Ela acaba de ser violentada. — Com um esforço considerável, arranquei-me da reconfortante parede às minhas costas e comecei a me dirigir a eles, observando com um distanciamento clínico que meus joelhos vacilavam.

Eles cederam completamente no momento seguinte, quando uma figura imensa, parecendo um morcego, desceu num vôo rasante à minha frente, aterrissando nas pedras com um sólido baque.

— Ora, ora, vejam só quem chegou! — eu disse, começando a rir de uma maneira descontrolada. Um par de mãos grandes agarrou-me pelos ombros e administrou-me uma sacudidela.

— Fique quieta, Sassenach — Jamie disse, os olhos azuis com um brilho sombrio e perigoso à luz do lampião. Ele endireitou-se, as dobras de sua capa de veludo azul recaindo sobre seus ombros quando estendeu os braços na direção do telhado de onde saltara. Na ponta dos pés, ele conseguia tocar na borda do telhado.

— Bem, agora, desça! — ele disse impacientemente, olhando para cima.

— Coloque os pés para fora da beirada, sobre meus ombros, e poderá deslizar para as minhas costas. -com um ruído áspero de telhas soltas, uma pequena figura veio se contorcendo cautelosamente de costas, depois lançou-se sobre a figura alta como um macaco num galho.

— Muito bem, Fergus. — Jamie deu uma palmadinha de agrado no ombro do menino e mesmo na luz turva pude ver o brilho de satisfação que iluminou seu rosto. Jamie examinou o cenário com um olhar de estrategista e, murmurando uma palavra, enviou o garoto para a entrada da viela para vigiar a aproximação dos gendarmes. Tendo cuidado do essencial, agachou-se diante de mim outra vez.

— Você está bem, Sassenach? — perguntou.

— É muita gentileza sua perguntar — eu disse educadamente. — Sim, obrigada. Mas ela não está tão bem. — Acenei vagamente em direção a Mary. Ela ainda estava encolhida como uma bola, tremendo como uma gelatina, esquivando-se dos esforços desajeitados de Alex de afagá-la.

Jamie não lhe destinou mais do que um rápido olhar.

— Estou vendo. Onde com os diabos está Murtagh?

— Lá — respondi, apontando. — Ajude-me a levantar.

Fui cambaleando até a sarjeta, onde o saco que continha Murtagh subia e descia como uma lagarta gigante, emitindo uma surpreendente mistura de imprecações abafadas em três línguas.

Jamie tirou sua adaga e,com o que pareceu uma desconsideração insensível com seu conteúdo, cortou o saco de uma ponta à outra. Murtagh saltou da abertura como um boneco de mola de sua caixa. Metade de seus cabelos negros e espetados foi emplastrada na cabeça por algum líquido malcheiroso em que o saco descansara. O resto da cabeleira estava em pé, emprestando um ar ainda mais feroz a um rosto já suficientemente belicoso por causa de um grande galo roxo na testa e um olho que escurecia rapidamente.

— Quem me atingiu? — rosnou.

— Bem, não fui eu —Jamie respondeu, erguendo uma das sobrancelhas — Venha, companheiro, não temos a noite toda.

— Isso nunca vai funcionar — murmurei, enfiando alfinetes decorados com brilhantes aleatoriamente em meus cabelos. — Ela devia receber cuidados médicos, para começar. Ela precisa de um médico!

— Ela tem um —Jamie ressaltou, erguendo o queixo e espreitando pelo nariz abaixo para o espelho, enquanto dava o nó na echarpe de seda. -Você. — Com a echarpe amarrada, pegou um pente e passou-o apressadamente pelas ondas ruivas e espessas de seus cabelos.

— Não há tempo para fazer trança — murmurou, segurando os cabelos num grosso rabo-de-cavalo na nuca enquanto vasculhava uma gaveta. -Tem um pedaço de fita, Sassenach?

— Deixe que eu amarro. — Posicionei-me agilmente atrás dele, dobrando para dentro as pontas do cabelo e amarrando o conjunto com uma fita verde. — Que noite para dar um jantar!

E não era um jantar qualquer. O duque de Sandringham deveria ser o convidado de honra, com um pequeno, mas seleto grupo para recebê-lo. Monsieur Duverney viria com seu filho mais velho, um proeminente banqueiro. Louise e Jules de La Tour também viriam, e os d'Arbanville. Apenas para tornar a festa mais interessante, o conde de St. Germain também fora convidado.

— St. Germain! — eu exclamara, atônita, quando Jamie me contou na semana anterior. — Para quê?

— Eu faço negócios com o sujeito — Jamie salientou. — Ele já esteve aqui para jantar, com Jared. Mas o que eu quero é ter a oportunidade de vê-lo conversar com você durante o jantar. Pelo que pude observar a respeito dele nos negócios, ele não consegue esconder seus pensamentos. -Pegou o cristal branco que mestre Raymond me dera e sopesou-o pensativamente na palma da mão.

— É muito bonito — dissera na ocasião. — Vou mandar embuti-lo em ouro, para que você possa usá-lo ao pescoço. Brinque com ele durante o jantar até que alguém lhe faça perguntas a respeito, Sassenach. Então, diga para que serve e olhe para o rosto de St. Germain. Se foi ele quem lhe deu veneno em Versalhes, acho que veremos algum indício em sua expressão.

O que eu desejava no momento era paz, tranqüilidade e uma privacidade total onde eu pudesse tremer como um coelho. O que eu tinha era um jantar com um duque que podia ser um jacobita ou um agente inglês, um conde que podia ser um envenenador e uma vítima de estupro escondida no andar de cima. Minhas mãos tremiam tanto que eu não conseguia fechar o cordão de onde pendia o cristal em sua montagem; Jamie colocou-se atrás de mim e, com um rápido movimento do polegar, encaixou o fecho com um estalido.

— Você não tem nervos? — perguntei-lhe. Abriu um largo sorriso para mim no espelho e colocou as mãos sobre o estômago.

— Tenho, sim. Mas ele me ataca na barriga, não nas mãos. Tem algum remédio para dor de barriga?

— Lá. — Abanei a mão na direção da caixa de remédios sobre a mesa, deixada ali depois que mediquei Mary. — A garrafinha verde. Uma colher de sopa.

Ignorando a colher, ele virou o frasco e tomou vários goles. Abaixou o vidro e espreitou o líquido lá dentro.

— Credo, que gosto horrível! Já está pronta, Sassenach? Os convidados vão chegar dentro de poucos instantes.

Mary estava escondida por enquanto num quarto de hóspedes no segundo andar. Examinei-a com cuidado para ver se tinha algum ferimento, que pareciam limitados a contusões e choque, depois lhe administrei uma dose tão grande de xarope de papoula quanto me pareceu viável.

Alex Randall resistira a todas as tentativas de Jamie de enviá-lo para casa e, em vez disso, ficou tomando conta de Mary, com instruções rígidas para mandar me chamar se ela acordasse.

— Como é que aquele idiota estava lá? — perguntei, escarafunchando uma gaveta à procura de uma caixa de talco.

— Eu lhe fiz essa pergunta — Jamie respondeu. — Parece que o pobre tolo está apaixonado por Mary Hawkins. Segue-a por toda parte da cidade, abatido como uma flor murcha porque sabe que ela deverá se casar com Marigny.

Deixei cair a caixa de talco.

— E ele está apaixonado por ela? — disse num chiado, abanando a nuvem de partículas esvoaçantes.

— É o que ele diz e não vejo nenhuma razão para duvidar — Jamie disse, batendo vivamente no peito do meu vestido para retirar talco derramado.

— Era de se imaginar. — À confusão de emoções conflitantes que me assolava, eu agora acrescentava compaixão por Alex Randall. Obviament ele não teria falado com Mary, achando que a devoção de um empobrecido secretário não era nada comparada à riqueza e posição de um casamento com a Casa Gascogne. E agora o que deveria sentir, vendo-a submetida a um ataque brutal, praticamente debaixo do seu nariz?

— Por que diabos ele não se declarou? Ela teria fugido com ele na mesma hora. — Porque o pálido coadjutor inglês, é claro, devia ser o objeto “espiritual” da muda devoção de Mary.

— Randall é um cavalheiro — Jamie respondeu, entregando-me uma pena e um pote de ruge.

— Você quer dizer é que ele é um perfeito boboca — eu disse impiedosamente.

Jamie torceu o lábio.

— Bem, talvez — concordou. — Também é pobre. Não tem renda para sustentar uma esposa, caso sua família a expulse, o que certamente fariam, se ela fugisse com ele. E a saúde dele é fraca; seria difícil encontrar outro emprego, porque o duque provavelmente o demitiria sem uma carta de referência.

— É capaz de um dos empregados a descobrir — eu disse, retornando a uma preocupação anterior, a fim de desviar o pensamento dessa última manifestação de tragédia.

— Não, não encontrarão. Todos estarão ocupados servindo o jantar. E pela manhã, ela já deverá ter se recuperado o suficiente para voltar para a casa do tio. Mandei um recado — ele acrescentou — dizendo-lhe que ela ia passar a noite com uma amiga, já que era muito tarde. Não queria que saíssem à sua procura.

— Sim, mas...

— Sassenach. — Suas mãos em meus braços me fizeram parar e ele olhou por cima do meu ombro para fitar meus olhos no espelho. — Não podemos deixar que seja vista por ninguém, até ela ser capaz de falar e agir normalmente. Se ficarem sabendo o que aconteceu a ela, sua reputação estará completamente arruinada.

— Sua reputação! Não é culpa dela ter sido estuprada! — Minha voz tremia ligeiramente e ele apertou as mãos em meus braços.

— Não é direito, Sassenach, mas é assim que é. Se souberem que ela já não é virgem, nenhum homem a aceitará. Ela cairá em desgraça e viverá como uma solteirona até o fim de seus dias.

Sua mão segurou meu ombro, deixou-o e retornou para ajudar a recolocar um granpo nos meus cabelos, precariamente presos.

— É tudo que podemos fazer por ela, Claire. — ele disse. — Evitar que a façam sofrer mais, curá-la da melhor forma que pudermos... e encontrar os porcos desgraçados que fizeram isso. — Virou-se e tateou na minha caixa de jóias, à procura do alfinete de sua echarpe de seda. — Santo Deus — acrescentou suavemente, falando para o forro de veludo verde -, acha que eu não sei o que isso é para ela? Ou para ele?

Coloquei a mão sobre seus dedos que remexiam na caixa e apertei-os. Ele apertou os meus também, depois ergueu minha mão e beijou-a rapidamente.

— Deus, Sassenach! Seus dedos estão frios como a neve. — Virou-me e olhou ansiosamente para meu rosto. — Você está bem?

O que quer que tenha visto em meu rosto o fez murmurar “Santo Deus” outra vez, cair de joelhos e puxar-me contra a frente de babados de sua camisa. Abandonei a pretensa coragem e agarrei-me a ele, enterrando o rosto no calor engomado de seu peito.

— Ah, meu Deus, Jamie. Tive tanto medo. Tenho medo. Ah, meu Deus, queria que você pudesse fazer amor comigo agora.

Seu peito vibrou sob meu rosto com uma risada, mas ele me abraçou com mais força.

— Acha que ajudaria?

— Sim.

De fato, eu achava que não me sentiria a salvo outra vez, enquanto não estivesse na segurança de nossa cama, com o silêncio protetor da casa à nossa volta. Queria sentir a força e o calor de Jamie me envolvendo e dentro de mim, reforçando minha coragem com a alegria de nossa união, apagando o horror de me sentir impotente e quase estuprada com a certeza da posse mútua.

Ele segurou meu rosto entre as mãos e beijou-me. Por um instante, o medo do futuro e o terror da noite se esvaíram. Em seguida, ele se afastou e sorriu. Pude perceber sua própria preocupação gravada nas linhas de seu rosto, mas não havia nada em seus olhos além de um minúsculo reflexo do meu rosto.

— Esse já é por conta, então — ele disse, suavemente.

Havíamos chegado ao segundo prato sem incidentes e eu começava a relaxar um pouco, embora minha mão ainda tivesse a tendência de tremer acima do consommé.

— Que fascinante! — eu disse, em resposta a uma história do jovem monsieur Duverney, a qual eu não estava ouvindo, meus ouvidos estando sintonizados para qualquer barulho suspeito lá em cima. — Fale-me mais a respeito.

Meus olhos encontraram-se com os de Magnus quando ele servia o conde de St. Germain, sentado à minha frente, e eu fiz-lhe um sinal de congratulações da melhor maneira que pude com um bocado de peixe na boca. Bem treinado demais para sorrir em público, ele fez uma respeitosa e quase imperceptível inclinação com a cabeça e continuou seu serviço. Minha mão dirigiu-se ao cristal ao meu pescoço e eu o toquei ostensivamente enquanto o conde, sem nenhum sinal de perturbação nas feições sombrias, atacava a truta com amêndoas.

Jamie e o Duverney mais velho mantinham uma conversa particular na outra ponta da mesa, a comida ignorada enquanto Jamie rabiscava números com a mão esquerda em um pedaço de papel com um pedaço de giz. Xadrez ou negócios?, perguntava-me.

Como convidado de honra, o duque sentava-se no meio da mesa. Apreciara os primeiros pratos com o prazer de um gourmand inato e agora mantinha uma conversa animada com madame d'Arbanville, à sua direita. Sendo o duque obviamente o mais proeminente inglês em Paris na época, Jamie achara que valia a pena cultivar o relacionamento com ele, na esperança de descobrir qualquer boato que pudesse levar ao emissário da mensagem musical a Carlos Stuart. Minha atenção, entretanto, invariavelmente vagava do duque para o cavalheiro sentado à sua frente — Silas Hawkins.

Achei que eu poderia morrer ali mesmo e evitar quaisquer outros problemas, quando o duque atravessou a porta, gesticulando informalmente por cima do ombro e dizendo:

— Sra. Fraser, conhece este aqui, o sr. Hawkins, não?

Os olhos azuis, pequenos e alegres do duque depararam-se com os meus com uma expressão de ingênua confiança de que seus caprichos seriam acomodados. Eu não tive escolha senão sorrir e balançar a cabeça, assentindo, e dizer a Magnus que colocasse mais um lugar à mesa. Jamie, avistando o sr. Hawkins ao atravessar a porta da sala de estar, deu a impressão de que estava precisando de outra dose de remédio para o estômago, mas recobrou-se o suficiente para estender a mão ao sr. Hawkins e encetar uma conversa sobre a qualidade das hospedarias na estrada para Calais.

Lancei um olhar para o relógio sobre o consolo da lareira. Quanto tempo até todos eles terem ido embora? Contei mentalmente o número de pratos já servidos e os que faltavam. Quase na hora do prato doce. Depois salada e queijos. Conhaque e café, porto para os homens, licores para as damas. Uma ou duas horas de estimulante conversa. Não estimulante demais, Senhor, por favor, ou se demorariam até o amanhecer.

Agora falavam da ameaça de gangues de rua. Abandonei o peixe e peguei um pãozinho.

— E ouvi dizer que alguns desses bandos de vagabundos não são compostos de gentalha como seria de esperar, mas de jovens da nobreza!

O general d'Arbanville inflou os lábios diante da monstruosidade da idéia.

— Fazem isso para se divertir, uma brincadeira! Como se roubar cidadãos honestos e ultrajar as senhoras não passassem de uma briga de galos!

— Que extraordinário — exclamou o duque, com a indiferença de um homem que nunca ia a nenhum lugar sem uma escolta considerável. A bandeja de petiscos pairava junto a seu queixo e ele raspou meia dúzia para seu prato.

Jamie olhou para mim e ergueu-se da mesa.

— Se me dão licença, mesdames, monsieurs — disse com uma mesura —, tenho um Porto especial que eu gostaria que Sua Excelência experimentasse. Vou buscar na adega.

— Deve ser o Belle Rouge — disse Jules de La Tour, lambendo os lábios na expectativa. — Um verdadeiro deleite o aguarda, Excelência. Nunca provei um vinho igual em nenhum outro lugar.

— Ah, é? Bem, logo provará, monsieur le prince — interrompeu o conde de St. Germain. — Algo ainda melhor.

— Certamente não há nada melhor do que o Belle Rouge! — exclamou o general d'Arbanville.

— Há, sim — declarou o conde, com um ar presunçoso. — Descobri um novo Porto, feito e engarrafado na ilha de Gostos, ao largo da costa de Portugal. Uma cor exuberante como a dos rubis e um sabor que faz o Belle Rouge parecer água colorida. Tenho um contrato para entrega da safra inteira em agosto.

— É mesmo, monsieur le comtel — Silas Hawkins ergueu as sobrancelhas espessas e grisalhas em direção à nossa ponta da mesa. — Então, o senhor encontrou um novo sócio para investimentos? Eu havia entendido que seus próprios recursos estavam... esgotados, podemos dizer assim?, após a triste destruição do Patagônia. — Pegou um acepipe de queijo da travessa e lançou-o delicadamente na boca.

Os músculos dos maxilares do conde avolumaram-se e uma frieza repentina abateu-se sobre a nossa extremidade da mesa. Pelo olhar de esguelha do sr. Hawkins para mim e o leve sorriso que pairava furtivamente em sua boca ocupada em mastigar, era claro que ele sabia tudo sobre “meu papel na destruição do desafortunado Patagônia.

Minha mão buscou novamente o cristal ao meu pescoço, mas o conde não olhou para mim. Um rubor violento erguera-se da sua echarpe de seda e rendas ao pescoço e ele olhou fixamente para o sr. Hawkins com evidente antipatia. Jamie tinha razão; não era um homem que soubesse esconder suas emoções.

— Felizmente, monsieur — ele disse, dominando sua ira com esforço aparente —, eu realmente encontrei um sócio disposto a investir nesse empreendimento. Um compatriota, na realidade, de nosso amável anfitrião. — Balançou a cabeça ironicamente em direção à porta, onde Jami acabara de surgir, seguido de Magnus, trazendo uma bela garrafa de Porto Belle Rouge.

Hawkins parou de mastigar por um instante, a boca repulsivamente aberta com interesse.

— Um escocês? Quem? Não pensei que houvesse nenhum escocês no ramo dos vinhos em Paris além da Casa Fraser.

Um brilho inconfundível de satisfação iluminou os olhos do conde quando olhou do sr. Hawkins para Jamie.

— Suponho que seja discutível se o investidor em questão poderia ser considerado escocês no momento; entretanto, ele é um compatriota do senhor de Broch Tuarach. Seu nome é Carlos Stuart.

Essa notícia causou todo o impacto que o conde esperava. Silas Hawkins empertigou-se na cadeira com uma exclamação que o fez se engasgar com os remanescentes de comida em sua boca. Jamie, que estivera prestes a falar, fechou a boca e sentou-se, olhando o conde pensativa-mente. Jules de La Tour começou a aspergir exclamações e perdigotos e os dois d'Arbanville emitiram gritos de surpresa. Até o duque tirou os olhos de seu prato e pestanejou para o conde com interesse.

— Verdade? — disse. — Para mim, os Stuart eram pobres como ratos de igreja. Tem certeza de que ele não o está enganando?

— Não tenho nenhuma intenção de lançar calúnias ou levantar suspeitas -Jules de La Tour deu sua contribuição -, mas é sabido na corte que os Stuart não possuem nenhum dinheiro. É verdade que vários seguidores jacobitas têm buscado fundos ultimamente, mas sem sorte, pelo que ouvi.

— É verdade — o jovem Duverney intrometeu-se na conversa, inclinando-se para a frente com interesse. — O próprio Carlos Stuart teve uma conversa particular com dois banqueiros das minhas relações, mas ninguém está disposto a adiantar-lhe nenhuma soma vultosa em suas atuais circunstâncias.

Lancei um olhar rápido a Jamie, que respondeu com um sinal quase imperceptível da cabeça. Essas eram boas notícias. Mas o que dizer da história do conde sobre um investimento?

— É verdade — ele disse belicosamente. — Sua Alteza conseguiu um empréstimo de quinze mil livres de um banco italiano e colocou toda a quantia à minha disposição, para ser usada na contratação de um navio e na compra de toda a produção engarrafada dos vinhedos de Gostos. Tenho a carta assinada bem aqui. — Deu uns tapinhas no peito de seu casaco com satisfação, depois se recostou na cadeira e olhou triunfalmente ao redor da mesa, parando emjamie.

— Bem, milorde — disse, com um gesto indicando a garrafa de vinho sobre a toalha branca em frente a Jamie -, vai nos permitir provar o famoso vinho?

— Sim, é claro — Jamie murmurou. Estendeu a mão mecanicamente para o primeiro copo.

Louise, que permanecera comendo em silêncio durante quase todo o jantar, notou o desconforto de Jamie. Sendo uma boa amiga, virou-se para mim no óbvio esforço de mudar o rumo da conversa para um tema neutro.

— É uma bela pedra essa que está usando ao pescoço, ma chère — disse, indicando o cristal. — Onde a conseguiu?

— Ah, esta? — eu disse. — Bem, na verdade...

Fui interrompida por um grito lancinante. Toda a conversa parou e seus frágeis ecos ressoaram nos cristais do candelabro acima.

— Mon Dieu — disse o conde de St. Germain no silêncio da sala. — O que...

O grito repetiu-se e em seguida outra vez. O barulho derramou-se pela larga escadaria e invadiu o vestíbulo.

Os convidados, abandonando a mesa de jantar como um bando de codornas levantando vôo, também invadiram o vestíbulo, a tempo de ver Mary Hawkins, trajando apenas o que restara de sua combinação rasgada, surgir no alto das escadas. Ficou lá parada, como se quisesse dar o máximo efeito à cena, a boca arreganhada, as mãos espalmadas sobre o peito, onde o tecido rasgado exibia com absoluta clareza as contusões deixadas pelas mãos que agarraram seus seios e braços.

Suas pupilas reduziram-se a cabeças de alfinetes à luz dos candelabros, os olhos pareciam poças vazias onde se refletia o terror. Ela olhava para baixo, mas obviamente não via nem as escadas nem a multidão boquiaberta de espectadores.

— Não! — gritou. — Não! Solte-me! Por favor, eu imploro! NÃO ME machuque! — Cega pelo remédio como estava, aparentemente pressentiu algum movimento atrás de si, porque se virou e começou a agitar os braços freneticamente, as mãos em forma de garras atacando a figura de Alex Randall, que tentava inutilmente segurá-la, para acalmá-la. Infelizmente, vistas de baixo, suas tentativas mais pareciam as de um r rejeitado, disposto a continuar o ataque.

— Norn de Dieu — explodiu o general d'Arbanville. — Racaille! Largue-a imediatamente! — O velho soldado deu um salto em direção à escada com uma agilidade que desmentia sua idade, a mão instintivamente levada à espada, a qual, felizmente, deixara junto à porta ao chegar.

Atirei-me, e às minhas volumosas saias, apressadamente à frente do conde e do jovem Duverney, que mostrava sinais de seguir o general no resgate, mas nada pude fazer sobre o tio de Mary, Silas Hawkins. Os olhos saltando da cabeça, o comerciante de vinhos ficou paralisado, perplexo por um instante, depois abaixou a cabeça e arremeteu para a frente como um touro, forçando sua passagem pelo meio dos espectadores.

Olhei, desesperada, ao redor, à procura de Jamie. Localizei-o à margem do grupo. Nossos olhos se encontraram e eu ergui as sobrancelhas numa pergunta silenciosa; de qualquer modo, nada que eu dissesse poderia ser ouvido acima da algazarra no vestíbulo, pontuada pelos gritos histéricos de Mary no andar de cima.

Jamie encolheu os ombros para mim, depois olhou à sua volta. Vi seus olhos focalizarem-se por um instante numa mesa de três pernas junto à parede, apoiando um vaso alto de crisântemos. Ele olhou para cima, medindo a distância, fechou os olhos rapidamente como se encomendasse a alma a Deus, depois se moveu com decisão.

Ele pulou do chão para a mesa, agarrou o corrimão do balaústre e saltou por cima dele, aterrissando na escada, alguns degraus à frente do general. Foi uma façanha tão acrobática que uma ou duas senhoras arquejaram, gritinhos de admiração mesclados a exclamações de horror.

As exclamações avolumaram-se quando Jamie galgou os degraus remanescentes, interpôs-se entre Mary e Alex e, segurando o último pelo ombro, mirou e aplicou-lhe um soco em cheio no maxilar.

Alex, que estivera olhando fixamente para seu empregador abaixo boquiaberto de estupefação, dobrou-se devagar nos joelhos e desmoronou num montículo no chão, os olhos ainda arregalados, mas repentinamente vazios e perplexos como os de Mary.

 

O relógio no consolo da lareira fazia um tiquetaque irritantemente alto. Era o único som na casa, além dos estalidos das tábuas e os baques surdos e distantes dos criados trabalhando até tarde nas cozinhas embaixo. Eu já tivera o meu quinhão de barulho, suficiente por um bom tempo, e queria apenas silêncio para recompor meus nervos esgotados. Abri a caixa do relógio e removi o contrapeso, parando o tiquetaque imediatamente.

Sem dúvida, aquele fora o jantar da temporada. As pessoas que não tiveram a sorte de estar presentes iriam alegar durante meses que estiveram, reforçando sua alegação com fragmentos de mexericos contados e recontados e descrições distorcidas.

Eu finalmente conseguira pôr as mãos em Mary outra vez o tempo suficiente para forçar uma nova dose de forte extrato de papoula por sua goela abaixo. Ela desmoronou numa lamentável pilha de roupas sujas de sangue, deixando-me livre para voltar minha atenção para a discussão em andamento entre Jamie, o general e o sr. Hawkins. Alex teve o bom senso de permanecer desacordado, e arrumei seu corpo mole bem esticado ao lado do corpo de Mary no patamar, como dois peixes mortos. Pareciam Romeu e Julieta expostos em praça pública como uma censura aos seus parentes, mas o sr. Hawkins não percebeu a semelhança.

— Arruinada! — ele continuava a gritar, aos guinchos. — Você arruinou a minha sobrinha! Agora o visconde jamais a aceitará! Maldito escocês imundo! Você e sua meretriz! — Virou-se para mim. — Prostituta! Cafetina! Aliciando jovens inocentes em suas garras desprezíveis para o prazer da escória corrupta! Você... — Jamie, com uma espécie de cólera há muito contida, colocou a mão no ombro do sr. Hawkins, virou-o e desfechou-lhe um soco, logo abaixo do polpudo maxilar. Depois, ficou parado, esfregando distraidamente os nós dos dedos doloridos, observando enquanto os olhos do corpulento comerciante de vinhos rolavam para cima. O sr. Hawkins caiu de costas contra os lambris e deslizou suavemente pela parede abaixo, até ficar sentado no chão.

Jamie direcionou um frio olhar azul para o general d'Arbanville, que, ao observar a sorte do desfalecido, sabiamente abaixou a garrafa de vinho que andara brandindo e deu um passo para trás.

— Ah, vá em frente — instigou uma voz atrás do meu ombro. — Por que parar agora, Tuarach? Bata em todos os três! Acabe logo com eles! — O general e Jamie concentraram um olhar de antipatia na garbosa figura atrás de mim.

— Vá embora, St. Germain — Jamie disse. — Isso não é da sua conta. -Parecia cansado, mas ergueu a voz a fim de ser ouvido acima do tumulto abaixo. As costuras do ombro de seu casaco haviam se rompido e as pregas de sua camisa de linho apareciam brancas através dos rasgões.

Os lábios finos de St. Germain curvaram-se para cima num sorriso sedutor. Obviamente, o conde estava se divertindo como nunca.

— Não é da minha conta? Como podem tais acontecimentos não serem da conta de qualquer homem de espírito público? — Seu olhar divertido varreu o patamar, atulhado de corpos. — Afinal, se um hóspede de Sua Majestade perverteu de tal forma o significado de hospitalidade a ponto de manter um bordel em sua casa, isso não é... Não, não faça isso! — ele disse, quando Jamie deu um passo em sua direção. Uma lâmina brilhou repentinamente em sua mão, surgindo como por um passe de mágica do punho de rendas e babados sobre seu pulso. Vi o lábio de Jamie curvar-se ligeiramente, e ele remexeu os ombros dentro dos restos de seu casaco, preparando-se para o combate.

— Parem com isso imediatamente! — disse uma voz imperiosa. Os dois Duverney, o velho e o jovem, abriram caminho até o patamar já superlotado. O Duverney jovem virou-se e agitou os braços energicamente para a multidão aglomerada nas escadas, suficientemente acovardada por sua expressão ameaçadora para recuar um passo.

— Você — disse o Duverney velho, apontando para St. Germain. — Se tiver qualquer sentimento de espírito público, como sugere, prestará um serviço útil retirando algumas dessas pessoas daqui.

St. Germain encarou o banqueiro, mas após uns instantes, o nobre deu de ombros e a adaga desapareceu. St. Germain virou-se sem nenhum comentário e começou a descer as escadas, empurrando quem estivesse à sua frente e, aos berros, mandando-os ir embora.

Apesar de suas exortações e das de Gerard, o jovem Duverney, atrás dele, o grosso dos convidados só partiu, transbordando de escândalo, com a chegada da guarda do rei.

O sr. Hawkins, já tendo a essa altura recobrado os sentidos, imediatamente apresentou uma acusação de seqüestro e proxenetismo contra Jamie. Por um instante, eu realmente achei que Jamie fosse bater nele outra vez; seus músculos contraíram-se sob o veludo azul-celeste, mas depois relaxaram quando ele pensou melhor.

Após uma quantidade considerável de explicações e argumentos confusos, Jamie concordou em comparecer à sede da guarda na Bastilha, para — talvez — se explicar.

Alex Randall, lívido, suando e obviamente sem fazer a menor idéia do que estava acontecendo, também foi levado — o duque não esperou para ver o destino do seu secretário, mas discretamente requisitou sua carruagem e partiu antes da chegada da guarda. Qualquer que fosse sua missão diplomática, ver-se envolvido em um escândalo não iria ajudar nada. Mary Hawkins, ainda desacordada, foi levada para a casa do tio, enrolada em um cobertor.

Eu estava prestes a ser incluída na detenção quando Jamie recusou-se categoricamente a permitir, insistindo que eu estava numa condição delicada e não poderia em hipótese alguma ser levada a uma prisão. Finalmente, vendo que Jamie estava mais do que disposto a começar a bater nas pessoas outra vez a fim de provar seu ponto de vista, o capitão da guarda cedeu, sob a condição de que eu não deixasse a cidade. Embora a idéia de fugir de Paris tivesse sua atração, eu com certeza não poderia partir sem Jamie. Assim, dei minha parole d'honneur sem nenhuma reserva.

Enquanto o grupo girava confusamente pelo vestíbulo, acendendo lanternas e resgatando seus chapéus e capas, vi Murtagh, uma expressão sombria no rosto contundido, pairando na periferia da multidão desordenada. Obviamente, ele pretendia acompanhar Jamie, aonde quer que estivesse indo, e uma repentina sensação de alívio se apoderou de mim. Ao menos, meu marido não estaria sozinho.

— Não se preocupe, Sassenach. — Abraçou-me rapidamente, sussurrando em meu ouvido. — Vou voltar logo. Se alguma coisa der errado... -Hesitou, depois disse com firmeza: — Não será necessário, mas se precisar de uma amiga, procure Louise de La Tour.

— Está bem. — Não tive tempo para nada mais além de um leve beijo antes de os guardas o cercarem.

As portas da casa abriram-se de par em par e vi Jamie olhar para trás, avistar Murtagh e abrir a boca como se fosse dizer alguma coisa. Murtagh, colocando as mãos no cinto da espada, olhou ferozmente e abriu seu caminho em direção a Jamie, quase arrastando o jovem Duverney para a rua. Uma batalha curta e silenciosa de vontades se seguiu, conduzida inteiramente por meio de olhares ferozes. Em seguida, Jamie deu de ombros e atirou as mãos para o ar num gesto de resignação.

Saiu para a rua, ignorando os guardas que o cercavam de todos os lados, mas parou ao ver uma pequena figura junto ao portão. Inclinou-se e disse alguma coisa, depois se endireitou, virou-se para a casa e me deu um sorriso, claramente visível à luz do lampião. A seguir, com um sinal da cabeça para o velho monsieur Duverney, entrou na carruagem que o aguardava e foi levado, com Murtagh agarrado à traseira do veículo.

Fergus permaneceu parado na rua, olhando a carruagem se afastar, até se perder de vista. Então, subindo as escadas com passos decididos, tomou-me pela mão e me conduziu para dentro.

— Venha, milady — falou. — Milorde disse que devo cuidar da senhora até a sua volta.

Fergus deslizou suavemente para dentro da sala, fechando a porta silenciosamente ao entrar.

— Fiz a ronda por toda a casa, milady — sussurrou. — Tudo fechado. Apesar da preocupação, sorri diante do seu tom de voz, uma imitação tão óbvia de Jamie. Seu ídolo havia lhe atribuído uma responsabilidade e ele claramente levava seus deveres a sério.

Tendo me escoltado até a sala de estar, fora inspecionar a casa como Jamie fazia toda noite, verificando os trincos das janelas, as trancas das portas externas — que eu sabia que ele mal conseguiria levantar — e se em todos os fogões e lareiras o fogo havia sido abafado. Ele tinha uma mancha de fuligem que se estendia da testa à maçã do rosto de um lado, mas esfregara o olho com a mão cerrada em algum momento, de modo que seu olho piscava de um claro círculo branco, como um pequeno guaxinim.

— Deveria ir descansar, milady — ele disse. — Não se preocupe, eu estarei aqui.

Não ri, mas sorri para ele.

— Eu não conseguiria dormir, Fergus. Vou ficar sentada aqui um pouco. Mas talvez você deva ir para a cama; você já teve uma noite muito longa. — Relutei em mandá-lo se recolher, não querendo prejudicar sua nova dignidade como o homem da casa temporário, mas ele estava evidentemente exausto. Os ombros pequenos e ossudos estavam caídos e as olheiras sob seus olhos sobressaíam-se, mais escuras até do que a camada de fuligem.

Ele bocejou sem nenhum constrangimento, mas sacudiu a cabeça.

— Não, milady. Vou ficar com a senhora... se a senhora não se importar — acrescentou depressa.

— Não me importo. — Na realidade, ele estava cansado demais tanto para falar quanto para ficar irrequieto como de costume e sua presença sonolenta na almofada era reconfortante, como a de um gato ou cachorro.

Fiquei sentada, fitando as chamas fracas, tentando reunir um pouco de serenidade. Tentei evocar imagens de lagos serenos, clareiras na floresta, até mesmo a paz sombria da capela da abadia, mas nada parecia funcionar; a todas as imagens de paz sobrepunham-se as daquela noite: mãos violentas, dentes brilhantes, saindo de uma escuridão assustadora; o rosto lívido e transtornado de Mary, semelhante ao de Alex Randall; o lampejo de ódio nos olhinhos miúdos do sr. Hawkins; a súbita desconfiança nos rostos do general e dos Duverney; a indisfarçável satisfação de St. Germain com o escândalo, tremeluzindo de malícia como as gotas de cristal dos candelabros. E por fim, o sorriso de Jamie, misto de confiança e incerteza, na luz oscilante das lanternas da carruagem.

E se ele não voltasse? Essa era a pergunta que eu estava tentando calar, desde que o levaram. E se não conseguisse se livrar da acusação? E se o magistrado fosse um desses desconfiados de estrangeiros — bem, mais desconfiado do que o usual, emendei -, ele poderia facilmente ficar preso indefinidamente. Além e acima do medo de que essa crise inesperada pudesse arruinar todo o cuidadoso trabalho das últimas semanas, estava a imagem de Jamie em uma cela como aquela em que eu o encontrara em Wentworth. A luz da presente crise, a notícia de que Carlos Stuart estava investindo em vinho parecia trivial.

Sozinha comigo mesma, eu tinha agora muito tempo para pensar, mas meus pensamentos não pareciam estar me levando a lugar algum. Quem ou o que era “La Dame Blanche”? Que espécie de “dama branca”? E por que a menção desse nome fez os atacantes fugirem?

Repassando os acontecimentos subseqüentes do jantar, lembrei-me dos comentários do general sobre as gangues de criminosos que vagavam pelas ruas de Paris e como algumas delas incluíam membros da nobreza. Isso era consistente com a fala e os trajes do líder dos homens que haviam atacado a mim e a Mary, embora seus comparsas tivessem uma aparência bem mais grosseira. Tentei me lembrar se o sujeito me recordava alguém que eu conhecesse, mas minha lembrança dele era indistinta, toldada pela escuridão e pelo atordoamento do choque.

Na forma geral, não era muito diferente do conde de St. Germain, embora com certeza a voz fosse outra. Entretanto, se o conde estivesse envolvido, evidentemente se daria ao trabalho de disfarçar a voz assim como disfarçou o rosto. Ao mesmo tempo, achava quase impossível acreditar que o conde pudesse ter tomado parte num ataque como aquele e duas horas mais tarde sentar-se calmamente à minha frente à mesa de jantar» tomando sua sopa em pequenas colheradas.

Corri os dedos pelos cabelos, frustrada. Não havia nada a ser feito até de manhã. Caso a manhã chegasse e Jamie não, então eu poderia começar a percorrer as casas de supostos conhecidos e supostos amigos, um dos quais poderia ter notícias ou ajuda a oferecer. Mas naquela hora da noite, eu estava de mãos atadas; impossibilitada de me mover como uma libélula no âmbar.

Meus dedos enrolaram-se em um dos grampos de enfeite e eu o arranquei com impaciência. Enroscado nos meus cabelos, ele não se soltou.

-Ai!

— Deixe, milady. Eu tiro.

Eu não o ouvira passar para trás de mim, mas senti os dedos pequenos e ágeis de Fergus em meus cabelos, desembaraçando o pequeno ornamento. Colocou-o de lado e, em seguida, hesitante, perguntou:

— Os outros também, milady?

— Ah, obrigada, Fergus — eu disse, agradecida. — Se você não se importar. Seus movimentos de batedor de carteiras eram leves e precisos, e os cachos espessos começaram a cair em volta do meu rosto, libertados de suas amarras. Pouco a pouco, minha respiração tornou-se mais regular, conforme meus cabelos se soltavam.

— Está preocupada, milady? — perguntou a voz afável e fina atrás de mim.

— Estou — respondi, cansada demais para manter falsas aparências.

— Eu também — ele disse com simplicidade.

O último grampo tilintou sobre a mesa e eu me deixei arriar na poltrona, os olhos fechados. Então, senti um toque de novo e percebi que ele escovava meus cabelos, delicadamente desfazendo os nós.

— Permite, milady? — disse, sentindo quando contraí o corpo de surpresa. — As senhoras costumavam dizer que isso as ajudava, se estivessem se sentindo preocupadas ou aborrecidas.

Relaxei outra vez sob o toque tranqüilizador.

— Permito — eu disse. — Obrigada. — Após alguns instantes, perguntei: — Que senhoras, Fergus?

Houve um momento de hesitação, como o de uma aranha perturbada quando construía uma teia, e em seguida a delicada arrumação das mechas foi retomada.

— No lugar onde eu costumava dormir, milady. Eu não podia sair por causa dos clientes, mas madame Elise me deixava dormir em um compartimento embaixo das escadas, se eu ficasse quieto. Depois que todos os homens já tinham ido embora, quase de manhã, eu saía e às vezes as senhoras compartilhavam seu desjejum comigo. Eu as ajudava a amarrar os cadarços das roupas de baixo e elas diziam que eu era quem melhor fazia isso — acrescentou, com certo orgulho. — Depois, eu penteava seus cabelos, se elas quisessem.

— Hum. — O suave sussurro da escova pelos meus cabelos era hipnótico. Sem o relógio sobre o consolo da lareira, não havia marcação de horas, mas o silêncio na rua significava que já era realmente muito tarde.

— Como é que você foi parar na casa de madame Elise, Fergus? — perguntei, mal reprimindo um bocejo.

— Eu nasci lá, milady — ele respondeu. Os movimentos da escova tornavam-se cada vez mais lentos e sua voz mais arrastada. — Eu costumava me perguntar qual delas era minha mãe, mas nunca descobri.

O barulho da porta da sala de estar abrindo acordou-me. Jamie estava ali parado, os olhos injetados e o rosto lívido de cansaço, mas sorrindo à primeira luz cinza da manhã.

— Tive medo de que você não voltasse — eu disse, instantes depois, o rosto junto ao topo de sua cabeça. Seus cabelos tinham o leve cheiro ácido e passado de fumaça e sebo de velas, o casaco completara sua queda ao total descrédito, mas ele estava quente e sólido e eu não estava disposta a ser crítica a respeito do cheiro da cabeça que eu embalava junto ao peito.

— Eu também — ele disse, a voz um pouco abafada, e pude sentir seu sorriso. Os braços ao redor de minha cintura apertaram e relaxaram, e ele sentou-se direito, afastando meus cabelos dos olhos.

— Meu Deus, você é tão bonita — disse ternamente. — Despenteada e sem dormir, com os cachos dos cabelos caindo no rosto. Meu belo amor. Você ficou sentada aqui a noite toda?

— Não fui a única. — Fiz um gesto para o chão, onde Fergus dormia enrascado em cima do tapete, a cabeça descansando em uma almofada junto aos meus pés. Remexeu-se em seu sono, a boca um pouco aberta, a pele rosada e os lábios cheios como o bebê que ele quase era.

Jamie colocou a mão suavemente sobre seu ombro.

— Vamos, rapaz. Você fez muito bem em tomar conta de sua patroa. -Pegou o menino no colo e encostou-o no ombro, resmungando e com os olhos sonolentos. — Você é um bom homem, Fergus, e mereceu seu descanso. Vou levá-lo para sua cama. — Vi os olhos de Fergus arregalarem-se de surpresa e em seguida semicerrarem-se quando relaxou, balançando a cabeça nos braços de Jamie.

Eu já abrira as persianas e atiçara o fogo quando Jamie retornou à sala de estar. Tirara o casaco arruinado, mas ainda usava o que restara dos finos trajes da noite.

— Tome. — Entreguei-lhe um copo de vinho e ele bebeu-o de pé, em três goles, estremeceu, depois desmoronou no pequeno sofá, estendendo o copo para mim.

— Nem mais uma gota — eu disse — até que me conte o que está acontecendo. Você não está na prisão, então imagino que tudo esteja bem, mas...

— Não está nada bem, Sassenach — ele interrompeu —, mas poderia estar pior.

Depois de muita discussão — a maior parte sendo as reiterações do sr. Hawkins de suas impressões originais -, o juiz-magistrado que fora retirado às pressas de sua cama aconchegante para presidir esta investigação improvisada decretou irritadamente que, já que Alex Randall era um dos acusados, ele não poderia ser considerado uma testemunha imparcial. Nem eu, como mulher e possível cúmplice do outro acusado. Murtagh ficara, segundo seu próprio testemunho, inconsciente durante o alegado ataque e a criança Claudel não era legalmente capaz de prestar depoimento.

Obviamente, dissera monsieur lejuge, lançando um olhar furibundo ao capitão da guarda, a única pessoa capaz de fornecer a verdade da questão era Mary Hawkins, que estava, segundo todas as opiniões, incapaz de fazê-lo no momento. Portanto, todos os acusados deviam ser trancafiados na Bastilha até que mademoiselle Hawkins pudesse ser interrogada e certamente monsieur le capitaine poderia ter visto isso por si mesmo, não?

— Então, por que não estão trancados na Bastilha? — perguntei.

— Monsieur Duverney, o pai, ofereceu-se para pagar minha fiança — Jamie respondeu, puxando-me para o sofá, ao lado dele. — Ele ficou sentado, encolhido no canto como um ouriço, durante toda a conversa fiada. Depois, quando o juiz tomou sua decisão, levantou-se e disse que, tendo tido a oportunidade de jogar xadrez comigo em várias ocasiões, não achava que eu tivesse um caráter moral tão dissoluto que pudesse ter conspirado para a perpetração de um ato tão depravado. — Parou e encolheu os ombros.

— Bem, você sabe como ele fala quando começa. A idéia geral era a de que um homem que podia derrotá-lo no xadrez seis vezes em sete não iria atrair jovens inocentes à sua casa para serem violadas.

— Muito lógico — eu disse secamente. — O que ele de fato quis dizer, imagino, é que se o trancafiassem, você não poderia mais jogar com ele.

— Acho que sim — concordou. Espreguiçou-se, bocejou e pestanejou para mim, sorrindo.

— Mas estou em casa e, no momento, não me importo muito com a razão. Venha até aqui, Sassenach. — Segurando minha cintura com as duas mãos, sentou-me no seu colo, passou os braços à minha volta e suspirou de prazer.

— Tudo que quero fazer — murmurou em meu ouvido — é tirar essas roupas imundas e deitar-me a seu lado no tapete junto à lareira, dormir logo em seguida, com a cabeça em seu ombro e ficar assim até amanhã.

— Um pouco inconveniente para os criados — observei. — Vão ter que varrer ao nosso redor.

— Que se danem os criados — ele disse, à vontade. — Para que servem as portas?

— Para baterem, evidentemente — eu disse, quando uma batida leve soou do lado de fora.

Jamie parou por um instante, o nariz enterrado em meus cabelos, depois suspirou e ergueu a cabeça, deslizando-me de seu colo para cima do sofá.

— Trinta segundos — prometeu-me em voz baixa. Em seguida, disse, em voz mais alta: — Entre!

A porta abriu-se, e Murtagh entrou. Eu não prestara atenção em Murtagh em meio aos arrufos e confusões da noite anterior e agora pensei comigo mesma que sua aparência não melhorara em nada.

A falta de sono era tão visível quanto em Jamie; o único olho aberto estava injetado e com olheiras. O outro escurecera, adquirindo a cor de uma banana podre, uma fenda de negro reluzente na pele inchada. O galo em sua testa agora atingira o apogeu; um ovo de ganso, roxo, logo acima da sobrancelha, com um corte feio nele.

O pequeno escocês mal dissera uma palavra desde que fora libertado do saco na noite anterior. Fora uma curta investigação sobre o paradeiro de suas armas — recolhidas por Fergus que, numa busca à sua maneira de um cãozinho rat-terrier, encontrara tanto a adaga quanto a sgian dhu atrás de um monte de lixo -, mantivera um silêncio sombrio durante todas as exigências de nossa fuga, guardando a retaguarda enquanto corríamos a pé pelas vielas escuras de Paris. E assim que chegamos em casa, um olhar penetrante de seu olho em funcionamento fora suficiente para reprimir qualquer pergunta indesejável dos criados da cozinha.

Imagino que ele tenha dito alguma coisa no cornmissariat de police, ainda que apenas para testemunhar a favor do bom caráter de seu patrão — embora eu me perguntasse quanta credibilidade eu atribuiria a Murtagh, se eu fosse um juiz francês. Mas agora ele estava silencioso como as gárgulas da Notre Dame, com as quais ele tinha grande semelhança.

No entanto, embora sua aparência fosse deplorável, nunca parecia faltar dignidade a Murtagh, como agora. As costas empertigadas como uma vara, ele avançou pelo carpete e ajoelhou-se formalmente diante de Jamie, que olhava atônito para aquele comportamento.

O magro e musculoso homenzinho tirou a adaga do cinto, sem floreios, mas com uma boa dose de deliberação, e estendeu-a para Jamie, o cabo primeiro. O rosto ossudo, sulcado, estava sem expressão, mas o olho roxo descansava resolutamente sobre o rosto de Jamie.

— Eu o desapontei — disse o homenzinho tranqüilamente. — E eu lhe peço, como meu senhor, que tire minha vida agora, para que eu não tenha que continuar vivendo com essa vergonha.

Jamie aprumou-se devagar e eu senti que afastava seu próprio cansaço ao fitar seu servidor. Permaneceu absolutamente imóvel por um instante, as mãos pousadas nos joelhos. Em seguida, estendeu o braço e colocou uma das mãos suavemente sobre o galo roxo na cabeça de Murtagh.

— Não há nenhuma vergonha em cair durante uma batalha, mo caraidh — disse em voz baixa. — O maior dos guerreiros pode ser vencido.

Mas o homenzinho sacudiu a cabeça teimosamente, o olho roxo sem piscar.

— Não — disse. — Não caí durante uma batalha. Você depositou sua confiança em mim; para tomar conta de sua própria senhora e de seu filho ainda não nascido, além da jovem inglesa. E eu dei à tarefa tão pouca atenção que não tive nenhuma chance de revidar um golpe quando o perigo surgiu. Para dizer a verdade, nem vi a mão que me derrubou. — Nesse momento, ele realmente piscou, uma única vez.

— A traição... —Jamie começou.

— E agora veja o resultado — Murtagh interrompeu. Eu nunca o ouvira falar tantas palavras em seqüência em todo o tempo em que o conheci.

— A sua reputação manchada, sua mulher atacada e a menina... — A linha fina de sua boca apertou-se por um instante e sua garganta fibrosa meneou-se quando ele engoliu em seco. — Só por ela, a mais profunda tristeza me sufoca.

— Sim —Jamie disse em voz baixa, balançando a cabeça. — Sim, eu sei, companheiro. Eu também me sinto assim. — Tocou o peito por um instante, sobre o coração. Os dois homens pareciam sozinhos ali, as cabeças a poucos centímetros de distância quando Jamie inclinou-se em direção a Murtagh. Com as mãos cruzadas no colo, não me movi nem falei; não era assunto meu.

— Mas eu não sou seu senhor, companheiro — Jamie continuou, em tom mais firme. — Você não me fez nenhum juramento e eu não tenho nenhum poder sobre você.

— Sim, tem. — A voz de Murtagh também era firme e o cabo da adaga não tremeu nem uma vez.

— Mas...

— Eu lhe fiz um juramento, Jamie Fraser, quando você não tinha mais do que uma semana e era um belo menino no colo de sua mãe.

Pude sentir o ínfimo início de perplexidade quando os olhos de Jamie se arregalaram.

— Eu me ajoelhei aos pés de Ellen como me ajoelho agora aos seus pés

— o pequeno escocês continuou, o queixo fino empinado. — E jurei a ela, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que sempre o seguiria, para estar a seu serviço e vigiar sua retaguarda, quando se tornasse um homem e precisasse desses serviços. — A voz rouca amenizou-se e a pálpebra desceu sobre o olho cansado.

— Sim, rapaz. Eu me importo com você como se fosse meu próprio filho. Mas eu o decepcionei.

— Isso você não fez e jamais poderia fazer. — As mãos de Jamie descansaram nos ombros de Murtagh, apertando-os com firmeza. — Não, eu não vou tirar sua vida, porque eu ainda preciso muito de você. Mas vou exigir que faça um juramento e que seja fiel a ele.

Houve um longo momento de hesitação e a cabeça de cabelos negros e espetados balançou imperceptivelmente.

A voz de Jamie abaixou-se ainda mais, mas não era um sussurro. Mantendo os três dedos médios de sua mão direita estendidos, colocou-os sobre o punho da adaga, na junção do cabo com a haste.

— Eu o encarrego, então, por seu juramento a mim e sua palavra à minha mãe: encontre os homens. Cace-os e, quando encontrá-los, eu o encarrego de vingar a honra de minha mulher e o sangue da virtude de Mary.

Parou por um instante, depois tirou a mão da arma. Murtagh ergueu-a, segurando-a em pé, pela lâmina. Percebendo minha presença pela primeira vez, saudou-me com um movimento da cabeça e disse:

— Como o senhor de Broch Tuarach falou, senhora, eu o farei. Colocarei a vingança a seus pés.

Umedeci meus lábios ressecados, sem saber o que dizer. No entanto, nenhuma resposta parecia necessária. Levou a adaga aos lábios e beijou-a, depois empertigou-se com decisão e enfiou-a na bainha.

 

O alvorecer se transformara em dia claro quando acabamos de nos vestir e o desjejum já estava sendo trazido da cozinha pelas escadas.

— O que eu quero saber — eu disse, servindo o chocolate — é quem afinal é La Dame Blanche?

— La Dame Blanche? — Magnus, inclinando-se por cima do meu ombro com uma cestinha de pães quentes, sobressaltou-se de tal forma que um pãozinho caiu da cesta. Peguei-o com precisão e virei-me para olhar para o mordomo, que parecia um pouco abalado.

— Sim, isso mesmo — eu disse. —Já ouviu falar dessa expressão, Magnus?

— Ora, sim, milady — o velho criado respondeu. — La Dame Blanche é une sorcière.

— Uma feiticeira? — perguntei, incrédula.

Magnus deu de ombros, ajeitando o guardanapo em volta dos pãezinhos com cuidado excessivo para não olhar direto para mim.

— A senhora branca — ele murmurou. — É chamada de bruxa, feiticeira. E no entanto ela pode ver o âmago de um homem e pode transformar sua alma em cinzas, se encontrar ali algum mal. — Sacudiu a cabeça de leve, virou-se e saiu apressado arrastando os pés em direção à cozinha. Vi seu cotovelo mexer-se e compreendi que ele estava fazendo o sinal-da-cruz enquanto se afastava.

— Minha Nossa Senhora — eu disse, virando-me para Jamie. — Você ja tinha ouvido falar em La Dame Blanche?

— Hein? Ah, oh, sim. Eu... ouvi algumas histórias. — Os olhos de Jamie esconderam-se atrás de longas pestanas ruivas enquanto ele enterrava o nariz na xícara de chocolate, mas o rubor em suas faces era forte demais para ser atribuído ao calor do vapor que a bebida desprendia.

Reclinei-me na minha cadeira, cruzei os braços e olhei para ele com os olhos apertados.

— Ah, já ouviu falar, hein? — eu disse. — Você ficaria surpreso em saber que os homens que nos atacaram ontem à noite referiram-se a mim como La Dame Blanche?

— É mesmo? — Ergueu os olhos rapidamente diante disso, surpreso.

— Viram-me de repente sob a luz, gritaram La Dame Blanche e em seguida saíram correndo como se eu tivesse a peste.

Jamie respirou fundo e deixou o ar escapar lentamente. A cor vermelha estava esmaecendo de seu rosto, deixando-o pálido como o prato de porcelana branca diante dele.

— Deus do céu! — exclamou, em parte para si mesmo. — Deus... do... céu!

Inclinei-me sobre a mesa e peguei a xícara de sua mão.

— Poderia me dizer exatamente o que você sabe sobre La Dame Blanche? — sugeri amavelmente.

— Bem... — hesitou, depois me olhou timidamente. — É só que... eu disse a Glengarry que você era La Dame Blanche.

— Você disse a Glengarry o quê? — Engasguei-me com um pedaço de pão. Jamie deu uns tapinhas nas minhas costas para me ajudar.

— Bem, foi por causa de Glengarry e Castellotti — disse, defensivamente. — Quero dizer, jogar cartas e dados é uma coisa, mas eles não pararam por aí. E acharam muito engraçado que eu quisesse ser fiel à minha mulher. Disseram... bem, disseram várias coisas e eu... eu fiquei cansado daquilo. — Desviou o olhar, as pontas das orelhas ardendo.

— Hum — eu disse, tomando um gole de chá. Tendo ouvido a língua de Castellotti em ação, podia imaginar o tipo de brincadeiras impiedosas que Jamie sofrerá.

Ele esvaziou a própria xícara de um gole só, depois se ocupou em enchê-la novamente com toda a atenção, mantendo os olhos fixos no bule para evitar os meus. — Mas eu também não podia simplesmente me levantar e ir embora, não é mesmo? — perguntou. — Tinha que permanecer com Sua Alteza durante a noite toda e não seria nada bom que ele ficasse achando que eu era um maricas.

— Então, você lhes disse que eu era La Dame Blanche — eu disse, tentando com todas as forças manter minha voz livre de qualquer indício de risada. — E se você se metesse a engraçadinho com mulheres naquela noite, eu dessecaria suas partes privadas.

— Hã, bem...

— Meu Deus, eles acreditaram? — Podia sentir meu próprio rosto ficando tão quente e vermelho quanto o de Jamie, com o esforço para conseguir me controlar.

— Eu fui muito convincente — ele disse, um dos cantos da boca começando a se contorcer. — Fiz todos eles jurarem segredo pela vida de suas mães.

— E quanto vocês tinham bebido antes disso?

Desisti do esforço e explodi numa gargalhada.

— Ah, Jamie — eu disse. — Querido! — Inclinei-me sobre a mesa e beijei sua bochecha furiosamente vermelha.

— Bem — ele disse, sem jeito, passando manteiga num pedaço de pão. -Não consegui pensar em nada melhor. E eles de fato pararam de atirar prostitutas nos meus braços.

— Ótimo — eu disse. Peguei o pedaço de pão de sua mão, acrescentei mel e o devolvi a ele.

— Não tenho do que me queixar — observei. —Já que além de proteger sua virtude, parece que isso impediu que eu fosse estuprada.

— Graças a Deus. — Largou o pão sobre a mesa e agarrou minha mão. — Meu Deus, se alguma coisa tivesse lhe acontecido, Sassenach, eu...

— Sim — eu o interrompi -, mas se os homens que nos atacaram sabiam que eu deveria ser La Dame Blanche...

— Sim, Sassenach. — Balançou a cabeça para mim. — Não pode ter sido nem Glengarry nem Castellotti, pois estavam comigo na casa onde Fergus foi me buscar quando vocês foram atacados. Mas deve ter sido alguém a quem eles contaram a história.

Não pude reprimir um ligeiro estremecimento à lembrança da máscara branca e da voz zombeteira por trás.

Com um suspiro, ele soltou minha mão.

— O que significa, suponho, que é melhor eu fazer uma visita a Glengarry e descobrir exatamente a quantas pessoas ele anda contando as histórias da minha vida de casado. — Passou a mão pelos cabelos, exasperado. — E depois devo visitar Sua Alteza e descobrir o que ele pretende com esse arranjo com o conde de St. Germain.

— Suponho que sim — eu disse pensativamente -, embora conhecendo Glengarry, ele provavelmente já contou para metade de Paris a essa altura. Eu mesma tenho algumas visitas a fazer esta tarde.

— Ah, é? E quem você vai visitar, Sassenach? — ele perguntou, olhando-me atentamente. Respirei fundo, preparando-me para a provação que me aguardava.

— Primeiro, mestre Raymond. Depois, Mary Hawkins.

— Lavanda, talvez? — Raymond ficou na ponta dos pés para pegar uma botija da prateleira. — Não para aplicar, mas o aroma é tranqüilizante; acalma os nervos.

— Bem, isso depende dos nervos de quem estamos falando — eu disse, lembrando-me da reação de Jamie ao cheiro de lavanda. Era o perfume qualquer coisa, exceto calmante. — Neste caso, entretanto, deve ajudar. Mal não faz, de qualquer forma.

— Mal não faz — ele repetiu pensativamente. — Um princípio muito sensato.

— Essa é a primeira parte do Juramento de Hipócrates, sabe — eu disse, observando-o enquanto remexia em suas gavetas e caixas. — O juramento que um médico faz. “Em primeiro lugar, não fazer nenhum mal.”

— Ah, é? E a senhora mesma fez esse juramento, madona? — Os olhos brilhantes de anfíbio piscaram para mim acima da beira do balcão alto.

Eu me vi ruborizando sob aquele olhar penetrante.

— Hã, bem, não. Na verdade, não. Não sou realmente uma médica. Ainda não. — Eu não saberia explicar o que me fez acrescentar essa última informação.

— Não? Entretanto, está buscando consertar aquilo que um “verdadeiro” médico jamais tentaria, sabendo que a virgindade perdida não é recuperável. — Sua ironia era evidente.

— Ah, não é? — respondi secamente. Fergus havia me contado, com um pouco de encorajamento de minha parte, muita coisa sobre as “senhoras” na casa de madame Elise. — E quanto a essa história de uma bexiga de leitãozinho cheia de sangue de galinha, hein? Ou vai alegar que coisas como essa estão no âmbito da competência de um boticário, mas não no de um médico?

Ele não possuía sobrancelha, mas a testa espessa erguia-se ligeiramente quando ele estava se divertindo.

— E quem é prejudicado com isso, madona? Certamente não o vendedor. Nem o comprador, tampouco. É provável que ele obtenha mais prazer pelo seu dinheiro do que o comprador do artigo genuíno. Nem mesmo o hímen é prejudicado! Sem dúvida, um esforço muito moral e hipocrático, que qualquer médico terá prazer em ajudar, não acha?

Eu ri.

— E tenho a impressão de que você conhece mais de um que o faz? -eu disse. — Vou levar a questão à próxima reunião do Conselho de Medicina. Enquanto isso, na falta de milagres manufaturados, o que podemos fazer no presente caso?

— Humm. — Abriu um quadrado de gaze sobre o balcão e despejou um punhado de folhas secas finamente moídas no centro. Um cheiro forte, penetrante e agradável, elevou-se do montículo verde-acinzentado.

— Isso é confrei sarraceno — ele disse, dobrando a gaze com habilidade em um minúsculo quadrado com as pontas enfiadas para dentro. — Bom para acalmar peles irritadas, pequenas lacerações e partes privadas machucadas.

— Sim, de fato — eu disse, um pouco asperamente. — Como infusão ou decocção?

— Infusão. Morna, provavelmente, nas circunstâncias. — Voltou-se para outra prateleira e retirou uma das grandes botijas brancas de porcelana pintada. Nessa, estava escrito CHELIDONIUM.

— Para indução do sono — explicou. Sua boca sem lábios esticou-se nos cantos. — Acho que talvez seja melhor evitar o uso dos derivados do ópio de papoula; esta paciente em particular parece ter uma reação imprevisível a essa substância.

— Já soube do que aconteceu, não? — eu disse, resignadamente. Eu não podia esperar que fosse diferente. Eu sabia muito bem que a informação era uma das mercadorias mais preciosas que ele vendia; em conseqüência, a pequena loja era um nexo para mexericos de dezenas de fontes, de vendedores ambulantes a cavalheiros da Alcova Real.

— De três fontes diferentes — Raymond explicou. Olhou para fora da janela, esticando o pescoço para ver o enorme horloge pendurado na parede do prédio perto da esquina. — E ainda nem são duas horas. Acredito que ainda vou ouvir várias outras versões dos acontecimentos antes do pôr-do-sol. — A boca larga, desdentada, abriu-se com uma risadinha. — Gostei particularmente da versão de que seu marido desafiou o general d'Arbanville para um duelo na rua, enquanto você, de modo mais pragmático, ofereceu a monsieur le comte o desfrute do corpo inconsciente da jovem, se ele desistisse de chamar a guarda real.

— Mmuhm — eu disse, soando conscientemente como uma escocesa. — Tem algum interesse em particular em saber o que realmente aconteceu?

O tônico de Glaucium flavum, de uma cor âmbar clara à luz do sol da tarde, cintilava ao ser despejado em um pequeno frasco.

— A verdade é sempre útil, madona — ele respondeu, os olhos fixos no delgado fio líquido. — Tem o valor de uma raridade, sabia? — Colocou a botija de porcelana sobre o balcão com um pequeno baque. — Assim, vale um bom preço em troca — acrescentou.

O dinheiro para os remédios que eu comprara estava em cima do balcão, as moedas brilhando ao sol. Estreitei os olhos em sua direção, mas ele apenas sorriu docemente, como se nunca tivesse ouvido falar de pernas de rã na manteiga de alho.

O horloge lá fora bateu as duas horas. Calculei a distância até a casa dos Hawkins na rue Malory. Não mais do que meia hora, se eu conseguisse uma carruagem. Tempo de sobra.

— Nesse caso — eu disse —, podemos passar ao seu aposento particular por um instante?

— E foi isso que aconteceu — eu disse, tomando um longo gole de conhaque. Os vapores na sala de trabalho eram quase tão fortes quanto os que emanavam do meu copo e eu podia sentir minha cabeça expandindo-se sob sua influência, mais ou menos como um grande e alegre balão vermelho. — Não prenderam Jamie, mas ainda estamos sob suspeita. Imagino que isso não dure muito, não acha?

Raymond sacudiu a cabeça. Uma corrente de ar agitou o crocodilo acima de nossas cabeças e ele levantou-se para fechar a janela.

— Não. Só um aborrecimento, nada mais. Monsieur Hawkins tem dinheiro e amigos, e obviamente ele está transtornado, mas ainda assim. Obviamente a senhora e seu marido não são culpados de nada além de excesso de bondade, ao tentar manter em segredo a infelicidade da jovem. — Tomou um grande gole de seu próprio copo. — E essa é sua principal preocupação no momento, é claro. A jovem?

Balancei a cabeça.

— Uma das preocupações. Não há nada que eu possa fazer a respeito de sua reputação a essa altura. Tudo que posso fazer é tentar ajudá-la a se recuperar.

Um olho preto irônico espreitou por cima da taça de metal que ele segurava.

— A maioria dos médicos que conheço diria: “Tudo que posso fazer é ajudá-la a se recuperar.” Vai ajudá-la a se recuperar? É interessante que perceba a diferença. Achei que perceberia.

Coloquei o copo sobre a mesa, sentindo que já bebera o suficiente. O calor irradiava de minhas faces e eu tinha a nítida sensação de que a ponta do meu nariz estava vermelha.

— Já lhe disse que não sou uma médica de verdade. — Cerrei os olhos por um momento, resolvi que ainda não veria tudo de cabeça para baixo e os abri novamente. — Além do mais, eu... hã, já lidei com um caso de estupro antes. Não há muito que possa ser feito, externamente. Talvez apenas não haja muito que possa ser feito e ponto final — acrescentei. Mudei de idéia e peguei meu copo outra vez.

— Talvez não — Raymond concordou. — Mas se alguém é capaz de alcançar o âmago do paciente, certamente esse alguém seria La Dame Blanche.

Devolvi o copo à mesa, olhando-o perplexa. Minha boca estava inconvenientemente aberta e eu a fechei. Pensamentos, suspeitas e conclunhados de conjecturas. Para fugir desse tráfego temporariamente, agarrei-me à outra ponta do seu comentário, a fim de ganhar tempo para pensar.

— Âmago do paciente?

Ele enfiou a mão em uma jarra aberta sobre a mesa, retirou dali uma pitada de um pó branco e colocou-o na taça. A cor âmbar do conhaqn imediatamente tornou-se da cor de sangue e começou a ferver.

— Sangue do dragão — ele observou, indicando naturalmente o líquido borbulhante. — Só funciona num vasilhame recoberto de prata. Estraga a vasilha, é claro, mas é extremamente eficaz, nas circunstâncias adequadas

Fiz um ruído baixo, gorgolejante.

— Ah, o âmago do paciente — ele disse, como se tivesse se recordado de algo de que havíamos falado há muitos dias. — Sim, claro. Toda cura é feita essencialmente alcançando-se... como podemos denominar isso? A alma? A essência? Digamos, o âmago. Atingindo-se o âmago do paciente, do qual ele próprio pode se curar. Certamente, já viu isso, madona. Os casos tão graves, pessoas tão doentes, que obviamente morreriam, mas não morrem. Ou aqueles que sofrem de algo tão simples que certamente deveriam se recuperar, com o cuidado adequado. Mas eles escapolem, apesar de tudo que se faça por eles.

— Todos que se ocupam de doentes já viram casos assim — respondi cautelosamente.

— Sim — ele concordou. — E o orgulho do médico sendo o que é, em geral ele culpa a si mesmo pelos que morrem e se felicita pelo triunfo de sua habilidade pelos que vivem. Mas La Dame Blanche vê a essência de um homem e transforma isso em cura... ou em morte. Assim, um malfeitor teme com razão encará-la. — Pegou a taça, ergueu-a num brinde a mim e tomou todo o líquido borbulhante. A bebida deixou uma mancha ligeiramente rósea em seus lábios.

— Obrigada — agradeci, secamente. — Acho que sim. Então, não foi apenas a credulidade de Glengarry?

Raymond deu de ombros, satisfeito consigo mesmo.

— A inspiração foi de seu marido — ele disse modestamente. — E na verdade uma excelente idéia. Mas, é claro, embora seu marido tenha o respeito dos homens por seus próprios dons naturais, ele não seria considerado uma autoridade em manifestações sobrenaturais.

— Você, é claro, seria.

Os ombros pesados ergueram-se ligeiramente sob o robe de veludo cinza. Havia diversos buracos pequenos em uma das mangas, chamuscados nas bordas, como se vários pedacinhos de brasa a tivessem queimado-

— Você tem sido vista em minha loja — ele ressaltou. — Seu passado é mistério. Como seu marido observou, minha própria reputação é um pouco suspeita. Eu realmente transito em determinados... círculos, digamos assim — a boca desprovida de lábios abriu-se num sorriso —, onde uma especulação quanto à sua verdadeira identidade pode ser levada com excessiva seriedade. E sabe como as pessoas falam... — acrescentou com um ar de desaprovação tão cândido que me fez desatar numa risada. Ele colocou a taça sobre a mesa e inclinou-se para frente.

— Disse que a saúde de mademoiselle Hawlkins era uma de suas preocupações. Tem outras?

— Tenho. — Tomei um pequeno gole de conhaque. — Imagino que ouça falar de tudo que acontece em Paris, não é?

Ele sorriu, os olhos negros penetrantes e cordiais.

— Ah, sim, madona. O que quer saber?

— Ouviu alguma coisa sobre Carlos Stuart? Sabe quem ele é, por falar nisso?

Isso o surpreendeu; ergueu ligeiramente a testa. Em seguida, pegou uma pequena garrafa de vidro da mesa à sua frente, rolando-a pensativa-mente entre as palmas das mãos.

— Sim — ele disse. — O pai dele é, ou deveria ser, o rei da Escócia, não é?

— Bem, isso depende de sua perspectiva — eu disse, reprimindo um pequeno arroto. — Ele é o rei da Escócia no exílio ou o pretendente ao trono, mas isso não me preocupa. O que eu quero saber é... Carlos Stuart está fazendo alguma coisa que pudesse levar uma pessoa a pensar que ele esteja planejando uma invasão armada da Escócia ou da Inglaterra?

Ele soltou uma sonora gargalhada.

— Santo Deus, a senhora é uma mulher muito incomum. Faz alguma idéia de como essa franqueza é rara?

— Sim — admiti -, mas não há nada que eu realmente possa fazer. Não sou boa em ficar dando voltas. — Estendi o braço e peguei a garrafa dele. — afinal, já ouviu alguma coisa?

Ele olhou instintivamente para a meia-porta, mas a balconista estava Ocupada em misturar perfumes para uma cliente loquaz.

— Pouca coisa, apenas uma menção informal em uma carta de um amigo. Mas a resposta é sem sombra de dúvida sim.

Pude ver que hesitava em definir o quanto devia me contar. Mantive Os olhos na garrafa em minhas mãos, para lhe dar tempo de decidir. O conteúdo da garrafa rolava com uma agradável sensação conforme o Pequeno frasco revirava nas minhas palmas. Era estranhamente pesada para seu tamanho e dava uma sensação fluida, estranha e densa ao tato, como se...

— É mercúrio — disse mestre Raymond, respondendo à minha pergunta não formulada. Aparentemente, qualquer que tenha sido a leitura de mente que andara fazendo, ele decidira a meu favor, pois pegou a garrafa de volta, despejou-a numa cintilante poça prateada sobre a mesa diante de nós e recostou-se na cadeira para me contar o que sabia.

— Um dos agentes de Sua Alteza andou fazendo indagações na Holanda — ele disse. — Um homem chamado O'Brien, um inepto em todos os sentidos. Como pode um agente secreto que bebe demais?

— Todos ao redor de Carlos Stuart bebem demais — eu disse. — O que O'Brien estava fazendo?

— Ele queria negociar um carregamento de espadas de folha larga. Duas mil espadas, a serem compradas na Espanha e enviadas através da Holanda, de modo a ocultar o lugar de origem.

— Por que ele faria isso? — perguntei. Não sabia ao certo se eu era naturalmente tola ou estava meramente bêbada de conhaque, mas me parecia uma missão sem sentido, até mesmo para Carlos Stuart.

Raymond deu de ombros, empurrando a poça de mercúrio com o dedo indicador rombudo.

— Pode-se apenas imaginar, madona. O rei espanhol é primo do rei da Escócia, não é? Assim como do nosso bom rei Luís, certo?

— Sim, mas...

— Pode ser que ele esteja disposto a ajudar a causa dos Stuart, mas não abertamente, certo?

A névoa do conhaque começava a retirar-se de meu cérebro.

— Pode ser.

Raymond bateu o dedo bruscamente para baixo, fazendo a poça de mercúrio estremecer e dividir-se em vários e pequenos glóbulos redondos, que dançavam loucamente sobre o tampo da mesa.

— Ouve-se dizer por aí — ele disse suavemente, os olhos ainda pregados nas gotículas de mercúrio — que o rei Luís acolhe um duque inglês em Versalhes. Ouve-se dizer também que o duque está lá em busca de alguns acordos de comércio. Mas, por outro lado, é raro ouvir tudo, madona.

Olhei fixamente para as ondulantes gotas de mercúrio, encaixando todas aquelas informações. Jamie, também, ouvira o boato de que a missão de Sandringham dizia respeito a mais do que acordos de comércio. E se a visita do duque na verdade tivesse a ver com as possibilidades de um acordo entre França e Inglaterra, talvez com relação ao futuro de Bruxelas? E se Luís estivesse negociando secretamente com a Inglaterra para obter apoio para a invasão de Bruxelas, o que Filipe de Espanha estaria inclinado a fazer se abordado por um primo pobre com o poder de desviar os ingleses completamente de qualquer atenção a empreendimentos arriscados no estrangeiro?

— Três primos Bourbon — Raymond murmurou consigo mesmo. Começou a empurrar uma gotícula em direção à outra; conforme as gotículas se tocavam, fundiam-se, criando uma única gota brilhante, como um passe de mágica. Seu dedo continuou a empurrar cada gotícula e a gota única foi crescendo. — Um só sangue. Mas um só interesse?

Seu dedo golpeou para baixo outra vez e fragmentos brilhantes espalharam-se pela mesa em todas as direções.

— Acho que não, milady — Raymond disse calmamente.

— Sei — eu disse, com um profundo suspiro. — E o que acha da nova parceria de Carlos Stuart com o conde de St. Germain?

O largo sorriso de anfíbio tornou-se ainda maior.

— Ouvi dizer que Sua Alteza tem ido freqüentemente às docas nos últimos tempos, para conversar com seu novo sócio, é claro. E ele olha os navios ancorados, tão esguios e velozes, tão... caros. A Escócia, de fato, fica do outro lado da água, não é?

— Sim, de fato — eu disse. Um raio de luz atingiu o mercúrio com um clarão, atraindo minha atenção para o sol cada vez mais baixo no horizonte. Eu precisava ir embora.

— Obrigada — eu disse. — Você me avisa se souber de alguma coisa? Ele inclinou a cabeça maciça graciosamente, os cabelos oscilantes da cor do mercúrio ao sol, em seguida ergueu-a bruscamente.

— Ah! Não toque no mercúrio, madona! — avisou-me quando estendi a mão para uma gota que rolara na direção da ponta da mesa onde eu estava. — Associa-se imediatamente a qualquer metal em que se encoste. — Estendeu o braço e com cuidado empurrou a minúscula pelota em sua direção. — Não vai querer estragar seus lindos anéis.

— Está bem — eu disse. — Bem, admito que você tem sido útil até agora. Ninguém tentou me envenenar ultimamente. Não creio que você e Jamie vão mandar me queimar por bruxaria na praça da Bastilha, não é? — Falei descontraidamente, mas minhas lembranças do buraco dos ladrões e do julgamento em Cranesmuir ainda estavam vívidas.

— Seguramente que não — ele disse, dignamente. — Ninguém foi queimado por bruxaria em Paris em... ah, vinte anos, pelo menos. Está perfeitamente a salvo. Desde que não mate ninguém — acrescentou.

— Farei todo o possível — eu disse, levantando-me para ir embora.

Fergus encontrou uma carruagem para mim sem maiores dificuldades e passei a curta viagem até a casa dos Hawkins meditando sobre os últimos desdobramentos. Achei que Raymond havia realmente me prestado um serviço ao espalhar a incrível história original de Jamie a seus clientes mais supersticiosos, embora a idéia de ter meu nome associado a sessões espíritas ou missas negras me deixasse com uma certa apreensão.

Também me ocorreu que, pressionada pelo tempo e acossada por especulações de reis, espadas e navios, não tive tempo de perguntar ao mestre Raymond onde o conde de St. Germain entrava em sua própria esfera de influência — se, de fato, entrava em algum lugar.

A opinião pública parecia colocar o conde firmemente no centro dosl misteriosos “círculos” aos quais Raymond se referira. Mas como participante — ou como adversário? E as ondulações desses círculos se espalhariam até o quarto do rei? Dizia-se que Luís interessava-se por astrologia; poderia haver alguma conexão, através dos obscuros canais da cabala e da feitiçaria, entre Luís, o conde e Carlos Stuart?

Sacudi a cabeça com impaciência, para livrá-la dos vapores do conhaque e de perguntas sem sentido. A única coisa que se podia dar como certa era o fato de que ele entrara numa perigosa sociedade com Carlos Stuart e isso já era preocupação suficiente para o momento.

A residência dos Hawkins na rue Malory era uma casa de três andares, sólida e de aparência respeitável. Entretanto, a conturbação interior era evidente até para o observador casual. O dia estava quente, mas todas as persianas estavam completamente cerradas contra qualquer intrusão de olhos curiosos. Os degraus não tinham sido esfregados de manhã e as marcas de pés sujos manchavam a pedra branca. Nenhum sinal de uma cozinheira ou empregada na frente da casa para comprar carne fresca ou trocar mexericos com os vendedores de rua. Era uma casa preparada contra um desastre iminente.

Sentindo-me como o arauto do fim dos tempos, apesar do meu vestido amarelo relativamente alegre, mandei Fergus subir os degraus e bater na porta por mim. Houve uma troca de palavras entre Fergus e quem quer que tivesse aberto a porta, mas um dos melhores traços de caráter de Fergus era sua incapacidade de aceitar um “não” como resposta. Pouco depois, vi-me frente a frente com uma mulher que parecia ser a dona da casa e, portanto, a sra. Hawkins, tia de Mary.

Fui forçada a tirar minhas próprias conclusões, já que a mulher parecia transtornada demais para me ajudar com qualquer tipo de informação tangível, como seu nome, por exemplo.

— Mas não podemos receber ninguém! — ela exclamava sem parar, olhando furtivamente por cima do ombro, como se esperasse que a forma volumosa do sr. Hawkins se materializasse de repente atrás dela, repreendendo-a. — Nós estamos... Nós temos... Quer dizer...

— Não vim visitar você — eu disse com firmeza. — Quero ver sua sobrinha, Mary.

O nome pareceu lançá-la em novos paroxismos de alarme.

— Ela... mas... Mary? Não! Ela está... ela não está passando bem!

— Suponho que não esteja mesmo — eu disse pacientemente. Ergui minha cesta para que ela a visse. — Eu lhe trouxe alguns remédios.

— Ah! Mas... mas... ela... você... você não é...?

— Havers, mulher — disse Fergus em seu melhor sotaque escocês. Ele via esse espetáculo de insanidade com desaprovação. — A empregada diz que a moça está lá em cima em seu quarto.

— Ótimo — eu disse. — Vá à frente, Fergus. — Sem esperar por mais nenhum encorajamento, ele agachou-se, passando por baixo do braço estendido que barrava nosso caminho, e desapareceu nas profundezas sombrias da casa. A sra. Hawkins virou-se para ele com um grito incoerente, o que permitiu que eu passasse por ela.

Havia uma criada de guarda do lado de fora da porta de Mary, uma mulher robusta e decidida com um avental de listras, mas ela não ofereceu nenhuma resistência diante da minha declaração de que pretendia entrar. Ela sacudiu a cabeça tristemente.

— Não consigo ajudá-la em nada, madame. Talvez a senhora tenha mais sorte.

Suas palavras não eram nada promissoras, mas não havia muita escolha. Ao menos, não era provável que eu causasse algum mal. Ajeitei meu vestido e abri a porta.

Foi como entrar numa caverna. As janelas estavam cobertas com pesadas cortinas de veludo marrom, completamente cerradas contra a luz do dia, e qualquer luz que se infiltrasse por alguma fenda era imediatamente extinta na camada de fumaça suspensa no ar, proveniente da lareira.

Respirei fundo e soltei o ar no mesmo instante, tossindo. Não houve nenhum movimento da figura na cama; uma forma pateticamente pequena e curvada, sob uma coberta de penas de ganso. Sem dúvida, o efeito da droga já havia se dissipado a essa altura e ela não podia estar dormindo, depois de toda a algazarra no corredor. Provavelmente, fingindo, para o caso de ser sua tia, que tivesse voltado com novas arengas incoerentes. Em seu lugar, eu faria o mesmo.

Virei-me e fechei a porta com firmeza na cara deplorável da sra. Hawkins, depois me aproximei da cama.

— Sou eu — eu disse. — Por que não sai daí de baixo, antes que fique sufocada?

— Claire! Ah, Claire! Graças a Deus! Pensei que n-nunca mais a veria outra vez! Meu tio disse que você estava na prisão! Disse que-que você...

— Calma! — Consegui soltar-me de suas mãos e forçá-la para trás o suficiente para dar uma olhada em seu rosto. Estava afogueada, suada e descabelada por se esconder sob as cobertas, mas fora isso parecia bem. Os olhos castanhos estavam arregalados e brilhantes, sem nenhum sinal de intoxicação por ópio e, embora parecesse nervosa e assustada, aparentemente uma noite de sono, associada à resistência própria da juventude, haviam sanado a maior parte de seus ferimentos físicos. Os outros é que me preocupavam

— Não, não estou presa — eu disse, tentando estancar suas perguntas ansiosas. — Obviamente não, embora não seja por falta de empenho por parte de seu tio.

— M-mas eu disse a ele — ela começou, depois gaguejou e abaixou os olhos — ...Pelo menos eu t-t-tentei dizer-lhe, mas ele... eu...

— Não se preocupe com isso — tranqüilizei-a. — Ele estava tão transtornado que não ouviria nada que você dissesse. De qualquer modo, não faz diferença. O que importa é você. Como está se sentindo? — Afastei os espessos cabelos escuros de sua testa e olhei-a minuciosamente.

— Estou bem — ela respondeu, engolindo em seco. — Eu... sangrei um pouco, mas parou. — A pele clara de suas faces ficou ainda mais vermelha, mas ela não abaixou os olhos. — Eu... está... dolorido. Isso passa?

— Sim, passa — eu disse delicadamente. — Trouxe algumas ervas para você. Devem ser preparadas em água quente e, conforme a infusão esfriar, você pode aplicá-la com um pano, ou sentar-se numa tina, se houver uma à mão. Isso ajudará. — Peguei os saquinhos de ervas da minha bolsa e coloquei-os sobre a mesinha-de-cabeceira.

Ela balançou a cabeça, mordendo o lábio. Obviamente, havia mais alguma coisa que ela queria dizer, sua timidez natural lutando com sua necessidade de confidência.

— O que é? — perguntei, da forma mais pragmática possível.

— Eu vou ter um bebê? — deixou escapar num fôlego só, erguendo os olhos apreensivamente. — Você disse...

— Não — respondi, com a voz mais firme que consegui. — Não vai. Ele não pôde... terminar.

Nas pregas da minha saia, cruzei os dedos, esperando fervorosamente que eu estivesse certa. As chances eram muito pequenas, mas essas excentricidades aconteciam. Ainda assim, não havia razão para assustá-la ainda mais com uma fraca possibilidade. O pensamento deixou-me ligeiramente tonta e enjoada. Poderia tal acidente ser a possível resposta ao enigma da existência de Frank? Afastei a preocupação da mente; um mês de espera iria confirmar ou dissipar a idéia.

— Está quente como um forno aqui dentro — eu disse, abrindo os laços na minha garganta para respirar melhor. – E enfumaçado como a entrada do, inferno, como meu velho tio costumava dizer. — Sem saber o que lhe dizer em seguida, levantei-me e andei pelo aposento, afastando cortinas e abrindo janelas.

— Tia Helen disse que eu não devo deixar ninguém me ver — Mary disse, ajoelhando-se na cama enquanto me observava. — Ela diz que estou d-desonrada e que as pessoas vão ficar apontando para mim na rua se eu sair.

— É bem provável, os abutres. — Terminei de arejar o quarto e voltei para ela. — Isso não significa que você precise se enterrar viva e sufocar-se por causa disso. — Sentei-me a seu lado e reclinei-me em minha cadeira, sentindo o ar fresco soprar pelos meus cabelos enquanto varria a fumaça do quarto.

Ela ficou em silêncio por um longo tempo, brincando com as trouxinhas de ervas sobre a mesinha. Finalmente, ergueu os olhos para mim, sorrindo corajosamente, embora seu lábio inferior tremesse um pouco.

— Ao menos não vou ter que me casar com o visconde. Meu tio disse que ele agora jamais me aceitará.

— Não, acho que não.

Ela balançou a cabeça, olhando para o quadrado de gaze enrolada em seu joelho. Seus dedos remexeram tanto o cordão do saquinho que uma das pontas se soltou e alguns farelos de vara-de-ouro caíram sobre a coberta.

— Eu... costumava pensar sobre isso; o que você me contou, sobre como um h-homem... — Parou e engoliu em seco e eu vi uma lágrima solitária cair sobre a gaze. — Acho que não suportaria que o visconde fizesse isso comigo. A-agora isso já aconteceu... e n-ninguém pode desfazer o acontecido e eu nunca mais terei que f-fazer isso outra vez... e... e... ah, Claire, Alex nunca mais falará comigo! Nunca mais o verei, nunca mais!

Deixou-se cair em meus braços, chorando histericamente e espalhando as ervas. Aconcheguei-a em meu ombro, dando uns tapinhas nas costas, murmurando palavras tranqüilizadoras, embora também tenha derramado algumas lágrimas que caíram sem serem notadas no brilho escuro de seus cabelos.

— Você o verá outra vez — murmurei. — Claro que verá. Não vai fazer diferença para ele. É um bom homem.

Mas eu sabia que faria diferença. Eu vira a angústia no rosto de Alex à noite passada e na ocasião achei que se tratava da mesma compaixão desarvorada pelo sofrimento que eu vira em Jamie e Murtagh. Mas desde que eu soube do amor professado de Alex Randall por Mary, comPreendi o quanto sua dor era muito mais profunda — e seu temor.

Ele parecia um bom homem. Mas também era pobre e jovem, com uma saúde frágel, e com pouca chance de progresso. Tudo o que tinha dependia inteiramente da boa vontade do duque de Sandringham. E eu tinha poucas esperanças de que o duque visse com benevolência a idéia da união de seu secretário com uma jovem desonrada e arruinada, que agora não tinha nem ligações sociais nem um dote em seu favor.

E se Alex conseguisse encontrar a coragem de se casar com ela apesar de tudo — que chances teriam, sem dinheiro, expulsos da sociedade educada e com o hediondo fato do estupro ofuscando o conhecimento um do outro? Não havia nada que eu pudesse fazer além de abraçá-la e chorar com ela pelo que fora perdido.

Já anoitecia quando a deixei, as primeiras estrelas surgindo em pequenos pontos brilhantes acima dos canos das chaminés. Em meu bolso, levava uma carta escrita por Mary, adequadamente assinada por testemunhas, contendo seu depoimento sobre os acontecimentos da noite anterior. Uma vez entregue às autoridades competentes, deveríamos ao menos não ter mais problemas com a lei. Ainda bem; havia muitos problemas nos aguardando em outros setores.

Atenta, desta vez, ao perigo, não fiz nenhuma objeção à oferta contrariada da sra. Hawkins para que eu e Fergus fôssemos levados em casa pela carruagem da família.

Atirei meu chapéu sobre a mesa de jogo no vestíbulo, observando a grande quantidade de recados e delicados ramalhetes que transbordavam da bandeja sobre ela. Aparentemente, ainda não éramos párias, embora as notícias do escândalo já devessem ter se espalhado há muito tempo pelas camadas sociais de Paris.

Com um gesto vago, descartei as perguntas ansiosas dos criados e subi as escadas para o quarto, tirando descuidadamente minhas roupas externas ao longo do caminho. Sentia-me esgotada demais para me preocupar com o que quer que fosse.

Mas quando abri a porta do quarto e vi Jamie, recostado numa poltrona junto à lareira, minha apatia foi imediatamente suplantada por uma onda de ternura. Seus olhos estavam fechados e seus cabelos espetados em todas as direções, um indício seguro de turbulência mental. Mas ele abriu os olhos com o leve ruído de minha chegada e sorriu para mim, os olhos claros e azuis à luz cálida do candelabro.

— Está tudo bem — foi tudo que ele murmurou para mim, tomando-me em seus braços. — Você está em casa. — Ficamos em silêncio, enquanto despíamos um ao outro e finalmente nos isolamos do mundo, cada qual encontrando um santuário silencioso e desejado nos braços um do outro.

 

Minha mente ainda estava em banqueiros quando nosso coche parou em frente à residência alugada do duque na rue St. Anne. Era uma casa grande e bonita, com um caminho de entrada longo e curvo, ladeado de álamos e extensos gramados. Um homem rico, o duque.

— Você supõe que foi o empréstimo que Carlos obteve de Manzetti que ele está investindo com St. Germain? — perguntei.

— Deve ser — Jamie respondeu. Calçou as luvas de pele de porco adequadas a uma visita formal, fazendo uma ligeira careta enquanto alisava o couro apertado sobre o dedo anular rígido de sua mão direita. — O dinheiro que seu pai acha que ele está gastando para se manter em Paris.

— Então, na verdade, Carlos está tentando levantar dinheiro para um exército — eu disse, sentindo uma admiração relutante por Carlos Stuart. O coche parou e o lacaio desceu para abrir a porta.

— Bem, ele ao menos está tentando levantar dinheiro — Jamie corrigiu, segurando minha mão para me ajudar a descer. — Pelo que sei, ele quer dinheiro para fugir com Louise de La Tour e seu filho bastardo.

Sacudi a cabeça.

— Acho que não. Não pelo que mestre Raymond me contou ontem. Além do mais, Louise diz que não o vê desde que ela e Jules... bem...

Jamie deu uma risadinha irônica.

— Ao menos, ela possui algum senso de honra.

— Não sei se é esse o motivo — observei, tomando seu braço enquanto subíamos os degraus até a porta. — Disse que Carlos ficou tão furioso por ela dormir com o marido que saiu violentamente pela porta afora e desde então ela não o viu mais. Ele lhe escreve cartas apaixonadas de vez em quando, jurando que a levará e também a criança junto com ele assim que obtiver seu lugar de direito no mundo, mas ela não permite que ele vá vê-la; ela tem muito medo de que Jules descubra a verdade.

Jamie emitiu um som escocês de desaprovação.

— Meu Deus, será que nenhum homem está a salvo de ser corneado? Toquei levemente seu braço.

— Provavelmente alguns mais do que outros.

— Você acha? — ele disse, mas sorriu para mim.

A porta abriu-se de par em par, revelando um mordomo baixo, redon do como um barril, careca, com um uniforme impecável e imensa dignidade.

— Milorde — ele disse, fazendo uma mesura para Jamie — e milady. Os senhores são esperados. Por favor, entrem.

O duque era o encantamento em pessoa ao nos receber na sala de visitas principal.

— Bobagem, bobagem — ele disse, descartando as desculpas de Jamie pelos contratempos do jantar. — Os franceses são muito melodramáticos. Fazem uma tempestade em copo d'água por qualquer coisa. Agora, vamos examinar todas essas fascinantes proposições. E talvez sua adorável esposa gostaria de... hum, divertir-se com a leitura de um... hein? — Agitou o braço num gesto largo em direção à parede, deixando em aberto a questão se eu deveria me distrair olhando os diversos e enormes quadros, a estante bem provida de livros ou as várias caixas de vidro que guardavam a coleção de caixas de rapé do duque.

— Obrigada — murmurei, com um sorriso sedutor, e deixei os olhos vagarem pela parede, fingindo estar absorvida em um grande Boucher, apresentando a visão de costas de um nu de uma mulher sobejamente bem-dotada, sentada em uma rocha numa região deserta. Se este era um reflexo do gosto corrente em anatomia feminina, não era de admirar que Jamie parecesse ter meu traseiro em tão alta conta.

— Ah! — exclamei. — Para que roupas de enchimento, hein?

— Hein? — Jamie e o duque, surpreso, ergueram os olhos do portfólio de papéis de investimentos que constituía a razão ostensiva de nossa visita.

— Não se preocupem comigo — eu disse, abanando a mão graciosamente. — Só estou apreciando a arte.

— Sinto-me profundamente gratificado, milady — disse o duque educadamente, submergindo nos documentos outra vez. Enquanto isso, Jamie iniciava a tediosa e difícil tarefa, verdadeiro objetivo de nossa visita, de extrair discretamente informações que o duque estivesse disposto a compartilhar conosco sobre suas próprias simpatias, ou antipatias, em relação à causa Stuart.

Eu também tinha a minha própria agenda para esta visita. A medida que os homens ficavam cada vez mais imersos em suas discussões, fui afastando-me em direção à porta, fingindo examinar as prateleiras de livros. Assim que o horizonte estivesse limpo, eu pretendia escapar para o corredor e tentar achar Alex Randall. Eu já fizera tudo que me era possível para reparar o mal causado a Mary Hawkins; qualquer outra iniciativa teria que Partir dele. Sob as regras da etiqueta social, ele não podia visitá-la na casa de seu tio, nem ela podia entrar em contato com ele. Mas eu poderia facilmente criar uma oportunidade para eles se encontrarem na rue Tremoulins.

A conversa atrás de mim reduzira-se a um murmúrio confidencial. Enfiei a cabeça no corredor, mas não vi nenhum lacaio por perto. Ainda assim, deveria haver algum não muito longe dali; uma casa daquele tamanho possui dezenas de empregados. Sendo tão grande, eu iria precisar de instruções para localizar Alexander Randall. Escolhi uma direção qualquer e caminhei ao longo do corredor, procurando um criado a quem perguntar.

Vi um ligeiro movimento no final do corredor e chamei. Quem quer que fosse não respondeu, mas ouvi um furtivo arrastar de pés nas tábuas enceradas.

Parecia um comportamento curioso para um empregado. Parei no final do corredor e olhei ao redor. Outro corredor estendia-se à direita daquele onde eu estava, alinhado de um lado por portas, do outro por longas janelas que se abriam para o caminho de entrada e os jardins. A maioria das portas estava trancada, mas a mais próxima de mim estava ligeiramente aberta.

Movendo-me em silêncio, aproximei-me e coloquei o ouvido junto aos lambris. Não ouvindo nada, segurei a maçaneta e audaciosamente abri a porta.

— O que, em nome de Deus, você está fazendo aqui?

— Ah, você me assustou! Minha Nossa Senhora, pensei que i-iria morrer. — Mary Hawkins pressionou ambas as mãos contra o corpete do seu vestido. Seu rosto estava lívido e seus olhos fundos e arregalados de terror.

— Não vai, não — eu disse. — A menos que seu tio descubra que está aqui; então, provavelmente a matará. Ou ele sabe?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não. N-não contei a ninguém. Tomei uma carruagem pública.

— Por que, em nome de Deus?

Ela olhou ao redor como um coelho assustado à procura de um buraco para se esconder, mas não encontrando nenhum, empertigou-se e retesou o maxilar.

— Eu tinha que encontrar Alex. Eu tinha que f-falar com ele. Ver se ele... se ele... — Ela contorcia as mãos e eu podia ver o esforço que lhe custava proferir as palavras.

— Não tem importância — eu disse, resignada. — Eu compreendo. Mas o seu tio não entenderá. Nem o duque. Sua Excelência também não sabe que está aqui?

Ela sacudiu a cabeça, muda.

— Muito bem — eu disse, pensando. — A primeira coisa que precisamos fazer é...

— Madame? Posso ajudá-la?

Mary sobressaltou-se como uma lebre e eu senti meu próprio coração saltar desconfortavelmente para o fundo da minha garganta. Malditos lacaios; nunca estavam no lugar certo na hora certa.

Não havia nada a fazer agora, exceto enfrentar a situação. Virei-me para o lacaio, que estava parado, rígido como uma vareta de arma de fogo na soleira da porta, com um ar digno e desconfiado.

— Sim — respondi, com tanta arrogância quanto consegui reunir assim de repente. — Poderia, por favor, avisar o sr. Alexander Randall de que ele tem visitas?

— Lamento não poder fazê-lo, madame — disse o lacaio, com distanciada formalidade.

— E por que não? — perguntei.

— Porque, madame — ele respondeu -, o sr. Alexander Randall já não trabalha para Sua Excelência. Ele foi demitido. — O lacaio olhou para Mary, depois abaixou o nariz dois centímetros e endireitou-se o suficiente para dizer: — Creio que monsieur Randall tomou um navio de volta para a Inglaterra.

— Não! Ele não pode ter ido embora, não pode!

Mary arremessou-se para a porta e quase colidiu com Jamie, que entrava. Ela estancou com um grito sufocado e ele fitou-a perplexo.

— O que... — começou a dizer, depois me viu atrás dela. — Ah, você está aí, Sassenach. Arranjei uma desculpa para vir procurá-la. Sua Excelência acaba de me dizer que Alex Randall...

— Eu sei — interrompi. — Foi embora.

— Não! — Mary gemeu. — Não! — Lançou-se para a porta e já a atravessara antes que nenhum de nós dois pudesse detê-la, os saltos dos sapatos soando no parque encerado.

— Que menina tola! — Arranquei meus próprios sapatos com pontapés, segurei as saias e saí zunindo atrás dela. Apenas de meias, eu era muito mais rápida do que ela em seus sapatos de saltos altos. Talvez pudesse alcançá-la antes que colidisse com alguém e fosse apanhada, com o escândalo concomitante que iria envolver.

Segui o movimento de suas saias que desapareciam na curva do corredor. O chão ali era acarpetado; se eu não corresse, poderia perdê-la na interseção, incapaz de ouvir, pelo barulho dos seus pés, o caminho que teria tomado. Abaixei a cabeça, arremessei-me pela última curva e bati de frente com um homem que vinha na direção contrária

Ele soltou um “Uuuuf.” espantado quando o atingi em cheio no estômago e segurou-me pelos braços para se manter de pé enquanto oscilávamos e cambaleávamos juntos.

— Desculpe-me — comecei, sem ar. — Pensei que você tivesse... ó Jesus Roosevelt Cristo! Maldição!

Minha impressão inicial — de que eu havia encontrado Alexander Randall — não durou mais do que a fração de segundo necessária para ver os olhos acima daquela boca finamente cinzelada. A boca era muito parecida com a de Alex, exceto pelas linhas profundas a seu redor. Mas aqueles olhos frios só poderiam pertencer a um único homem.

O choque foi tão grande que por um instante tudo pareceu paradoxalmente normal; tive um impulso de pedir desculpas, despachá-lo com um tapinha e continuar minha perseguição, deixando-o esquecido no corredor, como apenas um encontro fortuito. Minhas glândulas supra-renais apressaram-se a dar um jeito nessa impressão, descarregando uma dose tão forte de adrenalina na minha corrente sangüínea que meu coração se contraiu como um punho cerrado.

Ele próprio recuperava seu fôlego agora, junto com seu autocontrole momentaneamente estilhaçado.

— Sinto-me inclinado a concordar com seus sentimentos, madame, ainda que não precisamente com seu modo de expressão. — Ainda segurando-me pelos cotovelos, afastou-me um pouco, estreitando os olhos para ver melhor meu rosto no corredor sombreado. Vi o choque do reconhecimento empalidecer suas feições quando meu rosto recaiu sob a luz.

— Santo Deus, é você! — ele exclamou.

— Pensei que estivesse morto! — eu disse, puxando meus braços, tentando me livrar das mãos de ferro de Jonathan Randall.

Ele soltou um dos braços, a fim de esfregar o estômago, analisando-me friamente. As feições delgadas, de traços finos, estavam bronzeadas e saudáveis; não davam nenhum sinal exterior de terem sido pisoteadas cinco meses atrás por trinta bestas de um quarto de tonelada. Nem sequer a marca de um casco em sua testa.

— Novamente, madame, vejo-me compartilhando seus sentimentos. Eu estava sob uma interpretação errônea muito semelhante em relação ao seu estado de saúde. Provavelmente você é uma bruxa. Afinal de contas, o que você fez? Transformou-se num lobo? — A desconfiada aversão estampada em seu rosto misturava-se a um toque de temor supersticioso. Afinal, quando você joga alguém no meio de um bando de lobos em uma fria noite de inverno, espera que a pessoa coopere sendo devorada imediatamente. O suor de minhas próprias mãos e o batimento semelhante a um tambor do meu coração eram testemunhas do efeito perturbador de ver alguém que você considerava seguramente morto surgir de repente à frente. Imaginei que ele devia estar se sentindo um pouco nervoso também.

— Você gostaria muito de saber, não? — A necessidade de irritá-lo e perturbar aquela calma glacial, foi a primeira emoção que veio à tona da massa efervescente de sentimentos que explodiram dentro de mim à vista de seu rosto. Seus dedos apertaram meu braço com mais força e seus lábios reduziram-se a uma linha. Podia ver sua mente trabalhando, começando a descartar possibilidades.

— Se não era o seu, de quem era o corpo que os homens de sir Fletcher tiraram da masmorra? — perguntei, tentando tirar vantagem de qualquer abalo em seu autocontrole. Uma testemunha descrevera para mim a retirada de “um boneco de trapos, encharcado de sangue”, provavelmente Randall, da cena do estouro da boiada que encobrira a fuga de Jamie daquela mesma masmorra.

Randall sorriu, sem muito humor. Se ele estava tão abalado quanto eu. não demonstrava. Sua respiração estava apenas um pouco mais rápida do que o normal e as linhas em torno da boca e dos olhos mais fundas do que eu me lembrava, mas ele não estava ofegando como um peixe fora d'água. Eu estava. Inspirei o máximo de oxigênio que meus pulmões permitiam e tentei respirar pelo nariz.

— Era meu ordenança, Marley. Mas se você não está respondendo às minhas perguntas, por que eu deveria responder às suas? — Olhou-me de cima a baixo, avaliando cuidadosamente minha aparência: vestido de seda, ornamentos nos cabelos, jóias e pés calçados de meias.

— Casou-se com um francês? — perguntou. — Eu sempre achei que você fosse uma espiã francesa. Quero crer que seu novo marido a mantém em melhores condições do que...

As palavras morreram em sua garganta quando ele ergueu os olhos para ver a fonte dos passos que haviam acabado de entrar no corredor atrás de mim. Se eu quisesse perturbá-lo, essa vontade agora estaria plenamente satisfeita. Nenhum Hamlet no palco jamais reagira à aparição de um fantasma com terror mais convincente do que eu vi estampado naquele rosto aristocrático. Os dedos que ainda agarravam meu braço penetraram mais fundo em minha carne e eu senti o impacto do choque que o percorreu como uma descarga elétrica.

Eu sabia o que ele estava vendo atrás de mim e tive medo de me virar. Fez-se um profundo silêncio no corredor; até o farfalhar dos galhos do cipreste contra as vidraças pareciam fazer parte da quietude, como o silêncio estrondoso das ondas no fundo do mar. Muito lentamente, desvencilhei-me de sua mão, que caiu inerte ao lado de seu corpo. Não havia nenhum ruído atrás de mim, embora eu pudesse ouvir vozes começarem a se elevar da sala ao fim do corredor. Rezei para que a porta continuasse fechada e tentei desesperadamente me lembrar como Jamie estava armado.

Minha mente ficou vazia, depois se incendiou com a visão reconfortante de sua pequena espada, pendurada de seu cinto em um gancho no armário, o sol brilhando em seu cabo esmaltado. Mas ele ainda tinha sua adaga, é claro, e a pequena faca que habitualmente carregava na meia. Na verdade, eu tinha absoluta certeza de que, numa situação de emergência, Até consideraria as mãos nuas perfeitamente adequadas. Na minha atual situação, espremida entre os dois... Engoli em seco e virei-me devagar.

Ele estava parado absolutamente imóvel. a não mais do que um metro atrás de mim. Um dos altos postigos das janelas abriu-se perto dele e as sombras escuras das agulhas dos ciprestes ondularam sobre ele como água sobre uma rocha submersa. Ele também não demonstrou mais expressão do que uma rocha. O que quer que vivesse atrás daqueles olhos estava oculto; estavam abertos e vazios como vidraças, como se a alma que espelhavam já tivesse voado para longe há muito tempo.

Ele não falou, mas após um instante, estendeu a mão para mim. Ela flutuou aberta no ar e eu finalmente reuni a presença de espírito para segurá-la. Estava fria e dura e eu me agarrei a ela como a uma tábua de salvação.

Ele me puxou para junto de si, pegou meu braço e me virou, tudo sem falar ou mudar de expressão. Quando alcançávamos a esquina do corredor, Randall falou atrás de nós.

— Jamie — ele disse. A voz era rouca de choque e tinha um tom entre incredulidade e súplica.

Jamie parou e virou-se para encará-lo. O rosto de Randall estava branco como o de um fantasma, com uma pequena mancha vermelha em cada maçã do rosto. Ele retirara a peruca, que agarrava nas mãos, e o suor emplastrava os belos cabelos escuros nas têmporas.

— Não. — A voz que soou acima de mim era suave, quase sem expressão. Erguendo os olhos, pude ver que o rosto ainda se igualava à voz, mas uma pulsação rápida, febril, pulsava em seu pescoço e a pequena cicatriz triangular acima de seu colarinho ardia, vermelha, de fúria.

— Chamo-me formalmente lorde Broch Tuarach — disse a suave voz escocesa acima de mim. — E além das exigências da formalidade, você nunca mais falará comigo, até que implore por sua vida na ponta de minha espada. Então, poderá usar meu nome, porque será a última palavra que dirá.

Com uma repentina violência, girou nos calcanhares e seu exuberante xale de xadrez esvoaçou num movimento amplo, bloqueando minha visão de Randall quando dobramos a esquina do corredor.

A carruagem ainda aguardava junto ao portão. Com medo de olhar para Jamie, subi e me absorvi na tarefa de enfiar as pregas de seda amarela em torno de minhas pernas. O clique da porta da carruagem ao se fechar, me fez erguer os olhos bruscamente, mas antes que eu pudesse alcançar a maçaneta, a carruagem disparou com um salto que me atirou de volta no banco.

Debatendo-me e praguejando, consegui colocar-me de joelhos aos trancos e espreitei pela janela de trás. Ele desaparecera. Nada se mexia no caminho além das sombras oscilantes de ciprestes e álamos.

Bati freneticamente no teto da carruagem, mas o cocheiro apenas gritava para os cavalos, instigando-os a correr ainda mais. Havia pouco tráfego àquela hora e nós avançamos pelas ruas estreitas como se o próprio diabo estivesse em nosso encalço.

Quando paramos na rue Tremoulins, eu saltei do coche, ao mesmo tempo em pânico e furiosa.

— Por que não parou? — perguntei ao cocheiro. Ele encolheu os ombros, impassível na segurança de seu poleiro.

— O patrão ordenou que eu a trouxesse para casa o mais rápido possível, madame. — Pegou o chicote e tocou-o de leve no lombo do cavalo.

— Espere! — gritei. — Quero voltar! — Mas ele apenas enfiou a cabeça nos ombros como uma tartaruga, fingindo não me ouvir, enquanto o coche afastava-se ruidosamente.

Fumegando de impotência, voltei-me para a porta, onde a pequena figura de Fergus surgiu, as sobrancelhas finas erguidas inquisitivamente diante do meu aparecimento.

— Onde está Murtagh? — perguntei rispidamente. O pequeno escocês era a única pessoa que eu acreditava que podia ser capaz, primeiro, de encontrar Jamie e, segundo, de impedi-lo.

— Não sei, madame. Talvez lá embaixo. — O menino fez um movimento com a cabeça na direção da rue Gamboge, onde havia várias tavernas, que iam, em matéria de respeitabilidade, de um local onde uma senhora em viagem pudesse jantar com seu marido aos antros perto do rio, onde até mesmo um homem armado hesitaria em entrar sozinho.

Coloquei a mão no ombro de Fergus, tanto para me apoiar como para exortá-lo.

— Corra e encontre-o, Fergus. O mais rápido que puder!

Alarmado com o tom de minha voz, ele saltou do degrau e desapareceu, antes que eu pudesse acrescentar: “Tome cuidado!” Ainda assim, ele conhecia os submundos de Paris muito melhor do que eu; ninguém estava mais acostumado a se esgueirar pelo meio de uma multidão numa taverna do que um ex-batedor de carteiras. Ao menos, eu esperava que ele fosse um ex-batedor de carteiras.

Mas eu só podia me preocupar com uma coisa de cada vez e visões de Fergus sendo capturado e enforcado por suas atividades recuaram diante da visão que as últimas palavras de Jamie a Randall evocaram.

Com certeza, com certeza, ele não voltou para a casa do duque, não é? não, assegurei a mim mesma. Não carregava sua espada. O que quer que estivesse sentindo — e minha alma se mortificava dentro de mim ao imaginar o que ele estava sentindo -, ele não ia agir precipitadamente. Eu já o vira lutando antes, a mente trabalhando com uma calma glacial, distanciada das emoções que pudessem toldar seu raciocínio. E para isto, acima de tudo, ele seguramente se apegaria às formalidades. Buscaria as prescrições rígidas, as fórmulas para reparação da honra, como um refúgio — algo ao qual se agarrar contra as correntezas que o arrastavam, as ondas gigantescas de sede de sangue e vingança.

Parei no corredor, mecanicamente tirando a capa e fazendo uma pausa diante do espelho para ajeitar o cabelo. Pense, Beauchamp, dizia silenciosamente ao meu lívido reflexo. Se ele vai travar um duelo, qual a primeira coisa de que irá precisar?

Uma espada? Não, não poderia ser. A própria espada dele estava no andar de cima, pendurada dentro do armário. Embora pudesse facilmente pedir uma emprestada, não podia imaginá-lo partindo para o mais importante duelo de sua vida armado com qualquer outra espada que não a sua. Seu tio, Dougal MacKenzie, dera-lhe de presente quando ele completou dezessete anos, acompanhou seu treinamento no uso da arma, ensinou-lhe os truques e as vantagens de um espadachim canhoto, tudo com aquela espada. Dougal o fizera praticar, mão esquerda contra mão esquerda, durante horas a fio, até, como ele me contou, sentir a extensão de metal espanhol ganhar vida, uma extensão de seu braço, o cabo soldado à palma de sua mão. Jamie dissera que se sentia nu sem ela. E essa não era uma luta Para a qual pudesse ir nu.

Não, se fosse precisar da espada imediatamente, ele teria vindo para casa buscá-la. Passei a mão impacientemente pelos cabelos, tentando pensar. Droga, qual era o protocolo para um duelo? Antes de chegar às espadas? O que acontecia? Um desafio, é claro. As palavras de Jamie no corredor teriam esse significado? Eu tinha a vaga idéia de pessoas sendo esbofeteadas no rosto com luvas, mas não fazia a menor idéia se esse era mesmo o costume, ou apenas um artefato de memória, nascido da imaginação de Um cineasta.

Então, lembrei-me. Primeiro, o desafio. Em seguida, um lugar tinha que ser arranjado — um lugar adequado, circunspecto, com pouca possibilidade de ser notado pela polícia ou pela guarda do rei. E para entregar o desafio, arranjar o lugar, era necessário um ajudante. Ah. Então, era isso que ele fora fazer; encontrar seu ajudante. Murtagh. Mesmo que Jamie encontrasse Murtagh antes de Fergus, ainda haveria as formalidades a serem providenciadas. Comecei a respirar um pouco melhor, embora meu coração ainda batesse acelerado e meus cadarços ainda parecessem muito apertados. Não havia nenhum empregado por perto; desatei os cadarços e inspirei fundo, expandindo os pulmões.

— Não sabia que tinha o hábito de se despir nos corredores, ou eu teria permanecido na sala de visitas — disse uma voz escocesa e irônica atrás de mim.

Girei nos calcanhares, o coração saltando até a garganta, o suficiente para me sufocar. O homem parado na soleira da porta da sala de visitas, os braços abertos, segurando informalmente os batentes, era grande, quase do tamanho de Jamie, empertigado, com a mesma graça de movimentos, o mesmo ar de frio autocontrole. Mas os cabelos eram escuros e os olhos fundos de um verde enevoado. Dougal MacKenzie, aparecendo repentinamente em minha casa, como se chamado pelo meu pensamento. Por falai no diabo...

— O que, em nome de Deus, você está fazendo aqui? — O choque de vê-lo estava arrefecendo, embora meu coração ainda batesse com força. Eu não comera nada desde o desjejum e uma súbita onda de tontura percorreu o meu corpo. Ele deu um passo à frente e segurou-me pelo braço, puxando-me para uma cadeira.

— Sente-se, menina — ele disse. — É por causa do seu estado, ao que parece.

— Muito observador — eu disse. Pontos negros flutuavam nos cantos da minha visão e lampejos pequenos e brilhantes dançavam diante dos meus olhos. — Com licença — eu disse educadamente e coloquei a cabeça entre os joelhos.

Jamie. Frank. Randall. Dougal. Os rostos revezavam-se em minha mente, os nomes pareciam retinir em meus ouvidos. As palmas de minhas mãos suavam e eu as pressionei sob os braços, abraçando-me para tentar parar os tremores do choque. Jamie não iria enfrentar Randall imediatamente; isso era o mais importante. Havia um pouco de tempo, durante o qual eu poderia refletir, realizar ações preventivas. Mas que ações? Deixando meu subconsciente lutando com esta pergunta, forcei minha respiração a reduzir o ritmo e voltei a minha atenção para questões mais prementes.

— Vou repetir — eu disse, endireitando-me e alisando meus cabelos para trás. — O que você está fazendo aqui? As sobrancelhas escuras ergueram-se.

— E eu preciso de uma razão para visitar um parente?

Eu ainda podia sentir o gosto de bílis no fundo da minha garganta, mas minhas mãos, ao menos, haviam parado de tremer.

— Nas circunstâncias, sim — eu disse. Empertiguei-me, ignorando pomposamente meus cadarços desatados, e estendi a mão para a garrafa de conhaque. Antecipando-se a mim, Dougal pegou uma taça da bandeja e serviu uma colher de chá. Em seguida, depois de um olhar investigador para mim, duplicou a dose.

— Obrigada — eu disse, secamente, aceitando a taça.

— Circunstâncias, hein? E quais circunstâncias seriam essas? — Sem esperar por resposta ou permissão, calmamente serviu outra taça para si mesmo e ergueu-a num brinde informal. — A Sua Majestade.

Senti minha boca torcer-se num sorriso enviesado.

— Rei Jaime, suponho? — Tomei um pequeno gole da minha bebida e senti os vapores quentes e aromáticos cauterizarem as membranas atrás dos meus olhos. — E o fato de você estar em Paris significa que converteu Colum ao seu modo de pensar? — Afinal, enquanto Dougal MacKenzie pudesse ser um jacobita, era seu irmão Colum quem liderava os MacKenzie de Leoch como chefe. As pernas aleijadas e deformadas por uma doença incapacitante, Colum já não liderava seu clã nas batalhas; era Dougal o comandante de guerra. Mas embora Dougal pudesse liderar os homens nos combates, era Colum quem detinha o poder de dizer se a batalha ocorreria.

Dougal ignorou minha pergunta e, após esvaziar sua taça, imediatamente serviu-se de outra dose. Desta vez, saboreou o primeiro gole, fazendo a bebida girar visivelmente na boca e lambendo uma gota final dos lábios ao engolir.

— Nada mau — disse. — Levarei um pouco para Colum. Ele precisa de algo um pouco mais forte do que vinho, para ajudá-lo a dormir à noite.

Essa era na verdade uma resposta oblíqua à minha pergunta. A condição de Colum estava, portanto, se deteriorando. Sempre sentindo dores por causa da doença que corroía seu corpo, Colum tomava um vinho forte a noite, a fim de ajudá-lo a dormir. Agora, precisava de conhaque puro. Perguntava-me quanto tempo levaria até ele ter que recorrer ao ópio para obter algum alívio. Porque, quando o fizesse, seria o fim de seu domínio como chefe do clã. Privado das condições físicas, ele ainda comandava pela força absoluta de seu caráter. Mas se a força da mente de Colum se perdesse para a dor e as drogas, o clã teria um novo líder — Dougal.

Fitei-o por cima da borda do meu copo. Ele devolveu meu olhar sem nenhum sinal de vexação, um leve sorriso na boca larga dos MacKenzie. Seu rosto era muito semelhante ao do irmão — e do sobrinho —, de traços fortes e ousados, com maçãs do rosto altas e largas, e um nariz reto e longo como a lâmina de uma faca.

Tendo feito o juramento aos dezoito anos de apoiar a liderança de seu irmão, ele cumprira a promessa durante quase trinta anos. E continuaria a mantê-la, eu sabia, até o dia em que Colum morresse ou não mais pudesse comandar o clã. Mas, nesse dia, o manto de chefe cairia sobre seus ombros e os homens do clã MacKenzie o seguiriam aonde quer que ele fosse — atrás da bandeira da Escócia e do estandarte do rei Jaime, na vanguarda do príncipe Carlos Stuart.

— Circunstâncias? — eu disse, voltando à sua pergunta anterior. — Bem, suponho que não se pode considerar de bom gosto visitar um homem a quem deixou como morto e cuja mulher tentou seduzir.

Sendo Dougal MacKenzie, ele riu. Eu não sabia exatamente o que seria necessário para desconcertar aquele homem, mas eu certamente esperava estar lá para ver quando isso acontecesse.

— Sedução? — ele disse, os lábios num trejeito divertido. — Eu lhe ofereci casamento.

— Ofereceu-se para me estuprar, se me recordo — retorqui. Ele havia, de fato, me proposto casamento, à força, depois de se negar a me ajudar a resgatar Jamie da prisão de Wentworth no inverno anterior. Embora seu principal motivo fosse apoderar-se de Lallybroch, a propriedade de Jamie — que passaria a me pertencer com a morte de Jamie —, não ficara nem um pouco avesso à idéia das compensações secundárias do casamento, como desfrutar regularmente do meu corpo.

— Quanto a deixar Jamie na prisão — ele continuou, ignorando-me como sempre -, não parecia haver nenhuma maneira de tirá-lo de lá e nenhum sentido em arriscar bons homens numa tentativa vã. Ele seria o primeiro a compreender isso. E era meu dever como seu parente oferecer minha proteção à sua mulher, se ele morresse. Eu era o pai adotivo do rapaz, não? — Inclinou a cabeça para trás e esvaziou a taça.

Tomei um grande gole da minha própria bebida e engoli rápido para não engasgar. O conhaque foi queimando minha garganta e meu esôfago, com o mesmo calor que subia ao meu rosto. Ele tinha razão; Jamie não o culpara por sua relutância em invadir a prisão de Wentworth — não esperava tampouco que eu o fizesse. E foi apenas por um milagre que fui bem-sucedida. No entanto, embora eu tivesse contado a Jamie, rapidamente, sobre a intenção de Dougal de se casar comigo, não tentei transmitir os aspectos carnais dessa intenção. Afinal, eu não esperava ver Dougal MacKenzie nunca mais.

Eu sabia, por experiência prévia, que ele era um homem acostumado a agarrar as oportunidades; com Jamie prestes a ser enforcado, ele nem sequer esperara pela execução da sentença para tentar garantir a mim e à minha propriedade prestes a ser herdada. Se — não, corrigi a mim mesma, quando — Colum morresse ou se tornasse incapacitado, Dougal ficaria no comando total do clã MacKenzie no espaço de uma semana. E se Carlos Stuart encontrasse o apoio que estava procurando, Dougal estaria lá. Afinal, ele tinha experiência em ser um poder atrás do trono.

Inclinei a taça, meditando. Colum tinha interesses comerciais na França; vinho e madeira, principalmente. Esse, sem dúvida, era o pretexto da visita de Dougal a Paris, poderia até ser sua principal razão ostensiva. Mas ele certamente tinha outras razões. E a presença na cidade do príncipe Carlos Eduardo Stuart era sem dúvida uma delas.

Um ponto a favor de Dougal MacKenzie era que um encontro com ele estimulava os processos mentais, pela absoluta necessidade de tentar descobrir o que ele realmente pretendia em um determinado momento. Sob a inspiração de sua presença e uma boa dose de conhaque português, meu subconsciente estava se agitando com o nascimento de uma idéia.

— Bem, seja como for, estou satisfeita com sua presença aqui agora — eu disse, recolocando minha taça vazia na bandeja.

— Está? — As espessas sobrancelhas escuras ergueram-se, incrédulas.

— Sim. — Levantei-me e abanei a mão, indicando o saguão de entrada. — Pegue meu manto enquanto eu amarro meus cadarços. Preciso que me acompanhe ao commissariat de police.

Vendo seu queixo cair, senti a primeira e minúscula ponta de esperança. Se eu conseguira pegar Dougal MacKenzie de surpresa, certamente conseguiria evitar um duelo.

— Poderia me dizer o que acha que está fazendo? — Dougal perguntou, enquanto o coche sacolejava em torno do Cirque du Mireille, evitando por pouco uma carruagem de quatro cavalos e uma carroça cheia de abobrinhas que vinham na direção contrária.

— Não — eu disse laconicamente -, mas suponho que terei de fazê-lo. Sabia que Jack Randall ainda está vivo?

— Não ouvi dizer que estivesse morto — Dougal respondeu sensatamente.

Isso me desconcertou por um instante. Mas é claro que ele tinha razão. Nos achamos que que Randall estivesse morto somente porque sir Marcus MacRannoch confundira o corpo pisoteado do ordenança de Randall com o próprio oficial, durante o resgate de Jamie da prisão de Wentworth. Obviamente, nenhuma notícia da morte de Randall teria chegado às Highlands, já que isso não ocorrera. Tentei reunir os meus pensamentos dispersos.

— Ele não está morto — eu disse. — Mas está em Paris.

— Em Paris? — Isso atraiu sua atenção; as sobrancelhas ergueram-se e em seguida, seus olhos arregalaram-se com o pensamento seguinte.

— Onde está Jamie? — perguntou incisivamente.

Fiquei satisfeita de ver que ele entendera o ponto principal. Embora ele não soubesse o que se passara entre Jamie e Randall na prisão de Wentworth — ninguém jamais saberia, a não ser Jamie, Randall e, até certo ponto, eu -, sabia mais do que o suficiente sobre as ações prévias de Randall, para compreender exatamente qual seria o primeiro impulso de Jamie ao encontrar o sujeito ali, longe do santuário da Inglaterra.

— Não sei — eu disse, olhando pela janela. Passávamos por Les Halles e o cheiro de peixe invadia nossas narinas. Tirei um lenço perfumado e cobri o nariz e a boca. O cheiro forte e penetrante de essência de gualtéria com que eu perfumara o lenço não era suficiente para abafar o mau cheiro exalado por uma dúzia de bancas de venda de enguias, mas já ajudava um pouco. Falei através das dobras do linho aromatizado.

— Encontramos Randall inesperadamente na casa do duque de Sandringham hoje. Jamie me mandou para casa no coche e desde então não o vi mais.

Dougal ignorava tanto o mau cheiro quanto os gritos rouquenhos das vendedoras de peixe apregoando suas mercadorias. Franziu a testa para mim.

— Ele sem dúvida pretende matar o sujeito, não?

Sacudi a cabeça, explicando meu raciocínio em relação à espada.

— Não posso deixar que um duelo aconteça — eu disse, abaixando o lenço para poder falar com mais clareza. — Não vou permitir!

Dougal balançou a cabeça distraidamente.

— Sim, seria muito perigoso. Não que o rapaz não possa derrotar Randall facilmente... eu o treinei, você sabe — acrescentou com certa presunção —, mas a pena por duelar...

— Você entendeu logo — eu disse.

— Muito bem — ele disse devagar. — Mas por que a polícia? Não pretende mandar prender o rapaz antes de mais nada, pretende? Seu próprio marido?

— Não Jamie — eu disse. — Randall.

— Ah, é? E como pretende fazer isso?

— Uma amiga e eu fomos... atacadas na rua há algumas noites — eu disse engolindo em seco diante da lembrança. — Os homens estavam mascarados; não sei dizer quem eram. Mas um deles tinha a mesma altura e compleição física de Jonathan Randall. Pretendo dizer que encontrei Randall em uma casa hoje e o reconheci como um dos homens que nos atacaram.

As sobrancelhas de Dougal deram um salto para cima e depois se uniram. Seu olhar frio tremeluziu sobre mim. De repente, surgiu uma nova especulação em sua apreciação do caso.

— Céus, você tem o sangue-frio do próprio diabo. Foi um assalto? — ele perguntou suavemente. Contra minha vontade, pude sentir a raiva subindo ao meu rosto.

— Não — eu disse, entre dentes cerrados.

— Ah. — Ele recostou-se nas almofadas do coche, ainda olhando para mim. — Mas você não foi machucada, não é?

Desviei o olhar, fitando a rua que passava, mas pude sentir seus olhos, espreitando a gola do meu vestido, descendo pela curva dos meus quadris.

— Eu, não — respondi. — Mas minha amiga...

— Compreendo. — Ficou em silêncio por um instante, depois disse pensativamente. — Já ouviu falar em “Les Disciples”?

Virei-me bruscamente para ele. Ele reclinou-se no canto como um gato encolhendo-se, observando-me com os olhos apertados contra o sol.

— Não. Quem são? — perguntei.

Ele encolheu os ombros e endireitou-se, olhando além de mim, para os edifícios do Quai des Oríèvres que se aproximava, pairando cinzentos e sombrios acima do brilho do Sena.

— Uma espécie de... sociedade. Rapazes de família, com interesse em coisas... doentias, digamos assim.

— Compreendo — eu disse. — E exatamente o que você sabe sobre Les Disciples?

— Só o que ouvi dizer em uma taverna na Cite — ele disse. — Que a sociedade exige muito de seus membros e o preço da iniciação é alto... para alguns padrões.

— E qual seria? — Desafiei-o com meu olhar. Ele sorriu um pouco sombriamente antes de responder.

— A virgindade de uma moça, por exemplo. Os mamilos de uma mulher casada. — Lançou um rápido olhar ao meu peito. — Sua amiga é virgem, não é? Ou era?

Senti ondas de frio e de calor se alternarem pelo meu corpo. Limpei o rosto com o lenço e enfiei-o no bolso do meu manto. Tive que tentar duas vezes, pois minha mão tremia.

— Era. O que mais ouviu? Sabe quem está envolvido com Les Disciples? — Dougal sacudiu a cabeça. Havia alguns fios prateados nos cabelos castanho-avermelhados das têmporas, refletindo a luz da tarde.

— Só boatos. O visconde de Busca, o filho mais novo dos Charmisse talvez. O conde de St. Germain. Ei! Está se sentindo mal, menina?

Inclinou-se para frente, parecendo consternado, olhando-me atentamente.

— Estou bem — eu disse, respirando profundamente pelo nariz. -Perfeitamente bem. — Tirei o lenço do bolso para enxugar o suor frio da testa.

“Não queremos lhes causar nenhum mal, mesdames.” A voz irônica ecoou no fundo da minha mente. O homem de camisa verde era moreno, de altura mediana, esbelto e de ombros estreitos. Se essa descrição servia para Jonathan Randall, também servia para o conde de St. Germain. Mas eu não teria reconhecido sua voz? Seria possível um homem normal sentar-se à minha frente no jantar, comendo musse de salmão e conversando educadamente, há pouco menos de duas horas após o incidente na rue du Faubourg St. Honoré?

Considerando-se logicamente, entretanto, por que não? Eu mesma fizera isso, afinal. E eu não tinha nenhuma razão em particular para supor que o conde fosse um homem normal — pelos meus padrões -, se os boatos fossem verdadeiros.

O coche estava parando e não havia mais tempo para contemplações. Estaria eu a ponto de assegurar que o homem responsável pelo estupro de Mary ficasse em liberdade, enquanto também assegurava a proteção do inimigo mais odiado de Jamie? Respirei fundo, com um estremecimento. Não tenho muita escolha, pensei. A vida estava acima de tudo; a justiça teria simplesmente que esperar a sua vez.

O cocheiro havia descido e estendia a mão para a maçaneta. Mordi o lábio e olhei para Dougal MacKenzie. Ele enfrentou meu olhar com uma ligeira contração dos ombros. O que eu queria dele?

— Você confirmará minha história? — perguntei bruscamente.

Ele ergueu os olhos para a imponente estrutura do Quai des Orfèvres. A brilhante luz da tarde resplandecia através da porta aberta.

— Tem certeza? — ele perguntou.

— Tenho. — Minha boca estava seca.

Ele deslizou do assento e estendeu a mão para mim.

— Então, vamos rezar para nós dois não acabarmos numa cela.

Uma hora depois, saímos para a rua vazia do comissariat de police. Eu enviara o coche para casa, com receio de que alguém que nos conhecesse pudesse vê-lo parado do lado de fora do Quai des Orfèvres. Dougal ofereceu-me o braço e eu o tomei por necessidade. O terreno ali era lamacento e as pedras do calçamento da rua tornavam um risco andar de chinelas de salto alto.

— Les Disciples — eu disse, conforme caminhávamos devagar ao longo das margens do Sena, em direção às torres de Notre Dame. — Acha mesmo que o conde de St. Germain pode ter sido um dos homens que... nos atacou na rue du Faubourg St. Honoré? – Eu estava começando a tremer, em reação aos acontecimentos, e de cansaço e de fome; não comera nada desde o desjejum e a falta já se fazia sentir. Apenas o sangue-frio me mantivera em pé durante a conversa com a polícia. Agora, a necessidade de pensar estava passando e, com ela, a capacidade de fazê-lo.

O braço de Dougal era rígido sob minha mão, mas eu não podia erguer os olhos para ele; precisava concentrar toda a minha atenção nos pés para não escorregar. Entráramos na rue Elise e o calçamento da rua estava brilhante, molhado e emporcalhado de toda espécie de imundície. Um carregador arrastando um caixote parou em nosso caminho para limpar a garganta e escarrar ruidosamente na rua a meus pés. O catarro esverdeado grudou na curva de uma pedra, finalmente deslizando para flutuar indo-lentemente sobre a superfície de uma pequena poça de lama que se formara no buraco onde faltava uma pedra do calçamento.

— Muhm. — Dougal olhava para baixo e para cima da rua, à procura de uma carruagem, a testa enrugada, imerso em seus pensamentos. — Não sei dizer; já ouvi coisas piores a respeito desse homem, mas não tive a honra de conhecê-lo. — Olhou para mim.

— Você se saiu bem até agora — ele disse. — Jack Randall será trazido para a Bastilha em menos de uma hora. Mas terão que soltá-lo mais cedo ou mais tarde e eu não apostaria na possibilidade de a raiva de Jamie esfriar nesse meio-tempo. Quer que eu fale com ele, convença-o a não fazer nenhuma bobagem?

— Não! Pelo amor de Deus, fique fora disso! — Ouviu-se o trovejar das rodas de uma carruagem nas pedras do calçamento, mas minha voz elevou-se o suficiente para fazer as sobrancelhas de Dougal erguerem-se de surpresa.

— Está bem, então — disse, obedientemente. — Vou deixar a seu cargo a tarefa de convencê-lo. É teimoso como uma pedra... mas suponho que você tenha seus métodos, não? — Isso foi dito com um olhar de esguelha e um sorriso afetado e intencional.

— Darei um jeito. — Eu daria. Teria que dar. Porque tudo que eu dissera a Dougal era verdadeiro. Tudo verdadeiro. E, no entanto, tão distante da verdade. Porque eu mandaria a causa de Carlos Stuart e seu pai para o inferno com todo o prazer, sacrificaria qualquer esperança de impedir seu mergulho naquela louca empreitada, até arriscaria a possibilidade de prisão de Jamie, pela cura da brecha que a ressurreição de Randall abrira na mente de Jamie. Eu o ajudaria a matar Randall e sentiria apenas alegria em fazê-lo, exceto por um único fator. A única consideração suficientemente forte para sobrepujar o orgulho de Jamie, ultrapassar a importância do seu senso de masculinidade, a importância da paz ameaçada de sua alma. Frank.

Essa era a única idéia que me dera forças para atravessar o dia, que me sustentara até muito depois de ter ultrapassado o ponto de colapso. Durante meses, achei que Randall estivesse morto e sem filhos, e temi pela vida de Frank. Mas durante esses mesmos meses, senti-me confortada pela presença da aliança lisa de ouro no dedo anular da minha mão esquerda.

Sendo a gêmea da aliança de prata de Jamie em minha mão direita, ela era um talismã nas horas sombrias da noite, quando as dúvidas sobrevinham nos calcanhares dos sonhos. Se eu ainda usava sua aliança, então o homem que a dera a mim iria viver. Repetira isso a mim mesma milhares de vezes. Não importava que eu não soubesse como um homem morto sem descendentes poderia gerar uma linha de descendência que levava a Frank; a aliança estava lá e Frank viveria.

Agora eu sabia por que a aliança ainda brilhava em minha mão, o metal frio como meu próprio dedo enregelado. Randall estava vivo, ainda podia se casar, ainda podia gerar o filho que transmitiria a vida até Frank. A menos que Jamie o matasse primeiro.

Eu tomara todas as medidas possíveis até o momento, mas o fato com que me deparara no corredor da casa do duque permanecia. O preço da vida de Frank era a alma de Jamie e como eu poderia escolher entre elas?

Um fiacre, uma espécie de táxi puxado a cavalo, que vinha em nossa direção, ignorando o chamado de Dougal, passou por nós a toda a brida, sem parar, as rodas girando tão perto de nós a ponto de respingar lama nas meias de seda de Dougal e na barra do meu vestido.

Renunciando a uma saraivada de explosivo gaélico, Dougal brandiu o punho cerrado na direção do coche que se afastava.

— Bem, e agora? — perguntou retoricamente.

A bolha de cuspe com catarro flutuava na poça a meus pés, refletindo uma luz cinza. Senti a viscosidade fria da secreção em minha língua. Estendi a mão e agarrei o braço de Dougal, rígido e liso como um galho de plátano. Rígido, mas parecia oscilar, como numa vertigem, lançando-me acima da água imunda, fedendo a peixe, fria e brilhante, que nos cercava. Pontos negros flutuaram diante dos meus olhos.

— Agora — eu disse —. eu vou vomitar.

Já era quase noite quando retornei à rue Tremoulins. Meus joelhos tremiam e era um esforço colocar um pé adiante do outro nas escadas. Dirigi-me direto para o quarto para tirar meu manto, imaginando se Jamie já teria voltado.

Já voltara. Parei, petrificada, na soleira da porta, inspecionando o quarto. Minha caixa de remédios estava aberta sobre a mesa. A tesoura que eu usava para cortar ataduras jazia semi-aberta sobre a penteadeira. Era um objeto sofisticado, que me fora dado por um fabricante de facas que às vezes trabalhava no UHôpital des Anges; os cabos eram dourados, trabalhados na forma de cabeças de cegonhas, com os longos bicos formando as lâminas de prata da tesoura. Ela brilhava sob os raios do sol poente, em meio a uma nuvem de fios de seda vermelho-dourada.

Dei vários passos em direção à penteadeira e os fios sedosos, brilhantes, ergueram-se com o deslocamento de ar causado pelos meus movimentos e deslizaram pelo tampo do móvel.

— Santa Mãe de Deus! — exclamei, num fôlego só. Ele estivera ali, sem dúvida, e agora já se fora. Assim como sua espada.

Os cabelos permaneciam em mechas espessas, brilhantes, onde haviam caído, espalhando a desordem sobre a penteadeira, o banquinho e o assoalho. Peguei um cacho tosado de cima da penteadeira e fiquei segurando-o, sentindo os cabelos do tufo macio e sedoso separarem-se entre meus dedos como os fios de seda para bordar. Senti um pânico frio que começou em algum lugar entre minhas omoplatas e desceu pela minha espinha dorsal. Lembrei-me de Jamie, sentado na fonte atrás da casa dos Rohan, contando-me como lutara seu primeiro duelo em Paris.

“A tira de couro que prendia meus cabelos se soltou e o vento os jogou sobre meu rosto, de modo que eu mal conseguia ver o que estava fazendo.”

Não quis correr esse risco outra vez. Vendo a prova que ele deixara para trás, sentindo o tufo de cabelos em minha mão, macio e ainda cheio de vida, eu podia imaginar a fria deliberação com que ele fizera aquilo; o corte das lâminas de metal contra seu crânio conforme ele eliminava tudo que pudesse obscurecer sua visão. Nada iria se interpor entre ele e o assassinato de Jonathan Randall.

Nada, exceto eu. Ainda segurando o tufo de cabelos, dirigi-me à janela e fiquei olhando para fora, como se esperasse vê-lo na rua. Mas a rue Tremoulins estava silenciosa, nada se movia além das sombras oscilantes dos álamos junto aos portões e o pequeno movimento de um criado, parado ao portão de uma casa à esquerda, conversando com um vigia que sacudia seu cachimbo para enfatizar seu argumento.

A casa zumbia tranqüilamente ao meu redor, com os preparativos do jantar ocorrendo no subsolo. Nenhum convidado era esperado esta noite de modo que a azáfama de costume estava reduzida; comíamos de maneira simples quando estávamos sozinhos.

Sentei-me na cama e fechei os olhos, entrelaçando as mãos sobre meu ventre cada vez mais volumoso, o tufo de cabelos agarrado com força como se eu pudesse manter Jamie a salvo se não o soltasse.

Eu teria agido a tempo? Teria a polícia encontrado Jack Randall antes de Jamie? E se tivessem chegado ao mesmo tempo ou simplesmente a tempo de encontrar Jamie desafiando Randall para um duelo formal? Esfreguei o cacho de cabelos entre o polegar e o indicador, espalhando as pontas cortadas como um pequeno leque castanho-avermelhado e âmbar. Bem, se assim tiver sido, ao menos ambos estarão a salvo. Na prisão, talvez, mas essa era uma consideração menos importante em comparação a outros perigos.

E se Jamie tivesse encontrado Randall primeiro? Olhei para fora; a luz do dia desaparecia rapidamente. Os duelos eram tradicionalmente realizados no alvorecer, mas não sei se Jamie teria esperado até de manhã. Podiam estar enfrentando-se neste exato momento, em algum lugar isolado, onde a colisão de aço e o grito do ferimento mortal não atrairiam nenhuma atenção.

Porque certamente seria uma luta mortal. O que havia entre esses dois homens somente seria resolvido com a morte. E de quem seria essa morte? De Jamie? Ou de Randall — e com a morte dele, a de Frank também? Jamie, provavelmente, era um espadachim melhor, mas como desafiado, Randall poderia escolher as armas. E o sucesso com pistolas estava menos na habilidade do atirador do que em sua sorte; somente as melhores pistolas possuíam uma mira certeira e mesmo essas eram propensas a não atingir o alvo ou outros acidentes. Tive a súbita visão de Jamie, inerte e silencioso na relva, o sangue jorrando de uma órbita vazia, e o cheiro de pólvora forte entre os aromas da primavera no Bois de Boulogne.

— O que diabos está fazendo, Claire?

Ergui a cabeça abruptamente, com tanta força que mordi a língua. Seus dois olhos estavam nas respectivas órbitas e em sua posição correta, fitando-me de cada lado do nariz afilado. Eu nunca o vira com o cabelo cortado tão rente. Fazia-o parecer um estranho, os ossos fortes do rosto nítidos sob a pele e o topo de seu crânio visível sob o cabelo espesso e curto, à escovinha.

— O que estou fazendo? — repeti. Engoli, tentando umedecer minha boca seca. — O que estou fazendo? Estou sentada aqui com uma mecha do seu cabelo na mão, imaginando se você está morto ou não! É isso que estou fazendo!

— Não estou morto. — Atravessou o quarto até o armário e o abriu. Usava sua espada, mas havia trocado de roupa desde a nossa visita à casa de Sandringham; agora, estava vestido com seu casaco velho, o que lhe permitia liberdade de movimentos com os braços.

— Sim, notei — eu disse. — Muito atencioso de sua parte vir me contar.

— Vim buscar minhas roupas. — Tirou duas camisas e seu manto comprido de dentro do armário e colocou-os sobre um banco, enquanto se dirigia à cômoda para remexer nas gavetas, recolhendo roupas de baixo.

— Suas roupas? Mas afinal de contas aonde você vai? — Não sabia o que esperar ao vê-lo, mas certamente não esperara por isso.

— Para uma hospedaria. — Olhou para mim, depois aparentemente concluiu que eu merecia mais do que uma explicação de três palavras. Virou-se e encarou-me, os olhos azuis e opacos como lazulita.

— Quando a mandei para casa no coche, caminhei durante algum tempo, até conseguir recuperar o autocontrole. Então, vim para casa para pegar minha espada e retornei à casa do duque para apresentar a Randall um desafio formal. O mordomo disse-me que Randall tinha sido detido pela polícia.

Seu olhar demorou-se sobre mim, distante como as profundezas do oceano. Engoli em seco outra vez.

— Fui à Bastilha. Disseram-me que você entrara com uma acusação contra Randall, dizendo que ele atacara você e Mary Hawkins na outra noite. Por que, Claire?

Minhas mãos tremiam e eu soltei o tufo de cabelos que estava segurando. Sua coesão perturbada pelo manuseio, ele se desintegrou e os belos fios ruivos espalharam-se, soltos, pelo meu colo.

— Jamie — eu disse, e minha voz também tremia. — Jamie, você não pode matar Jack Randall.

Um dos cantos de sua boca contorceu-se, apenas ligeiramente.

— Não sei se devo ficar enternecido com sua preocupação pela minha segurança ou ofendido por sua falta de confiança em mim. Mas, em qualquer dos dois casos, você não precisa se preocupar. Eu posso matá-lo. Facilmente. — A última palavra foi proferida em voz baixa, com um tom subjacente que misturava veneno e satisfação.

— Não é isso que eu quero dizer! Jamie...

— Felizmente — ele continuou, como se não estivesse me ouvindo -, Randall pode provar que estava na casa do duque durante toda a noite do estupro. Assim que a polícia terminar de interrogar os convidados que estavam presentes e ficarem convencidos de que Randall é inocente, ao menos dessa acusação, ele será liberado. Vou ficar na hospedaria até ele ser libertado. Então, eu o encontrarei. — Seus olhos estavam fixos no armário.

Mas obviamente ele estava vendo algo diferente. — Ele estará à minha espera — disse num sussurro.

Enfiou as camisas e roupas de baixo em uma bolsa de viagem e pendurou o manto no braço. Virava-se para atravessar a porta quando eu dei um salto da cama e o segurei pela manga.

— Jamie! Pelo amor de Deus, Jamie, ouça-me! Você não pode matar Jack Randall porque eu não vou deixar!

Olhou-me fixamente, com absoluta perplexidade.

— Por causa de Frank — eu disse. Soltei sua manga e recuei um passo.

— Frank — ele repetiu, sacudindo a cabeça ligeiramente como se quisesse clarear os ouvidos de um zumbido. — Frank.

— Sim — eu disse. — Se matar Jack Randall agora, então Frank... ele não existirá. Ele não nascerá. Jamie, não pode matar um homem inocente!

Seu rosto, normalmente de um bronze claro e avermelhado, desbotara para um branco manchado enquanto eu falava. Em seguida, o vermelho começou a elevar-se outra vez, queimando as pontas das orelhas e incendiando suas faces.

— Um homem inocente?

— Frank é um homem inocente! Não me importo com Jack Randall...

— Bem, eu me importo! — Agarrou a bolsa e caminhou a passos largos e pesados em direção à porta, o manto ondeando-se sobre seu braço. — Por Deus, Claire! Você tentaria me impedir de realizar minha vingança contra o homem que me fez de prostituta para ele? Que me forçou a ficar de joelhos e me obrigou a chupar seu pênis, sujo do meu próprio sangue? Meu Deus, Claire! — Escancarou a porta com um safanão e já estava no corredor quando eu o alcancei.

Já escurecera, mas os criados haviam acendido as velas e o corredor resplandecia com uma luz cálida e suave. Segurei-o pelo braço e puxei-o.

—Jamie! Por favor!

Ele sacudiu o braço impacientemente, livrando-se de mim. Eu estava quase chorando, mas contive as lágrimas. Peguei a bolsa de viagem e arranquei-a de sua mão.

— Por favor, Jamie! Espere só um ano! O filho de Randall será concebido em dezembro. Depois disso, não tem mais importância. Mas, por favor, por mim, Jamie, espere até lá!

Os candelabros sobre a mesa debruada de dourado lançavam sua sombra, enorme e bruxuleante, contra a parede mais distante. Ele olhou fixamente para ela, os punhos cerrados, como se estivesse se defrontando com um gigante, impassível e ameaçador, que se erguia acima dele.

— Sim — murmurou, como se falasse consigo mesmo —, sou um grande sujeito. Grande e forte. Posso agüentar muita coisa. Sim, eu posso

— Eu posso agüentar muita coisa! Mas só porque eu posso, significa que devo? Eu tenho que suportar as fraquezas de todo mundo? Não posso ter as minhas próprias?

Começou a andar de um lado para o outro no corredor, a sombra Seguindo-o num silencioso frenesi.

— Você não pode pedir isso a mim! Você, você, entre todas as pessoas! Você, que sabe o que... o que... — Engasgou-se, ficou sem fala de raiva.

Esmurrava a parede de pedra da passagem repetidamente enquanto andava, golpeando a lateral do punho cerrado cruelmente na parede de calcário. A pedra absorvia cada pancada com uma violência silenciosa.

Voltou e parou à minha frente, respirando pesadamente. Fiquei parada, imóvel, com medo de me mexer ou de falar. Ele balançou a cabeça uma ou duas vezes, rapidamente, como se estivesse tomando uma decisão, depois sacou a adaga da bainha com um zunido e segurou-a diante do meu nariz. Com visível esforço, falou calmamente:

— Você pode escolher, Claire. Ou ele ou eu. — As chamas das velas dançavam no metal polido enquanto ele girava a lâmina lentamente. — Não posso viver enquanto ele estiver vivo. Se não quer que eu o mate, então me mate você mesma, agora! — Agarrou minha mão e forçou meus dedos em volta do cabo da adaga. Rasgando o jabô de renda, deixou a garganta à mostra e puxou minha mão violentamente para cima, os dedos em volta dos meus, segurando-os com firmeza.

Puxei meu braço para trás com todas as minhas forças, mas ele forçou a ponta da lâmina contra a cavidade macia, acima da clavícula, logo abaixo da cicatriz lívida que a própria faca de Randall deixara ali anos antes.

— Jamie! Pare com isso! Pare agora mesmo! — Desci a outra mão violentamente sobre seu pulso, fazendo sua mão afrouxar o suficiente para eu livrar meus dedos com um puxão. A adaga bateu ruidosamente no chão, saltando das pedras até uma silenciosa aterrissagem na extremidade de um tapete Aubusson. Com aquela clareza de visão para pequenos detalhes que aflige os mais terríveis momentos da vida, vi que a lâmina jazia perfeitamente atravessada sobre a haste curvilínea de um cacho de gordas uvas verdes, como se estivesse prestes a cortá-la, soltando as uvas da trama e as fazendo rolar aos nossos pés.

Ele ficou paralisado diante de mim, o rosto lívido como o marfim, os olhos chamejando. Agarrei seu braço, rígido como madeira sob meus dedos.

— Por favor, acredite-me, por favor. Eu não faria isso se houvesse qualquer outro modo. — Inspirei, uma respiração profunda e trêmula, para acalmar a pulsação desenfreada sob minhas costelas.

— Você me deve sua vida, Jamie. Não uma, mas duas vezes. Salvei-o de ser enforcado em Wentworth e quando teve febre na abadia. Você me deve

Fitou-me por um longo instante antes de responder. Quando o fez sua voz estava calma outra vez, com um tom de amargura.

— Compreendo. E você vai cobrar o pagamento dessa dívida agora? -Seus olhos ardiam com o azul profundo e claro que queima no núcleo de uma chama.

— Eu tenho que fazer isso! Não consigo chamá-lo à razão de nenhuma outra forma!

— Razão. Ah, razão. Não, não posso dizer que razão seja algo que eu consiga ver no momento. — Entrelaçou as mãos atrás das costas, segurando os dedos rígidos da mão direita com os dedos curvados da mão esquerda. Afastou-se lentamente de mim, pelo corredor interminável, a cabeça baixa.

As paredes do corredor eram cobertas por uma fileira de quadros de cada lado, alguns iluminados de baixo para cima por uma tocheira ou candelabros, outros de cima para baixo por castiçais dourados presos à parede; alguns, menos favorecidos, escondiam-se na escuridão entre uma fonte de luz e outra. Jamie caminhou devagar entre eles, erguendo os olhos de vez em quando, como se conversasse com a galeria de figuras de peruca e rostos pintados.

O corredor cobria toda a extensão do segundo andar, acarpetado, ostentando tapeçarias nas paredes, e com enormes janelas de vitrais em cada ponta. Ele caminhou até o outro extremo, depois, dando a volta com a precisão de um soldado numa parada militar, percorreu todo o caminho de volta, sempre num passo lento e formal. Para cima e para baixo, para cima e para baixo, sem parar.

Minhas pernas tremiam. Deixei-me cair numa poltrona perto do final da passagem. Uma vez um dos onipresentes criados aproximou-se obse-quiosamente para perguntar se madame gostaria de um pouco de vinho ou talvez de biscoitos? Dispensei-o com um aceno da mão da forma mais educada que consegui, e esperei.

Finalmente, ele se aproximou e parou diante de mim, os pés plantados, bem afastados, em sapatos de fivelas de prata, as mãos ainda entrelaçadas às costas. Esperou que eu erguesse os olhos para ele antes de falar. Seu rosto estava circunspecto, sem nenhum trejeito de agitação que o traísse, embora as linhas perto dos olhos estivessem fundas com o esforço.

— Um ano, então — foi tudo que ele disse. Virou-se imediatamente e já estava a alguns metros de distância quando consegui sair da funda poltrona de veludo verde. Eu mal havia conseguido ficar de pé quando ele de repente deu meia-volta e passou de novo por mim, alcançou a enorme janela de vitrais com três passadas e estilhaçou-a com a mão direita.

A janela era composta de milhares de minúsculos vidros coloridos, fixados com tiras de chumbo derretido. Embora a janela inteira, uma cena mitológica do Julgamento de Paris, tivesse estremecido em sua armação, as molduras de chumbo mantiveram a maioria dos vidros intacta; apesar do estrondo e dos tinidos, somente um buraco debruado de estilhaços pontu-dos, aos pés de Afrodite, dava passagem ao ameno ar de primavera.

Jamie ficou parado por um instante, apertando as duas mãos com força contra a região do estômago. Uma mancha vermelho-escura começou a se espalhar pelo punho da camisa, enfeitado de babados de renda como uma camisola nupcial. Passou apressadamente por mim mais uma vez quando eu me aproximava dele e afastou-se a passos largos, sem falar comigo.

Desabei novamente na poltrona, com tanta força que levantei uma pequena nuvem de poeira do estofamento. Fiquei ali, lânguida, os olhos fechados, sentindo a brisa fria da noite me banhar. Meus cabelos estavam úmidos nas têmporas e eu podia sentir minha pulsação, rápida como a de um pássaro, na base da minha garganta.

Ele me perdoaria algum dia? Meu coração apertou-se como um punho cerrado à lembrança do conhecimento da traição em seus olhos. “Como pode pedir isso de mim!”, ele dissera. “Você, você que sabe...” Sim, eu sabia, e achei que o fato de saber iria me afastar de Jamie, como eu fora afastada de Frank.

Mas quer Jamie pudesse me perdoar ou não, eu jamais me perdoaria se condenasse um homem inocente — e um homem que um dia eu amara.

— Os pecados dos pais — murmurei comigo mesma. — Os pecados dos pais não devem ser infligidos aos filhos.

— Madame?

Com um sobressalto, abri os olhos, deparando-me com uma camareira igualmente espantada, dando um passo para trás. Coloquei a mão sobre meu coração acelerado, arfando.

— Madame, está se sentindo mal? Devo ir chamar...

— Não — eu disse, com a voz mais firme que consegui. — Estou perfeitamente bem. Quero ficar sentada aqui por um instante. Por favor, deixe-me.

A jovem parecia mesmo ansiosa para ir embora dali.

— Oui, madame! — ela disse, desaparecendo pelo corredor. Permaneci sentada, fitando com o olhar vazio uma cena de amor em um jardim, uma pintura pendurada na parede oposta. Sentindo um frio repentino, enrolei-me no meu manto, que não tivera tempo de tirar, e fechei os olhos outra vez.

Passava da meia-noite quando finalmente fui para nosso quarto de dormir. Jamie estava lá, sentado diante de uma mesinha, aparentemente observando um par de insetos de asas transparentes adejando perigosamente em volta da única vela que iluminava o quarto. Deixei minha capa cair no chão e caminhei para ele.

— Não me toque — ele disse. — Vá para a cama. — Falou quase distraida-mente, mas eu parei onde estava.

— Mas sua mão... — comecei a dizer.

— Não tem importância. Vá para a cama — ele repetiu.

Os nós dos dedos de sua mão direita estavam manchados e o punho de sua camisa estava duro de sangue seco, mas eu não ousaria tocá-lo agora, ainda que tivesse uma faca enterrada na barriga. Deixei-o fitando a dança da morte dos insetos e fui para a cama.

Acordei quase ao alvorecer, com a primeira luz do dia esboçando os contornos dos móveis no quarto. Pelas portas duplas que davam para a ante-sala, pude ver Jamie como eu o deixara, ainda sentado à mesa. A vela já se extinguira, os insetos haviam desaparecido e ele permanecia sentado com a cabeça nas mãos, os dedos enfiados nos cabelos grosseiramente cortados. A luz roubava todas as cores do aposento, até mesmo os cabelos curtos espetados para cima como pequenas chamas entre seus dedos estavam apagados, com a cor de cinzas.

Saí da cama silenciosamente, fria na fina camisola bordada. Ele não se virou quando me aproximei por trás, mas ele sabia que eu estava lá. Quando toquei em sua mão, ele deixou-a deslizar para a mesa e deixou a cabeça cair para trás, até recostar-se logo abaixo dos meus seios. Suspirou profundamente quando comecei a friccioná-la, e senti a tensão começar a abandoná-lo. Minhas mãos continuaram a trabalhar pelo pescoço e pelos ombros, sentindo o frio de seus músculos sob o linho fino. Finalmente, dei a volta e fiquei diante dele. Ele estendeu os braços e envolveu-me pela cintura, puxando-me para ele e enterrando a cabeça em minha camisola, logo acima do volume de nosso filho por nascer.

— Estou com frio — eu disse finalmente, num sussurro. — Quer vir me aquecer?

Após um instante, ele assentiu, e colocou-se de pé, cambaleando cegamente. Conduzi-o para a cama, tirei suas roupas enquanto ele permanecia sentado sem oferecer resistência e aconcheguei-o sob as cobertas. Deitei-me na curva de seu braço, meu corpo bem junto ao seu, até o frio de sua pele desaparecer e ficarmos confortavelmente instalados num bolsão de suave calor.

Experimentalmente, coloquei a mão em seu peito, acariciando-o de um lado para o outro, até que seu mamilo enrijeceu-se, um minúsculo nódulo de desejo. Ele colocou a mão sobre a minha, fazendo-a parar. Tive medo de que fosse me afastar, e ele o fez, mas somente para que pudesse virar-se para mim.

A luz estava ficando mais forte e ele passou um longo tempo apenas fitando meu rosto, acariciando-o da fronte ao queixo, correndo o polegar pela linha de minha garganta e ao longo da clavícula.

— Meu Deus, eu realmente a amo — ele murmurou, como se falasse consigo mesmo. Beijou-me, impedindo-me de corresponder, e acariciando um dos meus seios com a mão direita aleijada, preparou-se para possuir-me.

— Mas sua mão... — comecei a dizer, pela segunda vez naquela noite.

— Não tem importância — ele disse, também pela segunda vez naquela noite.

 

O coche sacolejava devagar por um trecho particularmente esburacado da estrada, deixada naquele estado pelas geadas do inverno e pelas fortes chuvas da primavera. Fora um ano chuvoso; até mesmo agora, no começo do verão, havia umidade, poças d'água sob os luxuriantes arbustos de framboesas e amoras que ladeavam o caminho.

Jamie sentava-se a meu lado no banco estofado e estreito que formava um dos assentos do coche. Fergus esparramara-se no canto do outro banco, adormecido, e o movimento do veículo fazia sua cabeça balançar como a cabeça de um boneco mecânico com uma mola no lugar do pescoço. O ar no interior do coche estava quente e a poeira entrava pelas janelas em pequenos jorros dourados sempre que passávamos por um trecho de terra seca.

Havíamos conversado vagamente no começo sobre a paisagem rural ao nosso redor, sobre os estábulos reais em Argentan, para onde nos dirigíamos, sobre os boatos e mexericos que compunham o cardápio diário das conversas na corte e nos círculos comerciais. Devo ter dormido também, embalada pelo ritmo do coche e pelo calor do dia, mas os contornos alterados do meu corpo tornavam desconfortável permanecer sentada numa única posição e minhas costas doíam com os solavancos. O bebê estava cada vez mais ativo também, e as pequenas agitações dos primeiros movimentos haviam se transformado em cotoveladas e empurrões bem definidos; agradáveis a seu próprio modo, mas incômodos.

— Talvez você devesse ter permanecido em casa, Sassenach — Jamie disse, franzindo ligeiramente a testa ao me ver remexendo-me e ajustando minha posição a todo instante.

— Estou bem — eu disse com um sorriso. — Apenas irrequieta. E seria uma pena perder tudo isso. — Fiz um gesto largo em direção à janela do coche, indicando a ampla extensão dos campos, brilhando verdes como esmeraldas entre as fileiras de álamos, retos e escuros, que formavam uma barreira contra o vento. Empoeirado ou não, o ar puro do campo era fresco e inebriante, depois dos cheiros abafados e fétidos da cidade e dos odores medicinais de L’Hôpital des Anges.

Luís concordara, como um gesto de cautelosa boa vontade em relação às tentativas de diálogo da diplomacia inglesa, em permitir que o duque de

Sandringham comprasse quatro éguas reprodutoras Percheron do haras real em Argentan, para melhorar o pedigree do pequeno rebanho de cavalos de tração que Sua Excelência criava na Inglaterra. Sua Excelência, portanto estava visitando Argentan hoje e convidara Jamie para acompanhá-lo, a fim de aconselhá-lo na escolha das éguas. O convite fora feito durante uma festa e, uma coisa levando a outra, a visita acabara se transformando numa excursão de piquenique em grande escala, envolvendo quatro carruagens e várias damas e cavalheiros da corte.

— É um bom sinal, não acha? — perguntei, lançando um olhar cauteloso para ter certeza de que nossos acompanhantes estavam realmente adormecidos. — Quero dizer, o fato de Luís dar permissão ao duque para comprar cavalos. Se está indicando através de gestos como esse uma disposição favorável em relação aos ingleses, então provavelmente não está inclinado a demonstrar simpatia por Jaime Stuart, ao menos não ostensivamente.

Jamie sacudiu a cabeça. Ele se recusava terminantemente a usar peruca e a forma ousada e desguarnecida de sua cabeça tosada provocara grande alvoroço na corte. Tinha suas vantagens no momento presente; embora uma leve transpiração brilhasse na ponte de seu nariz reto e longo, ele não estava nem de longe tão lânguido quanto eu.

— Não, agora estou certo de que Luís não quer ter nada a ver com os Stuart, pelo menos no que diz respeito a qualquer iniciativa para a restauração da monarquia. Monsieur Duverney assegura-me que o conselho se opõe completamente a isso; embora Luís possa em algum momento ceder a pressões do papa para que conceda a Carlos uma pequena pensão, ele não está disposto a levar os Stuart a nenhum tipo de proeminência na França, com Jorge da Inglaterra olhando por cima do seu ombro. — Ele usava seu xale de tartã hoje, preso junto ao ombro por um broche — uma bela peça que sua irmã lhe enviara da Escócia, no formato de dois veados correndo, os corpos inclinados de tal forma que se uniam num círculo, as cabeças e as caudas se tocando. Puxou uma prega do xale e enxugou o rosto.

— Acho que conversei com todos os principais banqueiros de Paris nos últimos meses e estão unidos numa falta total de interesse. — Sorriu ironicamente. — Não há tanta abundância de dinheiro que alguém queira apoiar uma proposta tão arriscada como a restauração dos Stuart.

— E isso — eu disse, alongando as costas com um gemido — nos deixa a Espanha.

Ele balançou a cabeça, concordando.

— É verdade. E Dougal MacKenzie. — Olhou-me com um ar presun-çoso e eu empertiguei-me no banco, intrigada.

— Teve notícias dele? — Apesar de uma cautela inicial, Dougal aceitara Jamie como um dedicado companheiro jacobita e a colheita habitual de cartas codificadas foi aumentada com uma série de comunicações discretas enviadas por Dougal da Espanha, destinadas a serem lidas por Jamie e encaminhadas a Carlos Stuart.

— Tive, sim. — Pude notar por sua expressão que eram boas notícias. E realmente eram, mas não para os Stuart.

— Filipe recusou-se a dar qualquer assistência aos Stuart — Jamie disse. — Ele recebeu uma notificação do gabinete do papa, você sabe; ele deve manter-se afastado de toda questão do trono escocês.

— E sabemos por quê? — A última interceptação de um mensageiro papal revelara várias cartas, mas como eram todas endereçadas a Jaime ou Carlos Stuart, podiam perfeitamente não conter nenhuma referência às conversas de Sua Santidade com a Espanha.

— Dougal acha que sabe. — Jamie riu. — Ele está muito decepcionado. Disse que foi mantido em banho-maria em Toledo durante quase um mês e depois mandado embora com nada além de uma vaga promessa de ajuda “em algum momento do futuro, Deo volente”. — Sua voz grave imitou com perfeição uma entonação piedosa e não pude deixar de rir.

— Benedito quer evitar atritos entre a Espanha e a França; não quer ver Filipe e Luís desperdiçando dinheiro, para o qual ele tem uma destinação melhor, sabe — acrescentou cinicamente. — Não fica bem para um papa dizer isso, mas Benedito tem suas dúvidas se um rei católico ainda conseguiria manter a Inglaterra unida. A Escócia tem tido seus líderes católicos entre os clãs das Highlands, mas já faz algum tempo desde que a Inglaterra teve um rei católico. É provável que ainda se passe muito tempo até que tenham outro, Deo volente — acrescentou rindo.

Coçou a cabeça, despenteando os cabelos curtos vermelho-dourados acima das têmporas.

— A situação parece bastante sombria para os Stuart, Sassenach, e isso é uma boa notícia. Não, não haverá nenhuma ajuda dos monarcas Bourbon. A única coisa que me preocupa agora é esse investimento que Carlos Stuart fez com o conde de St. Germain.

— Então, você não acha que se trata apenas de um investimento?

— Bem, na verdade, é — disse, franzindo o cenho -, mas parece que há mais alguma coisa por trás. Ouvi uns rumores, sabe?

Embora as famílias de banqueiros de Paris não estivessem inclinadas a levar o Jovem Pretendente ao trono da Escócia a sério, essa situação poderia mudar facilmente, se Carlos Stuart subitamente tivesse dinheiro para investir.

— Sua Alteza me disse que tem conversado com os Gobelin — Jamie disse. — St. Germain os apresentou; caso contrário, não teriam lhe dado nenhuma atenção. O velho Gobelin o considera um perdulário e um tolo, e um dos filhos de Gobelin também. O outro, entretanto, diz que vai esperar para ver; se Carlos for bem-sucedido em sua arriscada iniciativa, então talvez ele possa colocar outras oportunidades em seu caminho.

— Isso não é nada bom — observei. Jamie sacudiu a cabeça.

— Não. Dinheiro atrai dinheiro. Se ele for bem-sucedido em um ou dois grandes empreendimentos, os banqueiros vão começar a lhe dar ouvidos. O sujeito não é muito inteligente — disse, com um sorriso enviesado -, mas é muito sedutor pessoalmente; pode persuadir as pessoas, mesmo contra a voz da razão. Mesmo assim, ele não fará nenhum progresso sem um pequeno capital em seu nome. Mas ele o terá, se esse investimento for bem-sucedido.

— Humm. — Mudei de posição outra vez, contorcendo os dedos dos pés em sua quente prisão de couro. Os sapatos eram confortáveis quando foram feitos para mim, mas meus pés começavam a inchar um pouco e minhas meias de seda estavam úmidas de suor. — Há alguma coisa que possamos fazer a respeito?

Jamie encolheu os ombros, com um sorriso enviesado.

— Rezar pelo mau tempo ao largo das costas de Portugal, eu acho. Além do naufrágio do navio, não vejo muito jeito de a empresa fracassar, verdade seja dita. St. Germain já tem contratos para a venda do carregamento inteiro. Tanto ele quanto Carlos Stuart devem triplicar o dinheiro investido.

Estremeci levemente à menção do conde. Não pude deixar de me lembrar das especulações de Dougal. Eu não contara a Jamie sobre a visita de Dougal, nem sobre suas especulações quanto às atividades noturnas do conde. Não gostava de guardar segredos para ele, mas Dougal exigira meu silêncio como seu preço por me ajudar na questão de Jonathan Randall e eu não tive escolha senão concordar.

Jamie sorriu para mim e estendeu a mão.

— Pensarei em alguma coisa, Sassenach. Por enquanto, dê-me seus pés. Quando Jenny estava grávida, ela gostava que eu massageasse seus pés.

Não discuti, tirando meus pés de dentro dos sapatos quentes e colocando-os em seu colo com um suspiro de alívio, conforme o ar que entrava pelas janelas esfriava a seda úmida sobre meus dedos.

Suas mãos eram grandes e seus dedos ao mesmo tempo fortes e delicados. Esfregou os nós dos dedos pelo arco do meu pé e eu reclinei-me no assento com um gemido de prazer. Rodamos em silêncio por vários minutos, enquanto eu relaxava, entrando num estado de abençoado alheamento.

Com a cabeça inclinada sobre meus dedos envoltos em seda verde, Jamie observou descontraído:

— Não era realmente uma dívida, sabe?

— O que não era? — Entorpecida pelo calor do sol e pela massagem nos pés, não fazia a menor idéia do que ele estava falando.

Sem parar de massagear, ergueu os olhos para mim. Sua expressão era séria, embora o vestígio de um sorriso iluminasse seus olhos.

— Você disse que eu lhe devia uma vida, Sassenach, porque você salvara a minha. — Segurou um dedão e sacudiu-o. — Mas eu estive pensando e não tenho certeza que isso seja verdade. Parece-me que estamos quites, se considerarmos tudo.

— O que quer dizer com estarmos qítes? — Tentei libertar meu pé, mas ele segurou-o com firmeza.

— Se você salvou minha vida, e realmente salvou, eu também salvei a sua e no mesmo número de ocasiões. Eu a salvei de Jack Randall em Fort William, você se lembra, e eu a arranquei da multidão enfurecida em Cranesmuir, não foi?

— Sim — respondi cautelosamente. Não fazia a menor idéia de onde ele queria chegar, mas ele não estava apenas mantendo uma conversa. — Sou grata por isso, é claro.

Ele emitiu um pequeno som escocês, no fundo da garganta, dispensando o agradecimento.

— Não é uma questão de gratidão, Sassenach, da sua parte ou da minha. O que estou dizendo é apenas que também não é uma questão de obrigação. — O sorriso desaparecera de seus olhos e ele estava completamente sério.

— Eu não lhe dei a vida de Randall em troca da minha, não seria uma troca justa, para começar. Feche a boca, Sassenach — disse, de modo prático — ou vai engolir uma mosca. — Havia, de fato, vários insetos presentes; três estavam pousados na frente da camisa de Fergus, sem se perturbarem com o constante sobe e desce.

— Por que concordou, então? — Parei de lutar e ele envolveu meus pés com as duas mãos, esfregando os polegares lentamente sobre as curvas dos meus calcanhares.

— Bem, não foi por nenhuma das razões que você tentava me fazer ver. Quanto a Frank — ele disse —, bem, é verdade que eu tomei sua mulher e sinto pena dele por isso, às vezes mais do que em outras — acrescentou, com um trejeito insolente de uma das sobrancelhas. — No entanto, seria diferente se ele fosse meu rival aqui? Você teve livre escolha entre nós dois e escolheu a mim, apesar de luxos como banhos quentes ter pesado a favor dele. Uuuf! — Liberei um dos pés com um safanão e enfiei-o em suas costelas. Ele endireitou-se e agarrou-o, a tempo de me impedir de repetir o golpe.

— Está arrependida da escolha?

— Ainda não — eu disse, lutando para recuperar meu pé. — Mas posso me arrepender a qualquer momento. Continue falando.

— Muito bem, então. Eu não podia entender por que o fato de você ter me escolhido dava a Frank Randall o direito de uma consideração especial. Além do mais — disse francamente -, devo admitir que fiquei com um pouco de ciúme do sujeito.

Chutei-o com meu outro pé, mirando mais embaixo. Ele segurou este pé antes que atingisse o alvo, torcendo habilmente meu tornozelo.

— Quanto a dever-lhe sua vida, em princípios gerais — continuou, ignorando minhas tentativas de escapar -, esse é um argumento que o irmão Anselmo na abadia poderia responder melhor do que eu. Certamente, eu não mataria um homem inocente a sangue-frio. Mas eu já matei homens numa batalha, e isso seria diferente?

Lembrei-me do soldado e do garoto na neve que eu matara em nossa fuga de Wentworth. Eu já não me atormentava com essas lembranças, mas sabia que elas jamais me deixariam.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não, você pode levantar muitos argumentos bons sobre isso, mas no final das contas, tais escolhas resumem-se a uma só: você mata quando tem que matar e você vive com isso depois. Lembro-me do rosto de todos os homens que matei e sempre me lembrarei. Mas o fato permanece, eu estou vivo e eles não, e essa é a minha única justificativa, quer seja certa ou errada.

— Mas isso não é verdade neste caso — ressaltei. — É um caso de matar ou ser morto.

Ele sacudiu a cabeça, desalojando uma mosca que se assentara em seu cabelo.

— Nisso você está errada, Sassenach. O que existe entre Jack Randall e mim só será resolvido quando um de nós morrer, e talvez nem mesmo assim. Há outras maneiras de matar sem ser com uma faca ou uma arma de fogo e há coisas piores do que a morte física. — Seu tom de voz abrandou-se. — Em Ste. Anne, você me arrancou de mais de uma forma de morte, mo duinne, e nunca pense que eu não sei disso. — Sacudiu a cabeça. — Talvez, afinal de contas, eu lhe deva mais do que você me deve.

Soltou meus pés e reposicionou suas longas pernas.

— E isso me leva a considerar sua consciência, bem como a minha. Afinal, você não fazia a menor idéia do que iria acontecer quando fez sua escolha e uma coisa é abandonar um homem e outra é condená-lo à morte.

Eu não estava gostando nem um pouco daquela maneira de descrever minhas ações, mas não podia me esquivar dos fatos. Eu havia, de fato, abandonado Frank e embora pudesse não me arrepender da escolha que fizera, ainda assim eu lamentava e sempre lamentaria a necessidade de fazê-lo. As palavras seguintes de Jamie ecoaram meus pensamentos de forma assustadora.

Ele continuou:

— Se você soubesse que isso poderia significar, digamos, a morte de Frank, talvez tivesse feito uma escolha diferente. Considerando-se que você realmente me escolheu, eu tenho o direito de tornar os seus atos ainda mais conseqüentes do que você imaginara?

Absorto nessa argumentação, não se dera conta do seu efeito sobre mim. Vendo a expressão do meu rosto agora, parou repentinamente, observando-me em silêncio, enquanto seguíamos aos solavancos pela paisagem rural.

— Não vejo como possa ser um pecado para você ter feito o que fez, Claire — ele disse, finalmente, estendendo o braço para repousar a mão sobre meu pé revestido de seda verde. — Sou seu marido por lei, tanto quanto ele era... ou será. Você nem sabe se poderia ter voltado para ele; mo duinne, você podia ter ido ainda mais para trás no tempo, ou ido mais para a frente, para uma época inteiramente diferente. Você agiu como achou que devia e ninguém pode fazer melhor do que isso. — Ergueu os olhos e a expressão de seu olhar penetrou em minha alma.

— Sou suficientemente honesto para dizer que não me importo com o que possa ser certo ou errado, desde que você esteja aqui comigo, Claire. — Ele disse, com ternura. — Se foi um pecado para você ter me escolhido... então vou ao próprio diabo, agradecer por ter tentado você. — Ergueu meu pé e beijou delicadamente a ponta do dedão.

Coloquei a mão em sua cabeça; os cabelos curtos espetavam, mas eram macios, como os espinhos de um ouriço muito novo.

— Não acho que tenha sido errado — eu disse ternamente. — Mas se foi... então irei ao diabo com você, Jamie Fraser.

Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça sobre meus pés. Segurou-os com tanta força que eu podia sentir os longos e delgados metatarsos pressionados uns contra os outros; mesmo assim, não retirei os pés. Enfiei os dedos em seus cabelos e puxei-os delicadamente.

— Então, por que, Jamie? Por que resolveu deixar Jack Randall viver? Ele ainda segurava meu pé, mas abriu os olhos e sorriu para mim.

— Bem, pensei em muitas coisas, Sassenach, enquanto andava de um lado para o outro naquela noite. Primeiro, achei que você iria sofrer, se eu realmente matasse o canalha. Eu faria, ou não faria, muitas coisas para poupá-la de sofrimentos, Sassenach, mas até onde contrabalançar sua consciência com minha honra?

— Não. — Sacudiu a cabeça outra vez, descartando mais um argumento. — Cada um de nós pode ser responsável por seus próprios atos e sua própria consciência. O que quer que eu faça não pode ser tributado a você, independentemente de quais sejam as conseqüências. — Pestanejou os olhos lacrimejando com o vento carregado de poeira, e passou a mão pelos cabelos numa tentativa vã de alisar as pontas desgrenhadas. Cortados curtos, eles formavam um tufo de pontas espetadas no alto da cabeça, parecendo um leque rebelde.

— Por que, então? — perguntei, inclinando-me para a frente. — Você me disse só as mãos, o que resta?

Ele hesitou por um instante, mas em seguida olhou-me direto nos olhos.

— Por causa de Carlos Stuart, Sassenach. Até agora, conseguimos impedir todas as grandes somas de dinheiro, mas com esse investimento... bem, ele ainda pode conseguir liderar um exército na Escócia. E se isso acontecer... bem, você sabe melhor do que eu o que pode vir a acontecer, Sassenach.

Eu sabia, e o pensamento enregelou-me. Não pude deixar de recordar a descrição de um historiador sobre o destino dos habitantes das Highlands em Culloden — “os mortos jaziam uns sobre os outros, encharcados da chuva e do seu próprio sangue”.

Os escoceses, mal administrados e famintos, mas ferozes até o fim, seriam destruídos em uma meia hora decisiva. Foram amontoados uns sobre os outros e abandonados, sangrando numa fria chuva de abril, a causa que haviam alimentado por cem anos morta junto com eles.

Jamie estendeu o braço e segurou minhas mãos.

— Acho que não vai acontecer, Claire; penso que conseguiremos impedi-lo. E se não conseguirmos, ainda assim não acredito que alguma coisa venha a me acontecer. Mas se acontecer... — Parecia extremamente ansioso agora, falando em voz baixa e ardente. — Se acontecer, quero que haja um lugar para você; quero que haja alguém para quem você possa ir se eu... não estiver mais lá para cuidar de você. Se não puder ser eu, então quero que seja um homem que a ame. — Apertou meus dedos com mais força; eu podia sentir as duas alianças penetrando em minha carne e sentir a ansiedade em suas mãos.

— Claire, você sabe o que me custa fazer isso por você: poupar a vida de Randall. Prometa-me que, se o momento chegar, você voltará para Frank. — Seus olhos inspecionaram meu rosto, azul-escuros como o céu na janela às suas costas. —Já tentei mandá-la de volta duas vezes antes. E agradeço a Deus por você não ter ido. Mas, se houver uma terceira vez, prometa-me que voltará para ele, para Frank. Porque é por isso que poupei a vida de Jack Randall por um ano, por você. Prometa-me, Claire.

— Allez! Allezl Montezl — O cocheiro gritou de cima do seu banco, encorajando os cavalos a subir uma ladeira. Estávamos quase chegando.

— Está bem — eu disse finalmente. — Eu prometo.

Os estábulos de Argentan eram limpos e arejados, cheirando a verão e cavalos. Em uma baia aberta, Jamie circundou uma égua Percheron, encantado como uma mutuca.

— Ooh, que rapariga bonita você é! Venha cá, benzinho, deixe-me ver esse belo e gordo traseiro. Muhm, sim, que beleza!

— Quisera que meu marido falasse assim comigo — comentou a duquesa de Neve, provocando risadinhas das outras senhoras do grupo, que permaneciam de pé na palha do corredor central, observando.

— Talvez ele o fizesse, madame, se a sua própria visão de costas oferecesse tal estímulo. Mas, por outro lado, talvez seu marido não compartilhe a apreciação de milorde Broch Tuarach por um traseiro bem torneado. -O conde de St. Germain deixou os olhos percorrerem meu corpo com uma pitada de desdenhosa ironia. Tentei imaginar aqueles olhos negros brilhando pelas fendas de uma máscara e pude reconhecê-los muito bem. Infelizmente, os babados de renda do punho de sua camisa iam além dos nós dos dedos de suas mãos; eu não podia ver a forquilha entre seu polegar e o indicador.

Ouvindo a conversa paralela, Jamie apoiou-se muito à vontade nas largas ancas da égua, somente a cabeça, os ombros e os braços à mostra, acima do corpo volumoso da Percheron.

— Milorde Broch Tuarach aprecia a beleza onde possa ser encontrada, monsieur le comte; mulher ou animal. No entanto, ao contrário de alguns que eu poderia citar, sou capaz de diferenciar uma da outra. — Riu maliciosamente para St. Germain, depois deu uns tapinhas de despedida no pescoço da égua quando o bando começou a se dispersar, rindo.

Jamie tomou meu braço para me conduzir ao estábulo seguinte, seguido mais lentamente pelo resto do grupo.

— Ah — ele disse, inalando a mistura de cheiros de feno, cavalos, arreios e estrume como se fosse incenso. — Eu realmente sinto falta do cheiro de um estábulo. E o campo me deixa saudoso da Escócia.

— Não se parece muito com a Escócia — eu disse, estreitando os olhos contra o sol ofuscante quando emergimos da obscuridade do estábulo.

— Não, mas é o campo — ele disse -, é limpo, é verde e não há nenhuma fumaça no ar ou esgoto embaixo dos seus pés. A menos que conte excremento de cavalo, o que eu não faço.

O sol do começo do verão brilhava nos telhados de Argentan, urrii cidadezinha aninhada entre colinas verdejantes e suavemente ondeadas. o haras real ficava logo na periferia da vila, com construções muito mais sólidas do que as casas dos súditos do rei ali perto. Os celeiros e estábulos eram de pedra lavrada, assoalhos de pedra e telhados de ardósia. Eram mantidos numa condição de limpeza que ultrapassava em muito a de L'Hôpital des Anges.

Um sonoro zumbido veio de trás de um estábulo e Jamie parou bruscamente, bem a tempo de evitar um choque com Fergus, que surgiu diante de nós como se tivesse sido atirado por um estilingue, perseguido nos calcanhares por dois jovens cavalariços, ambos bem maiores do que ele. Uma mancha verde de excremento fresco do lado do rosto de um deles dava uma pista da causa da altercação.

Com considerável presença de espírito, Fergus deu meia-volta, passou como uma flecha pelo meio de seus perseguidores e zuniu para dentro do grupo, onde se refugiou atrás da fortaleza dos quadris revestidos de kilt de Jamie. Vendo sua presa assim protegida, seus perseguidores olharam aterrorizados para a falange de homens e mulheres da corte que vinha em sua direção, trocaram um olhar de.decisão e, simultaneamente, viraram-se e fugiram.

Vendo-os bater em retirada, Fergus esticou o pescoço de trás de minha saia e gritou alguma coisa em francês chulo, o que prontamente lhe angariou um tabefe na orelha por parte de Jamie.

— Saia já daqui — ele disse rispidamente. — E pelo amor de Deus, não atire bosta de cavalo em gente maior do que você. Agora, vá e fique longe de confusão. — Completou o conselho com uma saudável palmada no traseiro de calças curtas, o que fez Fergus sair cambaleando na direção oposta àquela tomada pelos seus atacantes anteriores.

Eu ficara em dúvida quanto à conveniência de levar Fergus conosco nesta excursão, mas a maioria das mulheres estava levando pajens em sua companhia, para prestar-lhes pequenos serviços e carregar as cestas de comidas e outras parafernálias consideradas essenciais para um passeio de um dia. E Jamie quis mostrar um pouco do campo ao garoto, achando que ele merecia um dia de folga. Tudo muito justo, exceto que Fergus, que nunca estivera fora de Paris em toda a sua vida, ficara exaltado demais com o ar, a luz e os belos e enormes animais bem debaixo do seu nariz. Assim, tresloucado de nervosismo e agitação, não parara de se meter em confusão desde a nossa chegada.

— Só Deus sabe o que ele fará em seguida — eu disse, sombriamente, vendo a figura de Fergus se afastar. — Vai pôr fogo em um dos montes de feno.

Jamie permaneceu impassível diante da idéia.

— Ele vai ficar bem. Todos os garotos se metem em guerra de cocô.

— É mesmo? — Virei-me, examinando St. Germain, imaculado em linho branco, sarja branca e seda branca, inclinando-se cortesmente para ouvir a duquesa, conforme ela caminhava com afetação pelo pátio coberto de palha.

— Talvez você tenha se metido — eu disse. — Não ele. Nem o bispo, tampouco, não creio.

Eu me perguntava se aquela excursão fora uma boa idéia, ao menos da minha parte. Jamie estava em seu elemento, com os gigantes Percheron e o duque estava visivelmente impressionado com ele, o que era ótimo. Por outro lado, minhas costas doíam terrivelmente da viagem de coche e meus pés estavam quentes e inchados, pressionados e doloridos contra o couro apertado dos meus sapatos.

Jamie olhou para mim e sorriu, apertando minha mão pousada em seu braço.

— Não vai demorar muito mais, Sassenach. O guia quer nos mostrar o local onde os cavalos reproduzem e depois você e as outras senhoras poderão ir se sentar para comer, enquanto os homens ficam por lá fazendo piadas grosseiras sobre o tamanho do pênis um do outro.

— Esse é o efeito geral da observação de cavalos procriando? — perguntei, fascinada.

— Bem, nos homens é; não sei qual o efeito nas mulheres. Mantenha os ouvidos atentos e talvez depois você possa me contar.

Havia de fato um ar de excitação reprimida entre os membros do grupo conforme nos aglomeramos nas instalações um tanto apertadas de um estábulo de reprodução. De pedra, como as outras construções, esta não era dividida em baias de ambos os lados de uma passagem central, mas possuía um pequeno curral delimitado por uma cerca baixa, com boxes individuais de cada lado e uma espécie de corredor estreito ao longo da parte de trás. Desse corredor, saíam diversos portões que podiam ser abertos ou fechados para controlar os movimentos de um cavalo.

O prédio em si era claro e arejado, graças a enormes janelas sem vidraças, abertas em cada uma das extremidades, dando vista para um cercado gramado. Eu podia ver várias das enormes éguas Percheron pastando junto à cerca; uma ou duas pareciam irrequietas, ensaiando um galope chocalhante, depois retornando a um trote ou marcha, sacudindo as cabeças e as crinas com um relincho alto e estridente. Uma vez, quando isso aconteceu, ouviu-se um grito alto e nasal de um dos boxes no final da cabana e o painel divisório sacudiu-se com o baque surdo de um poderoso coice de seu ocupante.

— Se você encontrar alguém que saiba fazer outra coisa além de enfia lo no primeiro buraco que aparece, diga-me. Eu estaria interessada em ver o que mais pode ser feito com algo assim.

— Ao menos, você tem um que está interessado — interrompeu a duquesa de Neve. Lançou um olhar de repulsa para o marido, reunido com os outros homens perto de um dos cercados, observando uma égua arreada sendo treinada.

— Hoje não, querida — ela imitou os tons sonoros e fanhosos de seu marido com perfeição. — Estou fatigado. — Colocou a mão na testa e revirou os olhos para cima. — A pressão dos negócios é tão desgastante. -Encorajada pelas risadas, ela continuou a imitação, agora arregalando os olhos de horror e cruzando as mãos protetoramente sobre o colo. — O que, de novo? Você não sabe que gastar a essência masculina gratuitamente é um convite à doença? Já não basta que suas exigências tenham me desgastado a ponto de me transformar num sabugo pequeno, Mathilde? Quer que eu tenha um ataque?

As mulheres gargalhavam e dobravam-se de rir, alto o suficiente para atrair a atenção do bispo, que acenou para nós e sorriu indulgentemente, provocando novas ondas de risos.

— Bem, ao menos ele não está gastando toda a sua essência masculina em bordéis, ou em outro lugar — disse madame Prudhomme, com um eloqüente olhar de compaixão à condessa de St. Germain.

— Não — disse Mathilde, melancolicamente. — Ele o guarda como se fosse ouro. — Até parece que está em falta, do jeito que ele... ah, Excelência! Aceita um copo de vinho? — Sorriu encantadoramente para o duque, que se aproximara silencioso por trás. Ficou parado, sorrindo para as mulheres, uma das sobrancelhas louras ligeiramente arqueadas. Se tinha ouvido o assunto de nossa conversa, não demonstrou.

Sentando-se a meu lado na toalha, Sua Excelência entabulou uma conversa amena e divertida com as senhoras, a voz estranhamente aguda não fazendo nenhum contraste com as vozes femininas. Embora ele parecesse prestar muita atenção à conversa, notei que seus olhos desviavam-se periodicamente para o pequeno aglomerado de homens junto à cerca do curral. O exuberante kilt de Jamie destacava-se, mesmo em meio aos suntuosos veludos bem talhados e às sedas forradas.

Senti certa hesitação em voltar a me encontrar com o duque. Afinal, nossa última visita terminara com a prisão de Jonathan Randall, sob a minha acusação de tentativa de estupro. Mas o duque era todo gentileza e civilidade neste passeio, sem nenhuma menção a nenhum dos dois irmãos Randal. Nem houve nenhuma menção pública da prisão. Quaisquer que fossem as atividades diplomáticas do duque, pareciam estar num nível suficientemente alto para merecer a chancela real de silêncio.

De um modo geral, recebi com prazer a presença do duque em nosso piquenique. Para começar, sua presença impedia que as mulheres me perguntassem — como algumas almas mais ousadas faziam de vez em quando nas festas — se era verdade o que os escoceses usavam por baixo do kilt. Considerando-se a disposição de espírito do presente grupo, não creio que minha resposta usual — “Ah, o de sempre” — seria suficiente.

— Seu marido tem um ótimo olho para cavalos — o duque observou para mim, livre por um instante, quando a duquesa de Neve, do outro lado dele, inclinou-se sobre a toalha para conversar com madame Prudhomme. — Ele me disse que tanto seu pai quanto seu tio mantêm uma pequena mas excelente criação de cavalos nas Highlands.

— Sim, é verdade. — Tomei um pequeno gole do meu vinho. — Mas o senhor visitou Colum MacKenzie no Castelo Leoch; certamente viu o estábulo por si mesmo. — De fato, eu conhecera o duque em Leoch no ano anterior, embora o encontro tenha sido breve; ele partiu numa expedição de caça pouco antes de eu ser presa por bruxaria. Eu tinha certeza de que ele devia ter tido conhecimento do fato, mas, se assim fosse, não dava nenhum sinal disso.

— Sem dúvida. — Os olhos azuis, pequenos e astutos, do duque dardejaram para a esquerda, depois para a direita, para ver se estava sendo observado, depois passou a falar em inglês. — Na época, seu marido me informou que ele não morava em suas próprias terras, por causa de uma infeliz, e errônea, acusação de assassinato apresentada contra ele pela coroa inglesa. Eu me pergunto, milady, se a incriminação ainda persiste?

— Sua cabeça ainda está a prêmio — eu disse sem rodeios.

A expressão do duque de educado interesse não se alterou. Estendeu a mão e pegou uma das pequenas salsichas na bandeja.

— Essa não é uma questão irremediável — disse serenamente. — Depois de meu encontro com seu marido em Leoch, fiz algumas investigações... ah, adequadamente discretas, asseguro-lhe, minha cara senhora. E creio que a questão possa ser resolvida sem maiores dificuldades, com uma palavra no ouvido certo, das fontes certas.

Interessante. Inicialmente, Jamie contara ao duque de Sandringham sobre a acusação que pesava contra ele por sugestão de Colum MacKenzie, na esperança de que o duque pudesse ser persuadido a intervir a seu favor. Como Jamie de fato não havia cometido o crime em questão, não podia haver provas contra ele; era bem possível que o duque, uma voz poderosa entre os nobres da Inglaterra, pudesse de fato conseguir que as acusações fossem retiradas.

— Por quê? — perguntei. — O que deseja em troca?

As sobrancelhas louras e grossas ergueram-se subitamente e ele sorriu exibindo dentes pequenos, brancos e regulares.

— Nossa, você é bem direta, não? Não poderia ser simplesmente porque aprecio a opinião abalizada e a assistência de seu marido na seleção de cavalos e gostaria de vê-lo restaurado a uma posição onde essa habilidade possa de novo ser exercida lucrativamente?

— Poderia, mas não é — eu disse. Percebi o olhar penetrante de madame Prudhomme sobre nós e sorri amavelmente para ele. — Por quê?

Ele jogou a salsicha inteira na boca e mastigou-a devagar, o rosto redondo e afável refletindo nada além do prazer em desfrutar o dia e a refeição. Por fim, engoliu e limpou delicadamente a boca com um dos guardanapos de linho.

— Bem — disse —, apenas como hipótese, se me compreende... Assenti e ele continuou.

— Apenas como hipótese, então, talvez possamos supor que a recente amizade de seu marido com... um certo personagem recém-chegado de Roma? Ah, vejo que me compreende. Sim. Suponhamos que essa amizade tenha se tornado uma questão de certa forma preocupante para alguns grupos que prefeririam que esse personagem retornasse pacificamente a Roma, ou que se estabelecesse na França, embora Roma fosse melhor, mais seguro, compreende?

— Compreendo. — Eu também peguei uma salsicha. Eram muito condimentadas e pequenas baforadas de alho penetravam pelas minhas narinas a cada mordida. — E esses grupos vêem essa amizade com seriedade suficiente para oferecerem a retirada das acusações contra meu marido em troca do término desse relacionamento? Novamente, por quê? Meu marido não é ninguém de grande importância.

— No momento, não — o duque concordou —, mas pode ser no futuro. Ele possui ligações com vários interesses poderosos entre as famílias de banqueiros na França e mais ainda entre os comerciantes. Também é recebido na corte e tem algum acesso aos ouvidos de Luís. Em resumo, se ele no momento não possui o poder de arregimentar somas substanciais de dinheiro e influência, é provável que o faça em breve. Ele também é membro não de um, mas de dois dos mais poderosos clãs das Highlands. E os grupos que desejam que o personagem em questão retorne a Roma guardam um medo não despropositado de que essa influência possa ser exercida em direções não desejáveis. Seria muito melhor se seu marido puder retornar, uma vez restaurada sua reputação, para suas terras na Escócia, não acha?

— é uma idéia — eu disse. Era também um suborno, e dos mais atraentes. Cortar toda a conexão com Carlos Stuart e ficar livre para retornar para a Escócia e a Lallybroch, sem o risco de ser enforcado. A remoção de um partidário possivelmente preocupante dos Stuart, sem nenhuma despesa para a coroa, também era uma proposta atraente do ponto de vista inglês.

Olhei com atenção para o duque, tentando descobrir onde exatamente ele se encaixava no quadro geral. Ostensivamente um enviado de Jorge II eleitor de Hannover e rei — desde que Jaime Stuart permanecesse em Roma — da Inglaterra, ele podia muito bem ter um duplo propósito em sua visita à França. Envolver-se com Luís na delicada troca de civilidade e ameaças que constituía a diplomacia e ao mesmo tempo esmagar o espectro de uma nova revolução jacobita. Várias pessoas do círculo habitual de Carlos haviam desaparecido ultimamente, alegando a necessidade urgente de cuidar de negócios no exterior. Subornados ou intimidados?, perguntava-me.

A expressão afável do duque não dava nenhuma pista de seus pensamentos. Empurrou a peruca para trás de uma fronte começando a ficar calva e coçou a cabeça sem nenhum acanhamento.

— Pense nisso, minha querida — insistiu. — E depois que tiver pensado, fale com seu marido.

— Por que o senhor mesmo não fala com ele?

Deu de ombros e pegou mais salsichas, três desta vez.

— Sei que os homens às vezes são mais receptivos a uma palavra vinda de dentro de casa, de alguém em quem confiam, do que àquilo que podem entender como pressão de uma fonte externa. — Sorriu. — Há a questão do orgulho a ser considerada; tem que ser tratada com delicadeza. E para um tratamento delicado... bem, sempre se ouve falar do “toque feminino”, não é verdade?

Não tive tempo de responder a isso quando se ouviu um grito vindo do estábulo principal, fazendo todas as cabeças virarem-se bruscamente naquela direção.

Um cavalo vinha em nossa direção pelo estreito caminho entre o estábulo principal e o galpão longo e aberto que abrigava a forja. Um potro Percheron, bem novo, não mais de dois ou três anos, a julgar pelas manchas nos flancos. Mesmo os Percherons novos são grandes e o potro parecia imenso, à medida que trotava para a frente e para trás, a cauda açoitando de um lado para o outro. Obviamente, o potro ainda não fora domado;

Os ombros maciços contorciam-se no esforço para desalojar a pequena figura montada em seu pescoço, as duas mãos enterradas com força na crina espessa e negra.

— Droga, é Fergus!

AS mulheres, perturbadas pelo grito, já haviam se levantado e observavam a cena com interesse.

Eu não percebera que os homens haviam se juntado a nós até uma mulher dizer:

— Mas parece muito perigoso! Certamente o menino vai se machucar se cair!

— Bem, se ele não se machucar ao cair, cuidarei disso pessoalmente assim que colocar as mãos no moleque — disse uma voz furiosa atrás de mim. Virei-me e vi Jamie espreitando por cima de minha cabeça para o cavalo que se aproximava depressa.

— Você não deveria tirá-lo de lá? — perguntei. Ele sacudiu a cabeça.

— Não, deixe o cavalo cuidar disso.

De fato, o cavalo parecia mais desnorteado do que assustado com o estranho peso em seu dorso. O corpo cinza malhado contorcia-se e estremecia como se atormentado por enxames de moscas e o potro sacudia a cabeça, confuso, como se imaginasse o que estaria acontecendo.

Quanto a Fergus, tinha as pernas esticadas quase em ângulo reto sobre o dorso largo do Percheron; claramente, ele só estava preso ao cavalo pelas mãos que agarravam a crina. Assim, ele teria conseguido deslizar ou ao menos jogar-se do cavalo sem se ferir, se as vítimas da guerra de excremento não tivessem resolvido colocar em prática um plano para cobrar sua vingança.

Dois ou três cavalariços seguiam o cavalo a uma distância cautelosa, bloqueando a parte de trás do caminho. Um outro conseguira correr a frente e abrir o portão de um cercado vazio, próximo ao local onde estávamos. O portão ficava entre o grupo de visitantes em seu piquenique e o final do caminho entre os prédios; obviamente, a intenção era conduzir o cavalo com calma para dentro do cercado, onde poderia pisotear Fergus ou não, mas ao menos ele próprio estaria a salvo de fugir ou machucar-se.

Antes que isso pudesse ser feito, entretanto, uma figura ágil enfiou a cabeça pela pequena janela de um palheiro no sótão de um dos prédios, bem acima do caminho. Os espectadores estavam atentos ao cavalo, ninguém viu, exceto eu. O garoto no palheiro observou, retirou-se e reapareceu quase imediatamente, segurando um grande feixe de feno. Escolhendo o momento mais propício, deixou-o cair quando Fergus e o cavalo passavam direto abaixo.

O efeito foi o mesmo de uma bomba. Houve uma explosão de feno onde antes estava Fergus e o potro soltou um relincho de pânico, contraiu a parte traseira e disparou como um vencedor do Derby, dirigindo-se em linha reta para o aglomerado de cortesãos, que se espalharam aos quatro ventos, guinchando como gansos.

Jamie atirara-se sobre mim, empurrando-me para fora do caminho e derrubando-me. Levantou-se de cima da minha figura deitada de costas, praguejando fluentemente em gaélico. Sem parar para perguntar como eu estava, saiu correndo na direção tomada por Fergus.

O cavalo dava coices e contorcia-se, completamente assustado. Agitando com violência as patas dianteiras, mantinha a distância um pequeno bando de cavalariços e rapazes das estrebarias, todos logo perdendo a calma profissional diante da idéia de que um dos preciosos cavalos do rei pudesse se machucar diante de seus próprios olhos.

Por algum milagre de teimosia ou medo, Fergus continuava montado, as pernas magricelas chocalhando enquanto ele resvalava e quicava no dorso do animal. Todos os cavalariços gritavam-lhe para que se soltasse, mas ele ignorava o conselho, os olhos fechados com força e agarrado aos dois punhados de pêlos da crina como a uma corda de salvamento. Um dos cavalariços carregava um forcado; brandia-o ameaçadoramente no ar, causando um grito agudo de horror de madame Montresor, que obviamente achava que ele pretendia espetar a criança.

O berro não acalmou os nervos do potro de nenhuma forma visível. Ele esperneava e sacudia-se, recuando e afastando-se das pessoas que agora começavam a rodeá-lo. Embora eu não achasse que o cavalariço de fato pretendesse espetar Fergus para empurrá-lo para fora do cavalo, havia o perigo real de que a criança fosse pisoteada ao cair — e eu não via como ele iria evitar esse destino por muito mais tempo. O cavalo arremeteu de repente para um pequeno grupo de árvores próximo ao curral, procurando abrigar-se da multidão ou talvez achando que o pesadelo em suas costas poderia ser arrancado com um galho.

Ao passar embaixo dos primeiros galhos, vi de relance um tartã vermelho em meio ao verde da vegetação e, em seguida, viu-se um lampejo vermelho quando Jamie lançou-se de uma árvore. Seu corpo atingiu o potro de lado e ele caiu ao chão numa confusão de xadrez e pernas nuas que teria revelado a um observador sagaz que aquele escocês em particular não estava usando nada sob seu kilt.

Os cortesãos correram para o local em bloco, concentrando-se em torno do senhor de Brotuarach, caído ao chão, enquanto os cavalariços perseguiam o cavalo que já desaparecia do outro lado das árvores.

Jamie ficou deitado de costas sob as faias, o rosto de um tom branco-esverdeado cadavérico, os olhos arregalados e a boca escancarada. Os dois braços envolviam Fergus num abraço apertado e o menino agarrava-se ao seu peito como uma sanguessuga. Jamie pestanejou para mim quando corri até ele e fez um débil esforço para sorrir. Os fracos assobios que saíam da sua boca aberta transformaram-se numa respiração curta e ofegante e eu fiquei Aliviada: ele ficara apenas sem ar.

Percebendo por fim que não estava mais em movimento, Fergus levantou a cabeça cautelosamente. Em seguida, sentou-se ereto bruscamente na barriga de seu patrão e disse com entusiasmo:

— Isso foi divertido, milorde! Podemos fazer de novo?

Jamie distendera um músculo na coxa durante o resgate de Fergus em Argentan e mancava quando chegamos a Paris. Mandou Fergus — sem seqüelas da aventura ou da repreensão que recebeu depois — à cozinha para buscar seu jantar e deixou-se cair numa poltrona junto à lareira, esfregando a perna inchada.

— Dói muito? — perguntei.

— Um pouco. Mas só preciso manter a perna em repouso. – Levantou-se e espreguiçou-se, os braços longos quase alcançando as vigas de carvalho escurecidas acima do consolo da lareira. — Aquele coche é apertado; eu preferia ter viajado a cavalo.

— Humm. Eu também. — Esfreguei a base da minha coluna, dolorida com o esforço da viagem. A dor parecia pressionar para baixo minha pélvis até as pernas, as juntas se soltando com a gravidez, imaginei.

Passei a mão de forma exploratória sobre a perna de Jamie, depois indiquei a chaise longue.

— Venha deitar-se aqui, de lado. Tenho um ungüento ótimo que posso esfregar em sua perna; vai melhorar um pouco a dor.

— Bem, se não se importa. — Levantou-se com a perna rígida e deitou-se sobre o lado esquerdo, o kilt erguido acima dos joelhos.

Abri minha caixa de remédios e vasculhei as caixinhas e frascos. Agrimônia, olmo vermelho, tiritana... ah, lá estava ele. Tirei um pequeno pote de vidro azul que monsieur Forez havia me dado e desarrolhei a tampa. Cheirei o conteúdo cautelosamente; as pomadas tornavam-se rançosas com facilidade, mas esta parecia ter uma boa proporção de sal misturado para preservação. Possuía um agradável cheiro de fruta madura e uma bela cor — o exuberante branco-amarelado de nata fresca.

Tirei uma colherada da pomada e espalhei-a pelo longo músculo da coxa, levantando o kilt de Jamie acima da cintura para manter a região livre. Sua perna estava quente; não se tratava do calor de uma infecção, apenas o calor normal de um corpo masculino jovem, tonificado por exercícios e a incandescente pulsação da saúde. Massageei o creme delicadamente na pele, sentindo o inchaço do músculo rígido, explorando as tensões do quadríceps e do tendão da perna. Jamie deu um pequeno grunhido quando massageei com mais força.

— Sim, um pouco, mas não pare — ele respondeu. — Parece que está me fazendo muito bem. — Deu uma risadinha. — Eu não admitiria para ninguém além de você, Sassenach, mas foi muito divertido. Há meses não via tanta ação.

— Fico contente que tenha se divertido — eu disse secamente, pegando mais um pouco da pomada. — Eu mesma passei horas interessantes. — Sem parar a massagem, falei-lhe da oferta de Sandringham.

Ele soltou um resmungo em resposta, encolhendo-se ligeiramente quando atingi um ponto mais sensível.

— Então Colum tinha razão quando achava que o sujeito talvez pudesse ajudar na questão das acusações contra mim.

— Parece que sim. Suponho que a pergunta seja: você quer aceitar a oferta dele? — Tentei não prender a respiração enquanto esperava a resposta. Para começar, eu sabia qual seria; os Fraser como família eram conhecidos pela teimosia e, apesar de sua mãe ter sido uma MacKenzie, James era um Fraser por completo. Tendo decidido que iria impedir Carlos Stuart, era improvável que abandonasse seus esforços nesse sentido. Ainda assim, era uma isca tentadora, tanto para mim quanto para ele. Poder voltar para a Escócia, para sua casa; viver em paz.

Mas havia outro problema, é claro. Se realmente voltássemos, deixando que os planos de Carlos Stuart seguissem seu curso para o futuro que eu conhecia, qualquer paz na Escócia teria de verdade uma vida curta.

Jamie fez um muxoxo, aparentemente seguira minha própria linha de raciocínio.

— Bem, vou lhe dizer, Sassenach. Se eu achasse que Carlos Stuart pudesse ser bem-sucedido, pudesse livrar a Escócia do domínio inglês, eu lhe daria minhas terras, minha liberdade e a minha própria vida para ajudá-lo. embora não passe de um tolo, é um tolo real, e bastante cavalheiresco, eu acho. — Suspirou.

— Mas eu conheço o sujeito e já conversei com ele... e com todos os Jacobitas que lutaram com seu pai. E considerando-se o que você me disse que acontecerá se chegarmos a uma revolta outra vez... não creio que eu tenha outra escolha senão permanecer aqui, Sassenach. Depois que ele for impedido, então poderá haver uma chance de voltar... ou talvez não. Mas, por enquanto, devo agradecer e declinar a proposta de Sua Excelência.

Dei uns tapinhas em sua perna, delicadamente.

— Foi o que achei que você diria.

Ele sorriu para mim, depois olhou para o creme esbranquiçado que cobria meus dedos.

— Que negócio é esse?

— Um creme que monsieur Forez me deu. Não disse como se chama. Não creio que contenha nenhum ingrediente ativo, mas é um creme bem gorduroso.

O corpo sob minhas mãos enrijeceu-se e Jamie olhou por cima do ombro para o pote azul.

— Monsieur Forez o deu para você? — ele perguntou, inquieto.

— Sim — respondi, surpresa. — Qual o problema? — Ele havia afastado minhas mãos lambuzadas de creme e, atirando as pernas para fora da chaise longue, procurava uma toalha.

— Esse pote tem uma flor-de-lis na tampa, Sassenach? — ele perguntou, limpando o ungüento da perna.

— Tem, sim — respondi. — Jamie, o que há de errado com esta pomada? — A expressão em seu rosto era extremamente peculiar; oscilava entre espanto e divertimento.

— Ah, não diria que haja alguma coisa errada com ela, Sassenach — respondeu finalmente. Tendo esfregado a perna com tanta força que deixou os pêlos encaracolados e ruivo-dourados brilhando sobre a pele vermelha, descartou a toalha e olhou pensativamente para o pote.

— Monsieur Forez deve tê-la em grande consideração, Sassenach — disse. — Isso é um produto caro.

— Mas...

— Não é que eu não tenha gostado — apressou-se a me assegurar. — É que como eu mesmo quase me tornei um ingrediente, me dá uma sensação estranha.

— Jamie! — Senti minha voz elevando-se. — Que negócio é esse? Agarrei a toalha, limpando apressadamente as minhas mãos cobertas da pomada.

— Gordura liberada por homens enforcados — ele respondeu relutantemente.

— E-e-en... — Não consegui sequer pronunciar a palavra e tentei outra vez. — Quer dizer... — Meus braços ficaram arrepiados, os pêlos finos parecendo agulhas numa almofada.

— Isso mesmo. Gordura de criminosos enforcados. — Falou animadamente, recuperando a calma tão rápido quanto eu perdia a minha. — Dizem que é muito bom para reumatismo e doenças das juntas.

Lembrei-me da maneira absolutamente limpa e arrumada com que monsieur Forez juntava os resultados de suas operações no Hôpital dês Anges e a estranha expressão no rosto de Jamie quando ele viu o alto cirurgião acompanhar-me até em casa. Meus joelhos estavam fracos e eu sentia meu estômago dar voltas como uma panqueca.

—Jamie! Quem é o maldito monsieur Forez? — Eu estava quase gritando.

Ele definitivamente estava se divertindo com a situação.

— Ele é o executor público de enforcamentos do Quinto Distrito, Sassenach. Pensei que soubesse.

Jamíe retornou molhado e com frio dos estábulos, onde fora esfregar-se. As abluções necessárias sendo numa escala maior do que a tina no quarto poderia proporcionar.

— Não se preocupe, saiu tudo — assegurou-me, tirando a camisa e enfiando-se nu sob as cobertas. Sua pele estava áspera, arrepiada de frio, e ele estremeceu ligeiramente ao tomar-me nos braços.

— O que foi, Sassenach? Eu não estou com aquele cheiro ainda, estou? — ele perguntou, enquanto eu me mantinha encolhida e imóvel sob os cobertores, envolvendo o corpo com meus próprios braços.

— Não — eu disse. — Estou com medo. Jamie, estou sangrando.

— Santo Deus — ele disse num sussurro. Pude sentir o repentino tremor de medo que percorreu seu corpo às minhas palavras, idêntico ao que percorrera o meu. Apertou-me contra si, alisando meus cabelos e acariciando minhas costas, mas nós dois sentíamos a terrível sensação de impotência diante do desastre físico que torna inúteis suas ações. Apesar de ser tão forte, ele não podia me proteger; por mais vontade que tivesse, não podia ajudar. Pela primeira vez, eu não estava a salvo em seus braços e o conhecimento desse fato nos aterrorizava.

— Você acha — ele começou, depois se interrompeu e engoliu em seco. Pude sentir o tremor percorrer sua garganta e ouvir o som do medo ao ser deglutido. — É grave, Sassenach? Você sabe?

— Não — eu disse. Abracei-o com mais força, tentando encontrar um porto seguro. — Não sei. Não é um sangramento forte; pelo menos, ainda não.

A vela ainda estava acesa. Olhou-me, a expressão sombria de preocupação.

— Quer que eu vá buscar alguém para você, Claire? Uma parteira, uma das mulheres do Hôpital?

Sacudi a cabeça e umedeci meus lábios secos.

— Não. Eu não... eu não acho que haja alguma coisa que se possa fazer.

Era a última coisa que eu queria dizer; mais do que tudo, queria que pudéssemos encontrar alguém que soubesse como fazer tudo voltar ao normal. Mas lembrei-me do início do meu estágio em enfermagem, os poucos dias que passei na enfermaria obstétrica e as palavras de um dos médicos, dando de ombros ao deixar a cabeceira de uma paciente que sofrera um aborto espontâneo. “Não há realmente nada que se possa fazer”, ele dissera. “Se vão perder uma criança, em geral perdem mesmo independentemente do que você faça. Repouso é a única recomendação possível e às vezes nem isso adianta.”

— Pode não ser nada — eu disse, tentando nos animar. — Não é incomum as mulheres terem leves sangramentos às vezes, durante a gravidez. Não era incomum nos primeiros três meses. Eu já estava com mais de cinco meses e isso não era de modo algum habitual. Entretanto, havia inúmeras causas de sangramento possíveis e nem todas eram graves.

— Pode ser que esteja tudo bem — eu disse. Coloquei a mão sobre o ventre, pressionando delicadamente, e senti uma resposta imediata do ocupante, um empurrão preguiçoso, de quem está se espreguiçando, que no mesmo instante me fez sentir melhor. Senti uma onda de esfuziante gratidão que fez as lágrimas brotarem em meus olhos.

— Sassenach, o que posso fazer? — Jamie sussurrou. Passou o braço ao meu redor e sua mão repousou sobre a minha, segurando meu abdômen ameaçado.

Coloquei a outra mão sobre a dele e fiquei segurando-a no lugar.

— Apenas reze — eu disse. — Reze por nós, Jamie.

 

Pela manhã, o sangramento havia parado. Levantei-me com muito cuidado, mas tudo continuou bem. Ainda assim, era óbvio que chegara a hora de parar de trabalhar no Hôpital dês Anges e eu enviei Fergus com um bilhete de explicação e desculpas a madre Hildegarde. Ele retornou com suas preces e bons votos, além de uma garrafa de um elixir marrom muito apreciado — segundo o bilhete que a acompanhava — por lês maítresses sage-femme para a prevenção de aborto. Depois da pomada de monsieur Forez, eu estava mais do que desconfiada de qualquer remédio que eu mesma não tivesse preparado, mas depois de cheirar com toda a cautela a substância, convenci-me de que ao menos os ingredientes eram puramente botânicos.

Após uma considerável hesitação, tomei uma colherada. O líquido era amargo e deixava um gosto ruim na boca, mas o simples ato de fazer alguma coisa — mesmo algo que eu achava que seria inútil — já me fez sentir melhor. Agora, eu passava a maior parte de cada dia deitada na chaise longue em meu quarto, lendo, cochilando, costurando ou simplesmente fitando o espaço vazio com as mãos sobre a barriga.

Isto é, quando estava sozinha. Quando estava em casa, Jamie passava a maior parte do tempo comigo, conversando sobre os negócios do dia ou discutindo as cartas jacobitas mais recentes. O rei Jaime, aparentemente, fora informado sobre o investimento do filho em vinho do Porto e aprovou entusiasticamente a iniciativa como “... um plano muito sólido, que tenho certeza significará um grande passo em proporcionar-lhe os meios Para se estabelecer na França da maneira como eu gostaria de vê-lo estabelecido”.

— Então, Jaime acha que o dinheiro destina-se meramente a estabelecer Carlos como um cavalheiro e dar-lhe alguma posição aqui — eu disse.

Você acha que é possível que ele só tenha isso em mente? Louise esteve aqui hoje à tarde; ela disse que Carlos foi vê-la semana passada, que insistiu em vê-la, embora no começo ela tivesse se recusado a recebê-lo. Ela disse que ele estava muito entusiasmado e orgulhoso de alguma coisa, mas não quis lhe revelar do que se tratava. Continuou apenas a insinuar misteriosamente sobre algo grandioso que ele estava prestes a fazer. “Uma grande aventura” foram as palavras dele, segundo ela. Isso não parece um simples investimento em vinhos, não é?

— Não, não parece. — A expressão de Jamie anuviou-se.

— Humm — eu disse. — Bem, considerando tudo, parece uma boa aposta que Carlos não está pretendendo apenas estabelecer-se com os lucros de sua iniciativa e tornar-se um próspero comerciante de Paris.

— Se eu fosse um jogador, apostaria minha última camisa nisso — Jamie disse. — A pergunta agora é: como podemos detê-lo?

Uma resposta surgiu alguns dias mais tarde, após muita discussão e sugestões inúteis. Murtagh estava conosco no quarto, tendo trazido vários rolos de tecido das docas para mim.

— Disseram que houve uma erupção de bexiga em Portugal — ele observou, soltando as peças de seda trabalhada na cama como se fosse um fardo de tecido grosseiro de juta, usado. — Hoje de manhã chegou de Lisboa um navio carregado de ferro e o capitão do porto passou o pente fino no navio, ele e mais três assistentes. Mas não encontraram nada. Vendo a garrafa de conhaque sobre a minha mesa, encheu metade de um copo grande, de pé, e bebeu-o como água, em goles grandes e saudáveis. Observei a operação boquiaberta, somente desviada do espetáculo pela exclamação de Jamie.

— Bexiga?

— Sim — Murtagh disse, entre um gole e outro. — Varíola. — Ergueu o copo outra vez e retomou seu sistemático refrigério.

— Varíola — Jamie murmurou para si mesmo. — Varíola.

Aos poucos, sua expressão carrancuda desanuviou-se e a ruga vertical entre as sobrancelhas desapareceu. Um olhar profundamente contemplativo assomou ao seu rosto e ele recostou-se na poltrona, as mãos entrelaçadas atrás da nuca, olhando fixamente para Murtagh. O esboço de um sorriso torceu sua boca larga.

Murtagh observou essa atitude com uma resignação consideravelmente cética. Esvaziou o copo e sentou-se impassivelmente em seu banco, enquanto Jamie ficava de pé num salto e começava a andar em círculos em volta do escocês, assobiando pelo meio dos dentes, sem entoar nenhuma música.

— Pelo que vejo, você tem uma idéia, não? — perguntei.

— Ah, sim — ele disse, começando a rir baixinho consigo mesmo. — Ah» sim, isso eu tenho.

Voltou-se para mim, os olhos iluminados de travessura e inspiração.

— Tem alguma coisa em sua caixa de remédios que causasse febre numa pessoa? Ou lhe desse um desarranjo? Ou manchas pelo corpo?

— Bem, sim — respondi devagar, pensando. — Tenho alecrim. Ou pimenta-vermelha. E cáscara-sagrada, é claro, para diarréia. Por quê?

Ele olhou para Murtagh, rindo abertamente, depois, entusiasmado com sua idéia, soltou uma gargalhada e despenteou os cabelos de seu parente, de modo que ficaram em pé como espigões pretos. Murtagh olhou-o furioso, exibindo uma forte semelhança com o macaco de estimação de Louise.

— Ouçam — Jamie disse, inclinando-se para nós de modo conspiratório.

— E se o navio do conde de St. Germain voltasse de Portugal com varíola a bordo?

Olhei-o perplexa.

— Você perdeu o juízo? — perguntei educadamente. — E se voltasse assim?

— Se voltasse assim — Murtagh interrompeu -, eles perderiam a carga. Seria queimada ou jogada no porto, por lei. — Um brilho de interesse surgiu nos olhinhos negros. — E como pretende fazer isso, rapaz?

A euforia de Jamie arrefeceu um pouco, embora a luz em seus olhos permanecesse.

— Bem — admitiu —, ainda não pensei em todos os detalhes, mas para começar...

Foram necessários vários dias de discussão e pesquisa para refinar o plano, mas enfim ficou definido. Cáscara-sagrada para causar diarréia fora rejeitada por ter uma ação debilitante demais. Entretanto, encontrei alguns bons substitutos entre as ervas que mestre Raymond me dera.

Murtagh, equipado com uma pequena bolsa cheia de essência de alecrim, extrato de urtiga e raiz de garança, partiria no fim de semana para Lisboa, onde iria se infiltrar entre os marujos nas tavernas, descobrir qual o navio fretado pelo conde de St. Germain e dar um jeito de viajar nele, enquanto mandaria de volta a informação do nome do navio e da data de Partida para Paris.

— Não, isso é comum — Jamie disse, em resposta à minha pergunta sobre a possibilidade de o capitão achar seu comportamento estranho. –

Quase todos os navios de carga transportam alguns passageiros; quantos conseguirem espremer entre os conveses. E Murtagh terá dinheiro suficiente para fazer dele um acréscimo bem-vindo, nem que tenham que lhe dar a cabine do capitão. — Sacudiu o dedo indicador advertindo Murtagh.

— E alugue uma cabine, entendeu? Não importa quanto custe; vai precisar de privacidade para tomar as ervas e não queremos correr o risco de alguém vê-lo, se você não tiver nada além de uma rede pendurada no fundo do navio. — Examinou seu padrinho com um ar crítico. — Tem um casaco decente? Se subir a bordo parecendo um mendigo, é provável que o joguem no porto antes de descobrirem o que carrega na bolsa.

— Mmuhm — Murtagh disse. O pequeno escocês em geral pouco contribuía para a discussão, mas o pouco que dizia sempre era pertinente e convincente. — E quando é que eu tomo o remédio? — perguntou.

Retirei do bolso a folha de papel onde havia escrito as instruções e dosagens.

— Duas colheres de sopa da garança rosa... é esse aqui... — bati no pequeno frasco de vidro branco, cheio de um líquido rosa-escuro -, a serem tomadas quatro horas antes do momento que planeja demonstrar seus sintomas. Tome outra colher de sopa a cada duas horas após a primeira dose. Não sabemos por quanto tempo terá que manter essa dosagem.

Entreguei-lhe o segundo frasco, este de vidro verde cheio de uma solução preto-arroxeada.

— Isto é essência concentrada de folhas de alecrim. Essa age mais rápido. Tome um quarto do frasco meia hora antes da hora de se apresentar; deve começar a ficar vermelho em meia hora. O efeito passa logo, de modo que vai ter que tomar mais quando puder agir sem ser notado. Peguei outra garrafinha, menor, da caixa de remédios. — E quando estiver com bastante “febre”, pode esfregar o sumo de urtiga nos braços e no rosto, para provocar bolhas. Quer guardar essas instruções?

Sacudiu a cabeça resolutamente.

— Não, eu me lembrarei. Há mais risco em ser encontrado com o papel do que em esquecer quanto tomar. — Virou-se para Jamie. — E você encontrará o navio em Orvieto, rapaz?

Jamie balançou a cabeça, confirmando.

— Sim. com certeza ele vai atracar lá; todos os transportadores de vinho o fazem, para pegar água potável. Se por acaso ele não o fizer, então... — Encolheu os ombros. — Alugarei um barco e tentarei alcançá-lo. Desde que eu suba a bordo antes de o navio chegar a Lê Havre, tudo deve dar certo, mas será melhor se pudermos executar o plano enquanto ainda estivermos perto da costa da Espanha. Não pretendo ficar mais tempo ao mar do que o necessário. — Apontou com o queixo para a garrafa na mão de Murtagh.

— É melhor esperar para tomar esse negócio depois que me vir subir a bordo. Sem testemunhas, o capitão pode seguir o caminho mais fácil e simplesmente jogá-lo pela popa à noite.

Murtagh grunhiu.

— Sim, eles podem tentar. — Tocou o punho de sua adaga, dando

Jamie franziu a testa.

— Não se esqueça do seu papel. Para todos os efeitos, você deve estar com varíola. com sorte, terão medo de tocar em você, mas, só por garantia espere até eu estar ao alcance do seu chamado e estaremos seguros em alto-mar.

— Mmuhm.

Olhei de um para o outro. Embora fosse um plano rebuscado, era provável que funcionasse. Se o capitão do navio pudesse ser convencido de que um de seus passageiros estava infectado com varíola, não iria, em hipótese alguma, levar seu navio para o porto de Lê Havre, onde as restrições sanitárias francesas exigiriam sua destruição. E, diante da necessidade de voltar com sua carga para Lisboa e perder todo o lucro da viagem, ou perder duas semanas em Orvieto enquanto a notícia era enviada a Paris, ele poderia muito bem, em vez disso, consentir na venda da carga para o rico comerciante escocês que acabara de subir a bordo.

A personificação de uma vítima de varíola era o papel crucial nesse fazde-conta. Jamie se oferecera para servir de cobaia no teste das ervas e haviam funcionado magnificamente nele. Sua pele clara ficara vermelhoescura em poucos minutos e o extrato de urtiga provocou bolhas imediatas que podiam ser facilmente tomadas por varíola por um médico de bordo ou um capitão em pânico. E se restasse alguma dúvida, a urina tingida de garança dava uma ilusão absolutamente perfeita de um homem urinando sangue porque a varíola atacou seus rins.

— Santo Deus! — Jamie exclamara, assustado apesar de saber a verdade com a primeira demonstração da eficácia da erva.

— Ah, excelente! — eu dissera, espreitando por cima de seu ombro para o urinol de porcelana branca e seu conteúdo vermelho-vivo. — Melhor do que eu esperava.

— Ah, é? Quanto tempo leva para desaparecer? — Jamie perguntara, olhando para baixo com certo nervosismo.

— Algumas horas, eu acho — eu lhe disse. — Por quê? Dá uma sensação estranha?

— Não exatamente estranha — ele disse, esfregando. — Coça um pouco.

— Isso não é a erva — Murtagh interpôs, sério. — É apenas a condição natural de um rapaz de sua idade. Jamie riu para seu padrinho.

— Ainda se lembra dessa época distante, hein?

— Antes de você ter nascido ou pensado em nascer, rapaz — Murtagh dissera, sacudindo a cabeça.

O pequeno escocês guardou os frascos na bolsa do seu kilt, embrulhando cada um metodicamente num pedaço de couro fino e macio para que não virassem..

— Enviarei notícias sobre o navio e sua largada assim que puder. E encontro com você na costa da Espanha dentro de um mês. Terá o dinheiro antes disso?

Jamie balançou a cabeça afirmativamente.

— Ah, sim. Até o final da semana que vem, eu acho. — Os negócios de Jared haviam prosperado sob a administração de Jamie, mas as reservas em dinheiro vivo não eram suficientes para a compra de uma carga inteira de porto, embora ainda atendessem aos outros compromissos da Casa Fraser. Entretanto, os jogos de xadrez haviam dado frutos em mais de um aspecto e o jovem monsieur Duverney, um proeminente banqueiro, garantira de bom grado um considerável empréstimo para o amigo de seu pai.

— É uma pena que não possamos trazer essa carga para Paris — Jamie observara durante o planejamento -, mas St. Germain com toda a certeza descobriria a trama. Acho que seria melhor vender a carga por meio de um corretor na Espanha, conheço um homem certo para isso em Bilbao. Os lucros serão bem menores do que seriam em Paris, e os impostos mais altos, mas não se pode ter tudo, não é?

— Para mim, basta que possamos pagar o empréstimo de Duverney. — Eu disse. — E por falar em empréstimos, o que o signore Manzetti fará a respeito do dinheiro que emprestou a Carlos Stuart?

— Vai se lamentar, eu acho — disse Jamie alegremente. — E, em seguida arruinar a reputação dos Stuart junto a todos os banqueiros do continente.

— Parece um pouco injusto com o pobre e velho Manzetti — observei.

— Sim, mas não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos, como minha velha avó dizia.

— Você não teve uma velha avó — ressaltei.

— Não — ele admitiu —, mas se tivesse tido, isso é o que ela diria. Deixou de lado a brincadeira, por um instante. — Também não é muito justo com os Stuart. Na verdade, se qualquer um dos senhores jacobitas vier a saber o que andei fazendo, acho que considerarão isso traição e estarão certos. — Esfregou a mão na fronte e sacudiu a cabeça, e eu pude ver a terrível seriedade que seu ar brincalhão escondia.

— Não há outro jeito, Sassenach. Se você estiver certa — e apostei minha vida nisso até agora — trata-se de uma escolha entre as aspirações de Carlos Stuart e as vidas de muitos escoceses. Não tenho nenhum amor pelo rei Jorge, logo eu, com um preço pela minha cabeça?, mas não vejo como eu poderia agir de outro modo.

Franziu o cenho, passando a mão pelos cabelos, como sempre fazia quando estava pensando ou preocupado.

— Se houvesse uma chance de Carlos ser bem-sucedido... sim, seria diferente. Arriscar-se por uma causa honrosa. Mas sua história diz que

Ele não será vitorioso, e devo dizer, por tudo que conheço de Carlos

Stuart, é bem provável que você tenha razão. É meu povo e minha família que estão em risco e se o preço de suas vidas for o ouro de um banqueiro, bem, não parece um sacrifício maior do que o da minha própria honra.

Ele encolheu os ombros num desespero irônico.

— Agora eu passei de roubar a correspondência de Sua Alteza a roubo de banco e pirataria em alto-mar. E tudo indica que nada disso pode ser evitado.

Permaneceu em silêncio por um instante, olhando fixamente para as mãos, entrelaçadas com força sobre a escrivaninha. Depois, virou a cabeça para mim e sorriu.

— Sempre quis ser pirata quando era pequeno — disse. — Pena que não possa usar um sabre.

Fiquei deitada na cama, a cabeça e os ombros apoiados em travesseiros, as mãos levemente unidas sobre meu estômago, pensando. Desde o primeiro alarme, quase não houve sangramento e eu me sentia bem. Ainda assim, qualquer tipo de sangramento neste estágio era motivo de preocupação. Perguntei a mim mesma o que aconteceria se surgisse uma emergência enquanto Jamie estivesse na Espanha, mas pouco adiantava me preocupar. Ele tinha que ir; já havia muito em jogo naquele carregamento de vinho para que qualquer preocupação particular pudesse se intrometer. E se tudo corresse bem, ele estaria de volta bem antes de o bebê nascer.

Nas atuais circunstâncias, quaisquer preocupações pessoais teriam que ser postas de lado, havendo perigo ou não. Carlos, incapaz de conter seu próprio entusiasmo, confidenciara a Jamie que ele em breve encomendaria dois navios — talvez mais — e pedira sua opinião sobre projeto de casco e Contagem de canhões no convés. As cartas mais recentes de seu pai, provenientes de Roma, deixavam transparecer um leve tom de questionamento— com o faro agudo dos Bourbon para a política, Jaime Stuart sentira o cheiro de traição, mas obviamente ainda não fora informado dos planos de Seu filho. Jamie, atolado em cartas decodificadas, achava provável que Filipe da Espanha ainda não houvesse mencionado as iniciativas de Carlos ou o interesse do papa, mas Jaime Stuart também tinha seus espiões.

Após algum tempo, percebi uma ligeira mudança na atitude de Jamie. Olhando para ele, vi que, embora continuasse a segurar um livro aberto sobre os joelhos, ele parara de virar as páginas — ou mesmo de olhar para elas. Em vez disso, seus olhos estavam fixos em mim; ou, para ser mais específica, onde meu robe se abria, bem abaixo do que o decoro recomendaria, embora o decoro não me pareça necessário quando se está na cama com o marido.

Seu olhar estava abstraído, azul-escuro de desejo, e compreendi que embora não fosse socialmente exigido, o decoro na cama com o próprio marido podia ser ao menos prova de consideração, naquelas circunstâncias Havia alternativas, é claro.

Vendo que eu o fitava, Jamie enrubesceu levemente e retornou depressa a um exagerado interesse em seu livro. Virei de lado e coloquei a mão em sua coxa.

— Livro interessante? — perguntei, acariciando-o preguiçosamente.

— Muhm. Ah, sim. — O rubor intensificou-se, mas ele não tirou os olhos da página.

Rindo comigo mesma, enfiei a mão embaixo das cobertas. Ele deixou o livro cair.

— Sassenach! — ele disse. — Você sabe que não pode...

— Eu sei — disse —, mas você pode. Ou melhor, eu posso, por você. Ele retirou minha mão com firmeza e devolveu-a para mim.

— Não, Sassenach. Não seria certo.

— Não? — eu disse, surpresa. — Por que não?

Ele contorceu-se desconfortavelmente, evitando meus olhos.

— Bem, eu... eu não me sentiria bem, Sassenach. Ter o meu prazer, sem poder lhe dar... bem, acho que não seria certo, só isso.

Desatei a rir, deitando a cabeça em sua coxa. — Jamie, você é gentil demais!

— Não sou gentil — disse, indignado. — Mas também não sou tão egoísta... Claire, pare com isso!

— Planejava esperar ainda vários meses? — perguntei, sem parar.

— Eu poderia — ele disse, com toda a dignidade possível nas circunstâncias. — Esperei vin-vin-te e dois anos e posso...

— Não, não pode — eu disse, afastando as cobertas e admirando a forma tão claramente visível sob seu camisolão de dormir. Toquei-o e ele move se levemente, ansioso sob minha mão. — O que quer que Deus tenha planejado para você ser, Jamie Fraser, não era um monge.

com firmeza, ergui sua roupa de dormir.

— Mas... — ele começou a protestar.

— Dois contra um — eu disse, inclinando-me para baixo. — Você perde

Jamie trabalhou com afinco nos dias seguintes, preparando o negócio de vinhos para caminhar sozinho durante sua ausência. Ainda assim, quase todos os dias arranjava tempo para vir sentar-se ao meu lado por alguns instantes depois do almoço. E foi assim que ele estava comigo quando um visitante foi anunciado. As visitas não eram incomuns; Louise vinha quase todos os dias, para conversar sobre gravidez ou lamentar seu amor perdido — embora eu particularmente achasse que ela apreciava Carlos muito mais como o objeto de uma nobre renúncia do que realmente como amante. Ela prometera me trazer alguns doces turcos e, de certa forma, eu esperava seu rosto rechonchudo e rosado espreitar pela porta.

Para minha surpresa, entretanto, o visitante era monsieur Forez. O próprio Magnus o conduziu à minha sala de estar, pegando seu chapéu e sua capa com uma reverência quase supersticiosa.

Jamie pareceu surpreso com a visita, mas levantou-se para cumprimentar o oficial dos enforcamentos educadamente e oferecer-lhe uma bebida.

— Como regra geral, não bebo nada alcoólico — monsieur Forez disse com um sorriso. — Mas eu não insultaria a hospitalidade de minha estimada colega. — Inclinou-se numa mesura cerimoniosa na direção da chaise longue onde eu estava reclinada. — A senhora está bem, não é, madame Fraser?

— Sim — respondi cautelosamente. — Obrigada. — Perguntava-me a que devíamos a honra da visita, pois embora monsieur Forez desfrutasse de considerável prestígio e uma boa riqueza em retribuição por seus serviços oficiais, não creio que seu emprego lhe angariasse muitos convites para jantar. Perguntei-me de repente se homens com o cargo dele teriam alguma vida social.

Ele atravessou o aposento e colocou um pequeno pacote a meu lado na chaise, como um abutre paternalmente trazendo para casa o jantar dos filhotes. Tendo em mente a gordura de homens enforcados, peguei o Pacote com cuidado e pesei-o em minha mão; leve para o tamanho e com um ligeiro cheiro adstringente.

— Uma pequena lembrança de madre Hildegarde — ele explicou. — pelo que sei, é um remédio muito apreciado por lês maítresses sage-femme. Ela escreveu as instruções de uso também. — Retirou do bolso interno do Casaco um bilhete dobrado e selado e entregou-o a mim.

Cheirei o pacote. Folhas de framboesa e saxífraga; mais alguma outra substância que eu não sabia identificar. Esperava que madre Hildegarde também tivesse incluído uma lista dos ingredientes.

— Por favor, agradeça a madre Hildegarde por mim — eu disse. — E como vão todos no Hôpital? — Eu sentia muita falta do meu trabalho lá, bem como das freiras e da estranha diversidade de praticantes de medicina.

Conversamos por algum tempo sobre o Hôpital e seu quadro de pessoal, com a contribuição de um ou outro comentário de Jamie, que de um modo geral, apenas ouvia com um sorriso educado, ou quando o assunto da conversa voltava-se para os aspectos clínicos, enterrava o nariz em seu copo de vinho.

— Que pena — eu disse, pesarosa, quando monsieur Forez terminou de descrever o conserto de uma omoplata esfacelada. — Nunca vi isso ser feito. Sinto muita falta do trabalho cirúrgico.

— Sim, eu também sentirei — monsieur Forez disse, balançando a cabeça e tomando um pequeno gole de seu vinho. Seu copo ainda estava acima do meio; aparentemente, ele não estava brincando sobre sua abstenção de bebidas alcoólicas.

— Está indo embora de Paris? — Jamie perguntou com alguma surpresa. Monsieur Forez encolheu os ombros, as pregas de seu longo casaco farfalhando como penas.

— Só por algum tempo — ele disse. — De qualquer forma, estarei fora por uns dois meses, pelo menos. Na realidade, madame — inclinou a cabeça para mim outra vez -, esse é o principal motivo de minha visita hoje.

— É mesmo?

— Sim. vou para a Inglaterra, sabe, e ocorreu-me que, se o desejar, será uma questão de extrema simplicidade para mim levar qualquer mensagem que deseje. Quer dizer, caso haja alguém com quem queira se comunicar — acrescentou, com sua precisão costumeira.

Relanceei os olhos para Jamie, cujo semblante alterara-se repentinamente, de uma expressão franca de interesse educado para aquela máscara amavelmente sorridente que escondia todo tipo de pensamento. Um estranho não teria notado a diferença, mas eu notei.

— Não — eu disse, hesitante. — Não tenho amigos nem parentes na Inglaterra; receio não ter absolutamente nenhuma conexão lá, desde que eu... fiquei viúva. — Senti a pontada de costume com esta referência a Frank, mas a reprimi.

Se isso pareceu estranho a monsieur Forez, ele não demonstrou. Apenas balançou a cabeça e colocou o copo de vinho pela metade sobre a mesa.

— Compreendo. É muita sorte sua ter amigos aqui, então. — Sua voz parecia conter uma espécie de aviso, mas ele não olhou para mim quando se inclinou para endireitar a meia antes de se levantar. — Bem, eu virei visitá-la ao retornar e espero encontrá-la em boa saúde.

— O que o leva à Inglaterra, monsieur? — Jamie perguntou diretamente. Monsieur Forez voltou-se para ele com um leve sorriso. Inclinou a cabeça para o lado, os olhos brilhantes, e surpreendi-me mais uma vez com sua semelhança a um pássaro grande. Não um urubu no momento, mas uma ave de rapina.

— E o que levaria um homem da minha profissão a viajar,

— Fui contratado para executar meus deveres.

— Uma ocasião importante, imagino — disse Jamie. — Para justificar a convocação de um homem de sua habilidade, quero dizer. — Seus olhos estavam alertas, embora sua expressão não revelasse mais do que um educado interesse.

Os olhos de monsieur Forez tornaram-se mais brilhantes. Ele pôs-se de pé devagar, olhando para Jamie, sentado perto da janela.

— É verdade, monsieur Fraser — ele disse afavelmente. — Pois trata-se de uma questão de habilidade, não tenha dúvida. Estrangular um homem até a morte na ponta de uma corda... pah! Qualquer um pode fazer isso. Mas quebrar um pescoço de forma limpa, com uma queda única e rápida, requer alguns cálculos em termos de peso e queda, e uma certa prática na maneira de colocar a corda, também. Mas percorrer a linha entre esses dois métodos, executar adequadamente a sentença da morte de um traidor... isso requer de fato uma grande habilidade.

Senti a boca seca repentinamente e peguei meu próprio copo.

— A morte de um traidor? — eu disse, achando que não queria mesmo ouvir a resposta.

— Enforcar, extrair e esquartejar — Jamie disse sucintamente. — É isso que quer dizer, é claro, não é, monsieur Forez?

O carrasco balançou a cabeça, confirmando. Jamie levantou-se, parecendo fazê-lo contra sua vontade, encarando o visitante emaciado e vestido de negro. Eram quase da mesma altura e podiam se olhar direto nos olhos sem dificuldade. Monsieur Forez deu um passo em direção a Jamie, a expressão repentinamente absorta, como se estivesse prestes a fazer a demonstração de algum procedimento médico.

— Ah, sim — ele disse. — Essa é a morte do traidor. Primeiro, o sujeito deve ser enforcado, como diz, mas com um bom cálculo, de modo que o pescoço não seja quebrado nem a traquéia esmagada. A asfixia não é o resultado desejado, compreende.

— Ah, compreendo. — A voz de Jamie era afável, quase com um tom de ironia, e eu olhei para ele estupefata.

— É mesmo, monsieur?

Monsieur Forez sorriu debilmente, mas continuou sem esperar por resposta.

— Trata-se, portanto, de uma questão de decidir o momento certo. Você julga pelos olhos. O rosto escurece com o sangue quase imediatamente, mais rápido ainda se a pessoa for de compleição clara, e conforme a asfixia prossegue, a língua é forçada para fora da boca. Isso é o que encanta as multidões, é claro, assim como os olhos saltados. Mas observam-se sinais vermelhos nos cantos dos olhos, assim que os pequenos vasos sangüíneos explodem. Quando isso acontece, é preciso dar imediatamente o sinal para que a corda seja cortada e o indivíduo arriado. Um assistente de confiança é indispensável, compreende — virou-se parcialmente, para me incluir na conversa macabra, e eu balancei a cabeça, me esforçando para parecer natural.

— Então — continuou, voltando-se novamente para Jamie —, é preciso administrar logo um estimulante, para reavivar o sujeito enquanto a camisa é removida. É preciso insistir para que a pessoa use uma camisa com abertura na frente; em geral é difícil tirá-la pela cabeça. — Um dedo fino e longo estendeu-se, apontando para o botão do meio da camisa de Jamie, mas sem tocar o linho recém-engomado.

— Imagino que sim — Jamie disse.

Monsieur Forez recolheu o dedo, balançando a cabeça em aprovação a essa evidência de compreensão.

— Isso mesmo. O assistente já terá acendido a fogueira com antecedência; é uma tarefa considerada abaixo da dignidade do verdugo. Chega, então, a hora da faca.

Fez-se um silêncio mortal no aposento. O rosto de Jamie continuava impenetrável, mas uma fina camada de suor brilhava na lateral do seu pescoço.

— É aqui que é necessário o máximo de habilidade — monsieur Forez explicou, erguendo um dedo de advertência. — É preciso trabalhar rápido, para que o indivíduo não morra antes de você ter terminado. Misturar uma dose que contrai os vasos sangüíneos com o estimulante lhe dará alguns momentos de folga, mas não muitos.

Avistando um abridor de cartas de prata sobre a mesa, atravessou o aposento e pegou-o. Segurou-o com a mão envolvendo o cabo, o dedo indicador apoiado em cima da lâmina, apontada para baixo, para a nogueira lustrosa do tampo da mesa.

— Bem ali — disse, quase sonhadoramente. — Bem na base do esterno. E rapidamente até o topo da junção das virilhas. Na maioria dos casos, pode-se ver o osso com facilidade. De novo — e o abridor de cartas cintilou para um lado e depois para o outro, rápido e delicado como o vôo em ziguezague de um beija-flor -, seguindo os arcos das costelas. Não se deve cortar fundo, pois não se quer furar o saco que contém as entranhas. Ainda assim. é preciso atravessar a pele, a gordura, o músculo, tudo com um só golpe. Isso — ele disse com satisfação, fitando seu próprio reflexo no tampo da mesa — é talento artístico.

Colocou a faca delicadamente na mesa e voltou-se para Jamie, com um estremecimento de satisfação.

— Depois disso, é uma questão de velocidade e de certa destreza. Se você foi preciso em seus métodos, serão poucas as dificuldades. As entranhas ficam seladas dentro de uma membrana, sabe, como um saco. Se você não o cortou por acidente, é uma questão simples, precisando apenas de um pouco de força para enfiar as mãos sob a camada muscular e puxar a massa inteira. Um pequeno corte no estômago e no ânus — olhou com desprezo para o abridor de cartas — e as entranhas podem ser lançadas ao fogo.

“Bem”, ergueu um dedo de advertência, “se você tiver sido rápido e delicado em seu trabalho, terá agora um momento de folga, pois, note bem, até então nenhum grande vaso sangüíneo terá sido cortado.”

Senti uma sensação de desmaio, embora estivesse sentada, e tenho certeza de que meu rosto estava tão lívido quanto o de Jamie. Apesar de muito pálido, ele sorriu, como se estivesse entretendo um convidado.

— De modo que a... pessoa... possa viver um pouco mais?

— Mais oui, monsieur. — Os brilhantes olhos negros do carrasco percorreram a poderosa compleição corporal de Jamie, assimilando a largura dos ombros e as pernas musculosas. — Os efeitos de tal choque são imprevisíveis, mas tenho visto um homem forte viver mais de um quarto de hora nesse estado.

— Imagino que pareça um tempo bem mais longo para o sujeito — Jamie disse secamente.

Monsieur Forez pareceu não ouvir essa observação, pegando o abridor de cartas outra vez e sacudindo-o enquanto falava.

— Então, conforme a morte se aproxima, você precisa enfiar a mão na cavidade do corpo e agarrar o coração. Mais uma vez, é necessária uma grande habilidade. O coração se retrai, sabe, sem o apoio das vísceras e geralmente está bem acima do lugar normal. Além disso, é muito escorregadio. — Limpou uma das mãos na aba de seu casaco numa pantomima. Mas a principal dificuldade está em cortar os grandes vasos sangüíneos acima muito rápido, de modo que o órgão possa ser retirado enquanto ainda está batendo. É preciso agradar a multidão — ele explicou. — Faz muita diferença em termos de remuneração. Quanto ao resto... — encolheu o ombro magro com desdém. — Mera carnificina. Uma vez que a vida foi extinta, não há mais necessidade de habilidades especiais.

— Não, imagino que não — eu disse debilmente.

— Como a senhora está pálida, madame! Já os detive tempo demais com essa conversa tediosa! — exclamou. Ele tomou a minha mão e tive que resistir ao ímpeto de arrancá-la de volta. Sua própria mão era fria, mas o calor de seus lábios quando os roçou de leve na minha foi tão inesperado que apertei os meus dedos de surpresa. Ele deu um leve, quase imperceptível, aperto em minha mão e voltou-se para fazer uma mesura formal para Jamie.

— Devo me retirar, monsieur Fraser. Espero encontrá-lo e à sua encantadora esposa outra vez... em circunstâncias tão agradáveis como as que desfrutamos hoje. — Os dois homens entreolharam-se por um segundo. Em seguida, monsieur Forez pareceu se lembrar do abridor de carta que ele ainda segurava em uma das mãos. com uma exclamação de surpresa estendeu-o na palma da mão. Jamie arqueou uma das sobrancelhas e pegou a faca delicadamente pela ponta.

— Bon voyage, monsieur Forez — ele disse. — E obrigado — sua boca torceu-se ironicamente — por sua visita muito instrutiva.

Ele insistiu em acompanhar nosso visitante até a porta. Sozinha, levantei-me e dirigi-me à janela, onde permaneci, praticando exercícios respiratórios até a carruagem azul-marinho desaparecer na esquina da rue Gamboge.

A porta abriu-se atrás de mim e Jamie entrou. Ainda segurava o abridor de cartas. Atravessou o aposento deliberadamente até a enorme jarra cor-de-rosa que ficava perto da lareira e deixou o abridor de cartas cair no fundo da jarra com um barulho estridente.

— Bem, no que diz respeito a avisos — ele disse —, esse foi muito eficaz. Estremeci ligeiramente.

— Foi mesmo, não?

— Quem você acha que o enviou? — Jamie perguntou. — Madre Hildegarde?

— Acredito que sim. Ela me avisou, quando decodificamos a música. Disse que o que você estava fazendo era perigoso. — Não percebi o quanto era perigoso, até a visita do carrasco. Eu já não sofria de enjôo matinal ha algum tempo, mas senti meu estômago revirar-se.

— Se qualquer um dos senhores jacobitas vier a saber o que andei fazendo, acho que considerarão isso traição. E que medidas tomariam, se viessem a descobrir?

Para todos os efeitos externos, Jamie era um partidário jacobita declarado; sob esse disfarce, ele visitava Carlos, recebia o conde Marischal para jantar e freqüentava a corte. E até agora ele fora muito habilidoso, nos jogos de xadrez, nas visitas às tavernas e nas suas festas, em minar a causa Stuart, ao mesmo tempo externamente parecendo apoiá-la. Além de nós dois, somente Murtagh sabia que pretendíamos frustrar a revolta dos Stuart e nem mesmo ele sabia por quê, apenas aceitando a palavra de seu patrão. A dissimulação era necessária, enquanto estivéssemos operando na França. Mas o mesmo disfarce marcaria Jamie como traidor, se ele um dia pusesse os pés em solo britânico.

Eu sabia disso, é claro, mas em minha ignorância havia pouca diferença entre ser enforcado como um fora-da-lei e executado como um traidor. A visita de monsieur Forez dera um jeito nessa ingenuidade.

— Você está muito calmo em relação a isso — eu disse. Meu próprio coração ainda batia descompassadamente e as palmas de minhas mãos estavam frias, mas suadas. Enxuguei-as na camisola e enfiei-as entre os joelhos para aquecê-las.

Jamie estremeceu ligeiramente e deu um sorriso enviesado para mim.

— Bem, há muitas maneiras desagradáveis de morrer, Sassenach. E se me couber uma delas, não vou gostar muito. Mas a pergunta é: eu estaria com tanto medo da possibilidade que pararia tudo que estou fazendo para evitá-la? — Sentou-se na chaise ao meu lado e segurou uma de minhas mãos entre as suas. Suas palmas estavam quentes e seu corpo sólido junto ao meu era reconfortante.

— Pensei nisso por algum tempo, Sassenach, naquelas semanas na abadia enquanto me recuperava. E de novo, quando vim para Paris. E outra vez, quando conheci Carlos Stuart. — Sacudiu a cabeça, inclinada sobre nossas mãos unidas.

— Sim, eu posso me ver num cadafalso. Eu vi a forca em Wentworth. Eu lhe contei isso?

— Não. Não contou.

Ele balançou a cabeça, os olhos distantes na lembrança.

— Eles nos conduziram ao pátio; aqueles de nós que estavam na cela dos condenados. E nos fizeram formar fileiras no pátio de pedras, para ver a execução. Enforcaram seis homens naquele dia, homens que eu conhecia. Vi cada um deles subir os degraus — eram doze degraus — e ficar parado, as mãos amarradas às costas, olhando para baixo, para o pátio, enquanto colocavam a corda em volta do seu pescoço. E me perguntei como eu conseguiria subir aqueles degraus quando chegasse a minha vez. Eu iria chorar e rezar, como John Sutter, ou iria ficar empertigado, como William MacLeod, e sorrir para um amigo no pátio lá embaixo?

Sacudiu a cabeça repentinamente, como um cachorro enxugando-se, e sorriu para mim de forma um pouco assustadora.

— De qualquer modo, monsieur Forez não me disse nada em que eu já anão houvesse pensado. Mas é tarde demais, mo duinne. — Colocou a mão sobre a minha. — Sim, tenho medo. Mas, se eu não voltaria atrás pela oportunidade de ir para casa em liberdade, não o farei por medo. Não, mo duinne. É tarde demais.

 

A visita de monsieur Forez mostrou ser apenas a primeira de uma série de acontecimentos extraordinários.

— Há um sujeito italiano lá embaixo, madame — Magnus informoume. — Recusou-se a me dar seu nome. — Havia uma expressão contrariada na boca do mordomo; imaginei que se o visitante não quis dar seu nome, fora mais do que propenso a dar ao mordomo várias outras palavras.

Isso, associado à designação “sujeito italiano”, foi o suficiente para me dar uma pista da identidade do visitante. Assim, foi relativamente com pouca surpresa que entrei na sala de estar e encontrei Carlos Stuart em pé junto à janela.

Ele girou nos calcanhares quando entrei, o chapéu nas mãos. Obviamente, ficou surpreso ao ver a mim; a boca abriu-se por um segundo, depois ele recuperou a compostura e fez uma breve e rápida reverência para me cumprimentar.

— Milorde Broch Tuarach não está em casa? — perguntou. Suas sobrancelhas uniram-se de insatisfação.

— Não, não está — eu disse. — Aceita um refresco, Alteza?

Olhou com interesse ao redor da sala de estar ricamente mobiliada, mas sacudiu a cabeça. Pelo que eu soubesse, ele só havia estado na casa uma vez antes, quando veio por cima dos telhados de seu rendezvous com Louise. Nem ele nem Jamie acharam apropriado que ele fosse convidado para os jantares aqui; sem o reconhecimento oficial de Luís, a nobreza francesa o desprezava.

— Não. Obrigado, madame Fraser. Não vou me demorar; meu criado está à minha espera lá fora e é um longo trajeto até o lugar onde moro. Queria apenas fazer um pedido a meu amigo James.

— Ha... bem, tenho certeza de que meu marido teria prazer em atender Vossa Alteza, se ele puder — respondi cautelosamente, imaginando qual seria o favor. Um empréstimo, talvez; as informações colhidas por Fergus recentemente incluíam um número considerável de cartas impacientes de alfaiates, fabricantes de botas e outros credores.

Carlos sorriu, a expressão alterando-se para uma doçura surpreendente.

— Eu sei; não posso dizer-lhe, madame, o quanto estimo a devoção e os serviços de seu marido; a visão de seu rosto leal aquece meu coração na solidão do meu atual ambiente.

— Oh? — exclamei.

— O que eu peço não é algo difícil — assegurou-me. — É que eu fiz um pequeno investimento; um carregamento de vinho do Porto engarrafado.

— É mesmo? — eu disse. — Que interessante. — Murtagh partira para Lisboa naquela manhã, frascos de extrato de urtiga e de garança na bolsa do kilt.

— É um pequeno favor — Carlos abanou a mão nobre, desdenhando o investimento de cada centavo que conseguira tomar emprestado. — Mas eu queria que meu amigo James realizasse a tarefa de desfazer-se da carga, assim que ela chegar. Não é apropriado, sabe — e, nesse ponto, ele endireitou os ombros e levantou o nariz apenas um pouquinho, quase inconscientemente —, para uma pessoa como eu ser vista envolvida com comércio.

— Sim, compreendo perfeitamente, Alteza — eu disse, mordendo o lábio. Perguntei-me se ele havia expressado esse ponto de vista a seu sócio nos negócios, St. Germain, que, sem dúvida, considerava o jovem pretendente ao trono escocês uma pessoa de menor importância do que qualquer um dos nobres franceses, que se envolviam em “comércio” de corpo e alma, sempre que a oportunidade de lucro se oferecia.

— Vossa Alteza está sozinho nesse empreendimento? — perguntei inocentemente.

Ele franziu ligeiramente a testa.

— Não, eu tenho um sócio; mas ele é francês. Eu preferia confiar os rendimentos da minha iniciativa nas mãos de um compatriota. Além do mais — acrescentou pensativamente -, ouvi dizer que meu caro James é um comerciante muito astuto e capaz; talvez ele consiga aumentar o valor do meu investimento por meio de uma venda judiciosa.

Imaginei que quem quer que tivesse lhe falado da capacidade de Jamie não se preocupara em acrescentar a informação de que provavelmente não havia nenhum outro comerciante de vinho em Paris com quem St. Germain menos simpatizasse. Ainda assim, se tudo funcionasse como planejado, isso não teria importância. E se não funcionasse, provavelmente St. Germain resolveria todos os nossos problemas estrangulando Carlos Stuart, quando descobrisse que este último contratara a entrega da metade de seu exclusivo Porto Gostos a seu mais odiado concorrente.

— Tenho certeza de que meu marido fará todo o possível para dispor a mercadoria de Vossa Alteza com o máximo de benefício para todos os envolvidos — eu disse, falando a mais pura verdade.

Sua Alteza agradeceu-me educadamente, como convinha a um príncipe, aceitando o serviço de um súdito leal. Fez uma mesura, beijou minha mão com grande formalidade e partiu com infindáveis protestos de gratidão a Jamie. Magnus, não parecendo nem um pouco impressionado com a visita real, fechou a porta às suas costas.

Nesse dia, Jamie só voltou para casa quando eu já havia adormecido, mas contei-lhe durante o desjejum sobre a visita de Carlos e sobre seu pedido.

— Meu Deus, será que Sua Alteza vai contar ao conde? — ele disse. Após ter garantido a saúde de seus intestinos dando cabo do seu mingau rapidamente, continuou com um desjejum francês de pãezinhos com manteiga e chocolate fumegante. Um largo sorriso atravessava seu rosto enquanto contemplava a reação do conde, tomando pequenos goles do chocolate

— Será que é crime de lèse-majesté surrar um príncipe exilado? Porque se não for, espero que Sua Alteza tenha Sheridan ou Balhaldy perto dele quando St. Germain souber disso.

Novas especulações ao longo dessa linha foram abreviadas pelo barulho repentino de vozes no corredor. Um instante depois, Magnus surgiu à porta trazendo um bilhete na bandeja de prata.

— Com licença, milorde — ele disse, com uma reverência. — O mensageiro que trouxe este bilhete insistiu para que lhe fosse entregue imediatamente.

Com as sobrancelhas erguidas, Jamie pegou o bilhete da bandeja, abriu-o e leu-o.

— Ah, droga! — disse, contrariado.

— O que foi? — perguntei. — Não é notícia de Murtagh tão depressa, é? Ele sacudiu a cabeça.

— Não. É do contramestre do depósito.

— Problema nas docas?

Uma estranha mistura de emoções era visível no rosto de Jamie; a impaciência lutando com o divertimento.

— Bem, não exatamente. O sujeito se meteu numa confusão num bordel, ao que parece. Humildemente me pede perdão — indicou com ironia o bilhete -, mas espera que eu possa ir lá lhe dar uma ajuda. Em outras palavras — traduziu, embolando o guardanapo ao se levantar —, eu poderia pagar a conta?

— E poderia? — perguntei, achando graça.

Ele riu com sarcasmo e sacudiu as migalhas do colo.

— Acho que vou ter que pagar, a menos que eu queira supervisionar o depósito eu mesmo... e não tenho tempo para isso. — Franziu o cenho, enquanto repassava mentalmente as tarefas do dia. Era uma função que podia levar algum tempo e havia outros pedidos de mercadorias sobre sua mesa, capitães de navios aguardando nas docas e barris esperando no depósito.

— É melhor levar Fergus comigo para entregar recados — disse, resignado. — Talvez ele possa ir a Montmartre com uma carta, caso eu não tenha tempo.

— Corações bondosos valem mais do que coroas — eu disse a Jamie enquanto ele estava parado junto à escrivaninha, folheando mélancolicamente a impressionante pilha de documentos que o aguardava.

— Ah, é mesmo? — ele disse. — E de quem é esta opinião?

— Alfred, lorde Tennyson, eu creio. Acho que ele ainda não nasceu, nas é um poeta. Tio Lamb possuía um livro de famosos poetas ingleses. Havia um pouco de Burns lá também, lembro-me, é um escocês — expliquei. -Ele disse: “Liberdade e uísque andam juntos.”

Jamie riu ironicamente.

— Não sei dizer se ele é um poeta, mas ao menos é escocês. — Sorriu e inclinou-se para beijar-me na testa. — Estarei em casa para o almoço, mo duine. Cuide-se.

Terminei meu próprio desjejum e economicamente acabei com a torrada de Jamie também, depois fui gingando para o andar de cima, para meu cochilo matinal. Eu tivera pequenos episódios de sangramento desde o primeiro alarme, embora nada além de uma ou duas nódoas, e absolutamente nada por várias semanas. Ainda assim, mantinha-me de repouso, na cama ou na chaise, a maior parte do tempo. Só me aventurava no salão embaixo para receber visitantes ou na sala de jantar para fazer as refeições com Jamie. Quando desci para o almoço, entretanto, vi a mesa posta para uma pessoa.

— Milorde ainda não voltou? — perguntei, surpresa. O idoso mordomo sacudiu a cabeça.

— Não, milady.

— Bem, imagino que logo estará aqui; mande deixar comida para ele, quando chegar.

Eu estava faminta demais para esperar por Jamie; os enjôos tendiam a retornar se eu passasse muito tempo sem comer.

Após o almoço, deitei-me para repousar outra vez. As relações conjugais estando temporariamente suspensas, não havia muito o que fazer na cama, além de ler ou dormir, o que significava que eu fazia muito de ambos. Dormir de barriga para baixo era impossível, de costas era desconfortável, já que fazia o bebê contorcer-se. Conseqüentemente, eu me deitava de lado, dobrando-me em volta do meu crescente abdômen como um camarão de coquetel em volta de uma alcaparra. Eu quase nunca dormia profundamente, mas tendia a cochilar, deixando minha mente vagar para os movimentos erráticos e delicados da criança.

Em algum lugar dos meus sonhos, achei que sentia Jamie perto de mim, mas quando abri os olhos o quarto estava vazio. Fechei os olhos de novo, embalada como se eu, também, flutuasse sem peso num mar com temperatura do sangue.

Finalmente, no fim da tarde, fui acordada com uma delicada batida na porta do quarto.

— Entre! — eu disse, piscando quando acordei. Era o mordomo Magnus, desculpando-se e anunciando mais visitas.

— É a princesa de Rohan, madame — disse. — A princesa queria esperar até que a senhora acordasse, mas quando madame d’Arbanville também chegou, achei que talvez...

— Tudo bem, Magnus — eu disse, sentando-me com dificuldade e colocando os pés para fora da cama. — vou descer.

Eu gostava de receber visitas. No último mês, havíamos parado de realizar jantares e festas e eu sentia falta da agitação e das conversas, por mais tolas que fossem. Louise vinha com freqüência, regalando-me com os últimos mexericos da corte, mas já fazia algum tempo que eu não via Marie d’Arbanville. Perguntei-me o que a traria aqui hoje.

Eu estava suficientemente desajeitada para descer a escada devagar, o meu peso fazendo os degraus rangerem sob a sola dos meus pés a cada passo. A porta de almofadas da sala de visitas estava fechada, mas ouvi claramente uma voz em seu interior.

— Você acha que ela já sabe?

A pergunta, feita no tom de voz baixo que pressagia os mexericos mais escandalosos, chegou a mim quando eu estava prestes a entrar na sala. Ao invés disso, parei na soleira, fora do alcance de visão.

Fora Marie d’Arbanville quem falara. Bem-vinda em todo lugar por causa da posição de seu idoso marido, e muito afeita à vida social até para os padrões franceses, Marie ouvia tudo que valia a pena ser ouvido nos círculos de Paris.

— Já sabe do quê? — A resposta foi de Louise; sua voz alta, sonora, possuía a perfeita autoconfiança da aristocrata inata, que não se importava com quem pudesse ouvir o que dizia.

— Ah, você ainda não sabe! — Marie agarrou-se à oportunidade como uma gatinha, encantada por achar um novo ratinho para brincar. — Meu Deus! É claro, eu mesma só soube uma hora atrás.

E veio correndo até aqui para me contar tudo, pensei. O que quer que fosse. Achei que eu tinha uma chance melhor de ouvir a versão não expurgada de minha posição no corredor.

— Trata-se de milorde Broch Tuarach — Marie disse. Eu não precisava vê-la para imaginá-la inclinando-se para frente, os olhos verdes correndo de um lado para o outro, saltando de prazer com as novidades. — Hoje de manhã, ele desafiou um inglês para um duelo, por causa de uma prostituta.

— O quê? — O grito de surpresa de Louise abafou minha própria respiração sufocada. Agarrei-me a uma mesinha, pontos negros flutuando diante dos meus olhos enquanto o mundo parecia desaparecer sob meus pés.

— Ah, sim! — Mare dizia. — Jacques Vincennes estava lá; contou tudo a meu marido! Foi naquele bordel perto do mercado de peixes. Imagine ir a um bordel a esta hora da manhã! Os homens são tão estranhos. De qualquer forma, Jacques estava tomando um drinque com madame Elise, a dona do lugar, quando de repente ouviu-se um grito pavoroso no andar de cima e todo tipo de gritos e pancadas.

Parou para recuperar o fôlego — e para dar um efeito dramático — e eu ouvi o som de líquido sendo servido.

— Assim, Jacques, é claro, correu para as escadas... bem, de qualquer forma, isso é o que ele diz; acho que, na verdade, ele se escondeu atrás do sofá, ele é um grande covarde... e depois de mais gritos e pancadaria, ouviu-se um barulho terrível e um oficial inglês foi empurrado escada abaixo, seminu, sem peruca, cambaleando e batendo contra as paredes E quem aparece no alto das escadas, parecendo o vingador de Deus, se não nosso pettt James!

— Não! E eu teria jurado que ele seria o último... mas continue! O que aconteceu depois?

Uma xícara tilintou suavemente contra um pires e, em seguida, ouviu-se a voz de Mare, livre das modulações da discrição pela absoluta empolgação.

— Bem... o sujeito chegou ao pé da escada sem cair, por algum milagre, e ele virou-se instantaneamente e olhou para lorde Tuarach. Jacques diz que o sujeito estava controlado demais para alguém que acabara de ser chutado escada abaixo com as calças abertas. Ele sorriu, não um verdadeiro sorriso, sabe, mas daquele tipo asqueroso, e disse: “Não há necessidade de violência, Fraser. Você podia ter esperado a sua vez, não é? Pensei que ja tivesse o suficiente em casa. Mas alguns homens só têm prazer quando Pagam por ele.”

Louise emitiu alguns ruídos de espanto.

— Que horror! O canaille! Mas, claro, não se pode censurar milorde Tuarach. — Pude ouvir a tensão em sua voz conforme a amizade lutava com a necessidade de falar da vida alheia. Como era de se esperar, a bisbilhotice venceu.

— Milorde Tuarach não pode desfrutar os favores de sua mulher no momento; ela está grávida e a gravidez é perigosa. Então, é claro, ele foi aliviar suas necessidades em um bordel. Que homem agiria de outra forma? Mas continue, Mare! O que aconteceu depois?

— Bem. — Marie inspirou fundo antes de atingir o ponto alto da história. — Milorde Tuarach desceu as escadas correndo, agarrou o inglês pela garganta e sacudiu-o como um rato!

— Non! Ce nest pás vrai!

— Ah, sim! Foram necessários três criados da madame para segurá-lo. Um homem tão grande e maravilhoso, não? com um ar tão feroz!

— Sim, mas e depois?

— Ah... bem, Jacques disse que o inglês ficou arquejando por uns instantes, depois se endireitou e disse para milorde Tuarach: “Já é a segunda vez que você quase me mata, Fraser. Um dia desses vai acabar conseguindo.” Então milorde Tuarach praguejou naquela terrível língua escocesa, que eu não entendo uma palavra, livrou-se dos homens que o seguravam, deu um tapa no rosto do inglês com a mão sem luva — Louise sufocou um gritinho diante do insulto — e disse: “Amanhã, o nascer do sol o verá morto!” Em seguida, virou as costas e subiu as escadas correndo. O inglês foi embora. John disse que ele estava lívido! Não é de admirar! Imagine!

Eu imaginava muito bem.

— A senhora está bem, madame? — A voz ansiosa de Magnus abafou as subseqüentes exclamações de Louise. Estendi a mão, tateando, e ele agarrou-a imediatamente, colocando a outra sob o meu cotovelo para apoiar-me.

— Não. Não estou bem. Por favor... podia dizer isso às senhoras? — Fiz um gesto fraco indicando a sala de visitas.

— Claro, madame. Logo em seguida, mas deixe-me levá-la a seu quarto primeiro. Por aqui, chère madame... — Conduziu-me pelas escadas, murmurando palavras de conforto enquanto me amparava. Acompanhou-me até a chaise do quarto, onde me deixou, prometendo enviar uma criada imediatamente para me assistir.

Não esperei pela ajuda; depois do choque inicial, eu conseguia me movimentar bem. Levantei-me e atravessei o quarto até onde estava minha pequena caixa de remédios, sobre a penteadeira. Eu não sentia que ia desmaiar agora, mas havia um frasco de amônia na caixa que eu queria ter a mão, só por garantia.

Levantei a tampa e parei, imóvel, olhando fixamente para a caixa. Por um instante, minha mente recusou-se a registrar o que meus olhos viam, uma folha de papel branco dobrada, desveladamente colocada entre as garrafinhas multicores. Notei, um pouco abstraidamente, que meus dedos tremiam quando peguei o papel; foram necessárias várias tentativas para abri-lo.

Sinto muito. As palavras eram arrojadas e pretas, as letras cuidadosamente alinhadas no centro do papel, um “J” solitário desenhado com igual esmero. E abaixo delas, mais duas palavras, essas rabiscadas de modo apressado como um postscript de desespero: Eu preciso!

— Você precisa — murmurei comigo e, então, meus joelhos dobraram-

Deitada no chão, com as almofadas de madeira trabalhada no teto oscilando indistintamente acima, vi-me pensando que até então eu sempre achara que a tendência das mulheres do século XVIII de desmaiarem devia-se a espartilhos muito apertados; agora, eu achava que devia-se à idiotice dos homens da época.

Ouviu-se um grito de horror de algum lugar próximo; em seguida, mãos obsequiosas ergueram-me e eu senti a maciez do colchão estofado de lã sob meu corpo e panos frios na minha testa e nos meus pulsos, cheirando a vinagre.

Logo recobrei os poucos sentidos que me restavam, mas não me sentia nem um pouco inclinada a falar. Assegurei às criadas que estava realmente bem, mandei que se retirassem e fiquei deitada de costas, apoiada nos travesseiros, tentando pensar.

Erajack Randall, é claro, e Jamie fora matá-lo. Esse era o único pensamento nítido no redemoinho de horror e especulação que enchia minha mente. Mas por quê? O que poderia tê-lo levado a quebrar a promessa que me fizera?

Tentando considerar com toda a cautela os acontecimentos que Marie relatara — apesar de virem em terceira mão —, achei que devia haver algo mais além do simples choque de um encontro inesperado. Eu conhecia o capitão, conhecia-o bem melhor do que gostaria. E se havia alguma coisa da qual eu tinha certeza, é que ele não estaria comprando os serviços usuais de um bordel — o simples prazer com uma mulher não fazia parte de sua natureza. O que ele gostava — precisava — era de dor, medo e humilhação.

Essas mercadorias, é claro, também podiam ser compradas, ainda que a um preço mais alto. Eu já vira o suficiente, em meu trabalho no Hôpital dês Anges, para saber que havia lês putains cujo principal artigo de comércio não estava entre as pernas, mas em ossos fortes, cobertos com uma pele clara e frágil que ficava imediatamente contundida e mostrava marcas de chicotadas e surras.

E se Jamie, a própria pele marcada de cicatrizes deixadas pela ação dele, tivesse se deparado com o capitão, divertindo-se de maneira semelhante com uma das mulheres do estabelecimento — isso, eu achava, Poderia tê-lo levado além de qualquer promessa ou restrição. Havia uma Pequena marca no lado esquerdo de seu peito, logo abaixo do mamilo; uma minúscula cicatriz de pele esbranquiçada e esgarçada, de onde ele cortara de sua pele a marca registrada de Jonathan Randall, feita com seu anel de sinete em brasa. A fúria que o levara a preferir sofrer mutilação a carregar aquela marca obscena poderia facilmente vir à tona outra vez, para destruir seu algoz — e sua infeliz descendência.

— Frank — eu disse, e minha mão curvou-se involuntariamente sobre o ouro de minha aliança de casamento. — Ah, meu Deus. Frank. — para Jamie, Frank não passava de um fantasma, a remota possibilidade de um refúgio para mim, no caso improvável de necessidade. Para mim, Frank era o homem com quem eu vivera, com quem compartilhara minha cama e meu corpo... e a quem abandonara, por fim, para ficar com Jamie Fraser

— Não posso — murmurei para o vazio do quarto, para o pequeno companheiro que se espreguiçava e contorcia-se preguiçosamente dentro de mim, sem se deixar perturbar com minha própria agonia. — Não posso deixá-lo fazer isso!

A luz da tarde havia esmaecido e se transformado nas sombras cinzentas do anoitecer e o quarto parecia repleto de todo o desespero do fim do mundo. Amanhã, o nascer do sol o verá morto! Não havia esperança de encontrar Jamie esta noite. Eu sabia que ele não retornaria à rue Tremoulins; ele não teria deixado aquele bilhete se pretendesse voltar. Ele jamais conseguiria ficar deitado ao meu lado a noite inteira, sabendo o que pretendia fazer pela manhã. Não, ele certamente buscara refúgio em alguma hospedaria ou taverna, para ali se preparar, sozinho consigo mesmo, para a execução da justiça que prometera.

Eu achava que sabia qual seria o local do confronto. com a lembrança de seu primeiro duelo vivida na mente, Jamie tosara o cabelo para se preparar. A lembrança lhe viria novamente, eu tinha certeza, quando da escolha de um local para defrontar-se com o inimigo. O Bois de Boulogne, perto do caminho dos Sete Santos. O bosque era um lugar popular para duelos ilícitos, sua vegetação densa abrigando os participantes, dificultando sua descoberta. Amanhã, uma de suas clareiras sombrias veria o encontro de Jamie Fraser e Jack Randall. E eu permaneci deitada na cama, sem me preocupar em trocar de roupa ou me cobrir, as mãos cruzadas em cima da barriga. Vi o crepúsculo transformar-se em escuridão e soube que não conseguiria dormir naquela noite. Reconfortei-me como pude com os leves movimentos de meu oculto habitante, o eco das palavras de Jamie soando em meus ouvidos. Amanhã, o nascer do sol o verá morto!

O Bois de Boulogne era uma pequena região de floresta praticamente virgem, empoleirada de modo inadequado na periferia de Paris. Dizia-se que lobos, bem como raposas e texugos ainda podiam ser encontrados espreitando em suas profundezas, mas essas histórias não desencorajavam os casais de amantes que namoravam sob a copa das árvores na relva do solo da floresta. Era uma fuga do barulho e da sujeira da cidade e somente sua localização impedia que se transformasse num pátio de lazer para a nobreza. Assim, era patrocinado em grande parte por aqueles que residiam nas proximidades, que encontravam um momento de descanso à sombra dos enormes carvalhos e dos pálidos vidoeiros do bosque, e por aqueles de mais longe que buscavam privacidade.

Era um bosque pequeno, mas ainda assim grande demais para percorrer a pé, à cata de uma clareira suficientemente ampla para abrigar um par de duelistas. Começara a chover durante a noite e a aurora surgira relutantemente, sombria e turva, através de um céu carregado de nuvens escuras. A floresta sussurrava consigo mesma, o débil tamborilar da chuva na folhagem misturando-se ao ruge-ruge amortecido do roçar de folhas e galhos. A carruagem parou na estrada que atravessava o Bois, perto do último aglomerado de construções caindo aos pedaços. Eu dissera ao cocheiro o que fazer; ele desceu do seu banco, amarrou os cavalos e desapareceu entre os prédios. As pessoas que moravam perto do bosque sabiam o que acontecia por lá. Não podia haver muitos lugares apropriados para um duelo; os existentes deviam ser conhecidos.

Recostei-me e enrolei melhor o pesado manto ao meu redor, tremendo no frio do começo da manhã. Sentia-me muito mal, de cansaço pela noite sem dormir e do peso de chumbo que o medo e a dor colocavam na boca do meu estômago. Subjacente a tudo, havia uma raiva efervescente que eu tentava afastar, com receio que interferisse na tarefa que eu tinha diante de mim.

Mas ela continuava a se insinuar de volta, fervilhando sempre que eu abaixava a guarda, como agora. Como ele pôde fazer isso?, minha mente continuava a ruminar, numa raiva fria. Eu não deveria estar ali; deveria estar em casa, descansando tranqüilamente ao lado de Jamie. Não devia ter que vir atrás dele, impedi-lo, lutando contra a raiva e a doença. Uma dor incômoda, provocada pela viagem de coche, latejava na base da minha espinha dorsal. Sim, ele devia estar muito zangado; eu podia entender isso.

Mas era a vida de um homem que estava em jogo, pelo amor de Deus!

Como podia esse maldito orgulho ser mais importante do que isso? E deixar-me, sem nem uma palavra de explicação! Deixar que eu descobrisse pelos mexericos de vizinhos o que acontecera.

— Você me prometeu, Jamie, droga, você me prometeu — murmurei, entre dentes. O bosque estava silencioso, orvalhado e imerso em neblina. Eles já teriam chegado? Já estariam ali? Eu teria errado o lugar?

O cocheiro reapareceu, acompanhado de um rapaz, talvez de uns catorze anos, que subiu agilmente para a boléia, sentou-se ao lado do cocheiro e sacudiu a mão, gesticulando para a frente e para a esquerda com um rápido estalo do chicote e outro da língua, o cocheiro instigou os cavalos a um trote lento. Nós saímos da estrada e entramos nas sombras do bosque que começava a despertar.

Paramos duas vezes, esperando enquanto o rapaz descia e lançava-se mato a dentro, toda vez ressurgindo em poucos instantes, sacudindo a cabeça em sinal negativo. Na terceira vez, ele voltou apressado, a empolgação tão evidente em seu rosto que eu já havia aberto a porta da carruagem antes que ele pudesse se aproximar o suficiente para gritar para o cocheiro.

Eu já tinha o dinheiro na mão; enfiei-o em sua mão, ao mesmo tempo agarrando-o pela manga e dizendo:

— Mostre-me onde é! Depressa, depressa!

Mal notei os galhos entrelaçados que atravessavam o caminho, nem a repentina umidade que encharcava minhas roupas conforme eu roçava por eles. O solo era acolchoado de folhas mortas, e nem meus sapatos nem os do meu guia faziam qualquer ruído enquanto eu seguia a sombra de sua camisa rasgada e molhada em alguns lugares.

Eu os ouvi antes de vê-los; já haviam começado. O barulho de metal contra metal era abafado pelos arbustos, mas ainda assim muito claro. Nenhum pássaro cantava na aurora úmida, mas a voz mortal da luta ressoava em meus ouvidos.

Era uma clareira larga, nas profundezas do Bois, mas acessível por uma trilha e pela estrada. Suficientemente larga para acomodar os movimentos com os pés necessários a um duelo sério. Haviam despido os casacos e estavam apenas de camisa, lutando na chuva, o tecido molhado grudando no corpo, revelando os contornos do ombro e da espinha dorsal.

Jamie dissera que ele sabia lutar melhor; podia ser, mas Jonathan Randall também não era um espadachim medíocre. Ele contorcia-se e esquivava-se, flexível como uma cobra, a espada golpeando como uma presa de serpente de prata. Jamie era igualmente rápido, com uma graça surpreendente para um homem tão alto, os pés leves e ligeiros, as mãos farmes. Fiquei observando, grudada ao solo, com medo de gritar e desviar a atenção de Jamie. Eles giravam num círculo estreito de ataque e defesa, os pés tocando de leve o solo como uma dança sobre a grama.

Permaneci imóvel, observando. Eu viera no fim da noite para encontrá-los, para impedi-los. Embora os tivesse encontrado, agora eu não podia intervir, por medo de causar uma interrupção fatal. Tudo que eu podia fazer era esperar, para ver qual dos meus dois homens morreria.

Randall brandia sua lâmina no alto e na posição certa para desviar-se do ataque, mas não foi rápido o suficiente para aparar a selvageria do golpe. que enviou sua espada pelos ares. Abri a boca para gritar. Eu pretendia chamar o nome de Jamie, fazê-lo parar agora, naquele momento de misericórdia entre o desarme do adversário e o golpe mortal que deveria ser desferido em seguida. De fato, eu gritei, mas o som emergiu fraco e estrangulado. À medida que permaneci ali, observando, a dor nas minhas costas intensificou-se, apertando como uma garra. Nesse instante, senti uma ruptura repentina em algum lugar, como se a garra tivesse arrancado e soltado o que segurava.

Tateei loucamente e agarrei um galho próximo. Vi o rosto de Jamie, impávido numa espécie de calma exultação, e compreendi que ele não podia ouvir nada através da névoa de violência que o envolvia. Ele não veria nada exceto seu objetivo, até que a luta terminasse. Randall, recuando diante da lâmina inexorável, escorregou na grama molhada e caiu. Arqueou as costas, tentando se levantar, mas a grama estava escorregadia. O tecido do lenço ao seu pescoço estava rasgado e sua cabeça atirada para trás, os cabelos escuros encharcados pela chuva, a garganta exposta como a de um lobo pedindo clemência Mas a vingança não conhece a misericórdia e não foi a garganta exposta que a lâmina descendente buscou.

Através de uma névoa cada vez mais escura, vi a espada de Jamie descer, graciosa e mortal, fria como a morte. A ponta tocou a cintura das calças de pele de veado, perfurou-a e veio cortando para baixo numa torção violenta que escureceu o castanho-claro com um repentino fluxo de sangue vermelho-escuro.

O sangue era umjorro quente descendo pelas minhas coxas e o frio na minha pele movia-se para dentro, em direção à base de minha espinha dorsal. O osso onde minha pélvis unia-se às minhas costas estava se quebrando, eu podia sentir a tensão conforme cada onda de dor me engolfava, a descarga de um raio queimando pela minha coluna para explodir e arder na base de meus quadris, um raio de destruição, deixando campos queimados e enegrecidos em seu rastro.

Meu corpo, assim como meus sentidos, parecia se esfacelar. Não via nada, mas não sabia dizer se meus olhos estavam fechados ou abertos, tudo estava girando, escurecendo, manchado de vez em quando pelos padrões em movimento que você vê à noite quando é criança, quando pressiona os punhos fechados contra as pálpebras cerradas.

As gotas de chuva batiam em meu rosto, na minha garganta, nos meusombros. Cada gota pesada caía, fria, depois se dissolvia em um minúsculo córrego morno, percorrendo minha pele enregelada. A sensação era bem distinta, separada da agonia de violentas contorções que avançavam e recuavam, mais abaixo. Tentei concentrar minha mente nas gotas da chuva, forçar minha atenção a se desviar da voz distante e fraca no centro do meu cérebro, aquela que dizia, como se fizesse anotações num boletim clínico:

“Você está tendo uma hemorragia, é claro. Provavelmente, houve ruptura de placenta, a julgar pela quantidade de sangue. Em geral, é fatal. A perda de sangue acarreta o entorpecimento das mãos e dos pés, e o escurecimento da visão. Dizem que a audição é o último sentido a se apagar. Parece que isso é verdade.”

Se a audição era o último dos meus sentidos a permanecer ou não, eu ainda podia ouvir. E o que ouvia eram vozes, muito agitadas, algumas pedindo calma, todas falando em francês. Havia uma palavra que eu podia ouvir e entender — meu próprio nome, gritado incessantemente, mas a uma grande distância.

— Claire! Claire!

—Jamie — tentei dizer, mas meus lábios estavam rígidos e entorpecidos de frio. Eu era incapaz de qualquer tipo de movimento. A comoção ao meu redor estava se estabelecendo num nível mais equilibrado; alguém tinha chegado e, ao menos, estava disposto a agir como se eles soubessem o que fazer.

Talvez soubessem. O forro ensopado da minha saia foi delicadamente levantado do meio de minhas coxas e um grosso chumaço de pano macio colocado com firmeza em seu lugar. Mãos obsequiosas viraram-me sobre meu lado esquerdo e puxaram meus joelhos para cima, em direção ao meu peito.

— Levem-na para o Hôpital — sugeriu uma voz perto do meu ouvido.

— Ela não vai viver até chegar lá — disse outra, com pessimismo. — É melhor esperar alguns minutos e depois mandar buscar o rabecão.

— Não — insistiu outra voz. — O sangramento está diminuindo; ela pode viver. Além do mais, eu a conheço; já a vi no Hôpital dês Anges. Levem-na para madre Hildegarde.

Reuni todas as forças que tinha e consegui murmurar:

— Madre.

Em seguida, desisti de lutar e deixei que a escuridão me envolvesse.

 

O teto alto, abobadado, acima de mim, era apoiado por ogivas, aqueles arcos arquitetônicos do século XIV que se erguem do topo de pilares e cortam-se na parte superior.

Minha cama estava colocada sob uma dessas abóbadas góticas, com cortinas de gaze puxadas ao redor para maior privacidade. No entanto, o ponto central da ogiva não ficava direto acima de mim; minha cama fora deslocada para um dos lados. Isso me incomodava sempre que eu olhava para cima; ficava querendo mover a cama pela força do pensamento, como se o fato de estar bem centralizada sob o teto pudesse me ajudar a centrarme dentro de mim mesma.

Se é que eu ainda possuía um centro. Meu corpo estava dolorido e sensível, como se eu tivesse levado uma surra. Minhas juntas doíam e pareciam frouxas, como dentes amolecidos pelo escorbuto. Vários cobertores grossos me cobriam, mas nada podiam fazer além de aprisionar o calor e eu não tinha nenhum. O frio da aurora chuvosa impregnara meus ossos.

Todos esses sintomas físicos eu notava objetivamente, como se pertencessem a outra pessoa; fora isso, não sentia nada. O centro lógico, pequeno e frio do meu cérebro ainda estava lá, mas o invólucro de sentimentos através do qual suas manifestações em geral eram filtradas desaparecera; morto, ou paralisado, ou simplesmente desaparecido. Eu não sabia nem me importava. Estava no Hôpital dês Anges havia cinco dias.

Os dedos longos de madre Hildegarde examinavam com inexorável delicadeza pelo algodão da camisola que eu usava, investigavam as profundezas do meu ventre, buscando as bordas rígidas de um útero contraído. Mas a carne estava tenra e macia como uma fruta madura sob seus dedos. Pestanejei quando seus dedos mergulharam mais fundo e ela franziu a testa, murmurando alguma coisa baixinho que se parecia a uma prece.

Captei um nome entre os murmúrios e perguntei:

— Raymond? Conhece mestre Raymond? — Não podia imaginar um Par mais improvável do que essa freira amedrontadora e o pequeno gnomo da caverna de crânios.

As sobrancelhas espessas de madre Hildegarde ergueram-se abruptamente

— Mestre Raymond, você diz? Aquele charlatão herege? Que Dieu nous en garde! — Que Deus nos proteja.

— Oh. Pensei tê-la ouvido dizer “Raymond”.

— Ah. — Os dedos retornaram ao seu trabalho, investigando minha virilha em busca de ínguas, gânglios linfáticos aumentados, que indicariam infecção. Eles estavam lá, eu sabia; eu mesma os tateara, movendo minhas mãos numa agitada agonia sobre meu corpo vazio. Podia sentir a febre, uma dor e um frio no fundo dos ossos, que iria queimar como brasa quando atingisse a superfície da minha pele.

— Estava invocando a ajuda de St. Raymond Nonnatus — madre Hildegarde explicou, torcendo um pano em água fria. — É de valor inestimável na assistência a mulheres grávidas.

— Que eu já não sou. — Notei, de forma longínqua, a breve pontada de dor que fez suas sobrancelhas se franzirem; desapareceu quase imediatamente enquanto se ocupava em enxugar minha testa, passar água fria depressa pelas minhas faces e pelas dobras úmidas, quentes, do meu pescoço.

Estremeci de repente ao toque da água fria e ela parou imediatamente, colocando a mão em minha testa para avaliar a febre.

— St. Raymond não costuma ser seletivo — ela disse, distraidamente, mas com um ar de reprovação. — Eu mesma aceito ajuda de onde ela vier; uma atitude que eu lhe recomendaria.

— Mmm. — Fechei os olhos, recolhendo-me ao paraíso de um nevoeiro cinza. Agora parecia haver luzes fracas no nevoeiro, breves lampejos como a dispersão de relâmpagos difusos num horizonte de verão.

Ouvi o tilintar de contas de rosário de azeviche quando madre Hildegarde endireitou-se e a voz suave de uma das freiras no vão da porta, chamando-a para mais uma das infindáveis emergências do dia. Ela já havia quase alcançado a porta quando uma idéia lhe ocorreu. Girou nos calcanhares com um ruído sussurrante das saias pesadas, apontando para o pé da minha cama com um dedo autoritário.

— Bouton! — ela disse. — Au pied, reste!

O cachorro, tão decidido quanto sua dona, girou agilmente no meio do passo e saltou para o pé da cama. Uma vez ali, levou um instante para ajeitar as cobertas com as patas e girou três vezes no sentido anti-horário, como se tirasse os maus fluidos do seu lugar de descanso. Em seguida, deitou-se aos meus pés, descansando o focinho sobre as patas com um profundo suspiro.

Satisfeita, madre Hildegarde murmurou:

— Que Dieu vous bénísse, mon enfant. Tendo se despedido, desapareceu.

— Que Dieu vous bénísse, mon enfant. Tendo se despedido, desapareceu.

Através da névoa cada vez mais densa e do gélido entorpecimento que me envolvia, agradeci vagamente seu gesto. Sem nenhuma criança para embalar nos braços, ela me deu seu próprio e melhor substituto.

Aquele peso peludo sobre meus pés era de fato um pequeno conforto físico. Bouton permanecia quieto e imóvel como os cachorros aos pés dos reis esculpidos nas tampas de seus túmulos em St. Denis, o seu calor contrapondo-se ao frio de mármore dos meus pés, sua presença um consolo maior do que a solidão ou a companhia dos humanos, já que não exigia nada de mim. Nada era precisamente o que eu sentia e tudo que eu tinha para dar.

Bouton soltou um pequeno e estalado peido de cachorro e pegou no sono. Puxei as cobertas sobre o nariz e tentei fazer o mesmo.

Por fim, adormeci. E sonhei. Sonhos febris de cansaço e desolação, de uma tarefa impossível, incessantemente empreendida. De um esforço doloroso e interminável, realizado num lugar árido e pedregoso. De um nevoeiro cinza e denso, através do qual a derrota perseguia-me como um demônio na neblina.

Acordei, abruptamente, e descobri que Bouton se fora, mas eu não estava sozinha.

A linha de contorno do couro cabeludo de Raymond estava completamente nivelada, uma linha reta que atravessava a fronte larga como se tivesse sido desenhada com uma régua. Ele usava os cabelos espessos, grisalhos, penteados para trás e caídos sobre os ombros, de modo que a cabeça maciça projetava-se como um bloco de pedra, eclipsando completamente o resto do rosto. Pairava acima de mim agora, olhando para meus olhos febris como a lápide de um túmulo.

As rugas e sulcos de seu rosto moviam-se ligeiramente conforme ele conversava com as freiras. Pensei comigo mesma que se pareciam a letras, escritas logo abaixo da superfície da laje tumular, tentando escavar seu caminho para o exterior, a fim de que o nome do morto pudesse ser lido. Estava convencida de que, dentro de mais alguns instantes, meu nome se tornaria legível na laje branca e, nesse momento, eu morreria de verdade. Arqueei as costas e gritei.

— Ora, está vendo só? Ela não o quer aqui, criatura velha e nojenta, está perturbando seu descanso. Vá embora agora mesmo! — Madre Hildegarde agarrou Raymond autoritariamente pelo braço, arrastando-o para longe da Cama. Ele resistia, fincado como um gnomo de pedra num gramado, mas a irmã Celeste acrescentou seus esforços nada desprezíveis aos de madre Iudegarde e as duas o içaram completamente do chão e o carregaram dali. O tamanco caiu de um pé que chutava freneticamente enquanto ele era levado

O tamanco ficou onde caíra, de lado, exatamente no meio de uma das lajes bem esfregadas do assoalho. com a intensa fixação da febre, eu era incapaz de desviar os olhos do objeto. Tracei inúmeras vezes a curva incrivelmente lisa da borda usada, a cada vez arrancando meu olhar fixo da escuridão impenetrável de seu interior. Se eu me deixasse entrar naquele negrume, minha alma seria sugada para dentro do caos. Enquanto meus olhos repousavam sobre o tamanco, pude ouvir novamente os sons da passagem do tempo através do círculo de pedras e estendi os braços, agarrando-me histericamente à borda da cama acolchoada, à cata de um ancoradouro onde pudesse me amparar contra a confusão.

De repente, um braço surgiu do meio das cortinas e a mão vermelha de uma criada apossou-se do calçado e desapareceu. Privada de um foco, minha mente confusa pelo calor da febre girou pelos sulcos das lajes do assoalho por alguns instantes; em seguida, apaziguada pela regularidade geométrica, voltou-se para dentro e oscilou em direção ao sono como um pião perdendo o impulso.

Mas não havia tranqüilidade em meus sonhos e eu fui tropeçando, exausta, pelos labirintos de figuras que se repetiam, intermináveis círculos e espirais. Foi com uma sensação de profundo alívio que eu vi finalmente as irregularidades de um rosto humano.

E sem dúvida tratava-se de um rosto irregular, contraído numa carranca feroz como estava, os lábios franzidos num pedido suplicante. Foi somente quando senti a pressão da mão sobre minha boca que percebi que já não estava dormindo.

A boca larga e sem lábios da gárgula pairava junto ao meu ouvido.

— Silêncio, ma chère! Se me encontrarem aqui outra vez, estou perdido.

— Os olhos grandes e escuros arremessavam-se de um lado para o outro, a espreita de qualquer movimento das cortinas. Balancei a cabeça devagar e ele relaxou a boca, os dedos deixando para trás um leve sopro de amônia e enxofre. Ele encontrara em algum lugar, ou roubara, pensei obscuramente, o hábito cinza e rasgado de um frade para cobrir o veludo sujo de sua roupa de farmacêutico e as profundezas do capuz ocultavam tanto os reveladores cabelos prateados quanto aquela testa monstruosa.

Os delírios da febre cederam ligeiramente, afastados pelos resquícios de curiosidade que me restavam. Eu estava fraca demais para dizer mais do que “O que...”, quando ele colocou outra vez o dedo sobre meus lábios e lançou para trás o lençol que me cobria.

Observei com certo espanto enquanto ele rapidamente desfazia os laços de minha camisola e a abria até a cintura. Seus movimentos eram ágeis e profissionais, sem o menor sinal de depravação. Não que eu pudesse imaginar que alguém fosse capaz de tentar violar uma carcaça devastada pela febre como a minha, particularmente não ao alcance dos ouvidos de madre Hildegarde. Ainda assim...

Observei com remota fascinação quando ele colocou as mãos em concha sobre meus seios. Eram grandes e quase quadradas, os dedos todos de um tamanho só, com polegares extraordinariamente longos e flexíveis, que curvavam-se em torno dos meus seios com surpreendente delicadeza. Observando-as, tive a lembrança vívida e inesperada de Marian Jenkinson, uma jovem com quem recebi treinamento no Pembroke Hospital, dizendo às colegas extasiadas dos alojamentos das enfermeiras que o tamanho e a forma dos polegares de um homem eram uma indicação segura da qualidade de seu apêndice mais íntimo.

— É verdade, eu juro — Marian declarava, sacudindo para trás seus cabelos louros com grande dramaticidade. Mas quando pressionada para citar exemplos, ela apenas dava risadinhas, revirando os olhos na direção do tenente Hanley, que se parecia muito com um gorila, a despeito dos polegares opostos, e de tamanho considerável.

Os grandes polegares pressionavam meus seios delicadamente, mas com firmeza, e pude sentir meus mamilos inchados intumescerem-se contra as palmas duras, frias em comparação à minha própria pele aquecida.

— Jamie — eu disse, e um calafrio percorreu meu corpo.

— Silêncio, madona — disse Raymond. Sua voz era baixa, gentil, mas de certa forma meditativa e distante, como se não estivesse prestando nenhuma atenção a mim, apesar do que estava fazendo.

O calafrio voltou; era como se o calor passasse de mim para ele, mas suas mãos não esquentavam. Seus dedos continuavam frios e eu sentia arrepios e tremia conforme a febre recuava e fluía, escoando-se dos meus ossos.

A luz da tarde era turva através da gaze espessa das cortinas ao redor de minha cama e as mãos de Raymond eram escuras sobre a pele branca dos meus seios. Entretanto, as sombras entre os dedos grossos, encardidos, não eram negras. Eram... azuis, pensei.

Fechei os olhos, olhando para o redemoinho de padrões multicoloridos que imediatamente surgiram por trás de minhas pálpebras. Quando os abri novamente, era como se parte da cor tivesse ficado para trás, recobrindo as mãos de Raymond.

A medida que a febre recuava, deixando minha mente mais clara, eu Pisquei, tentando levantar a cabeça para ver melhor. Raymond pressionou com um pouco mais de força, instando-me a ficar deitada, e eu deixei minha cabeça cair no travesseiro, espreitando de esguelha por cima do meu Peito.

Eu não estava imaginando aquilo, afinal — ou estava? Embora as mãos de Raymond não estivessem se movendo, uma luz colorida, fraca e tremeluzente, parecia se mover por cima delas, lançando uma claridade rosada azul-clara sobre minha própria pele branca.

Meus seios estavam aquecidos agora, mas aquecidos com o calor próprio e natural da saúde, não com a corrosiva queimação da febre. A corrente de ar vinda pela entrada em arco aberta encontrou um caminho através das cortinas e levantou os cabelos úmidos das minhas têmporas, mas nesse momento eu não senti mais calafrios.

A cabeça de Raymond estava abaixada, o rosto oculto pelo capuz do traje que tomara emprestado. Após o que me pareceu um longo tempo, ele deslocou as mãos dos meus seios, movendo-as muito devagar pelos meus braços, parando e apertando delicadamente nas juntas do ombro e do cotovelo, pulsos e dedos. A dor e o desconforto diminuíram e eu achei ter vislumbrado uma débil linha azul dentro do meu braço, o fantasma reluzente do osso.

Sempre tocando, sem pressa, levou suas mãos para trás, sobre a curva rasa da minha clavícula, e para baixo, pelo meridiano do meu corpo, espalmando as mãos sobre minhas costelas.

O mais estranho de tudo isso é que eu não estava nem um pouco assustada. Parecia algo infinitamente natural e meu corpo torturado relaxou agradecidamente na forma rígida de suas mãos, desfazendo-se e se recompondo como cera moldável. Apenas as linhas do meu esqueleto permaneciam firmes.

Uma estranha sensação de calor emanava agora daquelas mãos grandes, quadradas, de operário. Moviam-se com meticulosa lentidão pelo meu corpo e eu podia sentir as minúsculas mortes das bactérias que habitavam meu sangue, pequenas explosões conforme cada centelha de infecção desaparecia. Eu podia sentir cada órgão interno, completo e tridimensional, bem como vê-lo, como se tivesse assentado sobre uma mesa, diante de mim. Lá o estômago de paredes ocas, aqui a solidez lobulada do meu fígado e cada volta dos meus intestinos, enrolados para um lado, para o outro e sobre si mesmos, perfeitamente acomodados na teia brilhante de sua membrana, o mesentério. O calor incandescia e irradiava-se dentro de cada órgão, iluminando-o como um pequeno sol dentro de mim, depois morrendo e seguindo em frente.

Raymond parou, as mãos pressionadas lado a lado em minha barriga inchada. Achei que tivesse franzido a testa, mas era difícil ter certeza. A cabeça encapuzada virou-se, ouvindo, mas os barulhos usuais do hospital continuaram a distância, sem nenhum ruído de passos vindo em nossa direção.

Arfei e me mexi involuntariamente, quando uma das mãos moveu-se mais para baixo e fechou-se em concha entre minhas pernas. Um aumento de pressão da outra mão avisou-me para fazer silêncio e os dedos rombuudos encontraram seu caminho dentro de mim.

Fechei os olhos e esperei, sentindo minhas paredes internas ajustarem-se àquela estranha intrusão, a inflamação cedendo pouco a pouco, conforme ele tateava com delicadeza cada vez mais fundo.

Por fim, ele tocou o centro da minha perda e um espasmo de dor contraiu as paredes pesadas do meu útero inflamado. Respirei fundo com um pequeno gemido, depois cerrei os lábios quando ele sacudiu a cabeça.

A outra mão desceu e pousou confortavelmente sobre minha barriga enquanto os dedos investigadores da outra tocavam meu útero. Então, ele ficou imóvel, segurando a origem da minha dor entre as duas mãos, como se fosse uma esfera de cristal, pesada e frágil.

— Agora — ele disse em voz baixa. — Chame-o. Chame o homem ruivo. Chame-o.

A pressão de seus dedos internamente e da palma externamente se intensificou e eu pressionei as pernas contra a cama, lutando contra ela. Mas não me restava nenhuma força para resistir e a pressão inexorável continuou, rachando a esfera de cristal, libertando o caos dentro de mim.

Minha mente encheu-se de imagens, piores do que a agonia dos sonhos febris, porque mais reais. As sensações de dor, perda e medo devastavam-me e o cheiro poeirento de morte e cal branca encheu minhas narinas. Arremessando-me de um lado para o outro nos padrões erráticos da minha mente em busca de ajuda, ouvi a voz ainda murmurando, pacientemente, mas com firmeza:

— Chame-o.

E eu busquei minha âncora.

— Jamie! JAMIE!

Um raio de calor atravessou minha barriga, de uma das mãos para a outra, como uma flecha atravessando o centro da bacia dos meus ossos. A pressão foi relaxada, libertou-se e a leveza da harmonia inundou-me.

A estrutura da cama estremeceu quando ele agachou-se sob ela, bem a tempo.

— Milady! Você está bem? — A irmã Angelique enfiou-se pelas cortinas, o rosto redondo contraído de preocupação sob sua touca de freira. A preocupação em seus olhos estava sublinhada de resignação; as irmãs sabiam que eu morreria logo, se aquela parecia ser minha última luta pela vida, ela estava preparada para convocar o padre.

Sua mão áspera e pequena pousou rapidamente sobre o meu rosto, moveu-se depressa para minha testa, depois de volta. O lençol ainda estava emaranhado em volta de minhas coxas e minha camisola continuava aberta. Suas mãos deslizaram por dentro da camisola, em direção às axilas, a onde permaneceram por um instante, antes de se recolherem.

— Deus seja louvado! — ela gritou, os olhos marejando-se de lágrimas

— A febre passou! — Ela inclinou-se para mais perto, espreitando, assustada para ter certeza de que o desaparecimento da febre não se devia ao fato de que eu estava morta. Sorri debilmente para ela.

— Eu estou bem — eu disse. — Diga à madre.

Ela assentiu ansiosamente e, parando apenas o suficiente para puxar o lençol sobre mim, deixou o aposento apressada. Mal as cortinas se fecharam atrás dela e Raymond emergiu de baixo da cama.

— Tenho que ir — ele disse. Colocou a mão sobre a minha cabeça. Fique bem, madona.

Apesar de extremamente fraca, ergui-me, agarrando seu braço. Deslizei a mão pela extensão do músculo rígido, buscando, mas não encontrando. A maciez da pele era imaculada, limpa e lisa até o alto do ombro. Fitou-me espantado.

— O que está fazendo, madona?

— Nada. — Deixei-me afundar na cama outra vez, decepcionada. Eu estava fraca demais e muito aturdida para ter cuidado com minhas palavras.

— Eu queria ver se você tinha uma cicatriz de vacina.

— Vacina? — Treinada como eu já estava em ler rostos a essa altura, eu teria percebido o menor movimento de compreensão, por mais fugaz que fosse. Mas não houve nenhum.

— Por que ainda me chama de madona? — perguntei. Minhas mãos repousaram na pequena concavidade do meu ventre, delicadamente, como se não quisessem perturbar o dilacerante vazio.

Ele pareceu um pouco surpreso.

— Ah. Eu não a chamei de madona porque estivesse grávida, milady.

— Por que, então? — Eu não esperava realmente que ele respondesse, mas ele o fez. Apesar de cansados e exauridos como ambos estávamos, era como se estivéssemos suspensos juntos em um lugar onde não existissem nem tempo nem conseqüências; não havia lugar senão para a verdade entre nós.

Ele suspirou.

— Todo mundo possui uma cor ao seu redor — ele disse com simplicidade. — Envolvendo-a completamente, como uma nuvem. A sua é azul, madona. Como o manto da Virgem. Como o meu próprio.

A cortina de gaze esvoaçou e ele desapareceu.

 

Durante vários dias, eu dormi. Se era uma parte necessária do processo de recuperação física ou uma teimosa fuga da realidade, não sei. No entanto, eu acordava apenas para ingerir algum alimento com relutância, caindo em seguida num estupor de esquecimento, como se o peso pequeno e morno da sopa em meu estômago fosse uma âncora que me puxava para as profundezas do sono.

Alguns dias mais tarde, acordei com o barulho de vozes insistentes junto ao meu ouvido e o toque de mãos erguendo-me da cama. Os braços que me seguravam eram fortes e masculinos e, por um instante, sentime flutuar de alegria. Então, despertei por completo, lutando debilmente contra uma onda de tabaco e vinho barato, para me ver carregada por Hugo, o enorme lacaio de Louise de La Tour.

— Coloque-me no chão! — eu disse, debatendo-me frouxamente. Ele pareceu espantado com a repentina ressurreição de um morto e quase me deixou cair, mas uma voz alta e autoritária fez ambos pararem.

— Claire, minha querida amiga! Não tenha medo, ma chère, está tudo bem. Estou levando você para Fontainebleau. Ar puro e boa comida, é disso que você precisa. E repouso, você precisa de repouso...

Pisquei contra a claridade da luz, como um recém-nascido. O rosto de Louise, redondo, rosado e ansioso, flutuava por perto como um querubim numa nuvem. Madre Hildegarde estava parada atrás dela, alta e severa como o anjo às portas do Éden, a ilusão celestial aumentada pelo fato de ambas estarem diante de uma janela de vitrais coloridos no vestíbulo do

— Sim — ela disse, a voz grave tornando a mais simples das palavras mais enfática do que todo o gorjeio de Louise. — Será bom para você. Au revoir, “minha querida.

E com isso, fui levada pela escada do hospital e enfiada a contragosto na carruagem de Louise, sem forças nem vontade de protestar.

Os solavancos da carruagem sobre os buracos e valas mantiveram-me cordada durante a viagem a Fontainebleau. Isso e a ininterrupta conversa de Louise, destinada a me tranqüilizar. No começo, fiz um esforço confuso de responder, mas logo percebi que ela não requeria respostas e, na verdade, falava mais facilmente sem elas.

Após dias na abóbada fria e cinza do Hôpital, sentia-me como uma múmia que acabavam de desenrolar e me retraí da agressão de tanta luz e cor. Para lidar com a situação, achei mais fácil recolher-me um pouco e deixar a enxurrada passar por mim sem tentar distinguir seus elementos

Essa estratégia funcionou até alcançarmos um pequeno bosque nas proximidades de Fontainebleau. Os troncos dos carvalhos eram escuros e grossos, com copas baixas e espraiadas que sombreavam o solo embaixo com manchas claras e escuras em movimento, de modo que todo o bosque parecia tremeluzir ao vento. Eu admirava vagamente o efeito quando notei que parte do que eu presumira ser troncos de árvores estava realmente se movendo, balançando devagar de um lado para o outro.

— Louise! — Minha exclamação e o aperto de minha mão em seu braço interromperam sua tagarelice.

Ela inclinou-se pesadamente sobre mim para ver o que eu estava olhando, depois se atirou para o lado da carruagem e enfiou a cabeça pela janela, gritando para o cocheiro.

Deslizamos numa nuvem de poeira até pararmos por completo, bem em frente ao bosque. Havia três pessoas, dois homens e uma mulher. A voz aguda e agitada de Louise continuou, admoestando e questionando, pontuada pelas tentativas do cocheiro de explicar ou de pedir desculpas, mas eu não prestei nenhuma atenção.

Apesar da oscilação e do leve esvoaçar de suas roupas, estavam muito quietos, mais inertes do que as árvores de onde pendiam. Os rostos estavam enegrecidos pela asfixia; monsieur Forez não teria de maneira alguma aprovado, pensei, através da névoa do choque. Uma execução eficaz, apesar de amadorística. O vento mudou de direção e um mau cheiro leve e gasoso nos atingiu.

Louise soltou um gritinho esganiçado e bateu com força na borda da janela num frenesi de indignação. A carruagem recomeçou a andar com um solavanco que a arremessou para trás no assento.

— Merde! — ela disse, abanando enfaticamente o rosto afogueado. — Que idiotice, parar bem aqui! Que imprudência! O choque dessa visão é ruim para o bebê, tenho certeza, e você, minha pobre querida... ah, meu Deus, Claire, coitada! Sinto muito, não quis fazê-la lembrar... me perdoe, que falta de tato...

Felizmente sua agitação diante da possibilidade de ter me transtornado a fez se esquecer de seu próprio nervosismo à vista dos corpos, mas era muito cansativo tentar conter suas desculpas. Finalmente, por desespero, voltei ao assunto dos enforcados.

— Quem são? — O desvio da conversa funcionou; ela pestanejou e, lembrando-se do choque ao seu système, retirou um frasco de solução de amoníaco e inalou-o tão profundamente que espirrou em reflexo.

— Hugue... Atchim! Huguenotes — conseguiu dizer, resfolegando e espirrando. — Hereges protestantes. É o que diz o cocheiro.

— Eles os enforcam? Ainda? — Por alguma razão, eu achava que perseguições religiosas como essas eram uma relíquia do passado.

— Bem, comumente não apenas por serem protestantes, embora isso já seja suficiente — Louise respondeu, fungando. Enxugou delicadamente o nariz com um lencinho bordado, examinou o resultado criticamente, depois reaplicou o lenço ao nariz e assoou-o com um ronco gratificante.

— Ah, assim está melhor. — Ela enfiou o lenço de volta no bolso e recostou-se no banco com um suspiro. — Agora, estou refeita. Que choque! Se precisam enforcá-los, tudo bem, mas têm que fazer isso em plena via pública, onde as senhoras ficam expostas a tal nojeira? Você sentiu o cheiro? Uffl Estas terras são do conde Medard, vou lhe enviar uma carta bem malcriada a respeito disso, vamos ver se não vou.

— Mas por que enforcaram essas pessoas? — perguntei, interrompendo de modo brutal, que era a única maneira possível de manter uma conversa com Louise.

— Ah, bruxaria, provavelmente. Havia uma mulher, você viu. Quando há mulheres envolvidas, em geral se trata de bruxaria. Se forem apenas homens, na maioria das vezes é só por heresia e por pregação para sublevar os ânimos, mas as mulheres não pregam. Viu as terríveis roupas escuras que ela vestia? Que horror! É tão deprimente usar roupas escuras o tempo todo; que tipo de religião faria seus seguidores usar sempre roupas tão sem graça? Obviamente, é obra do diabo, qualquer um pode ver isso. Eles têm medo das mulheres, isso é que é, assim eles...

Fechei os olhos e recostei-me no assento. Esperava que não estivéssemos muito longe da casa de campo de Louise.

Além do macaco, de quem ela se recusava a se separar, a casa de campo de Louise continha inúmeras outras decorações de gosto duvidoso. Em arjs, os gostos de seu marido e de seu pai tinham que ser consultados e os aposentos da casa de lá eram, em conseqüência disso, suntuosamente decorados, mas em tonalidades suaves. Mas Jules raramente vinha à casa de Campo, sempre ocupado demais na cidade, e assim o gosto de Louise podia ter livre curso.

— Este é o meu brinquedo mais novo; não é um encanto? — ela arrulhou, passando a mão afetuosamente pela madeira escura e esculpida de Uma casinha que se projetava estranhamente da parede, ao lado de um castiçal de bronze no formato de Eurídice.

— Parece um relógio cuco — eu disse, incrédula.

— Você já tinha visto um desses? Eu achava que não havia nenhum igual a ele em Paris! — Louise fez um ligeiro beicinho diante da idéia de que seu brinquedo pudesse não ser único, mas iluminou-se quando girou os ponteiros do relógio para a hora seguinte. Deu uns passos para trás radiante de orgulho quando o minúsculo pássaro meteu a cabeça para fora e emitiu diversos trinados em seqüência.

— Não é uma preciosidade? — Tocou de leve a cabeça do pássaro enquanto ele desaparecia de novo em seu esconderijo. — Berta, a governanta daqui comprou-o para mim; seu irmão o trouxe da Suíça. O que quer que se queira dizer da Suíça, eles são ótimos escultores de madeira, não?

Quis responder não, mas em vez disso apenas murmurei algo que educadamente expressasse admiração. A mente de gafanhoto de Louise saltou agilmente para um novo tópico, talvez desencadeado por lembranças de criados suíços.

— Sabe, Claire — ela disse, com um toque de reprovação -, você realmente devia ir à missa na capela toda manhã.

— Por quê?

Ela sacudiu a cabeça na direção do vão da porta, por onde uma das criadas passava com uma bandeja.

— Eu particularmente não ligo a mínima, mas os criados... as pessoas são muito supersticiosas aqui no campo, sabe. E um dos lacaios da casa de Paris cometeu a asneira de contar à cozinheira tudo sobre aquela história tola de você ser LA Dame Blanche. Eu disse a eles que tudo isso é bobagem, é claro, e ameacei demitir qualquer um que eu pegasse espalhando tal boato, mas... bem, seria melhor se você fosse à missa. Ou ao menos rezasse em voz alta de vez em quando, de modo que a ouvissem.

Descrente como eu era, achei que a missa diária na capela da casa seria ir um pouco longe demais, mas vagamente achando graça, concordei em fazer o possível para acalmar os temores dos criados; em conseqüência, Louise e eu passamos a hora seguinte lendo salmos em voz alta uma para a outra e recitando preces em uníssono — em voz bem alta. Eu não fazia menor idéia do efeito que essa encenação poderia ter sobre os criados, mas pelo menos cansou-me o suficiente para eu subir ao meu quarto para um cochilo e dormir sem sonhar até a manhã seguinte.

Eu sempre tinha dificuldades em dormir, provavelmente porque meu estado quando estava desperta não era muito diferente de um sono nervoso e superficial. Ficava deitada, acordada, à noite, fitando o teto de gesso branco com seus ornamentos de frutas e flores. Erguia-se acima de mim como um vulto turvo e cinza na escuridão, a personificação da depressão que tornava minha mente nebulosa durante o dia. Quando realmente fechava os olhos à noite, eu sonhava. Não conseguia bloquear os sonhos com a névoa cinzenta. Eles vinham em cores vívidas para me atacar na escuridão. Assim, eu raramente dormia.

Não recebi notícias de Jamie — nem sobre ele. Se era culpa ou ofensa que o impediu de ir me ver no Hôpital, eu não sabia. Mas ele não fora lá, nem viera a Fontainebleau. A essa altura, era provável que já tivesse partido para Orvieto.

Às vezes, eu me via imaginando quando — ou se — eu o veria outra vez e o que diríamos um ao outro, se disséssemos alguma coisa. Entretanto, na maior parte do tempo, eu preferia não pensar nisso, deixando os dias virem e irem, um de cada vez, evitando pensamentos a respeito do futuro ou do passado, apenas vivendo o presente.

Privado de seu ídolo, Fergus definhou. Eu sempre o via da minha janela, sentado desconsoladamente sob um arbusto de espinheiro no jardim, abraçando os joelhos e olhando para a estrada que levava a Paris. Finalmente, reuni ânimo para ir lá fora falar com ele, arrastando-me pesadamente pelas escadas e pelo caminho do jardim.

— Não pode arranjar alguma coisa para fazer, Fergus? — perguntei-lhe.

— Certamente um dos cavalariços gostaria de uma ajuda extra, ou algo assim.

— Sim, milady — ele concordou com desconfiança. Coçou distraidamente as nádegas. Observei seu comportamento com profunda suspeita.

— Fergus — eu disse, cruzando os braços -, você está com piolho? Ele recolheu a mão bruscamente, como se tivesse sido queimado.

— Ah, não, milady!

Puxei-o, obrigando-o a ficar de pé, cheirei delicadamente nos arredores de sua figura e coloquei um dedo por dentro do seu colarinho, o suficiente para ver o anel de sujeira em volta do seu pescoço.

— Banho — eu disse sucintamente.

— Não! — com um puxão, ele se desvencilhou, mas eu o agarrei pelo ombro. Fiquei surpresa com sua veemência; embora não fosse mais chegado a um banho do que a média dos parisienses — que consideravam a perspectiva de imersão com uma repugnância próxima ao horror —, ainda assim eu não conseguia conciliar a criança quase sempre obediente que eu conhecia à pequena fúria que de repente se contorcia e se debatia sob a minha mão.

Ouviu-se um barulho de tecido rasgando-se e ele se libertou, arremessando-se entre os arbustos de amoras silvestres como um coelho perseguido por uma doninha. Houve um farfalhar de folhas e um arranhar de pedras e ele desapareceu por cima do muro, dirigindo-se para as construções externas nos fundos da propriedade.

Abri caminho pelo emaranhado de construções raquíticas situada atrás do castelo, xingando em voz baixa enquanto me desviava de poças de lama e montes de sujeira. De repente, ouvi um zumbido agudo e plangente e uma nuvem de moscas ergueu-se de um montículo a alguns passos à minha frente, os corpos azuis, cintilantes sob a luz do sol.

Eu não estava suficientemente perto para tê-las espantado; devia ter havido algum movimento vindo do vão escuro da porta ao lado do monte de estérco.

— Ah-ah! — exclamei em voz alta. — Peguei-o, moleque imundo! Saia daí agora mesmo!

Ninguém emergiu, mas houve um movimento audível dentro do barracão e eu achei ter vislumbrado alguma coisa branca no interior escuro. Prendendo o nariz, passei por cima do monte de excremento e entrei no galpão.

Houve dois gritos sufocados de horror; o meu, ao contemplar algo que parecia o Selvagem de Bornéu achatado contra a parede dos fundos, e o dele, ao me ver.

A luz do sol filtrava-se pelas fendas entre as tábuas, propiciando luz suficiente para que nos víssemos com clareza, desde que meus olhos se adaptassem à relativa obscuridade. Ele não era, afinal, tão assustador quanto pensei no primeiro instante, mas também não era muito melhor. Sua barba estava tão imunda e emaranhada quanto seus cabelos, caindo abaixo dos ombros sobre uma camisa tão esfarrapada quanto a de qualquer mendigo. Estava descalço e se o termo sans-culottes ainda não era de uso comum, não era por falta de um exemplar.

Não tive medo dele, porque ele obviamente estava com medo de mim. Pressionava-se contra a parede como se tentasse passar através dela por osmose.

— Tudo bem — eu disse, tentando tranqüilizá-lo. — Não vou machucá-lo. Em vez de se acalmar, empertigou-se bruscamente, enfiou a mão dentro da camisa e retirou um crucifixo de madeira pendurado numa tira de couro. Estendeu-a à sua frente, em minha direção, e começou a rezar, numa voz trêmula de terror.

— Ah, droga — eu disse, contrariada. — Outro, não! — Respirei fundo. Pater-Noster-qui-es-in-coeliset-in-terra... — Seus olhos esbugalharam-se e e continuou segurando o crucifixo, mas ao menos parou de rezar em resposta ao meu desempenho.

— ...Amém! — terminei com um suspiro. Estendi as duas mãos e balancei-as diante de seu rosto. — Está vendo? Nem uma palavra de trás para a a frente, nem um único quotidianus da nobis hodie fora do lugar, certo? Nem sequer tinha os dedos cruzados. Portanto, não posso ser uma bruxa, não é?

O homem abaixou o crucifixo devagar e ficou parado, arfando, diante de mim.

— Uma bruxa? — disse. Sua expressão era a de quem achava que eu é que era louca, o que achei um pouco estúpido nas circunstâncias.

— Não achou que eu fosse uma bruxa? — perguntei, começando a me sentir um pouco tola.

Algo que se assemelhava a um sorriso surgiu e desapareceu outra vez entre os nós de sua barba.

— Não, madame — ele respondeu. — Estou acostumado a que as pessoas digam isso de mim.

— Ah, é? — Observei-o atentamente. Além dos trapos e da sujeira, o sujeito estava obviamente passando fome; os pulsos que se projetavam dos punhos da camisa eram finos como os de uma criança. Ao mesmo tempo, seu francês era harmonioso e educado, ainda que apresentasse um estranho sotaque.

— Se você for um bruxo — eu disse -, não está sendo bem-sucedido na função. Quem, afinal, é você?

Diante disso, o medo retornou aos seus olhos. Olhou de um lado para o outro, procurando uma maneira de fugir, mas o barracão era uma construção sólida, embora velha, sem nenhuma outra entrada além daquela onde eu estava. Finalmente, requisitando alguma oculta reserva de coragem, ele aprumou-se, empertigando-se em toda a sua altura — cerca de dez centímetros abaixo da minha — e, com grande dignidade, disse:

— Sou o reverendo Walter Laurent, de Genebra.

— Você é um padre? — Fiquei estupefata. Não podia imaginar o que teria feito um padre, suíço ou não, chegar àquele estado.

O padre Laurent parecia tão horrorizado quanto eu.

— Um padre? — ele repetiu. — Um papista? Nunca!

De repente, a verdade se abateu sobre mim.

— Um huguenote! — eu disse. — É isso. Você é um protestante, não é?

Lembrei-me dos corpos que eu vira pendurados na floresta. Isso, pensei, explicava muita coisa.

Seus lábios tremeram, mas ele os pressionou com força por um instante, antes de abri-los para responder.

— Sim, madame. Sou um pastor; tenho pregado nesta região há um mês. — Umedeceu os lábios ligeiro, observando-me. — Desculpe-me, madame... a senhora não é francesa, é?

— Sou inglesa — eu disse e, repentinamente, ele relaxou, como se alguém tivesse tirado toda a rigidez de sua espinha dorsal.

— Deus do céu, Pai Todo-poderoso — ele disse, em tom de oração — Então, também é protestante?

— Não, sou católica — respondi. — Mas não sou nem um pouco fanática a respeito — acrescentei apressadamente, vendo o olhar de espanto saltar de volta aos olhos castanho-claros. — Não se preocupe, não contarei a ninguém que você está aqui. Suponho que tenha vindo tentar roubar alguma coisa para comer, não? — perguntei, com simpatia.

— Roubar é pecado! — ele disse, horrorizado. — Não, madame. Mas... Cerrou os lábios, porém o olhar em direção ao castelo o denunciou.

— Então, um dos criados lhe traz comida — eu disse. — Assim deixa que roubem por você. Mas, suponho, depois você pode absolvê-lo do pecado, de modo que tudo funciona bem. É um pouco fino esse gelo moral em que você se apóia, não? — eu disse, censurando-o. — Por outro lado, não é

da minha conta, certo?

Uma luz de esperança brilhou em seus olhos.

— Quer dizer... não vai mandar me prender, madame?

— Não, claro que não. Eu tenho uma espécie de afinidade com fugitivos da lei, por eu mesma ter chegado perto de ser queimada numa fogueira. — Eu não sabia bem por que estava sendo tão tagarela; o alívio de encontrar alguém que parecia inteligente, eu acho. Louise era meiga, dedicada e bondosa, mas tinha exatamente tanto cérebro quanto o relógio cuco de sua sala de estar. Pensando no relógio suíço, compreendi de repente quem deveriam ser os paroquianos secretos do pastor Laurent.

— Olhe — eu disse -, se quer continuar aqui, vou até o castelo e digo a Berta ou Maurice onde você está.

O pobre homem era só pele e osso, e olhos. Tudo que ele pensava se refletia naquelas órbitas castanhas, grandes e bondosas. No momento, ele estava obviamente pensando que quem quer que tivesse tentado me queimar na fogueira estava no caminho certo.

— Ouvi falar — ele começou devagar, estendendo a mão para agarrar o crucifixo de novo — de uma inglesa de Paris chamada La Dame Blanch. Uma parceira de Raymond, o Herege.

Suspirei.

— Sou eu mesma. Mas não sou parceira de mestre Raymond. Apenas uma amiga. — Vendo-o estreitar os olhos desconfiadamente em minha direção, inspirei fundo outra vez. — Pater Noster...

— Não, não, madame, por favor. — Para minha surpresa, ele abaixara o crucifixo e sorria.

— Eu também conheço mestre Raymond, que encontrei em Genebra. Lá ele era um renomado médico e farmacêutico. Agora, ah!, receio que ele tenha se voltado para objetivos mais obscuros, embora, é claro, nada tenha sido provado.

— Provado? Sobre o quê? E que história é essa sobre Raymond, o Herege?

— Não soube? — As sobrancelhas finas ergueram-se acima dos olhos castanhos. — Ah. Então, não está associada às... atividades de mestre Raymond. — Ele relaxou-se perceptivelmente.

“Atividade” parecia uma descrição muito pobre para o modo como mestre Raymond me curara, então sacudi a cabeça.

— Não, mas gostaria que me contasse. Ah, mas eu não deveria estar aqui conversando; devo ir e mandar Berta trazer comida.

Abanou a mão, com alguma dignidade.

— Não é urgente, madame. Os apetites do corpo não têm nenhuma importância quando comparados aos apetites da alma. E católica ou não, a senhora tem sido bondosa comigo. Se não está associada às atividades de ocultismo de mestre Raymond, então é bom que seja avisada a tempo.

E ignorando a sujeira e as tábuas lascadas do assoalho, ele dobrou as pernas e sentou-se recostado à parede do barracão, gentilmente gesticulando para que eu também me sentasse. Intrigada, deixei-me cair diante dele, dobrando para cima as pontas da minha saia para impedir que arrastassem no estérco.

— Já ouviu falar de um homem chamado du Carrefours, madame? — o Pastor perguntou. — Não? Bem, seu nome é bem conhecido em Paris, asseguro-lhe, mas seria melhor não pronunciá-lo. Esse homem foi o organizador e o líder de um círculo de vício e depravação inomináveis, em uma associação às práticas de ocultismo mais degradantes. Não posso nem lhe contar algumas das cerimônias que eram realizadas em segredo entre a reza. E chamam a mim de bruxo! — murmurou, quase à meia-voz.

Levantou um dedo ossudo, como se quisesse evitar minha objeção aPenas esboçada.

— Tenho consciência, madame, do tipo de mexerico comumente espalhado, sem correlação com a verdade dos fatos. Quem poderia saber disso melhor do que nós? Mas as atividades de du Carrefours e seus seguidores são do conhecimento de todos, porque ele foi julgado por elas, encarcerado e finalmente queimado na praça da Bastilha como castigo por seus crimes. Lembrei-me da leve observação de Raymond: “Ninguém foi queimado por bruxaria em Paris em... ah, vinte anos, pelo menos.” Estremeci, apesar da temperatura-amena.

— E você diz que mestre Raymond estava associado a esse du Carre fours?

O pastor franziu a testa, coçando distraidamente a barba emaranhada. Ele provavelmente tinha piolhos e pulgas, pensei, tentando recuar ceptivelmente.

— Bem, é difícil dizer. Ninguém sabe de onde mestre Raymond veio. Ele fala várias línguas, todas sem sotaque perceptível. Um homem muito misterioso, mestre Raymond, mas... eu poderia jurar em nome de Deus., um bom homem.

Sorri para ele.

— Eu também acho.

Ele balançou a cabeça, sorrindo, mas ficou sério outra vez ao retomar a história.

— É verdade, madame. No entanto, ele se correspondia com du Carrefours de Genebra; sei disso porque ele próprio me disse. Ele fornecia diversas substâncias a pedido de du Carrefours: plantas, elixires e pele seca de animais. Até mesmo uma espécie de peixe, algo muito assustador e peculiar, que ele me disse ter vindo das mais escuras profundezas do mar; uma coisa horrível, só dentes, quase sem carne, mas com as mais terríveis e pequenas... luzes... como minúsculas lanternas, sob os olhos.

— É mesmo? — eu disse, fascinada.

O pastor Laurent encolheu os ombros.

— Tudo isso pode ser perfeitamente inocente, é claro, apenas uma questão de negócios. Mas ele desapareceu de Genebra ao mesmo tempo em que du Carrefours tornou-se suspeito pela primeira vez... e a poucas semanas da execução de du Carrefours, comecei a ouvir histórias de que mestre Raymond estabelecera seus negócios em Paris e que assumira várias das atividades clandestinas de du Carrefours também.

— Hum — eu disse. Eu estava pensando no aposento oculto de Raymond e no armário pintado com sinais cabalísticos. Para manter afastados aqueles que acreditavam neles. — Mais alguma coisa?

As sobrancelhas do reverendo Laurent arquearam-se para o céu.

— Não, madame — ele disse, um pouco frouxamente. — Nada mais que seja do meu conhecimento.

— Bem, eu mesma não sou dada a esse tipo de coisa – assegurei-lhe-

— Ah, é? Ótimo — ele disse, hesitante. Permaneceu sentado por um momento, como tomando alguma decisão, depois inclinou a cabeça educadamente em minha direção.

— Desculpe-me pela intrusão, madame. Berta e Maurice contaram-me a respeito de sua perda. Sinto muito, madame.

— Obrigada — eu disse, fitando as faixas de luz do sol sobre o assoalho.

Fez-se um novo silêncio, depois o pastor Laurent disse delicadamente:

— E seu marido, madame? Ele não está aqui com a senhora?

— Não — respondi, mantendo os olhos fixos no chão. As moscas iluminavam-se momentaneamente, depois, não encontrando alimento, voavam para fora. — Não sei onde ele está.

Não pretendia dizer mais nada, mas algo me fez erguer a cabeça e olhar para o pregador maltrapilho.

— Ele importava-se mais com sua honra do que comigo, com seu filho ou com um homem inocente — eu disse amargamente. — Não me importa onde quer que ele esteja; nunca mais quero vê-lo.

Parei bruscamente, abalada. Até então, não havia colocado esses sentimentos em palavras, nem para mim mesma. Mas era verdade. Houve muita confiança entre nós dois e Jamie traíra essa confiança, por causa de vingança. Eu compreendia; eu vira a força da fúria que o movera e sabia que não podia ser negada para sempre. Mas eu pedira a trégua de alguns meses, que ele me concedera. No entanto, depois, incapaz de esperar, quebrara sua promessa e, ao fazê-lo, sacrificara tudo que existia entre mim e ele. Não apenas isso: colocara em risco a missão em que nos empenháramos. Eu podia compreender, mas não podia perdoar.

O pastor Laurent colocou a mão sobre a minha. Estava encardida, com crostas de sujeira, e suas unhas quebradas e pretas nas pontas, mas não recuei. Esperei comentários superficiais ou um sermão, mas ele também não falou; continuou apenas segurando minha mão, delicadamente, por um longo tempo, enquanto o sol mudava de posição pelo assoalho e as moscas sobrevoavam nossas cabeças com um zumbido lento e grave.

— É melhor você ir — ele disse por fim, soltando minha mão. — Sentirão a sua falta.

— Creio que sim. — Respirei fundo, sentindo-me mais firme, se não melhor. Enfiei a mão no bolso do meu vestido; eu carregava uma pequena bolsa comigo.

Hesitei, não querendo ofendê-lo. Afinal, para ele eu era uma herege, aimda que não uma bruxa.

— Permita-me que lhe dê algum dinheiro? — perguntei cautelosamente.

Ele pensou por um instante, depois sorriu, os olhos castanho-claros reluzentes.

— Com uma condição, madame. Se permitir que eu reze pela senhora.

— Está feito o trato — eu disse, entregando-lhe a bolsa.

 

A medida que os dias transcorriam em Fontainebleau, eu gradativamente recuperei minha força física, embora minha mente continuasse a vagar, meus pensamentos esquivando-se de qualquer tipo de lembrança ou ação.

Houve poucas visitas; a casa de campo era um refúgio, onde a vida social frenética de Paris parecia mais um dos sonhos agitados que me assombravam. Fiquei surpresa, portanto, quando uma criada veio me chamar para atender um visitante na sala de estar. O pensamento de que poderia ser Jamie atravessou minha mente e senti uma onda de tontura e enjôo. Entretanto, logo o bom senso se restabeleceu; Jamie já deveria ter partido para a Espanha; não havia nenhuma possibilidade de ele retornar antes do final de agosto. E quando ele retornasse?

Não conseguia pensar nisso. Afastei a idéia para o fundo de minha mente, mas minhas mãos tremiam quando atava os cadarços do meu vestido para descer.

Para minha grande surpresa, o “visitante” era Magnus, o mordomo da casa de Jared em Paris.

— Perdão, madame — ele disse, fazendo uma reverência profunda ao me ver. — Eu não queria tomar a liberdade... mas não sabia se talvez a questão fosse de grande importância... e com o patrão ausente... — Digno em sua própria esfera de influência, o idoso mordomo estava bastante descomposto por estar tão longe de seu ambiente. Levei algum tempo para extrair uma história coerente, mas finalmente um bilhete foi apresentado, dobrado e selado, endereçado a mim.

— A caligrafia é de monsieur Murtagh — Magnus disse, num tom de contrafeita reverência. Isso explicava sua hesitação, pensei. Os criados da casa em Paris viam Murtagh com uma espécie de horror respeitoso, que fora exagerado pelos relatos dos acontecimentos na rue du Faubourg Honoré.

Chegara a Paris há duas semanas, Magnus explicou. Sem saber o que fazer com o bilhete, os criados se reuniram e confabularam, mas finalmente ele decidira que deveria ser trazido ao meu conhecimento.

— O patrão estando ausente — ele repetiu. Desta vez, prestei atenção ao que ele estava dizendo.

— Ausente? — eu disse. O bilhete estava amassado e manchado da viagem, leve como uma folha em minha mão. — Quer dizer, Jamie partiu antes de o bilhete chegar? — Eu não conseguia entender; aquela devia ser a carta de Murtagh dando o nome e a data de largada do navio que levaria o vinho do Porto de Carlos Stuart de Lisboa. Jamie não poderia ter partido para a Espanha antes de receber essa informação.

Para verificar se meu raciocínio estava correto, quebrei o selo e abri o bilhete. Estava endereçado a mim, porque Jamie achou que assim haveria menos possibilidade de a correspondência ser interceptada. De Lisboa, com data de quase um mês antes, a carta não trazia nenhuma assinatura, mas não era necessária.

“O Scalamandre parte de Lisboa no dia 18 de julho”, era tudo que o bilhete dizia. Fiquei surpresa ao ver como a caligrafia de Murtagh era pequena e bem desenhada; de certa forma, eu esperava uns garranchos disformes.

Ergui os olhos do papel e deparei-me com Magnus e Louise trocando um olhar muito estranho.

— O que foi? — perguntei abruptamente. — Onde está Jamie? — Eu havia atribuído sua ausência de LHôpital dês Anges após o aborto à culpa que sentira ao saber que sua atitude impensada matara nosso filho, matara Frank e quase me custara a vida. Naquele momento, não me importei; não queria vê-lo, tampouco. Agora, comecei a pensar em outra explicação, mais sinistra, para a sua ausência.

Foi Louise quem finalmente falou, endireitando os ombros rechonchudos para a tarefa.

— Ele está na Bastilha — ela disse, inspirando fundo. — Por ter duelado. Senti os joelhos fraquejarem e sentei-me na superfície disponível mais próxima.

— Por que não me contou? — Não sabia ao certo o que sentia com a notícia; choque ou horror... medo? Ou uma pequena sensação de satisfação?

— Eu... eu não queria preocupá-la, chérie — Louise gaguejou, confusa com o meu evidente nervosismo. — Você estava tão fraca... e, afinal, não avia nada que pudesse fazer. E, depois, você também não perguntou — ela Assaltou.

— Mas o que... como... de quanto tempo é a sentença? — perguntei, qualquer que tivesse sido minha emoção inicial, foi sobrepujada por uma sensação repentina de urgência. O bilhete de Murtagh chegara à rue remoulins há duas semanas. Jamie deveria ter partido ao recebê-lo, mas não o fizera.

Louise chamava criados e mandava que trouxessem vinho, sais de amônia e penas queimadas, tudo de uma vez; eu devia estar com uma aparência terrível.

— É uma transgressão à ordem do rei — ela disse, fazendo uma pausa em seu alvoroço. — Permanecerá na prisão à disposição do rei.

— Jesus H. Roosevelt Cristo — murmurei, desejando ter algo mais enfático para dizer.

— É uma sorte que le petit Jamie não tenha matado seu adversário. — Louise apressou-se a acrescentar. — Nesse caso, a pena teria sido muito mais... iiich! — Ela torceu as saias listradas para o lado bem a tempo de evitar a cascata de chocolate e biscoitos quando eu derrubei o lanche que chegava. A bandeja retiniu no assoalho sem que ninguém lhe desse atenção, enquanto eu olhava fixamente para Louise. Minhas mãos agarravam-se com força às minhas costelas, a direita protetoramente curvada sobre a aliança de ouro em minha mão esquerda. O metal fino parecia queimar em minha pele.

— Então, ele não está morto? — perguntei, como se estivesse num sonho. — O capitão Randall... está vivo?

— Ora, sim — ela disse, espreitando-me com curiosidade. — Não sabia? Está gravemente ferido, mas dizem que está se recuperando. Você está bem, Claire? Você parece... — Mas o resto do que ela dizia perdeu-se no ronco que tomou conta dos meus ouvidos.

— Você fez muita coisa, cedo demais — Louise disse severamente, afastando as cortinas. — Eu a avisei, não foi?

— Acho que sim — eu disse. Sentei-me e atirei as pernas para fora da cama, verificando cautelosamente se não havia nenhum sinal residual de desfalecimento. A cabeça não girava, não havia zumbido nos ouvidos nem visão dupla ou tendência a cair no chão. Os sinais vitais estavam bons.

— Preciso do meu vestido amarelo e depois poderia mandar vir a carruagem, Louise? — perguntei.

Louise olhou-me horrorizada.

— Você não está pretendendo sair, não é? De jeito nenhum! Monsieur Clouseau já vem atendê-la! Mandei um mensageiro ir buscá-lo agora mesmo!

A notícia de que monsieur Clouseau, um proeminente médico da sociedade, estava vindo de Paris para me examinar teria sido motivo suficiente para eu me colocar de pé, se precisasse de motivo.

Faltavam dez dias para 18 de julho. com um cavalo rápido, bom tempo e total descaso pelo conforto físico, a viagem de Paris a Orvieto podia ser feita em seis. Isso me deixava quatro dias para conseguir tirar Jamie da Bastilha. Não havia tempo a perder com monsieur Clouseau.

— Humm — eu disse, olhando ao redor do quarto, pensativamente. Bem, de qualquer forma, chame a criada para me vestir. Não quero que monsieur Clouseau me encontre de camisola.

Embora ela ainda parecesse desconfiada, aquilo lhe pareceu plausível; a maioria das mulheres da corte se ergueria do leito de morte para estarem bem-vestidas para a ocasião.

— Tudo bem — concordou, virando-se para sair. — Mas permaneça na cama até Ivonne chegar, ouviu?

O vestido amarelo era um dos melhores que eu possuía, uma peça solta, larga, feito no estilo sacque que estava em voga, com uma gola ampla e enrolada, mangas cheias e um fechamento com contas na frente. Empoada, penteada, de meias e perfumada por fim, examinei o par de sapatos que Ivonne havia trazido. Virei a cabeça de um lado para o outro, franzindo a testa de forma avaliadora.

— Humm, não — disse finalmente. — Acho que não. vou usar aqueles outros, de saltos, de pele marroquina vermelha. — Ivonne olhou para meu vestido com ar de dúvida, como se mentalmente avaliasse o efeito de pele marroquina vermelha com seda moiré amarela, mas obedientemente virou-se para vasculhar o fundo do enorme armário.

Andando silenciosamente na ponta dos pés por trás dela em meus pés calçados de meias de seda, empurrei-a de cabeça para dentro do armário e bati a porta sobre a massa que gritava e se debatia embaixo da pilha de vestidos caídos lá dentro. Girando a chave na porta, coloquei-a com todo o cuidado no bolso, mentalmente me congratulando. Belo trabalho, Beauchamp, pensei. Toda essa intriga política está lhe ensinando coisas que jamais imaginaram na escola de enfermagem, sem dúvida.

— Não se preocupe — eu disse ao armário, em tom tranqüilizador. — Logo virá alguém para tirá-la daí. E você poderá dizer a La Princesse que nao me deixou ir a lugar algum.

Um gemido desesperado de dentro do armário pareceu mencionar o nome de monsieur Clouseau.

— Diga-lhe para dar uma olhada no macaco — falei por cima do ombro. — Ele está com sarna.

O sucesso de meu encontro com Ivonne alegrou meu humor. Uma vez escondida na carruagem, sacolejando de volta a Paris, entretanto, meu stado de espírito abateu-se consideravelmente.

Embora já não estivesse com tanta raiva de Jamie, eu ainda não queria vê-lo. Meus sentimentos pareciam um turbilhão e eu não tinha nenhuma intenção de examiná-los minuciosamente; era muito doloroso. O sofrimento estava lá, junto com uma horrível sensação de fracasso e, acima de tudo, o sentimento de traição; dele e minha. Ele jamais deveria ter ido a Bois de Boulogne; eu jamais deveria ter ido atrás dele.

Mas nós dois agimos como nossas naturezas e nossos sentimentos ditaram e juntos havíamos — talvez — causado a morte de nosso filho. Não tinha nenhuma vontade de me encontrar com meu parceiro no crime, muito menos expor meu sofrimento para ele, comparar minha culpa com a dele. Eu fugia de qualquer coisa que me lembrasse aquela manhã úmida no Bois; certamente, fugia de qualquer lembrança de Jamie, como eu o vira pela última vez, erguendo-se do corpo de sua vítima, o rosto reluzente com a vingança que logo iria reclamar sua própria família.

Eu não podia pensar nisso nem mesmo de passagem, sem um terrível aperto no estômago, que trazia de volta o fantasma da dor do trabalho de parto prematuro. Pressionei meus punhos cerrados contra o veludo azul do banco da carruagem, erguendo-me para aliviar a pressão imaginária nas minhas costas.

Virei-me para olhar pela janela, esperando me distrair, mas a paisagem passava cegamente enquanto minha mente retornava espontaneamente para minha viagem. Quaisquer que fossem meus sentimentos em relação a Jamie, se iríamos voltar a nos ver, o que poderíamos ser, ou não ser, um para o outro — permanecia o fato de que ele estava na prisão. E eu achava que sabia o que a prisão significava para ele, com as lembranças de Wentworth que ele carregava; as mãos ansiosas que o apalpavam em sonhos, as paredes de pedra que ele socava em seu sono.

Mais importante ainda, havia a questão de Carlos e do navio de Portugal; o empréstimo de monsieur Duverney, e Murtagh, prestes a tomar o navio em Lisboa para um encontro ao largo de Orvieto. Os riscos eram altos demais para que eu pudesse permitir que minhas próprias emoções aflorassem. Pela segurança dos clãs escoceses e das próprias Highlands, pela família de Jamie e dos arrendatários de Lallybroch, pelos milhares que morreriam em Culloden e em seus desdobramentos — o plano tinha que ser tentado. E para isso, era preciso que Jamie estivesse livre; não era algo que eu pudesse fazer sozinha.

Não, não havia a menor dúvida. Eu teria que fazer o que fosse só para soltá-lo da Bastilha.

E exatamente o que eu poderia fazer?

Observei os mendigos arrastarem-se e gesticularem em direção à janela, quando entramos na rue du Faubourg St. Honoré. Quando em dúvida, pensei, procure a assistência de uma Autoridade Superior. Bati no painel ao lado do banco do cocheiro. Ele deslizou para trás com um rangido e o rosto de bigodes do cocheiro de Louise espreitou-me.

— Madame? À esquerda — eu disse. — Para UHôpital dês Anges.

Madre Hildegarde estava pensativa, batendo seus dedos rombudos em uma partitura de música, como se tamborilasse uma seqüência particularmente difícil. Ela sentava-se à mesa de mosaico em seu gabinete particular em frente a herr Gerstmann, convocado para uma reunião urgente conosco.

— Bem, sim — disse herr Gerstmann, em dúvida. — Sim, acredito que posso arranjar uma audiência particular com Sua Majestade, mas... tem certeza de que seu marido... hum... — O mestre de música parecia estar com uma dificuldade fora do comum de se expressar, o que me fez suspeitar que fazer uma petição ao rei pela soltura de Jamie podia ser um pouco mais complicado do que eu pensara. Madre Hildegarde confirmou essa suspeita com sua própria reação.

— Johannes! — exclamou, tão agitada a ponto de abandonar a maneira formal de tratar as pessoas que lhe era peculiar. — Ela não pode fazer isso! Afinal, madame Fraser não é uma das damas da corte. Ela é uma pessoa de virtude!

— Ha, obrigada — eu disse educadamente. — Se não se importa, entretanto... o que, precisamente, minha virtude tem a ver com minha visita ao rei para pedir-lhe que liberte Jamie?

A freira e o mestre de canto trocaram olhares em que o horror diante de minha ingenuidade misturava-se a uma relutância geral de dar explicações. Finalmente, madre Hildegarde, a mais corajosa dos dois, enfrentou a situação.

— Se for sozinha pedir tal favor ao rei, ele esperará dormir com você — disse sem rodeios. Depois de toda a dificuldade em me contar, eu não me surpreendi, mas olhei para herr Gerstmann em busca de confirmação, que ele e deu na forma de um balanço relutante da cabeça.

— Sua Majestade é suscetível a pedidos de senhoras de um certo encanto pessoal — disse delicadamente, com um repentino interesse em um dos objetos de decoração sobre a mesa.

— Mas há um preço para tais pedidos — acrescentou madre Hildegarde, sem tanta delicadeza. — A maioria dos cortesãos fica muito satisfeita quando suas esposas conseguem receber o favor do rei; os ganhos para eles valem o sacrifício da virtude de suas mulheres. — A boca larga curvou-se com desdém diante do pensamento, depois se endireitou em sua linha irônica e assustadora de costume.

— Mas seu marido — ela disse — não me parece ser do tipo que se preste ao papel de corno complacente. — As sobrancelhas grossas e arqueadas colocaram o ponto de interrogação no final da frase e eu sacudi a cabeça em resposta.

— com certeza, não. — Na realidade, essa era flagrantemente uma maneira muito branda de colocar a questão. Se “complacente” não era a última palavra que vinha à mente ao se pensar em Jamie Fraser, sem dúvida situava-se bem perto do final da lista. Tentei imaginar exatamente o que Jamie pensaria, diria ou faria se soubesse que eu havia dormido com outro homem, até e inclusive o rei da França.

O pensamento me fez lembrar a confiança que existira entre nós dois, desde o dia em que nos casamos, e um repentino sentimento de desolação apoderou-se de mim. Fechei os olhos por um instante, lutando contra a indisposição, mas a perspectiva tinha que ser encarada.

— Bem — eu disse, respirando fundo -, existe alguma outra forma? Madre Hildegarde franziu o cenho, olhando para herr Gerstmann com expressão carrancuda, como se esperasse que ele apresentasse a resposta. No entanto, o pequeno mestre de música encolheu os ombros, franzindo a testa por sua vez também.

— Se houvesse algum amigo mútuo de alguma importância, que pudesse interceder pelo seu marido junto a Sua Majestade? — ele sugeriu.

— Não é provável. — Eu mesma já havia examinado todas essas alternativas, na carruagem de Fontainebleau, e fora forçada a concluir que não havia ninguém plausível a quem eu pudesse pedir para assumir tal função de embaixador. Devido à natureza escandalosa e ilegal do duelo, porque, naturalmente, Marie d’Arbanville espalhara o mexerico por toda Paris, nenhum francês do nosso círculo de conhecimentos poderia se interessar pela questão. Monsieur Duverney, que concordara em me receber, fora gentil, mas rechaçara a idéia. Espere, fora seu conselho. Dentro de alguns meses, quando o escândalo tivesse arrefecido um pouco, então seria possível abordar Sua Majestade. Mas agora...

Igualmente, o duque de Sandringham, tão afeito às delicadas particularidades da diplomacia que despedira seu secretário particular pela simples suposição de envolvimento em escândalo, não estava em posição de fazer uma petição a Luís por um favor dessa natureza.

Abaixei os olhos, fitando o tampo incrustado da mesa, mal enxergando as curvas complexas do esmalte que se precipitavam em abstrações de geometria e cor. Meu dedo indicador traçou os volteios e espirais diante de mim, fornecendo uma âncora precária para meus pensamentos desenfreados. Se era realmente necessário para que Jamie fosse libertado da prisão, a fim de evitar a invasão jacobita da Escócia, tudo indicava que eu teria que conseguir soltá-lo, qualquer que fosse o método, e quaisquer que fossem suas conseqüências..

Finalmente, ergui a cabeça, fitando diretamente nos olhos do mestre de música.

— vou ter que fazer isso — eu disse, num sussurro. — Não há outro modo.

Fez-se um momento de silêncio. Em seguida, herr Gerstmann olhou para madre Hildegarde.

— Ela vai ficar aqui — madre Hildegarde declarou com firmeza. Mande avisar o dia e a hora da audiência, Johannes, quando tiver arranjado tudo.

Virou-se para mim.

— Afinal, se você está realmente decidida a seguir esse caminho, minha querida amiga... — Seus lábios cerraram-se numa linha fina, depois se abriram para dizer: — Pode ser um pecado ajudá-la a cometer uma imoralidade. Ainda assim, eu o farei. Sei que as suas razões lhe parecem boas, quaisquer que sejam. E talvez o pecado seja contrabalançado pela graça de sua amizade.

— Ah, madre. — Achei que iria chorar se dissesse mais alguma coisa, assim contentei-me em simplesmente apertar a mão grande e áspera de trabalho que descansava em meu ombro. Tive uma vontade súbita de lançarme em seus braços e enterrar o rosto no reconfortante peito de sarja preta, mas sua mão deixou meu ombro e buscou o longo rosário de azeviche que retinia entre as pregas de sua saia quando ela andava.

— Rezarei por você — ela disse, com um arremedo trêmulo de sorriso no rosto menos duramente esculpido. Sua expressão mudou repentinamente para uma profunda consideração. — Embora eu me pergunte acrescentou pensativa — exatamente quem seria o santo padroeiro a ser invocado nestas circunstâncias?

Maria Madalena foi o nome que me veio à mente quando ergui as mãos acima da cabeça numa simulação de prece, para permitir que a pequena estrutura de vime das anquinhas deslizasse pelos meus ombros e se assentasse em meus quadris. Ou Mata Hari, mas eu tinha absoluta certeza de que ela jamais integraria o calendário de santos. Quanto a isso, eu nao tinha certeza a respeito de Madalena, mas uma prostituta regenerada Parecia a mais provável entre as figuras celestiais a compreender a aventura que estava sendo empreendida.

Refleti que o Convento dos Anjos provavelmente nunca vira um hábito como aquele. Embora as postulantes prestes a fazerem seus votos finais fossem esplendidamente vestidas como noivas de Cristo, seda vermelha e pó-de-arroz provavelmente não faziam parte das cerimônias.

Muito simbólico, pensei, enquanto as suntuosas dobras do tecido vermelho vivo deslizavam pelo meu rosto virado para cima. Branco para pureza e vermelho... para o que quer que fosse. A irmã Minèrve, uma freira nova, de uma nobre família rica, fora indicada para me ajudar em minha toalete. com considerável habilidade e segurança, ela penteou e enfeitou meus cabelos, ajeitando a menor ponta de pluma de avestruz adornada de pérolas minúsculas. Penteou minhas sobrancelhas cuidadosamente escurecendo-as com pequenos pentes de grafite e pintou meus lábios com uma pena mergulhada num pote de ruge. A sensação do ruge em meus lábios era de um formigamento insuportável, acentuando minha tendência a desatar em risadinhas incontroláveis. Não por hilaridade, mas histeria.

A irmã Minèrve estendeu o braço para pegar o espelho de mão. Eu a impedi com um gesto; não queria olhar-me nos olhos. Respirei fundo e fiz um sinal com a cabeça.

— Estou pronta — eu disse. — Mande trazer a carruagem.

Eu nunca estivera naquela parte do palácio antes. Na realidade, depois das inúmeras voltas e retornos pelos corredores de espelhos iluminados à vela, eu já não sabia ao certo quantas havia de mim, quanto mais para onde qualquer uma delas se dirigia.

O discreto e anônimo Cavalheiro da Alcova conduziu-me a um pequeno aposento com portas almofadadas. Bateu uma vez, depois fez uma mesura para mim, girou nos calcanhares e partiu sem esperar uma resposta. A porta abriu-se para dentro e eu entrei.

O rei ainda estava vestido. O fato arrefeceu meus batimentos cardíacos, reduzindo-os a um nível tolerável, e eu parei de me sentir como se fosse vomitar a qualquer momento.

Não sei bem o que eu estava esperando, mas a realidade era levemente reconfortante. Ele estava vestido informalmente, de calças e camisa, com um robe de seda marrom sobre os ombros por causa do frio. Sua Majestade sorriu e me fez levantar colocando a mão sob meu braço. A palma de sua mão era quente — no subconsciente, eu esperava que o toque de sua mão fosse pegajoso — e eu devolvi o sorriso, da melhor forma possível.

A tentativa não deve ter sido muito bem-sucedida, porque ele deu uns tapinhas em meu braço afetuosamente e disse:

— Não tenha medo de mim, chère madame. Eu não mordo.

— Não — eu disse. — Claro que não.

Ele estava muito mais tranqüilo do que eu. Bem, claro que está, pensei comigo mesma, ele faz isso o tempo todo. Respirei fundo e tentei relaxar.

— Aceita um pouco de vinho, madame? — ele perguntou. Estávamos sozinhos, não havia criados, mas o vinho já fora servido em duas taças sobre a mesa, reluzentes como rubis à luz das velas. O aposento era bem ornamentado, mas muito pequeno e, fora a mesa e um par de cadeiras com encosto oval, continha apenas uma chaise longue de veludo verde, magnificamente estofada. Tentei evitar olhar em sua direção enquanto pegava minha taça de vinho, com um murmúrio de agradecimento.

— Sente-se, por favor. — Luís deixou-se cair em uma das cadeiras, indicando-me a outra. — Agora, por favor — disse, sorrindo para mim -, diga-me o que é que eu posso fazer por você.

— M-meu marido — comecei, gaguejando com um pouco de nervosismo. — Ele está na Bastilha.

— Claro — o rei murmurou. — Por duelar. Eu me lembro. — Tomou minha mão livre na sua, os dedos pousados levemente no meu pulso. — O que gostaria que eu fizesse, chère madame? Sabe que é uma ofensa grave, seu marido infringiu meu próprio decreto. — Um dos dedos acariciou a parte interna do meu pulso, enviando pequenas sensações de cócega pelo meu braço.

— S-sim, eu compreendo. Mas ele foi... provocado. — Tive uma idéia.

— O senhor sabe que ele é escocês; os homens desse país ficam — tentei pensar em um bom sinônimo para “loucos de raiva” — muito furiosos em questões que envolvam sua honra.

Luís concordou, balançando a cabeça, mas mantendo-a abaixada, aparentemente absorto com a mão que segurava. Pude ver o leve brilho oleoso de sua pele e sentir seu perfume. Violetas. Um cheiro doce e forte, mas não o suficiente para mascarar o próprio odor ácido de sua virilidade.

Ele esvaziou sua taça em dois grandes goles e livrou-se dela, para poder segurar minha mão entre as suas. Um dedo de unha curta traçou as linhas da minha aliança de casamento, com seus elos entrelaçados e suas flores de cardo.

É bem verdade — ele disse, puxando minha mão mais para perto, como se quisesse examinar minha aliança. — É bem verdade, madame. Entretanto...

— Eu ficaria... muito agradecida, Majestade — interrompi. Ele ergueu a Cabeça e meus olhos encontraram os dele, escuros e interrogativos. Meu coração parecia um martelo mecânico. — Muito... agradecida.

Ele tinha lábios finos e dentes ruins; eu podia sentir seu mau hálito, mistura de cebola e cáries. Tentei prender minha própria respiração, mas isso não poderia ser mais do que um expediente temporário.

— Bem... — ele disse devagar, como se estivesse refletindo sobre o assunto — Eu mesmo estaria inclinado ao perdão, madame...

Soltei a respiração com uma arfada curta e seus dedos apertaram-se sobre os meus num sinal de advertência.

— Mas, sabe, há complicações.

— É mesmo? — eu disse, fracamente.

Ele balançou a cabeça, os olhos fixos em meu rosto. Seus dedos vagavam delicadamente sobre as costas de minha mão, traçando as veias.

— O inglês que teve o infortúnio de ter ofendido milorde Broch Tuarach — ele disse. — Ele estava a serviço de... um certo homem, um nobre inglês de alguma importância.

Sandringham. Meu coração deu um salto à menção, embora indireta, do duque.

— Esse nobre está empenhado em... digamos, certas negociações que lhe dão direito à consideração? — Os lábios finos sorriram, enfatizando a proa imperiosa de seu nariz acima. — E este nobre se interessou pela questão do duelo entre seu marido e o capitão inglês Randall. Receio que ele tenha sido muito enfático em exigir que seu marido sofra a penalidade total de sua indiscrição, madame.

Maldito barril de gordura, pensei. Claro — já que Jamie recusara o suborno de um perdão, que maneira melhor de impedir que ele “se envolvesse” nos assuntos dos Stuart do que garantir que Jamie fosse mantido preso na Bastilha pelos próximos anos? Seguro, discreto e barato; um método destinado a atrair o duque.

Por outro lado, Luís ainda respirava pesadamente sobre minha mão, o que considerei um sinal de que nem tudo estava necessariamente perdido. Se ele não ia atender meu pedido, não devia esperar que eu fosse para a cama com ele — ou, se esperasse, ia ter uma grande surpresa.

Reuni as forças para nova tentativa.

— E Vossa Majestade aceita ordens de ingleses? — perguntei com ousadia. Os olhos de Luís arregalaram-se por um momento com o choque. A seguir, ele riu ironicamente, percebendo a minha intenção. Ainda assim, eu tocara em um ponto sensível; vi o pequeno espasmo dos seus ombros enquanto reassentava sua convicção de poder como um manto invisível.

— Não, madame, não aceito — ele disse, com certa aridez. — No entanto, eu levo em consideração... vários fatores. — As pálpebras pesadas penderam sobre os seus olhos por um momento, mas continuou a segurar a minha mão.

— Ouvi dizer que seu marido se interessa pelos negócios do meu primo — ele disse.

— Vossa Majestade está bem informada — eu disse educadamente. — Mas já que é assim, deve saber que meu marido não apoia a restauração dos Stuart ao trono da Escócia. — Rezei para que fosse isso o que ele desejava ouvir.

Aparentemente, era; ele sorriu, levou minha mão aos lábios e beijoua de forma breve.

— Ah? Eu ouvi... histórias conflitantes sobre seu marido.

Respirei fundo e resisti ao impulso de retirar a minha mão com um safanão.

— Bem, é uma questão de negócios — eu disse, tentando soar o mais descontraída possível. — O primo de meu marido, Jared Fraser, é um jacobita confesso; Jamie, meu marido, não pode sair por aí revelando publicamente seus verdadeiros pontos de vista, quando ele tem uma sociedade com Jared. — Vendo a dúvida começar a desaparecer de seu rosto, apresseime a continuar. — Pergunte a monsieur Duverney — sugeri. — Ele está bem familiarizado com as verdadeiras preferências de meu marido.

— Já perguntei. — Luís fez uma longa pausa, observando seus próprios dedos, escuros, grossos e curtos, traçando delicados círculos nas costas de minha mão.

— Tão pálidas — ele murmurou. — Tão finas. Acho que poderia ver o sangue fluindo sob a pele.

Em seguida, soltou minha mão e permaneceu sentado, observando-me. Sou extremamente hábil em ler fisionomias, mas a de Luís era absolutamente impenetrável no momento. Lembrei-me de repente que ele era rei desde os cinco anos de idade; a habilidade de esconder seus pensamentos fazia parte dele como seu nariz Bourbon ou os olhos negros e sonolentos.

Esse pensamento trouxe outro em seu rastro, com um calafrio que me atingiu com toda a força na boca do estômago. Ele era o rei. Os cidadãos de Paris só iriam se rebelar dali a mais de quarenta anos; até lá, seu poder dentro da França seria absoluto. Ele podia libertar Jamie com uma única palavra — ou matá-lo. Podia fazer o que quisesse comigo; não havia a quem recorrer. Um sinal de sua cabeça e os cofres da França poderiam fazer jorrar o ouro que lançaria Carlos Stuart, atirando-o como um raio mortal que atravessaria o coração da Escócia.

Ele era o rei. Faria o que bem entendesse. E eu observei seus olhos escuros, turvos em pensamento, e esperei, tremendo, para ver qual seria a vontade real.

— Diga-me, ma chère madame — ele disse finalmente, saindo de sua introspecção. — Se eu fosse lhe conceder seu pedido, libertar seu marido... ele parou, considerando.

— Sim?

— Ele teria que deixar a França — Luís disse, uma das grossas sobrancelhas erguida em advertência. — Essa seria uma condição para sua soltura.

— Compreendo. — Meu coração batia com tanta força que quase abafou suas palavras. Jamie deixar a França era, afinal, exatamente o objetivo.

— Mas, ele está exilado da Escócia...

— Acho que isso pode ser arranjado.

Hesitei, mas não parecia haver muita escolha senão concordar em nome de Jamie.

— Está bem.

— Ótimo. — O rei balançou a cabeça, satisfeito. Em seguida, seus olhos retornaram para mim, pousaram em meu rosto, desceram pelo meu pescoço, meus seios, meu corpo. — Eu lhe pediria um pequeno serviço em retribuição, madame — ele disse suavemente.

Nossos olhos se encontraram por um segundo. Em seguida, abaixei a cabeça.

— Estou inteiramente à disposição de Vossa Majestade — eu disse.

— Ah. — Ele se levantou e tirou o robe, jogando-o descuidadamente no encosto de sua cadeira de braços. Sorriu e estendeu a mão para mim. — Três bien, ma chère. Então, venha comigo.

Fechei os olhos rapidamente, tentando fazer meus joelhos funcionarem. Você já foi casada duas vezes, pelo amor de Deus, pensei comigo mesma. Pare de fazer tanta confusão por causa disso.

Ergui-me e segurei sua mão. Para minha surpresa, ele não se voltou para a chaise de veludo, mas conduziu-me para a porta no outro lado do aposento.

Tive um instante de fria clareza quando ele soltou minha mão para abrir a porta.

Maldito seja,Jamie Fraser, pensei. Que você queime no inferno!

Fiquei parada, imóvel, na soleira da porta, piscando. Minhas ponderações sobre o protocolo real para se despir desfez-se em puro assombro.

O aposento estava às escuras, iluminado apenas por várias e minúsculas lamparinas, reunidas em grupos de cinco, em nichos nas paredes do quarto. O aposento em si era redondo, assim como a enorme mesa em seu centro, a madeira escura brilhando com reflexos pontilhados. Havia pessoas sentadas à mesa, não mais do que vultos escuros e curvados contra escuridão do aposento.

Houve um murmúrio à minha entrada, rapidamente silenciado ao verem o rei. Quando meus olhos se acostumaram à escuridão, percebi com uma sensação de choque que as pessoas sentadas ao redor da mesa usava capuz; o homem mais próximo virou-se para mim e vislumbrei um leve brilho de olhos através de buracos no veludo. Parecia uma convenção de carrascos.

Aparentemente, eu era a convidada de honra. Perguntei-me, muito nervosa por um instante o que exatamente seria esperado de mim. Pelas insinuações de Raymond, e de Marguerite, eu tinha visões em meus pesadelos de cerimônias de ocultismo envolvendo sacrifício de crianças, estupro cerimonial e ritos satânicos de um modo geral. Entretanto, é muito raro que o sobrenatural se materialize de acordo com os sonhos e eu esperava que esta ocasião não fosse nenhuma exceção.

— Ouvimos falar de sua enorme habilidade, madame, e de sua... reputação. — Luís sorriu, mas havia um tom de cautela em seus olhos quando olhou para mim, como se não soubesse o que esperar de mim. Ficaríamos muito gratos, madame, se nos concedesse os benefícios de tal habilidade esta noite.

Balancei a cabeça, assentindo. Muito gratos, hein? Bem, isso vinha a calhar; queria que ele ficasse grato a mim. Mas o que ele estava esperando que eu fizesse? Um criado colocou uma enorme vela de cera sobre a mesa e acendeu-a, lançando uma poça de luz suave sobre a madeira lustrada. A vela era decorada com símbolos como aqueles que eu vira no quarto secreto de mestre Raymond.

— Regardez, madame. — A mão do rei estava sob meu cotovelo, direcionando minha atenção para além da mesa. Agora que a vela estava acesa, pude ver as duas figuras que estavam paradas, de pé, silenciosamente, entre as sombras trêmulas. Levei um susto com a visão e a mão do rei apertou meu braço.

O conde de St. Germain e mestre Raymond estavam lá parados, lado a lado, separados por uma distância de aproximadamente dois metros. Raymond não deu nenhum sinal de ter me reconhecido, permanecendo imóvel e em silêncio, com o olhar fixo e desviado para o lado, com aqueles olhos negros sem pupila de um sapo em um poço sem fundo.

O conde me viu e seus olhos arregalaram-se, incrédulos; em seguida, franziu o cenho para mim. Estava vestido em seus melhores trajes, todo de branco, como sempre; um casaco de cetim branco engomado sobre um colete e calças de seda creme. Uma fileira de pérolas minúsculas ornamentava os punhos e as lapelas, brilhando à luz da vela. Excluindo-se o esplendor da vestimenta, o conde parecia um pouco desgastado, pensei — o rosto estava abatido de tensão e o laço da echarpe de seda em seu pescoço estava Parcialmente desfeito, a gola escura de suor.

Raymond, ao contrário, parecia calmo como um peixe no gelo, impassível, com as duas mãos enfiadas nas mangas do seu encardido robe de veludo de costume, o rosto achatado e largo numa expressão plácida e inescrutável.

— Estes dois homens são acusados, madame — disse Luís, indicando Raymond e o conde com um gesto da mão —, de feitiçaria, de bruxaria, de perversão da busca legítima pelo conhecimento em uma exploração das artes ocultas. — Sua voz era fria e implacável. — Tais práticas floresceram durante o reinado de meu avô; mas não permitiremos tais práticas malignas em nosso reino.

O rei estalou os dedos para uma das figuras encapuzadas, que estava sentada à mesa com caneta e tinta, diante de um maço de folhas de papel.

— Leia as acusações, por favor — ele disse.

O homem encapuzado levantou-se obedientemente e começou a ler um dos documentos: acusações de bestialidade e sacrifício odiosos, de derramamento do sangue de inocentes, de profanação do rito mais sagrado da missa pelo ultraje à hóstia, da realização de ritos profanos no altar de Deus

— tive uma rápida visão do que o ato de cura que Raymond realizara em mim no Hôpital dês Anges deveria parecer e me senti profundamente grata por ninguém tê-lo descoberto.

Ouvi o nome “du Carrefours” ser mencionado e engoli uma repentina onda de bílis. O que o pastor Laurent dissera? O bruxo du Carrefours fora queimado em Paris, há apenas vinte anos, sob as mesmas acusações que eu ouvia agora:

— ...A invocação de demônios e poderes das trevas, a provocação de doença e morte em troca de pagamento — coloquei a mão sobre o estômago, lembrando-me vividamente da cáscara-sagrada —, a maldição de membros da corte, o defloramento de virgens — lancei um rápido olhar para o conde, mas seu rosto parecia de pedra, os lábios pressionados com força enquanto ouvia.

Raymond permanecia absolutamente imóvel, os cabelos prateados roçando os ombros, como se ouvisse algo tão inconseqüente quanto o canto de um melro na mata. Eu vira os símbolos cabalísticos em seu armário, mas não podia conciliar o homem que eu conhecia — o envenenador piedoso, o farmacêutico prático — com a lista de vilanias que estava sendo lida.

Finalmente, o indiciamento terminou. O homem encapuzado olhou para o rei e, a um sinal, sentou-se outra vez.

— Foi feita uma investigação completa — o rei disse, voltando-se para mim. — Provas foram apresentadas e os depoimentos de muitas testemunhas tomados. Parece claro — voltou-se com um olhar frio para os dois magos acusados — que ambos fizeram investigações nos escritos de antigos filósofos e empregaram as artes da profecia, usando o cálculo dos movimentos dos corpos celestes. Ainda assim... — Deu de ombros. — Em si mesmo, isso não é um crime. Pelo que me deram a entender — olhou para um homem corpulento e encapuzado, que eu suspeitava tratar-se do bispo de Paris -, isso não está necessariamente em desacordo com os ensinamentos da Igreja; até mesmo o abençoado Santo Agostinho era conhecido por suas investigações dos mistérios da astrologia.

Recordei-me vagamente que Santo Agostinho havia de fato estudado astrologia e havia, com certo desdém, descartado esse conhecimento como um monte de baboseiras. Ainda assim, eu duvidava que Luís tivesse lido Confissões, de Santo Agostinho, e essa linha de argumentação era sem dúvida boa para alguém acusado de feitiçaria; observar estrelas parecia algo bastante inofensivo, em comparação a sacrifício de crianças e orgias inomináveis.

Eu começava a imaginar, com considerável apreensão, exatamente o que eu estava fazendo naquela assembléia. Teria alguém, afinal de contas, visto mestre Raymond comigo no Hôpital?

— Não temos nada contra o uso adequado do conhecimento nem contra a busca do saber — o rei continuou em voz pausada. — Há muito a ser aprendido nos escritos dos filósofos antigos, se forem abordados com a devida cautela e humildade de espírito. Mas é verdade que, embora esses escritos possam ter muito valor, o mal também pode ser aí descoberto e a busca absoluta pela sabedoria ser pervertida no desejo de poder e riqueza... os valores mundanos.

Olhou de um para o outro dos dois feiticeiros acusados mais uma vez, obviamente tirando conclusões quanto a quem seria o mais inclinado a esse tipo de perversão. O conde ainda suava, manchas de suor escurecendo a seda branca de seu casaco.

— Não, Majestade! — ele disse, sacudindo para trás os cabelos negros e fixando os olhos flamejantes em mestre Raymond. — É verdade que há forças das trevas atuando na região... a vileza da qual se fala caminha entre nós! Mas tal malignidade não habita o peito de seu súdito mais leal. — E ele bateu no próprio peito, para o caso de não termos entendido bem. — Não, Majestade! Para a perversão do conhecimento e o uso de artes proibidas, Vossa Majestade deve procurar fora de sua própria corte! — Ele não acusou mestre Raymond claramente, mas a direção de seu olhar penetrante era óbvia

O rei manteve-se inabalável diante dessa explosão.

— Tais abominações floresceram durante o reinado de meu avô — ele disse sem se alterar — Nós as extirpamos onde quer que fossem encontradas; destruímos a ameaça desse mal onde pudesse existir em nosso reino. Feiticeiros, bruxos, aqueles que pervertem os ensinamentos da Igreja... monsieurs, não permitiremos que essas perversões surjam novamente.

O rei bateu de leve as mãos abertas em cima da mesa e empertigou-se. Ainda olhando fixamente para Raymond e o conde, estendeu a mão em minha direção.

— Nós trouxemos aqui uma testemunha — declarou — Um juiz infalível da verdade, da pureza do coração.

Produzi um pequeno ruído balbuciante, que fez o rei voltar-se para mim.

— Uma Dama Branca — ele disse em voz baixa. — La Dame Blanche não pode mentir; ela vê o coração e a alma de um homem, e pode transformar essa verdade para o bem... ou para a destruição.

A atmosfera irreal que pairava sobre a noite desapareceu como por encanto. A leve sensação de tontura provocada pelo vinho desapareceu e de repente fiquei absolutamente sóbria. Abri a boca, em seguida fechei-a, percebendo que não havia nada que eu pudesse dizer.

O pavor começou a descer pela minha espinha dorsal e enrolou-se como uma cobra em minha barriga quando o rei fez seus arranjos. Dois pentagramas foram desenhados no assoalho, dentro de cada um dos quais deveria ficar um bruxo. Cada qual iria, então, dar seu testemunho sobre suas próprias atividades e motivos. E a Dama Branca julgaria a verdade do que fora dito.

— Valha-me Deus! — eu disse, a meia-voz.

— Monsieur lê comte? — O rei indicou o primeiro pentagrama, desenhado a giz sobre o carpete. Somente um rei trataria um Aubusson genuíno com tão arrogante indiferença.

O conde caminhou rente a mim ao dirigir-se ao seu lugar. Ao passar, ouvi num sussurro quase inaudível:

— Cuidado, madame. Eu não trabalho sozinho.

Assumiu seu lugar e virou-se de frente para mim com uma mesura irônica, aparentemente calmo.

A implicação era bastante clara; se eu o condenasse, seus subordinados surgiriam prontamente para decepar meus mamilos e incendiar o depósito de Jared. Umedeci meus lábios secos, amaldiçoando Luís. Por que ele não quis apenas meu corpo?

Raymond pisou descontraidamente em seu próprio espaço delimitado a giz e cumprimentou-me cordialmente com um sinal da cabeça. Nenhuma indicação ou sugestão naqueles olhos negros e redondos para me servir de guia.

Eu não fazia a menor idéia do que deveria vir em seguida. O rei indicou com um gesto que eu me posicionasse à sua frente, entre os dois pentagramas. Os homens encapuzados levantaram-se e perfilaram-se atrás do rei; um grupo ameaçador e sem rosto.

Fez-se um silêncio absoluto. A fumaça da vela pairava como uma mortalha junto ao teto ornamentado a ouro, alguns filetes deixando-se levar pelas lânguidas correntes de ar. Todos os olhos concentravam-se em mim. Finalmente, por desespero, voltei-me para o conde e balancei a cabeça.

— Pode começar, monsieur le comte — eu disse.

Ele sorriu — ao menos, presumi que aquele ricto pretendia ser um sorriso — e começou, partindo de uma explicação da fundação da Cabala e prosseguindo com uma exegese sobre as vinte e três letras do alfabeto hebraico e o profundo simbolismo de tudo aquilo. Soava completamente erudito, completamente inócuo e terrivelmente maçante. O rei bocejou, sem se dar ao trabalho de cobrir a boca.

Enquanto isso, eu repassava alternativas em minha mente. Este homem havia me ameaçado e me atacado, e atentara contra a vida de Jamie — fosse por questões políticas ou pessoais, não fazia muita diferença. Ele fora com toda a probabilidade o chefe da gangue de estupradores que armou uma cilada para mim e Mary. Além de tudo isso, e dos rumores que eu ouvira sobre suas outras atividades, ele era uma grande ameaça para o sucesso de nossa tentativa de frustrar os planos de Carlos Stuart. Eu iria deixar que ele se safasse dessa? Deixar que continuasse a exercer sua influência junto ao rei em nome dos Stuart? Deixar que continuasse a vagar pelas ruas escuras de Paris com um bando de molestadores mascarados?

Eu podia ver meus mamilos, eretos de medo, projetando-se ousadamente contra a seda do meu vestido. Mas empertiguei-me e fitei-o com um olhar fulminante mesmo assim.

— Espere um minuto — eu disse. — Tudo que disse até agora é verdadeiro, monsieur Le comte, mas vejo uma sombra atrás de suas palavras.

O conde ficou boquiaberto. Luís, repentinamente interessado, parou de se apoiar negligentemente sobre a mesa e endireitou-se. Fechei os olhos e coloquei os dedos sobre as pálpebras, como se olhasse para dentro.

— Vejo um nome em sua mente, monsieur lê comte — eu disse. Minha voz soava ofegante e estrangulada de medo, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Deixei cair as mãos e olhei-o diretamente nos olhos. — Lês Disciples du Mal — eu disse. — O que tem a ver com Lês Disciples, monsieur lê comte’?

Ele realmente não sabia disfarçar suas emoções. Seus olhos saltaram e seu rosto ficou lívido. Senti um fluxo pequeno e cruel de satisfação sob o medo.

O nome de Lês Disciples du Mal também era familiar ao rei; os olhos escuros e sonolentos estreitaram-se repentinamente, transformando-se em duas fendas.

O conde podia ser um charlatão e um patife, mas não era um covarde. Reunindo suas forças, fitou-me furiosamente e atirou a cabeça para trás.

— Esta mulher mente — ele disse, soando tão definitivo quanto o fizera ao informar à audiência que a letra alef simbolizava a fonte do sangue de Cristo. — Ela não é uma verdadeira Dama Branca, mas uma serva de Satã! Associada a seu mestre, o famoso feiticeiro, aprendiz de du Carrefours!

Ele apontou dramaticamente para Raymond, que pareceu ligeiramente surpreso.

Um dos homens encapuzados fez o sinal-da-cruz e eu ouvi o sussurro quase inaudível de uma breve prece entre as sombras.

— Posso provar o que digo — o conde declarou, sem deixar que alguma outra pessoa tomasse a palavra. Enfiou a mão no peito do casaco. Lembreime da adaga que ele tirara da manga na noite do jantar e retesei o corpo para me esquivar. Mas não foi uma faca que ele apresentou. — A Bíblia Sagrada diz: “Eles poderão lidar com serpentes sem sofrer nenhum dano”

— ele bradou. — “E por esses sinais vocês conhecerão os servos do verdadeiro Deus!”

Achei que devia ser uma pequena serpente do gênero píton. Tinha quase um metro de comprimento, a pele lisa e brilhante em marrons e dourados, sinuosa e escorregadia como uma corda untada com óleo, com um par de desconcertantes olhos dourados.

Ouviu-se um coro de respiração sufocada à aparição do animal e dois dos juizes encapuzados deram um rápido passo para trás. O próprio Luís ficou mais do que ligeiramente assustado e olhou apressado ao seu redor à procura de seu guarda-costas, parado junto à porta do aposento com os olhos esbugalhados.

A cobra fez um ou dois movimentos rápidos com a língua, experimentando o ar. Aparentemente decidindo que a mistura de cera de vela e incenso não era comestível, virou-se e fez uma tentativa de se enfiar de novo no bolso quente de onde fora bruscamente retirada. O conde segurou-a habilmente atrás da cabeça e empurrou-a em minha direção.

— Estão vendo? — disse triunfalmente. — A mulher encolhe-se de medo! Ela é uma bruxa!

Na verdade, comparada a um dos juizes, que se refugiara junto à parede mais distante, eu era um monumento de bravura e coragem, mas devo admitir que eu dera um passo para trás involuntariamente quando a serpente apareceu. Agora, dei um passo para frente outra vez, com a intenção de tirá-la de perto de mim. Afinal, a maldita serpente não era venenosa. Talvez víssemos o quanto ela era inofensiva se eu a enrolasse em volta de seu pescoço.

Antes que eu pudesse alcançá-lo, entretanto, mestre Raymond falou atrás de mim. com toda aquela comoção, eu praticamente o havia esquecido.

— Isso não é tudo que a Bíblia diz, monsieur lê comte — Raymond observou. Ele não ergueu a voz e o largo rosto de anfíbio estava suave como um pudim. Ainda assim, o zumbido de vozes parou e o rei voltou-se para ouvir.

— Sim, monsieur? — ele disse.

Raymond balançou a cabeça num reconhecimento educado por ter a palavra e enfiou as duas mãos dentro do seu roupão. De um bolso ele retirou um frasco, do outro uma pequena xícara.

— “Eles poderão lidar com serpentes sem sofrer nenhum dano” — ele citou — “e se tomarem qualquer veneno mortal, não morrerão.” Estendeu a xícara na palma da mão, o revestimento interno prateado brilhando à luz da vela. O frasco foi posicionado acima da xícara, pronto para despejar.

— Já que tanto milady Broch Tuarach e eu mesmo fomos acusados Raymond disse, com um rápido olhar para mim —, sugiro que nós três façamos este teste. Tenho sua permissão, Vossa Majestade?

Luís parecia um pouco confuso com o rápido progresso dos acontecimentos, mas assentiu com um movimento de cabeça. Um fio fino de um líquido âmbar caiu na xícara e imediatamente tornou-se vermelho e começou a borbulhar, como se o conteúdo da xícara estivesse fervendo.

— Sangue de dragão — Raymond disse informativamente, agitando a xícara. — Inteiramente inócuo aos puros de coração. — Exibiu um sorriso desdentado, encorajador, e me deu a xícara.

Não parecia haver muito a fazer a não ser bebê-lo. O sangue de dragão parecia ser algum tipo de bicarbonato de sódio; tinha o gosto de conhaque com sal de frutas. Tomei dois ou três goles de bom tamanho e devolvi a xícara.

com a devida cerimônia, Raymond também bebeu. Abaixou a xícara, exibindo os lábios tingidos de rosa e voltou-se para o rei.

— Posso pedir a La Dame Blanche para dar a xícara a monsieur lê comte? — ele disse. Mostrou com um gesto os riscos de giz a seus pés, para indicar que ele não podia pisar fora da proteção do pentagrama.

A um sinal de cabeça do rei, peguei a xícara e me voltei mecanicamente em direção ao conde. Talvez uns dois metros de carpete para atravessar. Dei o primeiro passo, depois outro, os joelhos tremendo mais violentamente do que haviam tremido antes, na pequena ante-sala, sozinha com o rei.

A Dama Branca vê a verdadeira natureza de um homem. Eu via? Eu realmente sabia alguma coisa a respeito de qualquer um dos dois, Raymond ou o conde?

Eu poderia ter impedido aquele desfecho? Fiz essa pergunta a mim mesma centenas de vezes, milhares de vezes — mais tarde. Eu poderia ter agido de outra forma?

Lembrei-me de meus pensamentos errantes ao conhecer Carlos Stuart; como seria conveniente para todos se ele morresse. Mas uma pessoa não pode matar um homem por suas crenças, ainda que o exercício dessas crenças signifique a morte de inocentes — ou pode?

Eu não sabia. Eu não sabia se o conde era culpado, eu não sabia se Raymond era inocente. Eu não sabia se a busca de uma causa nobre justificava o uso de meios desonrosos. Eu não sabia quanto valia uma vida — ou mil. Eu não sabia o preço verdadeiro da vingança.

Eu não sabia que a xícara que eu segurava em minhas mãos era a morte. O cristal branco continuava pendurado em meu pescoço, seu peso um lembrete de veneno. Eu não vira Raymond acrescentar nada ao conteúdo da xícara; ninguém o fizera, eu tinha certeza. Mas eu não precisava mergulhar o cristal no líquido cor de sangue para saber o que ele agora continha.

O conde leu esse conhecimento em meu rosto; La Dame Blanche não mente. Ele hesitou, olhando para a xícara borbulhante.

— Beba, monsieur — disse o rei. Os olhos escuros estavam velados mais uma vez, indecifráveis. — Ou tem medo?

O conde pode ter muitas coisas a seu descrédito, mas a covardia não era uma delas. Seu rosto estava pálido e resoluto, mas ele olhou direto nos olhos do rei, com um leve sorriso.

— Não, Majestade — ele disse.

Pegou a xícara da minha mão e a esvaziou, os olhos fixos nos meus. Mantiveram-se em meu rosto, olhando-me fixamente, mesmo enquanto ficavam vidrados com o conhecimento da morte. A Dama Branca pode transformar a natureza de um homem para o bem ou para a destruição.

O corpo do conde bateu no chão, contorcendo-se, e um coro de gritos e berros ergueu-se dos observadores encapuzados, abafando qualquer som que ele pudesse ter emitido. Seus calcanhares tamborilaram por um instante, silenciosos no tapete florido. Seu corpo arqueou-se, depois se abateu, languidamente. A serpente, completamente decepcionada, libertou-se das dobras desordenadas de cetim branco e fugiu, deslizando ligeiro em direção ao santuário dos pés de Luís.

Foi um pandemônio.

 

Voltei de Paris para a casa de Louise em Fontainebleau. Não queria ir para a rue Tremoulins — ou qualquer outro lugar onde Jamie pudesse me encontrar. Ele não teria muito tempo para me procurar; teria que partir para a Espanha praticamente assim que fosse solto, ou correr o risco de ver seu plano fracassar.

Louise, como boa amiga que era, perdoou meu subterfúgio e -justiça lhe seja feita — absteve-se de perguntar aonde eu fora ou o que fizera. Eu quase não falava com ninguém, permanecendo em meu quarto a maior parte do tempo, comendo pouco e fitando os putti gorduchos e nus que decoravam o teto branco. A pura necessidade da viagem a Paris me animara por algum tempo, mas agora não havia mais nada que eu tivesse que fazer, nenhuma rotina diária para me encorajar. Sem leme, comecei a me deixar levar pela corrente, à deriva outra vez.

Ainda assim, às vezes eu fazia um esforço. Estimulada por Louise, descia para um jantar social ou acompanhava-a quando recebia uma amiga para um chá. E tentava prestar atenção a Fergus, a única pessoa no mundo por quem eu ainda tinha alguma noção de responsabilidade.

Assim, quando ouvi sua voz numa discussão do outro lado de uma das construções anexas enquanto obedientemente fazia minha caminhada vespertina, senti-me obrigada a ir ver qual era o problema.

Ele estava cara a cara com um dos rapazes do estábulo, um garoto maior do que ele, de ombros largos e expressão furiosa.

— Cale a boca, sapo ignorante — dizia o rapaz. — Não sabe o que está falando!

— Sei mais do que você... você, filho de uma mãe que se acasalou com um porco! — Fergus colocou dois dedos nas narinas, empurrou o nariz para cima e ficou dançando para frente e para trás, gritando: “Oinc, oinc!”, sem parar.

O moço do estábulo, que realmente tinha uma tromba notoriamente arrebitada, não perdeu tempo com conversa e avançou agitando os dois punhos cerrados. Em poucos segundos, os dois rolavam no chão lamacento, berrando como gatos e rasgando a roupa um do outro.

Enquanto eu ainda ponderava se devia ou não interferir, o rapaz rolou Para cima de Fergus. agarrou seu pescoço com as duas mãos e começou a bater sua cabeça no chão. Por um lado, eu achava que Fergus provocara a situação. Por outro, seu rosto estava ficando escuro, arroxeado, e eu tinha algumas reservas em vê-lo estrangulado na flor da idade. com certa dose de deliberação, aproximei-me por trás dos dois brigões.

O rapaz estava montado sobre o corpo de Fergus, estrangulando-o, e o traseiro de suas calças estava bem esticado diante de mim. Lancei o pé para trás e dei um chute certeiro com minha bota na costura de suas calças. Precariamente equilibrado, ele caiu para frente com um grito de surpresa, em cima do corpo de sua vítima. Ele rolou para o lado e pôs-se de pé, os punhos cerrados. Ao me ver, saiu correndo sem dizer nenhuma palavra.

— Você acha que isso é brincadeira? — perguntei. Puxei Fergus, que arfava e balbuciava confusamente, colocando-o de pé, e comecei a bater suas roupas, retirando a maior parte dos grumos de lama e restos de palha.

— Olha só isso — eu disse acusadoramente. — Você não só rasgou sua camisa, mas as calças também. Vamos ter que pedir a Berta para remendálas. — Virei-o e segurei o pedaço rasgado do tecido. Aparentemente o rapaz do estábulo o agarrara pelo cós das calças e puxara para baixo, rasgando-as pela costura lateral; o tecido rústico de algodão pendia de seus quadris magros, mal encobrindo uma das nádegas.

Parei de falar repentinamente e fixei os olhos. Não foi a desonrosa visão da pele nua que deteve minha atenção, mas uma pequena marca vermelha sobre ela. Do tamanho de uma moeda pequena, era escura, arroxeada, de uma queimadura recente que acabara de cicatrizar. Incrédula, toquei-a, fazendo Fergus dar um salto, alarmado. As bordas da marca formavam uma cicatriz funda; o que quer que tivesse feito aquilo, havia penetrado na carne. Agarrei o menino pelo braço para impedir que fugisse correndo e me inclinei para examinar a marca mais de perto.

A uma distância de quinze centímetros, o formato da marca era claro; era uma figura oval, ostentando em seu interior umas formas imprecisas do que deveriam ser letras.

— Quem lhe fez isso, Fergus? — perguntei. Minha voz soou estranha a meus próprios ouvidos; excepcionalmente calma e distanciada.

Fergus puxou o braço com força, tentando desvencilhar-se de mim, mas eu segurei-o com firmeza.

— Quem, Fergus? — insisti, sacudindo-o levemente.

— Não é nada, madame; eu me machuquei descendo da cerca. Foi só uma lasca de madeira. — Seus olhos grandes e negros iam de um lado para o outro, buscando um refúgio.

— Isso não foi causado por uma lasca de madeira. Sei o que é, Fergus. Mas quero saber quem fez isso. — Eu já vira algo semelhante uma única vez antes, e o ferimento ainda muito recente, enquanto este já tivera algum tempo para cicatrizar. Mas uma marca a ferro em brasa é inconfundível.

Vendo que eu falava a sério, ele parou de se debater. Umedeceu os lábios, hesitando, mas seus ombros caíram e compreendi que agora eu saberia a verdade.

— Foi... um inglês, milady. com um anel.

— Quando?

— Há muito tempo, madame! Em maio.

Respirei fundo, calculando. Três meses. Três meses atrás, quando Jamie saíra de casa para ir ao bordel, à procura do contramestre do seu depósito. Na companhia de Fergus. Três meses desde que Jamie encontrara Jack Randall no estabelecimento de madame Elise e viu algo que anulou e invalidou todas as promessas, que forjou nele a determinação de matar Jack Randall. Três meses desde que ele partira — para não mais voltar.

Foi preciso uma boa dose de paciência, complementada por um aperto firme do braço de Fergus, mas finalmente consegui extrair a história dele.

Quando chegaram ao estabelecimento de madame Elise, Jamie disse a Fergus para esperar por ele enquanto ia ao andar de cima fazer alguns acertos financeiros. Julgando por experiência anterior que aquilo poderia levar algum tempo, Fergus dirigiu-se ao salão principal, onde várias raparigas que ele conhecia “descansavam”, conversando e ajeitando os cabelos umas das outras, à espera dos clientes.

— Os negócios às vezes são lentos de manhã — ele explicou-me. — Mas às terças e sextas-feiras, os pescadores sobem o Sena para vender a pesca de manhã no mercado. Então, têm algum dinheiro e os negócios de madame Elise vão bem, de modo que lês jeunes filies têm que estar prontas logo depois do desjejum.

Quase todas as “garotas” eram na verdade as mais antigas moradoras do estabelecimento; os pescadores não eram considerados clientes de classe e assim eram destinados, automaticamente, às prostitutas menos requisitadas. No entanto, entre elas, estava a maioria das antigas amigas de Fergus e ele passou um agradável quarto de hora no salão, como o centro das atenções e brincadeiras. Alguns clientes madrugadores apareceram, fizeram sua escolha e partiram para os quartos em cima — a casa de madame Elise orgulhava-se de ter quatro andares estreitos —, sem perturbar a conversa das mulheres que permaneciam no térreo.

— Então, o inglês entrou, com madame Elise. — Fergus parou e engoliu em seco, o pomo-de-adão protuberante subindo e descendo nervosamente na garganta esquelética.

Era óbvio para Fergus, que já vira homens em todo estado de embriaguez e excitamento, que o capitão tivera uma noite e tanto. Estava afogueado,e desarrumado, e seus olhos estavam injetados. Ignorando as tentativas de madame Elise de guiá-lo para uma das prostitutas, ele se desvencilhou e vagou pelo aposento, examinando friamente a mercadoria em exposição. Então, seus olhos recaíram sobre Fergus.

— Ele disse: “Você. Venha comigo.” E me pegou pelo braço. Fiquei onde estava, madame. Eu disse a ele que meu patrão estava lá em cima e que eu não podia, mas ele não quis ouvir. Madame Elise sussurrou no meu ouvido que eu deveria ir com ele e que ela dividiria o dinheiro comigo depois. — Fergus estremeceu e olhou-me com ar desolado. — Eu sabia que aqueles que gostavam de garotos em geral não levavam muito tempo; achei que ele já teria terminado muito antes de milorde estar pronto para ir embora.

— Santo Deus! — exclamei. Meus dedos relaxaram o aperto em seu braço e deslizaram nervosamente pela manga da camisa. — Quer dizer... Fergus, você já havia feito isso antes?

Ele parecia querer chorar. Eu também.

— Não muito, madame — ele disse, quase como uma súplica para que eu compreendesse. — Há casas onde esta é a especialidade e geralmente os homens que gostam disso vão lá. Mas às vezes um cliente me via e se agradava de mim... — Seu nariz começava a escorrer e ele o limpou com as costas da mão.

Remexi meu bolso à procura de um lenço e o dei para ele. Ele começou a choramingar ao recordar aquela manhã de sexta-feira.

— Ele era muito maior do que eu pensara. Perguntei a ele se eu podia fazer com a boca, mas ele... mas ele queria...

Puxei-o para mim e pressionei sua cabeça com força contra meu ombro, abafando sua voz no tecido do meu vestido. As frágeis omoplatas de seus ombros pareciam as asas de um pássaro sob minhas mãos.

— Não me conte mais nada — eu disse. — Não. Está tudo bem, Fergus. Eu não estou zangada. Mas não me conte mais nada.

Foi uma ordem inútil; ele não conseguia parar de falar, após tantos dias de silêncio e medo.

— Mas foi tudo minha culpa, madame! — ele irrompeu, afastando-se de mim. Seus lábios tremiam e as lágrimas afloraram a seus olhos. — Eu devia ter ficado quieto; não devia ter gritado! Mas não consegui e milorde ouviu e... e ele irrompeu no quarto... e... ah, madame, eu não devia, mas fiquei tão feliz de vê-lo, eu corri para ele. Ele me colocou atrás dele e deu um soco no rosto do inglês. Então, o inglês levantou do chão com o banquinho na mão e o atirou e eu fiquei com tanto medo... saí correndo do quarto e me escondi no armário no final do corredor. Então, foi tanta gritaria e barulho, depois um estrondo terrível e mais gritaria. Depois, tudo parou e logo milorde abriu a porta do armário e me tirou lá de dentro. Ele tinha minhas roupas e ele mesmo me vestiu, porque eu não conseguia abotoar Os botões... meus dedos tremiam.

Agarrou minha saia com as duas mãos, a necessidade de me fazer acreditar nele crispando seu rosto numa máscara simiesca de sofrimento.

— É minha culpa, madame, mas eu não sabia! Eu não sabia que ele iria lutar com o inglês. E agora milorde foi embora e nunca mais vai voltar e tudo por minha culpa!

Gemendo agora, caiu aos meus pés com o rosto para baixo. Chorava tão alto que acho que não me ouvia quando me inclinei para erguê-lo, mas assim mesmo eu disse:

— Não é culpa sua, Fergus. Também não é culpa minha. Mas você tem razão: ele foi embora.

Após a revelação de Fergus, mergulhei numa apatia ainda mais profunda. A nuvem cinza que me cercava desde o aborto pareceu envolver-me ainda mais densamente, enfaixando-me em ataduras que obscureciam a luz do mais brilhante dos dias. Os sons pareciam alcançar-me fracamente, como o tilintar distante de uma bóia através da neblina do mar.

Louise estava parada diante de mim, franzindo o cenho de preocupação enquanto me olhava de cima.

— Você está magra demais — ralhou. — E branca como um prato de tripas. Ivonne disse que você não comeu nada de manhã de novo!

Não me lembrava mais da última vez em que sentira fome. Não parecia importante. Muito antes do Bois de Boulogne, muito antes de minha viagem a Paris. Fixei o olhar no consolo da lareira e deixei-me levar pelos floreios da madeira esculpida em estilo rococó. A voz de Louise continuava sem cessar, mas eu não prestei atenção; era apenas um ruído no aposento, como o farfalhar de um galho de árvore contra a parede de pedra do castelo ou o zumbido de moscas atraídas pelo cheiro do meu desjejum descartado.

Observei uma delas, levantando-se dos ovos num movimento súbito quando Louise bateu palmas. Continuou a zumbir em círculos pequenos e irritantes antes de assentar-se de novo sobre o lugar onde se alimentava. O ruído de passos apressados surgiu atrás de mim, ouviu-se uma ordem incisiva de Louise, um submisso “Oui, madame” e o som de um batedor de moscas conforme a criada tratava de removê-las, uma a uma. Ela jogava cada minúsculo cadáver preto dentro do bolso, pinçando-o da mesa e limpando a sujeira deixada pelo golpe com uma ponta do avental.

Louise inclinou-se, enfiando o rosto repentinamente no meu campo de visão.

— Posso ver todos os ossos do seu rosto! Se não vai comer, ao menos vá lá fora um pouco! — disse impacientemente. — A chuva parou. Venha, vamos ver se restaram algumas uvas moscatel no vinhedo. Talvez você coma algumas.

Dentro ou fora de casa era praticamente o mesmo para mim; a névoa cinzenta, entorpecente e anestesiante, continuava comigo, tornando os contornos imprecisos e fazendo cada lugar parecer igual a outro. Mas parecia ser importante para Louise, de modo que me levantei obedientemente para acompanhá-la.

Perto do portão do jardim, entretanto, ela foi surpreendida pela cozinheira, com uma lista de perguntas e reclamações sobre o menu do jantar. Haveria convidados, com o objetivo de me distrair, e a agitação dos preparativos estava causando pequenas explosões de discórdia doméstica a manhã inteira.

Louise emitiu um suspiro martirizado, depois deu uns tapinhas nas minhas costas.

— Vá você — ela disse, estimulando-me a seguir em direção ao portão. — Mandarei um lacaio com seu manto.

Era um dia frio para agosto porque a chuva caíra durante toda a noite. Havia poças nos caminhos de cascalhos e os pingos d’água que caíam das árvores encharcadas eram quase tão incessantes quanto a própria chuva.

O céu ainda estava cinzento, mas perdera o tom carregado das nuvens saturadas de água. Cruzei os braços segurando meus cotovelos; parecia que o sol sairia em breve, mas ainda fazia frio suficiente para ser necessário usar um manto.

Quando ouvi passos atrás de mim no caminho, virei-me e vi François, o segundo lacaio, mas ele não carregava nada. Pareceu estranhamente hesitante, olhando como se quisesse se certificar de que eu era mesmo a pessoa que ele estava procurando.

— Madame — disse -, há uma visita para a senhora.

Suspirei interiormente, não queria me dar ao trabalho de ser sociável com ninguém.

— Diga-lhes que estou indisposta, por favor — eu disse, virando-me para continuar meu passeio. — E depois que tiverem ido embora, traga-me meu manto.

— Mas, madame — ele disse atrás de mim -, é lê seigneur Broch Tuarach, seu marido.

Espantada, girei nos calcanhares para olhar para a casa. Era verdade; eu podia ver a figura alta de Jamie, já dobrando a esquina da mansão. Virei-me, fingindo não tê-lo visto, e me afastei em direção ao vinhedo. O mato era fechado ali; talvez eu pudesse me esconder.

— Claire! — Era inútil fingir; ele também me vira e vinha pelo caminho em minha direção. Andei mais rápido, mas eu não podia competir com aquelas pernas compridas. Já estava arquejante antes de cobrir metade da distância até o vinhedo e tive que diminuir a marcha; eu não estava em condições físicas para um exercício extenuante.

— Claire! Espere!

Virei-me parcialmente; ele ja estava quase me alcançando. O embotamento cinza e suave que me rodeava estremeceu e senti uma espécie de pânico paralisante à idéia de que a presença dele pudesse arrancar de mim aquele torpor em que eu vivia. Se isso acontecesse, eu morreria, pensei, como uma larva de inseto escavada do solo e atirada sobre uma rocha para encarquilhar e secar, nua e indefesa ao sol.

— Não! — eu disse. — Não quero falar com você. Vá embora. — Ele hesitou por um instante e eu me virei e comecei a andar rapidamente pelo atalho, em direção ao vinhedo. Ouvi seus passos no cascalho do caminho atrás de mim, mas continuei de costas e apressei ainda mais o passo, quase correndo.

Quando parei para me agachar sob as vinhas, ele deu um salto para a frente e agarrou-me pelo pulso. Tentei me libertar, mas ele me segurou com firmeza.

— Claire! — ele repetiu. Debati-me, mas mantive o rosto virado. Se eu não olhasse para ele, poderia fingir que ele não estava ali. Podia continuar a salvo.

Ele soltou meu pulso, mas agarrou-me pelos ombros, de modo que tive que erguer a cabeça para manter o equilíbrio. Seu rosto estava bronzeado e magro, com linhas duras e fundas em torno dos lábios, e seus olhos estavam escuros de sofrimento.

— Claire — ele disse mais suavemente, agora que podia me ver olhando para ele. — Claire... era meu filho também.

— Sim, era, e você o matou! — Arranquei-me violentamente de suas mãos, lançando-me através do arco estreito. Em seguida, parei, arfando como um cão apavorado. Eu não percebera que o arco conduzia a uma minúscula construção coberta de videiras. Paredes de treliça rodeavam-me por todos os lados; eu fora capturada numa armadilha. A luz às minhas costas enfraqueceu-se quando seu corpo bloqueou a passagem em arco.

— Não me toque. — Recuei, fitando o chão. Vá embora!, pensei freneticamente. Por favor, pelo amor de Deus, deixe-me em paz! Eu podia sentir meu invólucro cinzento sendo inexoravelmente removido e filetes brilhantes de sofrimento atravessarem meu corpo como raios perfurando nuvens.

Ele parou, a alguns passos de distância. Cambaleei às cegas em direção à parede de treliça e em parte caí, em parte me sentei em um banco de madeira. Fechei os olhos e fiquei sentada, tremendo. Embora não estivesse mais chovendo, havia um vento úmido e frio que atravessava a treliça e resfriava meu pescoço.

Ele não se aproximou. Podia senti-lo, lá parado, olhando para mim. Podia ouvir sua respiração entrecortada.

— Claire — ele disse outra vez, com algo que parecia desespero em sua voz —, Claire, você não vê... Claire, você precisa falar comigo! Pelo amor de Deus, Claire, eu nem sei se era menino ou menina!

Permaneci sentada, paralisada, as mãos agarrando-se à madeira áspera do banco. Após um instante, ouviu-se um barulho pesado, de trituração dos cascalhos no chão à minha frente. Abri uma fenda dos olhos e vi que ele se sentara, exatamente como estava, nos cascalhos molhados aos meus pés. Sentara-se com a cabeça abaixada e a chuva havia deixado lantejoulas em seus cabelos escuros da umidade.

— Vai me fazer suplicar? — ele perguntou.

— Era uma menina — eu disse após um instante. Minha voz soou esquisita; rouca e áspera. — Madre Hildegarde a batizou. Faith. Fé. Faith Fraser. Madre Hildegarde tem um senso de humor muito estranho.

A cabeça baixa não se moveu. Após alguns instantes, ele disse a meia voz:

— Você viu a criança?

Meus olhos estavam completamente abertos agora. Fitei meus joelhos, onde gotas d’água das vinhas atrás de mim criavam pontos molhados na seda.

— Sim. A mâitresse sage-femme disse que eu devia, assim fizeram-me vêla. — Podia ouvir na lembrança o tom prático, baixo, da voz de madame Bonheur, a mais antiga e respeitada das parteiras que trabalhavam como voluntárias no Hôpital dês Anges.

— Dê-lhe a criança; é sempre melhor se elas a vêem. Assim, não ficam imaginando coisas.

Então, eu não imaginava. Eu me lembrava.

— Ela era perfeita — eu disse baixinho, como se falasse comigo mesma. — Tão pequenina. Eu podia segurar sua cabeça na palma da minha mão. Suas orelhas destacavam-se só um pouquinho da cabeça... e eu podia ver a luz brilhar através delas.

A luz também brilhara através de sua pele, radiante na forma redonda das bochechas e das nádegas, com o brilho próprio das pérolas; serena e fria, com o estranho toque do mundo aquático ainda sobre ela.

— Madre Hildegarde enrolou-a em cetim branco — eu disse, os olhos abaixados para meus punhos cerrados no colo. — Seus olhos estavam fechados.

Ela ainda não tinha pestanas, mas seus olhos eram puxados. Eu disse que eram como os seus, mas elas disseram que os olhos de todos os bebês são assim.

Dez dedos nos pés e nas mãos. Não tinha unhas, mas o brilho de minúsculas articulações, rótulas e ossos era como o brilho de opalas, os ossos da própria terra. Lembre-se, homem, tu és pó...

Lembrava-me dos ruídos distantes do próprio hospital, onde a vida ainda continuava e o murmúrio amortecido de madre Hildegarde e madame Bonheur, mais perto, falando do padre que rezaria uma missa especial, a pedido de madre Hildegarde. Lembrei-me da expressão de calma avaliação nos olhos de madame Bonheur quando ela se virou para avaliar meu estado, vendo minha fraqueza. Talvez ela também tenha visto a claridade que revela a febre que se aproxima; ela voltou-se novamente para madre Hildegarde e sua voz tornou-se ainda mais baixa — talvez sugerindo que esperassem; talvez houvesse dois funerais.

E ao pó voltarás.

Mas eu ressurgira dos mortos. Somente a posse do meu corpo por Jamie fora forte o suficiente para me trazer de volta dessa barreira final, e mestre Raymond compreendera isso. Eu sabia que somente o próprio Jamie poderia me arrastar de volta pelo resto do caminho, até o mundo dos vivos. Foi por isso que eu fugi dele, fiz todo o possível para mantê-lo longe, para ter certeza de que ele jamais voltaria a se aproximar de mim. Eu não tinha nenhuma vontade de voltar, nenhuma vontade de sentir outra vez. Não queria conhecer o amor, apenas para vê-lo arrancado de mim novamente.

Mas era tarde demais. Eu sabia disso, mesmo enquanto lutava para manter a mortalha cinza ao meu redor. Lutar apenas apressava a sua dissolução; era como agarrar-se a frangalhos de nuvem, que se esvaíam em névoa fria entre meus dedos. Eu podia sentir a luz vindo em minha direção, ofuscante e abrasadora.

Ele se levantara, estava de pé, olhando-me do alto. Sua sombra recaía sobre meus joelhos; sem dúvida, isso significava que a nuvem se desfizera; uma sombra não se forma sem luz.

— Claire — ele sussurrou. — Por favor. Deixe-me confortá-la.

— Confortar-me? — eu disse. — E como vai fazer isso? Pode me dar minha filha de volta?

Ele caiu de joelhos diante de mim, mas eu mantive a cabeça abaixada, fitando minhas mãos viradas para cima, vazias, no meu colo. Senti seu movimento quando estendeu a mão para me tocar, hesitou, retirou-a, estendeu-a novamente.

— Não — ele disse, a voz quase inaudível. — Não, não posso fazer isso Mas... com a graça de Deus... eu poderia lhe dar outra?

Sua mão pairou sobre a minha, tão perto que senti o calor de sua pele. Senti outras coisas também: a dor que ele mantinha sob rédeas curtas, a raiva e o medo que o sufocavam, e a coragem que o fazia falar apesar de tudo. Reuni minha própria coragem, uma débil substituta para a mortalha cinza e espessa. Então, tomei sua mão e ergui a cabeça, e olhei de frente para o sol.

Permanecemos sentados, as mãos entrelaçadas e apertadas sobre o banco, imóveis, pelo que pareceram horas, com a brisa úmida e fria sussurrando nossos pensamentos nas folhas das videiras acima. Gotas d’água espalhavam-se sobre nós com a passagem do vento, chorando a perda e a separação.

— Você está gelada — Jamie murmurou finalmente e passou uma aba do seu manto ao meu redor, trazendo com ela o calor de sua pele. Aproximeime dele devagar sob seu abrigo, tremendo ainda mais por causa da surpreendente solidez, o súbito calor de seu corpo, do que pelo frio.

Coloquei a mão em seu peito, hesitante, como se tocá-lo pudesse queimar-me com a verdade, e assim ficamos sentados por mais um longo tempo, deixando as folhas das videiras falarem por nós.

— Jamie — eu disse finalmente, a meia-voz. — Ah, Jamie. Onde você estava?

Seus braços endureceram-se ao meu redor, mas demorou a responder.

— Achei que você estivesse morta, mo duinne — ele disse, tão baixo que eu mal podia ouvi-lo acima do farfalhar do vinhedo.

— Eu a vi lá, no chão, no fim. Deus, você estava tão branca e suas saias encharcadas de sangue... Tentei aproximar-me de você, Claire, assim que eu vi... eu corri para você, mas foi então que a guarda me segurou.

Engoliu em seco; podia sentir o tremor percorrê-lo de cima a baixo, pela longa curva de sua espinha dorsal.

— Eu lutei com eles... lutei e, sim, supliquei... mas se recusaram a permanecer ali e me levaram com eles. Colocaram-me numa cela e deixaram-me lá... achando que você estava morta, Claire; sabendo que eu a havia matado.

O leve tremor continuou e eu percebi que ele chorava, embora não visse seu rosto acima do meu. Por quanto tempo ele ficara sentado sozinho numa cela da Bastilha, sozinho exceto pelo cheiro de sangue e pela casca oca da vingança?

— Está tudo bem — eu disse, pressionando minha mão com mais força contra seu peito, como se quisesse acalmar os batimentos acelerados de seu coração. — Jamie, está tudo bem. Não... não foi culpa sua.

— Tentei socar a cabeça na parede, apenas para parar de pensar — ele disse, quase num sussurro. — Então, me amarraram, mãos e pés. No dia seguinte, de Rohan me encontrou e me disse que você estava viva, embora talvez não por muito tempo.

Ficou em silêncio, mas eu podia sentir a dor que o dilacerava, aguda como lanças de cristal de gelo.

— Claire — ele murmurou finalmente. — Eu sinto muito.

Eu sinto muito. As palavras eram as mesmas do bilhete que ele me deixara, antes do mundo desmoronar. Mas agora eu as compreendia.

— Eu sei — eu disse. — Jamie, eu sei. Fergus me contou. Sei por que você teve que ir.

Respirou ruidosamente, uma respiração funda e entrecortada.

— Sim, bem... — ele disse, e parou.

Deixei minha mão cair sobre sua coxa; frias e molhadas da chuva, suas calças de montar eram ásperas sob a palma de minha mão.

— Eles lhe disseram... quando o deixaram partir... por que você foi libertado? — Tentei manter a minha própria respiração regular, mas não consegui.

Os músculos de sua coxa retesaram-se sob minha mão, mas sua voz estava mais controlada agora.

— Não — ele disse. — Apenas que foi... para satisfação de Sua Majestade. — A palavra “satisfação” foi apenas ligeiramente enfatizada, dita com uma ferocidade delicada que deixava bastante claro que ele de fato sabia quais haviam sido os meios de sua soltura, quer os carcereiros tivessem lhe contado ou não.

Mordi com força o lábio inferior, tentando decidir o que dizer-lhe agora.

— Foi madre Hildegarde — ele continuou, a voz firme. — Fui imediatamente ao Hôpital dês Anges, à sua procura. E encontrei madre Hildegarde e o pequeno bilhete que você deixara para mim. Ela... me contou.

— Sim — eu disse, engolindo em seco. — Fui ver o rei...

— Eu sei! — Sua mão apertou a minha com força e pelo som de sua respiração, eu sabia que seus dentes estavam cerrados.

— Mas Jamie... quando eu fui...

— Cristo! — ele disse, endireitando-se subitamente e virando o rosto para mim. — Você não sabe o que eu... Claire. — Fechou os olhos por um instante e respirou fundo. — Cavalguei até Orvieto, vendo a cena; vendo as mããos dele na sua pele branca, os lábios em seu pescoço, seu... seu pênis... eu vi isso no lever... vi aquela coisa imunda, maldita, deslizando... Meu Deus, Claire! Fiquei sentado na prisão pensando que você estava morta e depois cavalguei para a Espanha pedindo a Deus que estivesse!

Os nós dos dedos da mão que segurava a minha estavam brancos e eu podia sentir os pequenos ossos de meus dedos estalarem sob o aperto de sua mão.

Retirei minha mão com um arranco.

— Jamie, ouça-me!

— Não! — ele disse. — Não, eu não quero ouvir...

— Ouça, droga!

Houve bastante força em minha voz para fazê-lo calar-se por um instante e, enquanto estava mudo, comecei a contar-lhe rapidamente a história da sala do rei; os homens encapuzados e o aposento às escuras, o combate entre os feiticeiros e a morte do conde de St. Germain.

Enquanto eu falava, a cor desapareceu de suas faces batidas pelo vento e sua expressão suavizou-se da angústia e da fúria para a perplexidade, e gradualmente para a impressionada compreensão.

— Meu Deus — disse com um suspiro finalmente. — Ó Santo Deus!

— Você não sabia o que estava desencadeando com aquela história tola, não é? — Sentia-me exausta, mas consegui esboçar um sorriso. — Então... então o conde... está tudo bem, Jamie. Ele... está morto.

Ele não disse nada em resposta, mas puxou-me delicadamente para ele, de modo que minha testa repousou em seu ombro e minhas lágrimas encharcaram o tecido de sua camisa. Após um instante, no entanto, endireitei-me e fitei-o, limpando o rosto.

— Jamie! O carregamento de Porto, o investimento de Carlos Stuart! Se o conde está morto...

Ele sacudiu a cabeça, sorrindo debilmente.

— Não, mo duinne. Está a salvo. Senti uma onda de alívio.

— Ah, graças a Deus. Então, você conseguiu? Os remédios fizeram efeito em Murtagh?

— Bem, não — ele disse, o sorriso alargando-se —, mas fizeram em mim. — Aliviada ao mesmo tempo do medo e da raiva, senti-me zonza, com vertigem. O cheiro das uvas varridas pela chuva era forte e adocicado e foi um abençoado alívio apoiar-me contra ele, sentindo o seu calor como um conforto, não como uma ameaça, enquanto ouvia a história de pirataria a respeito do vinho do Porto.

— Há homens que nasceram para o mar, Sassenach — ele começou• — Mas receio que eu não seja um deles.

— Eu Sei — eu disse. — Ficou mareado?

— Raramente estive mais enjoado — assegurou-me ironicamente.

O mar ao largo de Orvieto estava agitado e dentro de uma hora tornou-se claro para Jamie que ele não conseguiria levar a cabo a sua parte do plano original.

— De qualquer modo, eu não conseguia fazer nada além de ficar deitado em minha rede, gemendo — ele disse, dando de ombros -, de modo que parecia que eu estava com varíola, também.

Ele e Murtagh apressadamente trocaram os papéis e, depois de vinte e quatro horas ao largo da costa da Espanha, o mestre do Scalamandre, descobriu para seu horror que a praga se espalhara no convés inferior.

Jamie coçou o pescoço pensativamente, como se ainda sentisse os efeitos do extrato de urtiga.

— Pensaram em me atirar ao mar pela murada quando descobriram — ele disse -, e devo afirmar que me pareceu uma ótima idéia. — Lançou-me um sorriso enviesado. — Já teve enjôo do mar, ao mesmo tempo em que estava coberta de erupções de urtiga, Sassenach?

— Não, graças a Deus. — Estremeci diante do pensamento. — Murtagh os impediu?

— Ah, sim. Murtagh é muito convincente. Ele dormiu atravessado na soleira da porta com a mão na adaga, até chegarmos a salvo ao porto de Bilbao.

Como previsto, o capitão do Scalamandre, diante da escolha nada lucrativa entre prosseguir até Lê Havre e ver sua carga confiscada ou retornar para a Espanha e aguardar enquanto a notícia era enviada a Paris, ele agarrou-se à oportunidade de se livrar de sua carga de Porto, passando-a a um novo comprador que o acaso colocara em seu caminho.

— Não que ele não tenha barganhado — Jamie observou, coçando o braço. — Ele passou metade de um dia regateando e eu morrendo na rede, urinando sangue e vomitando até as tripas!

Mas o negócio fora fechado, tanto o Porto quanto a vítima de varíola descarregados às pressas em Bilbao e — fora uma persistente tendência a urinar vermelhão — a recuperação de Jamie fora rápida.

— Vendemos o vinho para um intermediário lá em Bilbao — ele disse. — Enviei Murtagh imediatamente a Paris, para pagar o empréstimo de monsieur Duverney e depois... vim para cá.

Abaixou os olhos para as próprias mãos, paradas serenamente em seu colo.

— Não conseguia decidir — ele disse baixinho. — Vir ou não vir. Caminhei, para dar a mim mesmo tempo para pensar. Fiz todo o trajeto de Paris a Fontainebleau a pé. E quase metade do caminho de volta. Voltei meia dúzia de vezes, me achando um assassino e um tolo, sem saber se deveria me matar ou matar você...

Suspirou e olhou para mim, os olhos escuros com os reflexos das folhas agitadas.

— Eu tinha que vir — ele disse simplesmente.

Eu não disse nada, mas coloquei minha mão sobre a sua e sentei-me a seu lado. Uvas caídas entulhavam o chão sob as vinhas, o cheiro penetrante de sua fermentação prometendo o esquecimento produzido pelo vinho.

O sol, semi-encoberto pelas nuvens, estava se pondo e um clarão dourado delineou a silhueta da figura respeitosa de Hugo, surgindo negra à entrada do vinhedo.

— com licença, madame — ele disse. — Minha senhora deseja saber se o seigneur ficará para o jantar.

Olhei para Jamie. Ele continuou sentado, imóvel, à espera, o sol que atravessava as folhas das videiras produzindo reflexos em seus cabelos como as listras de um tigre, as sombras recaindo sobre seu rosto.

— Acho melhor você ficar — eu disse. — Está terrivelmente magro. Ele me olhou de cima a baixo com um leve sorriso.

— Você também, Sassenach. — Levantou-se e me ofereceu o braço. Tomei seu braço e entramos juntos para o jantar, deixando as folhas das parreiras entregues à sua conversa muda.

Deitei-me ao lado de Jamie, bem junto a ele, sua mão pousada em minha coxa enquanto dormia. Eu olhava fixamente para cima, para a escuridão do quarto, ouvindo sua respiração tranqüila, eu mesma respirando o aroma refrescante do ar noturno, com um toque de cheiro de glicínia.

O colapso do conde de St. Germain marcara o final da noite, no que dizia respeito a todos os envolvidos, exceto a Luís. Quando o grupo preparou-se para partir, sussurrando agitadamente entre si, Luís tomou meu braço e conduziu-me pela mesma porta estreita pela qual eu entrara. bom com palavras quando necessário, ele não precisava de nenhuma agora.

Fui conduzida à chaise de veludo verde, deitada de costas e minhas saias delicadamente erguidas antes que eu pudesse dizer alguma coisa. Ele não me beijou; ele não me desejava. Esse era o ritual de reclamação do pagamento acordado. Luís era um negociador astuto e não era de esquecer uma dívida que achasse que lhe era devida, quer o pagamento tivesse valor para ele ou não. E talvez tivesse, afinal; havia mais do que uma leve indicação de temerosa excitação em seus preparativos — quem senão um rei ousaria tomar nos braços La Dame Blanche?

Eu estava fechada e seca, despreparada. Impaciente, ele pegou da mesa um frasco de óleo perfumado a rosas e massageou-o brevemente entre minhas pernas. Permaneci imóvel, sem emitir nenhum som, enquanto o dedo apressadamente explorador retrocedeu, substituído imediatamente por um membro um pouco maior e — “sofri” é a palavra errada, não houve nem dor nem humilhação envolvidas; era uma transação — eu esperei, então, durante os rápidos movimentos; em seguida, ele já estava de pé, o rosto afogueado de excitação, as mãos tateando desajeitadamente para fechar as calças sobre o pequeno volume que guardavam. Ele não iria arriscar a possibilidade de um filho bastardo, semi-real, semimágico; não com madame de La Tourelle pronta — muito mais do que eu, assim esperava — e aguardando em seus próprios aposentos ao final do corredor.

Eu dera o que fora implicitamente prometido; agora ele podia concordar honrosamente com meu pedido, achando que não perdera nada de seus direitos. Quanto a mim, respondi à sua mesura cortês com a minha própria, tirei meu cotovelo de sua mão depois que ele galantemente me conduziu até a porta e deixei a sala de audiência apenas alguns minutos depois de ter entrado, com a confirmação do rei de que a ordem para libertação de Jamie seria dada pela manhã.

O Cavalheiro da Alcova estava de pé no vestíbulo, esperando. Fez uma mesura para mim, eu correspondi, depois o segui pelo Salão dos Espelhos, sentindo minhas coxas escorregadias de óleo conforme roçavam uma na outra e, nas narinas, o forte perfume de rosas entre minhas pernas.

Ouvindo o portão do palácio fechar-se atrás de mim, cerrei os olhos e pensei em que jamais veria Jamie outra vez. E se por acaso o visse, iria esfregar seu nariz no cheiro de rosas, até que sua alma adoecesse e morresse.

Mas agora, em vez disso, eu segurava sua mão em minha coxa, ouvindo sua respiração, profunda e regular na escuridão, ao meu lado. E deixei que a porta se fechasse para sempre sobre a audiência com Sua Majestade.

 

Escócia. — Suspirei, pensando nos rios frios, pardos, e nos pinheiros escuros de Lallybroch, a propriedade de Jamie. — Podemos realmente voltar para casa?

— Acho que é o que teremos que fazer — ele respondeu ironicamente. — O perdão do rei diz que eu deixe a França até meados de setembro ou serei levado de volta para a Bastilha. Provavelmente, Sua Majestade também arrumou um perdão da Coroa Inglesa, de modo que não serei enforcado assim que descer do navio em Inverness.

— Creio que podíamos ir para Roma, ou para a Alemanha — sugeri. Eu não queria nada além de voltar para casa em Lallybroch e me recuperar na paz silenciosa das Highlands escocesas. Meu coração desfalecia à idéia de cortes reais e intrigas, da pressão permanente de perigo e insegurança. Mas se Jamie achasse que devíamos...

Ele sacudiu a cabeça, os cabelos ruivos caindo no rosto enquanto se inclinava para calçar as meias.

— Não, é a Escócia ou a Bastilha — ele disse. — Nossa passagem já está reservada, só para garantir. — Endireitou-se e afastou os cabelos dos olhos com um sorriso enviesado. — Imagino que o duque de Sandringham e, provavelmente, o rei Jorge querem me ver seguro em casa, onde podem ficar de olho em mim. Não espionando em Roma ou levantando fundos na Alemanha. A concessão de três semanas, imagino, é uma cortesia a Jared, dando-lhe tempo suficiente para voltar para casa antes de minha partida.

Eu estava sentada no peitoril da janela do meu quarto, olhando para fora, para o revolto mar verde das florestas de Fontainebleau. O ar lânguido e quente de verão parecia nos oprimir, drenando todas as nossas energias.

— Não posso dizer que não esteja feliz. — Suspirei, pressionando o rosto contra a vidraça em busca de um momento de frescor. O legado da chuva fria do dia anterior era um mormaço envolvente, que fazia os cabelos e as roupas grudarem-se à pele, úmidos e pegajosos. — Mas você acha que é seguro? Quero dizer, será que Carlos irá desistir, agora que o conde esta morto e o dinheiro de Manzetti perdido?

Jamie franziu a testa, esfregando a mão ao longo do maxilar para avaliar o crescimento da barba.

— Gostaria de saber se ele recebeu alguma carta de Roma nas últimas duas semanas — ele disse — e, se tiver recebido, o que ela continha. Mas, sim, acho que conseguimos. Nenhum banqueiro na Europa adiantará sequer um centavo a nenhum dos Stuart, isso é certo. Filipe da Espanha tem outras coisas com que se preocupar e Luís... — Encolheu os ombros, a boca contorcendo-se ironicamente. — Entre monsieur Duverney e o duque de Sandringham, eu diria que as expectativas de Carlos nessa direção são quase nulas. Devo fazer a barba, você acha?

— Não por minha causa — eu disse. A intimidade informal da pergunta me deixou subitamente tímida. Havíamos compartilhado uma cama na noite anterior, mas ambos estávamos exaustos e a delicada teia tecida entre nós no vinhedo parecera frágil demais para suportar o estresse de tentar fazer amor. Eu passara a noite numa terrível consciência de sua aconchegante proximidade, mas pensei que eu devia, dadas as circunstâncias, deixar a ele a iniciativa.

Agora, vislumbrei a brincadeira da luz em seus ombros quando ele se virou para pegar a camisa e o desejo de tocá-lo se apoderou de mim; sentilo, liso, rígido e ansioso contra meu corpo outra vez.

Sua cabeça despontou pela gola da camisa e seus olhos depararam-se com os meus, subitamente e desarmados. Ele parou por um instante, olhando-me, mas sem falar. Os sons matinais do castelo eram claramente audíveis, fora da bolha de silêncio que nos envolvia; o alvoroço dos criados, a voz fina e aguda de Louise, erguida em algum tipo de altercação.

Aqui não, os olhos de Jamie disseram. Não no meio de tanta gente.

Abaixou os olhos, abotoando a camisa cuidadosamente.

— Louise mantém cavalos para cavalgar? — ele perguntou, sem desviar os olhos da tarefa. — Há alguns penhascos a alguns quilômetros daqui. Achei que talvez pudéssemos cavalgar até lá... o ar deve estar mais fresco.

— Acho que sim — respondi. — vou perguntar a ela.

Chegamos aos penhascos pouco antes de meio-dia. Não eram propriamente penhascos, porém mais arestas e colunas de pedra calcária, Projetando-se da relva amarelada das colinas ao redor, como as ruínas de uma antiga cidade. As pontas claras apresentavam fendas e fissuras causadas Pelo passar do tempo e pelas condições atmosféricas, salpicadas de milhares de minúsculas e estranhas plantas, que encontravam um apoio para se fincarem no menor resquício de solo erodido.

Deixamos os cavalos na relva e subimos a pé até uma prateleira ampla e Plana de pedra calcária coberta com tufos de grama selvagem. logo abaixo do aglomerado de rochas mais elevado. Havia pouca sombra dos arbustos ralos, mas naquela altura era possível sentir uma leve brisa.

— Nossa, como está calor! — Jamie disse. Abriu a fivela do seu kilt, que caiu em torno de seus pés e começou a se desvencilhar da camisa.

— O que está fazendo, Jamie? — eu disse, rindo.

— Tirando a roupa — ele respondeu, pragmaticamente. — Por que não faz o mesmo, Sassenach? Está mais suada do que eu e não há ninguém aqui para ver.

Após um instante de hesitação, fiz o que ele sugeria. Era um local inteiramente isolado; muito rochoso e duro para ovelhas, a chance de até mesmo um rebanho extraviado subir até ali era muito remota. E sozinhos, nus, longe de Louise e suas levas de criados inoportunos... Jamie estendeu seu xale axadrezado no solo áspero enquanto eu despia minhas roupas grudadas de suor.

Espreguiçou-se languidamente e deitou-se, os braços atrás da cabeça, completamente alheio a formigas curiosas, pedrinhas esparsas e toquinhos espinhosos da vegetação.

— Você deve ter um couro de bode — observei. — Como pode deitar assim no chão descoberto?

Nua como ele, estendi-me mais confortavelmente nas dobras grossas do xale que ele atenciosamente estendera para mim.

Ele encolheu os ombros, os olhos fechados contra o calor do sol da tarde. A luz banhava-o de dourado na cavidade onde ele se deitara, fazendo-o brilhar em tons vermelho-dourados, contra o fundo escuro da grama selvagem sob ele.

— Está bom para mim — ele disse confortavelmente, e caiu em silêncio. O som de sua respiração estava próximo o suficiente para alcançar-me acima do fraco lamento da brisa que cruzava os cumes rochosos acima de nós.

Virei-me de barriga para baixo e descansei o queixo sobre os braços cruzados, observando-o. Ele era largo nos ombros e estreito nos quadris, com ancas e coxas longas e vigorosas, com leves depressões formadas por músculos rijos mesmo quando estava relaxado. A brisa morna e suave agitava os tufos ainda úmidos dos pêlos macios, cor de canela, em suas axilas, e despenteava os cabelos de ouro e cobre que esvoaçavam delicadamente sobre seus pulsos, onde seguravam sua cabeça. A leve brisa era bem-vinda, porque eu ainda podia sentir o sol do outono quente em meus ombros e panturrilhas.

— Eu o amo — eu disse baixinho, não para que ele ouvisse, mas apenas pelo simples prazer de dizê-lo.

Mas ele ouviu, porque o esboço de um sorriso torceu o canto de sua boca. Após um instante, ele rolou sobre a barriga para o xale, ao meu lado.

Algumas lâminas da grama agarravam-se às suas costas e nádegas. Afastei um pouco uma delas e sua pele estremeceu ligeiramente sob o toque dos meus dedos.

Inclinei-me para beijar seu ombro, desfrutando o aroma quente de seus músculos e o gosto ligeiramente salgado de sua pele.

Entretanto, em vez de me beijar também, ele afastou-se um pouco e ficou me observando, apoiado sobre um cotovelo. Havia algo em sua expressão que eu não compreendia e que me deixou ligeiramente inquieta.

— Um centavo pelos seus pensamentos — eu disse, correndo o dedo pelo sulco fundo de sua espinha dorsal. Ele deslocou-se apenas o suficiente para ficar fora do meu alcance e respirou fundo.

— Bem, eu estava imaginando... — ele começou, depois parou. Olhava para baixo, brincando com uma florzinha que despontava da grama.

— Imaginando o quê?

— Como foi... com Luís.

Achei que meu coração havia parado por um instante. Senti que todo o sangue fugira do meu rosto, porque podia sentir o entorpecimento dos meus lábios ao tentar pronunciar as palavras.

— Como... foi?

Ele ergueu os olhos, fazendo apenas uma tentativa superficial de um sorriso enviesado.

— Bem — ele disse. — Ele é um rei. Imagina-se que seja... diferente, de algum modo. Sabe... especial, talvez?

O sorriso se esvaíra e o rosto ficara tão lívido quanto o meu. Abaixou os olhos outra vez, evitando meu olhar fixo e chocado.

— Acho que tudo o que eu estava imaginando — ele murmurou —, ele era... era... era diferente de mim? — Vi-o morder o lábio como se desejasse que as palavras não tivessem sido ditas, mas já era tarde demais para isso.

— Como você ficou sabendo? — perguntei. Sentia-me zonza e exposta, virei-me de barriga para baixo, pressionando meu corpo com força sobre a relva curta.

Ele sacudiu a cabeça, os dentes ainda apertados sobre o lábio inferior, quando finalmente o soltou, uma marca funda e vermelha surgiu onde ele Mordera o lábio.

— Claire — ele disse, num sussurro. — Ah, Claire. Você se entregou completamente a mim desde a primeira vez e não me negou nada. Nunca. Eu lhe pedi honestidade, eu lhe disse na ocasião que você não sabe mentir. Quando eu a tocava... — Sua mão moveu-se e segurou minha nádega, e eu recuei sob o toque inesperado.

— Há quanto tempo eu a amo? — ele perguntou, muito serenamente. — Um ano? Desde o instante em que a vi. E amei seu corpo quantas vezes... quinhentas vezes ou mais? — Tocou-me, então, com um dedo, suavemente, como a pata de uma mariposa, traçando a linha do braço e do ombro descendo pelas minhas costelas, até eu estremecer ao toque e rolar sobre meu corpo, afastando-me e encarando-o.

— Você nunca recuou ao toque das minhas mãos — ele disse, os olhos atentos ao caminho que seu dedo percorrera, mergulhando para seguir a curva do meu seio. — Nem mesmo da primeira vez, quando poderia ter se retraído e eu não ficaria surpreso se o tivesse feito. Mas você não o fez. Você se deu completamente para mim desde a primeira vez; não me negou nenhuma parte de você.

“Mas agora...”, ele disse, retirando a mão. “Achei no começo que era apenas pelo fato de ter perdido a criança. E talvez estivesse assustada, tímida em relação a mim, ou sentindo-se estranha, após tanto tempo separados. Mas depois compreendi que não era isso.”

Fez-se, então, um longo silêncio. Eu podia sentir as fortes e dolorosas batidas do meu coração contra o solo frio e ouvir a conversa do vento nos pinheiros abaixo. Pequenos pássaros chamavam, distantes. Quisera ser um deles. Ou, pelo menos, estar longe dali.

— Por quê? — ele perguntou, em voz baixa. — Por que mentir para mim? Quando eu vim procurá-la achando que eu sabia de qualquer forma?

Abaixei os olhos, fitando as mãos, entrelaçadas sob meu queixo, e engoli em seco.

— Se... — comecei, engolindo outra vez. — Se eu dissesse a você que eu deixara Luís... você teria perguntado sobre isso. Achei que você não poderia esquecer... talvez pudesse perdoar, mas jamais esqueceria, e isso estaria para sempre entre nós. — Engoli em seco novamente, com força. Minhas mãos estavam frias apesar do calor e eu sentia uma bola de gelo no estômago. Mas se eu estava lhe contando a verdade agora, deveria contá-la por inteiro.

— Se você perguntasse... e você perguntou, Jamie, você perguntou! Eu teria que conversar sobre isso, reviver tudo outra vez e eu temia... — Minha voz se perdeu, incapaz de prosseguir, mas ele não pretendia me libertar.

— Temia o quê? — instigou-me.

Virei um pouco a cabeça, sem fitá-lo, mas o suficiente para ver sua silhueta escura contra a luz, assomando através da cortina brilhante de sól dos meus cabelos.

— Eu receava que lhe contaria por que eu fiz o que fiz — eu disse serenamente. — Jamie... foi preciso, para libertá-lo da Bastilha. Eu teria feito pior, se necessário. Mas... depois.... eu de certa forma desejei que lhe contasse, que você descobrisse. Eu estava com tanta raiva, Jamie... pelo duelo, pelo bebê. E porque você me forçara a fazer isso... a ir procurar LUÍS. Eu queria fazer alguma coisa que o afastasse, certificar-me de que nunca mais o veria. Eu fiz isso... em parte... porque eu queria.magoá-lo murmurei.

Um músculo contraiu-se no canto de sua boca, mas ele continuou olhando para baixo, fitando as mãos entrelaçadas. O abismo entre nós, tão perigosamente ligado por uma ponte, abriu-se incomensuravelmente, intransponível mais uma vez.

— Sim. Bem, você conseguiu.

Sua boca fechou-se numa linha fina e ele não disse mais nada durante algum tempo. Finalmente, virou a cabeça e olhou direto para mim. Eu gostaria de ter evitado seus olhos, mas não pude.

— Claire — ele disse suavemente. — O que você sentiu... quando entreguei meu corpo a Jack Randall? Quando deixei que ele me possuísse, em Wentworth?

Um pequeno choque percorreu meu corpo, do couro cabeludo à ponta dos pés. Era a última pergunta que eu esperava ouvir.

Abri e fechei a boca várias vezes antes de encontrar uma resposta.

— Eu... não sei — disse debilmente. — Não havia pensado nisso. Raiva, é claro. Eu estava furiosa, ultrajada. E enojada. E com medo por você. E... com pena de você.

— Sentiu ciúmes? Quando lhe contei sobre isso mais tarde... que ele despertara o meu desejo, embora eu não quisesse?

Respirei fundo, sentindo a grama espetar meus seios.

— Não. Ao menos, acho que não; não pensei assim na ocasião. Afinal, não foi como se tivesse... tivesse sido por sua vontade. — Mordi o lábio, olhando para baixo. Sua voz soou baixa e prática junto ao meu ombro.

— Não acho que você queria deitar-se com Luís... queria?

— Não!

— Sim, bem — ele disse. Colocou os dois polegares juntos, um de cada lado de uma lâmina da relva e concentrou-se em arrancá-la pela raiz. — Eu estava com raiva, também. E enojado e triste. — A lâmina de grama saiu de sua bainha com um minúsculo guincho.

— Quando foi comigo — ele continuou, quase sussurrando -, achei que você não iria conseguir suportar sequer a idéia de tudo aquilo, e eu não a teria culpado por isso. Eu sabia que você devia se afastar de mim e tentei mandá-la embora, para que eu não tivesse que ver a dor e a repulsa em seu rosto. — Fechou os olhos e ergueu a lâmina de grama entre os polegares, roçando-a levemente nos lábios.

— Mas você se recusou a ir, você me aconchegou em seu peito e consolou-me. Em vez de ir embora, você me curou. Você me amava, apesar de tudo — Respirou fundo, uma respiração entrecortada, e virou a cabeça para mim outra vez. Seus olhos estavam marejados de lágrimas, mas nenhuma lágrima escapou para deslizar pelo seu rosto.

— Achei que, talvez, eu pudesse fazer o mesmo por você, como você fez por mim. E foi por isso que finalmente vim a Fontainebleau.

Pestanejou uma vez, com força, e seus olhos limparam-se.

— Então, quando você me disse que nada acontecera... por um instante, acreditei em você, porque era o que eu tanto desejava. Mas depois... compreendi, Claire. Eu não podia esconder isso de mim mesmo e sabia que você havia mentido para mim. Achei que você não acreditou que eu pudesse amá-la ou... que você realmente o tivesse desejado, e estivesse com medo de me revelar isso.

Largou a grama e sua cabeça pendeu para a frente, descansando sobre os nós dos dedos.

— Você disse que queria me magoar. Bem, a idéia de você deitada com o rei doeu mais do que a marca a fogo no meu peito ou o corte do açoite nas minhas costas nuas. Mas saber que você não confiava que eu pudesse amá-la é como acordar do laço da forca para sentir a faca afundando na minha barriga para extirpar minhas entranhas. Claire... — Sua boca abriu-se silenciosamente, depois fechou-se com força por um instante, até ele encontrar forças para prosseguir.

— Não sei se a ferida é mortal, mas Claire... eu sinto o sangue fugir do meu coração quando olho para você.

O silêncio entre nós cresceu e aprofundou-se. O pequeno zumbido de um inseto chamando das rochas vibrou no ar.

Jamie estava imóvel como uma rocha, o rosto inexpressivo enquanto fitava o chão abaixo. Eu não podia suportar aquele rosto sem expressão e a idéia do que podia estar oculto por trás. Eu tivera uma amostra de sua fúria desesperadora no vinhedo e meu coração crispou-se à idéia daquele ódio, dominado a um custo tão assustador e agora mantido sob um controle férreo que continha não só a raiva, mas a confiança e a alegria.

Busquei desesperadamente uma forma de quebrar o silêncio que nos separava; algum gesto que restaurasse a confiança perdida entre nós. Jamie sentou-se direito, os braços envolvendo os joelhos com força, e virou-se, fitando o tranqüilo vale distante.

Melhor a violência, pensei, do que o silêncio. Estendi a mão por cima do abismo que nos separava e a coloquei em seu braço. Estava quente do sol, vivo ao toque.

— Jamie — murmurei. — Por favor.

Sua cabeça voltou-se lentamente para mim. Seu rosto ainda parecia calmo, embora os olhos de gato se estreitassem ainda mais enquanto me olhava em silêncio. Ele estendeu a mão finalmente e agarrou-me pelo pulso.

— Quer que eu bata em você, então? — perguntou em voz baixa. Apertou meu pulso com força, de modo que inconscientemente puxei minha mão, tentando livrar-me dele. Ele também me puxou, arrastando-me pela grama áspera, puxando meu corpo contra o seu.

Senti-me tremer, a pele dos braços arrepiada, mas consegui falar.

— Sim — eu disse.

Sua expressão era impenetrável. Ainda fitando-me nos olhos, ele estendeu a mão livre, tateando pelas rochas até tocar uma moita de urtiga. Prendeu a respiração quando seus dedos tocaram as hastes espinhosas, mas seu maxilar cerrou-se com força; fechou a mão e arrancou a planta pela raiz.

— Os camponeses da Gasconha batem numa mulher infiel com urtigas — ele disse. Abaixou o molhe de folhas pontiagudas e roçou as pontas das flores no meu seio. Arfei com a repentina ferroada e uma mancha avermelhada surgiu em minha pele como num passe de mágica.

— Quer que eu faça isso? — ele perguntou. — Devo castigá-la dessa forma?

— Se você... se você quiser. — Meus lábios tremiam tanto que eu mal conseguia pronunciar as palavras. Alguns torrões de terra das raízes das urtigas haviam caído entre meus seios; um deles rolou pela curva das minhas costelas, deslocado pelas batidas do meu coração, imaginei. O vergão em meu peito queimava como fogo. Fechei os olhos, imaginando vívida e exatamente como seria ser surrada com um molhe de urtigas.

De repente, a mão que apertava meu pulso como um torno relaxou. Abri os olhos e deparei-me com Jamie sentado de pernas cruzadas diante de mim, as plantas atiradas para o lado e esparramadas pelo chão. Tinha um sorriso leve e desolado nos lábios.

— Eu bati em você uma vez por justiça, Sassenach, e você ameaçou me estripar com minha própria adaga. Agora você me pede para açoitá-la com urtigas? — Sacudiu a cabeça devagar, pensando, e sua mão, como se movida por vontade própria, segurou meu rosto. — Meu orgulho vale tanto assim para você?

— Sim! Sim, vale! — Também me sentei ereta e agarrei-o pelos ombros, surpreendendo a nós dois ao beijá-lo com força e impetuosidade.

Senti seu sobressalto inicial e, em seguida, ele me puxou para si, abraçando-me com força, a boca correspondendo à minha. Em seguida, deitou-me no chão, seu peso imobilizando-me sob ele. Seus ombros escureceram o céu luminoso acima de nós e suas mãos seguraram meus braços junto ao corpo, mantendo-me prisioneira.

— Está bem — ele sussurrou. Olhou dentro dos meus olhos, desafiando-me a fechar os meus, forçando-me a enfrentar seu olhar. — Está bem. Se você quer, devo puni-la. — Moveu os quadris contra mim, num comando imperioso, e eu senti minhas pernas abrirem-se para ele, meus portões escancarados para recebê-lo com êxtase.

— Nunca — sussurrou-me. — Nunca! Nunca nenhum outro, somente eu! Olhe para mim! Diga! Olhe para mim, Claire! — Penetrou-me, com força, e eu gemi e teria virado a cabeça, mas ele segurou meu rosto entre as mãos forçando-me a encará-lo, ver sua boca doce e larga contorcida de dor.

— Nunca — disse, mais brandamente -, porque você é minha. Minha mulher, meu coração, minha alma. — O peso de seu corpo mantinha-me imóvel, como se houvesse uma rocha sobre meu peito, mas a fricção de nossa pele fazia com que eu me atirasse contra ele, desejando mais. E mais.

— Meu corpo — ele disse, arquejando enquanto me dava o que eu buscava. Eu investia contra ele como se desejasse escapar, minhas costas arqueando-se como um arco, pressionando-me contra seu corpo. Ele deitou-se por inteiro sobre mim, mal se mexendo, de modo que nossa conexão mais íntima parecesse pouco mais unida do que a junção de nossas peles.

Eu sentia a grama áspera e espinhosa sob mim, a pungência de hastes pontiagudas esmagadas, como o cheiro do homem que me possuía. Meus seios estavam achatados sob ele e senti os pêlos de seu peito excitando minha pele conforme nossos corpos se esfregavam, para frente e para trás. Contorci-me, incitando-o à violência, sentindo o volume de suas pernas à medida que ele me pressionava.

— Nunca — sussurrou para mim, o rosto a apenas alguns centímetros do meu.

— Nunca — eu disse, e virei a cabeça, fechando os olhos, para fugir à intensidade de seu olhar.

Uma pressão delicada, inexorável, virou minha cabeça para encará-lo outra vez, enquanto os movimentos rítmicos, mais suaves, continuavam.

— Não, minha Sassenach — ele disse a meia-voz. — Abra os olhos. Olhe para mim. Porque essa é a sua punição, como é a minha. Veja o que você fez comigo, como eu sei o que fiz a você. Olhe para mim.

E eu olhei, aprisionada, presa a ele. Olhei, enquanto ele deixava cair a última de suas máscaras e me revelava as profundezas de seu próprio ser e os ferimentos de sua alma. Eu teria chorado pela sua dor, e pela minha, se pudesse. Mas seus olhos mantinham os meus presos, abertos e sem lágrimas, sem limites como o mar. Seu corpo manteve o meu cativo, guiando-me à frente de sua força, como o vento do oeste nas velas de um navio.

E eu viajei para dentro dele, como ele para dentro de mim, de modo que, quando as últimas e pequenas tormentas do amor começaram a me sacudir, ele gritou, e cavalgamos as ondas juntos como um único corpo, e nos vimos nos olhos um do outro.

O sol da tarde estava quente nas pedras calcárias brancas, lançando sombras profundas nas fendas e depressões. Achei finalmente o que estava procurando, brotando de um sulco estreito em uma enorme rocha, num desafio alegre à falta de solo. Quebrei um talo de aloé de uma moita, rasguei a folha carnuda e espalhei o gel verde e fresco nos vergões na palma da mão de Jamie.

— Melhor? — perguntei.

— Muito. — Jamie flexionou a mão, rindo. — Nossa, essas urtigas ardem!

— É verdade. — Puxei o decote do meu corpete e passei um pouco do sumo de aloé no meu seio com um movimento cuidadoso. O frescor da planta trouxe alívio imediato.

— Estou contente por você não ter aceito minha oferta — eu disse ironicamente, com um olhar rápido para uma moita próxima de viçosas urtigas.

Ele riu e deu um tapinha no meu traseiro com a mão boa.

— Bem, foi por pouco, Sassenach. Não deveria me tentar dessa forma.

— Em seguida, ficando sério, inclinou-se e beijou-me delicadamente.

— Não, mo duinne. Eu jurei para você uma vez e eu estava falando sério. Jamais levantarei a mão para você com raiva, jamais. Afinal — acrescentou em voz baixa, desviando o rosto —, eu a fiz sofrer muito.

Contraí-me com a dor da lembrança, mas eu também lhe devia justiça.

—Jamie — eu disse, os lábios tremendo um pouco. — O... bebê. Não foi culpa sua. Eu senti como se tivesse sido, mas não foi. Eu acho... eu acho que teria acontecido de qualquer modo, quer você tivesse lutado com Jack Randall ou não.

— É mesmo? Ah... bem. — Seu braço era quente e reconfortante ao meu redor e ele pressionou minha cabeça contra a curva de seu ombro. Me alivia um pouco ouvi-la dizer isso. Mas eu me referia mais a Frank do que à criança. Acha que pode me perdoar por isso? — Os olhos azuis estavam perturbados quando se abaixaram para me fitar.

— Frank? — Senti um choque de surpresa. — Mas... não há nada a perdoar. — Então, um pensamento me ocorreu; talvez ele na verdade não soubesse que Jack Randall ainda estava vivo, afinal, ele fora detido logo após o duelo. Mas se ele não sabia... respirei fundo. Ele iria ter que descobrir de Qualquer modo; talvez fosse melhor que soubesse por mim.

— Você não matou Jack Randall, Jamie — eu disse.

Para meu espanto, ele não pareceu chocado ou surpreso. Sacudiu a cabeça, o sol da tarde acendendo fagulhas de seus cabelos. Embora ainda curtos demais para serem amarrados na nuca, haviam crescido consideravelmente na prisão e ele precisava afastá-los dos olhos constantemente.

— Eu sei disso, Sassenach — ele disse.

— Sabe? Mas... o que... — Eu estava desnorteada.

— Você... não soube? — ele perguntou, hesitante.

Uma sensação de frio subiu pelos meus braços, apesar do calor do sol.

— Soube do quê?

Ele mordeu o lábio inferior, olhando-me com relutância. Finalmente, respirou fundo e soltou a respiração com um suspiro.

— Não, eu não o matei. Mas eu o feri.

— Sim, Louise disse que você o feriu gravemente. Mas disse que ele estava se recuperando. — De repente, vi outra vez, na memória, aquela última cena no Bois de Boulogne; a última visão que tive antes de a escuridão tomar conta de mim. A ponta afiada da espada de Jamie cortando a pele de veado manchada da chuva. A repentina mancha vermelha que escureceu o tecido... e o ângulo da lâmina, brilhando com a força que a guiava para baixo.

— Jamie! — eu disse, os olhos arregalando-se de horror. — Você não... Jamie, o que você fez!

Ele abaixou os olhos, esfregando a palma da mão que ardia na lateral do seu kilt. Ele sacudiu a cabeça, admirado consigo mesmo.

— Fui um grande idiota, Sassenach. Eu não poderia me considerar um homem se o deixasse sair impune pelo que havia feito ao menino. No entanto... o tempo todo, eu ficava pensando comigo mesmo: “Você não pode matar o sujeito, você prometeu. Você não pode matá-lo.” — Sorriu debilmente, sem humor, olhando para baixo, para as marcas na palma de sua mão.

— Minha mente fervia como um pote de mingau no fogo, mas eu me agarrava a este pensamento: “Você não pode matá-lo.” E não o matei. Mas eu estava meio enlouquecido com a fúria do combate e o sangue latejava em meus ouvidos... e não parei nem um instante para me lembrar por que eu não devia matá-lo, além do fato de que eu prometera a você. E quando o tive ali no chão diante de mim, com as lembranças de Wentworth e de Fergus, e a lâmina viva em minhas mãos... — Ele parou bruscamente.

Senti o sangue fugir de minha cabeça e deixei-me cair pesadamente numa saliência da rocha.

— Jamie — eu disse. Ele encolheu os ombros, num gesto de desamparo.

— Bem, Sassenach — ele continuou, ainda evitando meu olhar. — Tudo que posso dizer é que é um lugar terrível para sofrer um ferimento.

— Santo Deus. — Permaneci sentada, imóvel, perplexa com aquela revelação. Jamie sentou-se silenciosamente ao meu lado, analisando os dorsos largos de suas mãos. Ainda havia uma pequena marca rosada na mão direita. Jack Randall a perfurara com um prego, em Wentworth.

— Você me odeia por isso, Claire? — Sua voz era baixa, quase suplicante. Sacudi a cabeça, os olhos cerrados.

— Não. — Eu os abri e vi seu rosto junto ao meu, a testa franzida de preocupação. — Não sei exatamente o quê pensar no momento, Jamie. Realmente, não sei. Mas eu não o odeio. — Coloquei minha mão sobre a sua e apertei-a delicadamente. — Apenas... deixe-me ficar sozinha por um instante, está bem?

Novamente vestida em minhas roupas agora secas, espalmei as mãos sobre as coxas. Uma de prata e uma de ouro. Minhas duas alianças de casamento ainda estavam lá e eu não fazia a menor idéia do que isso significava.

Jack Randall jamais geraria uma criança. Jamie parecia ter certeza disso e eu não estava inclinada a questioná-lo. No entanto, eu ainda usava a aliança de Frank, eu ainda me lembrava do homem que fora meu primeiro marido, podia evocar quando quisesse lembranças e idéias de quem ele fora, o que faria. Como era possível, então, que ele não fosse existir?

Sacudi a cabeça, atirando para trás das orelhas os cachos secos pelo vento. Eu não sabia. Provavelmente, jamais saberia. Mas se uma pessoa podia ou não alterar o futuro — e tudo indicava que nós o fizéramos — eu tinha certeza de que não podia mudar o passado imediato. O que fora feito estava feito e nada do que eu pudesse fazer agora alteraria esse fato. Jack Randall não geraria nenhum filho.

Uma pedra rolou pela encosta atrás de mim, saltando e provocando pequenos deslizamentos de cascalhos. Virei-me e olhei para cima, para o local que Jamie, novamente vestido, estava explorando.

O deslizamento de pedras acima era recente. Superfícies brancas e novas surgiam onde a pedra calcária marrom e manchada pelo tempo havia se fendido e apenas uma planta muito miúda conseguira se firmar naquele monte de pedras desmoronadas, ao contrário da vegetação densa que cobria o resto da vertente da colina.

Jamie avançava cuidadosamente para um dos lados, absorto em descobrir apoios para as mãos em meio às reentrâncias da rocha. Eu o vi avançar Devagar pela borda de uma rocha enorme, abraçando a pedra, e o ruído quase inaudível de sua adaga raspando o calcário chegou até mim pelo ar parado e silencioso da tarde.

Depois ele desapareceu. Esperando que ele desse a volta e reaparecesse do outro lado da rocha, aguardei, aproveitando o sol sobre meus Ombros. Mas ele não voltou ao meu campo de visão e, após alguns minutos, comecei a ficar preocupada. Ele podia ter escorregado e caído ou batido com a cabeça na pedra.

Levei o que me pareceram séculos para desatar os cordões das minhas botas de salto outra vez e ele ainda não havia retornado. Amarrei as pontas das minhas saias e comecei a subir a encosta, os pés descalços cautelosos nas pedras quentes e ásperas.

— Jamie!

— Aqui, Sassenach. — Ele falou atrás de mim, surpreendendo-me, e eu quase perdi o equilíbrio. Ele segurou-me pelo braço e içou-me para um pequeno espaço plano entre as pedras pontiagudas

Virou-me para o muro de calcário, oxidado pela ação da água, e manchado por fumaça. E mais alguma coisa.

— Olhe — ele disse, sem pressa.

Olhei para onde ele apontava, acima e ao longo da superfície lisa da parede da caverna, e soltei uma exclamação de assombro.

Bestas pintadas galopavam ao longo da face da rocha acima de mim, os cascos chutando o ar conforme saltavam em direção à luz acima. Eram bisões e cervos, agrupados no vôo, as caudas erguidas, além de uma fileira de pássaros delicados, as asas abertas enquanto sobrevoavam a investida dos animais presos à terra.

Perdida na contemplação dos dorsos maciços que abriam caminho na rocha, não dei pela ausência de Jamie, até ouvi-lo me chamar.

— Sassenach! Venha até aqui! — Havia algo estranho em sua voz e eu apressei-me ao seu encontro. Jamie estava parado à entrada de uma pequena caverna lateral, olhando para baixo.

Eles estavam deitados em uma plataforma da rocha, como se tivessem buscado abrigo do vento que perseguia os bisões

Havia dois, deitados juntos na terra batida do chão da caverna Encerrados no ar seco da cavidade na rocha, os ossos haviam resistido, embora a carne há muito já tivesse se transformado em pó. Um pequeno remanescente de pele marrom endurecida agarrava-se à curva de um dos crânios, uma mecha de cabelos desbotada pelo tempo para um tom avermelhado esvoaçou suavemente no deslocamento de ar provocado pela nossa presença.

— Meu Deus — eu disse, baixinho, como se minha voz pudesse perturbá-los. Aproximei-me de Jamie e sua mão envolveu minha cintura.

— Você acha... eles foram... assassinados aqui? Um sacrifício, talvez.

Jamie sacudiu a cabeça, fitando pensativamente o pequeno monte de ossos delicados e quebradiços.

— Não — ele disse. Ele também falava em voz baixa, como se estivesse no santuário de uma igreja. Virou-se e ergueu a mão para a parede atrás de nós, onde os cervos saltavam e as garças planavam no ar, para um lugar além da pedra.

— Não — ele repetiu. — O povo que desenhou esses animais... eles não agiam assim. — Voltou-se então novamente para os dois esqueletos, entrelaçados aos nossos pés. Agachou-se sobre eles, traçando a linha dos ossos delicadamente com o dedo, com cuidado para não tocar a superfície de marfim.

— Veja como estão deitados — ele disse. — Eles não caíram aqui e ninguém estendeu seus corpos. Eles mesmos se deitaram. — Sua mão planou ao longo dos ossos dos braços do esqueleto maior, uma sombra escura como uma enorme mariposa voando sobre a pilha de costelas.

— Os braços dele estavam ao redor dela — ele disse. — Ele colocou as coxas atrás das dela e abraçou-a bem junto ao seu corpo e a sua cabeça está descansando sobre o ombro dela.

Sua mão passou algumas vezes por cima dos ossos, esclarecendo, indicando, revestindo-os outra vez com a carne da imaginação para que pudesse vê-los como haviam sido, abraçados pela última vez, para sempre. Os pequenos ossos dos dedos haviam se soltado, mas um vestígio de cartilagem ainda unia os metacarpos das mãos. As minúsculas falanges se sobrepunham; haviam entrelaçado as mãos em sua última espera.

Jamie levantara-se e inspecionava o interior da caverna, o sol do final de tarde pintando as paredes com respingos rubros e ocres.

— Lá. — Ele apontava para um local perto da entrada da caverna. As rochas ali eram marrons pela ação do tempo e da poeira, mas não eram oxidadas pela água e pela erosão, como as do fundo da caverna.

— A entrada já foi aqui, outrora — ele disse. — Certo dia, as rochas desmoronaram e fecharam este lugar. — Virou-se e colocou a mão na protuberância rochosa que protegera os amantes da luz.

— Eles devem ter andado pela caverna tateando, de mãos dadas — eu disse. — Buscando uma saída, na poeira e no escuro.

— Sim. — Ele encostou a testa contra a pedra, os olhos fechados. — A luz desaparecera e faltava-lhes o ar. Então, deitaram-se no escuro para morrer. — As lágrimas desenharam trilhas molhadas pela poeira de suas faces. Passei a mão sob meus próprios olhos e segurei sua mão, cuidadosamente entrelaçando nossos dedos.

Ele voltou-se para mim, em silêncio, e o ar escapou de seus pulmões quando ele me puxou com força contra seu peito. Nossas mãos buscaram um ao outro, tateando à luz mortiça do sol poente, ansiosas pelo toque do Calor da pele, pelo reconforto da carne, pela dureza do osso invisível sob a Pele que nos fazia lembrar de como a vida é curta.

 

Chamava-se Broch Tuarach, por causa do antigo cilindro de pedra, construído há algumas centenas de anos antes, que se projetava da encosta da colina atrás da mansão. As pessoas que viviam na propriedade chamavam-na de “Lallybroch”. Até então, pelo que entendi, isso significava “torre preguiçosa”, que fazia tanto sentido quanto aplicar o termo “torre de frente para o norte” a uma estrutura cilíndrica.

— Como algo redondo pode estar virado para o norte? — perguntei enquanto descíamos lentamente uma longa encosta de urzes e granito, conduzindo os cavalos em fila única pelo caminho estreito e sinuoso que os veados vermelhos haviam aberto na vegetação rasteira. — Ela não possui uma frente.

— Ela tem uma porta — Jamie esclareceu. — A porta dá para o norte. Ele firmou os pés no solo quando a descida tornou-se mais íngreme, assoviando entre os dentes num sinal para o cavalo que vinha puxando. O traseiro musculoso à minha frente contraiu-se repentinamente, enquanto a marcha cautelosa mudava para um passo miúdo e experimental, cada pata deslizando alguns centímetros na terra úmida antes que outro passo fosse arriscado. Os cavalos, comprados em Inverness, eram animais bonitos, de bom tamanho. Os vigorosos e pequenos pôneis das Highlands teriam se saído bem melhor na encosta íngreme, mas estes cavalos, todas éguas, eram destinados à reprodução, e não ao trabalho.

— Muito bem — eu disse, saltando cautelosamente por cima de um minúsculo riacho que atravessava o caminho dos veados. — Está certo. Mas e quanto a “Lallybroch”? Por que é uma torre preguiçosa?

— É um pouco inclinada — Jamie respondeu. Eu podia ver a parte de trás de sua cabeça, curvada na concentração de onde colocava o pé, alguns anéis dos cabelos ruivo-dourados erguendo-se do topo da cabeça na brisa da tarde que soprava encosta acima. — Não dá para ver direito da casa, mas se ficar no lado oeste, verá que ela se inclina um pouco para o norte. E se olhar por uma das brechas no andar acima da porta, não conseguirá ver a parede embaixo por causa da inclinação.

— Bem, suponho que ninguém tivesse ouvido falar em fio de prumo no século XIII — observei. — É incrível que ainda esteja de pé.

— Ah, já caiu algumas vezes — Jamie disse, levantando um pouco a voz conforme o vento se intensificava. — O pessoal que morava lá simplesmente colocou-a de volta de novo; talvez seja por isso que está inclinada.

— Estou vendo! Estou vendo a torre! — A voz de Fergus, aguda de empolgação, guinchou atrás de mim. Ele tivera permissão para continuar montado, já que seu peso desprezível dificilmente causaria qualquer dificuldade ao cavalo, mesmo pisando mal. Olhando para trás, pude vê-lo ajoelhado na sela, saltando para cima e para baixo de animação. Seu cavalo, uma égua baia paciente e bem-humorada, resmungou com um ronco, mas gentilmente se absteve de jogá-lo para fora no meio das urzes. Desde a sua aventura com o potro Percheron em Argentan, Fergus não perdia nenhuma oportunidade de subir num cavalo e Jamie, achando graça e compreensivo com outro amante de cavalos, fazia suas vontades, levandoo atrás de sua própria sela quando cavalgava pelas ruas de Paris, permitindo que de vez em quando ele montasse sozinho em um dos cavalos da carruagem de Jared, criaturas grandes e sólidas que meramente agitavam as orelhas, intrigadas com os chutes e gritos de Fergus.

Protegi os olhos, olhando na direção para onde ele apontava. Ele tinha razão; de sua localização privilegiada mais acima, ele avistara a forma escura da velha torre de pedra, empoleirada em sua colina. A moderna mansão abaixo era mais difícil de ser vista; era construída de pedras caiadas e o sol refletia de suas paredes como das terras ao redor. Localizada em uma depressão nos campos ondulantes de cevada, ainda estava parcialmente oculta de nossa vista por uma fileira de árvores que formavam um quebravento na base de um dos campos.

Vi a cabeça de Jamie erguer-se e fixar-se ao ver a casa da fazenda de Lallybroch lá embaixo. Permaneceu absolutamente imóvel por um instante, sem falar, mas vi seus ombros erguerem-se e endireitarem-se. O vento levantou seus cabelos e as pregas de seu kilt, como se ele fosse erguer-se no ar, alegre como uma pipa.

Fez-me lembrar da maneira como as velas dos navios se enchiam, dobrando o promontório e tomando as rotas de comércio ao deixarem o porto de Lê Havre. Eu ficara parada na ponta do cais, observando o tumulto e o vaivém de navegação e comércio. As gaivotas mergulhavam e gritavam entre os mastros, suas vozes rouquenhas como os gritos dos marinheiros.

Jared Munro Fraser colocou-se a meu lado, observando calmamente o fluxo de riquezas provenientes do mar que passava por nós, algumas pertencentes a ele. Era um dos seus navios, o Portia, que nos levaria para a Escócia. Jamie contara-me que todos os navios de Jared recebiam o nome de suas amantes, as figuras em madeira levadas à proa dos barcos esculpidas à semelhança das senhoras em questão. Estreitei os olhos contra o vento para ver melhor a proa do navio, tentando decidir se Jamie estava brincando comigo. Se não estava, concluí, Jared preferia suas mulheres bem-dotadas.

— Sentirei falta de vocês dois — Jared disse, pela quarta vez em meia hora. Ele parecia realmente pesaroso, até mesmo seu nariz divertido menos arrebitado e otimista do que o habitual. A viagem à Alemanha fora um sucesso; ele exibia um grande diamante no laço da echarpe de seda ao seu pescoço, e o casaco que usava era de um suntuoso veludo verde-garrafa com botões de prata.

— Ah, bem — ele disse, sacudindo a cabeça. — Embora eu bem que gostaria de manter o garoto comigo, não posso negar-lhe a alegria da volta ao lar. Talvez eu vá visitá-los um dia, minha querida; já faz muito tempo que pisei em solo escocês.

— Nós também sentiremos sua falta — eu lhe disse, sinceramente. Havia outras pessoas de quem eu sentiria falta: Louise, madre Hildegarde, herr Gerstmann. Mestre Raymond, acima de tudo. Entretanto, eu aguardava ansiosamente a volta à Escócia, a Lallybroch. Não tinha nenhuma vontade de voltar a Paris e havia pessoas lá que eu certamente não tinha nenhum desejo de rever, Luís de França, por exemplo.

Carlos Stuart, para dar outro exemplo. Uma cuidadosa investigação entre os jacobitas em Paris confirmara a impressão inicial de Jamie; a pequena explosão de otimismo desencadeada pelo que Carlos se vangloriava de ser seu “grande empreendimento” esvaíra-se e, embora os leais partidários do rei Jaime se mantivessem fiéis a seu soberano, não parecia haver nenhuma chance de que essa fleumática lealdade de teimosa resistência levasse à ação.

Assim que Carlos fizesse as pazes com seu próprio exílio, pensei. O nosso terminara. Estávamos voltando para casa.

— A bagagem já está a bordo — disse uma voz escocesa grave junto ao meu ouvido. — O comandante do navio disse para embarcarem agora, vamos partir com a maré.

Jared voltou-se para Murtagh, depois olhou para a direita e para a esquerda ao longo do cais.

— E onde está o garoto? — perguntou.

Murtagh fez um sinal com a cabeça indicando o final do píer.

— Lá na taverna. Enchendo a cara.

Eu me perguntara exatamente como Jamie planejava enfrentar a travessia do Canal. Ele dera uma olhada no céu vermelho da aurora, com nuvens cada vez mais carregadas, ameaçando tempestades mais tarde. Depois pedira licença a Jared e desaparecera. Olhando na direção indicada por Murtagh, vi Fergus, sentado numa pilha junto à entrada de um bar obviamente bancando o sentinela.

Jared, que primeiro exibira descrença e depois hilaridade ao ser informado da deficiência do sobrinho, abriu um largo sorriso diante da informação.

— Ah, é mesmo? — disse. — Bem, espero que ele tenha deixado o último copo até irmos buscá-lo. Vai ser terrível carregá-lo pela prancha de embarque acima, se ele já tiver bebido além da conta.

— Por que ele fez isso? — perguntei a Murtagh, um pouco exasperada.

— Eu disse a ele que tenho um pouco de láudano para ele. — Bati na bolsinha de seda que eu carregava. — Iria derrubá-lo bem mais rápido.

Murtagh piscou uma única vez.

— Sim. Ele disse que, se ia ter uma dor de cabeça, era melhor que fosse com uma ressaca. E o uísque tem um gosto muito melhor do que esse negócio preto asqueroso que você tem aí. — Balançou a cabeça indicando minha bolsinha, depois se virou para Jared. — Vamos lá, então, se pretende me ajudar com ele.

Na cabine da frente do Portia, sentei-me na cama estreita do capitão, observando o movimento regular de subida e descida da linha da costa cada vez mais distante, a cabeça do meu marido embalada em meus joelhos.

Um dos olhos abriu uma fresta e ergueu o olhar para mim. Afastei carinhosamente os cabelos úmidos e pesados de sua fronte. O cheiro de cerveja e uísque pairava ao seu redor como um perfume.

— Você vai se sentir como se estivesse no inferno quando acordar na Escócia — eu lhe disse.

O outro olho se abriu e observou as ondas de luz dançantes, refletidas no teto de vigas de madeira. Em seguida, os olhos fixaram-se em mim, lagos profundos de límpido azul.

— Entre o inferno agora e o inferno mais tarde, Sassenach — ele disse, a fala arrastada, calculada e precisa —, prefiro mais tarde, sem dúvida. — Seus olhos fecharam-se. Ele arrotou baixinho, uma vez, e o corpo longo relaxou, confortavelmente embalado pelo mar.

Os cavalos pareciam tão ansiosos quanto nós; pressentindo a proximidade de estábulos e comida, começaram a apressar um pouco o passo, as cabeças empinadas e as orelhas erguidas para a frente, na expectativa.

Eu estava justo pensando que eu mesma gostaria de um banho e de alguma coisa para comer, quando meu cavalo, um pouco à frente, fincou as patas no chão e foi deslizando até parar completamente, os cascos enterrados até o machinho na terra vermelha. A égua sacudiu a cabeça violentamente de um lado para o outro, resfolegando e relinchando.

— Ei, moça, qual é o problema? Uma abelha entrou no seu focinho? — Jamie desceu do seu próprio cavalo e apressou-se a segurar as rédeas da égua cinza. Sentindo o dorso largo estremecer e contorcer-se sob mim, eu também apeei.

— O que será que há com ela? — Olhei curiosamente para o animal, que puxava a cabeça para trás para livrar as rédeas das mãos de Jamie, sacudindo a crina, os olhos assustados. Os outros cavalos, como que infectados pelo seu nervosismo, começaram a bater as patas no chão e se moveram também.

Jamie olhou rapidamente por cima dos ombros para a estrada vazia.

— Ela está vendo alguma coisa.

Fergus ergueu-se em seus estribos e protegeu os olhos da luz, olhando por cima do dorso da égua. Abaixando a mão, virou-se para mim e encolheu os ombros.

Eu encolhi os ombros também, em resposta. Não parecia haver nada para causar a inquietação da égua — a estrada e os campos estavam vazios em todas as direções, as pontas dos grãos amadurecendo e secando ao sol do final do verão. O grupo de árvores mais próximo ficava a mais de cem metros de distância, além de um pequeno monte de pedras que devia ser o remanescente de uma chaminé desmoronada. Lobos eram muito raros numa região descampada como aquela e certamente nenhuma raposa ou texugo iria perturbar um cavalo a essa distância.

Desistindo da tentativa de fazer a égua prosseguir, Jamie conduziu-a num semicírculo; ela obedeceu de bom grado, de volta na direção de onde viéramos.

Ele fez um sinal a Murtagh para que tirasse os outros cavalos da estrada, depois montou na égua e, inclinando-se para frente, uma das mãos agarrada à crina do animal, instigou-a a prosseguir devagar, falando ao seu ouvido em voz baixa. Ela prosseguiu com hesitação, mas sem resistência, até atingir o local de sua parada anterior. Ali, estancou outra vez e ficou parada, tremendo, e nada conseguia persuadi-la a dar um passo à frente.

— Está bem, então — Jamie disse, resignado. — Faça como achar melhor. — virou a cabeça do cavalo e conduziu-o para dentro da plantação, as pontas amarelas dos grãos roçando os pêlos hirsutos de sua barriga. Nós os Seguimos lentamente, os cavalos inclinando o pescoço de vez em quando Para abocanhar um bocado de grãos aqui e ali, conforme prosseguíamos Pelo meio da vegetação.

Quando circundamos um pequeno afloramento de granito logo abaixo do topo da colina, ouvi um breve latido de advertência bem à frente.

Saímos na estrada e nos deparamos com um cão pastor branco e preto de guarda, a cabeça empinada e o rabo levantado enquanto nos vigiava com desconfiança.

Ele emitiu outro latido curto e outro cão, igualmente branco e preto, emergiu repentinamente de um aglomerado de amieiros, seguido mais lentamente por uma figura alta e esbelta enrolada num xale marrom de caça.

— Ian!

— Jamie!

Jamie atirou as rédeas da égua para mim e foi ao encontro de seu cunhado no meio da estrada, onde os dois homens agarraram-se com força pelos ombros, rindo e batendo nas costas um do outro. Livres de suspeitas, os dois cães pulavam alegremente ao nosso redor, os rabos balançando, saltando para o lado de vez em quando para cheirar as pernas dos cavalos.

— Não esperávamos vocês antes de amanhã — Ian dizia, o rosto longo e sem atrativos radiante de alegria.

— Pegamos um bom vento a favor na travessia — Jamie explicou. — Ou ao menos Claire diz que pegamos; eu mesmo não estava em condições de prestar muita atenção. — Lançou um olhar para mim, rindo, e Ian veio apertar minha mão.

— Cunhada — ele disse, num cumprimento formal. Depois, sorriu, o calor do sorriso iluminando os meigos olhos castanhos. — Claire. -Impulsivamente, beijou meus dedos e eu apertei sua mão.

— Jenny está ficando maluca de tanto limpar e cozinhar — ele disse, ainda sorrindo para mim. — Vão ter sorte se tiverem uma cama para dormir esta noite; ela colocou todos os colchões para fora, para serem batidos.

— Depois de três noites nos urzais, eu não me importaria de dormir no chão — assegurei-lhe. — Jenny e as crianças estão bem?

— Ah, sim. Está grávida de novo — acrescentou. — É para fevereiro.

— De novo? — Jamie e eu falamos juntos, e um rubor intenso tomou conta das faces de Ian.

— Meu Deus, homem, a pequena Maggie não tem nem um ano de idade — Jamie disse, arqueando uma das sobrancelhas com ar de censura. -Não sabe se conter?

— Eu? — Ian exclamou, indignado. — Acha que eu tive alguma coisa ver com isso?

— Bem, se não teve, eu imagino que estaria interessado em saber quem teve — Jamie disse, o canto da boca contorcendo-se.

O rubor transformou-se num rosa intenso, contrastando admiravel-mente com os cabelos lisos e castanhos de Ian.

— Sabe muito bem o que quero dizer — ele retorquiu. — Dormi na cama sobressalente com o pequeno Jamie durante dois meses, mas depois Jenny...

— Ah, está dizendo que minha irmã é uma devassa, é?

— Estou dizendo que ela é teimosa como o irmão quando se trata de obter o que quer — Ian disse. Ele fingiu cair para um lado, voltou agilmente à posição inicial e deu um golpe na boca do estômago de Jamie, que se dobrou, rindo.

— Ainda bem que voltei para casa, então — ele disse. — Vou ajudá-lo a mantê-la sob controle.

— Ah, é? — Ian disse com ceticismo. — Vou chamar todos os moradores para observarem.

— Perdeu uma parte do rebanho? —Jamie mudou de assunto com um gesto que abrangeu os cachorros e a longa bengala de pastor de Ian, caída na terra da estrada.

— Quinze ovelhas e um reprodutor — Ian disse, balançando a cabeça. -O próprio rebanho de merinos de Jenny, que ela cria por causa da lã especial. O reprodutor é um filho-da-mãe; quebrou o portão. Achei que pudessem estar aqui em cima no meio dos grãos, mas nenhum sinal deles.

— Nós não vimos nenhum mais acima — eu disse.

— Ah, eles não iriam para lá — Ian disse, descartando a possibilidade com um gesto da mão. — Nenhum dos animais ultrapassa a cabana.

— Cabana? — Fergus, ficando impaciente com a troca de amenidades, cutucara sua montaria e a alinhara com a minha. — Não vi nenhuma cabana, milorde. Só um monte de pedras.

— É tudo que restou da cabana de MacNab, garoto — Ian disse. Estreitou os olhos para Fergus, a silhueta recortada contra o sol do final de tarde. — E fique avisado de se manter bem longe de lá você mesmo.

Os cabelos da minha nuca eriçaram-se, apesar do calor do dia. Ronald MacNab era o arrendatário que traíra Jamie aos homens da guarda há um ano, o homem que morrera por sua traição apenas um dia depois de ser descoberto. Morrera, eu me lembrava, entre as cinzas de sua casa, incendiada pelos homens de Lallybroch. A pilha de pedras de chaminé, tão inocente quando passamos por ela há poucos instantes, agora adquirira o aspecto soturno de um túmulo. Engoli em seco, forçando para baixo o gosto amargo que subiu ao fundo de minha garganta.

— MacNab? — Jamie disse a meia-voz. Sua expressão tornou-se imediatamente alerta. — Ronnie MacNab?

Eu contara a Jamie sobre a traição de MacNab e sobre sua morte, mas não dissera como ele fora punido. Ian balançou a cabeça.

— Sim. Ele morreu lá, na noite em que os ingleses o levaram, Jamie. O telhado de palha deve ter pegado fogo com alguma faísca e ele devia estar bêbado demais para fugir a tempo. — Fitou Jamie direto nos olhos, a expressão séria, sem nenhum ar de troça.

— Ah. E a mulher e o filho? — O olhar de Jamie era igual ao de Ian; frio e impenetrável.

— Estão bem. Mary MacNab é ajudante de cozinha na casa e Rabbie trabalha nos estábulos. — Ian olhou involuntariamente por cima do ombro na direção da cabana arruinada. — Mary vem aqui de vez em quando; é a única daqui que vai lá.

— Ela gostava dele, então? — Jamie virara-se para olhar na direção da cabana, de modo que seu rosto estava escondido de mim, mas havia tensão na linha de contorno de suas costas.

Ian deu de ombros.

— Creio que não. Ronnie era um bêbado, e violento também; nem mesmo sua velha mãe conseguia lidar com ele. Não, acho que Mary sente que é seu dever rezar pela alma dele... ainda que não lhe adiante nada — acrescentou.

— Ah. — Jamie parou por um instante como se estivesse pensando, depois atirou as rédeas por cima do pescoço de seu cavalo e virou-se para subir a colina.

— Jamie — eu disse, mas ele ja estava andando de volta pela estrada, em direção à pequena clareira ao lado do bosque. Entreguei as rédeas que eu estava segurando a um Fergus surpreso.

— Fique aqui com os cavalos — eu disse. — Tenho que ir com ele. — Ian fez menção de me acompanhar, mas Murtagh o impediu com um sinal negativo da cabeça, e eu prossegui sozinha, seguindo Jamie por cima do topo da colina.

Ele tinha o passo longo e incansável de um andarilho e já havia chegado à pequena clareira antes que eu o alcançasse. Ficou parado na borda do que fora a parede externa. O formato quadrado do chão de terra batida da cabana mal podia ser visto, a nova vegetação que o cobria mais rala do que a cevada próxima, mais verde e selvagem à sombra das árvores.

Haviam restado poucos vestígios do incêndio; alguns pedaços de madeira carbonizada projetavam-se do capim próximo do chão de pedra da lareira que agora jazia aberta, plana e exposta como uma lápide. Com cuidado para não pisar dentro do perímetro das paredes extintas, Jamie começou a caminhar em volta da clareira. Deu três voltas ao redor da pedra da lareira, andando sempre no sentido anti-horário, para a esquerda, para a esquerda e para a esquerda outra vez, para despistar qualquer mal que pudesse segui-lo.

Fiquei parada de lado, observando-o. Aquele era um confronto particular, mas não podia deixar que ele o enfrentasse sozinho e, embora não olhasse para mim, eu sabia que estava feliz com a minha presença.

Finalmente, ele parou junto à pilha de pedras desmoronadas. Estendendo o braço, colocou a mão cuidadosamente sobre ela e fechou os olhos por um momento, como se rezasse. Em seguida, inclinando-se, pegou uma pedra do tamanho de seu punho fechado e colocou-a escrupulosamente sobre a pilha, como se ela fosse subjugar a alma desassossegada do fantasma. Fez o sinal-da-cruz, virou-se e caminhou em minha direção, com um passo firme e pausado.

— Não olhe para trás — ele disse em voz baixa, segurando-me pelo braço enquanto virávamos em direção à estrada.

Não olhei.

Jamie, Fergus e Murtagh seguiram com Ian e os cachorros em busca dos carneiros, deixando-me encarregada de seguir sozinha para a casa, conduzindo a fileira de cavalos. Eu estava longe de ser uma perfeita condutora de cavalos, mas achei que poderia fazê-lo por uns oitocentos metros, desde que nada surgisse inesperadamente à minha frente.

Esta era uma volta ao lar muito diferente da primeira vez que viemos juntos a Lallybroch; na ocasião, éramos fugitivos, nós dois. Eu do futuro, Jamie do passado. Nossa estada ali fora feliz, mas tênue e insegura; sempre havia a possibilidade de sermos descobertos, de Jamie ser preso. Agora, graças à intervenção do duque de Sandringham, Jamie voltara para tomar posse do que era seu por direito, e eu, meu lugar de direito a seu lado como esposa.

Naquela ocasião, chegáramos de surpresa, desalinhados, causando uma violenta ruptura na rotina doméstica. Desta vez, viemos anunciados, com a devida cerimônia, trazendo presentes da França. Embora eu tivesse certeza de que a nossa recepção seria cordial, eu me perguntava como Ian e a irmã de Jamie, Jenny, encarariam nossa volta definitiva. Afinal, eles viviam como o senhor e a senhora da propriedade há vários anos, desde a morte do pai de Jamie, e os eventos desastrosos que o lançaram numa vida de exílio e à margem da lei.

Ultrapassei o topo da última colina sem nenhum incidente e a mansão e seus anexos surgiram abaixo de mim, os telhados de ardósia escurecendo conforme os primeiros rolos de nuvens carregadas de chuva se aproximavam.

De repente, minha égua disparou, e eu com ela, tentando manter as rédeas seguras enquanto ela saltava e se precipitava, assustada.

Não que eu pudesse culpá-la; do canto da casa emergiram dois objetos enormes e fofos, rolando pelo chão como gordas nuvens.

— Pare com isso! — eu gritava. — Oooô! — Agora todos os cavalos puxavam e davam guinadas, prestes a debandarem num estouro. Bela volta ao lar, pensei, se eu deixasse todo o novo bando procriador de Jamie quebrar as pernas de uma só vez.

Uma das nuvens ergueu-se ligeiramente, depois se achatou no chão, e Jenny Fraser Murray, livre da carga do colchão de penas que estivera carregando, correu para a estrada, os cachos escuros voando.

Sem um momento de hesitação, deu um salto, agarrou a brida do animal mais próximo e puxou-a com força para baixo.

— Oooô! — ela disse. O cavalo, obviamente reconhecendo a voz da autoridade, realmente se acalmou. Com um pequeno esforço, os demais cavalos também foram acalmados e, quando por fim pude descer de minha sela, já tínhamos a companhia de outra mulher e de um menino de nove ou dez anos, que deu uma ajuda experiente com os animais restantes.

Reconheci Rabbie MacNab e deduzi que a mulher devia ser sua mãe, Mary. O alvoroço e a movimentação de cavalos, fardos e colchões impediu muita conversa, mas eu e Jenny tivemos tempo para um rápido abraço de cumprimento. Ela cheirava a canela e mel, e ao suor limpo do esforço, com um suave toque de cheiro de neném, esse odor paradoxal composto de leite cuspido, fezes moles e da absoluta limpeza de pele nova, lisa e macia.

Mantivemo-nos unidas por um instante, abraçando-nos com força, lembrando do nosso último abraço, quando nos separamos à beira de um bosque escuro, no meio da noite — eu para ir à procura de Jamie, ela para voltar para uma filha recém-nascida.

— Como vai a pequena Maggie? — perguntei, quando finalmente nos separamos. Jenny fez uma careta, contrariedade misturada a orgulho.

— Está começando a andar e é o terror da casa. — Olhou para a estrada vazia. — Encontraram-se com Ian?

— Sim. Jamie, Murtagh e Fergus foram com ele procurar os carneiros.

— Melhor eles do que nós — ela disse, com um gesto rápido em direção ao céu. — Vai chover daqui a pouco. Deixe Rabbie levar os cavalos para o estábulo e você me ajude com os colchões ou todos nós vamos dormir no molhado esta noite.

Seguiu-se um frenesi de atividade, mas quando a chuva chegou, Jenny e eu estávamos confortavelmente abrigadas na sala de visitas, abrindo os embrulhos que trouxéramos da França. Ao mesmo tempo, admirávamos o tamanho e a precocidade de Maggie, uma menina viva e alegre de uns dez meses, com olhos redondos e azuis e uma penugem ruiva na cabeça, e seu irmão mais velho, o pequeno Jamie, um robusto menino de quase quatro anos. O que estava para chegar não passava de um minúsculo volume sob o avental de sua mãe, mas vi sua mão repousar ternamente ali de vez em quando e senti uma pontada de dor.

— Você mencionou Fergus — Jenny disse, enquanto conversávamos. -Quem é?

— Ah, Fergus? Ele é... bem, ele é... — hesitei, sem ter muita certeza como deveria descrever Fergus. As perspectivas de um batedor de carteiras de conseguir emprego numa fazenda pareciam limitadas. — É do Jamie — eu disse finalmente.

— Ah, é? Bem, suponho que ele possa dormir no estábulo — disse Jenny, resignada. — E por falar em Jamie — olhou para a janela, onde a chuva caía torrencialmente -, espero que achem esses carneiros logo. Tenho um bom jantar planejado e não quero vê-lo requentado.

De fato, a noite havia caído e Mary MacNab arrumara a mesa antes de os homens chegarem. Observei-a em seu trabalho; uma mulher pequena, de ossos delicados, cabelos castanho-escuros e uma expressão ligeiramente preocupada que se desfez num sorriso quando Rabbie retornou dos estábu-los e entrou na cozinha, faminto, perguntando a que horas seria o jantar.

— Quando os homens voltarem, mo luaidh — ela disse. — Você sabe disso. Vá se lavar, para estar pronto quando chegarem.

Quando os homens finalmente apareceram, pareciam muito mais necessitados de um banho do que Rabbie. Encharcados da chuva, enxovalhados e enlameados até os joelhos, vieram se arrastando até a sala. Ian desenrolou o xale molhado que envolvia seus ombros e pendurou-o no guarda-fogo da lareira, onde ficou pingando e soltando vapor no calor da fogueira. Fergus, exausto pela sua brusca introdução à vida na fazenda, simplesmente sentou-se onde estava e ficou olhando estupidamente para o chão entre suas pernas.

Jenny ergueu os olhos para o irmão que não via há quase um ano. Examinando-o dos cabelos encharcados para os pés cheios de lama, apontou para a porta.

— Fora, e tire essas botas — disse com firmeza. — E se esteve nos campos altos, lembre-se de urinar no batente da porta quando entrar de novo. É como impedimos um fantasma de entrar na casa — explicou-me em tom mais baixo, com um rápido olhar para a porta pela qual Mary MacNab desaparecera para trazer o jantar.

Jamie, arriado numa poltrona, abriu um dos olhos e lançou um olhar aZul-escuro a sua irmã.

— Chego à Escócia quase morto com a travessia, cavalgo por quatro dias pelas montanhas para chegar até aqui e, quando chego, não posso nem entrar em casa para tomar um gole e molhar minha garganta seca; em vez disso, tenho que sair por aí na lama, caçando ovelhas perdidas. E quando finalmente chego aqui, você quer me mandar para a noite lá fora para mijar na soleira da porta. Pah! — Fechou o olho outra vez, cruzou as mãos sob o estômago e afundou-se ainda mais na poltrona, numa atitude estudada de teimosa insubordinação.

— Jamie, queridinho — sua irmã disse docemente. — Você quer seu jantar ou devo dá-lo aos cachorros?

Ele permaneceu imóvel por um longo instante, os olhos cerrados. Depois, com um suspiro sibilante de resignação, levantou-se arduamente. Com um movimento mal-humorado do ombro, chamou Ian e os dois viraram-se, seguindo Murtagh, que já estava do lado de fora da porta. Ao passar, Jamie estendeu o longo braço para baixo, içou Fergus colocando-o de pé e arrastou o garoto sonolentamente.

— Bem-vindo ao lar — Jamie disse, de modo impertinente. Com um último e melancólico olhar para o fogo e o uísque, saiu andando pesadamente para dentro da noite mais uma vez.

 

Após esse nefasto retorno ao lar, as coisas melhoraram rapidamente. Lallybroch absorveu Jamie imediatamente, como se ele nunca tivesse ido embora, e eu me vi arrastada sem nenhum esforço para a corrente da vida na fazenda. Era um outono instável, com chuvas freqüentes, mas também com dias limpos e luminosos, que faziam o sangue cantar. O lugar fervilhava de vida, todos apressando-se com as colheitas e os preparativos que tinham que ser feitos para a chegada do inverno.

Lallybroch era um lugar remoto, até mesmo para uma fazenda das Highlands. Nenhuma estrada importante levava até lá, mas o correio ainda assim chegava até nós por mensageiro, que atravessava os precipícios e as encostas cobertas de urzes, uma conexão com o mundo lá fora. Era um mundo que às vezes parecia irreal na lembrança, como se eu nunca tivesse dançado entre os espelhos de Versalhes. Mas as cartas trouxeram a França de volta e, lendo-as, eu podia ver os álamos ao longo da rue Tremoulins ou ouvir o badalar ressonante do sino da catedral, acima do Hôpital des Anges.

O bebê de Louise nasceu bem; um menino. Suas cartas, abundantes em exclamações e sublinhados, transbordavam de descrições deslumbradas do angelical Henri. De seu pai, suposto ou real, não havia menção.

A carta de Carlos Stuart, que chegou um mês depois, não fazia nenhuma menção à criança, mas segundo Jamie, era ainda mais incoerente do que o habitual, efervescente com planos vagos e grandiosidades.

O conde de Mar escreveu de modo sóbrio e circunspecto, mas sua contrariedade geral com Carlos era óbvia. O príncipe não estava se comportando. Era rude e autoritário com seus mais leais seguidores, ignorava aqueles que poderiam ajudá-lo, insultava quem não devia, falava demais e — lendo nas entrelinhas — bebia demais. Considerando-se a atitude da epoca em relação à ingestão de bebidas alcoólicas por parte dos cavalheiros, achei que o comportamento de Carlos devia ter sido espetacular, para gerar tal comentário. Suponho que o nascimento de seu filho não havia, na realidade, passado despercebido.

Madre Hildegarde escrevia de vez em quando, bilhetes curtos, informativos, espremidos entre os poucos minutos que podiam ser roubados da programação diária. Todas as suas cartas terminavam com as mesmas palavras: “Bouton também envia lembranças.”

Mestre Raymond não escrevia, mas de vez em quando chegava um pacote endereçado a mim, sem assinatura ou identificação, mas contendo coisas estranhas: ervas raras e pequenos cristais facetados; uma coleção de pedras, todas do tamanho da unha do dedo mindinho de Jamie, lisas e em forma de discos. Cada uma ostentava uma minúscula figura esculpida em um dos lados, algumas com letras acima, outras no verso. E havia os ossos — o dedo de um urso, com a garra grande e curva ainda presa; as vértebras completas de uma pequena cobra, articuladas e amarradas em uma tira de couro, de modo que a fileira toda se flexionava como se estivesse viva; um sortimento de dentes, de uma fileira de pequenas peças redondas, como cavilhas, que Jamie disse que pertenciam a uma foca, passando por dentes de veado, pontiagudos como uma foice, com grandes coroas, até algo com a aparência suspeita de um molar humano.

De vez em quando, eu carregava algumas das pedras lisas e esculpidas no bolso, apreciando a sensação de segurá-las entre meus dedos. Eram antigas; isso eu sabia. No mínimo, da época dos romanos; talvez até anteriores. E pelo aspecto de algumas das criaturas esculpidas sobre elas, quem quer que as tivesse lavrado queria que fossem mágicas. Se eram como as ervas -com alguma virtude real — ou apenas um símbolo, como os sinais da Cabala, eu não sabia. Mas pareciam benignas e as guardei comigo.

Embora eu gostasse da rotina das tarefas domésticas diárias, o que eu mais gostava era das longas caminhadas às diversas cabanas da propriedade. Eu sempre levava comigo uma grande cesta quando saía nessas visitas, com um variado sortimento de produtos, desde pequenos agrados para as crianças aos remédios mais comumente necessários. Estes eram requisitados com freqüência, pois a pobreza e a falta de higiene tornavam as doenças comuns e não havia nenhum médico ao norte de Fort William ou ao sul de Inverness.

Algumas indisposições eu podia tratar prontamente, como gengivas sangrando e erupções da pele características do escorbuto leve. Outras enfermidades estavam além do meu poder de cura.

Coloquei a mão na cabeça de Rabbie MacNab. Os cabelos desgrenhados estavam úmidos nas têmporas, mas o maxilar jazia aberto, relaxado e frouxo, e a pulsação em seu pescoço batia devagar.

— Ele está bem agora — eu disse. Sua mãe podia ver isso tanto quanto eu; ele deitava-se esparramado, no abandono tranqüilo do sono, as faces rosadas com o calor do fogo próximo. Ainda assim, ela permanecia tensa e alerta, pairando acima da cama até eu falar. No entanto, depois que eu confirmei o que seus próprios olhos haviam notado, ela mostrou-se disposta a acreditar; seus ombros encolhidos arquearam-se sob o xale.

— Graças à Santa Mãe de Deus — Mary MacNab murmurou, fazendo o sinal-da-cruz rapidamente — e à senhora, milady.

— Eu não fiz nada — protestei. Isso era literalmente verdade; o único serviço que consegui prestar ao jovem Rabbie foi fazer com que sua mãe o deixasse em paz. Fora preciso, na realidade, uma certa dose de insistência para desencorajar seus esforços de servir-lhe farelo misturado com sangue de galo, sacudir penas queimadas sob seu nariz ou aspergir água fria sobre ele — nenhum desses cuidados especiais sendo de alguma utilidade para alguém que sofria de ataques epilépticos. Quando cheguei, sua mãe falava sem parar, lamentando sua incapacidade de administrar o mais eficaz dos remédios: água da fonte bebida do crânio de um suicida.

— Fico muito assustada quando ele tem esses acessos — Mary MacNab disse, fitando melancolicamente a cama onde seu filho dormia. — Da última vez, eu trouxe o padre MacMurtry até aqui e ele rezou por muito tempo e salpicou água benta sobre o menino para afastar os demônios. Mas agora eles voltaram. — Ela apertou as mãos unidas, como se quisesse tocar em seu filho, mas não conseguisse fazê-lo.

— Não são demônios — eu disse. — É apenas uma doença e, na verdade, não é das mais graves.

— Sim, milady, se a senhora o diz — ela murmurou, não querendo me contradizer, mas obviamente sem acreditar.

— Ele vai ficar bom. — Tentei reanimar a mulher, sem criar esperanças que não poderiam se realizar. — Ele sempre se recupera desses acessos, não e? — Os ataques haviam começado há dois anos — provavelmente conseqüência de contusões na cabeça das surras administradas por seu pai, pensei, e embora essas crises repentinas não fossem freqüentes, eram inegavelmente aterradoras para sua mãe quando ocorriam.

Ela balançou a cabeça com relutância, claramente não convencida.

— Sim... embora ele bata com a cabeça de maneira assustadora de vez em quando, debatendo-se como ele faz.

— Sim, é um perigo — eu disse, pacientemente. — Se ele fizer isso outra Vez, apenas afaste-o de qualquer coisa dura e deixe-o sozinho. Sei que a impressão é horrível, mas na verdade ele vai ficar bem. Apenas deixe que o acesso siga seu curso e, quando tiver terminado, coloque-o na cama e deixe-o dormir. — Eu sabia que palavras eram de valor limitado, por mais verdadeiras que fossem. Era necessário algo mais concreto para convencê-la.

Quando me virei para ir embora, ouvi um pequeno clique no fundo do bolso da minha saia e tive uma inspiração repentina. Enfiando a mão no bolso, retirei dois ou três dos pequenos e lisos amuletos que Raymond me enviara. Escolhi o branco leitoso — calcedônia, talvez — com a minúscula figura de um homem atormentado, contorcendo-se, esculpida em um dos lados. Então, é para isso que servem, pensei.

— Costure isso no bolso dele — eu disse, colocando o minúsculo amuleto cerimoniosamente na mão da mulher. — Isso o protegerá dos... dos demônios. — Limpei a garganta. — Não precisará se preocupar com ele então, ainda que tenha outro acesso; ele sairá bem da crise.

Saí dali sentindo-me ao mesmo tempo extremamente tola e bastante satisfeita, em meio a uma ávida profusão de agradecimentos aliviados. Eu não sabia se eu estava ficando uma médica melhor ou meramente uma charlatã com mais prática. Ainda assim, se eu não podia fazer muito por Rabbie, eu podia ajudar sua mãe — ou ao menos deixar que ela ajudasse a si própria. A cura vem dos curados; não dos médicos. Isso Raymond havia me ensinado.

Depois disso, deixei a casa, para prosseguir com meus afazeres do dia, visitando duas das cabanas situadas na extremidade oeste da fazenda. Tudo estava bem na casa dos Kirby e na dos Weston Fraser, e logo eu já estava no caminho de volta para casa. No alto de uma encosta, sentei-me sob uma enorme faia para descansar por um instante antes da longa caminhada de volta. O sol já estava baixo no céu, mas ainda não chegara à fileira de pinheiros que cobria a cadeia de montanhas no lado oeste de Lallybroch. Era fim de tarde e o mundo resplandecia com as cores do final do outono.

As folhas caídas da faia eram frias e escorregadias sob meus pés, mas ainda restavam muitas folhas, amareladas e crispadas, na árvore acima. Recostei-me no tronco de casca lisa e fechei os olhos, diminuindo o intenso clarão dos campos de cevada madura para um brilho vermelho-escuro por trás de minhas pálpebras.

Os cômodos confinados e sufocantes das cabanas dos arrendatários haviam me dado dor de cabeça. Com a cabeça recostada no tronco liso da árvore, comecei a respirar devagar e profundamente, deixando o ar fresco e puro encher meus pulmões, começando o que eu sempre considerava uma “volta para o interior”.

Essa era minha própria e imperfeita tentativa de reproduzir a sensação do processo que mestre Raymond me mostrara no Hôpital des Anges; uma evocação da aparência e da sensação de cada parte de mim mesma, imaginando exatamente como eram e como funcionavam os diversos órgãos e sistemas quando trabalhando em perfeita harmonia.

Fiquei sentada em silêncio, as mãos soltas sobre o colo, ouvindo o batimento do meu coração. Batendo aceleradamente com o esforço da subida, reduziu o compasso rapidamente para uma freqüência de repouso. A brisa de outono levantava as mechas de cabelos da minha nuca e refrescava minhas faces afogueadas.

Fiquei sentada, os olhos fechados, e tracei o caminho do meu sangue, das câmaras secretas, de paredes espessas, do meu coração, roxo-azulado pela artéria pulmonar, avermelhando-se rapidamente conforme os alvéolos dos pulmões despejavam sua carga de oxigênio. Em seguida, para fora, prorrompendo-se num jorro pelo arco da aorta e, irrompendo numa corrida, para cima, para baixo, para dentro e para fora, através de carótidas, renais, subclavianas. Até os menores vasos capilares, florescendo sob a superfície da pele, tracei o caminho de meu sangue pelos sistemas do meu corpo, lembrando-me do sentimento de perfeição, de saúde. De paz.

Fiquei sentada, imóvel, respirando lentamente, sentindo-me lânguida e pesada, como se tivesse acabado de sair do ato de amor. Minha pele parecia fina, meus lábios ligeiramente inchados e a pressão das minhas roupas era como o toque das mãos de Jamie. Não fora por uma escolha aleatória que eu invocara seu nome para me curar. Se era saúde da mente ou do corpo, seu amor era necessário para mim como o ar ou o sangue. Minha mente buscou-o, dormindo ou acordada, e ao encontrá-lo, apaziguou-se. Meu corpo floresceu e resplandeceu, e ao alcançar a plenitude da vida, ansiou pelo corpo dele.

A dor de cabeça desaparecera. Permaneci sentada por mais algum tempo, respirando devagar. Em seguida, levantei-me e desci a colina em direção à casa.

Na verdade, eu nunca tivera um lar. Órfã aos cinco, vivera a vida de um acadêmico errante com meu tio Lamb pelos treze anos seguintes. Em tendas numa planície poeirenta, em cavernas nas montanhas, nas câmaras adornadas e saqueadas de uma pirâmide vazia, Quentin Lambert Beauchamp, M.S., Ph.D., F.R.A.S. etc. erguera a série de acampamentos temporários em que ele fazia o trabalho arqueológico que o tornaria famoso muito antes que um acidente de carro acabasse com a vida de seu irmão e me lançasse em sua vida. Não sendo do tipo que hesita sobre detalhes insignificantes como uma sobrinha órfã, tio Lamb prontamente me matriculou num internato.

Não sendo do tipo que aceita os caprichos do destino sem lutar, recusei-me terminantemente a ir para lá. E, reconhecendo em mim algo que ele próprio possuía de sobra, tio Lamb deu de ombros e, num piscar de olhos, tirou-me para sempre do mundo de ordem e rotina, de contas de aritmética, lençóis limpos e banhos diários, para segui-lo numa vida errante.

A vida nômade continuara com Frank, embora com uma mudança do trabalho de campo para o trabalho em universidades, já que as escavações de um historiador em geral são feitas entre paredes. Assim, quando a guerra explodiu em 1939, para mim foi uma ruptura menor do que para a maioria das pessoas.

Eu me mudara de nosso último apartamento alugado para as acomodações das enfermeiras iniciantes no Pembroke Hospital e, de lá, para uma base militar na França e, depois, de novo para Pembroke antes do fim da guerra. Em seguida, aqueles poucos meses com Frank, antes de virmos para a Escócia, procurando encontrar um ao outro novamente. Apenas para nos perdermos um do outro definitivamente, quando entrei no círculo de pedras, atravessei a loucura e saí do outro lado, no passado que era agora o meu presente.

Era estranho, portanto, e de certa forma maravilhoso, acordar no quarto do andar superior de Lallybroch, ao lado de Jamie, e perceber, enquanto observava a luz da aurora tocar seu rosto adormecido, que ele nascera naquela cama. Todos os ruídos da casa, do rangido da escada dos fundos sob o pé de uma arrumadeira madrugadora, ao tamborilar da chuva nas telhas de ardósia, eram sons que ele ouvira mil vezes antes; tantas vezes que já não os ouvia mais. Eu, sim.

Sua mãe, Ellen, plantara a roseira que florescia tardiamente junto à porta. Seu perfume intenso e inebriante ainda flutuava pelas paredes da casa até a janela do quarto de dormir. Era como se ela própria entrasse no quarto, para tocá-lo de leve ao passar. Para me tocar, também, dando-me as boas-vindas.

Além da casa propriamente dita, estendia-se Lallybroch; campos, celeiros, o vilarejo e os sítios dos arrendatários. Ele pescara no riacho que descia dos montes, subira nos carvalhos e nos elevados larícios, almoçara junto ao fogão de cada cabana. Era sua terra.

Mas ele, também, convivera com rupturas e mudanças. Prisão e fuga como fora-da-lei; a vida sem raízes de um soldado mercenário. Nova detenção, encarceramento e tortura, e a fuga para o exílio tão recentemente terminado. Mas vivera em um único lugar durante os primeiros catorze anos de sua vida. E mesmo com essa idade, quando fora enviado, como era de costume, para ser criado por dois anos pelo irmão de sua mãe, Dougal MacKenzie, isso era parte integrante da vida esperada por um homem que iria retornar para viver para sempre em suas terras, cuidar de seus moradores e da propriedade, fazer parte de um organismo maior. O seu destino era a permanência.

Mas houve aquele período de ausência e a experiência de vida além dos limites de Lallybroch, além até mesmo das costas rochosas da Escócia.

Jamie falara com reis, aprendera leis e comércio, experimentara a aventura, a violência e a magia. Uma vez ultrapassadas as fronteiras do lar, o destino seria suficiente para prendê-lo? Eu duvidava.

Conforme eu descia a encosta da colina, eu o vi lá embaixo, colocando pedras no lugar, enquanto consertava uma fenda em um dique construído apenas com pedras e que ladeava um dos campos menores. Perto dele no chão, viam-se dois coelhos, perfeitamente eviscerados, mas cujas peles ainda não haviam sido removidas.

— “O marinheiro está de volta ao lar, de volta do mar, e o caçador de volta da colina” — eu disse, citando R. L. Stevenson, e sorrindo para ele ao me aproximar.

Ele também sorriu para mim, limpou o suor da testa, depois fingiu estremecer.

— Não mencione o mar perto de mim, Sassenach. Vi dois garotos fazendo um pedaço de madeira navegar no lago do moinho hoje de manhã e quase vomitei o café da manhã só de olhar.

Eu ri.

— Não tem nenhuma vontade de voltar para a França, então?

— Meu Deus, não. Nem mesmo pelo conhaque. — Ergueu uma última pedra para cima da parede e ajeitou-a no lugar. — Está voltando para casa?

— Sim. Quer que eu leve os coelhos?

Ele sacudiu a cabeça, depois se inclinou para pegá-los.

— Não precisa; eu também vou voltar. Ian precisa de uma ajuda com o novo porão de armazenamento para as batatas.

A primeira safra de batata já plantada em Lallybroch estaria pronta para a colheita em poucos dias e — de acordo com minha orientação temerosa e inexperiente — um pequeno porão estava sendo escavado para armazená-las. Eu tinha sentimentos distintamente misturados sempre que olhava para a plantação de batatas. De um lado, sentia um considerável orgulho das plantas folhosas e esparramadas que cobriam o campo. De outro, sentia um pânico absoluto à idéia de que sessenta famílias deveriam depender do que jazia sob aquelas folhas para se sustentarem durante o inverno. Foi seguindo um conselho meu — dado apressadamente há um ano — que um primoroso campo de cevada fora plantado com batata, um produto agrícola até então desconhecido nas Highlands.

Eu sabia que, com o tempo, a batata se tornaria um produto básico de sobrevivência nas Highlands, menos suscetível a intempéries do que as safras de aveia e cevada. Saber disso por meio de um parágrafo lido em um livro de geografia há muito tempo estava bem longe de deliberadamente assumir a responsabilidade pelas vidas das pessoas que se alimentariam daquela colheita.

Perguntei-me se correr riscos por outras pessoas se tornava mais fácil com a prática. Jamie o fazia rotineiramente, gerenciando os negócios da propriedade e dos arrendatários como se tivesse nascido para isso. Mas, é claro, ele realmente nascera para isso.

— O porão já está quase pronto? — perguntei.

— Ah, sim. Ian já mandou construir as portas e o buraco já está praticamente escavado. O problema é só que há um pouco de terra fofa no fundo e sua perna de pau fica presa quando ele pisa lá. — Embora Ian se locomovesse muito bem com a peça de madeira que usava como substituta para sua perna direita abaixo do joelho, havia dificuldades ocasionais como essa.

Jamie olhou pensativamente para cima da colina atrás de nós.

— Precisamos que o porão fique pronto e coberto esta noite; vai chover de novo antes de amanhecer.

Voltei-me para olhar na mesma direção em que ele olhava. Não havia nada na encosta da colina além de grama e urzes, algumas árvores e os afloramentos de granito que projetavam ondulações rochosas pelo meio do mato.

— Como é que você pode saber disso?

Ele sorriu, apontando com o queixo para cima da colina.

— Está vendo aquele pequeno carvalho? E o freixo ao lado? Olhei para as árvores, desconcertada.

— Sim. O que é que têm?

— As folhas, Sassenach. Está vendo como as duas árvores parecem mais claras do que o normal? Quando há umidade no ar, as folhas de um carvalho ou de um freixo viram-se, de modo que você vê o lado de baixo. A árvore inteira fica vários tons mais clara.

— Suponho que sim — concordei, com desconfiança. — Se você souber qual a cor normal da árvore.

Jamie riu e segurou meu braço.

— Posso não ter ouvido para música, Sassenach, mas tenho olhos. E eu já vi aquelas árvores talvez umas dez mil vezes, sob todas as condições do tempo.

Era uma distância razoável do campo até a casa da fazenda e caminhamos em silêncio durante a maior parte do tempo, apreciando o breve calor do sol da tarde em nossas costas. Senti o cheiro do ar e pensei que Jamie provavelmente tinha razão sobre a chegada da chuva; todos os aromas normais do outono pareciam intensificados, das pungentes resinas dos pinheiros ao cheiro empoeirado de grãos maduros. Imaginei que eu mesma devia estar aprendendo; entrando em sintonia com os ritmos, visões e cheiros de Lallybroch. Talvez com o passar do tempo, eu viesse a conhecê-los tão bem quanto Jamie. Apertei seu braço levemente e senti a pressão de sua mão na minha em resposta.

— Sente falta da França, Sassenach? — ele perguntou subitamente.

— Não — respondi, surpresa. — Por quê? Ele deu de ombros, sem olhar para mim.

— Bem, é que eu estive pensando, vendo você descendo a colina com a cesta no braço, como você estava bonita com o sol nos seus cabelos castanhos. Achei que você parecia ter nascido ali, como uma das plantas, como se sempre tivesse feito parte daqui. Então, pensei de repente que, para você, Lallybroch deve ser um lugar pequeno e pobre. Não há uma vida grandiosa, como há na França; nem sequer um trabalho interessante, como você tinha no Hôpital. — Olhou para mim timidamente.

— Suponho que fiquei preocupado que você pudesse ficar cansada disso aqui... com o tempo.

Parei antes de responder, embora não fosse algo em que eu ainda não tivesse pensado.

— Com o tempo — eu disse cuidadosamente. —Jamie, já vi muita coisa em minha vida e já estive em muitos lugares. De onde eu venho... havia coisas lá das quais eu sinto falta às vezes. Gostaria de viajar num ônibus londrino outra vez ou pegar o telefone e conversar com alguém distante. Gostaria de girar a torneira e ter água quente, e não ter que carregá-la do poço e esquentá-la num caldeirão. Eu gostaria de tudo isso, mas eu não preciso disso. Quanto a uma vida grandiosa, eu não a queria nem quando a tinha. Usar roupas bonitas é muito bom, mas se mexericos, maquinações, preocupações, festas bobas e regrinhas fúteis de etiqueta tiverem que vir junto... não. Prefiro viver de camisolão e dizer o que penso.

Ele riu e eu apertei seu braço outra vez.

— Quanto ao trabalho... há muito trabalho para mim aqui. — Olhei para a cesta de ervas no meu braço. — Posso ser útil. E se sinto falta de madre Hildegarde, ou de minhas outras amigas... bem, não é tão imediato quanto o telefone, mas sempre há as cartas.

Parei, segurando seu braço, e ergui os olhos para ele. O sol declinava no horizonte e a luz dourava um lado de seu rosto, colocando os ossos fortes em relevo.

— Jamie... só quero estar onde você estiver. Nada mais.

Ele ficou parado por um instante, depois se inclinou para frente e beijou-me delicadamente na testa.

— Engraçado — eu disse, quando chegamos ao topo da última colina que levava até a casa. — Eu estive pensando as mesmas coisas a seu respeito.

Se você seria feliz aqui, após tudo que fez na França. — Ele sorriu, com certa melancolia, e olhou para a casa, os três andares de pedra pintadas de branco brilhando em tons dourados e marrom-avermelhados.

— Bem, este é o meu lar, Sassenach. É a minha casa. Toquei seu braço delicadamente.

; — E você nasceu para isso, não é?

Ele respirou fundo e estendeu o braço para descansar a mão na cerca de madeira que separava este campo mais baixo do terreno ao redor da casa.

— Bem, na verdade, eu não nasci para isso, Sassenach. Por direito, o senhor destas terras devia ser Willie. Se ele estivesse vivo, imagino que eu seria um soldado... ou talvez um mercador, como Jared.

Willie, o irmão mais velho de Jamie, morrera de varíola aos onze anos, deixando seu irmão menor, então com seis anos de idade, como herdeiro de Lallybroch.

Ele fez um gesto estranho com os ombros, como se buscasse amenizar a pressão de sua camisa sobre as costas. Era algo que sempre fazia quando se sentia inseguro ou embaraçado; há meses não o via fazer esse gesto.

— Mas Willie morreu. E então eu sou o senhor das terras. — Olhou para mim, um pouco timidamente, depois enfiou a mão na bolsa de pele de texugo que acompanhava seu kilt e retirou alguma coisa dali. Uma pequena serpente de cerejeira que Willie esculpira para ele como presente de aniversário estava em sua mão, a cabeça virada, como se estivesse surpresa de ver a própria cauda.

Jamie acariciou a pequena cobra ternamente; a madeira estava lustrosa e lisa dos anos de manuseio, as curvas do corpo brilhando como escamas à luz do crepúsculo.

— Às vezes, converso mentalmente com Willie — Jamie disse. Virou a serpente na palma da mão. — Se você tivesse vivido, irmão, se fosse o senhor das terras como era seu destino, teria feito o que eu fiz? Ou teria encontrado um modo melhor? — Olhou para mim, ligeiramente ruborizado. — Isso lhe parece tolice?

— Não. — Toquei a cabeça lisa da cobra com a ponta do dedo. Ouviu-se um grito alto e claro de um peito-amarelo vindo de um campo distante, fino como cristal no ar do início da noite.

— Eu faço o mesmo — eu disse suavemente, após um instante. — Com tio Lamb. E com meus pais. Especialmente minha mãe. E-eu não pensava nela com freqüência quando eu era pequena, apenas às vezes sonhava com alguém terno e caloroso, com uma bela voz. Mas quando eu estava doente, depois de... Faith, às vezes imaginava que ela estava lá. Comigo. — Uma repentina onda de dor e pesar tomou conta de mim, lembranças de perdas recentes e antigas.

Jamie tocou meu rosto ternamente, limpando a lágrima que se formara no canto de um dos olhos, mas que não rolara.

— Acho que às vezes os mortos pensam em nós com carinho, como pensamos neles — disse à meia-voz. — Vamos, Sassenach. Vamos caminhar um pouco; ainda falta bastante tempo para o jantar.

Prendeu meu braço ao seu, bem junto ao corpo, e seguimos ao longo da cerca, caminhando lentamente, o capim seco roçando em minhas saias.

— Entendo o que quer dizer, Sassenach —Jamie disse. — As vezes, ouço a voz do meu pai, no celeiro ou no campo. Em geral, quando nem sequer estou pensando nele. Mas de repente viro a cabeça, como se tivesse acabado de ouvir sua voz do lado de fora, rindo com um dos colonos, ou atrás de mim, acalmando um cavalo.

Riu e fez um sinal com a cabeça na direção de um canto do pasto à nossa frente.

— É de admirar que eu nunca o tenha ouvido aqui, mas nunca ouvi. Era um local sem nada de extraordinário, um portão de ripas de madeira na cerca de pedra paralela à estrada.

— É mesmo? O que ele costumava dizer aqui?

— Geralmente era: “Se acabou de falar, Jamie, vire-se e abaixe-se.” Rimos, parando e nos apoiando no muro de pedras. Inclinei-me um pouco mais, examinando a madeira do portão.

— Então, era aqui que você apanhava de seu pai? Não vejo nenhuma marca de dentes — eu disse.

— Não, não era tão grave assim — ele disse, rindo. Passou a mão afetuosamente ao longo do parapeito gasto e acinzentado do portão.

— Nós costumávamos ficar com farpas em nossos dedos, às vezes, Ian e eu. íamos para casa depois e a sra. Crook ou Jenny os retirava para nós, ralhando com a gente o tempo todo.

Olhou para a mansão, onde todas as janelas do primeiro andar brilhavam iluminadas contra a noite que se avizinhava. Formas escuras passavam rapidamente pelas janelas; sombras pequenas, ligeiras, nas janelas da cozinha, onde a sra. Crook e as criadas preparavam o jantar. Um vulto maior, alto e delgado como o parapeito da cerca, surgiu em uma das janelas da sala de estar. Ian ficou ali parado por um instante, sua figura em silhueta contra a luz, como se tivesse sido chamado pelas reminiscências de Jamie. Em Seguida, cerrou as cortinas e a janela turvou-se para uma claridade mais suave, encoberta.

— Eu sempre estava feliz quando Ian estava comigo —Jamie disse, ainda olhando para a casa. — Quero dizer, quando éramos flagrados em alguma traquinagem e apanhávamos por causa disso.

— A desgraça gosta de companhia? — eu disse, sorrindo.

522

— Um pouco. Eu não me sentia tão travesso quando havia nós dois para compartilhar a culpa. Mas era principalmente porque eu sempre podia contar com ele para fazer muito barulho.

— O que, berrar, você quer dizer?

— Sim. Ele sempre gritava e continuava berrando horrivelmente, e eu sabia que ele faria isso, de modo que não me sentia tão envergonhado dos meus próprios gritos, se eu tivesse que chorar. — Já estava escuro demais para que eu pudesse ver seu rosto, mas ainda pude ver o trejeito com os ombros que ele fazia quando estava envergonhado ou sem jeito.

— Eu sempre tentava não chorar, é claro, mas nem sempre conseguia. Se meu pai achava que valia a pena me dar uma surra, ele achava que devia fazer um bom trabalho. E o pai de Ian tinha um braço direito que mais parecia uma tora.

— Sabe — eu disse, olhando para a casa —, eu nunca pensei particularmente nisso antes, mas por que seu pai lhe dava as surras aqui, Jamie? Certamente, há muito espaço na casa... ou no celeiro.

Jamie ficou em silêncio por um instante, depois deu de ombros outra vez.

— Nunca perguntei. Mas imagino que seja algo como o rei da França.

— O rei da França? — A aparente falta de lógica me desconcertou um pouco.

— Sim. Eu não sei — ele disse secamente — exatamente como é tomar banho, se vestir e fazer suas necessidades em público, mas posso lhe garantir que é uma experiência muito humilhante ter que ficar lá e explicar a um dos colonos de seu pai exatamente o que você fez para merecer ficar com o traseiro escaldado.

— Imagino que deva ser — eu disse, a compaixão misturada à vontade incontrolável de rir. — Porque você um dia iria ser o patrão, quer dizer? Era por isso que ele o surrava aqui?

— Creio que sim. Os colonos iriam saber que eu entendia o que era justiça... ao menos, do lado de quem recebe a punição.

 

O campo fora arado da maneira habitual, com montículos altos de terra amontoada e sulcos profundos entre eles. Os montículos erguiam-se à altura dos joelhos, de modo que um homem caminhando dentro de um dos sulcos podia espalhar as sementes facilmente ao longo do topo do montículo a seu lado. Projetados para o plantio de cevada ou aveia, não viram motivo para modificá-los para a plantação de batatas.

— A recomendação era “colinas” — Ian disse, espreitando a extensão dos campos de batatas —, mas achei que os montículos serviriam. O objetivo das colinas parecia ser impedir que as plantas apodrecessem com excesso de água e um campo antigo com montículos altos parecia fazer o mesmo.

— Faz sentido — Jamie concordou. — Os pés de batata nos topos parecem estar exuberantes, de qualquer forma. Mas o sujeito diz como se sabe quando já está na hora de desencavar as batatas?

Encarregado de plantar batatas numa terra onde nunca se vira uma batata, Ian trabalhara com método e lógica, mandando um enviado a Edimburgo para comprar tanto as sementes quanto um livro sobre o plantio. No devido tempo, o livro intitulado Tratado científico sobre métodos de cultivo, de sír Walter O'Bannion Reilly, apareceu, com uma pequena seção sobre a plantação de batatas como atualmente praticada na Irlanda.

Ian carregava esse grosso volume sob o braço — Jenny contara-me que ele não ia ao campo de batatas sem ele, por medo de que alguma questão complicada de filosofia ou técnica lhe ocorresse quando estivesse lá — e agora abriu-o, segurando-o com o braço enquanto remexia na bolsa do Seu kilt para pegar os óculos que usava para ler. Os óculos haviam pertencido a seu falecido pai; eram pequenos círculos de vidro, presos em aros de metal e normalmente usados na ponta do nariz, que o faziam parecer uma Jovem e séria cegonha.

— “A colheita da safra deve ser feita simultaneamente ao aparecimento do primeiro ganso de inverno” — ele leu, depois ergueu os olhos, estreitando-os acusadoramente por cima dos óculos para a plantação de batatas, como se esperasse que um ganso esticasse a cabeça entre os sulcos e montículos.

— Ganso de inverno? — Jamie espreitou o livro por cima do ombro de Ian, a testa franzida. — A que espécie de ganso ele está se referindo? Gansos cinzentos? Mas você os vê o ano todo. Isso não pode estar certo.

Ian deu de ombros.

— Talvez na Irlanda você só os veja no inverno. Ou talvez ele esteja se referindo a algum tipo de ganso irlandês e não de gansos cinzentos.

Jamie fez um muxoxo.

— Bem, isso não adianta nada para nós. Ele diz alguma coisa útil?

Ian correu o dedo pelas linhas impressas, movendo os lábios silenciosamente. A essa altura, já havíamos reunido um bom número de camponeses, todos fascinados por essa novidade na agricultura.

— Não se desencava as batatas em tempo de chuva, com o solo molhado — Ian nos informou, produzindo um muxoxo ainda mais enfático em Jamie.

— Humm — Ian murmurou consigo mesmo. — Apodrecimento da batata, pragas da batata. Nós não temos nenhum bicho de batata, suponho que isso seja uma sorte. Pés de batata... hum, não, isso é apenas o que fazer quando o pé seca. Ressecamento das batatas... não saberemos se temos isso enquanto não virmos as batatas. Sementes de batatas, armazenagem de batatas...

Impaciente, Jamie afastou-se de Ian, as mãos nos quadris.

— Cultivo científico, hein? — exclamou. Fitou, irado, a plantação folhosa e verde-escura. — Suponho que seja científico demais para explicar como sabemos se as malditas batatas estão prontas para serem comidas!

Fergus, sempre nos calcanhares de Jamie, ergueu os olhos de uma lagarta, avançando devagar e tortuosamente ao longo de seu dedo indicador.

— Por que você simplesmente não desencava uma e vê? — ele perguntou. Jamie olhou fixamente para Fergus por um instante. Sua boca abriu-se, mas nenhum som emergiu. Fechou a boca, deu uns tapinhas delicadamente na cabeça de Fergus e foi buscar um forcado do seu lugar, apoiado a cerca.

Os colonos, todos homens que haviam ajudado a plantar e cuidar da plantação sob a orientação de Ian — assistidos por sir Walter -, aglomeraram-se em volta para ver o resultado de seu trabalho.

Jamie escolheu uma rama grande e viçosa na borda do campo e posicionou o forcado com todo o cuidado junto às suas raízes. Visivelmente prendendo a respiração, colocou o pé sobre a parte de cima do forcado e empurrou. Os dentes do garfo deslizaram lentamente para dentro do solo úmido e marrom.

Eu mesma prendia a respiração. Havia muito mais em jogo com essa experiência do que a reputação de sir Walter O'Bannion Reilly. Ou, quanto a isso, a minha própria.

Jamie e Ian haviam confirmado que a safra de cevada deste ano fora menor do que o normal, embora ainda suficiente para as necessidades dos habitantes de Lallybroch. No entanto, mais um ano ruim iria exaurir as magras reservas de grãos. Para uma propriedade das Highlands, Lallybroch era próspera; mas isso podia ser dito apenas em comparação com outras fazendas das Highlands. O cultivo bem-sucedido de batatas poderia fazer realmente a diferença entre a fome e a fartura para a gente de Lallybroch pelos próximos dois anos.

O salto da bota de Jamie pressionou para baixo e ele inclinou o corpo sobre o cabo do forcado. A terra esboroou-se e rachou em torno da rama e, com um pop repentino, o pé de batata ergueu-se e a terra revelou sua generosidade.

Um “Ah!” coletivo ergueu-se dos espectadores à vista dos numerosos glóbulos marrons agarrados às raízes da planta arrancada. Tanto Ian quanto eu caímos de joelhos na terra, remexendo o solo fofo à cata de batatas arrancadas da rama.

— Deu certo! — Ian repetia sem parar enquanto tirava uma batata atrás da outra do solo. — Olhem só para isso! Estão vendo o tamanho?

— Sim, olhe essa aqui! — exclamei, encantada, brandindo uma batata do tamanho de meus dois punhos unidos.

Por fim, tivemos o produto de nossa amostra colocado em um cesto; talvez umas dez batatas de bom tamanho, aproximadamente vinte e cinco espécimes comparáveis a um punho cerrado e numerosas batatas pequenas, do tamanho de bolas de golfe.

— O que acha? — Jamie examinou nossa coleção com um ar interrogativo. — Devemos deixar o resto, para que as pequenas cresçam mais? Ou tirá-las agora, antes que o frio chegue?

Ian tateou absortamente à procura dos óculos, depois se lembrou de que sir Walter estava distante, junto à cerca, e abandonou o esforço. Sacudiu a cabeça.

— Não, acho que assim está certo — ele disse. — O livro diz que se deve guardar as menores como sementes para o próximo ano. Vamos precisar de muitas delas. — Deu-me um largo sorriso de satisfação e alívio, uma mecha de cabelos castanhos, lisos e abundantes, caindo na testa. Um dos lados do rosto estava sujo de terra.

Uma das mulheres dos colonos inclinava-se sobre o cesto, examinando o conteúdo. Esticou um dedo experimentalmente e cutucou uma das batatas.

— Você diz que se pode comê-las? — Franziu as sobrancelhas com ar cético. — Não vejo como seria possível passá-las no moedor para fazer pão ou mingau.

— Bem, acho que não são moídas, sra. Murray — Jamie explicou educadamente.

— Ah, não? — A mulher estreitou os olhos para o cesto, criticamente. -Bem, então o que se faz com elas?

— Bem, você... —Jamie começou e, em seguida, parou. Ocorreu-me, como sem dúvida ocorrera a ele também, que embora nós tivéssemos comido batatas na França, ele nunca vira alguém prepará-las. Disfarcei um sorriso quando ele olhou desalentado para a batata coberta de crostas de terra que segurava na mão. Ian também a fitou, desconcertado; aparentemente, sir Walter nada disse sobre o assunto da preparação da batata para o consumo.

— Você assa na brasa. — Mais uma vez, Fergus veio em nosso auxílio, enfiando a cabeça por baixo do braço de Jamie. Estalou os lábios ao ver as batatas. — Coloca sobre as brasas do fogão. Come-se com sal. Manteiga é bom, se você tiver.

— Nós temos —Jamie disse, com ar de alívio. Atirou a batata para a sra. Murray, como se estivesse ansioso para se livrar dela. — Devem ser assadas — ele informou-a com firmeza.

— Também pode cozinhá-las — eu contribuí. — Ou amassá-las com leite. Ou fritá-las. Ou cortá-las em pedacinhos e colocar na sopa. Um alimento muito versátil, a batata.

— É o que diz o livro — Ian acrescentou, com satisfação.

Jamie olhou para mim, o canto da boca torcendo-se num sorriso.

— Você nunca me disse que sabia cozinhar, Sassenach.

— Eu não chamaria isso de cozinhar, exatamente — eu disse —, mas sem dúvida sei preparar uma batata.

— Ótimo. — Jamie lançou um olhar para o grupo de lavradores e suas mulheres, que passavam as batatas de mão em mão, examinando-as com ar de dúvida. Ele bateu palmas com força para chamar a atenção de todos.

— Vamos jantar aqui junto ao campo hoje — disse-lhes. — Vamos buscar um pouco de lenha para a fogueira, Tom e Willie, e a sra. Willie poderia trazer seu caldeirão? Sim, ótimo, um dos homens a ajudará a trazê-lo até aqui. Você, Kincaid — virou-se para um dos lavradores mais novos e acenou na direção do pequeno aglomerado de cabanas sob as árvores. — va dizer a todo mundo, vamos comer batatas no jantar!

E assim, com a ajuda de Jenny, dez baldes de leite do barracão da leiteria, três galinhas da capoeira e quatro dúzias de alhos-porós grandes da horta, eu presidi a preparação de uma sopa e de batatas assadas para o senhor e os arrendatários de Lallybroch.

O sol já desaparecera no horizonte quando o jantar ficou pronto, mas o céu ainda estava claro, com veios vermelhos e dourados que atravessavam os galhos escuros do bosque de pinheiros na colina. Houve uma certa hesitação quando os camponeses ficaram cara a cara com a proposta adição à sua dieta, mas o ambiente festivo — ajudado por um pequeno e oportuno barril de uísque doméstico — superou quaisquer temores e logo o terreno junto ao campo de batatas estava apinhado de figuras de comensais improvisados, arqueados sobre suas tigelas apoiadas nos joelhos.

— O que acha, Dorcas? — ouvi uma mulher perguntar à sua vizinha. -Tem um gosto meio estranho, não?

Dorcas, assim questionada, balançou a cabeça e engoliu antes de responder.

— É, sim. Mas o patrão já comeu seis dessas até agora e elas ainda não o mataram.

A reação dos homens e das crianças foi bem mais entusiástica, provavelmente devido às generosas porções de manteiga servida com as batatas.

— Os homens são capazes de comer bosta de cavalo se você servir com manteiga — Jenny disse, em resposta a uma observação semelhante. -Homens! Uma barriga cheia e um lugar para dormir quando estão bêbados e isso é tudo que pedem da vida.

— Eu me pergunto por que você atura a mim e a Jamie — Ian a provocou ao ouvir —, já que pensa tão pouco dos homens.

Jenny balançou a concha da sopa descartando marido e irmão, sentados lado a lado no chão, perto do caldeirão.

— Ah, vocês não são “homens”.

As sobrancelhas arrepiadas de Ian ergueram-se e as de Jamie, mais espessas e ruivas, fizeram o mesmo.

— Ah, não somos, não? Bem, o que somos, então? — Ian perguntou. Jenny voltou-se para ele com um sorriso, os dentes brancos cintilando a luz da fogueira. Deu um tapinha carinhoso na cabeça de Jamie e um beijo na testa de Ian.

— Vocês são meus — ela disse.

Após o jantar, um dos homens começou a cantar. E outro trouxe uma flauta de madeira e acompanhou-o, o som agudo mas penetrante na noite gélida de outono. Fazia frio, mas não havia vento, e a sensação era de aconchego, envoltos em xales e cobertores, reunidos em pequenos grupos familiares ao redor do fogo. As chamas foram aumentadas depois da preparaÇão do jantar e agora faziam um rombo significativo na escuridão.

O nosso próprio aglomerado familiar, agradavelmente aquecido, estava um pouco ativo demais. Ian fora buscar outra braçada de lenha e a pequena Maggie agarrava-se a sua mãe, forçando seu irmão mais velho a buscar refúgio e calor humano em outro lugar.

— Vou enfiá-lo de cabeça para baixo naquele caldeirão se você não parar de cutucar meu saco — Jamie informou o sobrinho, que se contorcia vigorosamente no colo do tio. — Qual é o problema? Tem formiga nas calças?

A pergunta foi recebida com uma onda de risadinhas e um notável esforço de se esconder na parte do meio de seu hospedeiro. Jamie tateou no escuro, fazendo tentativas deliberadamente desajeitadas de agarrar os braços e as pernas de seu xará, depois passou os braços em volta do menino e rolou por cima dele, forçando um berro espantado de alegria e prazer do pequeno Jamie.

Jamie prendeu o sobrinho com força no chão e o manteve lá com uma das mãos enquanto tateava cegamente no chão no escuro. Agarrando um punhado de grama molhada com um grunhido de satisfação, ergueu-se o suficiente para enfiar a grama pela gola da camisa do pequeno Jamie, mudando as risadas por um grito mais agudo, mas não menos encantado.

— Pronto, aí está — Jamie disse, rolando de cima da pequena figura. -Vá chatear sua tia para variar.

O pequeno Jamie obedientemente arrastou-se até mim apoiado nas mãos e nos joelhos, ainda dando risadas, e aconchegou-se no meu colo entre as pregas do meu manto. Sentou-se o mais quieto possível para um garoto de quase quatro anos — o que não é muito quieto, se considerarmos bem — e deixou que eu removesse a maior parte da grama de sua camisa.

— Você tem um cheiro bom, tia — ele disse, roçando afetuosamente o meu queixo com sua juba de cachos negros emaranhados. — Cheiro de comida.

— Bem, obrigada — eu disse. — Devo entender que você está com fome outra vez?

— Sim. Tem leite?

— Tem, sim. — Eu podia alcançar o jarro de cerâmica estendendo bem a mão. Sacudi a botija, decidi que não restava muito para valer a pena ir buscar uma xícara e inclinei o jarro, segurando-o para que o menino pudesse beber direto do recipiente.

Temporariamente absorto em tomar o leite, ele ficou quieto, o corpo pequeno e vigoroso pesado sobre minha coxa, as costas apoiadas contra meu braço enquanto envolvia o jarro com as duas mãos rechonchudas.

As últimas gotas de leite gorgolejaram da botija. O pequeno Jamie relaxou imediatamente e emitiu um leve soluço de saciedade. Eu podia sentir o calor emanando dele com aquela repentina subida de temperatura que anuncia o sono em crianças muito pequenas. Enrolei-o nas dobras do meu manto e embalei-o devagar para a frente e para trás, cantarolando baixinho a canção que cantavam do outro lado da fogueira. Os pequenos nós de suas vértebras eram redondos e duros como bolas de gude sob meus dedos.

— Ele adormeceu? — O corpanzil de Jamie assomou junto ao meu ombro, a luz do fogo fazendo brilhar o cabo de sua adaga e o cobre de seus cabelos.

— Sim — respondi. — Ao menos não está se remexendo, então deve estar dormindo. É mais ou menos como segurar um grande presunto.

Jamie riu, em seguida ele próprio ficou imóvel e em silêncio. Eu podia sentir a dureza de seu braço apenas roçando o meu e o calor de seu corpo pelas pregas do xale de xadrez e da minha capa escocesa, chamada arisaid.

Uma brisa noturna soprou uma mecha de cabelos no meu rosto. Alisei-a para trás e descobri que o pequeno Jamie tinha razão; minhas mãos cheiravam a alho-poró, a manteiga e a amido das batatas cortadas. Dormindo, era um peso morto e, embora segurá-lo fosse reconfortante, ele estava cortando a circulação da minha perna esquerda. Remexi-me um pouco, com a intenção de estendê-lo sobre meu colo.

— Não se mova, Sassenach — a voz de Jamie soou baixa ao meu lado. — Só por um instante, mo duinne... fique imóvel..

Obedientemente, fiquei paralisada, até que ele me tocou no ombro.

— Tudo bem agora, Sassenach — ele disse, com um sorriso na voz. — É que você estava tão bonita, com a luz da fogueira no rosto e os cabelos balançando ao vento. Eu queria me lembrar dessa imagem para sempre.

Voltei-me para encará-lo, então, e sorri para ele, por cima do corpo da criança. A noite estava escura e fria, animada de pessoas ao redor, mas não havia nada onde estávamos sentados além de luz e calor — e de nós dois.

 

Fergus, após algum tempo de silenciosa observação pelos cantos, tornou-se parte do ambiente doméstico, assumindo a posição oficial de ajudante do estábulo, junto com Rabbie MacNab.

Embora Rabbie fosse um ou dois anos mais novo do que Fergus, era do mesmo tamanho do franzino garoto francês e logo tornaram-se amigos inseparáveis, exceto nas ocasiões em que discutiam — o que acontecia duas ou três vezes por dia — e então tentavam matar um ao outro. Certa manhã, depois que uma briga se agravou em punhos brandindo no ar, socos, pontapés e os dois rolaram pelo chão da leiteria e derramaram dois canecos de creme deixados ali para fermentar, Jamie resolveu intervir.

Com um ar sofrido, mas implacável, ele pegou cada vilão pela nuca do fino pescoço e arrastou-os para a privacidade do celeiro, onde, presumo, ele superou quaisquer escrúpulos que ainda tivesse sobre a administração de castigo físico. Saiu do celeiro a passos largos e pesados, sacudindo a cabeça e afivelando seu cinto de volta à cintura, e partiu com Ian a cavalo para atravessar o vale até Broch Mordha. Os garotos saíram do celeiro algum tempo depois, substancialmente submissos e — unidos na adversidade — de novo os melhores amigos.

Bastante amansados, de fato, para permitirem que o pequeno Jamie os seguisse de perto enquanto realizavam suas tarefas. Quando olhei pela janela mais tarde, vi os três brincando no quintal com uma bola de pano. Era um dia frio e nebuloso, e a respiração dos garotos erguia-se em nuvens leves conforme corriam e gritavam.

— Você tem um garoto muito forte e resistente — observei a Jenny, que vasculhava seu cesto de costura à procura de um botão. Ela ergueu os olhos, viu para onde eu olhava, e sorriu.

— Ah, sim, o pequeno Jamie é um garoto e tanto. — Veio unir-se a mim à janela, espreitando para o jogo lá embaixo.

— Ele é a cara do pai — observou amorosamente -, mas vai ter os ombros muito mais largos, eu acho. Deve ficar grande como o tio; está vendo aquelas pernas? — Achei que ela provavelmente tinha razão; conquanto o pequeno Jamie, com quase quatro anos de idade, ainda tivesse os contornos rechonchudos de uma criança pequena, suas pernas eram longas e as costas eram largas, planas e musculosas. Possuía os ossos longos e graciosos de seu tio e o mesmo aspecto que seu xará maior projetava, de ser composto de algo ao mesmo tempo mais duro e mais flexível do que a carne comum. Observei o menino lançar-se sobre a bola, arrebatá-la com um movimento ágil e atirá-la com força suficiente para passar direto pela cabeça de Rabbie MacNab, que saiu correndo, gritando, para resgatá-la.

— Ele se parece ao tio em outra coisa — eu disse. — Acho que também vai ser canhoto.

— Ah, meu Deus! — Jenny exclamou, a testa franzida enquanto examinava de longe seu rebento. — Espero que não, mas talvez você tenha razão. — Sacudiu a cabeça, suspirando.

— Meu Deus, quando penso nos problemas que o pobre Jamie teve por ser canhoto! Todo mundo tentava endireitá-lo, dos meus pais ao professor na escola, mas ele sempre foi teimoso como uma mula e não cedia. Todos, exceto o pai de Ian, ao menos — ela acrescentou, como uma reflexão tardia.

— Ele não achava errado ser canhoto? — perguntei curiosamente, sabendo que a opinião geral da época era a de que ser canhoto era, na melhor das hipóteses, um azar e, na pior, um sinal de possessão demoníaca. Jamie escrevia com dificuldade com a mão direita, porque sempre apanhava na escola por pegar a pena com a mão esquerda.

Jenny sacudiu a cabeça, os cachos negros balançando-se sob sua touca.

— Não, o velho John Murray era um homem estranho. Dizia que se Deus escolhera fortalecer assim o braço esquerdo de Jamie, seria um pecado rejeitar o dom. E ele era um excelente espadachim, o velho John, de modo que meu pai ouviu-o e deixou que Jamie aprendesse a lutar com a mão esquerda.

— Pensei que tivesse sido Dougal MacKenzie quem ensinara Jamie a lutar com a mão esquerda — eu disse. Eu me perguntava qual seria a opinião de Jenny sobre seu tio Dougal.

Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, lambendo a ponta de uma linha antes de passá-la pelo buraco da agulha com um rápido empurrão.

— Sim, mas isso foi mais tarde, quando Jamie já estava crescido e foi morar com Dougal. Foi o pai de Ian quem lhe ensinou os primeiros golpes. — Ela sorriu, os olhos na camisa em seu colo.

— Lembro-me, quando eram jovens, o velho John disse a Ian que sua função era ficar do lado direito de Jamie, porque ele devia guardar o lado mais fraco de seu chefe durante uma luta. E ele o fazia, os dois levaram isso muito a sério. E acho que o velho John estava certo — acrescentou, cortando com a tesoura o excesso de linha. — Depois de algum tempo, ninguém mais lutava com eles, nem mesmo os rapazes MacNab. Jamie e Ian eram ambos bem altos e ótimos lutadores, e quando ficavam ombro a ombro, ninguém conseguia derrubá-los, ainda que os adversários estivessem em maior número.

Riu de repente e arrumou um anel de cabelo para trás da orelha.

— Observe-os de vez em quando, andando juntos pelo campo. Acho que eles nem percebem que ainda fazem isso, mas fazem. Jamie sempre se move para a esquerda, de modo que Ian possa assumir seu posto à direita, guardando o lado mais fraco.

Jenny ficou olhando pela janela, o olhar distante, a camisa momentaneamente esquecida no colo, e colocou a mão sobre o pequeno volume em seu ventre.

— Espero que seja um menino — ela disse, olhando para seu filho de cabelos escuros lá embaixo. — Canhoto ou não, é bom para um homem ter um irmão para ajudá-lo. — Notei seu olhar para o quadro na parede, Jamie ainda criança, de pé entre os joelhos de seu irmão mais velho, Willie. Os dois rostos juvenis altivos e solenes; a mão de Willie repousava protetoramente no ombro de seu irmão pequeno.

— Jamie tem sorte de ter Ian — eu disse.

Jenny afastou o olhar do quadro e piscou uma vez. Era dois anos mais velha do que Jamie; seria três anos mais nova do que William.

— Sim, é verdade. E eu também — ela disse suavemente, retomando o trabalho na camisa.

Peguei um macacão de criança da cesta de roupas para consertar e virei-o do avesso, para ver a costura rasgada embaixo do braço. Estava frio demais lá fora para qualquer pessoa que não meninos brincando ou homens trabalhando, mas estava confortável e aconchegante na sala de estar; as vidraças embaçaram-se rapidamente enquanto trabalhávamos, nos isolando do mundo gelado lá de fora.

— Por falar em irmãos — eu disse, estreitando os olhos enquanto enfiava a linha na minha própria agulha —, você via Dougal e Colum MacKen-zie com freqüência quando eram crianças?

Jenny sacudiu a cabeça.

— Nunca conheci Colum. Dougal veio aqui uma ou duas vezes, trazendo Jamie de volta depois das festas do Hogmanay, o Ano-Novo, ou algo assim, mas não posso dizer que o conheço bem. — Ela ergueu a cabeça da costura, os olhos puxados brilhantes de interesse. — Mas você os conhece. Diga-me, como é Colum MacKenzie? Sempre me perguntei, por uma ou outra coisa que ouvia dos visitantes que vinham aqui, mas meus pais nunca falavam dele. — Parou por um instante, um sulco entre as sobrancelhas.

— Não, estou errada; meu pai realmente disse algo sobre ele uma vez. Foi logo depois de Dougal ter ido embora, voltando a Beannachd com Jamie. Papai estava apoiado na cerca lá fora, observando-os até se perderem de vista, e eu aproximei-me dele para acenar adeus para Jamie. Eu sempre sentia muito quando ele ia embora, porque não sabia quanto tempo ele iria ficar longe. De qualquer modo, ficamos observando-os até dobrarem o topo da colina e então papai estremeceu ligeiramente, resmungou e disse: “Deus ajude Dougal MacKenzie quando seu irmão Colum morrer.” Então, pareceu lembrar-se que eu estava lá, porque se virou, sorriu para mim e disse: “Bem, menina, o que temos para jantar hoje?” E não tocou mais no assunto.

As sobrancelhas negras, elegantes e bem torneadas como pinceladas de caligrafia, ergueram-se intrigadas e inquiridoras.

— Achei isso estranho, porque ouvi dizer, quem não ouviu?, que Colum está gravemente aleijado e que Dougal é quem faz o trabalho de chefe do clã por ele, recolhendo aluguéis e resolvendo disputas, além de liderar o clã para a batalha, quando necessário.

— É verdade. Mas... — hesitei, sem saber ao certo como descrever aquele estranho relacionamento simbiótico. — Bem — eu disse com um sorriso -, o mais próximo que posso chegar é dizer-lhe que por acaso eu os ouvi discutir uma vez, e Colum disse a Dougal: “Estou lhe dizendo, se os irmãos MacKenzie têm entre si apenas um pênis e um cérebro, então estou satisfeito com minha parte no negócio!”

Jenny soltou uma risada repentina de surpresa, depois me olhou fixamente, um brilho especulativo no fundo dos olhos azuis, tão parecidos com os do irmão.

— Ah, então é assim, hein? Uma vez eu me perguntei, ouvindo Dougal falar sobre o filho de Colum, o pequeno Hamish; ele parecia um pouco mais afetuoso do que seria o normal para um tio.

— Você é rápida, Jenny — eu disse, fitando-a também. — Muito rápida. Levei muito tempo para deduzir isso e eu os vi todos os dias durante meses.

Ela deu de ombros modestamente, mas um pequeno sorriso brincava em seus lábios.

— Eu ouço com atenção — disse simplesmente. — Ao que as pessoas dizem... e ao que não dizem. E as pessoas realmente mexericam aqui nas Ighlands. Então — ela cortou uma linha com os dentes e cuspiu as pontas Perfeitamente na palma da mão —, conte-me sobre Leoch. Dizem que é enorme, mas não tão imponente quanto Beauly ou Kilravock.

Trabalhamos e conversamos durante a manhã inteira, passando do conserto de roupas à fiação de lã para tricô e ao molde de um novo vestido para Maggie. Os gritos dos garotos do lado de fora cessaram e foram substituídos por murmúrios e batidas nos fundos da casa, sugerindo que os meninos ficaram com frio e foram infestar a cozinha.

— Será que vai nevar logo? — Jenny disse, com um olhar para a janela. — O ar está úmido; viu a neblina sobre o lago hoje de manhã?

Sacudi a cabeça.

— Espero que não. Vai dificultar a volta de Jamie e Ian. — A vila de Broch Mordha ficava a cerca de quinze quilômetros de Lallybroch, mas o caminho estendia-se por colinas altas, com encostas íngremes e rochosas, e não passava de uma trilha de veados. De fato, nevou, logo depois de meio-dia, e os flocos de neve continuaram se precipitando em redemoinhos até bem depois do cair da noite.

— Devem ter ficado para pernoitar em Broch Mordha — Jenny disse, tirando a cabeça coberta com a touca de dormir da janela após uma inspeção do céu nublado, com seu brilho de neve rosada. — Não se preocupe com eles; devem estar bem quentes embaixo das cobertas na cabana de alguém para passar a noite. — Sorriu de modo reconfortante para mim, enquanto fechava as persianas. Ouviu-se um choro repentino do fundo do corredor e ela arrebanhou as saias de sua camisola com uma exclamação abafada.

— Boa-noite, Claire — ela disse, já correndo para atender à sua missão maternal. — Durma bem.

De fato, eu geralmente dormia bem; apesar do clima frio e úmido, a casa era uma construção robusta e a cama de colchão de penas de ganso era bem suprida de cobertores e acolchoados. Esta noite, entretanto, sentia-me inquieta sem a presença de Jamie. A cama parecia grande e fria, minhas pernas contraídas e meus pés frios.

Tentei deitar de costas, as mãos cruzadas de leve sobre as costelas, os olhos cerrados, respirando fundo, para evocar a figura de Jamie; se eu pudesse imaginá-lo ali, respirando profundamente ao meu lado na escuridão, talvez conseguisse adormecer.

O canto de um galo cocoricando a plenos pulmões arrancou-me do travesseiro com um sobressalto, como se uma banana de dinamite tivesse explodido embaixo da cama.

— Idiota! — eu disse, cada nervo do meu corpo vibrando com o choque. Levantei-me e abri uma fresta da veneziana. Parara de nevar, mas o céu ainda estava pálido de nuvens, uma cor uniforme de um lado a outro no horizonte. O galo emitiu outro grito no galinheiro embaixo.

— Cale-se! — eu disse. — Estamos no meio da noite, maldito garnisé. -Um novo cocoricó ecoou pela noite silenciosa e, no fim do corredor, uma criança começou a chorar, seguida de uma sonora, mas abafada expressão gaélica na voz de Jenny.

— Você — eu disse para o galo invisível — está com os dias contados. — Não houve resposta a isso e, após uma pausa para ter certeza de que o galo realmente resolvera ir dormir, fechei as persianas e fiz o mesmo.

A comoção sabotara qualquer tentativa de pensamento. Em vez de tentar começar outro, resolvi tentar voltar-me para dentro de mim mesma, na esperança de que a contemplação física me relaxasse o suficiente para voltar a dormir.

Funcionou. Quando comecei a flutuar à beira do sono, minha mente fixa em algum lugar perto do meu pâncreas, pude ouvir indistintamente os sons do pequeno Jamie percorrendo o corredor na direção do quarto de sua mãe — desperto do sono por uma bexiga cheia, ele raramente tinha a presença de espírito de dar o próximo passo óbvio e, em geral, em vez disso, descia as escadas às apalpadelas em busca de assistência.

Eu imaginara, ao vir para Lallybroch, se eu acharia difícil conviver com Jenny tão de perto; se eu teria inveja de sua fácil fertilidade. E poderia ter tido, se não tivesse visto que a maternidade pródiga também tinha seu preço.

— Há um penico bem do lado de sua cama, cabeça oca — a voz exasperada de Jenny soou do lado de fora de minha porta enquanto ela conduzia o pequeno Jamie de volta para a cama. — Você deve ter pisado nele quando saiu. Por que não consegue colocar na cabeça que tem que usar aquele? Por que tem que vir usar o meu, toda santa noite? — Sua voz desapareceu quando ela começou a subir as escadas e eu sorri, a visualização se movendo pelas curvas dos meus intestinos.

Havia outra razão para eu não ter inveja de Jenny. No começo, eu temera que o nascimento de Faith tivesse causado algum dano interno em meu corpo, mas esse temor desaparecera com o toque de Raymond. Ao completar o inventário do meu corpo, e sentir minha espinha dorsal relaxar à beira do sono, pude sentir que tudo estava bem. Acontecera uma vez, poderia acontecer de novo. Tudo que seria necessário era tempo. E Jamie.

Os passos de Jenny soaram nas tábuas do corredor, apressando-se em resposta a um chiado sonolento de Maggie, do outro lado da casa.

— Crianças são uma alegria, mas dão muito trabalho — murmurei para mim mesma, e adormeci.

Durante o dia seguinte, aguardamos, fazendo nossas tarefas e atravessando a rotina diária com o ouvido atento ao barulho de cavalos no pátio.

— Devem ter ficado lá para terminar algum negócio —Jenny disse, aparentemente confiante. Mas eu a via diminuir o passo toda vez que passava diante da janela que dava para o caminho de entrada da casa.

Quanto a mim, tinha dificuldade em controlar a imaginação. A carta, assinada pelo rei Jorge, confirmando o perdão de Jamie, estava trancada na gaveta da escrivaninha no seu escritório. Jamie a considerava uma humilhação e a teria queimado, mas eu insisti para que fosse guardada, por precaução. Agora, procurando ouvir sons através do zumbido do vento de inverno, eu tinha visões de tudo ter sido um erro ou alguma espécie de cilada — visões de Jamie preso outra vez por soldados do regimento dos Dragões, em seus casacos vermelhos, novamente levado para o sofrimento da prisão e do perigo iminente do laço da forca.

Os homens retornaram finalmente, pouco antes do anoitecer. Os cavalos vinham carregados de sacas de sal, condimentos para fazer conservas, agulhas e outros pequenos artigos que Lallybroch não podia produzir sozinha.

Ouvi um dos cavalos relinchar ao entrar no pátio do estábulo e desci correndo as escadas, encontrando Jenny que vinha das cozinhas.

Uma sensação de alívio percorreu-me quando vi a figura alta de Jamie, ensombreada contra o celeiro. Atravessei correndo o pátio, alheia à pequena camada de neve que cobria o chão, e atirei-me em seus braços.

— Por onde afinal vocês andaram? — perguntei.

Ele beijou-me sem pressa antes de responder. Seu rosto estava frio contra o meu e seus lábios tinham o leve e agradável sabor de uísque.

— Hum, salsichas para o jantar? — ele disse com aprovação, cheirando meus cabelos, defumados com a fumaça das cozinhas. — Ótimo, estou faminto.

— Bangers and mash — eu disse. — Por onde andaram?

Ele riu, sacudindo o xale de xadrez para livrar-se dos flocos de neve.

— Bangers and mash? Isso é comida, não é?

— Salsichas com purê de batatas — traduzi. — Um bom prato tradicional da Inglaterra, até aqui desconhecido nos rincões incultos da Escócia. Agora, maldito escocês, onde diabos você esteve nos últimos dois dias? Jenny e eu estávamos preocupadas!

— Bem, tivemos um pequeno acidente — Jamie começou a explicar, quando notou a pequena figura de Fergus, carregando uma lanterna. — Ah, trouxe uma luz, então, Fergus? Bom rapaz. Coloque ali, onde não vai pegar fogo na palha e depois leve este pobre animal para sua baia. Depois que tiver tratado dele, venha jantar. Acho que já é capaz de sentar à mesa, não é? — Deu um tapinha amistoso na orelha de Fergus. O garoto se esquivou e devolveu um amplo sorriso; aparentemente, o que quer que tenha acontecido no celeiro antes não deixara rancores.

— Jamie — eu disse, pausadamente. — Se você não parar de falar em salsichas e cavalos e me contar que acidente foi esse, vou lhe dar um chute na canela. O que vai doer muito nos meus dedos porque só estou de chinelos, mas vou chutá-lo mesmo assim.

— É uma ameaça? — ele disse, rindo. — Não foi nada grave, Sassenach, é que...

— Ian! — Jenny, retida momentaneamente por Maggie, acabara de chegar, a tempo de ver seu marido entrar no círculo de luz da lanterna. Surpresa com o choque em sua voz, virei-me e a vi arremessar-se para Ian e colocar a mão em seu rosto.

— O que aconteceu com você, homem? — ela perguntou. Obviamente, qualquer que tenha sido o acidente, Ian recebera o maior impacto. Um dos olhos estava roxo e inchado, semifechado, e havia um arranhão longo e feio em uma das faces.

— Estou bem, mi dhu — ele disse, dando uns tapinhas carinhosos em Jenny enquanto ela o abraçava, a pequena Maggie desconfortavelmente espremida entre os dois. — Só um pouco machucado.

— Estávamos descendo o monte a três quilômetros fora da vila, conduzindo os cavalos porque o terreno era acidentado, quando Ian pisou num buraco de toupeira e quebrou a perna — Jamie explicou.

— A de madeira — Ian acrescentou. Riu, um pouco timidamente. — A toupeira levou a melhor nesse encontro.

— Assim, ficamos em uma cabana próxima o tempo suficiente para entalhar uma nova — Jamie terminou a história. — Podemos comer? As paredes do meu estômago estão coladas.

Entramos sem mais tumulto e a sra. Crook e eu servimos o jantar, enquanto Jenny lavava o rosto de Ian com água de hamamélis e fazia perguntas ansiosas sobre outras possíveis contusões.

— Não foi nada — ele assegurou-lhe. — Só uns machucados aqui e ali.

No entanto, eu o observara caminhar para a casa e vira que ele mancava muito mais do que o normal. Troquei umas palavras com Jenny quando tirávamos a mesa do jantar e, quando estávamos instalados na sala de estar e o conteúdo dos alforjes guardado nos seus respectivos lugares, ela ajoelhou-se no tapete ao lado de Ian e segurou sua perna nova.

— Vamos tirar isso, então — disse, com firmeza. — Você se machucou e quero que Claire dê uma olhada. Talvez ela possa ajudá-lo melhor do que eu.

A amputação original fora feita com bastante habilidade e mais sorte ainda; o cirurgião do exército que decepara a parte de baixo da perna fora capaz de salvar o joelho. Isso dava a Ian muito mais flexibilidade de movimentos do que ele teria em caso contrário. No momento, entretanto, o joelho era mais um risco do que uma vantagem.

A queda torcera a perna brutalmente; a ponta do toco estava roxa da contusão e esfolada onde a borda afiada da perna artificial cortara a pele. Devia ser uma agonia colocar qualquer peso sobre aquele ferimento, ainda que tudo o mais estivesse normal. No entanto, o joelho torcera e a junta estava inchada, vermelha e quente.

O rosto longo e afável de Ian estava quase tão vermelho quanto a junta machucada. Embora perfeitamente à vontade com sua deficiência, eu sabia que ele detestava a impotência ocasional que ela impunha. Seu constrangimento em estar assim exposto agora era provavelmente tão doloroso para ele quanto o toque de minha mão.

— Você rompeu um ligamento aqui — eu lhe disse, percorrendo delicadamente com o dedo o inchaço na parte interna do joelho. — Não sei a gravidade do problema, mas é bem sério. Há líquido acumulado na junta; é por isso que está inchado.

— Você pode melhorar isso, Sassenach? — Jamie estava inclinado por cima do meu ombro, franzindo a testa diante do aspecto preocupante do ferimento.

Sacudi a cabeça.

— Não há muito que eu possa fazer, além de compressas frias para reduzir o inchaço. — Ergui os olhos para Ian, fitando-o com a melhor imitação possível do olhar de madre Hildegarde.

— O que você pode fazer — eu disse — é permanecer na cama. Pode tomar uísque para a dor amanhã; esta noite, vou lhe dar láudano para que possa dormir. Fique de repouso pelo menos uma semana e veremos como ele se comporta.

— Não posso fazer isso! — Ian protestou. — A parede do estábulo precisa ser consertada, dois diques no campo de cima e as relhas dos arados para serem amoladas e...

— E uma perna para consertar também — Jamie disse com firmeza. Lançou a Ian o que eu particularmente chamava de “olhar de chefe”, um olhar azul, fixo e penetrante, que fazia com que a maioria das pessoas acatasse suas ordens na mesma hora. Ian, que compartilhara refeições, brinquedos, expedições de caça, brigas e surras com Jamie, era bem menos suscetível do que a maioria.

— Pois sim que vou ficar na cama! — ele disse sem rodeios. Os olhos castanhos ardentes enfrentaram os de Jamie com uma expressão onde a dor e a raiva misturavam-se ao ressentimento, e a alguma coisa mais que não reconheci. — Acha que pode me dar ordens?

Jamie sentou-se sobre os calcanhares, enrubescendo como se tivesse levado uma bofetada. Ensaiou várias respostas óbvias e finalmente disse com serenidade:

— Não. Não vou tentar lhe dar ordens. Mas posso lhe pedir... para cuidar de si mesmo?

Os dois homens trocaram um longo olhar contendo alguma mensagem que eu não consegui decifrar. Finalmente, os ombros de Ian curvaram-se à medida que ele relaxou, e ele balançou a cabeça, com um sorriso enviesado.

— Você pode pedir. — Suspirou e esfregou o arranhão em seu rosto, contraindo-se ao tocar na pele esfolada. Respirou fundo, enrijecendo-se, depois estendeu a mão para Jamie. — Me ajude a subir, então.

Foi uma tarefa difícil, amparar um homem com uma perna só por dois lances de escada, mas finalmente conseguiram. A porta do quarto de dormir, Jamie deixou Ian comjenny. Ao recuar um passo, Ian disse algo amável e rápido a Jamie em gaélico. Eu ainda não sabia bem a língua, mas achei que ele tivesse dito: “Cuide-se, irmão.”

— Você também, mo brathair.

Segui Jamie pelo corredor até nosso próprio quarto. Eu podia ver pela postura de seus ombros que ele estava cansado, mas eu tinha algumas perguntas que queria fazer antes que ele fosse dormir.

“Só uns machucados aqui e ali”, Ian dissera, tranqüilizando Jenny. Realmente. Aqui e ali. Além dos machucados no rosto e na perna, eu vira as marcas parcialmente escondidas sob o colarinho de sua camisa. Por maior que tenha sido a ira do animal com a intrusão de Ian, eu não podia imaginar uma toupeira tentando estrangulá-lo em represália.

Jamie, entretanto, não queria dormir imediatamente.

— Ah, a ausência enternece o coração, não é? — eu disse. A cama, tão grande na noite anterior, agora mal parecia acomodar nós dois.

— Hum? — ele disse, os olhos semicerrados de contentamento. — Ah, o coração? Sim, ele também. Ah, Deus, não pare; que sensação maravilhosa.

— Não se preocupe, continuarei com a massagem — assegurei-lhe. -Deixe-me apagar a vela. — Levantei-me e soprei-a; com as persianas abertas, havia bastante claridade no quarto com o reflexo do céu carregado de neve, mesmo sem a chama da vela. Eu podia ver Jamie nitidamente, a forma longa do seu corpo relaxada sob as cobertas, as mãos semi-abertas ao longo do tronco. Entrei embaixo dos acolchoados ao lado dele e peguei sua mão direita, retomando a lenta massagem de seus dedos e da palma.

Ele deu um longo suspiro, quase um gemido, enquanto eu esfregava meu polegar em círculos firmes na base dos seus dedos. Enrijecidos pelas longas horas agarrados às rédeas do cavalo, os dedos aqueceram-se e relaxaram-se lentamente sob o toque de minhas mãos. A casa estava silenciosa e o quarto frio, fora do santuário de nossa cama. Era agradável sentir a extensão do seu corpo aquecendo o espaço ao meu lado e desfrutar a a intimidade do toque, sem nenhuma sensação de premência imediata. Com o tempo, esse toque poderia significar mais; era inverno e as noites eram longas. Ele estava ali; eu também, e satisfeita com a situação como se apresentava no momento.

— Jamie — eu disse, após alguns instantes —, quem machucou ían? Ele não abriu os olhos, mas deu um longo suspiro antes de responder.

No entanto, seu corpo não se enrijeceu em resistência; ele já esperava a pergunta.

— Fui eu — ele respondeu.

— O quê? — Larguei sua mão com o choque. Ele cerrou o punho e abriu-o, testando o movimento dos dedos. Em seguida, colocou a mão esquerda na colcha a seu lado, mostrando-me os nós dos dedos ligeiramente inchados pelo choque contra as protuberâncias do rosto ossudo de ían.

— Por quê? — perguntei, horrorizada. Eu podia ver que havia algo novo e tenso entre Jamie e ían, embora não parecesse exatamente hostilidade. Eu não podia imaginar o que teria feito Jamie bater em ían; seu cunhado era quase tão ligado a ele quanto sua irmã, Jenny,

Os olhos de Jamie estavam abertos agora, mas não olhavam para mim. Ele esfregou as juntas dos dedos nervosamente, fitando-os. Fora a leve contusão nos nós dos dedos, não havia nenhuma outra marca em Jamie; aparentemente, ían não reagira.

— Bem, ían está casado há tempo demais — ele disse, na defensiva.

— Eu diria que você ficou no sol tempo demais — observei, fitando-o —, exceto que não há sol. Está com febre?

— Não — ele disse, desviando-se de minha tentativa de colocar a mão em sua testa. — Não, é que... pare com isso, Sassenach, eu estou bem. -Cerrou os lábios, mas depois desistiu e contou-me toda a história.

ían havia de fato quebrado a perna ao pisar num buraco de toupeira perto de Broch Mordha.

— Já era quase noite, tínhamos muita coisa a fazer na vila, e nevava. Eu podia ver que ían estava sofrendo com sua perna, embora ele ficasse insistindo que conseguia viajar. Bem, havia duas ou três cabanas próximas, então eu o coloquei sobre um dos pôneis e o levei encosta acima para pedir abrigo e passar a noite.

Com a característica hospitalidade das Highlands, tanto o abrigo quanto o jantar foram oferecidos com entusiasmo e, após uma tigela quente de sopa e bolo de aveia fresco, os dois visitantes foram acomodados num colchão de palha junto ao fogo.

— Quase não havia nem espaço para estender uma colcha junto à lareira e nós ficamos um pouco apertados, mas nos deitamos lado a lado e nos ajeitamos da melhor forma possível. — Respirou fundo e olhou para mim timidamente.

— Bem, eu estava exausto da viagem e dormi profundamente, e suponho que Ian fez o mesmo. Mas ele tem dormido com Jenny todas as noites nos últimos cinco anos e, suponho, tendo um corpo quente a seu lado na cama... bem, no meio da noite, ele rolou para o meu lado, passou o braço por cima de mim e me beijou na nuca. E eu... — hesitou, e eu pude ver o profundo rubor que inundou seu rosto, mesmo à luz cinza do quarto clareado pela neve — eu acordei de um sono profundo, achando que ele era Jack Randall.

Eu prendera a respiração durante todo o relato; agora, soltei-a lentamente.

— Deve ter sido um choque terrível — eu disse. Jamie contorceu um dos lados da boca.

— Foi um choque terrível para Ian, acredite — ele disse. — Virei-me e dei-lhe um soco no rosto e, quando finalmente despertei por completo, eu estava em cima dele, estrangulando-o, a língua dele para fora da boca. Foi um choque para os Murray na cama também — acrescentou, pensativamente. — Eu disse a eles que tivera um pesadelo... bem, de certa forma, eu tive mesmo... mas o incidente causou um grande tumulto, com as crianças berrando e Ian engasgado a um canto, e a sra. Murray sentada completamente ereta na cama, perguntando: “Quem? Quem?”, como uma coruja pequena e gorda.

Ri diante do quadro, a despeito de mim mesma.

— Ah, meu Deus, Jamie. Ian ficou bem? Jamie encolheu os ombros ligeiramente.

— Bem, você o viu. Todos voltaram a dormir, após algum tempo, e eu apenas fiquei deitado diante do fogo o resto da noite, fitando as vigas do teto. — Ele não ofereceu resistência quando peguei sua mão esquerda, acariciando levemente os nós dos dedos feridos. Seus dedos fecharam-se sobre os meus, segurando-os.

— Depois, quando partimos na manhã seguinte — ele continuou —, esperei até chegarmos a um lugar onde pudéssemos sentar e avistar todo o vale lá embaixo. Então — ele engoliu em seco e sua mão apertou ligeiramente a minha -, eu lhe contei. Sobre Randall. E tudo que aconteceu.

Comecei a compreender a ambigüidade do olhar que Ian lançara a Jamie. E agora compreendia a expressão exausta no rosto de Jamie e as olheiras sob os olhos. Sem saber o que dizer, apenas apertei suas mãos.

— Nunca pensei que iria contar isso a alguém um dia... exceto você — acrescentou, devolvendo o aperto na mão. Sorriu brevemente, depois libertou uma das mãos para esfregar o rosto.

— Mas Ian... bem, ele... — hesitou em busca da palavra certa. — Ele me conhece, sabe?

— Eu sei. Vocês se conheceram a vida inteira, não é?

Ele confirmou com um gesto de cabeça, olhando vagamente pela janela. A neve girando em redemoinhos começara a cair outra vez, pequenos flocos dançando contra a vidraça, mais brancas do que o céu.

— Ele é apenas um ano mais velho do que eu. Quando eu estava crescendo, ele estava sempre ao meu lado. Até eu completar catorze anos, não se passava um só dia que não visse Ian. E mesmo mais tarde, quando fui morar com Dougal, em Leoch, e mais tarde ainda, quando fui para Paris, para a universidade... quando voltava, era só dobrar um canto da casa e lá estava ele, e era como se eu nunca tivesse saído daqui. Ele apenas sorria ao me ver, como sempre fazia, e saíamos por aí juntos, lado a lado, pelos campos e córregos, falando de tudo. — Suspirou profundamente e passou a mão pelos cabelos.

— Ian... ele é a parte de mim que pertence a este lugar, que nunca foi embora — ele disse, esforçando-se para explicar. — Eu pensei... devo contar a ele; eu não queria me sentir... isolado. De Ian. Deste lugar. — Fez um gesto em direção à janela, depois se voltou para mim, os olhos escuros na penumbra. — Você compreende?

— Acho que sim — eu disse outra vez, suavemente. — E Ian?

Ele fez um leve, desconfortável, movimento com os ombros, como se quisesse soltar uma camisa muito apertada em suas costas.

— Bem, não sei dizer. No início, quando comecei a lhe contar a história, ele ficou apenas sacudindo a cabeça, como se não pudesse acreditar e, então, quando acreditou... — Parou e umedeceu os lábios, e eu tive uma idéia do quanto essa confissão na neve lhe custara. — Eu podia ver que ele queria ficar de pé e andar de um lado para o outro, mas não podia, por causa da perna. Seus punhos estavam cerrados, o rosto lívido, e ele repetia: “Como? Droga, Jamie, como você deixou que ele fizesse isso?”

Sacudiu a cabeça.

— Não me lembro do que respondi. Ou do que ele disse. Gritamos um com o outro, isso eu sei. Eu queria bater nele, mas não podia, por causa de sua perna. E ele queria me bater, mas não podia, por causa de sua perna. — Resfolegou com uma pequena risada. — Meu Deus, devíamos parecer dois idiotas, sacudindo os braços e esbravejando um com o outro. Mas eu gri-tei por mais tempo e ele finalmente se calou e ouviu a história até o fim-

“Então, de repente, não consegui continuar falando; parecia-me inútil. E eu sentei-me repentinamente numa rocha e enfiei a cabeça entre as mãos. Depois de algum tempo, Ian disse que era melhor nós irmos andando. Eu assenti e me levantei, ajudei-o a montar no seu cavalo e partimos novamente, sem falar um com o outro.”

Jamie pareceu perceber de repente como estava apertando minha mão com força. Aliviou a pressão, mas continuou a segurar minha mão, girando minha aliança de casamento entre o polegar e o dedo indicador.

— Cavalgamos durante muito tempo — ele disse, a meia-voz. — Então, ouvi um leve ruído atrás de mim e puxei as rédeas do meu cavalo para esperar que Ian viesse para o meu lado. Pude ver que ele andara chorando, ainda chorava, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Ele viu que eu o olhava e sacudiu a cabeça com força, como se ainda estivesse com raiva, mas depois estendeu a mão para mim. Segurei-a e ele apertou-a, com força suficiente para quebrar os ossos. Depois, soltou minha mão e viemos para casa.

Pude sentir a tensão esvair-se de seu corpo, com o final da história. “Cuide-se, irmão”, Ian dissera, equilibrado em uma única perna, à porta do quarto.

— Está tudo bem, então? — perguntei.

— Vai ficar. — Relaxou completamente agora, recostando-se nos travesseiros de penugem de ganso. Deslizei sob as cobertas para bem junto dele, encaixada contra seu corpo. Ficamos vendo a neve cair, sibilando baixinho contra as vidraças.

— Estou feliz de que você esteja de volta, são e salvo.

Acordei com a mesma luz cinza pela manhã. Jamie, já vestido para o dia, estava de pé junto à janela.

— Ah, está acordada, Sassenach? — disse, vendo-me erguer a cabeça do travesseiro. — Ótimo. Eu lhe trouxe um presente.

Enfiou a mão na bolsa de seu kilt e retirou dali várias moedas de cobre, duas ou três pedras pequenas, um pedacinho de pau enrolado com linha de pescar, uma carta amassada e um bolo de fitas de cabelo.

— Fitas de cabelo? — eu disse. — Obrigada. São lindas.

— Não, essas não são para você — ele disse, franzindo a testa enquanto desembaraçava as fitas azuis do pé de toupeira que carregava como amuleto contra reumatismo. — São para Maggie. — Estreitou os olhos, em dúvida, para as pedras que restaram em sua mão. Para minha surpresa, ele pegou uma delas e lambeu-a.

— Não, não é essa — murmurou e enfiou a mão de novo na bolsa que carregava à cintura.

— O que acha que está fazendo? — perguntei com interesse, observando sua movimentação. Ele não respondeu, mas surgiu com novo punhado de pedras, que cheirou, descartando-as uma a uma até chegar a um nódulo.

— Âmbar — disse, com satisfação, enquanto eu revirava o pedaço irregular de âmbar na palma da mão com o dedo indicador. Parecia cálida ao toque e fechei a mão em torno dela, quase inconscientemente.

— Precisa de polimento, é claro — explicou. — Mas achei que daria um belo pingente para um colar. — Enrubesceu ligeiramente, observando-me — É... é um presente pelo nosso primeiro ano de casamento. Quando a vi lembrei-me do pequeno pedaço de âmbar que Hugh Munro lhe deu, quando nos casamos.

— Eu ainda o tenho — eu disse ternamente, acariciando o nódulo pequeno e peculiar de resina petrificada de árvore. O pedaço de âmbar de Hugh, um dos lados lapidado e polido para servir de janela, possuía uma libélula embutida na matriz, suspensa num vôo eterno. Eu a guardava na minha caixa de remédios, o mais poderoso dos amuletos.

Um presente pelo nosso primeiro aniversário de casamento. Nós havíamos nos casado em junho, é claro, não em dezembro. Mas na data de nosso primeiro aniversário de casamento, Jamie estava na Bastilha e eu... nos braços do rei da França. Não foi propriamente uma época de celebração da bênção matrimonial.

— Já é quase Hogmanay — Jamie disse, olhando pela janela para a neve fofa que cobria os campos de Lallybroch. — Parece-me uma boa época para recomeços, eu acho.

— Eu também acho. — Saí da cama e juntei-me a ele à janela, envolvendo-o pela cintura. Permanecemos ali parados, unidos, sem falar, até meus olhos recaírem sobre os outros nódulos pequenos e amarelados que Jamie tirara da bolsa.

— E essas aqui, o que são, Jamie? — perguntei, soltando-o o suficiente para apontar.

— Ah, essas? São balas de mel, Sassenach. — Pegou um dos objetos, limpando-o com os dedos. — A sra. Gibson, na vila, as deu para mim. Muito boas, embora ache que ficaram um pouco sujas dentro da minha bolsa. — Estendeu a mão para mim, sorrindo. — Quer uma?

 

Eu não sabia o que — ou quanto — Ian contara a Jenny de sua conversa na neve com Jamie. Seu comportamento em relação ao irmão continuou o mesmo de sempre, prático e insolente, com um leve toque de afetuosa provocação. Eu já a conhecia há bastante tempo, no entanto, para perceber que um dos maiores dons de Jenny era sua capacidade de ver as coisas com absoluta clareza — e depois seguir em frente, como se elas não existissem.

A dinâmica de comportamentos e sentimentos entre nós quatro moveu-se nos meses seguintes e acomodou-se num padrão sólido e forte, baseado na amizade e fundamentado no trabalho. O respeito e a confiança mútuos eram simplesmente uma necessidade; havia muito a ser feito.

Conforme a gravidez de Jenny evoluía, passei a assumir cada vez mais afazeres domésticos e ela passou a deferi-los a mim com mais freqüência. Eu nunca tentava usurpar o seu lugar; ela era o eixo central de todo o ambiente doméstico desde a morte de sua mãe e era a ela que os empregados ou colonos recorriam normalmente. Ainda assim, eles acostumaram-se comigo, tratando-me com um respeito amistoso que às vezes chegava à beira da aceitação e, outras vezes, do temor reverente.

A primavera foi marcada, primeiro, pela plantação de uma enorme safra de batatas; mais da metade das terras aráveis disponíveis foi dedicada à nova colheita — uma decisão justificada em poucas semanas por uma tempestade de granizo que arrasou a cevada que começava a brotar. As ramas de batata, crescendo junto ao solo, sobreviveram.

O segundo acontecimento da primavera foi o nascimento da segunda filha, Katherine Mary, de Jenny e Ian. Ela chegou com uma rapidez que surpreendeu a todos, inclusive Jenny. Certo dia, Jenny se queixou de dor nas costas e foi deitar-se. Pouco depois, ficou claro o que estava realmente acontecendo e Jamie saiu apressado em busca da sra. Martins, a parteira. Os dois chegaram bem a tempo de compartilhar um copo de vinho para brindar a chegada do bebê, cujos berros agudos ecoavam pelos corredores da casa.

E assim o ano floresceu e tornou-se verde. Eu resplandecia, as últimas feridas cicatrizando-se em meio ao amor e ao trabalho.

As cartas chegavam regularmente: às vezes, havia correspondência uma vez por semana, às vezes nada chegava por um mês ou mais. Considerando-se as distâncias que os carteiros tinham que percorrer para entregar as correspondências nas Highlands, eu achava incrível que alguma coisa conseguisse chegar.

Hoje, entretanto, havia um grande pacote de cartas e livros, bem embrulhado contra as intempéries numa folha de pergaminho oleado e amarrado com corda. Enviando o carteiro à cozinha para uma refeição Jenny desamarrou com cuidado a corda retorcida e economicamente a guardou no bolso. Ela manuseou a pequena pilha de cartas, colocando de lado por enquanto um atraente pacote com endereço de Paris.

— Uma carta para Ian, deve ser a conta das sementes, eu acho, e uma de tia Jocasta. Que bom, há meses não temos notícias dela, achei que pudesse estar doente, mas vejo que sua mão está firme na pena.

Uma carta endereçada com uma caligrafia preta e arrojada caiu sobre a pilha de Jenny, seguida de um bilhete de uma das filhas casadas de Jocasta. Depois, outra para Ian, de Edimburgo, uma para Jamie de Jared — reconheci a caligrafia emaranhada, quase ilegível — e uma outra, num papel grosso, cor creme, selada com a coroa real da Casa Stuart. Outra queixa de Carlos sobre os rigores da vida em Paris e as dores do amor intermitentemente retribuído, eu imaginava. Ao menos, esta parecia curta; em geral, ele se estendia por várias páginas, aliviando a alma com o “cher Jamie”, num patoá que era uma mistura de quatro idiomas e cheio de erros ortográficos. Ao menos, era evidente que ele não buscava o auxílio de um secretário para suas cartas pessoais.

— Ooh, três romances franceses e um livro de poesia de Paris! — Jenny disse, entusiasmada, abrindo o pacote bem embrulhado. — Cest un etnbar-ras de richesse, hein? Qual vamos ler esta noite? — Ergueu a pequena pilha de livros do seu invólucro, acariciando a capa macia de couro do livro que estava em cima com um dedo indicador que tremia de puro deleite. Jenny amava livros com a mesma paixão que seu irmão reservava aos cavalos. A mansão, de fato, ostentava uma pequena biblioteca e se o lazer noturno, entre o trabalho e a hora de dormir, fosse curto, ainda assim incluía ao menos alguns minutos de leitura.

— Isso nos dá algo em que pensar enquanto trabalhamos —Jenny explicou, quando a encontrei certa noite cambaleando de cansaço e insisti para que fosse para a cama dormir, em vez de ficar acordada para ler em voz alta para mim, Ian e Jamie. Ela bocejou, a mão na boca. — Ainda que eu esteja tão cansada que mal consiga ver as palavras na página, elas voltam para mim no dia seguinte, enquanto estou batendo manteiga, fiando ou tecendo a lã e eu fico revirando-as em minha mente.

Ocultei um sorriso à menção da tecedura da lã. Somente as mulheres de Lallybroch, entre todas as fazendas das Highlands, eu tinha certeza, teciam a lã não só ao som de canções tradicionais, como também aos ritmos de Molière e Piron.

Tive uma súbita visão do barracão de tecelagem, onde as mulheres sentavam-se em duas fileiras, uma de frente para a outra, descalças e com os braços nus, com suas roupas mais velhas. Elas apoiavam-se contra as paredes enquanto empurravam com os pés os rolos longos e sujos de tecido de lã, formando a trama apertada e felpuda que iria repelir as neblinas das Highlands e até mesmo a chuva leve, mantendo quem o usava a salvo do frio.

De vez em quando, uma mulher se levantava e saía, para trazer a chaleira de urina fumegante do fogo. Com as saias presas bem altas, ela caminhava com as pernas abertas pelo centro do barracão, embebendo o tecido entre suas pernas. Os vapores elevavam-se, sufocantes e renovados, da lã encharcada, enquanto as tecelãs recolhiam os pés para evitar os possíveis respingos e faziam piadas grosseiras.

— Urina quente fixa o tingimento mais depressa — uma das mulheres me explicara enquanto eu pestanejava, os olhos lacrimejando, na minha primeira visita ao barracão. No começo, as outras mulheres ficaram me observando para ver se eu iria me esquivar do trabalho, mas a tecelagem da lã não era nenhum choque insuportável depois de tudo que eu vira e fizera na França, tanto na guerra de 1944 quanto no hospital em 1744. O tempo faz bem pouca diferença para as realidades básicas da vida. Fora o mau cheiro, o barracão era um lugar quente e confortável, onde as mulheres de Lallybroch confraternizavam e pilheriavam entre peças de tecido, e cantavam juntas durante o trabalho. As mãos moviam-se ritmicamente em cima de uma mesa ou os pés descalços afundavam-se fundo no tecido fumegante, enquanto nos sentávamos no chão, empurrando contra uma parceira que empurrava de volta.

Fui arrancada de minhas recordações da tecelagem da lã pelo barulho de botas pesadas no vestíbulo e uma rajada de ar chuvoso e frio quando a porta se abriu. Jamie, e Ian com ele, conversando em gaélico, ao jeito confortável e sem afetação que significava que discutiam questões da fazenda.

— Aquele campo vai ter que ser drenado no ano que vem —Jamie dizia ao atravessar a porta. Jenny, ao vê-los, deixou a correspondência de lado e foi buscar toalhas de linho lavadas da arca no vestíbulo.

— Enxuguem-se antes de ficar pingando no tapete — ordenou, entregando uma toalha a cada um. — E tirem essas botas imundas também. O correio chegou, Ian. Há uma carta para você daquele homem em Perth, aquele para quem você escreveu a respeito das sementes de batatas.

— Ah, é? Já vou lê-la, então, mas posso comer alguma coisa enquanto faço isso? — Ian perguntou, esfregando a cabeça molhada com a toalha, até que os espessos cabelos castanhos ficaram arrepiados como os pêlos de um porco-espinho. — Estou faminto e posso ouvir a barriga de Jamie roncando daqui de onde estou.

Jamie sacudiu-se como um cachorro molhado, fazendo sua irmã emitir um pequeno guincho quando as gotas frias voaram por todo o vestíbu-lo. Sua camisa estava colada nos ombros e mechas soltas, da cor de ferrugem e encharcadas de chuva, caíam sobre seus olhos.

Enrolei uma toalha em seu pescoço.

— Termine de se enxugar e eu vou buscar alguma coisa para você comer.

Eu estava na cozinha quando o ouvi gritar. Eu nunca o ouvira emitir um grito assim antes. Havia choque e horror naquele som, e mais alguma coisa — um tom de irrevogabilidade, como o grito de um homem que se vê nas garras de um tigre. Eu já estava no corredor, em direção à sala de estar, sem parar para pensar, uma bandeja de bolos de aveia ainda segura nas mãos.

Quando irrompi na sala, eu o vi de pé junto à mesa onde Jenny colocara a correspondência. Seu rosto estava lívido e ele cambaleou ligeiramente, como uma árvore cortada, esperando que alguém gritasse: “Madeira!”, antes de cair.

— O que foi? — perguntei, aterrorizada com a expressão de seu rosto. — Jamie, o que foi? O que foi?!

Com um visível esforço, ele pegou uma das cartas na mesa e a entregou a mim. Coloquei a bandeja de bolos de aveia sobre a mesa e peguei a folha de papel, correndo os olhos rápido por ela. Era de Jared; reconheci a caligrafia fina e rabiscada imediatamente. “Querido sobrinho”, li para mim mesma, “... muito satisfeito... as palavras não podem expressar minha admiração... sua coragem e audácia serão uma inspiração... você terá sucesso... minhas preces estarão com você...” Ergui os olhos do papel, confusa.

— De que ele está falando? O que você fez, Jamie?

A pele estava esticada sobre os ossos de sua face e ele riu, um esgar lúgubre, enquanto pegava outra folha de papel, esta um folheto de impressão barata.

— Não é o que eu fiz, Sassenach — ele disse. A folha impressa era encimada pela coroa da Casa Real dos Stuart. A mensagem embaixo era breve, expressa numa linguagem grandiosa.

Declarava que, por ordenação do Todo-poderoso, o rei Jaime, VIII da Escócia e III da Inglaterra e da Irlanda, afirmava por meio deste documento seus direitos a reclamar o trono de três reinos. E por meio deste agradecia o apoio a esses direitos divinos pelos chefes dos clãs das Highlands, pelos senhores jacobitas e pelos “diversos outros súditos leais de Sua

Majestade, o rei Jaime, os quais, como prova disso, subscreveram seus nomes na presente Lista de Adesão”.

Meus dedos foram ficando gelados enquanto eu lia e eu tinha consciência de uma sensação de terror tão aguda que continuar respirando tornou-se um verdadeiro esforço. Meus ouvidos latejavam com a pulsação do sangue e pontos negros dançavam diante dos meus olhos.

Ao pé do folheto viam-se as assinaturas dos chefes de clãs escoceses que declararam sua lealdade ao mundo e apostaram suas vidas e reputação no sucesso de Carlos Stuart. Clanranald estava lá, bem como Glengarry. Stewart, de Appin; Alexander MacDonald, de Keppoch; Angus Mac-Donald, de Scotus.

E no final da lista estava escrito: “James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser, de Broch Tuarach.”

— Jesus Cristo! Maldição! — murmurei, na verdade desejando dizer uma blasfêmia, como forma de alívio. — O desgraçado assinou seu nome na lista!

Jamie, ainda pálido e carrancudo, começava a se recobrar.

— Sim, assinou — disse laconicamente. Estendeu a mão e pegou a carta ainda não aberta que permanecia sobre a mesa, um papel velino de alta qualidade, com o símbolo dos Stuart bem evidente no selo de cera. Jamie abriu a carta impacientemente, rasgando o papel. Leu-a depressa, lar-gando-a sobre a mesa em seguida, como se ela queimasse suas mãos.

— Um pedido de desculpas — disse com voz rouca. — Por falta de tempo de me mandar o documento, para que eu mesmo pudesse assiná-lo. E sua gratidão, por meu leal apoio. Meu Deus, Claire! O que vou fazer?

Era um pedido de ajuda vindo do coração — e para o qual eu não tinha nenhuma resposta. Observei-o, impotente, enquanto ele se deixava cair sentado sobre uma almofada e ficava ali, imóvel, olhando fixamente para o fogo.

Jenny, paralisada por todo esse drama, aproximou-se para ver as cartas e o folheto. Leu-os com atenção, os lábios movendo-se ligeiro ao fazê-lo.

Em seguida, colocou os papéis delicadamente de volta sobre o tampo lustroso da mesa. Olhou para eles com o cenho franzido, depois se dirigiu a seu irmão e colocou a mão em seu ombro.

— Jamie — ela disse. Seu rosto estava muito pálido. — Só lhe resta uma única coisa a fazer, querido. Você tem que ir lutar por Carlos Stuart. Tem que ajudá-lo a vencer.

A verdade de suas palavras penetrou devagar pelas camadas de choque que me envolviam. A publicação dessa Lista de Adesão marcava os que assinaram como rebeldes e como traidores da coroa inglesa. Não importava agora como, ou onde, Carlos conseguira os recursos financeiros para começar a agir; ele já singrava os mares da rebelião e Jamie — e eu — também singrávamos as mesmas ondas, quer quiséssemos ou não. Como Jenny dissera, não havia escolha.

Meus olhos recaíram sobre a carta de Carlos, onde Jamie a largara.

“... Embora muitos me digam que é uma tolice embarcar nesta empreitada sem o apoio de Luís — ou ao menos de seus bancos! -, nào tenho a menor intenção de voltar para o lugar de onde vim”, dizia. “Alegre-se comigo, meu caro amigo, porque estou indo para casa.”

 

À medida que os preparativos para a partida prosseguiam, uma corrente de entusiasmo e especulação percorria toda a propriedade. Armas guardadas desde a rebelião de 1715 foram retiradas da palha, dos fardos de feno e de cima da lareira, polidas e amoladas. Os homens, quando se cruzavam, paravam para conversar e se reuniam em grupos ansiosos, as cabeças unidas sob o sol quente de agosto. As mulheres foram ficando silenciosas, observando-os.

Jenny compartilhava com seu irmão a mesma capacidade de ser opaco, de não dar nenhuma pista do que estava pensando. Quanto a mim, transparente como uma vidraça, tinha uma certa inveja dessa aptidão. Assim, quando em certa manhã ela me pediu para chamar Jamie e dizer a ele que se encontrasse com ela na cervejaria, eu não fazia a menor idéia do que ela queria com ele.

Jamie entrou atrás de mim e parou assim que atravessou a porta da cervejaria, esperando que seus olhos se acostumassem à penumbra. Inspirou fundo, inalando o aroma pungente, úmido e amargo, com evidente satisfação.

— Ahh — ele disse, suspirando sonhadoramente. — Eu poderia ficar bêbado aqui só de respirar.

— Bem, então prenda a respiração por um instante, pois preciso de você sóbrio — sua irmã avisou-o.

Ele obedientemente inflou os pulmões e encheu as bochechas, esperando. Jenny cutucou-o rapidamente no estômago com o cabo de seu amassador, fazendo-o dobrar-se sobre si mesmo e expelir todo o ar dos pulmões num só jato.

— Palhaço — ela disse, sem rancor. — Queria conversar com você sobre Ian.

Jamie pegou um balde vazio da prateleira, virou-o e sentou-se nele. uma leve claridade vinda da janela de papel oleado acima dele iluminou Seus cabelos com um brilho acobreado.

— O que tem Ian? — ele perguntou.

Agora, foi a vez de Jenny respirar fundo. A enorme tina de farelo de cereais à sua frente exalou um calor úmido da fermentação, carregado do aroma de cevada, lúpulo e álcool.

— Quero que leve Ian com você, quando você for.

As sobrancelhas de Jamie lançaram-se para cima, mas ele não disse nada de imediato. Os olhos de Jenny estavam fixos nos movimentos do amassador, observando a suave agitação da mistura. Ele fitou-a pensativo, as mãos grandes soltas entre as pernas.

— Cansada do casamento, hein? — ele perguntou, em tom de conversa. — Provavelmente seria mais fácil eu o levar para a floresta e dar um tiro nele para você. — Viu-se um lampejo de olhos azuis acima da tina de fermentação.

— Se eu quisesse matar alguém a tiro, Jamie Fraser, eu mesma o faria. E Ian não seria minha primeira escolha como alvo, tampouco.

Ele deu um rápido muxoxo e o canto de seus lábios contorceu-se num sorriso reprimido.

— Ah, é? Então, por quê?

Os ombros de Jenny moviam-se num ritmo regular, um movimento fundindo-se no próximo.

— Porque eu estou lhe pedindo.

Jamie espalmou a mão direita sobre o joelho, acariciando distraida-mente a cicatriz irregular que ziguezagueava pelo dedo médio.

— É perigoso, Jenny — ele disse serenamente.

— Eu sei disso.

Ele sacudiu a cabeça devagar, ainda fitando a mão. Ela se recuperara bem e ele podia usá-la quase normalmente, mas o dedo anular rígido e a cicatriz grande e áspera nas costas da mão conferiam-lhe uma aparência estranha e defeituosa.

— Você acha que sabe.

— Eu sei, Jamie.

Ele ergueu a cabeça. Parecia impaciente, mas esforçava-se para se manter razoável e sensato.

— Sim, eu sei que Ian deve ter lhe contado histórias sobre lutar na França e tudo o mais. Mas você não faz a menor idéia de como realmente é, Jenny. Mo cridh, não é uma questão de roubo de gado. É uma guerra, e é provável que seja um maldito massacre sangrento. É...

O amassador bateu na borda da tina com um barulho estridente e caiu de volta dentro da mistura.

— Não diga que não sei como é! — Jenny interrompeu-o, furiosa. — Histórias, não é? Quem você acha que cuidou de Ian quando ele voltou da França com metade da perna e uma febre que quase o matou?

Ela bateu no banco com a mão aberta. Os nervos tensos eclodiram.

— Não sei? Eu não sei? Eu retirei um a um os vermes da carne viva do toco de sua perna, porque sua própria mãe não teve coragem para isso! Eu segurei a faca quente contra sua perna para selar o ferimento! Eu senti o cheiro de sua carne tostando como a de um porco assado, ouvindo-o gritar enquanto isso! Ainda ousa ficar aí e dizer que eu... não... SEI como é!

Lágrimas iradas escorriam pelo seu rosto. Limpou-as, tateando no bolso à procura de um lenço.

Os lábios cerrados com força, Jamie levantou-se, tirou um lenço da manga e deu-o a ela. Ele sabia que não devia tocá-la ou tentar consolá-la. Ficou parado, fitando-a por um instante, enquanto ela enxugava furiosamente os olhos e o nariz.

— Ah, bem, você sabe, então — ele disse. — E ainda assim quer que eu o leve?

— Quero. — Assoou o nariz e limpou-o energicamente, depois enfiou o lenço no bolso.

— Ele sabe muito bem que é aleijado, Jamie. Sabe disso muito bem. Mas ele conseguiria, com você. Há um cavalo para ele; ele não teria que caminhar.

Ele fez um gesto impaciente com a mão.

— Se ele conseguiria não é bem a questão, não é? Um homem pode fazer o que ele acha que deve. Por que você acha que ele deve?

Novamente controlada, ela pescou o amassador de dentro da mistura e sacudiu-o. Gotículas marrons respingaram dentro da tina.

— Ele ainda não perguntou a você, não é? Se vai precisar dele ou não?

— Não.

Enfiou o amassador de novo dentro da tina e retomou o trabalho.

— Ele acha que você não vai querê-lo porque é aleijado e que ele não teria nenhuma utilidade para você. — Ergueu os olhos, atormentados olhos azuis, iguais aos do irmão. — Você conheceu Ian antes, Jamie. Ele é diferente agora.

Ele balançou a cabeça relutantemente, retomando o seu assento no balde.

— Sim. Bem, mas é de se esperar, não? E ele parece muito bem. Ergueu os olhos para a irmã e sorriu. — Ele é feliz com você, Jenny. Você e as crianças.

Ela assentiu com um gesto de cabeça, os cachos negros sacudindo-se.

— Sim, é — ela disse suavemente. — Mas isso é porque ele é um homem completo para mim e sempre será. — Olhou direto para o irmão. — Mas se achar que não tem utilidade para você, ele não será completo para si mesmo. E é por isso que eu quero que você o leve.

Jamie entrelaçou as mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos, e descansou o queixo sobre os dedos unidos.

— Isso não vai ser como na França — ele disse serenamente. — Lutando lá, você não arrisca mais do que seu corpo na batalha. Aqui... — Ele hesitou, depois continuou. — Jenny, isso é traição. Se der errado, aqueles que seguem os Stuart provavelmente terminarão no cadafalso.

Sua tez normalmente clara tornou-se ainda mais branca, mas seus movimentos não diminuíram de intensidade.

— Não há escolha para mim — ele continuou, os olhos fixos na irmã. -Mas você arriscaria nós dois? Vai querer Ian na forca, olhando para baixo para a fogueira que vai consumir suas entranhas? Vai correr o risco de criar seus filhos sem o pai, para salvar o orgulho dele? — Seu rosto estava quase tão lívido quanto o dela, brilhando na penumbra da cervejaria.

Os golpes do amassador tornaram-se mais lentos, sem a velocidade feroz de seus movimentos anteriores, mas sua voz abrigava toda a convicção de seu trabalho lento, inexorável.

— Ou eu tenho um homem completo — ela disse com firmeza. — Ou nenhum.

Jamie permaneceu sentado, imóvel, por um longo instante, observando a cabeça escura de sua irmã inclinada sobre o trabalho.

— Está bem — ele disse finalmente. Ela não ergueu os olhos nem alterou seus movimentos, mas a touca branca que usava pareceu inclinar-se na direção de Jamie.

Ele suspirou explosivamente, em seguida levantou-se e virou-se de modo brusco para mim.

— Vamos sair daqui, Sassenach — ele disse. — Santo Deus, devo estar bêbado.

— O que o faz pensar que pode me dar ordens? — A veia na têmpora de Ian latejava furiosamente. A mão de Jenny apertou a minha com mais força.

A declaração de Jamie de que Ian o acompanharia para se unir ao exército dos Stuart fora recebida primeiro com incredulidade, depois com desconfiança e — como Jamie insistisse — com raiva.

— Você é um idiota — Ian declarou sem rodeios. — Eu sou aleijado você sabe disso muito bem.

— Sei que você é um bom soldado e não há nenhum outro que eu gostaria de ter a meu lado numa batalha — Jamie disse com firmeza. Seu rosto não deixava entrever nenhum sinal de dúvida ou hesitação; ele concordara com o pedido de Jenny e o levaria até o fim, a qualquer preço. — Você já lutou muitas vezes; vai me desertar agora?

Ian agitou a mão num gesto de impaciência, descartando o elogio.

— Talvez, sim. Se minha perna sair ou se quebrar, haverá bem pouco que eu possa fazer. Ficarei lá deitado no chão como um verme, esperando que o primeiro inimigo venha me espetar. Além disso — disse, com uma expressão ameaçadora para seu cunhado -, quem você acha que vai cuidar deste lugar até você voltar se eu estiver fora na guerra com você?

— Jenny — Jamie replicou prontamente. — Vou deixar aqui homens suficientes que poderão encarregar-se do trabalho; ela sabe cuidar das contas muito bem.

As sobrancelhas de Ian ergueram-se e ele disse algo bem rude em gaélico.

— Pog ma mahon! Vai fazer com que eu a deixe cuidando sozinha do lugar, com três crianças no seu avental e apenas metade dos homens necessários? Meu caro, você perdeu o juízo completamente! — Lançando as duas mãos para o ar, Ian virou-se para o bufê, onde o uísque era mantido.

Jenny, sentada a meu lado no sofá com Katherine no colo, soltou uma exclamação quase inaudível. Sua mão buscou a minha sob as pregas de nossas saias unidas e eu apertei seus dedos.

— O que o faz pensar que pode me dar ordens?

Jamie examinou as costas tensas de seu cunhado por um instante, com uma carranca. De repente, um músculo no canto de sua boca contorceu-se.

— Porque eu sou maior do que você — ele disse, de modo beligerante, ainda carrancudo.

Ian girou nos calcanhares para encará-lo, a incredulidade estampada no rosto. A indecisão brincou em seus olhos por menos de um segundo. Seus ombros endireitaram-se e ele empinou o queixo.

— Eu sou mais velho do que você — ele retrucou, com uma carranca igual.

— Eu sou mais forte.

— Não, não é!

— Sou, sim!

— Não, eu é que sou!

Um veio de absoluta seriedade sublinhava o riso em suas vozes; embora esse pequeno confronto pudesse passar por uma brincadeira, eles estavam tão concentrados um no outro e tão resolutos como na infância e na adolescência. Os ecos do desafio soaram na voz de Jamie quando ele abriu os Punhos da camisa e enrolou as mangas para cima.

— Prove — ele disse. Limpou a mesa de xadrez com uma varredura descuidada da mão, sentou-se e fincou o cotovelo na superfície marchetada, os dedos flexionados para uma ofensiva. Os olhos azul-escuros fitaram os olhos castanhos de Ian, ardentes como os de Jamie.

Ian levou meio segundo para avaliar a situação, em seguida sacudiu a cabeça num breve sinal de concordância, fazendo uma grossa mecha de cabelos castanhos cair pesadamente sobre seus olhos.

Com calma deliberação, alisou-os para trás, abriu os punhos da camisa e enrolou as mangas até os ombros, dobra por dobra, sem nunca tirar os olhos de seu cunhado.

De onde eu estava, podia ver o rosto de Ian, um pouco afogueado sob o bronzeado da pele, o queixo longo e estreito erguido com decisão. Eu não podia ver o rosto de Jamie, mas a determinação era eloqüentemente expressa pela linha das costas e dos ombros.

Os dois homens ajeitaram os cotovelos com todo o cuidado sobre a mesa, manobrando para encontrar o melhor ponto, esfregando a ponta do cotovelo para a frente e para trás, a fim de se certificar de que a superfície não estava escorregadia.

Seguindo o ritual, Jamie abriu os dedos, a palma voltada para Ian. Ian cuidadosamente colocou sua própria palma contra a dele. Os dedos se correspondiam, tocando-se por um instante numa imagem espelhada, depois se moveram, um para a direita e o outro para a esquerda, unidos e firmes.

— Pronto? — Jamie perguntou.

— Pronto. — A voz de Ian era calma, mas seus olhos brilhavam sob as sobrancelhas.

Os músculos tensionaram-se imediatamente, por toda a extensão dos dois braços, saltando em perfeita definição conforme eles se mexiam em seus assentos, buscando equilíbrio.

Os olhos de Jenny encontraram-se com os meus e ela os revirou para cima. O que quer que estivesse esperando de Jamie, não era isso.

Os dois estavam concentrados no tenso enredamento de seus dedos, a exclusão de tudo o mais. Ambos os rostos estavam vividamente vermelhos do esforço, o suor molhando os cabelos nas têmporas, os olhos saltando ligeiramente das órbitas. De repente, vi o olhar de Jamie sair de sua concentração nos punhos cerrados ao ver os lábios de Ian apertarem-se com mais força. Ian sentiu a mudança, ergueu a cabeça, seus olhos se encontraram... e os dois desataram a rir.

As mãos permaneceram unidas por mais um instante, presas em espasmo, depois se separaram.

— Empate, então — Jamie disse, empurrando para trás uma mecha de cabelos molhados de suor. Sacudiu a cabeça para Ian com bom humor-

— Está bem, companheiro. Se eu pudesse lhe dar ordens, eu não o faria. Mas posso lhe pedir, não? Você quer vir comigo?

Ian enxugou o pescoço onde o suor molhava o colarinho. Seu olhar perambulou pelo aposento, descansando em Jenny por um instante. O rosto de Jenny não estava mais pálido do que o normal, mas eu podia ver a pulsação acelerada, latejando logo abaixo do ângulo de seu maxilar. Ian fitou-a atentamente enquanto desenrolava a manga da camisa outra vez, em voltas cuidadosas. Pude ver um rubor intenso começar a elevar-se da gola do vestido de Jenny.

Ian esfregou o queixo como se pensasse, depois se virou para Jamie e sacudiu a cabeça.

— Não, meu caro — disse a meia-voz. — Você precisa de mim aqui e aqui eu vou ficar. — Seus olhos pousaram em Jenny, segurando Katherine contra o ombro, e na pequena Maggie, agarrada à saia da mãe com as mãozinhas sujas. E sobre mim. A boca larga de Ian curvou-se num ligeiro sorriso. — Devo ficar aqui — ele repetiu. — Guardando seu lado fraco, amigo.

— Jamie?

— Sim? — A resposta veio imediatamente; eu sabia que ele não estava dormindo, embora permanecesse deitado e imóvel como uma estátua esculpida num túmulo. O quarto estava iluminado pelo luar e eu pude ver seu rosto quando me ergui sobre um cotovelo; ele olhava fixamente para cima, como se pudesse enxergar além das pesadas vigas do teto, para dentro da noite limpa e das estrelas no firmamento.

— Você não vai tentar me deixar para trás, não é? — Eu nem teria pensado em perguntar se não fosse pela cena com Ian, no começo da noite. Uma vez definido que Ian permaneceria na propriedade, Jamie sentara-se com ele para tomar algumas decisões: escolhendo quem iria marchar com o senhor das terras para ajudar o príncipe, quem ficaria para trás para cuidar dos animais, do pasto e da manutenção de Lallybroch.

Eu sabia que fora um difícil processo de decisão, embora ele não desse nenhuma demonstração disso, calmamente discutindo com Ian se Ross, o ferreiro, poderia ser levado e concluindo que poderia, embora os arados Necessários para a primavera tivessem que estar todos consertados e em Perfeito estado antes de partirem. Se Joseph Fraser Kirby deveria ir e concluindo que não, já que ele era o principal esteio não só de sua própria família, como também da família de sua irmã viúva. Brendan era o filho mais velho das duas famílias e tinha nove anos, ainda despreparado para substituir seu pai, caso Joseph não retornasse para casa.

Era uma questão do mais delicado planejamento. Quantos homens deveriam ir, para ter algum impacto sobre o curso da guerra? Porque Jenny tinha razão, Jamie agora não tinha escolha — nenhuma escolha, a não ser ajudar Carlos Stuart a vencer. E para esse fim, o maior número possível de homens e armas que pudessem ser convocados deveria ser lançado à causa.

Entretanto, do outro lado estava eu e meu conhecimento mortal — e a falta dele. Havíamos conseguido evitar que Carlos Stuart obtivesse dinheiro para financiar sua rebelião; ainda assim, o príncipe, insensato, irresponsável e determinado a reivindicar seu legado, havia desembarcado para reunir os clãs em Glenfinnan. Por outra carta de Jared, ficamos sabendo que Carlos atravessara o Canal com duas pequenas fragatas, fornecidas por um tal de Antoine Walsh, um ex-traficante de escravos com um senso de oportunidade. Aparentemente, ele considerou a aventura de Carlos menos arriscada do que uma expedição de tráfico de escravos, um jogo em que ele podia ser ou não ser punido. Uma das fragatas fora interceptada pelos ingleses; a outra desembarcara Carlos são e salvo na ilha de Eriskay.

Carlos desembarcara com apenas sete companheiros, inclusive o proprietário de um pequeno banco chamado Aeneas MacDonald. Incapaz de financiar uma expedição inteira, MacDonald fornecera os recursos financeiros para um pequeno estoque de espadas de folha larga, que constituía todo o armamento de Carlos. Jared soara simultaneamente admirado e horrorizado com a irresponsabilidade da aventura, mas sendo um jacobita leal como era, fazia o possível para engolir seus temores.

E até aqui, Carlos fora bem-sucedido. Pelos rumores que circulavam nas Highlands, ficamos sabendo que ele aportara em Eriskay, atravessara até Glenfinnan e lá aguardara, acompanhado apenas por alguns grandes toneis de conhaque, para ver se os clãs iriam atender a sua convocação. Após o que devem ter sido várias horas de tensão, trezentos homens do clã Cameron desceram os desfiladeiros das íngremes montanhas verdes, liderados não pelo seu chefe, que estava sempre longe de casa — mas por sua irmã, Jenny Cameron.

Os Cameron foram os primeiros, mas outros se uniram a eles, como mostrava a Lista de Adesão.

Se Carlos agora prosseguisse em direção ao desastre, apesar de todos os esforços, então quantos homens de Lallybroch poderiam ser poupados, deixados em casa para salvar algo da destruição?

O próprio Ian estaria a salvo; isso era certo e um bálsamo para o espírito de Jamie. Mas e quanto aos outros — as sessenta famílias que viviam em Lallybroch? Escolher quem deveria ir e quem deveria ficar poderia parecer, sob alguns aspectos, escolher homens que deveriam ser sacrificados. Eu já vira comandantes antes. Os homens a quem a guerra forçara a tais escolhas — e eu sabia o que isso lhes custava.

Jamie tomara suas decisões — não tinha outra escolha —, mas em duas questões ele ficou inflexível; nenhuma mulher acompanharia sua tropa e nenhum rapaz de menos de dezoito anos participaria. Ian ficou um pouco surpreso — embora a maioria das mulheres com filhos pequenos normalmente fosse deixada em casa, estava longe de ser incomum que as mulheres das Highlands seguissem seus homens na guerra, cozinhando e cuidando deles, e compartilhando as rações do exército. E os rapazes, que se consideravam homens aos catorze anos, ficariam extremamente humilhados por serem deixados de fora. Mas Jamie dera suas ordens num tom que não admitia argumentação e Ian, após um instante de hesitação, apenas assen-tira com um gesto de cabeça e anotara os nomes.

Eu não quis perguntar-lhe na presença de Ian e Jenny se o banimento de mulheres me incluía. Porque, incluísse ou não, eu iria com ele, e isso, pensei, era definitivo.

— Deixá-la aqui? — ele disse agora, e o canto de sua boca torceu-se num sorriso enviesado. — Acha que eu teria alguma chance?

— Não — eu disse, aconchegando-me junto a ele com um alívio repentino. — Não teria. Mas achei que você poderia considerar o assunto.

Ele deu uma pequena risada e puxou-me para ele, minha cabeça em seu ombro.

— Ah, sim. E se eu achasse que poderia deixá-la aqui, eu a acorrentaria no corrimão; nada mais iria impedi-la de me seguir. — Pude sentir sua cabeça sacudir-se acima de mim, em sinal de negação. — Não. Devo levá-la comigo, Sassenach, quer eu queira ou não. Há coisas que você talvez saiba durante o caminho, mesmo que pareçam não ter importância agora, podem ter depois. E você é uma ótima curandeira, Sassenach. Não posso negar suas habilidades aos homens, e elas serão necessárias.

Sua mão deu uns tapinhas no meu ombro e ele suspirou.

— Eu daria qualquer coisa, mo duinne, se pudesse deixá-la aqui a salvo, mas não posso. Assim, você irá comigo, você e Fergus.

— Fergus? — Fiquei surpresa com aquela decisão. — Mas achei que não iria levar nenhum dos rapazes mais jovens!

Ele suspirou outra vez, e eu espalmei minha mão no centro do seu Peito, onde seu coração batia sob a pequena cavidade, devagar e compassadamente.

— Bem, Fergus é um pouco diferente. Os outros rapazes... eu não os levarei porque eles pertencem a este lugar; se tudo der errado, restarão eles para impedir que suas famílias morram de fome, para trabalhar os campos e cuidar dos animais. Talvez tenham que crescer rápido, se isso acontecer, mas ao menos estarão aqui para fazer o trabalho. Mas Fergus... este não é seu lugar, Sassenach. Nem a França, ou eu o mandaria de volta. Mas também não há um lugar para ele lá.

— O lugar dele é com você — eu disse ternamente, compreendendo. — Como o meu.

Ele ficou em silêncio por um longo tempo, depois sua mão apertou me suavemente.

— Sim, é verdade — ele disse serenamente. — Durma agora, mo duinne, já é tarde.

O lamento queixoso e irritado arrancou-me das profundezas do sono pela terceira vez. Os dentes de Katherine estavam começando a despontar e ela não se importava se você sabia disso ou não. Do seu quarto no final do corredor, ouvi o resmungado sonolento de Ian e a voz mais alta de Jenny, resignada, enquanto saía da cama e ia consolar o bebê.

Então, ouvi os passos abafados e pesados no corredor e compreendi que Jamie, ainda acordado, caminhava descalço pela casa.

— Jenny? — Sua voz, em tom baixo para evitar maiores perturbações, ainda assim era perfeitamente audível no silêncio rangente da mansão. -Ouvi o bebê chorando — ele disse. — Se ela não consegue dormir, eu também não, mas você pode. Se ela estiver alimentada e seca, talvez possamos aturar a companhia um do outro, enquanto você volta para a cama.

Jenny reprimiu um bocejo e pude perceber o sorriso em sua voz.

— Jamie, querido, você é uma bênção para as mães. Sim, ela está cheia como um tambor e acabei de trocar sua fralda. Fique com ela e eu desejo a ambos muita alegria. — Uma porta se fechou e eu ouvi os passos pesados outra vez, voltando para o nosso quarto, e o murmúrio surdo da voz de Jamie enquanto balbuciava para o bebê num tom tranqüilizador.

Aninhei-me mais fundo no conforto da cama de penas de ganso e voltei ao sono outra vez, ouvindo ao longe o choro do bebê, entremeado de soluços sentidos, e o cantarolar grave, sem melodia, de Jamie, o som tão reconfortante quanto a idéia de colméias ao sol.

— Ei, Kitty, áamar a tha ihu?. Much, mo naoidheachan, much.

O som produzido pelos dois subia e descia pelo corredor e eu mergulhei mais fundo no sono, mas mantendo-me parcialmente acordada a fim de ouvi-los. Um dia, talvez, ele seguraria seu próprio filho assim, a cabecinha redonda embalada nas mãos grandes, o corpo pequeno e sólido, aconchegado com firmeza contra seu ombro. E desse jeito ele cantaria para sua própria filha, uma canção sem melodia, um canto terno e delicado na escuridão.

A dorzinha constante em meu coração foi submergida numa inundação de ternura. Eu concebera uma vez; poderia fazê-lo de novo. Faith e ofertara essa certeza, Jamie, a coragem e os meios para usá-la. Minhas mãos descansaram levemente sobre meus seios, envolvendo suas curvas, sabendo sem nenhuma dúvida que um dia eles alimentariam a criança do meu coração. Mergulhei definitivamente no sono com a voz de Jamie em meus ouvidos.

Algum tempo depois, subi à superfície outra vez e abri os olhos para o quarto iluminado. A lua subira no céu, cheia e resplandecente, e todos os objetos no aposento eram plenamente visíveis, daquela forma plana, bidimensional, das coisas vistas sem sombra.

O bebê silenciara, mas eu podia ouvir a voz de Jamie no corredor, ainda falando, porém muito mais serenamente, pouco mais do que um murmúrio. E o tom de sua voz mudara; não era mais aquele palavreado sem sentido, rítmico, com que se fala com os bebês, mas o discurso entre -cortado, interrompido, de um homem buscando o caminho através da selva de seu próprio coração.

Curiosa, deslizei da cama e aproximei-me silenciosamente da porta. Podia vê-los lá, no final do corredor. Jamie estava sentado com as costas apoiadas contra a lateral da banqueta encaixada na moldura da janela, vestido apenas com seu camisão. As pernas nuas estavam erguidas, formando um encosto contra o qual a pequena Katherine Mary descansava, de frente para ele e em seu colo, as próprias perninhas gorduchas chutando-o incansavelmente no estômago.

O rosto do bebê era insondável e claro como a lua, os olhos, poças escuras absorvendo suas palavras. Ele traçava a curva de sua bochecha com um dedo, sem parar, sussurrando com uma delicadeza comovente.

Ele falava em gaélico e tão baixo que eu não conseguiria entender o que dizia, ainda que soubesse as palavras. Mas a voz murmurante era grave e o luar que entrava pela janela atrás dele mostrava os caminhos das lágrimas que deslizavam livremente pelas suas faces.

Não era uma cena que pudesse sofrer uma intrusão. Voltei para a cama ainda quente, levando na mente a imagem do senhor de Lallybroch, semi-nu à luz da lua, extravasando seu coração para um futuro desconhecido, segurando no colo a promessa de seu sangue.

Quando acordei de manhã, havia um aroma caloroso, pouco conhecido, ao meu lado, e algo enrolado em meus cabelos. Abri os olhos e deparei-me com os lábios róseos de Katherine Mary estalando sonhadoramente a cinco centímetros do meu nariz, os dedos gorduchos agarrados aos cabelos acima de minha orelha esquerda. Desvencilhei-me cautelosamente e ela remexeu-se, mas recaiu pesadamente de bruços, puxou os joelhos para cima e voltou a dormir.

Jamie estava deitado do outro lado da criança, o rosto semi-enterrado no travesseiro. Ele abriu um dos olhos, azul-claro como o céu da manhã.

— Bom-dia, Sassenach — ele disse, falando baixinho para não perturbar a pequena dorminhoca. Sorriu para mim, enquanto eu me sentava na cama. — Vocês duas formavam um lindo quadro, adormecidas assim, uma de frente para a outra.

Passei a mão pelos meus cabelos emaranhados e sorri também diante do traseiro levantado de Kitty, absurdamente empinado no ar.

— Isso não parece nem um pouco confortável — observei. — Mas ela ainda está dormindo, de modo que não pode ser tão ruim assim. Até que horas você ficou acordado com ela ontem à noite? Não ouvi quando veio para a cama.

Ele bocejou e passou a mão pelos cabelos, afastando-os do rosto. Havia olheiras sob seus olhos, mas ele parecia serenamente satisfeito.

— Ah, até tarde. Antes de amanhecer, pelo menos. Não queria acordar Jenny levando o bebê de volta para ela, assim coloquei-a na cama entre nós dois e ela não se mexeu nem uma vez, o resto da noite.

O bebê massageava o colchão com os joelhos e os cotovelos, escavando as cobertas da cama com um ronco gutural e baixo. Devia estar quase na hora de sua mamada matinal. Essa suposição confirmou-se no momento seguinte, quando ergueu a cabeça, os olhos ainda completamente fechados, e emitiu um gritinho saudável. Apressei-me a pegá-la no colo.

— Pronto, pronto, pronto — disse baixinho, procurando acalmá-la, acariciando as pequeninas costas retesadas. Joguei as pernas para fora da cama, em seguida estendi a mão para trás e toquei a cabeça de Jamie. Senti os cabelos revoltos e brilhantes aquecidos sob minha mão.

— Vou levá-la para Jenny — eu disse. — Ainda é cedo; durma um pouco mais.

— É o que farei, Sassenach — Jamie disse, contraindo-se diante do barulho. — Nos vemos no desjejum, certo? — Virou-se sobre as costas, cruzou as mãos no peito em sua postura preferida para dormir e já respirava pesadamente outra vez quando Katherine Mary e eu alcançamos a porta.

O bebê gritava com todas as forças, procurando um mamilo e berrando de frustração ao não encontrar nenhum imediatamente disponível. Descendo às pressas pelo corredor, encontrei Jenny, surgindo afobada de seu quarto, em resposta aos gritos de seu rebento, amarrando um roupão verde enquanto saía. Estendi-lhe o bebê que brandia os pequenos punhos numa demanda premente.

— Pronto, mo múiminn, quietinha agora, quietinha — Jenny repetia, tranqüilizando-a. Erguendo uma das sobrancelhas como um convite, pegou a criança das minhas mãos e virou-se para dentro do quarto outra vez.

Seguia-a e sentei-me na cama desfeita, enquanto ela acomodava-se numa cadeira própria para a amamentação, junto à lareira, e apressadamente desnudava um seio. A boquinha chorosa agarrou-se imediatamente ao mamilo e todos nós relaxamos aliviados quando o súbito silêncio tomou conta do aposento.

— Ah! — Jenny suspirou. Seus ombros baixaram quase imperceptivel-mente quando o fluxo de leite teve início. — Assim está melhor, não é, gulosa? — Ela abriu os olhos e sorriu para mim, os olhos límpidos e azuis como os do irmão.

— Foi muita gentileza sua tomar conta do neném a noite toda. Eu dormi como uma pedra.

Encolhi os ombros, sorrindo diante da figura da mãe com a filha, ambas relaxadas em total contentamento. A curva da cabeça do bebê imitava perfeitamente a curva alta e redonda do seio de Jenny, ruídos de borbulhas erguendo-se da pequena trouxa, conforme seu corpo deixava-se afundar contra o corpo da mãe, encaixando-se facilmente na curva do colo de Jenny.

— Foi Jamie, não fui eu — eu disse. — Ele e a sobrinha parecem ter se dado muito bem. — A visão dos dois juntos retornou à minha mente, Jamie falando com a criança num tom de voz grave e baixo, as lágrimas deslizando pelas suas faces.

Jenny balançou a cabeça, observando meu rosto.

— Sim. Achei que talvez um pudesse consolar o outro um pouquinho. Ele não anda dormindo bem ultimamente? — Sua voz continha uma indagação.

— Não — respondi brandamente. — Anda muito preocupado.

— Bem, é de se esperar — ela disse, olhando para a cama atrás de mim. Ian já saíra, tendo acordado ao alvorecer para ir cuidar dos animais no celeiro. Os cavalos da fazenda que podiam ser cedidos, e alguns que não podiam, precisavam receber ferraduras e arreios, em sua preparação para a revolta.

— A gente pode conversar com um bebê, sabe — ela disse repentinamente, invadindo meus pensamentos. — Quero dizer, conversar de verdade. Você pode dizer a eles qualquer coisa, por mais tolo que pudesse soar caso você falasse para alguém que não o compreendesse.

— Ah. Então, você o ouviu? — perguntei. Ela assentiu, os olhos na curva da bochecha de Katherine, no ponto onde as minúsculas pestanas repousavam sobre a pele clara, os olhos cerrados em êxtase.

— Sim. Você não deve se preocupar — ela acrescentou, sorrindo amavelmente para mim. — Não é que ele ache que não pode conversar com você; ele sabe que pode. Mas é diferente conversar com um bebê daquele jeito. É uma pessoa; você sabe que não está sozinho. Mas você sabe também que o bebê não conhece suas palavras e você não precisa se preocupar nem um pouco com o que ele vai pensar de você ou com o que ele pode sentir que deve fazer. Você pode extravasar seu coração para essas criaturinhas sem ter que escolher as palavras ou esconder qualquer coisa, e isso é um conforto para a alma.

Ela falava de modo simples e pragmático, como se aquilo fosse algo do conhecimento de todo mundo. Perguntei-me se ela conversaria com seu bebê daquela forma com freqüência. A boca larga e generosa, tão parecida com a do irmão, ergueu-se ligeiramente em um dos cantos.

— É como se conversa com elas antes de nascerem — ela disse suavemente. — Sabe como é?

Coloquei as mãos delicadamente sobre o ventre, uma sobre a outra, lembrando-me.

— Sim, eu sei.

Ela pressionou o polegar na bochecha da filha, interrompendo a sucção, e com um movimento ágil mudou o corpinho de posição, para colocar o seio cheio ao alcance do bebê.

— As vezes, penso que talvez seja por isso que as mulheres em geral ficam tristes depois que a criança nasce — ela disse pensativamente, como se pensasse em voz alta. — Você pensa nelas enquanto conversa e forma uma imagem delas como são dentro de você, do modo que acha que são. Depois, elas nascem e são diferentes, não são absolutamente como você imaginara que eram dentro de você. E você as ama, é claro, e passa a conhecê-las como realmente são... mas, ainda assim, fica em seu coração a idéia da criança com quem você conversava, e essa criança não existe mais. Assim, acho que o que você sente é a dor pela criança que se foi, embora tenha nos braços a criança que nasceu. — Abaixou a cabeça e beijou o cocuruto recoberto de penugem de sua filha.

— Sim — eu disse. — Antes... tudo são possibilidades. Pode ser um menino ou uma menina. Apenas uma criança, bela e saudável. Depois ela nasce e tudo que ela poderia ter sido desaparece, porque agora ela passou a existir de verdade.

Ela balançou-se delicadamente para frente e para trás, e a mãozinha crispada que agarrava as dobras de seda verde sobre seu seio começou a perder a força e relaxar.

— E nasce uma menina e o menino que ela poderia ter sido é morto — ela disse quase num sussurro. — E a linda garotinha ao seu seio matou o belo garoto que você achava que carregava. E você chora pelo que não sabia, que se foi para sempre, até conhecer a criança que tem agora e, então, finalmente é como se ela não pudesse ser diferente de quem e, e você sente apenas alegria por tê-la. Entretanto, até então, você chora com facilidade.

— E os homens... — eu disse, pensando em Jamie, sussurrando segredos aos ouvidos surdos da criança.

— Sim. Eles seguram seus rebentos no colo e sentem tudo que poderão ser e tudo que jamais serão. Mas não é tão fácil para um homem chorar pelo que não conhece.

 

Quatro dias de marcha nos fez chegar ao cume de uma colina perto de Calder. Uma região plana e deserta, de tamanho considerável, estendia-se ao sopé do morro, mas nós acampamos sob a proteção das árvores no alto. Havia dois córregos atravessando a rocha recoberta de musgo da encosta da colina e o tempo límpido e frio do começo do outono dava a sensação mais de um piquenique do que de uma marcha para a guerra. Mas era 17 de setembro e se meu conhecimento superficial da história jacobita estivesse correto, seria mesmo uma guerra, dentro de poucos dias.

— Conte-me de novo, Sassenach — Jamie dissera, pela duodécima vez, enquanto avançávamos pelas trilhas sinuosas e estradas poeirentas. Eu cavalgava Donas, enquanto Jamie caminhava ao lado, mas naquele instante, apeei do cavalo para caminhar ao lado dele e facilitar a conversa. Embora Donas e eu tivéssemos atingido uma espécie de compreensão mútua, ele era o tipo de cavalo que exige toda a sua concentração para cavalgar; era muito afeito a jogar um cavaleiro desavisado para fora da sela passando sob galhos baixos, por exemplo.

— Já lhe disse antes, eu não sei muita coisa — repeti. — Havia muito pouco escrito sobre isso nos livros de história e, na época, eu não prestei muita atenção. Tudo que posso lhe dizer é que a batalha foi travada... hã, será travada... perto da cidade de Preston. Por isso é chamada de Batalha de Prestonpans, embora os escoceses a chamassem... chamem... de Batalha de Gladsmuir, por causa de uma antiga profecia de que o rei que regressa será vitorioso em Gladsmuir. Só Deus sabe onde fica o verdadeiro Gladsmuir, se é que existe.

— Sim. E?

Franzi o cenho, tentando me lembrar do menor resquício de informação. Eu podia conjurar a imagem mental de um exemplar marrom, pequeno e enxovalhado, do livro História da Inglaterra para crianças, lido à luz bru-xuleante de um lampião de querosene num casebre de taipa na antiga Pérsia. Folheando mentalmente o livro, só conseguia me lembrar da seção de duas páginas que era tudo que o autor achara adequado consagrar ao segundo levante jacobita, conhecido pelos historiadores como a Rebelião de 45. E nessa seção de duas páginas, havia um único parágrafo que tratava da batalha que estávamos prestes a travar.

— Os escoceses vencem — eu disse prestativamente.

— Bem, esse é o ponto mais importante — ele concordou, um pouco sarcástico -, mas seria bom saber mais um pouco.

— Se queria uma profecia, devia ter arranjado um adivinho — retruquei, arrependendo-me em seguida. — Desculpe-me. É apenas que eu não sei quase nada e isso é muito frustrante.

— Sim, é. — Ele tomou minha mão, apertando-a enquanto sorria para mim. — Não se preocupe, Sassenach. Não pode dizer mais do que sabe, mas conte-me tudo que souber, mais uma vez.

— Está bem. — Correspondi ao aperto de sua mão e continuamos caminhando, de mãos dadas. — Foi uma vitória notável — comecei, lendo minha página mental -, porque os jacobitas estavam em número muito menor. Eles surpreenderam o exército do general Cope no raiar do dia. Lançaram-se do sol nascente, lembro-me disso, e foi uma derrota fragorosa para o inimigo. Houve centenas de baixas do lado inglês e apenas algumas do lado jacobita. Trinta homens, para ser exata. Apenas trinta homens mortos no confronto.

Jamie olhou por cima do ombro, para as fileiras desordenadas dos homens de Lallybroch que vinham atrás de nós, espalhando-se ao longo da estrada conforme caminhavam, conversando e cantando em pequenos grupos. Trinta homens foram o que trouxemos de Lallybroch. Não parecia um número muito pequeno, olhando-se para eles. Mas eu vira os campos de batalha de Alsácia-Lorena e as grandes pastagens convertidas em cemitérios lamacentos pelo sepultamento de milhares de vítimas.

— Tudo considerado — eu disse, sentindo-me ligeiramente pesarosa -, receio que na verdade tenha sido... pouco importante, historicamente falando.

Jamie deixou escapar o ar dos pulmões pelos lábios contraídos e olhou-me desoladamente.

— Pouco importante. Sim, bem.

— Sinto muito — eu disse.

— Não é culpa sua, Sassenach.

Mas, de certa forma, eu não conseguia me isentar de culpa.

Os homens sentaram-se em torno da fogueira após o jantar, desfrutando preguiçosamente a sensação de estômago cheio, trocando histórias e e coçando-se. A coceira era endêmica; acomodações apertadas e falta de higiene tornavam os piolhos do corpo tão comuns a ponto de não suscitarem mais nenhuma observação quando um dos homens arrancava um espécime representativo de uma prega de seu xale e o atirava no fogo. O parasita incendiava-se por um instante, mais uma entre as fagulhas da fogueira, e desaparecia.

O jovem que chamavam de Kincaid — seu nome era Alexander, mas havia tantos Alexanders que a maioria acabava sendo chamada por apelidos ou sobrenomes — parecia particularmente aflito com o flagelo naquela noite. Ele escavava furiosamente debaixo de um dos braços, em seus cabelos castanhos encaracolados e depois — com um rápido olhar para ver se alguém estava observando-o — na região das virilhas.

— Está infestado, não é, rapaz? — Ross, o ferreiro, observou com simpatia.

— Sim — ele respondeu. — Os malditos parasitas estão me devorando vivo.

— É um inferno tirá-los dos pêlos do seu pau — observou Wallace Fraser, coçando-se também, em solidariedade. — Sinto arrepios só de olhar para você, garoto.

— Sabe qual a melhor maneira de se livrar dos malditos insetos? -Sorley McClure perguntou prestativamente e, diante da negativa de Kincaid sacudindo a cabeça, inclinou-se para frente e cuidadosamente tirou uma vareta flamejante do fogo.

— Levante seu kilt um instante, rapaz, e eu os afugentarei com fumaça — ofereceu-se, para as vaias e risadas de zombaria dos homens.

— Fazendeiro desgraçado — Murtagh resmungou. — E o que é que você sabe sobre isso?

— Conhece um modo melhor? — Wallace ergueu as grossas sobrancelhas castanhas com ceticismo, enrugando a pele bronzeada de sua fronte calva.

— Claro. — Retirou sua adaga com um floreio. — O garoto agora é um soldado; deixe que ele faça isso como um soldado faz.

O rosto franco de Kincaid mostrava-se ingênuo e ansioso.

— E como é?

— Bem, muito simples. Pegue sua adaga, levante sua saia e raspe metade dos pêlos de sua forquilha. — Ergueu a adaga como um aviso. — Mas apenas a metade, veja bem.

— Metade? Sim, bem... — Kincaid parecia em dúvida, mas prestava muita atenção. Eu podia ver o riso formando-se nos rostos dos homens em torno da fogueira, mas ninguém ainda estava rindo.

— Então... — Murtagh indicou Sorley e sua vareta incandescente. — Então, rapaz, você ateia fogo na outra metade e quando os piolhos saírem correndo, você os espeta com sua adaga.

O rosto de Kincaid ficou tão afogueado que podia ser notado mesmo à luz da fogueira, enquanto o círculo de homens irrompia em estrondosas gargalhadas. Seguiram-se vários empurrões violentos quando alguns dos homens fingiam tentar a cura pelo fogo uns nos outros, brandindo pedaços de brasa. Quando parecia que a brincadeira grosseira estava saindo de controle, com probabilidade de levar a golpes mais sérios, Jamie retornou do trabalho de amarrar os animais. Entrou no círculo e atirou para Kincaid uma garrafa cinza que carregava sob o braço. Outra foi atirada para Murtagh e os empurrões cessaram.

— Vocês são todos uns tolos — declarou. — A segunda melhor maneira de se livrar de piolhos é despejar uísque sobre eles e deixá-los bêbados. Quando estiverem roncando, inconscientes, você se levanta e eles caem todos no chão.

— A segunda melhor, hein? — disse Ross. — E qual é a melhor maneira, chefe, se posso lhe perguntar?

Jamie sorriu indulgentemente ao redor do círculo, como um pai divertindo-se com as palhaçadas dos filhos.

— Ora, deixe que sua mulher cate-os um a um. — Dobrou um cotovelo e fez uma mesura para mim, uma das sobrancelhas arqueadas. — Se me fizer a gentileza, milady.

Embora colocada como uma piada, a remoção individual era na verdade o único método eficaz de alguém se livrar dos parasitas. Eu penteava com pente-fino meus próprios cabelos — todos eles — pela manhã e à noite, lavava-os com milefólio sempre que parávamos junto a águas suficientemente profundas para o banho e conseguira até então evitar qualquer infestação grave. Ciente de que eu só permaneceria livre dos piolhos enquanto Jamie também permanecesse, eu administrava-lhe o mesmo tratamento, sempre que conseguia mantê-lo sentado e quieto por tempo suficiente.

— Os babuínos fazem isso o tempo todo — observei, desembaraçando delicadamente um galhinho de rabo-de-raposa de sua espessa cabeleira ruiva. — Mas acredito que eles comam os frutos de seu trabalho.

— Não deixe que eu a impeça, Sassenach, se tiver vontade — ele retrucou. Arqueou os ombros ligeiramente de prazer quando o pente deslizou pelos fios grossos e lustrosos. A luz do fogo encheu minhas mãos com uma cascata de faíscas e fios dourados. — Hum. Nunca imaginei que fosse tão bom ter alguém penteando seus cabelos por você.

— Espere até eu chegar ao resto — eu disse, beliscando-o com intimidade e fazendo-o contorcer-se com uma risadinha. — Embora esteja tentada a experimentar a sugestão de Murtagh em vez do pente.

— Toque nos pêlos do meu pau com uma tocha e receberá o mesmo tratamento — ele ameaçou. — O que foi mesmo que Louise de La Tour disse que as mulheres depiladas são?

— Eróticas. — Inclinei-me para frente e mordisquei a parte superior de uma de suas orelhas.

— Mmmuhm.

— Bem, os gostos diferem — eu disse. — Chacun a son gout e coisas desse tipo.

— Um sentimento muito francês, devo dizer.

— Não é mesmo?

Um ronco sonoro, revolvido, interrompeu meus esforços. Larguei o pente e espreitei acintosamente as sombras entre as árvores.

— Ou há ursos neste bosque — eu disse — ou... por que você não comeu?

— Estava ocupado com os animais — ele respondeu. — Um dos pôneis está com o casco fendido e tive que enfaixá-lo com um emplastro. Não que eu sinta muita fome, com toda essa conversa de comer piolhos.

— Que tipo de emplastro você usa no casco de um cavalo? — perguntei, ignorando a observação.

— Várias coisas; bosta fresca serve, num aperto. Desta vez, usei folhas de ervilhaca trituradas e misturadas com mel.

Os alforjes haviam sido despejados perto da nossa fogueira particular, junto à borda da pequena clareira onde os homens haviam armado a minha tenda. Embora eu estivesse disposta a dormir sob as estrelas como eles faziam, admiti uma certa gratidão pela pequena privacidade concedida a mim pela lona da barraca. E, como Murtagh ressaltara com sua franqueza de costume, quando eu lhe agradeci por sua ajuda em erguer o abrigo, o arranjo não era unicamente para meu benefício.

— E se ele se esgueirar entre suas pernas à noite, ninguém ficará com inveja dele — o pequeno escocês dissera, sacudindo a cabeça na direção de Jamie, absorto numa conversa com vários outros homens. — Não há nenhuma necessidade de fazer os rapazes pensarem muito no que não podem ter, não é?

— Sem dúvida — eu disse, com um tom de irritação na voz. — Muito atencioso de sua parte.

Um dos seus raros sorrisos curvaram o canto da boca de lábios finos.:

— Ah, sem dúvida — ele disse.

Uma rápida busca nos alforjes produziu um naco de queijo e várias maçãs. Dei-os a Jamie que os olhou com desconfiança.

— Não tem pão? — perguntou.

— Talvez haja um pouco na outra sacola. Mas coma isso primeiro; vão lhe fazer bem. — Ele compartilhava a desconfiança inata de um escocês das Highlands em relação a frutas frescas e legumes, embora seu enorme apetite o dispusesse a comer praticamente de tudo em grandes quantidades.

— Mm — resmungou, dando uma mordida numa maçã. — Já que você o diz, Sassenach.

— Digo, sim. Veja. — Afastei meus lábios, exibindo os dentes. — Quantas mulheres da minha idade você conhece que ainda têm todos os seus dentes?

Um amplo sorriso revelou seus próprios e excelentes dentes.

— Bem, admito que os seus estão muito bem conservados, Sassenach, para uma senhora tão idosa.

— Bem-nutrida, isso é o que sou — retorqui. — Metade das pessoas em suas terras sofre ligeiramente de escorbuto e pelo que vi na estrada, é pior ainda em outros lugares. É a vitamina C que evita o escorbuto e as maçãs são cheias dela.

Ele tirou a maçã da boca e franziu o cenho com ar de desconfiança.

— É mesmo?

— Sim, é — eu disse com firmeza. — Assim como muitos outros tipos de plantas: laranjas e limões são os melhores, mas obviamente não se pode consegui-los aqui... mas cebolas, repolho, maçãs... coma algo assim todos os dias e nunca terá escorbuto. Até mesmo ervas verdes e capim possuem vitamina C.

— Mmuhm. E é por isso que os cervos não perdem os dentes quando ficam velhos?

— Eu diria que sim.

Ele revirou a maçã de um lado para o outro, examinando-a criticamente, depois encolheu os ombros.

— Sim, bem — disse, com mais uma mordida.

Eu acabara de me virar para ir buscar o pão quando um leve estalido chamou minha atenção. Avistei pelo canto do olho um vago movimento na escuridão e a luz da fogueira reluziu em alguma coisa perto da cabeça de Jamie. Virei-me para ele, gritando, bem a tempo de vê-lo saltar para trás do toco de árvore onde estava sentado e desaparecer no vazio da noite.

Não havia lua e a única pista do que estava acontecendo era um tremendo ruído de luta nas folhas secas dos carvalhos e o barulho de homens atracados num conflito brutal, mas silencioso, com grunhidos, arfadas e uma imprecação abafada de vez em quando. Ouviu-se um grito breve e agudo, seguido de absoluto silêncio. Durou, suponho, não mais do que alguns segundos, embora me parecesse um tempo interminável.

Eu ainda estava de pé junto à fogueira, paralisada em minha posição original, quando Jamie emergiu da escuridão sombria da floresta, um prisioneiro à sua frente, com um dos braços torcidos para trás. Afrouxando a mão, ele girou a figura escura nos calcanhares e empurrou-a bruscamente, atirando-a de costas contra uma árvore. O homem bateu com força no tronco, soltando uma chuva de folhas e bolotas do carvalho. Em seguida, deslizou lentamente e ficou deitado, aturdido, na camada de folhas no solo.

Atraídos pelo barulho, Murtagh, Ross e dois outros homens dos Fraser materializaram-se junto ao fogo. Içando o intruso sobre os pés, puxaram-no rispidamente para o círculo de luz da fogueira. Murtagh agarrou o prisioneiro pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás com um safanão, exibindo seu rosto.

Era um rosto pequeno, de ossos delicados, com olhos grandes de longas pestanas que piscavam aturdidamente para as figuras ao seu redor.

— Mas é só um menino! — exclamei. — Não pode ter mais de quinze anos!

— Dezesseis! — disse o garoto. Sacudiu a cabeça, recobrando os sentidos. — Não que isso faça qualquer diferença — acrescentou arrogantemente, com um sotaque inglês. Sotaque de Hampshire, pensei. Ele estava muito longe de casa.

— Não faz mesmo — Jamie concordou de modo assustador. — Dezesseis ou sessenta, ele acabou de fazer uma tentativa bem real de cortar minha garganta. — Percebi, então, o lenço manchado de vermelho, pressionado contra o lado de seu pescoço.

— Não vou lhes contar nada — disse o garoto. Seus olhos eram duas poças escuras no rosto lívido, embora a luz da fogueira reluzisse nos cabelos louros. Ele agarrava um dos braços com força à sua frente; achei que provavelmente estava machucado. O garoto estava obviamente fazendo um grande esforço para se manter em pé e empertigado no meio dos homens, os lábios comprimidos contra qualquer expressão teimosa de medo ou dor.

— Algumas coisas você não precisa me contar — Jamie disse, examinando o garoto de alto a baixo. — Primeiro, você é inglês, então, provavelmente, veio com tropas próximas. Segundo, está sozinho.

O garoto pareceu surpreso.

— Como sabe disso?

Jamie ergueu as sobrancelhas.

— Imagino que não teria me atacado, a menos que achasse que esta senhora e eu estávamos sozinhos. Se estivesse com outras pessoas que também pensassem assim, provavelmente teriam vindo socorrê-lo agora mesmo. Aliás, seu braço está quebrado? Acho que senti alguma coisa estalar. Se estivesse com outras pessoas que soubessem que não estávamos sozinhos. elas o teriam impedido de tentar algo tão tolo. — Apesar de seu diagnóstico, notei três dos homens desaparecerem discretamente na floresta, atendendo a um sinal de Jamie, provavelmente para verificar se havia outros invasores.

A expressão do rosto do rapaz endureceu-se ao ouvir sua ação ser classificada de tola. Jamie tocou o lenço de leve sobre o ferimento no pescoço e examinou-o com ar crítico.

— Se estiver tentando matar alguém por trás, garoto, escolha um homem que não esteja sentado numa pilha de folhas secas — advertiu. — E se estiver usando uma faca em alguém maior do que você, escolha o ponto certo; cortar a garganta de uma pessoa é arriscado, a menos que sua vítima fique sentada, imóvel, à sua frente.

— Obrigado pelo valioso conselho — disse o garoto com escárnio. Ele estava se saindo bem em tentar manter sua bravata, embora seus olhos saltassem nervosamente de um rosto ameaçador e barbudo para outro. Nenhum homem das Highlands ganharia um concurso de beleza em plena luz do dia; à noite, não era o tipo de pessoa que você gostaria de encontrar num lugar escuro.

— Não há de quê. É uma lástima que você não vá ter a oportunidade de usá-lo no futuro. Aliás, gostaria de saber, por que me atacou?

Os homens, atraídos pelo barulho, começaram a surgir dos acampamentos próximos, deslizando como espectros do meio das árvores. O olhar do garoto saltou de um lado para o outro, em torno do crescente círculo de homens, recaindo finalmente sobre mim. Hesitou por um instante, mas respondeu:

— Eu esperava libertar a senhora de sua custódia.

Uma leve movimentação de riso reprimido percorreu o círculo, sendo rapidamente extinguido por um breve gesto de Jamie.

— Compreendo — ele disse, de forma não comprometedora. — Você nos ouviu conversar e concluiu que se tratava de uma senhora inglesa de boa família. Ao passo que eu...

— Ao passo que o senhor é um fora-da-lei sem escrúpulos, com uma reputação de roubo e violência! Seu rosto e descrição estão em enormes cartazes espalhados por toda parte em Hampshire e Sussex! Eu o reconheci imediatamente; é um rebelde e um devasso sem princípios! — O rapaz irrompeu furiosamente, o rosto manchado de vermelho mesmo sob a luz da fogueira.

Mordi o lábio e abaixei os olhos para os meus sapatos, para não encarar Jamie.

— Sim, bem. É isso mesmo — Jamie concordou cordialmente. — Sendo assim, talvez possa me dar alguma razão para eu não matá-lo imediatamente? — Sacando a adaga suavemente de sua bainha, ele girou-a bem devagar, fazendo a lâmina reluzir.

O sangue se esvaíra do rosto do rapaz, deixando-o como um fantasma nas sombras, mas ele empertigou-se diante das palavras de Jamie, empurrando seus captores de ambos os lados.

— Eu já esperava por isso. Estou perfeitamente preparado para morrer — ele disse, endireitando os ombros.

Jamie balançou a cabeça pensativamente, em seguida, inclinando-se, colocou a lâmina da adaga no fogo. Uma nuvem de fumaça elevou-se em torno do metal que se escurecia, com um cheiro forte de forja. Nós todos ficamos observando em silenciosa fascinação conforme a chama, de um azul espectral onde tocava a lâmina, parecia impregnar de vida o ferro mortal com uma descarga de calor incandescente.

Enrolando a mão no lenço manchado de sangue, Jamie cautelosamente retirou a adaga do fogo. Avançou devagar em direção ao garoto, deixando a lâmina cair, como se tivesse vontade própria, até tocar o colete do rapaz. Um cheiro forte de tecido queimado desprendeu-se do lenço enrolado em torno do cabo da arma, que se tornou mais forte conforme uma fina linha queimada traçava seu curso, subindo pela frente do colete no caminho da adaga. A ponta da lâmina, escurecendo à medida que esfriava, parou bem abaixo do queixo duramente erguido. Eu podia ver finas linhas de suor brilhando nas cavidades esticadas do pescoço delgado.

— Sim, bem, acho que não estou preparado para matá-lo... ainda. — A voz de Jamie era mansa, repleta de uma ameaça silenciosa ainda mais assustadora por seu controle.

— Com quem você marchou? — A pergunta estalou como um chicote, fazendo os ouvintes recuarem de medo. A ponta da lâmina pairou um pouco mais perto, fumegando na brisa da noite.

— Eu... eu não vou lhe contar! — Os lábios do rapaz cerraram-se com firmeza sobre a resposta gaguejada e um tremor percorreu a garganta delicada.

— Nem a que distância estão seus camaradas? Nem quantos são? Nem a direção em que estão marchando? — As perguntas foram colocadas suavemente outra vez, com um toque meticuloso da lâmina ao longo da borda do maxilar do garoto. O branco de seus olhos aumentou, como os de um cavalo em pânico, mas ele sacudiu a cabeça violentamente, fazendo os cabelos dourados esvoaçarem. Ross e Kincaid aumentaram a pressão nos braços do rapaz que se debatia.

A lâmina escurecida pressionou com força e repentinamente em toda a sua extensão, plana, sob o ângulo de seu maxilar. Ouviu-se um grito agudo e arfante, e o cheiro de pele queimada.

— Jamie! — gritei, sem poder me conter. Ele não se voltou para me olhar, mas manteve os olhos fixos no prisioneiro, o qual, libertado das mãos em seus braços, deixou-se cair de joelhos sobre as folhas secas varridas pelo vento, a mão agarrando o pescoço.

— Isso não lhe diz respeito, madame — ele disse entre dentes Estendendo o braço, agarrou o menino pela frente da camisa e colocou-o de pé com um safanão. Cintilando, a lâmina da adaga ergueu-se entre eles e pousou logo abaixo do olho esquerdo do garoto. Jamie inclinou a cabeça numa pergunta silenciosa, mas recebeu em resposta uma negativa quase imperceptível, mas definitiva.

A voz do garoto não passava de um sussurro trêmulo; teve que clarear a garganta para se fazer ouvir.

— N-não — disse devagar. — Não. Não há nada que você possa me fazer que me obrigue a contar-lhe qualquer coisa.

Jamie continuou segurando-o por mais um instante, fitando-o nos olhos, depois soltou o tecido enrugado em sua mão e deu um passo para trás.

— Não — disse lentamente —, acho que não há. Não a você. Mas e quanto à senhora?

No começo, não percebi que ele se referia a mim, até que ele me agarrou pelo pulso e me puxou com força para junto dele, fazendo-me tropeçar ligeiramente no solo irregular. Caí em sua direção e ele torceu meu braço bruscamente atrás das minhas costas.

— Você pode não ligar para o seu próprio bem-estar, mas talvez tenha alguma consideração pela honra da senhora, já que estava se dando a tanto trabalho para resgatá-la. — Virando-me para ele, enrascou os dedos nos meus cabelos, forçou minha cabeça para trás e beijou-me com uma brutalidade deliberada que me fez contorcer o próprio corpo de modo involuntário em protesto.

Soltando meus cabelos, puxou-me com força contra seu peito, de frente para o garoto do outro lado da fogueira. Os olhos do menino estavam arregalados, apavorados, com reflexos das chamas nas grandes pupilas escuras.

— Solte-a! — exigiu com voz rouca. — O que pretende fazer com ela?

As mãos de Jamie alcançaram a gola do meu vestido. Com um violento puxão, rasgou o tecido do vestido e da roupa de baixo, desnudando quase todo o meu peito. Reagindo instintivamente, chutei-o na canela. O garoto emitiu um som inarticulado e deu um salto para frente, mas foi impedido mais uma vez por Ross e Kincaid.

— Já que perguntou — a voz de Jamie soou em tom agradável atrás de mim -, estou disposto a violentar esta senhora diante dos seus olhos. Depois, eu a entregarei aos meus homens, para fazerem o que quiserem. — Talvez você também queira ter a sua vez antes que eu o mate? Um homem não deve morrer virgem, não acha?

Eu lutava seriamente agora, o braço mantido preso às costas com mão de ferro, meus protestos abafados pela palma grande e quente de Jamie sobre minha boca. Enfiei os dentes com força na base de sua mão, arrancando sangue. Ele retirou-a bruscamente com uma exclamação sufocada, mas retornou-a quase de imediato, forçando um pedaço de pano como uma bucha entre meus dentes. Eu emitia sons estrangulados através de minha mordaça enquanto as mãos de Jamie lançaram-se sobre meus ombros, afastando ainda mais os pedaços rasgados do meu vestido. Com um som rascante de linho fino e rústico rasgados, ele me desnudou até a cintura, prendendo meus braços nos lados do corpo. Vi Ross olhar para mim e logo desviar os olhos, fixando-o de modo intenso no prisioneiro, um lento rubor tomando conta de seu rosto. Kincaid, ele mesmo com apenas dezenove anos, ficou olhando fixamente em estado de choque, a boca aberta como uma planta carnívora.

— Pare! — A voz do rapaz estava trêmula, mas agora indignada, em vez de aterrorizada. — Você... você, covarde miserável! Como ousa desonrar uma senhora, seu canalha escocês! — Empertigou-se por um instante, o peito arquejante de emoção, depois tomou uma decisão. Arremeteu a cabeça para trás e empinou o queixo.

— Muito bem. Não tenho outra escolha honrada. Solte a senhora e eu lhe direi o que quer saber.

Uma das mãos de Jamie largou meu ombro no mesmo instante. Não vi seu gesto, mas Ross soltou o braço quebrado do rapaz e saiu às pressas para buscar meu manto, que caíra no chão despercebidamente durante a agitação da captura do garoto. Jamie puxou minhas duas mãos para trás e, arrancando meu cinto, usou-o para atá-las com firmeza às minhas costas. Pegando o manto das mãos de Ross, jogou-o sobre meus ombros e fechou-o com cuidado. Dando um passo para trás, inclinou-se ironicamente para mim numa mesura, depois se virou para encarar o prisioneiro.

— Tem minha palavra de que a senhora estará a salvo das minhas investidas — disse. O tom de sua voz podia ser atribuído à tensão da raiva e do desejo frustrado; eu o reconheci como a angustiante repressão de uma incontrolável vontade de rir e alegremente o teria matado ali mesmo.

O rosto endurecido como uma pedra, o rapaz forneceu as informações exigidas, falando em monossílabos.

Seu nome era William Grey, segundo filho do visconde Melton. Acompanhava uma tropa de duzentos homens, viajando para Dunbar, com a intenção de se juntar ali ao exército do general Cope. Seus companheiros estavam no momento acampados a uns cinco quilômetros dali, para oeste. Ele, William, andando pela floresta, vira a claridade de nossa fogueira e fora investigar. Não, não havia ninguém com ele. Sim, as tropas carregavam armamento pesado, dezesseis canhões montados em carroças e dois morteiros de quarenta centímetros. A maior parte das tropas estava armada de mosquetes e havia uma companhia com trinta cavalos.

O garoto começava a esmorecer sob a tensão combinada do interrogatório e de seu braço quebrado, mas recusou uma oferta para se sentar. Ao invés disso, apoiou-se contra uma árvore, segurando o cotovelo na mão esquerda.

As perguntas continuaram por quase uma hora, repassando as informações inúmeras vezes, identificando discrepâncias, ampliando os detalhes, buscando as omissões mantidas em segredo, as questões das quais o interrogado se esquivava. Finalmente satisfeito, Jamie deu um suspiro profundo e afastou-se do garoto, que se deixou cair nas sombras oscilantes do carvalho. Ele estendeu a mão sem falar; Murtagh, como sempre adivinhando sua intenção, entregou-lhe uma pistola.

Ele voltou-se outra vez para o prisioneiro, ocupando-se em verificar a preparação do explosivo e o carregamento da arma. Os trinta centímetros da pistola de metal, a coronha em forma de coração, reluziram com um brilho escuro, a luz da fogueira desprendendo faíscas prateadas do gatilho e do percussor.

— Coração ou cabeça? — Jamie perguntou despreocupadamente, erguendo por fim o rosto.

— Hein? — O rapaz permaneceu de boca aberta, com ar estúpido de absoluta incompreensão.

— Eu vou matá-lo com um tiro —Jamie explicou pacientemente. — Em geral, espiões são enforcados, mas em consideração ao seu cavalheirismo, estou disposto a lhe dar uma morte rápida e limpa. Prefere receber o tiro na cabeça ou no coração?

O rapaz empertigou-se rápido, endireitando os ombros.

— Ah, oh, sim, claro. — Umedeceu os lábios com a língua e engoliu em seco. — Acho que... no coração. Obrigado — acrescentou, numa reflexão tardia. Ergueu o queixo, comprimindo os lábios, que ainda detinham um resquício de seus contornos suaves e infantis.

Balançando a cabeça em concordância, Jamie engatilhou a arma com um clique que ecoou pelo silêncio sob os carvalhos.

— Espere! — disse o prisioneiro. Jamie olhou-o com um ar inquiridor, a pistola apontada para o peito delgado.

— Que garantia eu tenho de que a senhora não será molestada depois que eu... depois que eu tiver partido? — o garoto exigiu, olhando agressivamente à volta do círculo de homens. Sua única mão em perfeito estado estava fechada com força, mas tremia ainda assim. Ross emitiu um som que habilmente transformou num espirro.

Jamie abaixou a pistola e, com um controle inabalável, manteve o rosto impassível, numa expressão de solene seriedade.

— Bem — disse, com o sotaque escocês mais forte sob a tensão -, você tem a minha própria palavra, é claro, embora eu possa compreender perfeitamente que você tenha alguma hesitação em aceitar a palavra de um... — seu lábio se contorceu involuntariamente — covarde escocês. Talvez aceite a garantia da própria senhora? — Ergueu uma das sobrancelhas em minha direção e Kincaid adiantou-se prontamente para me libertar de minha mordaça.

— Jamie! — exclamei furiosa, a boca finalmente livre. — Isso é inadmissível! Como pôde fazer tal coisa? Seu... seu...

— Covarde — ele adiantou-se prestativamente. — Ou canalha, se preferir. O que acha, Murtagh — disse, voltando-se para seu tenente —, eu sou um covarde ou um canalha?

Os lábios finos de Murtagh contorceram-se numa expressão malvada.

— Eu diria que você é carne de cachorro se libertar sua garota sem uma adaga na mão.

Jamie voltou-se para seu prisioneiro com ar de arrependimento.

— Devo me desculpar com minha esposa por forçá-la a tomar parte nesta encenação. Asseguro-lhe que sua participação foi inteiramente a contragosto. — Examinou pesarosamente a mão mordida à luz da fogueira.

— Sua esposa! — O rapaz olhava desvairadamente de mim para Jamie.

— Também lhe asseguro que, embora a senhora em questão às vezes honre minha cama com sua presença, ela nunca o fez sob coação. E não o fará agora — acrescentou enfaticamente -, mas não a desamarre ainda, Kincaid.

— James Fraser — sibilei entre os dentes cerrados. — Se tocar neste garoto, com certeza nunca mais partilhará a minha cama!

Jamie ergueu uma das sobrancelhas. Seus caninos brilharam momentaneamente à luz do fogo.

— Bem, essa é uma ameaça séria, para um devasso sem princípios como eu, mas acho que não posso considerar meus próprios interesses nesta situação. Guerra é guerra, afinal de contas. — A pistola, que ele deixara arriar, começou a elevar-se outra vez.

— Jamie! — gritei.

Ele abaixou a pistola de novo e virou-se para mim com uma expressão de exagerada paciência.

-Sim?

Respirei fundo, para impedir que minha voz tremesse de raiva. Eu só podia imaginar o que ele estava tramando e esperava estar fazendo o que era certo naquela encenação. Certo ou não, quando isso terminasse...

Afastei a visão extremamente agradável de Jamie contorcendo-se no chão com meu pé em seu pomo-de-adão, a fim de me concentrar no meu presente papel.

— Você não tem absolutamente nenhuma prova de que ele seja um espião — continuei. — Ele disse que se deparou com você por acaso. Quem não ficaria curioso se visse uma fogueira no bosque?

Jamie assentiu, seguindo meus argumentos.

— Sim, e quanto à tentativa de assassinato? Espião ou não, ele tentou me matar, ele mesmo admitiu. — Passou os dedos delicadamente sobre o arranhão vermelho no lado de sua garganta.

— Bem, é claro que ele o fez — eu disse, acaloradamente. — Ele diz que sabia que você era um fora-da-lei. Sua maldita cabeça está a prêmio, pelo amor de Deus!

Jamie esfregou o queixo pensativo, virando-se finalmente para o seu prisioneiro.

— Bem, é um argumento — ele disse. — William Grey, sua advogada defendeu-o muito bem. Não é política nem de Sua Alteza, o príncipe Carlos, nem minha, executar pessoas de modo ilegal, seja inimigo ou não. — Convocou Kincaid com um gesto da mão.

— Kincaid, você e Ross levem esse homem na direção onde ele diz que está seu acampamento. Se as informações que ele nos deu forem verdadeiras, amarrem-no em uma árvore a um quilômetro e meio do acampamento na linha de marcha. Seus amigos o encontrarão lá amanhã. Se o que ele nos contou não for verdade... — parou, os olhos frios pousados no prisioneiro — cortem sua garganta.

Encarou o rapaz direto nos olhos e disse, com um ar zombeteiro:

— Eu lhe dou sua vida. Espero que a use bem.

Deslocando-se para trás de mim, cortou a tira de pano que amarrava meus pulsos. Quando me virei furiosamente, ele indicou o garoto, que sentara-se de repente no chão, sob o carvalho.

— Talvez queira fazer a gentileza de cuidar do braço do rapaz antes de sua partida?

A carranca de pretensa ferocidade desaparecera de seu rosto, deixando-o impenetrável como uma muralha. As pálpebras estavam abaixadas, evitando o meu olhar.

Sem uma palavra, dirigi-me ao garoto e ajoelhei-me a seu lado. Ele parecia aturdido e não protestou quando o examinei, nem com as subseqüentes manipulações, embora deva ter sido doloroso.

O corpete rasgado do meu vestido insistia em deslizar dos meus ombros e eu xingava baixinho enquanto irritada ajeitava um lado e outro pela milésima vez. Os ossos do antebraço do rapaz eram leves e angulosos sob a pele, pouco mais largos do que os meus. Coloquei uma tala no braço e pendurei-o numa tipóia usando meu próprio lenço.

— É uma fratura simples — eu lhe disse, tentando manter a voz impessoal. — Procure manter o braço imóvel pelo menos por duas semanas. — Ele assentiu, sem olhar em minha direção.

Jamie ficara sentado em silêncio num toco de madeira, observando meus serviços. Com a respiração entrecortada, caminhei até ele e o esbofeteei com toda a força. A bofetada deixou uma mancha branca em uma das faces e fez seus olhos lacrimejarem, mas ele não se mexeu nem mudou de expressão.

Kincaid pôs o garoto de pé e empurrou-o para a borda da clareira com uma das mãos nas costas. Ao atingir o limite das sombras, ele parou e virou-se. Evitando olhar para mim, falou direto para Jamie.

— Eu lhe devo minha vida — disse formalmente. — Eu preferia que não fosse assim, mas já que me forçou a aceitar sua dádiva, devo considerá-la uma dívida de honra. Espero poder pagar essa dívida no futuro e assim que estiver paga... — A voz do garoto tremeu ligeiramente com o ódio contido, perdendo toda a pretendida formalidade na absoluta sinceridade de seus sentimentos — ...Eu o matarei!

Jamie ergueu-se do toco de árvore em toda a sua altura. Seu rosto estava calmo, sem qualquer vestígio de divertimento. Inclinou a cabeça com seriedade para seu prisioneiro de partida.

— Neste caso, senhor, espero que não nos encontremos nunca mais. O rapaz empertigou os ombros e devolveu o cumprimento com rigor.

— Um Grey jamais esquece um compromisso, senhor — ele disse, desaparecendo na escuridão com Kincaid junto a seu cotovelo.

Houve um discreto intervalo de espera silenciosa, enquanto os ruídos de pés nas folhagens afastavam-se na escuridão. Em seguida, as risadas começaram, primeiro com um barulho sibilante e baixo através das narinas de um dos homens, seguido de uma risadinha de outro. Sem nunca se tornarem clamorosas, ainda assim foram ganhando volume, elevando-se em espiral pela roda de homens.

Jamie deu um passo para dentro do círculo, o rosto voltado para seus homens. As risadas cessaram bruscamente. Abaixando os olhos para mim, disse laconicamente:

— Vá para a barraca.

Alertado pela expressão do meu rosto, agarrou meu pulso antes que eu pudesse erguer a mão.

— Se vai me esbofetear de novo, ao menos me deixe dar a outra face — disse secamente. — Além do mais, acho que posso poupar-lhe o trabalho. Mas, ainda assim, aconselho-a a ir para a tenda.

Largando minha mão, aproximou-se da fogueira a passos largos e decididos e, com um movimento brusco da cabeça, reuniu os homens espalhados pela clareira em um aglomerado relutante, cauteloso, diante dele. Os olhos dos homens estavam arregalados, as órbitas escuras por causa das sombras.

Não compreendi tudo que ele disse, já que falava numa estranha mistura de gaélico e inglês, mas captei suficientemente o sentido para perceber que ele estava investigando, num tom uniforme e manso, que parecia transformar seus ouvintes em pedra, a identidade das sentinelas a serviço naquela noite.

Viram-se olhares furtivos de um lado para o outro, um movimento desconfortável entre os homens, que pareciam aglomerar-se ainda mais estreitamente diante do perigo. No entanto, neste momento as fileiras cerradas se partiram e dois homens deram um passo à frente, olharam para cima — uma vez — depois rápido para baixo. Assim permaneceram, lado a lado, os olhos fixos no chão, fora da proteção de seus companheiros.

Eram os irmãos McClure, George e Sorley. Quase da mesma idade, de trinta e poucos anos, permaneciam acabrunhados, lado a lado, os dedos das mãos embrutecidas pelo trabalho contorcendo-se como se ansiassem por se unir, se entrelaçar, numa pequena proteção antes da tempestade anunciada.

Houve uma pausa breve e silenciosa quando Jamie olhou as duas sentinelas negligentes de alto a baixo. Seguiram-se cinco longos minutos de descompostura, tudo conduzido na mesma voz regular e mansa. Não se ouviu nenhum som do grupo de homens. Os McClure, ambos homens grandes e musculosos, pareciam definhar e encolher sob o peso da censura. Limpei as mãos suadas na saia, contente por não conseguir compreender tudo e começando a me arrepender por não ter seguido a ordem de Jamie para retornar à barraca.

Arrependi-me ainda mais no momento seguinte, quando Jamie voltou-se repentinamente para Murtagh, que, à espera da ordem, estava pronto com uma correia de couro, de cerca de sessenta centímetros de comprimento, com um nó em uma das pontas para maior firmeza na mão de quem a segurava.

— Tirem a camisa e ponham-se de pé diante de mim, os dois. — Os McClure movimentaram-se imediatamente, os dedos rudes tateando as amarras da camisa, como se ansiosos para obedecer, aliviados de que as preliminares tivessem acabado e chegado a hora da punição.

Achei que fosse enjoar, embora compreendesse que a pena fora bem leve, pelos padrões aplicados em casos semelhantes. Não se ouviu nenhum som na clareira, senão as vergastadas e uma ou outra arfada ou gemido dos homens que estavam sendo açoitados.

Na última chicotada, Jamie deixou a tira de couro cair a seu lado. Suava copiosamente e o linho sujo de sua camisa estava emplastrado em suas costas. Fez um movimento com a cabeça para os McClure, dispensando-os. Em seguida, limpou o rosto molhado na manga da camisa enquanto um dos homens curvava-se dolorosamente para resgatar as camisas atiradas ao chão e seu irmão, também trêmulo, amparava-o do outro lado.

Os homens na clareira pareciam ter parado até mesmo de respirar durante o castigo. Neste instante, um estremecimento percorreu o grupo, como se uma respiração coletiva tivesse sido exalada num suspiro de alívio.

Jamie olhou-os, sacudindo a cabeça de leve. O vento da noite intensificava-se, agitando e levantando os cabelos no topo de sua cabeça.

— Não podemos nos dar ao luxo de sermos descuidados, mo duinne! — ele disse a meia-voz. — Nenhum de nós pode. — Respirou fundo e sua boca torceu-se ironicamente. — E isso inclui a mim também. Foi a minha fogueira desprotegida que atraiu o garoto para nós. — Sua testa porejava de suor novamente e ele passou a mão pelo rosto, enxugando-a no kilt. Fez um sinal com a cabeça para Murtagh, com um ar implacável e afastado dos demais homens, e estendeu a tira de couro para ele.

— Poderia me fazer o favor, senhor?

Após um instante de hesitação, Murtagh estendeu a mão nodosa e segurou a correia. Uma expressão que poderia ser de divertimento tremeluziu nos olhos negros e brilhantes do pequeno escocês.

— Com prazer... senhor.

Jamie virou-se de costas para seus homens e começou a desamarrar a camisa. Seus olhos me avistaram, paralisada entre os troncos de árvores, e uma das sobrancelhas ergueu-se numa pergunta irônica. Eu queria observar? Sacudi a cabeça energicamente, girei nos calcanhares e saí correndo pelo meio das árvores, seguindo seu conselho tarde demais.

Na verdade, não retornei à barraca. Não podia suportar a idéia de seu confinamento asfixiante; sentia um aperto no peito e precisava de ar.

Encontrei-o no topo de uma pequena elevação, um pouco adiante da barraca. Aos tropeções, parei num pequeno espaço aberto, atirei-me de corpo inteiro no chão e passei os dois braços por cima da cabeça. Não queria ouvir o menor eco do ato final do drama, lá embaixo atrás de mim, Junto à fogueira.

O capim áspero sob meu corpo estava frio na minha pele nua e encolhi-me, enrolando-me no manto. Embrulhada e aquecida no meu casulo, permaneci deitada imóvel e em silêncio, ouvindo as batidas do meu coração, esperando o turbilhão em meu íntimo se acalmar.

Algum tempo mais tarde, ouvi os homens passando em pequenos grupos de quatro ou cinco, retornando aos seus locais de dormir. Abafadas pelas dobras do manto, eu não podia ouvir suas palavras, mas soavam submissas, talvez um pouco intimidadas. Passou-se algum tempo até eu perceber que Jamie estava ali. Ele não falou nem fez nenhum barulho, mas subitamente percebi que estava perto. Quando girei sobre o corpo e sentei-me, pude ver seu vulto sobre uma pedra, a cabeça descansando sobre os braços, cruzados sobre os joelhos.

Dividida entre o impulso de acariciar sua cabeça e a ânsia de golpeá-la com uma pedra, não fiz nem uma coisa nem outra.

— Você está bem? — perguntei, após uma pausa, a voz o mais neutra possível.

— Sim, vou ficar. — Endireitou o corpo devagar e esticou-se, movendo-se cuidadosamente, com um profundo suspiro.

— Sinto muito pelo seu vestido — ele disse, um minuto depois. Percebi que ele podia ver minha pele nua brilhando com um branco opaco na escuridão, e eu juntei as pontas do meu manto rispidamente.

— Ah, pelo vestido? — eu disse, com mais do que uma leve irritação na voz.

Ele suspirou outra vez.

— Sim, e pelo resto também. — Parou por um instante, depois disse: -Achei que talvez você estivesse disposta a sacrificar seu recato para evitar que eu tivesse que ferir o garoto, mas naquelas circunstâncias não tive tempo de pedir sua permissão. Se eu estava enganado, então peço seu perdão, senhora.

— Quer dizer que você o teria torturado mais?

Ele estava irritado e não se preocupou em esconder o fato.

— Torturar, pelo amor de Deus! Eu não machuquei o garoto. Enrolei as dobras do manto com mais força em volta de mim.

— Ah, então não considera feri-lo quebrar seu braço e marcá-lo com uma faca em brasa?

— Não, não considero. — Cobriu a pequena distância de gramado que havia entre nós e agarrou-me pelo cotovelo, puxando-me e obrigando-me a fitá-lo. — Ouça. Ele mesmo quebrou o braço, tentando escapar de uma chave indefensável. Ele é tão corajoso quanto qualquer um dos meus homens, mas não tem nenhuma experiência de luta corporal.

— E a faca?

Jamie resfolegou com desdém.

— Bah! É apenas um ponto dolorido sob uma das orelhas e que amanhã à noite ele já terá esquecido. Achei que doeria um pouco, mas eu pretendia amedrontá-lo, não feri-lo.

— Ah. — Desvencilhei-me e comecei a andar novamente em direção ao bosque escuro, à procura de nossa barraca. Sua voz me seguiu.

— Eu poderia ter feito o garoto falar, Sassenach. Mas teria sido um trabalho sujo e talvez permanente. Prefiro não usar tais meios se não forem necessários. Veja bem, Sassenach — sua voz vinha das sombras, chegando até mim com um tom de ameaça -, em algum momento talvez eu tenha que fazê-lo. Eu tinha que saber onde estavam seus companheiros, suas armas e tudo o mais. Não consegui amedrontá-lo; ou eu o enganava ou o forçava a falar.

— Ele disse que você não podia fazer nada que o fizesse falar. A voz de Jamie pareceu cansada.

— Pelo amor de Deus, Sassenach, é claro que eu podia. Você pode fazer qualquer pessoa falar se estiver disposto a torturá-lo o suficiente. Sei disso melhor do que ninguém.

— Sim — eu disse serenamente —, acho que sabe.

Por um instante, nenhum de nós dois se moveu, nem falou. Eu podia ouvir os murmúrios dos homens se preparando para a noite, uma ou outra batida de botas na terra dura e o farfalhar de folhas amontoadas para formar uma barreira contra o frio do outono. Meus olhos haviam se acostumado o suficiente à escuridão para que agora eu pudesse ver os contornos de nossa barraca, a uns dez metros de distância, sob a proteção de um enorme larício. Podia ver Jamie também, seu vulto negro contra a escuridão menos densa da noite.

— Está bem — eu disse finalmente. — Está bem. Considerando-se a escolha entre o que você fez e o que poderia ter feito... sim, está bem.

— Obrigado. — Eu não podia ver se ele estava sorrindo ou não, mas assim me pareceu, pelo tom de sua voz.

— Você correu um sério risco com o resto da encenação — eu disse. — E se eu não tivesse lhe dado uma desculpa para não matá-lo, o que teria feito?

A enorme figura remexeu-se e encolheu os ombros. Ouviu-se uma leve risadinha na escuridão.

— Não sei, Sassenach. Imaginei que você pensaria em alguma coisa. Se não... bem, suponho que eu ia ter que atirar mesmo no garoto. Não podia desapontá-lo simplesmente deixando-o ir, não é?

— Seu escocês filho-da-mãe — eu disse, sem muito ardor. Seu peito arfou com um profundo e exasperado suspiro.

— Sassenach, fui esfaqueado, mordido, esbofeteado e chicoteado desde o jantar... que não cheguei a terminar. Não gosto de amedrontar crianças e não gosto de açoitar homens, e tive que fazer as duas coisas. Tenho duzentos ingleses acampados a cinco quilômetros daqui e nenhuma idéia do que fazer a respeito. Estou cansado, com fome e dolorido. Se você tiver qualquer resquício de compaixão feminina, eu gostaria de receber um pouco!

Falou de um modo tão ressentido que eu ri, a despeito de mim mesma. Levantei-me e caminhei para ele.

— Acho que você merece. Venha cá e eu verei se consigo encontrar um pouquinho para você. — Ele havia vestido a camisa novamente, solta nos ombros, sem se preocupar em fechá-la. Deslizei as mãos sob a camisa, sobre a pele quente e sensível de suas costas. — Não cortou a pele — eu disse, tateando delicadamente para cima.

— Uma correia não corta a pele; só arde.

Removi sua camisa e fiz com que sentasse para que eu pudesse colocar compressas com a água fria do riacho.

— Melhor? — perguntei.

— Mmmm. — Os músculos de seus ombros relaxaram, mas ele contraiu-se ligeiro quando toquei um lugar particularmente dolorido.

Voltei minha atenção para o arranhão sob a orelha.

— Você não teria realmente atirado nele, não é?

— Quem você pensa que eu sou, Sassenach? — ele disse, fingindo-se indignado.

— Um covarde escocês. Ou, na melhor das hipóteses, um fora-da-lei sem escrúpulos. Quem sabe o que um sujeito assim faria? Sem falar do devasso sem princípios.

Ele riu comigo e seu ombro sacudiu-se sob minha mão.

— Vire a cabeça. Se quer compaixão feminina, terá que se manter quieto enquanto eu aplico isso.

— Mmm. — Fez-se um momento de silêncio. — Não — ele disse finalmente -, eu não teria atirado nele. Mas eu tinha que salvar seu orgulho de algum modo, depois de fazê-lo se sentir ridículo por sua causa. É um garoto corajoso; ele merecia sentir que valia a pena matá-lo.

Sacudi a cabeça.

—Jamais vou entender os homens — murmurei, passando ungüento de cravo-da-índia sobre o arranhão.

Ele estendeu as mãos para trás e trouxe as minhas para baixo do seu queixo.

— Você não precisa me entender, Sassenach — disse serenamente. -Desde que me ame. — Inclinou a cabeça para frente e beijou com ternura as minhas mãos unidas.

— E me alimente — ele acrescentou, soltando-as.

— Ah, compaixão feminina, amor e comida? — eu disse, rindo. — Está querendo muito, não acha?

Havia pães e bolos nos alforjes, queijo e um pedaço de bacon também. As tensões e absurdos das últimas duas horas haviam sido mais exaustivos do que eu imaginara e eu também participei avidamente da refeição.

Os ruídos produzidos pelos homens à nossa volta haviam se apaziguado e não havia nenhum som ou tremular de um fogo desprotegido para indicar que não estávamos a mil quilômetros de qualquer ser humano. Apenas o vento se agitava incessantemente entre as folhas, lançando um ou outro raminho para baixo, pelo meio dos galhos mais resistentes.

Jamie recostou-se contra uma árvore, o rosto indistinto à luz das estrelas, mas o corpo imbuído de malícia.

— Dei minha palavra a seu herói de que eu não a molestaria com as minhas abomináveis investidas. Suponho que isso signifique que, a menos que você me convide para compartilhar sua cama, vou ter que ir dormir com Murtagh ou Kincaid. E com os roncos de Murtagh.

— É verdade — eu disse.

Fitei-o por um instante, depois dei de ombros, deixando metade do meu vestido arruinado deslizar.

— Bem, você já fez uma boa investida para me violentar. — Deixei o outro lado do vestido escorregar do ombro e o tecido rasgado caiu livremente em torno de minha cintura. — Pode muito bem vir terminar o serviço adequadamente.

O calor de seus braços era como seda aquecida, deslizando pela minha pele fria.

— Ah, bem — ele murmurou nos meus cabelos -, guerra é guerra, não é?

— Sou péssima com datas — eu disse para o céu estrelado algum tempo depois. — Miguel de Cervantes já nasceu?

Jamie estava deitado de bruços a meu lado, a cabeça e os ombros projetando-se para fora do abrigo da tenda. Um dos olhos abriu-se devagar e girou na direção do horizonte a leste. Não vendo nenhum vestígio do amanhecer do dia, viajou lentamente de volta e pousou sobre meu rosto, com uma expressão de amarga resignação.

— Sente uma necessidade urgente de discutir romances espanhóis? — ele disse, com a voz um pouco rouca.

— Não necessariamente — eu respondi. — Só me perguntava se você estaria familiarizado com o termo “quixotesco”.

Ele ergueu-se sobre os cotovelos, coçou a cabeça com as duas mãos para acordar completamente, depois se virou para mim, piscando, mas alerta.

— Cervantes nasceu há quase duzentos anos, Sassenach, e eu, tendo tido o privilégio de uma educação esmerada, sim, estou familiarizado com o cavalheiro. Você não estaria insinuando nada pessoal com essa última observação, estaria?

— Suas costas dóem?

Ele arqueou os ombros experimentalmente.

— Não muito. Um pouco machucado, eu acho.

— Jamie, por quê, pelo amor de Deus? — exclamei.

Ele apoiou o queixo nos braços cruzados, a inclinação de sua cabeça reforçando a obliqüidade dos olhos. O olho que eu podia ver estreitou-se ainda mais com um sorriso.

— Bem, Murtagh divertiu-se. Eu lhe devia uma surra desde que eu tinha nove anos e coloquei pedaços de uma colméia em suas botas quando ele as tirou para refrescar os pés. Na ocasião, ele não conseguiu pôr as mãos em mim, mas aprendi um bom número de palavras novas e interessantes enquanto ele me perseguia descalço. Ele...

Interrompi o relato ao dar-lhe um soco, com todas as minhas forças, na ponta do ombro. Surpreso, ele deixou o braço desmoronar sob ele com um agudo “Uuuíl”, rolando sobre o corpo e ficando de costas para mim.

Ergui os joelhos atrás dele e passei o braço pela sua cintura. Suas costas encobriam as estrelas, largas e musculosas, ainda brilhando ligeiramente com a umidade do esforço. Beijei-o entre as omoplatas, depois me afastei um pouco e soprei delicadamente, pelo prazer de sentir sua pele estremecer sob meus dedos e os pêlos minúsculos e finos eriçarem-se, arrepiando a pele ao longo de sua espinha dorsal.

— Por quê? — repeti. Recostei o rosto contra suas costas quentes e úmidas. No escuro, as cicatrizes eram invisíveis, mas eu podia senti-las, as linhas finas e duras sob a minha face.

Ele ficou imóvel por alguns instantes, as costelas erguendo-se e abaixando-se sob meu braço, a cada respiração lenta e profunda.

— Sim, bem — ele disse, depois ficou silencioso outra vez, pensando.

— Não sei exatamente, Sassenach — disse finalmente. — Talvez eu achasse que devia isso a você. Ou talvez a mim mesmo.

Coloquei a mão de leve sobre uma de suas omoplatas, larga e plana, os contornos do osso perfeitamente delineados sob a pele.

— Não a mim.

— É mesmo? É um ato de cavalheiro despir sua mulher na presença de trinta homens? — Seu tom de voz tornou-se amargo repentinamente e minhas mãos imobilizaram-se, pressionando contra seu corpo. — É um ato de cavalheiro usar de violência contra um inimigo capturado, e ainda por cima uma criança? Pensar em fazer pior?

— Teria sido melhor poupar-me, ou a ele, e perder metade de seus homens no espaço de dois dias? Você tinha que saber. Não podia... não pode se dar ao luxo de deixar que noções de cavalheirismo o dominem.

— Não — ele disse suavemente —, não posso. E assim devo cavalgar com um homem, com o filho do meu rei, a quem o dever e a honra me obrigam a seguir, e buscar, nesse ínterim, perverter sua causa, que eu jurei defender. Cometo perjúrio pelas vidas dos que amo, traio a honra para que aqueles a quem honro possam sobreviver.

— A honra já matou muita gente — eu disse para o sulco escuro de suas costas machucadas. — A honra sem sentido é... tolice. Uma tolice cavalheiresca, mas ainda assim é tolice.

— Sim, é verdade. E isso vai mudar, você mesma me disse. Mas se eu estiver entre os primeiros que sacrificam a honra pela sensatez... não devo sentir vergonha ao fazê-lo? — Virou-se repentinamente para me encarar. Os olhos transtornados à luz das estrelas.

— Não vou voltar atrás, agora não posso mais, mas, Sassenach, às vezes eu realmente lamento por aquela parte de mim mesmo que deixei para trás.

— A culpa é minha — eu disse baixinho. Toquei seu rosto, as sobrancelhas espessas, a boca larga e os pêlos curtos da barba ao longo do maxilar longo e perfeito. — Minha. Se eu não tivesse vindo... e lhe contado o que iria acontecer... — Senti uma tristeza profunda pela corrupção de Jamie e compartilhei um sentimento de perda pelo rapaz ingênuo e galante que ele fora. E no entanto... que escolha qualquer um de nós de fato teve, sendo quem éramos? Eu tive que lhe contar e ele teve que agir com base nesse conhecimento. Uma frase do Velho Testamento insinuou-se em minha mente: “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia.”

Como se tivesse captado essa linha de pensamento bíblico, ele sorriu debilmente.

— Sim, bem — ele disse. — Eu não me lembro de Adão pedindo a Deus para levar Eva de volta... e veja o que ela fez a ele. — Inclinou-se para frente e beijou-me na testa enquanto eu ria, depois puxou o cobertor para cobrir meus ombros nus. — Durma, minha costelinha. Vou precisar de uma companheira pela manhã.

Um estranho ruído metálico me despertou. Empurrei a cabeça para fora do cobertor e fiquei piscando na direção do barulho, descobrindo meu nariz a trinta centímetros do joelho coberto de xadrez de Jamie.

— Acordada? — Algo prateado e tilintante desceu de repente diante do meu rosto e um grande peso assentou-se em volta do meu pescoço.

— Que diabos é isso? — perguntei, sentando-me atônita e espreitando para baixo. Eu parecia estar usando um colar composto de um grande número de objetos de metal de cerca de oito centímetros, cada qual com uma haste dividida e uma argola na ponta, pendurados num cadarço de botas, de couro. Alguns dos objetos estavam enferrujados na parte de cima e outros eram novos em folha. Todos apresentavam arranhões ao longo das hastes, como se tivessem sido arrancados à força de algum objeto maior.

— Troféus de guerra, Sassenach — Jamie disse.

Ergui os olhos para ele e soltei um pequeno grito diante da visão.

— Ah — ele exclamou, colocando a mão no rosto. — Eu me esqueci. Não tive tempo de lavar o rosto.

— Você quase me matou de susto — eu disse, a mão pressionada contra o coração disparado. — O que é isso?

— Carvão — ele disse, a voz abafada no pano que esfregava no rosto. Retirou-o e riu para mim. A esfregação removera parte do negrume do nariz, do queixo e da testa, que brilhavam com uma coloração bronze-rosada em meio à sujeira remanescente. Seus olhos, entretanto, continuavam com um círculo negro, como os de um guaxinim, e linhas de carvão colocavam um parêntese em sua boca. Apenas começava a amanhecer e, na luz turva da tenda, seu rosto e cabelos escurecidos tendiam a se diluir no fundo pardacento da parede de lona atrás dele, dando a impressão distintamente perturbadora de que eu estava falando com um corpo sem cabeça.

— Foi idéia sua — ele disse.

— Minha idéia? Você parece que saiu de um espetáculo de menestréis caracterizados de negros — retruquei. — O que andou fazendo?

Seus dentes reluziram, um branco brilhante em meio às linhas enegrecidas em seu rosto.

— Incursão de comando militar — ele disse, com imensa satisfação. — Comando? É a palavra certa?

—Ah, meu Deus! — exclamei. — Esteve no campo dos ingleses? Virgem Maria! Não sozinho, espero?

— Não poderia deixar meus homens fora da diversão, não é? Deixei três deles guardando-a e o resto de nós teve uma noite muito produtiva. -Indicou meu colar com orgulho.

— Contrapinos das carroças dos canhões. Não podíamos trazer os canhões nem danificá-los sem barulho, mas eles não irão muito longe sem rodas. O general Cope vai ficar com dezesseis belos canhões encalhados na planície.

Examinei atentamente meu colar.

— Muito bem, mas eles não podem inventar novos contrapinos? Parece que algo semelhante pode ser feito com arame grosso.

Ele concordou com um sinal da cabeça, sem que sua expressão de orgulho se abatesse nem um pouco.

— Ah, sim, podem. Mas de nada lhes adiantaria, sem novas rodas onde colocá-los. — Ergueu a aba da tenda e fez um gesto indicando o sopé da colina, onde agora eu podia ver Murtagh, negro como um demônio ressequido, supervisionando as atividades de vários demônios de menor patente, igualmente decorados. Estes alegremente alimentavam uma enorme fogueira com as últimas de trinta e duas grandes rodas de madeira. Os aros de metal das rodas jaziam numa pilha ao lado; Fergus, Kincaid e um dos outros rapazes haviam improvisado um jogo com um deles, rolando-o de um lado para o outro com varas. Ross estava sentado perto dali, num tronco de árvore caído, bebericando de um copo de chifre e preguiçosamente girando outro aro em volta do braço musculoso.

Ri diante da cena.

— Jamie, você é mesmo inteligente!

— Posso ser inteligente — ele retrucou -, mas você está seminua e já estamos de partida. Tem alguma coisa para vestir? Deixamos as sentinelas amarradas em um redil abandonado, mas o resto delas já deve ter acordado a essa altura e logo estarão atrás de nós. É melhor irmos embora daqui.

Para enfatizar suas palavras, a tenda sacudiu-se repentinamente acima de mim, quando alguém soltou as amarras de um dos lados com um puxão. Dei um grito agudo de surpresa e me lancei sobre os alforjes, enquanto Jamie saía para supervisionar os detalhes da partida.

No meio da tarde, chegamos à vila de Tranent. Empoleirada sobre as colinas acima do litoral, o vilarejo geralmente tranqüilo agitava-se sob o impacto do exército das Highlands. A maior parte do exército podia ser vista nas colinas distantes, de frente para uma pequena planície que se estendia até a beira-mar. Mas com as freqüentes e desorganizadas idas e vindas, havia tantos homens em Tranent quanto fora dela, com destacamentos para cima e para baixo numa formação militar desordenada, mensageiros galopando de um lado para o outro — alguns em pôneis, outros a pé -, e mulheres, crianças e simpatizantes. Todos estes últimos superlotavam as cabanas e sentavam-se ao ar livre — recostados contra muros de pedra e alimentando bebês sob o sol intermitente, chamando os mensageiros que passavam para saber notícias das ações mais recentes.

Paramos à margem dessa atividade efervescente e Jamie enviou Murtagh para descobrir por onde andava lorde George Murray, o comandante-em-chefe do exército, enquanto ele fazia uma toalete apressada em uma das cabanas.

Minha própria aparência deixava muito a desejar; embora não estivesse deliberadamente coberta de carvão, meu rosto sem dúvida alguma exibia algumas listras de sujeira deixadas como lembrança de várias noites dormidas ao ar livre. A dona da casa gentilmente me forneceu uma toalha e um pente e eu estava sentada à sua mesa, lutando com meus cachos indomáveis, quando a porta abriu-se e o próprio lorde George irrompeu na sala sem a menor cerimônia.

Seu traje em geral impecável estava desalinhado, com vários botões abertos na cintura, a echarpe pendia, solta, de seu pescoço e uma das ligas da meia estava desatada. Sua peruca fora enfiada sem nenhum embaraço em um dos bolsos e seus próprios cachos, castanhos e ralos, estavam em pé, dando a impressão de que ele os andara puxando de puro desespero.

— Graças a Deus! — ele disse. — Um rosto normal, finalmente! — Em seguida, inclinou-se para frente, estreitando os olhos para olhar melhor para Jamie. A maior parte do pó de carvão fora retirada dos cabelos afo-gueados quando foram lavados, mas filetes cinza escorriam pelo seu rosto e pingavam no peito da camisa. Suas orelhas, esquecidas na pressa de suas abluções, ainda estavam negras de carvão.

— O que... — o perplexo lorde George começou a dizer, mas interrompeu-se, sacudiu a cabeça rapidamente uma ou duas vezes como se quisesse se livrar de algum produto de sua imaginação e retomou a conversa parecendo não ter observado nada de extraordinário.

— Como vão as coisas, senhor? — Jamie perguntou respeitosamente, também fingindo não notar o rabo-de-cavalo amarrado com fita da peruca que pendia do bolso de lorde George, balançando como o rabo de um pequeno cachorro conforme Sua Excelência gesticulava violentamente.

— Como vão as coisas? — ele repetiu. — Bem, vou lhe dizer, senhor! Vão para leste, depois vão para oeste, depois metade desce a colina para almoçar, enquanto a outra metade sai marchando Deus-sabe-para-onde! É assim que as coisas vão!

“As coisas”, ele disse, momentaneamente aliviado com sua explosão, “sendo o leal exército das Highlands de Sua Alteza.” Um pouco mais calmo, começou a nos contar sobre os acontecimentos que se tornaram de conhecimento público desde a chegada do exército a Tranent no dia anterior.

Ao chegar com o exército, lorde George deixara o grosso dos homens na vila e correra com um pequeno destacamento para se apossar das elevações acima da planície. O príncipe Carlos, tendo chegado um pouco depois, ficou contrariado com essa medida e disse isso, em alto e bom som. Sua Alteza, então, pegara metade do exército e seguira marchando na direção oeste, o duque de Perth — nominalmente o outro comandante-em— chefe — de modo servil em seu rastro, presumivelmente para avaliar as possibilidades de atacar por Preston.

Com o exército dividido, e Sua Excelência ocupada em conferir com os habitantes do vilarejo que sabiam muito mais sobre as regiões vizinhas do que Sua Alteza ou ele próprio, O'Sullivan, um dos confidentes irlandeses do príncipe, se incumbira de convocar um contingente de Lochiel, os homens do clã Cameron, ao pátio da igreja de Tranent.

— Cope, é claro, trouxe alguns canhões montados em carroças e os bombardeou — lorde George disse de modo sombrio. — E eu tive uma tarde infernal com Lochiel. Ele estava compreensivelmente contrariado por ter vários de seus homens feridos sem nenhuma razão aparente. Pediu para que seus homens batessem em retirada e eu, naturalmente, aceitei o pedido. Após o que, lá vem o idiota de Sua Alteza, O'Sullivan, desgraçado! Só porque ele desembarcou em Eriskay com Sua Alteza, o sujeito acha que ele... bem, de qualquer forma, lá vem ele choramingando, dizendo que a presença dos Cameron no pátio da igreja é essencial, essencial, veja bem!, se vamos atacar pelo oeste. Eu lhe disse com todas as letras que vamos atacar do leste, se é que vamos atacar. Tal perspectiva é extremamente duvidosa no presente momento, já que não sabemos exatamente onde está metade de nossos homens... nem Sua Alteza, por falar nisso — acrescentou, num tom que deixou claro que ele considerava o paradeiro do príncipe Carlos apenas uma questão de interesse acadêmico.

— E os chefes! Os Cameron de Lochiel tiraram na sorte o direito de lutar do lado direito na batalha, se houver uma, mas os MacDonald, tendo concordado com o arranjo, agora negam com veemência terem dito tal coisa e insistem que simplesmente não lutarão se lhes for negado o tradicional privilégio de lutar do lado direito.

Tendo iniciado o relato com bastante calma, lorde George se encolerizara outra vez no decorrer da exposição e, nesse ponto, pôs-se de pé num salto, esfregando o couro cabeludo energicamente com as duas mãos.

— Os Cameron foram treinados o dia inteiro. A essa altura, tiveram que marchar de um lado para o outro tantas vezes que já não sabem onde fica seu pau ou sua bunda, com perdão de sua presença, madame — acrescentou, lançando um olhar distraído em minha direção -, e os homens de Clanranald andaram brigando com os de Glengarry. — Parou, o maxilar mferior empurrado para frente, o rosto vermelho. — Se Glengarry não fosse quem ele é... ah, bem. — Descartou Glengarry com um rápido aceno da mão e retomou sua marcha de um lado para o outro.

— A única bênção salvadora da questão — ele disse — é que os ingleses foram forçados a dar meia-volta também, em resposta às nossas manobras. Elas fizeram toda a tropa de Cope mudar de direção nada menos do que quatro vezes e agora ele estendeu seu flanco direito até quase o mar, sem dúvida imaginando o que em nome de Deus faremos em seguida.

Inclinou-se e espreitou pela janela, como se esperasse ver o próprio general Cope avançando pela rua principal para perguntar.

— Hã... onde exatamente está sua metade do exército no momento, sir? — Jamie fez menção de se unir a Sua Excelência em suas peregrinações aleatórias pela cabana, mas foi contido pela minha mão em seu colarinho. Armada com uma toalha e uma bacia de água morna, eu me ocupara durante a exegese de Sua Excelência em remover o carvão das orelhas do meu marido. Elas se destacavam agora, róseas e brilhantes com a esfregação.

— Na serra ao sul da cidade.

— Nós ainda detemos o terreno elevado, então?

— Sim, parece bom, não é? — Sua Excelência sorriu desoladamente. -Entretanto, a ocupação do terreno alto nos dá relativamente pouca vantagem, considerando-se o fato de que o terreno logo abaixo da serra está pontilhado de poças e áreas pantanosas. Santo Deus! Há uma vala de dois metros cheia de água que corre por uns três quilômetros ao longo do pé dessa serra! Há pouco mais de quinhentos metros entre os dois exércitos neste momento e poderiam ser quinhentos quilômetros no que diz respeito ao que podemos fazer. — Lorde George enfiou a mão no bolso à cata de um lenço, tirou-o e ficou olhando fixamente para a peruca com a qual estivera a ponto de limpar o rosto.

Eu gentilmente lhe ofereci o lenço sujo de pó de carvão. Ele fechou os olhos, inalou com força pelas duas narinas, depois os abriu e fez uma mesura para mim com seu modo cortês de costume.

— Seu criado, madame. — Poliu o rosto escrupulosamente com o pano sujo, devolveu-o educadamente para mim e fincou a peruca desgrenhada na cabeça.

— Que o diabo me carregue — ele disse claramente -, se vou deixar aquele palerma nos fazer perder essa batalha. — Virou-se para Jamie com decisão.

— Quantos homens você tem, Fraser?

— Trinta, senhor.

— Cavalos?

— Seis, senhor. E quatro pôneis como animais de carga.

— Animais de carga? Ah. Carregando provisões para os seus homens.

— Sim, senhor. E sessenta sacas de farinha retiradas de um destacamento inglês ontem à noite. Ah, e um morteiro de quarenta centímetros, senhor.

Jamie comunicou essa última informação com uma expressão de tão perfeita indiferença e simplicidade que tive vontade de enfiar o lenço pela sua garganta. Lorde George fitou-o por um instante, depois um dos cantos de sua boca torceu-se para cima com um sorriso.

— É mesmo? Bem, venha comigo, Fraser. Pode me contar tudo no caminho. — Girou nos calcanhares em direção à porta, e Jamie, com um olhar espantado para mim, pegou seu chapéu e seguiu-o.

A porta da cabana, lorde George parou de repente e virou-se. Ergueu os olhos para a figura imponente de Jamie, o colarinho da camisa aberto e o casaco jogado apressadamente sobre o braço.

— Posso estar com pressa, Fraser, mas ainda temos tempo suficiente para observar as civilidades. Vá dar um beijo de despedida em sua mulher, homem. Encontre-me lá fora.

Virando-se nos calcanhares, fez uma profunda reverência para mim, de tal modo que o rabo-de-cavalo de sua peruca caiu para frente.

— Seu criado, madame.

Eu sabia o suficiente a respeito de exércitos para compreender que nada muito evidente deveria acontecer durante algum tempo e, como previsto, nada aconteceu. Grupos aleatórios de homens marchavam para baixo e para cima da única rua principal de Tranent. Mulheres, simpatizantes e os cidadãos desalojados de Tranent corriam de um lado para o outro sem direção, sem saber se deviam ir embora ou ficar. Os mensageiros arremessavam-se em diagonal pela multidão, levando bilhetes.

Eu já encontrara lorde George antes, em Paris. Ele não era o tipo de homem de fazer cerimônia quando a ação fosse preferível, embora eu achasse provável que sua irritação com o comportamento do príncipe Carlos e uma vontade de escapar da companhia de O’Sullivan fossem mais responsáveis pelo fato de ele ter ido pessoalmente ao encontro de Jamie do que qualquer desejo de agilidade ou discrição. Enquanto o contingente total do exército das Highlands situava-se em algum ponto entre mil e quinhentos e dois mil, trinta homens nem deveriam ser encarados como uma dádiva dos deuses nem menosprezados.

Olhei para Fergus, remexendo-se de um lado para o outro como um sapo com a dança de São Guido, e decidi que eu mesma deveria mandar algumas mensagens. Há um ditado: “Em reino de cegos, quem tem um olho é rei.” Prontamente inventei uma analogia, com base na experiência: Quando ninguém sabe o que fazer, qualquer um com uma sugestão sensata vai ser ouvido.”

Havia papel e tinta nos alforjes. Sentei-me, observada com uma admiração quase supersticiosa pela dona da casa, que provavelmente nunca vira uma mulher escrever nada antes, e redigi um bilhete para Jenny Cameron.

Foi ela quem liderara trezentos homens do clã Cameron pelas montanhas para se unirem ao príncipe Carlos, quando ele ergueu sua bandeira em Glenfinnan, no litoral. Seu irmão Hugh, chegando em casa atrasado e ouvindo o que acontecera, cavalgara a toda a velocidade até Glenfinnan para assumir o lugar de chefe à frente de seus homens, mas Jenny recusara-se a voltar para casa e perder a diversão. Ela adorara a breve parada em Edimburgo, onde Carlos recebeu o clamor de seus súditos leais, mas mostrara-se igualmente disposta a acompanhar seu príncipe a caminho da batalha.

Eu não possuía um sinete, mas o gorro de Jamie estava em uma das sacolas, ostentando um distintivo com o brasão e o lema do clã Fraser. Retirei-o e pressionei-o no borrão de cera de vela derretida com que eu selara o bilhete. Ficou com uma aparência muito oficial.

— Para a senhora escocesa com sardas — instruí Fergus e, com satisfação, observei-o arremessar-se pela porta para o tumulto da rua. Eu não tinha a menor idéia de onde Jenny Cameron poderia estar no momento, mas os oficiais estavam aquartelados na casa paroquial perto da igreja e esse era um lugar tão bom para começar a procurar quanto qualquer outro. Ao menos, a busca manteria Fergus longe de travessuras.

Essa tarefa providenciada, voltei-me para a dona da casa.

— Bem, então — eu disse. — O que você tem aí em termos de cobertores, lenços e anáguas?

Logo descobri que eu estava certa em minha suposição quanto à força da personalidade de Jenny. Uma mulher que podia incitar trezentos homens e conduzi-los através das montanhas para lutar por um almofadinha de sotaque italiano muito chegado a um conhaque sem dúvida tinha pouca paciência com o tédio e um raro talento para convencer as pessoas a fazerem o que ela queria.

— Muito bem pensado — ela disse, ao ouvir meu plano. — Meu primo Archie fez alguns preparativos, eu espero, mas é claro que ele quer estar com o exército neste momento. — Seu queixo firme projetou-se um pouco mais para frente. — É onde está toda a diversão, afinal — ela disse com ironia.

— Surpreende-me que você não tenha insistido em acompanhá-los. — eu disse.

Ela riu, o rosto pequeno, sem atrativos, com seu maxilar retraído, fazendo-a parecer um buldogue bem-humorado.

— Eu o faria, se pudesse, mas não posso — admitiu francamente. -Agora que Hugh chegou, ele fica tentando me mandar de volta para casa. Eu lhe disse — olhou ao redor para se certificar que não estávamos sendo ouvidas e abaixou a voz em tom de conspiração — que era mais fácil eu ir para o inferno do que voltar para casa e ficar sentada. Não enquanto eu puder ser útil aqui.

Parada na soleira da porta da cabana, olhou com todo o cuidado para baixo e para cima da rua.

— Achei que não me dariam ouvidos — eu disse. — Sendo inglesa.

— Sim, tem razão, mas ouvirão a mim. Não sei quantos serão os feridos, Deus queira que não sejam muitos. — Ela benzeu-se discretamente. -Mas é melhor começarmos pelas cabanas próximas à casa paroquial; vai dar menos trabalho transportar água do poço. — Com ar decidido, ela saiu da soleira e começou a descer a rua, eu seguindo-a logo atrás.

Fomos ajudadas não só pelo poder de persuasão da posição e da personalidade da srta. Cameron, quanto pelo fato de que ficar sentado esperando é uma das situações mais infelizes para um homem — não que lhes aconteça amiúde; as mulheres o fazem com muito mais freqüência. Quando o sol desapareceu por trás da igreja de Tranent, já tínhamos as bases rudimentares de uma brigada hospitalar organizada.

As folhas começavam a cair dos carvalhos e larícios no bosque próximo, depositando-se soltas, secas e amarelas no terreno arenoso. Aqui e ali, uma folha se crispava e tornava-se marrom, sendo levada pelo vento como um barquinho por mares revoltos.

Uma dessas passou por mim em redemoinho, pousando delicadamente no solo quando sua corrente de vento arrefeceu. Peguei-a e segurei-a na palma da mão por um instante, admirando a perfeição de suas nervuras, um esqueleto rendado que continuaria a existir depois que a lâmina apodrecesse. Houve um súbito sopro de vento e a folha enrascada elevou-se de minha mão, caiu no chão e saiu rolando pela rua vazia.

Protegendo meus olhos contra o sol poente, eu podia ver as colinas fora da cidade onde o exército das Highlands estava acampado. A metade do exército de Sua Alteza retornara há uma hora, arrastando consigo os últimos desgarrados da vila quando passou em sua marcha para unir-se a lorde George. A esta distância, eu podia apenas divisar uma ou outra figura minúscula, negra contra o cinzento do céu, quando aqui e ali um homem surgia no topo da serra. A quatrocentos metros depois do fim da rua, eu podia ver a claridade das primeiras fogueiras dos ingleses sendo acesas, ardendo palidamente na luz mortiça. O cheiro forte de turfa queimada que exalava das cabanas unia-se ao aroma mais pungente da lenha queimada pelos ingleses, sobrepujando o cheiro penetrante do mar próximo.

Os preparativos possíveis de serem feitos estavam em andamento. As mulheres e famílias dos soldados das Highlands tinham sido acolhidas com generosa hospitalidade e agora estavam em sua maior parte abrigadas nas cabanas ao longo da rua principal, compartilhando o jantar simples de seus anfitriões, composto de arenque salgado e pão assado na grelha. Minha própria refeição me aguardava lá dentro, embora eu estivesse quase sem apetite.

Um vulto pequeno surgiu junto ao meu cotovelo, silencioso como as sombras alongadas.

— Pode vir jantar, senhora? A dona da casa guardou comida para a senhora.

— Hein? Ah, sim, Fergus. Sim, já vou. — Lancei um último olhar em direção à serra, voltando-me para as casas em seguida.

— Vem comigo, Fergus? — perguntei, vendo-o ainda parado na rua. Ele protegia os olhos, tentando ver as atividades nas elevações fora da cidade. Jamie dera-lhe ordens expressas de permanecer comigo, mas ele obviamente ansiava estar com os soldados, preparando-se para a batalha iminente.

— Hein? Ah, sim, senhora. — Virou-se com um suspiro, resignado por enquanto a uma vida de tediosa paz.

Os longos dias de verão cediam lugar rapidamente à escuridão, e os lampiões foram acesos muito antes de terminarmos nossos preparativos. A noite do lado de fora fervilhava com o movimento constante e o clarão de fogueiras no horizonte. Fergus, incapaz de permanecer quieto, entrava e saía das cabanas, levando recados, coletando boatos e surgindo das sombras periodicamente como um fantasma pequeno e escuro, os olhos brilhando de empolgação.

— Madame — disse, puxando a manga do meu vestido enquanto eu rasgava roupas e lençóis de linho em tiras e atirava-as numa pilha para esterilização. — Madame!

— O que foi agora, Fergus? — Fiquei um pouco irritada com a intrusão; eu estava no meio de uma palestra para um grupo de donas-de-casa sobre a importância de lavar as mãos com freqüência ao tratar os feridos.

— Um homem, madame. Ele quer falar com o comandante do exército de Sua Alteza. Diz que tem informações importantes.

— Bem, eu não o estou impedindo, estou? — Puxei a recalcitrante costura de uma camisa, depois usei os dentes para arrancar a ponta solta e dei um puxão. Rasguei-a diligentemente, com um satisfatório som rascante.

Cuspi um ou dois pedaços de linha. Ele continuava lá, aguardando pacientemente.

— Está bem — eu disse, resignada. — O que você, ou ele, acha que posso fazer a respeito?

— Se me der permissão, madame — ele disse ansiosamente -, posso conduzi-lo ao meu patrão. — Ele poderia arranjar para que o homem falasse com o comandante.

“Ele”, obviamente, poderia fazer qualquer coisa, no que dizia respeito a Fergus; inclusive, sem dúvida, caminhar sobre as águas, transformar água em vinho e induzir lorde George a conversar com estranhos misteriosos que surgiam do nada com informações importantes.

Afastei os cabelos dos olhos; eu os prendera para trás sob uma touca, mas algumas mechas encaracoladas teimavam em escapar.

— Esse homem está por perto?

Esse era todo o encorajamento que ele precisava; desapareceu pela porta aberta, retornando em poucos instantes com um jovem magro, cujo olhar ansioso fixou-se imediatamente em meu rosto.

— Sra. Fraser? — Fez uma mesura desajeitada quando confirmei com um sinal da cabeça, limpando as mãos nas calças como se não soubesse exatamente o que fazer com elas, mas quisesse estar preparado caso alguma coisa surgisse.

— Sou... sou Richard Anderson, de Whitburgh.

— Ah, sim? Bem, como vai? — eu disse educadamente. — Meu criado diz que possui informações valiosas para lorde George Murray.

Ele assentiu, balançando a cabeça como um melro d'água.

— Veja, sra. Fraser, eu vivi nesta região minha vida inteira. Eu... eu conheço todo esse terreno onde estão os exércitos, conheço-o como a palma de minha mão. E há um caminho que desce das colinas onde as tropas das Highlands estão acampadas, uma trilha que os conduzirá até bem depois da vala no sopé da serra.

— Compreendo. — Senti um vazio na boca do estômago diante daquelas palavras. Se os soldados das Highlands fossem partir para o ataque com o nascer do sol no dia seguinte, teriam que deixar a região alta da serra durante a vigília noturna. E se um ataque quisesse ser bem-sucedido, obviamente essa vala tinha que ser atravessada ou contornada.

Embora eu achasse que sabia o que estava para acontecer, não tinha absolutamente nenhuma certeza a respeito. Eu fora casada com um historiador — senti a leve pontada que me atingia sempre que me lembrava de Frank — e sabia o quanto as fontes históricas em geral eram pouco confiáveis. Na verdade, eu não tinha nenhuma certeza de que a minha própria presença poderia ou iria mudar alguma coisa.

Por um instante, perguntei-me ansiosamente o que poderia acontecer se eu tentasse impedir que Richard Anderson conversasse com lorde George. O resultado da batalha do dia seguinte seria alterado? O exército das Highlands — inclusive Jamie e seus homens — seria massacrado conforme se arremessassem pela encosta abaixo sobre o terreno pantanoso e para dentro de uma vala? Lorde George apresentaria outro plano que funcionaria? Ou Richard Anderson simplesmente sairia e encontraria por conta própria uma maneira de falar com o próprio lorde George, independentemente do que eu fizesse?

Não era um risco que eu quisesse correr por experiência. Olhei para Fergus, remexendo-se com impaciência para partir dali.

— Acha que pode encontrar seu senhor? Está escuro como uma mina de carvão lá no alto daqueles morros. Não quero que nenhum de vocês dois receba um tiro por engano, perambulando lá por cima.

— Posso encontrá-lo, madame — Fergus disse com confiança. Provavelmente podia, pensei. Ele parecia ter uma espécie de radar no que se referia a Jamie.

— Está bem, então — concordei. — Mas pelo amor de Deus, tenha cuidado.

— Oui, madame! — Como um relâmpago, ele já estava à porta, vibrando de ansiedade para partir.

Somente meia hora depois de terem partido foi que notei que a faca que eu havia deixado sobre a mesa também havia desaparecido. E somente então me lembrei, com uma súbita reviravolta no estômago, que embora eu tivesse dito a Fergus para tomar cuidado eu me esquecera de dizer-lhe também para voltar.

O primeiro barulho de canhão veio na luz que antecede a aurora, uma explosão seca, retumbante, que pareceu ecoar pelas tábuas do assoalho onde eu dormia. Minhas nádegas contraíram-se, o recolhimento involuntário de uma cauda que eu não possuía, e meus dedos agarraram os da mulher deitada ao meu lado sob o cobertor. O conhecimento de que algo vai acontecer devia servir como defesa, mas de certa forma nunca estamos preparados.

Ouviu-se um leve lamento de um dos cantos da cabana e a mulher ao meu lado murmurou, num sussurro:

— Que Deus nos proteja.

Houve uma movimentação no chão quando as mulheres começaram a se levantar. Falava-se pouco, como se todos os ouvidos estivessem alertas para captar os sons da batalha na planície lá embaixo.

Avistei uma das mulheres das Highlands, a sra. MacPherson, quando ela dobrava seu cobertor junto à janela que começava a se tornar acinzentada. Seu rosto estava pálido de terror e ela cerrou os olhos com um pequeno estremecimento quando outra explosão abafada veio da planície-

Reconsiderei minha opinião sobre a inutilidade do conhecimento. Essas mulheres nada sabiam a respeito de trilhas secretas, ataques relâmpagos ou debandadas. Tudo que sabiam era que seus maridos e filhos estavam agora enfrentando o fogo de canhões e mosquetes de um exército inglês em número quatro vezes maior.

A previsão é uma questão arriscada na melhor das hipóteses e eu sabia que elas não me dariam ouvidos. O melhor que eu podia fazer por elas era mantê-las ocupadas. Uma imagem fugaz atravessou minha mente — o sol nascente refletindo seu brilho numa cabeleira flamejante, tornando seu proprietário um alvo perfeito. Uma segunda imagem surgiu imediatamente no rastro da primeira; um garoto de dentes de esquilo, armado com uma faca de açougueiro roubada e a crença ilusória nas glórias da guerra. Fechei meus próprios olhos e engoli em seco e com força. Manter-me ocupada era o melhor que eu podia fazer por mim mesma.

— Senhoras! — eu disse. — Já fizemos muita coisa, mas ainda há muito a fazer. Vamos precisar de água quente. Caldeirões para ferver água, tinas para enxaguar. Mingau para os que puderem comer; leite para os que não puderem. Sebo de velas e alho para curativos. Ripas de madeira para entalar. Garrafas e jarros, xícaras e colheres. Agulhas de costura e fio resistente, sra. MacPherson, poderia me fazer a gentileza de...

 

 

                                                     CONTINUA

 

 

Eu sabia pouco sobre a batalha, exceto qual dos lados deveria vencer e que as baixas do exército jacobita seriam “poucas”. Da página distante e indistinta do livro de história, retirei novamente a pequena informação: “... enquanto os jacobitas saíram-se vitoriosos, com apenas trinta baixas”.

Baixas. Mortes, corrigi. Qualquer ferimento é uma baixa, em termos de enfermagem, e havia bem mais de trinta em minha cabana depois que o sol ardente traçou seu caminho até o alto do céu através da névoa marinha, por volta do meio-dia. Lentamente, os vitoriosos da batalha voltavam triunfalmente para Tranent, o som de homens ajudando seus companheiros feridos.

Estranhamente, Sua Alteza ordenara que os ingleses feridos fossem retirados primeiro do campo de batalha e cuidadosamente atendidos. “São súditos de meu Pai”, ele dissera com firmeza, enfatizando dramaticamente o P maiúsculo, “e farei com que sejam bem-tratados.” O fato de que os homens das Highlands que acabavam de vencer uma batalha para ele também fossem presumivelmente súditos de seu Pai parecia ter lhe passado despercebido no momento.

— Considerando-se o comportamento do Pai e do Filho – murmurei para Jenny Cameron ao ouvir aquilo -, o exército das Highlands deve rezar para que o Espírito Santo não resolva descer hoje.

 

 

 

 

Uma expressão de choque diante dessa observação blasfema atravessou o rosto da sra. MacPherson, mas Jenny riu.

A gritaria e os berros das comemorações gaélicas abafaram os gemidos dos feridos, trazidos em padiolas improvisadas feitas com tábuas ou mos-quetes amarrados ou, com mais freqüência ainda, amparados nos braços de amigos. Algumas das vítimas vieram, cambaleando, com seus próprios pés, bêbados e exultantes com sua própria vitalidade, a dor de seus ferimentos parecendo uma inconveniência menor diante da gloriosa prova de sua tenacidade. Apesar dos ferimentos que os traziam ali para serem tratados, o conhecimento inebriante da vitória enchia a casa com um sentimento de exultação e regozijo.

— Nossa, você viu como eles corriam que nem camundongos com um gato em seus rabos? — disse um paciente a outro, parecendo alheio à feia queimadura de pólvora que marcara seu braço esquerdo dos nós dos dedos ao ombro.

— E muitos deles já sem os rabos — respondeu o amigo, com uma risada.

A alegria não era universal; aqui e ali, pequenos grupos de melancólicos soldados podiam ser vistos atravessando as colinas, carregando a figura imóvel de um amigo, a ponta do xale de xadrez cobrindo um rosto que se tornara vazio e inexpressivo com a visão do céu.

Foi o primeiro teste das assistentes que eu escolhera e elas enfrentaram o desafio tão bem quanto os guerreiros no campo de batalha. Ou seja, elas empacavam e reclamavam e causavam problemas, mas quando a necessidade se apresentava, atiravam-se à luta com uma fúria sem paralelo.

Não que parassem de reclamar enquanto trabalhavam.

A sra. McMurdo retornou com mais uma garrafa cheia, que pendurou no lugar apropriado na parede da cabana, antes de...

 

 

                                                                                                    

 

 

                                         

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