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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LOBA DE PRATA / Alice Borchardt
A LOBA DE PRATA / Alice Borchardt

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

      Neste fascinante romance de originalidade e alcance, Alice Borchardt insufla vida a uma época perdida, recriando de maneira brilhante um mundo sensual e violento... E os homens e mulheres cujas grandes ambições, traições e paixões dão forma à era em que vivem e morrem.       A decadente Roma da Idade Negra está enlameada nas ruínas de sua grandeza. À Cidade Eterna chega Regeane, uma formosa jovem aparentada por parte de sua mãe morta, com o imperador Carlos Magno. Ser de sangue real converte a moça em um peão involuntário na luta pelo poder político. Mas sem que saibam quem planeja seu destino, o sangue que herdou de seu pai assassinado faz dela algo mais que uma filha da realeza. Com uma força e agilidade sobrenaturais, lembranças primitivas que remontam há milênios atrás e sentidos tão agudos que podem atravessar até mesmo o véu da morte, Regeane é uma mutante: uma mulher loba, caçadora e presa.

      Comprometida pela ordem de Carlos Magno com um Senhor Bárbaro ao qual nunca viu, Regeane está rodeada de inimigos. O mais notório, seu depravado tio e guardião, não terá escrúpulos em entregá-la à Igreja a menos que o ajude em seus sinistros planos. E se a Igreja descobrir seu segredo, Regeane arderá na fogueira.       Poesia lírica, trepidante, sensual, e rica em detalhe histórico e sensibilidade, A Loba de Prata leva Alice Borchardt diretamente a primeira fila das escritoras atuais. Sua intrincada trama e hipnótica voz lançam um feitiço ao qual poucos poderão resistir.

 

 

 

 

                                                CAPÍTULO 1

O sol estava baixando. O ardente círculo brilhava além das colunas coroadas de acanto de um templo em ruínas, que cortavam a bola incandescente em franjas de fulgor vermelho. É quase noite, pensou a moça e estremeceu sob o frio ar outonal que soprava através da janela sem cristais.

A janela estava bem assegurada, tinha um barrote horizontal e outro vertical encaixados nas paredes de pedra do pequeno aposento.

Ela sabia que podia fechar a janela. Estender a mão entre os barrotes. Fechar as pesadas venezianas com o ferrolho de ferro. Mas expulsou a idéia de sua mente com uma espécie de cega obstinação. A vista da liberdade, inclusive de uma liberdade inalcançável era muito doce para render. Ainda não, disse, só um pouco mais. Ainda não.

O ar que arrepiava seus braços era doce. Oh, não, mais que doce. Ele falava. Cada rajada caprichosa, cada ligeira mudança na direção, cada movimento enviava imagens à parte mais profunda de sua mente.

Em alguma parte florescia um arbusto de tomilho. As diminutas flores azuis deixavam sua fragrância no frio ar da tarde. Aquele delicado aroma se misturava com o forte aroma de granito e mármore úmido. Estes e muitos outros destacavam entre os aromas criados pelas flores e o verdor que cobriam os palácios e templos em ruínas do antigo império.

O vasto e sem repouso espírito de tudo aquilo, o maior de todos os impérios, parecia ter chegado por fim, ao descanso sob a suave mão da grande mãe verde.

Regeane não sabia o que havia esperado da antigamente orgulhosa senhora do mundo quando chegou a ser Roma. Certamente não o que tinha encontrado. Os habitantes, descendentes de uma raça de conquistadores, viviam como ratos disputando e poluindo as ruínas de um palácio abandonado. Tendo voltado às costas às evidências de grandeza a seu redor, lutavam encarniçadamente entre eles pela riqueza que restava. De fato, pouco se subtraía do uma vez imenso rio de ouro que fluía através da cidade eterna. O ouro que podia encontrar agora dourava as mãos das autoridades papais e os altares das numerosas Igrejas.

A mãe de Regeane desesperada para salvar, tal como ela via, a alma de sua filha, tinha empenhado as poucas jóias que conservava. O dinheiro tinha sido suficiente para pagar os subornos necessários para obter uma audiência com o Papa e financiar a igualmente face benção pontifícia.

Regeane estivera ante a imponente presença, com seu corpo molhado em um suor provocado pelo pânico. Se sua afligida mãe dissesse a palavra equivocada ao prelado principal da Igreja, ela poderia acabar queimando queimada na fogueira ou apedrejada como uma bruxa. Mas quando Regeane se aproximou do supremo pontífice, compreendeu o quanto tolos haviam sido seus medos.

O homem ante ela era uma ruína, a ponto de sucumbir à idade e a dor. Regeane duvidou que entendesse muito de algo que lhe dissesse. Chorando, sua mãe implorava a intercessão ante o Todo poderoso principal ministro do Deus na Terra. Quando a sempre obediente Regeane se ajoelhou, beijou a sapatilha de seda e sentiu as mãos murchas apertadas contra seu cabelo, detectou uma rajada de um aroma distinto aos espessos aromas de incenso e perfume grego que saturavam a quarto: o aroma mofado e seco da carne envelhecida e da decomposição humana.

Deus era muito forte.

Ele está a ponto de morrer, pensou ela. Poderá falar pela mãe a Deus, em pessoa, muito em breve. Era consciente de que aquela bênção, como todas as demais benções pelas quais sua mãe Gisela tinha viajado e esbanjado tanto de sua riqueza, não faria nenhum bem.

Aquilo era o final. Regeane sabia e estava assustada. Se o mesmo Papa não pudesse levantar aquela estranha maldição e lhe permitir viver como uma mulher, a que poder terrestre poderia recorrer? E mais, a que poder poderia voltar sua mãe?

Gisela estava murchando tão rapidamente como o homem meramente humano que ocupava o trono de Pedro. Embora fosse uma mulher relativamente jovem, sua mãe estava muito consumida pela sucessão de viagens infrutíferas que tinha realizado com ela e por alguma tristeza secreta que parecia encher sua mente e coração com um inesgotável manancial de pesares.

Regeane mentiu. Sua mãe acreditou. E pela primeira vez em muitos anos, Regeane sentiu que a pequena mulher que tinha viajado até tão longe e suportado tantas cargas estava em paz. A mentira de sua filha levou Gisela até o final.

Três dias depois da audiência papal, Regeane fora despertar sua mãe, descobrindo que Gisela nunca despertaria novamente. Não neste mundo.

Regeane estava sozinha.

Ela contemplou com olhos ávidos como o sol se convertia em um semicírculo, desvanecendo em um resplendor que recortava a silhueta dos altos ciprestes da Via Apia, seguida pelo crepúsculo do outono azul profundo. Então, somente então, separou da janela e se envolveu em um velho manto de lã, retornando a seu jergón. Além do sob leito e uma pequena vasilha de barro parda com tampa em um canto, a estadia estava nua.

Regeane se sentou em sua cama, com os ombros contra a parede de pedra, as pernas balançando no ar, a cabeça atirada para trás e os olhos fechados. Aguardava em silêncio que se elevasse a lua. O disco de prata já devia estar elevando sobre as sete colinas. Logo, muito em breve seu percurso pelo céu o levaria até sua janela, onde derramaria um lago de luz de prata no chão. Ignorando a cruz negra das barras, Regeane poderia beber daquele lago. Poderia respirar se não a glória, o ar da liberdade.

A porta do quarto fora se fechou de repente. Condenação. A moça na cama procurou juramentos em sua mente. Não... Maldições. Como a moça jovem que era nunca lhe tinha permitido pronunciá-los, mas podia pensar nas palavras. E o fazia freqüentemente. Oh, como fazia quando aqueles dois estavam pressentes. Havia coisas piores que a solidão. Em conjunto, Regeane opinava que preferia o silêncio e o vazio, à presença de seu tio Gundabald ou Hugo, seu filho.

—Tornei a urinar sangue esta manhã. - Se queixava Hugo. - Acaso estão doentes todas as rameiras desta cidade? - Gundabald riu ruidosamente.

—Todas as que você escolhe parecem estar. Já lhe adverti: pague um pouco mais e busque alguém jovem e limpo. Ou pelo menos jovem, para que todas as coceiras e a ardência de alguns dias depois tenham valido a pena. A última que pagou era tão velha que tinha que fazer seu trabalho à luz das estrelas. Tudo o que economiza alugando sexo, gasta em medicamentos com o seu.

—Tem razão. - Disse Hugo irritado. - Parece que sempre a tem.

— Estou farto de tentar te instruir, — suspirou Gundabald. - A próxima vez, não se embebede de todo e dê um olhar à puta com boa luz.

—Cristo, que frio faz aqui, - protestou Hugo. Um segundo depois, Regeane o ouviu gritar escada abaixo ao proprietário, para que lhe levasse um braseiro para esquentar o quarto.

—Não servirá de nada, moço. – Disse-lhe Gundabald. - Ela deixou a janela aberta novamente.

—Não entendo como pode suporta, - resmungou Hugo. – Me arrepia.

Gundabald riu novamente. - Não há nada com o que se preocupar. Essas tábuas têm uma grossura de uma polegada. Ela não pode sair.

—Há... Saído, alguma vez? — Havia um tom de medo na pergunta de Hugo.

—OH, uma ou duas vezes, acredito, quando era mais jovem. Muito mais jovem, antes que eu me fizesse cargo de tudo. Gisela era muito branda. Essa minha irmã era uma mulher estupenda, sempre fazia o que lhe ordenava... Mas fraca, moço. Muito fraca. Basta ver como chorou por aquele primeiro marido quando seu matrimônio... Acabou tão abruptamente.

- Ela se divorciou dele?

—Ah, sim. - Respondeu Gundabald, aparentemente intranqüilo. - Mais exatamente se divorciou porque nós lhe dissemos que o fizesse. Não teve nenhuma opção a respeito. Inclusive então, todos podiam ver que a mãe de Carlos estava convertendo em um poder considerável na corte. Havia muitos pretendentes bem dotados que aspiravam à mão de Gisela. O segundo matrimônio foi bem melhor e nos fez todos ricos.

—Agora tudo se perdeu, — disse Hugo com amargura. - Entre você e Gisela, seremos afortunados se ficar um miserável cobre em nossas arcas. Queria estar ombro a ombro entre todos os grandes magnatas do reino franco. E para conseguir, descobriu que seus próprios ombros tinham que ser cobertos com veludo e brocado.

Oh, sim. Eles queriam ser tratados com atenção. Piores que uma horda de abutres, eles caíram sobre sua casa devorando tudo o que estivesse à vista. E como os abutres, quando o cadáver ficou limpo partiram em uma nuvem de mau cheiro e nunca os viu novamente. E se restara alguma coisa, Gisela pôs as mãos em cima, esbanjando em relíquias, santuários, benções e peregrinações, tentando levantar a maldição dessa desventurada filha dela.

- Aconselhaste-me que me busque algo mais jovem. Possivelmente seja uma boa idéia fazer uma visita a minha prima... De dia, é obvio, e... — Hugo gritou. - Pai, faz-me mal! - A resposta de Gundabald foi um grunhido de fúria.

—Toque essa garota e farei que economizemos um monte de problemas, porque te cortarei o rabo e os testículos. Será o eunuco mais liso, daqui a Constantinopla, juro-lhe. Ela é o único recurso que nos resta e deve casar. Ouviste-me?

Hugo uivou novamente.

—Sim, sim, sim! Está-me rompendo o braço. OH, Deus. Pare!

Gundabald deve ter lhe soltado porque os gritos de Hugo cessaram. Quando o jovem falou novamente foi choramingando.

—E quem vai querer casar com essa... Coisa?

Gundabald riu.

—Agora mesmo posso nomear uma dúzia que se matariam para desposá-la. O mais real sangue franco corre por suas veias. Tanto seu pai como sua mãe eram primos do grande rei.

—E esses mesmos que matariam para casar com ela nos atravessariam com uma espada no momento em que averiguassem o que é.

—Não consigo entender que um filho como você seja fruto de minhas virilhas. - Grunhiu Gundabald. - Mas sua mãe era uma pequena imbecil sem cérebro. Possivelmente tenha saído a ela.

Apesar da sádica dureza da voz de seu pai, Hugo não mordeu a isca. A maioria das pessoas que rodeavam Gundabald aprendia rapidamente a temê-lo e Hugo não era nenhuma exceção.

—Você gostava bastante da vida que levávamos quando tínhamos dinheiro, - seguiu falando Gundabald. – Que pensa que é? Se afaste, que me suja! Passa a noite com putas e de dia comendo e bebendo. Agora, deixe as coisas que não entende aos que são maiores e melhores que você. Cale! E faz com que tragam um pouco de comida e vinho... Muito vinho. Quero meu jantar e quero me esquecer o que há atrás da porta no quarto ao lado.

—Foi um engano trazê-la aqui. - Disse Hugo. Sua voz soava aguda e nervosa. - Está pior que nunca.

—Cristo Jesus! Deus! — Rugiu Gundabald. - Até o animal mais estúpido tem o sentido suficiente para fazer o que lhe mandam. É um toco com menos miolo que uma pedra! Feche a boca e consiga o vinho pelo menos. Meu Deus. Estou morrendo de sede!

Casar-me, pensou ela com indiferença. Como poderia se casar? Não acreditava sequer que uma serpente como Gundabald fosse capaz de maquinar algo tão perigoso. Ou de ter êxito se tentasse. Sua mãe tinha conservado algumas terras em território franco, umas poucas vilas empobrecidas. Produziam o dinheiro para alimentar e vestir aos três. Mas nada do que tinha herdado bastava para chamar a atenção de qualquer dos grandes magnatas do reino franco.

Quanto a sua relação com o Carlos, um rei que já começava a ser chamado o grande, era uma conexão bastante remota com sua mãe. Estimada, a senhora, Bertrada, sequer tinha reconhecido a existência de Regeane. De fato, uma das coisas que fizeram Bertrada ser apreciada pelo Rei Pipino o Breve era que a seguia uma tribo inteira de parentes.

Eles se aproximaram da corte preparados para esgrimir suas espadas pela Igreja e o rei, por não mencionar a ocasional carreta carregada de botas de cano longo que não conseguia chegar à tesouraria do monarca.

Regeane estava perdida na multidão. Ela não tinha nada a oferecer. Era pobre, mulher e não formosa. Não pensava que houvesse muitos aspirantes a sua mão.

Mas se Gundabald conseguisse encontrar a algum desventurado ingênuo ao qual extorquir, ela não tinha nenhuma dúvida de que a leiloaria sem o menor escrúpulo e a deixaria abandonada a seu destino. Simplesmente, não acreditava que seu tio encontrasse alguém. Além disso, Gundabald possuia, como estava acostumado a dizer, uma garganta quente e uma verga fria. Queria refrescar a uma e esquentar a outra com tanta freqüência como fosse possível e para isso necessitava de todo o pouco dinheiro que geravam suas propriedades. Ele a venderia, certamente, embora não trocasse. Mas ficava para ver se conseguiria seu preço. No momento, não lhe preocupava muito que o obtivesse ou não.

Quando a bênção papal demonstrou ser infrutífera, o fio de esperança que a mantivera através dos Alpes e a tinha sustentado na difícil viagem a Roma... Rompeu-se.

A morte de Gisela foi o golpe definitivo. Ela havia sido o único amparo de Regeane frente a um mundo que a destruiria no momento, somente se chegasse a suspeitar seu segredo... E contra os piores excessos da cobiça de Gundabald. Tinha sido sua única confidente e companheira. Regeane não tinha nenhum outro amigo, nenhum outro amor. Agora estava abandonada e completamente sozinha.

Com os olhos secos, Regeane seguiu o corpo de sua mãe até a tumba. Estava afligida por um desespero tão nego, que parecia converter aquele dia luminoso em uma amarga noite.

Uma fraca sombra cor prata aparecia agora contra o negrume do chão.

Não resta mais que a luz da lua, pensou Regeane. Bebe-a, se afogue nela. Ela nunca me reprovará. Não voltarei a ver suas lágrimas nem a sofrer por elas. Seja de mim o que for estou sozinha.

Ela ficou em pé, tirando seu vestido e sua muda e se voltou para o fulgor de prata. O ar que entrava pela janela era gélido, mas o prazer não existiria sem a aguda dentada da dor, mesmo a breve labareda do orgasmo é muito intensa para ser de todo agradável. A fria carícia era sedução, o rápido toque cruel que precede o prazer.

Regeane avançou corajosamente, sabendo que em um momento teria calor. Nua, entrou na luz de prata.

A loba se elevou em seu lugar.

Regeane era grande para ser uma loba, tinha o mesmo peso que em sua forma de moça. Era bem mais forte que em seu estado humano: esbelta, rápida, e poderosa. Sua pelagem era lisa e espessa e possuía um brilho de prata, como se prendesse a luz da lua em seus cabelos.

O coração desta loba estava cheio de alegria e gratidão. Regeane não o tivesse admitido nunca em seu estado humano, mas amava a loba e com bênção papal ou sem ela, nunca permitiria que se fosse.

Do fundo de seu coração, ela se recreou na mudança. Às vezes, enquanto se encontrava em seu estado humano, perguntava-se quem era mais sábia, ela ou a loba. A loba sabia. Ficando mais formosa e forte ano após ano, a loba esperava que Regeane estivesse pronta para receber seu ensino e compreendê-la.

A loba de prata se elevou sobre suas patas traseiras e, estirando as garras dianteiras no batente da janela, saiu fora. Não via só com os olhos, como aqueles humanos mutilados, mas também com as sensíveis orelhas e focinho.

O mundo que viam os humanos era como uma pintura, tão carente de dimensões como pintado sobre uma parede. Para ser creditada pela loba, uma coisa devia ter não só imagem, mas também aroma, textura e sabor.

Ah Deus... Que formoso. O mundo estava cheio de maravilhas.

A chuva devia ter chegado pela tarde. A loba podia cheirar a úmida terra negra sob o verdor, assim como o barro removido pelos cascos dos cavalos em um caminho próximo.

A mulher não havia notado, pois passara o dia em um sonho de tristeza. Por isso ganhou uma breve labareda de desprezo da loba. Mas a loba era uma criatura muito do presente para morar no que já era o passado. Ela agradecia cada momento. E aquele era um momento estupendo.

Normalmente, em Roma o aroma do homem preponderava sobre tudo o resto. Os eflúvios de transpiração rançosa, os esgotos desembocando no Tibre, o mau cheiro do excremento humano que, comparado ao de outros animais é absolutamente vil... Todos enchiam o ar e se apertavam a seu redor. Recobrindo-os estava a onipresente evidencia mofa das moradas humanas: lenha, madeira úmida e pedra.

Mas não aquela noite. O cortante vento soprava dos campos abertos além da cidade, cheirando a erva seca e à doçura das plantas selvagens que cresciam nas ladeiras perto do mar.

Às vezes, o fragrante fôlego da Campânia levava os limpos aromas de curral de porcos e gado e fracamente, o provocador almíscar do cervo.

A noite estava viva e cheia de movimento. Os gatos que tinham seus lares entre as ruínas cantavam suas antigas canções de irritação e paixão entre os monumentos esquecidos. Aqui e ali, a forma furtiva de um cão vagabundo se encontrava com seu olhar; de vez em quando, inclusive detectava algum furtivo movimento humano. Ladrões e salteadores freqüentavam o distrito, preparados para roubar os incautos.

Suas orelhas se estenderam para diante e prenderam em suas redes o que seus olhos não podiam ver: o amortecido bater das asas de uma coruja, os altos e agudos chiados dos morcegos, abatendo e comendo insetos no frio ar noturno.

Às presas e sussurros dos caçadores e os caçados, silenciosos até o final. O agônico lamento de morte de um pássaro rasgou o ar, surpreso por estar dormindo no ninho e ser atacado por um gato. Seguiu-lhe o chiado abruptamente interrompido de um coelho nas garras de um mocho.

Aquelas percepções e muitas outras eram entretecidas por seus sentidos de loba, em uma rica e infinita variedade de deleite eterno.

A loba de prata deixou cair suas garras ao chão com um suave, quase inaudível lamento de saudade. Depois, seus lábios se afastaram de seus dentes em um grunhido, ao ouvir as vozes no outro quarto.

Hugo e Gundabald estavam comendo. O estômago da loba retumbou esfomeado ante o aroma da carne assada. Estava faminta e tinha sede, ansiava por água limpa e comida.

A mulher advertiu a seu lado noturno que refreasse seus desejos. Não conseguiria nada.

A loba respondeu. Ambas haviam saído. A mulher de sua prisão e a loba de sua jaula. A loba estava junto a um limpo lago montanhês. A prata da lua cheia brilhava na água. Ao redor do lago, as negras silhuetas das árvores se recortavam contra o branco resplendor da neve eterna nas montanhas.

A lembrança se desvaneceu. Mulher e loba se encontraram contemplando a porta fechada.

Ambas entendiam que estavam encerradas. Regeane tinha passado a maior parte de sua vida atrás de portas fechadas com chave. Tinha aprendido a muito tempo atrás, a dolorosa inutilidade de atacar o carvalho e o ferro. Ignorava aquilo que não podia mudar e esperava que chegasse seu momento.

Estavam falando dela.

—Ouviste? — Perguntou Hugo assustado. Seu ouvido era melhor que o de Gundabald. Devia ter ouvido o suave lamento de protesto.

—Não. - Resmungou Gundabald através de um bocado de comida. - Eu não ouvi nada e você tampouco. Só imaginaste. É muito estranho que faça ruído. Isso é algo que podemos estar agradecidos; pelo menos não passa as noites uivando como faria um verdadeiro lobo.

—Não devíamos trazê-la a Roma, - gemeu Hugo.

— Vai começar outra vez com isso? — Gundabald suspirou fatigadamente.

—É verdade, - respondeu Hugo com ébria insistência. - Os fundadores desta cidade foram amamentados por uma loba. Antigamente se faziam chamar os filhos da loba. Desde que ouvi aquela história pensei muito nela. Uma loba de verdade não poderia criar crianças humanos, mas uma criatura como ela...

Gundabald riu com aspereza.

—Um conto de fadas inventado por alguma meretriz, para explicar uma isca de mucosos bastardos. Não seria a primeira e nem será a última em se fiar uma louca história para encobrir a própria... Libertinagem.

—Nunca ouve nada, - disse Hugo em tom petulante. - Está pior desde que viemos para cá. Inclusive enquanto sua própria mãe estava morrendo, ela...

Os lábios da loba de prata se afastaram de seus dentes, que brilharam a luz da lua como facas de marfim. As palavras de Hugo cravaram em seu coração lupino. Vã a ira abrasadora. Vã a breve e triste rebelião. A porta se elevava entre ela e seus atormentadores; a janela com barrotes entre a magnífica criatura e a liberdade.

Começou a andar como faria qualquer fera enjaulada, obedecendo à ordem sem palavras: Mantenha-se forte, mantenha-se sadia, mantenha-se alerta. Não tema, seu momento chegará.

 

                                                   CAPÍTULO 02

Maeniel sempre estava preocupado. E aquele dia tinha muito com o que se preocupar, enquanto permanecia na galeria meio em ruínas, antigamente construída para o deleite de algum governador romano.

Invejou o homem que provavelmente estivera ali no passado, tomando ar e inspecionando feliz seu vasto domínio. Entre outras coisas, Maeniel estava preocupado com o feno. Não parecia estar maturando tão rápido como devia. E necessitava do feno para superar o longo e frio inverno. Suspirou; aquele homem teria sido muito poderoso para se preocupar com o feno. Provavelmente tivera outras preocupações, possivelmente mais urgentes que as dele. Como, por exemplo, a política em Roma.

—A política em Roma, - ele murmurou.

Gavin, o capitão de sua guarda, dormitava sentado em um banco, com suas costas contra um mural de Perseo matando a Medusa. A cabeça da Gorgona na mão do herói estava lhe olhando, mas aquilo não o preocupava. Nada preocupava Gavin. Ele abriu um olho e repetiu as palavras de Maeniel.

—A política em Roma? O que tem que ela?

—Simplesmente estava pensando que, embora o governador romano não se preocupasse com o feno como eu, seguro que tinha outras preocupações, como a política em Roma.

Gavin abriu os dois olhos.

—Quero ver se o entendo... Deixa de preocupar com o feno para se preocupar pelo que se preocupava um romano morto há muito?

—Sim. - Disse Maeniel.

—Obrigado por esclarecer, - disse Gavin. - Agora, se não se importar, voltarei a dormir.

—Não parece estar maturando tão rapidamente como de costume, — insistiu Maeniel.

—O feno ou a política em Roma? — Perguntou Gavin.

Maeniel mordeu o lábio.

—O feno.

Gavin suspirou profundamente, abriu ambos os olhos e contemplou o campo circundante. A terra estava adormecida no quente ouro do sol da tarde, um quadro de beleza tranqüila, bucólica. Havia três prósperos povoados nas saias das montanhas, rodeados de campos de cultivo, com seu verde profundo começando a levar os primeiros toques do vermelho, castanho e ouro do outono. Ladeira acima havia vários rebanhos de cabras, ovelhas e vacas que engordavam nos pastos do verão. Mais à frente, picos coroados de neve flutuavam em uma delicada beleza etérea contra o céu.

—Me parece, - disse Gavin, - que o feno está maturando como sempre, desde que viemos para cá.

—De verdade pensa isso? — Havia esperança na voz de Maeniel.

—Sim. - Respondeu Gavin, enquanto fechava os olhos novamente.

Maeniel agitou a cabeça. - De toda forma, segundo Clotilde vai ser um inverno ruim. Diz que os velos das ovelhas cresceram o dobro que o habitual e...

—Não. - Disse Gavin com firmeza. - Não vou seguir ouvindo. Acontece o mesmo com o feno nessa época todos os anos. E quando maturou, pergunta-se se teremos bastante para todo o inverno. Ou se deveria enviar alguém para comprar mais nas terras baixas e assegurar a sobrevivência dos animais. Depois se preocupará com a madeira. Teremos o bastante? E se houver uma tormenta realmente ruim e a neve for muito profunda para que possamos sair a cortar mais? Então devemos cortar mais lenha agora, fazendo pilhas mais e mais altas até que tenhamos que dormir na neve porque a lenha enche todas as casas. Enquanto isso, você se aventurará na tempestade de neve para visitar cada vaca, cerda, ovelha e cabra com dores de parto. Para sustentá-la até que tenha dado a luz. Se alguém espirrar, você ouve-o em sonhos e vem nos despertar para compadecermos juntos. Sustente a lanterna no alto, Gavin. Use a tocha com todas suas forças, Gavin. Tire, Gavin. Empurre, Gavin. Pegue seus homens e caia sobre esses bandidos, Gavin. Já sei que não estão em minhas terras, mas eu não gosto que façam incursões tão perto, Gavin. Agora se trata do que preocupava romanos mortos e de uma política que nos traz sem cuidado em nossas montanhas. Ao princípio me surpreendi quando Rieulf, velho e doente, colocou seu domínio em suas mãos, mas depois do primeiro inverno compreendi que o velho tinha escolhido sabiamente. Certamente, soube escolher ao homem correto para o trabalho.

Maeniel ouviu docilmente Gavin. Eram velhos amigos. Ouvia-o várias vezes ao ano, quando Gavin se impacientava com ele.

—Eu gostaria de, — Gavin golpeou baixo, — que encontrasse algo com que se preocupar que não fosse o feno, as ovelhas, as cabras, a madeira ou as tormentas de neve. Pelo menos seria uma mudança para mim, te ouvir.

A voz de Gavin foi desvanecendo ao farejar o ar.

—Pão cozido e fresco, - sussurrou o capitão. - Tinha esquecido que é o dia de Matrona assar.

Seu corpo pareceu flutuar fora do banco, como se o atraente aroma puxasse seu nariz. Maeniel pôs uma grande mão sobre o ombro de Gavin e lhe fez sentar novamente.

—Matrona tem muito trabalho nos dias de assar e se torna muito irritável. Recorda-se daquela vez que tive que te resgatar? Ela estava tentando te colocar em um dos fornos. Você fazia força com os pés contra a parede dos lados da porta e gritava tão alto como lhe permitiam os pulmões. Se eu não houvesse...

—Você não teve que me resgatar, — negou Gavin acaloradamente. - O que acontece é que sou um cavalheiro e não queria lhe fazer mal.

—É obvio, — contemporizou Maeniel, — é obvio. Além disso, tem razão... Refiro-me ao assunto das preocupações.

—Vai esquecê-las?

—Não. - Disse Maeniel. - Tenho uma nova.

Ele mostrou uma carta a Gavin, que lhe deu um olhar superficial. Depois, compreendendo a importância, o capitão começou a ler mais devagar.

—Não se trata da política romana, — disse Maeniel, - mas da política franco. A mulher vem recomendada pelo Carlos, o grande Carlo Magno. Mais vale que me case com ela.

—Eu não o faria, — respondeu Gavin lhe devolvendo a carta. - Eu diria ao grande Carlos que fosse fazer voar seus falcões ou caçar saxões ou o que demônios faça um rei. Esqueça o matrimônio; quando chegar alguma prima real, feche as portas, afie sua espada e lhes deseje uma rápida passada pelo vale. Aposto que nunca voltará, a saber, deles.

—Não posso aceitar essa aposta, — disse Maeniel com calma. - Há muito em jogo.

—Não, não há, - insistiu Gavin. - Está em uma fortaleza inexpugnável. Este penhasco nunca caiu ante um ataque, sequer nos tempos dos romanos.

—Mas se Carlos decidir seriamente me tirar daqui, — disse Maeniel, pode fazê-lo. Por que acha que pago tanta prata a sua corte? Todos os anos eu envio um bom presente de ouro e jóias a tempo do Natal. Mantenho os caminhos limpos de ladrões e salteadores, não imponho taxas excessivas aos comerciantes que viajam através do passo e enquanto isso, mantenho os dedos cruzados. Até agora ele havia me deixado tranqüilo, mas acabou. Chegou o momento de pagar e de uma forma que não posso me opor. Ele está me oferecendo à mão de uma mulher da casa real e não me atrevo a negar. A carta diz que é jovem, bela e...

—A carta, - interrompeu Gavin, - nos dá todos os detalhes pertinentes sobre a senhora. Seu nascimento, sua linhagem... Sim, todos menos um. O que tem que errado nela?

—E o que poderia haver?

Gavin contemplou o povoado, com displicência.

—Quem é o otimista agora? Além da mais absoluta pobreza me ocorre umas quantas coisas: promiscuidade, embriaguez, loucura, desonestidade, estupidez, lepra, crueldade, cobiça... Qualquer destes problemas ou todos eles. Além disso, provavelmente resultará ser uma anã que possui somente um dente e ainda por cima meio imbecil.

—Às vezes penso que seu pai cometeu um engano ao te enviar à escola. Estimulou muito sua imaginação, - disse Maeniel.

—Eu sei, — assentiu Gavin. - Disse-lhe que todos os dias até então seriam questão do que se romperia primeiro: seu braço, seu cinto ou minhas costas. Como fosse, você e eu acabamos tentando fugir para procurar nossa fortuna. Bem, encontramos e agora deve se casar com essa... Criatura para conservá-la.

—É um pequeno sacrifício, — respondeu Maeniel.

—Esperemos que seja.

—Se for uma anã, possivelmente tenha uma personalidade agradável. Se estiver louca farei com que dela cuidem. Se for uma bêbada, procurarei que permaneça seca de vez em quando,e se for promíscua a persuadirei de que mantenha a discrição. A crueldade e a cobiça podem refrear. E até a lepra, que Deus me ajude, pode receber tratamento. Nestas alturas, os doentes se recuperam rapidamente ou morrem.

—Isso é verdade, — disse Gavin. - Olhe pelo lado bom, pode ser que ela não sobreviva ao primeiro inverno.

—Ou pode que seja como diz a carta: jovem, gentil e amável. Possivelmente a pobreza seja seu único defeito real.

—Não, — disse o capitão. - Se só tivesse esse problema, nunca a ofereceriam a alguém como você, um esfarrapado mercenário irlandês. Se não fosse por Rieulf, ainda ganharíamos o pão vendendo nossas espadas aqui e lá. Mas você lhe fez um serviço e ele começou a te apreciar. Teve sorte...

—É certo. - Disse Maeniel enquanto contemplava novamente o vale, ainda um pouco preocupado com o feno. - O que opina, Gavin? Crê que deveríamos conseguir um pouco mais de...

Um forte grito chegou da cozinha.

Maeniel se voltou. Gavin já não estava. A tentação do pão recém feito tinha sido muito forte para seu capitão.

No lombo de um cavalo e com espada em mão, Gavin podia ser o terror de todos os bandidos das montanhas, mas quando lutava com Matrona perdia invariavelmente.

Maeniel decidiu ir resgatar lhe. Deixando que o feno e o futuro cuidassem de si mesmos e começou a andar rumo à gritaria na cozinha.

 

                                                    CAPÍTULO 03

Regeane despertou nua na cama, na manhã seguinte. A loba estivera dando voltas pelo quarto até que a lua baixou. Até que os dois ocupantes do quarto contíguo estiveram sumidos em uma ébria letargia e roncando ruidosamente. Então, ela subiu à cama, apoiou o focinho no travesseiro e dormiu. Não recordava ter voltado à forma humana. A cama cheirava o animal, a humana e outro tipo.

Seu velho vestido azul estava ao pé da cama. Embora se pensasse que era azul, milhares de lavadas lhe tinham dado um tom cinza sujo.

Ao vestir-se reparou que o vestido, que alguns meses atrás era muito folgado estava mais tirante sobre seus ombros e seios. Antes só podia usá-lo se sustentasse a barra acima do chão. Agora, mal cobria seus tornozelos.

O vestido, quando novo, possuía amplas franjas de brocado no pescoço e nas mangas. O fio era de ouro, um material que Hugo e Gundabald tinham procurado atentamente entre as posses de sua mãe. Um deles se apropriara dos valiosos fios.

Fora, a luz era brilhante. Devem se sentir seguros, pensou.

Assim parecia. A pesada porta se abriu ao tocá-la.

Gundabald estava sentado à mesa. Seus globos oculares pareciam estar sangrando. Havia rastros de saliva seca em sua cerdosa barba negra, mas ele engolia pão escuro, queijo e vinho azedo com bom apetite.

Hugo estava de joelhos no chão, vomitando em uma vasilha.

A grande fogaça redonda estava no centro da mesa e Regeane arrancou um bom pedaço. O pão era grosso e cheirava a azeite de oliva e cebolas. Os fortes dentes da jovem o partiram. Tinha uma boa dentadura.

Restava pouco do queijo, salvo a casca. Ela a comeu junto com o pão, mordendo os dedos duas vezes no processo.

Havia uma terrina de barro com figos ao lado do pão. Regeane fez o gesto de pegar um e a faca de Gundabald caiu sobre o dorso de sua mão. Fez-se um ruído como o de uma bofetada. Doía.

Ela retrocedeu e afastou a mão. Seus olhos se encontraram com os de Gundabald.

Ele riu entredentes, cuspindo miolos.

A mão de Regeane ainda estava na mesa, perto da terrina. Os dedos eram longos e finos e não se notava que as unhas eram grossas e se estreitavam até formar pontas.

Gundabald golpeou novamente, deixando um sinal sobre os dedos de Regeane. Ela não vacilou e nem afastou a mão. Seu tio adorava ferir as pessoas. Mostrar dor só serviria para animá-lo.

Ele contemplou as marcas vermelhas que tinha deixado a faca, e depois o rosto de Regeane. Parecia frustrado por seu estoicismo.

—Coma um pouco mais de pão. – Ele disse. – Coloque um pouco de carne sobre os ossos. Necessita.

Hugo tinha terminado de vomitar e estava sentando em uma das cadeiras junto à mesa. Sua face estava molhada em suor, mas ele ainda lançou um olhar apreciativo em Regeane.

—Não está tão mal agora, — comentou. - Esse cabelo, esses olhos...

Depois de falar, pegou uma taça de vinho tinto. O primeiro gole o atravessou, lhe fazendo tossir e cuspir no chão, mudando de um lugar a outro, depois a toda pressa.

Gundabald o olhou e depois a Regeane. A verdade é que têm seus pontos bons, ele pensou. Seu cabelo era longo e escuro, quase negro em seu couro cabeludo e pescoço, cobrando logo um matiz de prata e finalmente branco nas pontas. Nunca se enredava. Ele tinha visto como se elevava e voltava para seu lugar quando o vento o alvoroçava.

Seus olhos eram verdadeiramente bonitos, grandes, quentes e escuros... Até que captassem a luz. Então cintilava como o ouro, como a água sob o sol do crepúsculo.

Além daquilo, ela não era grande coisa. Fraca, pálida e descolorida. Gundabald preferia que as mulheres tivessem onde pegar e que chiassem, gemessem e fossem capazes de lhe proporcionar uma boa cavalgada. Não acreditava que Regeane tivesse aquilo... E que Deus ajudasse o homem que despertasse na cama junto a ela, à luz da lua.

Mas apesar de tudo, de dia era quase tão necessitada como qualquer outra mulher e ele devia tomar medidas para protegê-la. A estrela de Carlo Magno estava em ascensão e Regeane era uma propriedade potencialmente valiosa.

Hugo engoliu mais vinho, tentando que seu amotinado estômago não reagisse ante a ofensa. O vinho era de um tipo estranho e fedia. Entre goles, ele roeu um pouco de pão, mas com menos êxito ao comer, que Regeane e Gundabald. Hugo tinha alguns quantos dentes podres.

Devagar e cuidadosamente, Gundabald moveu seu pé para trás, cravando depois pé na virilha de seu despreparado filho.

Hugo não gritou; Regeane duvidou que pudesse fazê-lo. Aferrou-se onde o pai o acertara e revirou os olhos. Sua cadeira caiu para trás e seu crânio golpeou o chão de madeira com um sonoro rangido.

Gundabald colocou o resto de sua comida na boca, suspirou e ficou em pé. Aproximou-se de Hugo e o fez virar, colocando-o de lado para que não se afogasse.

Hugo vomitou generosamente sobre o chão: pão, vinho e depois fragmentos de carne e nabos, que chegaram as tripas ultrajadas, no jantar da noite anterior.

Regeane se levantou horrorizada, com uma mão em seu peito. Sabia que seu tio e seu primo eram violentos, mas aquilo superava a selvageria habitual.

Gundabald soprou depreciativo e depois deixou cair umas moedas de prata ante seu filho caído.

—Busque uma donzela.

Hugo emitiu um som gorgolejante, que de algum modo parecia indicar perplexidade.

—Contrate uma donzela, - explicou Gundabald em voz mais alta. - Uma donzela para sua prima.

Uma anciã entrou no quarto. Era pequena e estava encurvada e retorcida pela enfermidade que Regeane havia observado que espreitava as escuras e estreitas ruas das cidades. Sua face estava marcada de varíola. Tinha o nariz torcido e uma orelha de couve-flor. Alguns cabelos cinza escapavam sob seu véu.

A velha amaldiçoou Hugo por ter sujado o chão. Também amaldiçoou Gundabald, ao parecer pelo crime de existir. Ignorou Regeane. Falava no áspero jargão das ruas romanas, um idioma que Regeane encontrava obsceno e de uma vez fascinante, expressivo e em ocasiões quase formoso, mas que definitivamente já não era latim.

Gundabald não a entendia, mas captou a mensagem.

—Do que me está falando, velha bruxa? —rugiu.

Para surpresa de Regeane, a mulher diminuiu a velocidade de seu discurso, cuspindo uma imaginativa descrição de algum dos prováveis antepassados de Gundabald.

Seu tio deu um passo para a diminuta mulher, com o punho em alto.

Em uma piscada, uma adaga apareceu na mão da anciã. A folha era negra, atacada pelo óxido, mas as bordas estavam muito afiadas e reluziam perversamente.

Gundabald retrocedeu imediatamente.

—Todo mundo está hoje de mau humor, - ele resmungou. Olhou para seu filho no chão e deixou caírem umas quantas moedas mais a seu lado. - Está ouvindo?

Hugo assentiu vigorosamente. Não estava em posição de se defender da ira de seu pai.

—Contratará uma faxineira para Regeane. Pode violar a faxineira se ela lhe permitir isso, mas não pode tocar a sua prima. Sequer colocará a mão sob sua saia ou sobre sua perna. Se lhe puser um dedo em cima, lhe cortarei o que tem no meio das pernas e se voltar a mostrar algum gesto de "afeto" por sua prima, eu o inutilizarei de forma dolorosa e permanente. Compreendeste-me?

Hugo assentiu vigorosamente.

Gundabald se envolveu em um maltratado manto de veludo e andou para a porta.

A anciã estava esfregando o chão. Ao passar junto a ela, Gundabald chutou deliberadamente o cubo de água suja, sujando-o tudo.

A faca da mulher apareceu novamente. Ela descreveu uma perversão sexual que Regeane nem sequer sabia que existisse e a atribuiu ao Gundabald. Ele riu e saiu, fechando de repente a porta.

Hugo começou a gemer e chorar pedindo ajuda. Regeane lhe ignorou e voltou a sentar.

A anciã olhou para Regeane e saiu para voltar com uma salsicha que ofereceu à moça. A loba visitou o Regeane brevemente quando mordeu a salsicha, mas nem sequer os muito agudos sentidos da fera puderam identificar de que tipo de carne se tratava. Por isso podia dizer ela, que possivelmente fosse de um visitante anterior da hospedaria... Que tivesse tentado partir sem pagar a conta. Tomilho, erva-doce e alho preponderavam sobre todos outros aromas, mas ela tinha uma fome voraz. Envolveu aquela coisa mau cheirosa no pão e a engoliu. Ao acabar se sentiu melhor. A anciã seguiu limpando com surpreendente eficiência.

Hugo se levantou e se acomodou em uma cadeira, apoiando-a cabeça nas mãos. Regeane estava terminando o último pedaço de pão. Ele deixou cair às mãos e a olhou.

—Cadela! Comeu tudo.

O queixo de Regeane se elevou. A loba saiu pouco a pouco da escuridão, a cabeça baixa, os lábios retraídos sobre os dentes em um sorriso de raiva assassina. Foi ela e não Regeane que olhou ao Hugo nos olhos. Ele manteve seu olhar alguns segundos e depois se afastou.

Entre uma coisa e outra, Gundabald tinha deixado cair uma boa quantidade de prata sobre o Hugo. Este recolheu rapidamente as moedas de suas roupas e do chão, ficou em pé e saiu evitando à velha.

A mulher murmurou várias obscenidades ao fechar a porta e depois riu entredentes, dizendo algo mais no dialeto local.

—Não faça isso, — disse Regeane. — Eu sei falar romano... — Ela interrompeu, não sabendo como chamar o jargão local.

A anciã soltou outro risinho.

—Não me preocupa o que saiba. Ele te tem medo. Não posso dizer por que, mas te teme. O diabo velho não precisa tomar tantas precauções, esse pequeno poça de vômito não se atreveria a te colocar as mãos em cima.

—Gundabald gosta de golpear às pessoas, — explicou Regeane torpemente.

A anciã cabeceou assentindo, como se aquilo fosse um fato de conhecimento geral.

—Espero que volte a tentar comigo. Fatiarei a mão que me tocar.

—Tem um pouco de água? — Perguntou Regeane em tom vacilante. - Tenho muita sede, e o vinho...

— É Urina de porco. - Acabou a mulher por ela.

A anciã deixou cair o trapo e saiu novamente. Voltou tempo depois, com uma grande tigela de barro cheio de água.

—No geral, eu te diria que não tocasse a água de Roma... Até o pior vinho que vendem nos botequins é mais seguro, mas ontem à noite choveu muito e a chuva esvaziou e limpou a cisterna.

Quando os lábios de Regeane tocaram a água, ela e a loba beberam. Estava fria, e tinha um fraco aroma de barro e de céu invernal: gélido, cinza e carregado de chuva ou névoa que enchiam os terrenos baixos entre as colinas antes da saída do sol, levando um gelado rocio, o bastante espesso para molhar as roupas dos mais madrugadores nas manhãs de inverno. Em alguma parte na cúpula de uma montanha, a alta erva formava redemoinhos, dançando e se inclinando sob os ventos da tormenta, enquanto no alto nuvens cinzas transparentes passavam ante o sol.

Ao esvaziar a tigela, Regeane fechou os olhos. Ela e a loba se comunifacem na escuridão de sua alma. A loba grunhiu. Estava pronta para dizer a Regeane o quanto odiava Hugo, Gundabald e a vida que estava levando. Estava disposta a lutar, fugir da armadilha em que se encontrava. A morte era melhor que o mundo em que viviam.

Regeane sentiu, pela primeira vez de dia, o fraco deslocamento gasto pela loba quando se aproximava à luz da lua. A jovem se atirou para trás, aterrorizada. Temia as conseqüências da rebelião. Não queria saber quanto odiava Gundabald, quão profundamente o temia. Apesar de vis que eram seus parentes, aferrava-se a eles: eram melhores que qualquer alternativa.

Os castigos impostos às bruxas a adoeciam e lhe faziam sentir pânico. Sua mãe lhe tinha sussurrado historia das agonias finais daquelas mulheres condenadas por praticar artes antinaturais. Eram colocadas nuas em um barril cravejado por dentro, que se fazia girar até que os gritos terminavam. O fogo e a estaca. Metidas em um saco com um rato, um cão e uma serpente e jogadas no rio. Para enfrentar o que eles consideravam malvado, os homens ideavam castigos piores que os inventados pelos demônios para torturar os condenados ao inferno.

—Não, não. - Disse Regeane à loba. - Dá muito medo. Não posso. Parta. Parta, por favor.

A loba olhou solene para Regeane e depois fez um suave som de pesar e desapareceu na escuridão.

—O que acontece? — Perguntou à anciã. - Está doente?

—Não. - Disse Regeane. - Só cansada. Obrigado.

Regeane entrou em seu quarto e trancou a porta. A estreita cela de pedra estava gelada, mas brilhantemente iluminada pelo sol nas paredes. Regeane se tombou na cama, envolveu-se com a manta e dormiu.

Hugo contratou à faxineira e a levou a seu quarto nas primeiras horas da madrugada.

Regeane despertou pela comoção.

Gundabald tinha ficado acordado até tarde. Estava atendendo a um convidado. Se era moço ou uma mulher, Regeane não podia saber. Poderia ter chamado à loba, nada enganava seu olfato, mas a loba era virgem e bastante empecilho: Regeane não poderia enfrentar a sua desaprovação e claro desgosto. A criatura noturna considerava que os humanos prestavam muita atenção ao sexo e que sua companheira humana mostrava uma curiosidade lasciva.

O ar que passava sob a porta fedia a sexo. Regeane dormiu ouvindo grunhidos e gemidos de paixão.

Não foi o ruído que a despertou, mas o aroma. A loba estava presente. Algo, não, não algo, uma serpente estava caçando entre as trepadeiras perto de sua janela. Se o aroma do réptil perturbava a loba, fazia emudecer a mulher. Regeane ficou em pé no quarto às escuras.

Bastou aquele ruído para assustar à esbelta predadora entre as trepadeiras. O aroma se debilitou. Regeane ouviu um golpe e um assobio debaixo de sua janela quando a intrusa se foi.

Hugo entrou ruidosamente no quarto contíguo.

Alguém chiou.

—Sodomita! — Gritou Hugo.

Evidentemente, o visitante era um moço.

Seguiu o som de alguém correndo e o rugido de Gundabald.

—Deus o condene! Agora, olhe o que fez: esse pequeno enculado levou minha bolsa.

O ruído de um golpe.

Hugo uivou.

Seguiu um chiado feminino e depois quatro gritos em rápida sucessão.

Bum. Bum. Bum. Bum.

Regeane abriu a boca e retrocedeu afastando-se da porta. Reconhecia aquele som. O caseiro estava golpeando o teto no piso de abaixo.

Uma descarga de maldições seguiu os golpes, junto com ameaças de lhes jogarem na rua naquele momento se os gritos não cessassem.

As vozes na outro quarto se tornaram mais baixas.

Hugo amaldiçoou Gundabald. Gundabald amaldiçoou ao Hugo. A moça soluçou.

—Feche a boca, cone estúpido. - Sussurrou Gundabald com dureza. - Te retorcerei o outro seio se não deixar de armação. Acenda uma luz, maldita. Isto está mais negro que o traseiro de uma toupeira.

Regeane ouviu o estalo de pederneira e aço e depois a pergunta de seu tio.

—Deus misericordioso, o que é isto?

—A faxineira de Regeane. - Respondeu Hugo. - A encontrei em um botequim.

—Em que parte do botequim: o esgoto ou a latrina? Faz com que uma cabra pareça bonita.

Regeane não gostava concordar com Gundabald, mas teve que lhe dar a razão quando conheceu a moça na manhã seguinte.

Chamava Silve. Era patizamba, fraca, trincada, estrábica e de tez amarelada, o que tivesse podido suportar se tivesse sido além de inteligente, amável ou pelo menos trabalhadora e voluntariosa. Mas não era nada daquilo. Quando não estava dormindo em seu quarto ou sendo violenta e ruidosamente montada por Hugo, unia-se a este para atormentar Regeane.

Como tinha feito sua mãe, Regeane tentava levar certa medida de ordem em sua vida. Assumia as ocupações da qual Gisela se ocupara no passado. Fazia todo o possível para estirar o pouco dinheiro que tinham. Cozinhava singelas comidas para os quatro, fiscalizava a lavagem quando podia persuadir Gundabald para que pagasse uma lavadeira e ajudava à anciã. Regeane nunca soube seu nome e sempre pensava nela como "a anciã". A que limpava o que sujavam os outros três.

A velha mulher era a única que podia tirar um pouco de trabalho de Silve: acusava-a de tão vis obscenidades que a criada, muito assustada para atacá-la, descarregava sua raiva esfregando e lavando com todas suas forças.

Em seu tempo livre, Regeane se retirava para seu estreito quarto e com dedos frios e intumescidos, tentava pôr em ordem seu escasso guarda-roupa. Não tinha nenhuma agulha de costura decente. As poucas que tinha eram feitas de osso e suas pontas se embotavam rapidamente. Tampouco tinha fio, por isso desfazia trapos para conseguir algo com que arrumar seus vestidos.

Sua mãe havia sido enterrada com um bom vestido e um manto. Regeane se assegurara disso, embora Gundabald e Hugo a amaldiçoaram por ser uma néscia, dizendo que Gisela não ia necessitar de roupa quente aonde ia, só um lençol flutuante. O que restava de seu guarda-roupa e o de sua mãe estava gasto além do acreditável.

Regeane aceitava a situação. A maioria das mulheres possuíam o mesmo problema. O tecido era caro. Com um tear, poderia tecê-la ela mesma, mas os teares eram objetos grandes e caros e poucas famílias tinham acesso a um, por isso as mulheres passavam freqüentemente seu tempo remendando a pouca roupa que tinham, tentando cobrir decentemente sua nudez.

À medida que o outono ia avançando devagar para o inverno, o desespero de Regeane se tornava mais profundo. A hospedaria era parte de uma velha ruína e sequer o proprietário tinha idéia do propósito que tinha tido antigamente. O gelado vento invernal soluçava e gemia dia e noite através dos quartos de pedra. Um braseiro de carvão esquentava o ar somente umas quantas polegadas ao redor das brasas. As paredes e chãos permaneciam amargamente frios ao tato.

Gundabald e Hugo estavam mais que contentes em comer a comida que preparava Regeane, embora a desdenhassem como tosca comida de camponês. Pulverizavam os ossos sob a mesa e cuspiam as cartilagens no chão. Quando urinavam, saíam do recipiente e deixavam pestilentos poças amarelos por toda parte. Depois de comer, Gundabald saía para algum botequim em busca de entretenimento.

Hugo e Silve se deitavam, exercitando a cavalgada sob as mantas. Fodiam cegamente, bebendo até ficar incapacitados e sumidos em uma vírgula ébria.

Gundabald estava acostumado a voltar de madrugada e dependendo de sua sorte, com a caixa de jogo de dados, os moços ou as mulheres podia ou não despertar Silve e Hugo e lhes caçar pelo quarto, açoitando seus corpos nus com seu cinto de couro. A fúria do caseiro acabava normalmente com estas funções, depois que todos se retiravam.

Pela manhã, alguém despertava, normalmente Silve, no geral expulsa de uma cama quente e abria a porta de Regeane para que pudesse sair e limpar todo o desastre.

Para arrumar os problemas de Regeane, chegou à chuva.

À loba adorava. Os ventos que sopravam através da cidade faziam desaparecer o mau cheiro humano. A água limpa encheu o leito do Tibre, esvaziando-o dos sedimentos que flutuavam nele. O aguaceiro limpava paralelepípedos e paredes. Brevemente, no aquoso sol invernal, a cidade se converteria em um lugar de luz e cor. O mármore brilhava e as paredes de estuque alaranjado estavam radiantes. Largas plantas de valeriana vermelha cresciam sobre o ladrilhado e os ruidosos frontones ondeavam estandartes vermelhos e rosas contra o nublado céu cinza.

Os romanos amavam as flores. Suportes de vasos e terrinas em balcões e janelas flamejavam com a tardia sálvia, dourada mil enrama, a poeirenta e fragrante camomila branca e as amarelas margaridas do outono.

Alguns poucos vendedores de lírios, lavanda e rosas tardias se amontoavam nos mercados e praças da cidade. Normalmente, os vendedores se agrupavam ao redor de fogos ou braseiros de carvão de lenha para esquentar as mãos, as flores cobrando um aspecto incongruente contra os frios paralelepípedos negros e cinzas, suas pétalas submetidas à ação do vento gelado.

Em dias como aqueles Regeane conseguia arrastar Hugo e Silve para fora, para visitar Igrejas. Na realidade, Regeane odiava as Igrejas; tinha muito boas razões para isso. Primeiro, porque depois da morte de sua mãe e o fracasso da bênção papal, acreditava que Deus a tinha abandonado. E segundo, porque podia ver fantasmas.

Aquelas visões não eram freqüentes, mas sempre resultavam perturbadoras. Pelo geral, as materializações ocorriam perto das Igrejas. Não dentro delas, mas perto da porta quando Regeane estava entrando ou saindo.

À loba não importavam. A fera era a mais lógica das criaturas: depois de tudo, o que podiam fazer os vivos pelos mortos? Para a mulher, os mortos eram uma fonte de dor.

O pior tinha sido um cadáver de mulher de rosto escurecido, que levava ricas roupas de veludo e brocado, mas que estavam caindo aos pedaços e fediam a umidade, tecidos podres e decadência. Seguia Regeane, soluçando e retorcendo uma das mãos que parecia ser de carne a princípio, para se converter depois em garras ósseas. Os soluços e gemidos procediam de uma face que oscilava, como faziam as mãos, entre alguns formosos e pálidos traços aristocráticos, mas com buracos onde eram os olhos e a forma brumosa de um crânio nu.

O fantasma aterrorizou a jovem durante três dias e só partiu quando Gisela, ante as repetidas petições de sua filha deixou o santuário que estavam visitando. Regeane tinha então dezesseis anos. Tentou determinar a fonte do pesar da sombra, mas suas roupas podres e o horror da face sem olhos lhe inspiravam um pânico insuperável. Além disso, tanto ela como sua proeminente tumba na igreja estavam envoltas em certa sensação de maldade. Seus gritos não eram de aflição e arrependimento, mas sim de ultraje ante uma bem merecida condenação... Um destino ao qual não queria enfrentar sozinha.

Os outros encontros de Regeane tinham sido breves e menos aterradores, mas não podia recordar nenhum deles sem um arrepio de repulsa. Tinha aprendido a tomar cuidado com Igrejas.

Aquele dia começou com algo um pouco parecido à felicidade. Regeane tinha conseguido convencer Gundabald para que lhe desse algumas moedas. Não muito, mas o bastante para comprar uma galinha para um guisado, um pouco de erva-doce, estragão, chirivías e um molho anônimo de verduras. A velha contribuiu com alho e uma cebola bastante murcha. Regeane colocou tudo junto em uma panela para cozinhar devagar sobre um fogo baixo.

A manhã tinha sido brumosa, mas perto do meio-dia esclareceu o tempo. O sol saiu e o ar era aprazível, quase caloroso. A anciã serviu terrinas de guisado para Regeane, Hugo, Silve e ela mesma. Afinal havia contribuído com a cebola e merecia uma ração. Por sua vez, Silve e Hugo não estava de ressaca para comer. Todos mastigaram a saborosa carne de ave, comeram as chirivías e molharam seu duro pão cinzento e marrom no caldo.

Quando todos se saciaram, Regeane, Silve e Hugo saíram para visitar Igrejas. A anciã ficou para trás, colocou o guisado restante em um prato coberto para o Gundabald e seguiu com sua limpeza.

A igreja escolhida por Regeane era uma muito antiga, que supostamente se remontava ao tempo dos apóstolos. Alguns poucos degraus desciam até a porta. A igreja se encontrava no átrio entre as magníficas salas de recepção de uma antiga vila romana. O edifício era tão velho que as paredes afundavam três pés sob o nível da rua.

Do outro lado da porta, o telhado estava aberto ao céu. Sob a abertura no telhado havia um pequeno lago. Alguns canos verdes e alguns lírios purpúreos floresciam ainda sob a pálida luz.

Regeane se ajoelhou. O solo a estava coberto por uma fina camada de palha limpa e ela o considerou como um favor para seus joelhos. Fora do pequeno e antigo átrio, a vila se ampliava até formar uma larga estadia com colunas de cada lado. Altas e esbeltas colunas coríntias de cor branca guiavam o olhar para o santuário.

As folhas de acanto no alto conservavam ainda alguns restos de pintura verde. As paredes e o telhado estavam cobertos por completo, de estuque branco. Aqui e lá, um pedaço de gesso desprendido deixava ver um rastro de cor. Regeane sabia que o gesso estava para cobrir as pinturas do afresco, muito explícitas ou pagãs para a nascente igreja.

O altar era de acordo com o costume da época. Uma singela mesa quadrada de mármore branco e sem adornos. Quatro pequenas colunas de puro mármore branco e gentil sustentavam um singelo pálio de seda azul sobre o altar.

Um abajur ardia perto de uma pilha de água benta, avisando o visitante de que a presença em forma de hóstia consagrada estava perto.

Regeane sabia que o lugar devia ter sido sempre sagrado. Muito tempo atrás, quando Roma era uma pequena aldeia junto ao Tibre, uma família vivia ali. O varão mais velho da família, junto com as mulheres, as crianças e inclusive os escravos, se apresentava ante o altar para fazer sacrifícios aos férteis espíritos da terra e do céu. E também para cuidar de seus próprios mortos, a maioria dos quais estavam enterrados nos campos e hortas que rodeavam a vila.

Honravam todas aquelas coisas sem as quais ninguém podia viver. Coisas ainda presentes ali: a terra, o ar, o fogo e a água. O pão da consagração saia do florescente campo de trigo. O vinho, do frio vivificante das montanhas. As videiras se sujeitam a terra com raízes como garras que se aferravam aos pronunciados pendentes onde nada mais cresceria. As uvas vermelhas e brancas maturavam enquanto o sol esquentava seus corações e as frescas brisas acariciam suas peles. O fogo que ardia perto do altar recordava o lar atendido pela mulher e a água da pilha comemorava a fonte de toda vida.

Ao redor do pequeno átrio, a cidade cresceu. A riqueza da família aumentou. A vila foi ampliada, mas o antigo e sagrado coração da casa se conservou.

Onde agora estava o altar, o dono da vila devia ter sentado para receber seus protegidos e arrendatários. Seus arrendatários teriam se ajoelhado ante ele, lhe entregando o dinheiro devido por rendas e cotas. Seus protegidos teriam beijado suas mãos, lhe solicitando favores. Em troca, seguiam-lhe através das ruas, como fanfarrões, acrescentando sua importância ante os olhos da chusma romana, preparados para intimidar a qualquer um de seus inimigos.                                                                     Passou o tempo. A família minguou. Seu poder murchou. Mais e mais partes da vila foram vendidas, até que só restaram aquelas habitações. Quando se fez cristã, a grande família se misturou com a família do homem. Mas o pequeno átrio era sagrado e sempre seria.

Regeane saudou Cristo, mas não como a um amigo. Não pensava que Ele fosse jamais seu amigo. Mas apesar de tudo, mostrava-lhe o devido respeito devido e não procurava Sua inimizade.

Quando ficou em pé, notou que Silve estava sozinha junto à porta.

—Onde está Hugo?

—Foi embora, - respondeu a criada ressentidamente. - Provavelmente estará em alguma botequim, com a mão colocada sob a saia da garçonete. Quer que vá lhe buscar?

—Não. - Disse Regeane brevemente. Enviar Silve em busca de Hugo? Em algumas horas os dois estariam dormindo no solo de um botequim.

Ela notou um banco ao longo da parede no fundo da igreja, sem dúvida disposto antigamente para os visitantes e peticionários da vila. Parecia um lugar perfeito para ficarem cômodas. Ela e Silve caminharam até ali e se sentaram.

A igreja era um lugar tranqüilo. O presente observava o passado sem inimizade. O ar era fresco, mas sem a mordida do vento de fora. O sol pintalgado brilhava ao redor do altar de mármore branco e através da abertura no telhado sobre o lago do átrio.

Regeane pôde ver, quando seus olhos se acostumaram a semi-escuridão, que sob a palha da igreja havia um suntuoso piso de mosaico adornado com um patrão de brilhantes floress primaveris.

Silve tirou um jarro de sua túnica, tirou a cortiça com os dentes e deu um longo trago. Depois o ofereceu a Regeane.

Ela o rechaçou. Silve e Hugo preferia os botequins onde se adulterava o vinho com substâncias ideadas para aumentar sua potência. O cliente ocasional desses estabelecimentos podia enlouquecer para sempre ou morrer depois de uma forte sessão de bebida. Regeane não desejava engrossar seu número.

Os olhos de Silve ficaram logo frágeis quando o vinho começou a fazer efeito. Questionou a linhagem de Hugo e depois se colocou a rir.

—Terá que vender seu traseiro no botequim para conseguir bebida. - Disse a criada. - Eu tenho o dinheiro. Oh, olhe!

Silve estava assinalando o lago do átrio. Regeane olhou e pôde captar um movimento na água.

—É uma carpa. - Disse Silve, começando a tirar o véu. - Vejamos se podemos apanhá-la. Eu sustentarei o véu e você a levará para ele. Será um jantar estupendo.

Ela fez um gesto de incorporar, mas Regeane lhe pegou pelo braço.

—Não estou segura de que seja um peixe, - disse.

A coisa no lago elevou sua cabeça sobre a água. Era uma serpente.

Silve fez um ruído que recordou a Regeane, um eixo sem engraxar. Depois saiu em disparada, correndo em direção ao altar, onde não havia nenhuma saída. Apoiou-se contra uma das colunas e utilizou o jarro para restaurar seus ânimos.

A serpente saiu facilmente do lago para o solo coberto de palha e deslizou para Regeane. A mulher estava assustada, mas a loba permanecia indiferente, inclusive majestosa. Sabia que a serpente não era venenosa, que sequer estava irritada, que só sentia curiosidade.

Regeane decidiu não mostrar medo diante de Silve. Ela era, depois de tudo, a filha de Wolfstan o príncipe saxão, chamado por seus homens de Talismã e de Gisela, parente de sangue do Carlos Martel, o Martillo de Deus. Não seria envergonhada pela criatura ante ela.

A coisa não se movia muito rapidamente, o que lhe permitiu preparar para sua chegada. Deu-se conta, ao examiná-la mais atentamente, de que a serpente não era feia. As escamas criavam um elegante mosaico similar às cores da água que cintilavam à luz do sol: branco, azul e verde. Formavam um padrão pelo corpo da serpente, com franjas mais escuras ade cada lado.

A loba a olhou com uma apreciativa inclinação de cabeça ante tão boa camuflagem: devia resultar quase invisível nadar sob o sol no lamsotaque Tibre.

A serpente chegou à saia de Regeane e investigou com um breve movimento de sua língua bífida. A loba se mantinha distante, mas a mulher estendeu a mão como se estivesse na corte.

A cabeça da serpente se elevou. Regeane sentiu a vacilante e tímida carícia de sua língua nas pontas dos dedos. O animal deu uma surpreendente volta em redondo e retornou rapidamente à água.

—Aah! Aaah! Aaaaah! Rendeu-te comemoração. - disse Silve.

—Não, demônios. - Respondeu Regeane. - Simplesmente decidiu que sou muito grande para me comer. Agora, cale-se. Se houver algum encarregado ou sacerdote, fará com que venha para ver o que acontecesse.

Silve guardou silêncio, provavelmente porque não podia gritar enquanto terminava o conteúdo do jarro.

Regeane ficou em pé e caminhou para o lago. Olhou como a serpente, com o ar de alguém que sabe aonde vai, nadava para o encanamento de deságüe que provavelmente se comunicava com o rio. Ao entrar, viu a mulher.

Havia um pequeno banco de mármore perto do lago e ela estava sentada ali, contemplando tranqüilamente a água imóvel. Um menino pequeno se sentava em seu colo: dormia com a cabeça apoiada no peito de sua mãe.

Durante um segundo, Regeane se perguntou quando havia entrado. Depois compreendeu que a mulher não podia ter entrado sem que elas se dessem conta, e que podia ver a parede da igreja através de seu corpo. Entendeu o que estava olhando. A loba bocejou, aborrecida.

Regeane sentiu um pouco de inveja. A expressão do espírito era serena e estava cheia de amor e paz.

O céu brilhava sobre a abertura do telhado. Regeane olhou para cima. Quando voltou a olhar o banco, a mulher havia ido embora. Sim, ela pensou, este lugar sempre foi sagrado.

Silve se lamentou. Soava como um cão de caça desventurado.

—Oh, pelo amor de Cristo! O que te acontece agora? — Gritou Regeane. - A serpente se foi.

—Estava olhando alguém no banco. Não podia haver ninguém no banco. Mas eu vi algo ali... —Novamente o ruído de eixo sem engordurar.

Regeane já tinha tido o bastante.

—Silêncio!

A acústica do edifício era excelente. A voz de Regeane reverberou sonoramente sob o telhado. Silve fez um ruído de soprar e se calou.

Regeane avançou pela colunata até chegar a Silve e a pegou pela orelha, levando-a para a porta.

—Hugo diz... — Queixou-se a criada.

—Deveria refletir um pouco sobre o fato de que Hugo e você bebam nos mesmos botequins. - Lhe cortou Regeane.

Cruzaram a porta e subiram por curto lance de degraus para sair à praça. Regeane olhou para cima. O céu se tornou ainda mais escuro que quando entraram na igreja. Uma fina chuva lhe salpicou a face. Silve choramingava. Regeane soltou sua orelha.

—Vou morrer, - soluçou a criada. - O frio e a umidade vão matar-me. Não te importará se eu morrer. Não se importa com nada. Sinto no pequeno quarto, tua com a face estirada, nos julgando. Vou ficar enfeeermaaa. Meus pulmões se encherão de pus pestilento e quando tossir, eu tossirei sangueeeee! Não poderei andar nem subir escadas. Terei diarréia. Morrerei!

Se houvesse alguém na Terra mais repugnante que Silve, pensou Regeane, seria Silve tossindo sangue e emprestando seu pequeno urinol por causa da diarréia. A propósito ou não, a criada seria a única que abriria sua bolsa. Regeane pescou rapidamente uma moeda de cobre do bolso de couro unido a seu cinto e a deu.

—Deus, Cristo! No nome de Sua Santa Mãe e de todos os Santos, vá e compre algo mais que vinho.

Silve emitiu um borbulhante som de alegria, ergueu-se de um salto e correu para um botequim perto da esquina. Regeane ficou perto da igreja.

O céu se tornou mais escuro e Regeane sentiu que alguém a observava. Aquilo não a surpreendeu. Os romanos, sobretudo os homens romanos, olhavam-na toda. As mulheres eram brancas importantes e as mulheres jovens estavam no alto de sua lista. Despi-las com o olhar era uma de suas atividades favoritas. Neste caso, o espião tem um bom trabalho por diante, pensou Regeane ironicamente. Ela usava largas meias de linho e os seios bem cobertos por bandagem: sua mãe sempre tinha insistido nisso, com sérias advertências de que, do contrário, mais adiante eles ficariam flácidos. Uma larga muda de linho sem mangas e outra com mangas até a mão. Um vestido com mangas largas até o cotovelo. Um manto escuro de lã ao redor de sua cabeça e corpo e um véu que por sua vez ocultava a maior parte de seu rosto.

Seus olhos percorreram o lugar em busca de quem estava olhando-a, mas não encontrou ninguém. A chuva aumentou um pouco. A única outra pessoa à vista era um mendigo: um feio monte de trapos que dormia em um alpendre próximo.

Ainda podia sentir o olhar cravado nela. Estou imaginando coisas, pensou a mulher e a loba se mostrou em desacordo. Ela não usava palavras, mas sabia como dizer "não". Seus cabelos se arrepiaram. Regeane se sentiu como se o frio provocado pela chuva corresse ao longo de sua coluna.

O olhar era maligno, gelado e de alguma forma não... Vivo.

Regeane ajustou o manto sobre a face e se apressou na direção que tinha tomado Silve. Encontrou à faxineira sentada em um poça de barro perto de um botequim. Estava amaldiçoando. Em uma mão sustentava um grande jarro de argila e na outra seus calções e seu sustento. Suas meias estavam baixadas até os tornozelos.

—Refresque o traseiro aí, zorra. - Gritou o taberneiro.

—Bicha! Chuparolas. - Respondeu Silve. - O que te faz pensar que o esquentaste?

Regeane pegou Silve pelo braço. O taberneiro parecia estar procurando uma arma. Ela empurrou à criada rua abaixo, até encontrar um beco vazio onde montou guarda enquanto Silve voltava a colocar sua roupa interior.

—O que aconteceu - Perguntou enquanto olhava a rua vazia.

—Eu lhe dei a moeda, - explicou Silve, - e ele me disse que em troca de algum extra me venderia algo especial: vinho com xarope de ópio e cicuta.

Regeane ficou horrorizada. Tinha uma boa educação e sabia como tinha morrido Sócrates.

—Cicuta?

—É muito boa. - Disse Silve enquanto levantava o vestido sobre a cabeça para ajustar a sustentação. - Faz-te sentir uma tonteira muito agradável.

—Certo. - Respondeu Regeane. E se sentir tonteira o suficiente, morre.

—Então entramos na latrina. Fizemos no chão e quando terminou, ele tentou que eu lhe devolvesse o vinho. - A voz de Silve era um grito de puro ultraje.

—E então?

—Eu atirei um montão de merda pela cabeça do bastardo.

—Ah! - Disse Regeane.

Silve lavou as mãos em uma poça de chuva e bebeu um pouco de vinho. Depois o ofereceu a Regeane.

— Não. - Disse a jovem. - E agora?

Nenhuma delas queria voltar para a hospedaria. Silve sabia que se Gundabald havia retornado e estivesse de mau humor a pegaria. Igual a Hugo, como dizia ela, que tivera que se vender a um sodomita para poder pagar a bebida.

Naquele momento, ninguém colocaria uma mão sobre Regeane. Hugo nunca faria, e Gundabald não quereria arriscar a desfigurá-la, mas a jovem suspeitava que receberia muitas surras se não fosse tão fácil vendê-la como esperava seu tio. Só era uma trégua temporária. Não, ninguém lhe pegaria, mas seria encerrada e enviada à cama sem jantar: Gundabald se zangaria com ela por não ter retornado quando Hugo partiu.

O ar estava embaciado pela chuva. Ela podia vê-lo na luz da tarde sobre as janelas superiores das casas. Sentiu novamente o olhar, mais próximo agora. Examinou a rua. As janelas estavam bem fechadas. Não havia nenhuma porta, só paredes lisas construídas com os estreitos tijolos de terracota que usavam os romanos. Adiante, a rua se curvava na brumosa distância.

—Vamos tentar encontrar a um vendedor de pão, - propôs Silve. - Tem mais dinheiro?

—Algumas moedas de cobre, - respondeu Regeane. Ela e Silve adoravam os pães planos que os romanos faziam, cheios com azeitonas, cebolas, alho e saborosos pedaços de carne de porco. O estômago de Regeane estava queixando.

Vagaram juntas em busca de um vendedor de pão. Acabaram por encontrar um e se perderam pelas estreitas e retorcidas ruelas, perto do Coliseu em ruínas. Regeane viu os altos ciprestes que percorriam a Via Apia e empreendeu a marcha pelo mais famoso de todos os caminhos a Roma.

Estava contemplando a cidade, coberta por baixas nuvens de chuva. Farrapos de névoa se estendiam como cortinas de gaze entre a terra e o céu. A tarde estava avançando para a noite e o vento se tornava cada vez mais frio.

—Vamos parar aqui para acabar de comer os pães, - disse Silve. Comeram um, cada uma ao comprá-los e restaram outros dois.

—Não há nenhum lugar onde sentar. - Objetou Regeane.

—Não seja tola. Se levarmos o pão a casa, Gundabald e Hugo o comerão. - Silve assinalou uma tumba em ruínas caminho abaixo. - Podemos entrar ali.

Na plenitude da ordem e o poder romanos, alguém havia enterrado ali seus mortos. Todas as tumbas tinham sido profanadas e saqueadas muito tempo atrás.

Aquela em particular devia ter pertencido a um grande homem, mas agora a estrutura estava vazia. O sarcófago descansava à beira do caminho. Os pastores que levavam a seus rebanhos ao mercado o usavam como abrevadero.

A tumba deveria ter sido uma casa pequena com coberto inclinado, mas uma parede estava rota e o lado ficava exposto aos elementos. De toda forma, o telhado saliente e a plataforma baixa sobre a qual uma vez estivera o sarcófago criavam um espaço seco onde poderiam sentar, vigiar o caminho e terminar pão.

Regeane estava esfomeada. Sentiu um moderado desespero enquanto devorava a comida. Poderia comer alguns pães mais. Silve bebeu vinho até ficar farta e com os olhos frágeis, começou a sentir coceira e se arranhar por toda parte.

Regeane terminou o pão, lambeu os dedos gordurentos e se perguntou se haveria bastante comida no mundo. Entendia por que Silve e Hugo bebia aquela nociva mistura de vinho e drogas. Assim acalmavam as pontadas de fome. Sentiu tentada pelo que restara no jarro de Silve, mas resistiu resolutamente. Aquilo era veneno e cedo ou tarde, provavelmente cedo, os mataria.

Silve continuava se coçando.

—Silve. - Estalou Regeane. - Tem insetos te picando?

—Não. - Respondeu a criada. - É a massa de papoula do vinho. Às vezes me deixa assim.

Regeane olhou ao redor, intranqüila. O céu parecia ter se tornado mais escuro ainda.

—Merda. - Disse Silve em tom espesso. - Vai chover toda a noite. Seria uma boa idéia encontrar um botequim quente e abrir as pernas no quarto de trás. Vamos! Venham todos! Um cobre por cabeça! Pelo menos poderei dormir a metade da noite. O taberneiro vai querer sua parte de meus lucros, mas me dará muito vinho e eu não terei que agüentar a esse maldito Hugo até suar toda a bebida. Esse bastardo pode juntar quando está bêbado, mas o pequeno chupa rolas não se baixa.

—Por que não lhe deixa, então? — Perguntou Regeane.

Silve deixou fugir uma gargalhada.

—Porque dos dois botequins mais próximos, devo dinheiro ao dono do primeiro. E a garçonete da segunda me disse que se eu lhe tirava parte de seu negócio noturno me quebraria a cara.

—Nada bom. - Disse Regeane em tom apiedado.

—Pois, então, - disse Silve.

A Via Apia brilhava a fraca luz como uma estreita cinta negra. Enquanto Regeane olhava, luzes apareceram nas janelas das granjas ao passar pelo caminho.

—Temos que ir. - Disse Regeane com certo alarme na voz. - Não é seguro ficar aqui de noite. Tal como estão às coisas, me encerrarão e lhe darão uma surra.

—Não. - Gemeu Silve. - Aqui está seco e quente. Quero ficar.

Regeane voltou a sentir que alguém a observava. Olhou para Silve e viu uma vespa que se arrastava sobre sua face. O inseto era negro, de um iridescente azul-negro. Brilhava como um escuro arco-íris. Olhou mais de perto e viu que todo o lado direito do corpo de Silve estava coberto de vespas. Escuras antenas tremiam em suas cabeças; suas sensíveis patas exploravam. Seus bulbosos abdomens, armados com cruéis aguilhões, amontoavam sobre a pele da faxineira.

Regeane estendeu a mão, segurando o vestido de Silve pelo ombro e a arrastou fora da tumba. Silve viu as vespas, gritou e começou a agitar os braços, golpeando-as com as mãos.

Para a momentânea surpresa de Regeane, as vespas não picaram Silve. Retiraram-se e ficaram flutuando perto da entrada da tumba como uma maligna nuvem negra. Silve ainda meio bêbada, cambaleou. Procurava possíveis picadas em sua face e corpo.

Regeane olhou para a Via Apia e viu o que se aproximava.

—Não. – Sussurrou e logo lançou um grito. - Corra, Silve! Corra!

—Que corra? —Silve olhou a seu redor. - Para onde?

A coisa estava se aproximando mais e mais rápido, movendo-se como as primeiras pedras de uma avalanche e direta para Regeane. Balbuciava com mil vozes, numa espécie de loucura e agonia. Cheirava tecido, madeira, osso e a carne ardente. E depois, ao aproximar, a decomposição e a morte.

Regeane podia ouvir sua voz, uivando e lhe gritando.

—Onde está? Você a viu. Pode me levar até ela.

Então estava a seu redor e a angústia na voz era quase insuportável.

—Disseram que eu a matei... A ela e ao menino. Eu nunca... Nunca... — Gemeu a coisa.

Regeane jogou o manto sobre a face, tentando fugir da nuvem fétida que rodeava a aparição. Encontrou-se sozinha na escuridão com ela. Sua existência transbordava dor.

—Não podia alimentá-los. - A desolação na voz era de dor, envolvida pelo círculo da eternidade. - Não podia suportar ver suas faces enquanto morriam de fome. - Um pesar tão cruel que parecia afogar o mundo inteiro na dor. - Eu estava louco de dor.

—Não! - Se ouviu gritar Regeane. - Estava louco de orgulho. – Ela recordou à mulher e o menino na igreja. - Eles queriam viver. – Ela gritou à coisa condenada e imperdoável a seu redor. - Queriam viver! Você os matou e pagou por isso.

O ar a redor dela fedia a putrefação.

—Penduraram-me nas correntes!

Regeane viu e sentiu o cheiro. O corpo putrefato oscilando no patíbulo. Só uma perna, ossos e farrapos de carne, dançando quase como se estivesse vivo no vento noturno. Caindo e espalhando pela erva. O torso separando da barriga; os quadris rompendo contra o chão e arrancando pulmões e pele das costelas. Por último, a cabeça e os ombros; o crânio descarnado golpeando os paralelepípedos e arrebentando com um mau cheiro espantoso. A quase líquida massa de cérebro do que uma vez tinha sido um homem formava poças, para ser pisoteada no caminho.

As vespas atacaram, afundando seus aguilhões no rosto através do manto, nas bochechas e na língua, através de seu vestido nos braços e no peito e o pior de tudo, através de suas pálpebras nos globos oculares.

Regeane não ouviu o rugido da loba. Seus próprios gritos a tinham ensurdecido. Só soube que possuía quatro patas, não duas. Suas mandíbulas se abriram com um grito de ultraje e o fogo encheu o ar a seu redor.

Quando despertou, estava tombada de lado. Um ombro descansava em uma limpa poça de água da chuva. Abriu os olhos e ficou em pé muito devagar. Um lado de seu vestido estava molhado. Explorou sua face e pescoço com dedos trêmulos. Nenhum inchaço. Nenhuma dor. Tinha sido todo um sonho?

Olhou para baixo. Perto da poça, uma grande superfície lamacenta mostrava rastros caninos. Recordou à loba chegando a sua ajuda. De verdade estivera ali, derrotando o horror de alguma forma? Regeane estava muito aturdida pelo susto, para considerar as implicações daquilo.

Olhou a seu redor. Silve havia desaparecido. Era evidente que tinha encontrado algum lugar para onde correr. Então se deu conta de que a tumba onde se detiveram para comer tinha desaparecido. Simplesmente já não existia.

Regeane recolheu a saia e correu.

Deixou de correr perto da cidade. Não porque estivesse cansada depois de tudo, sua vitalidade era normalmente maior que a da maioria dos humanos. Mas tinha passado junto a alguns peões que trabalhavam perto da cidade e seus olhares lhe assustaram. Era estranho ver sozinha a uma mulher respeitável. As prostitutas anunciavam sua mercadoria, então não seria tomada por uma delas, mas podiam acreditar que era uma mulher casada saindo furtivamente para ver seu amante. E em tal caso, se expor a ser abordada por algum lascivo oportunista. Deteve-se, envolvendo-se bem com seu manto, colocou o véu sobre a face, abaixou a cabeça e seguiu andando.

Não se atreveu a passar pelo Foro em ruínas tão tarde. Caminhou para sua casa pelas estreitas ruelas que rodeavam o Panteão. Aquelas ruas só eram transitáveis a pé. Lances de degraus de pedra rodeavam as paredes de tijolo, entre as quais parecia que já era noite.

O céu era uma escura mortalha de cor azul cinzenta. A pouca luz que restava mostrava só chuva golpeando as janelas fechadas.

Estava percorrendo o caminho de volta para casa tão rapidamente como era possível, quando se encontrou a comitiva fúnebre. Era um cortejo pobre, com o cadáver envolto em um lençol e levado em um féretro aberto. Ardiam tochas nas mãos dos poucos parentes e amigos que seguiam o homem morto. As chamas chispavam ao vento, enquanto avançavam rua abaixo e ardiam com uma luz azul pela umidade.

Regeane se aproximou da parede para lhes deixar passar.

Silve surgiu da escuridão como um morcego saindo da boca de uma caverna.

—Bruxa! — Ela gritou enquanto assinalava Regeane. - Diablesa! Ela está aqui para roubar sua alma. Matem-na! Matem-na! Ela arrastará sua alma ao inferno para vender ao diabo em lugar da dela!

Regeane ficou paralisada alguns momentos por causa do medo e o puro assombro. Então viu que os parentes do morto acreditavam em Silve. A dor e o pânico em sua voz lhe davam uma terrível certeza. Inclusive Regeane podia ver que, independentemente da verdade ou falsidade dos gritos da criada, a própria Silve acreditava... De forma absoluta. Repentinamente, o defunto foi colocado no chão e os membros do cortejo começaram a procurar projéteis entre as sombras.

Regeane correu novamente. O que lhe salvou foi à relativa escassez de material, para lapidá-la. Mas enquanto fugia, ela sentiu que algo duro lhe golpeava o final das costas. Uma telha rota passou por braço deixando uma sensação ardente. Então ela se viu fora dos muros, correndo com mais espaço. A hospedaria estava perto.

Diminuiu o passo, pois não queria que ninguém visse quão assustada estava. O céu do crepúsculo estava de cor azul, ainda não era noite. Uma escada do lado da casa levava a seus aposentos.

Estava subindo os degraus quando viu que seu braço tinha um corte e sua mão estava ensangüentada. Esfregou o sangue com seu manto. O espesso manto de lã era quase negro; esperava que o sangue não fosse visto. Flexionou o braço e o corte se fechou.

Só pensava em calor e segurança quando atravessou a porta. Sabia que ia passar a noite encerrada, mas mesmo aquele estreito quarto parecia um refúgio seguro depois de tudo que havia passado. Não tinha idéia do que lhe esperava.

 

                                                         CAPÍTULO 4

Pela primeira vez em meses, a quarto estava quente. Havia braseiros brilhando em cada canto e um bom fogo rugia no lar.

Regeane se afundou em uma cadeira junto ao fogo.

Hugo e Gundabald estavam sentados à mesa, fazendo um banquete.

O olfato da loba vagou entre os aromas de açafrão, canela e pimenta... Especiarias que não apareciam na comida de gente comum.

Gundabald estava desconjuntando um capão cheio de figos em conserva, temperado com manteiga, canela e proibitiva e cara pimenta. Suas bochechas brilhavam por causa da graxa que as cobria. Embutiu algo da úmida e suculenta carne em sua boca, e olhou enojadamente para Regeane.

—Onde infernos estiveste?

Ela compreendeu que seu aborrecimento ocultava certa ansiedade. Gundabald nunca tinha mostrado antes preocupação por seu bem-estar, então ela imaginou que aquilo devia supor alguma mudança em sua posição.

—Encontrou um compromisso para mim e é alguém endinheirado. – Ela disse.

—Uma moça pronta! Agora, me diga onde infernos esteve? - Repetiu seu tio enquanto se levantava da mesa.

A loba a avisou. Ela não ouviu ou não reagiu com a suficiente rapidez, mas chegou a ficar em pé. Gundabald lhe deu um tapa na face com todas suas forças. A cabeça de Regeane ficou solta em seu pescoço, como a de uma mão rota; perdeu a consciência por um segundo e seu tornozelo trancou em uma perna da cadeira. Ela perdeu o equilíbrio e caiu, golpeando fortemente a cabeça contra o chão. Era a primeira vez que sentia toda a potência do punho de um homem dirigido contra ela. A pura força e capacidade destrutiva eram assombrosas.

Regeane se sentou novamente, apoiando-se no braço da cadeira para ficar em pé. O sangue saía em abundancia de seu nariz e gotejava de um canto de sua boca.

Gundabald permaneceu frente ao fogo, esquentando às mãos.

Ela foi pegar um guardanapo da mesa.

—Não manche o linho, maldita. - Disse seu tio.

Regeane usou seu próprio manto para limpar o sangue da face.

—Agora, me diga. Onde esteve?

—Hugo nos deixou sozinhas, - explicou ela.

Hugo, que tinha a boca cheia de comida, fez um ruído.

—Cale-se!

Depois de dar a ordem a seu filho, Gundabald o golpeou com força na têmpora. Hugo se engasgou e começou a tossir o que estava tentando engolir.

—Estou rodeado de néscios! — Murmurou Gundabald. - Não se atreva nunca mais a deixar sua prima sozinha nas ruas! Ouviste-me? Isto é só uma amostra do que receberá!

—Deus! Deus! Deus! Sim. - Gemeu Hugo. - Cristo Jesus nos salve. O que acontece? Primeiro, você tenta danificar o pouco que ela tem bonito... Depois me... Espanca... O que...

—Silêncio!

Hugo se calou.

—É um néscio que nunca pode ver além da ponta de seu nariz. - Disse Gundabald. - E ela é uma pequena pretensiosa ressentida que sem dúvida deseja que nós dois ardamos no inferno! Mas agora é uma propriedade muito valiosa! Eu a vendi! E consegui um preço condenadamente generoso no regateio. Não, não é um grande compromisso, não podíamos esperar algo assim. Ela é muito pobre, mas sim é um noivo rico. Esse homem está sentado sobre uma pilha de ouro. O rei Carlos quer lhe pôr em vereda e um matrimônio é mais barato e menos problemático que enviar um exército contra sua fortaleza. – Ele riu. - O rei esperará que agradeça profunda e agradecidamente um matrimônio com a linhagem real e o mesmo espero eu. De fato, os prestamistas só tiveram que ouvir seu nome para abrir suas bolsas. Acha que todos estes luxos têm caído do céu como o maná?

O nariz de Regeane havia deixado de sangrar, mas ela podia notar um sabor salgado em sua boca por causa de um corte aberto dentro de sua bochecha. Entretanto, o terror que sentia pesava mais que a dor.

—E a lua cheia? – Ela sussurrou.

Gundabald caminhou para ela. Regeane se encolheu, afastando-se de seu punho.

—Loba. - Disse seu tio brandamente. – Sim, um cão e um cão açoitado.

Regeane odiou a si mesmo por agradecer que não a pegasse novamente. Em alguma parte da profunda escuridão inferior, a loba estava enfurecida além da razão, mas a mulher não a deixava aproximar da consciência.

—É uma estúpida. - Seguiu Gundabald. - Sabia? Esse homem te quer tanto como você quer a ele. Quer dizer, nada. O que pensa que vai fazer, te dar boas-vindas a seus braços? Uma mulher sem dinheiro que lhe foi imposta por um rei. Um rei poderoso. Um rei ao qual não se atreve a desobedecer.

Gundabald retrocedeu e esquentou o traseiro no fogo. Riu com dureza.

—Deus, minha irmã era uma sentimental enjoativa. Criar uma coisa como você, para que fosse uma dama apropriada? Mas considerando o que vai passar, possivelmente esteja melhor assim. Não, mulher cadela, confia em mim. Seu segredo é a menor de suas preocupações. Desde dia em que chegar, provavelmente deverá tomar cuidado com tudo o que coma ou bebês. Assim que se atreva, ele se livrará de ti.

Regeane lhe olhou com os olhos muito abertos, suas tripas convertidas em água, doente de terror.

—Acorde, estúpida. - Disse alegremente seu tio. - Nada a protege. Quantas esposas foram desprezadas, declaradas estéreis por seus maridos, porque alguma vez se deitaram com elas?

Gundabald sorriu. Seus dentes grandes brilhavam amarelos contra sua barba negra.

—Estéril. - Disse meditabundo. - A esterilidade é uma desculpa amável, inclusive compassiva. Sabe o quão fácil resulta para um grande senhor preparar a profanação de seu leito conjugal? Espere até o anoitecer e então envia um servente bonito e forte ao quarto de sua esposa. Os adúlteros são pegos e o homem, já pago, foge. Mas na manhã seguinte, ela é levada aos bosques com um laço ao redor do pescoço. A menos que tenha uma família que respalde seus protestos de inocência, a mulher está condenada. Ali, perto de um lago ou um pântano é estrangulada ou afogada e esquecida para sempre em sua tumba de barro. Só mencionei dois meios que têm os maridos para livrar-se de esposas inoportunas. Há outros, muitos outros. Um movimento equivocado, um tolo momento de arrogância e ele acabará contigo. - Seguiu explicando Gundabald enquanto encolhia os ombros e mostrava novamente seu terrível sorriso. - Possivelmente nem sequer tenha que tropeçar, pode que prefira suas concubinas. De fato, quanto mais penso nisso, menos duvido de meu próprio julgamento. E quanto a ti, mucosa pálida, não tem nada a seu favor. Nem riqueza, nem família influente, sequer um pouco de beleza. É um pequeno cone imbecil, pálida e sem peito...

—Basta, pai! Olhe-a. - Disse Hugo. - Vi homens mortos com mais cor que ela no rosto. Acaso quer que ela mesma se pendure antes de ver seu marido? Necessitamos do dinheiro!

Gundabald soprou.

—O que quer que faça? Deixar-lhe entrar nesse matrimônio com a cabeça cheia de raios de lua? A maioria dos homens são como eu, inclusive os melhores. Têm a moral dos touros ou dos cervos. Como este mesmo. Provavelmente tem a moral de uma raposa, - disse pensativamente, tanto para si como para Regeane. - Se não, como passou de ser um mercenário assalariado, até sua posição atual? Deus, mas Gisela te poupou. Já é hora de que descubra como funciona o mundo e o que o faz mover. Vejo que me corresponde te ensinar e se não aprender, seu marido a matará... Se é que a Igreja não te queime primeiro.

Regeane podia sentir seus tremores. Os músculos de seu estômago estremeceram, nem tanto pelas ameaças de Gundabald, que tinha suportado durante toda sua vida, como pela consciência de que se encontrava ante o mal. Gundabald era cruel, mas quando se encontrava sóbrio seus arranques eram quase sempre calculados para servir a seus interesses. Queria algo dela e aquilo não podia ser bom. Regeane limpou o sangue da boca com a mão e o olhou. Gundabald se aproximou dela e lhe deu outra bofetada, não tão forte como a primeira. Só o bastante para fazer com que seus ouvidos zumbissem e seu nariz sangrasse um pouco.

—Preste atenção, - disse sorridente. - A dor é muito boa para atrair a atenção. Pelo menos, sempre me pareceu isso. Não esteja tão murcha, - disse amavelmente. - E não se assuste. Não vamos abandoná-la.

Ela se perguntou se seu tio seria tão egocêntrico para acreditar que encontraria sua promessa reconfortante.

A face de Gundabald estava perto da dela. Regeane podia sentir sobre sua pele o calor de seu fôlego carregado do aroma da comida. Sentou para evitar aquele mau cheiro. — As terras desse homem dominam um dos passos através dos Alpes. Cada comerciante ou viajante que atravessa as montanhas o torna ainda mais rico. Mas esse patife é um arrivista, o senhor de um bando de mercenários. Não há dúvida de que poderemos comprar sua lealdade quando as arcas estejam em nossas mãos. Mas que sua morte pareça acidental será coisa tua!

Gundabald levantou Regeane da cadeira pelo tecido folgado da frente de seu vestido. Ela pôde sentir a pressão dos dedos contra seu esterno. Os lábios de seu tio lhe roçaram a orelha.

—Agora, moça. – Ele disse brandamente, - diga que me entende e que fará o que eu te disser. Repita comigo: "Farei o que meu sábio tio me disse". Diga!

As mãos de Regeane subiram dos braços da cadeira. As unhas estavam afiadas nas pontas e ela as arrastou através das bochechas de Gundabald até seu queixo. Sangue e pele caíram em largas tiras das bochechas de seu tio.

Ele gritou e fez com que se erguesse com uma mão. Com a outra, pegou-lhe um murro na face.

Regeane voou para trás. A cadeira perdeu o equilíbrio. Seu corpo golpeou o chão e rodou. Na escuridão, ela lutou com a loba pelo controle. O animal tentava loucamente ir a sua ajuda, mas ela tinha de seu lado o terror mais racional da mulher... O medo de que, se a criatura aparecesse naquela debilitada condição, Gundabald poderia matá-la.

A loba, vacilante, retirou em um selvagem silêncio. Regeane recuperou a consciência completa de joelhos.

Gundabald a mantinha erguida pelo cabelo e a açoitava com seu cinto. A dor era tão intensa que ela contra-atacou de forma instintiva.

Um dos braseiros estava a seu alcance, conseguiu pegá-lo por uma pata e arrojar as brasas ao Gundabald.

Seu tio correu pelo quarto, desembainhando a espada. Hugo saltou atrás dele.

Regeane compreendeu a razão de seu terror. O braseiro era de ferro sólido. Nenhuma mulher normal, nem a maioria dos homens teriam conseguido elevá-lo e pulverizar seu conteúdo como ela tinha feito.

—A casa vai queimar! – Gritou Hugo.

Não, pensou Regeane. Oxalá queimasse, mas não será assim.

Ela tinha razão. A umidade tinha invadido cada peça de madeira na cidade Santa durante as últimas semanas de chuva. As brasas fumegaram, federam e chisparam loucamente, mas começaram a apagar uma por uma.

—Feito a noite. - Soluçou Hugo.

—Sim, eu sei. - Respondeu Gundabald, brandindo a espada. - Jesus Cristo! – Ele continuou com uma voz suave, pasma. – É igual a seu pai.

Regeane estava em pé... Um pouco insegura, mas em pé.

—Igual. - Disse Gundabald. - Dei-lhe um murro com todas minhas forças: uma mulher normal estaria morta ou pelo menos inconsciente.

—Fala de meu pai? - Perguntou Regeane.

Gundabald encolheu de ombros.

—Quer que esse homem morra repentinamente. Da mesma maneira que meu pai. Foi difícil matá-lo, não verdade?

—Quase impossível. De fato, não teríamos conseguido sem a ajuda de sua mãe.

—Não! — Gritou Regeane. - Minha mãe não!

—Oh, sim. - Disse Gundabald cinicamente. - A Santa Gisela.

—Não é verdade. - Disse Regeane, enquanto sacudia a cabeça de um lado a outro, como uma fera atormentada. - Não acredito. Não acreditarei. Não posso acreditar. Amava-lhe.

Gundabald embainhou sua espada, sentou e se serviu de uma taça de vinho. Estava sorrindo novamente. Adorava infligir dor e com o Regeane estava tendo êxito além de seus sonhos mais selvagens.

—Sim, tentamos duas vezes. Sua constituição desafiava o veneno. Tinha a capacidade do lobo de vomitar imediatamente tudo aquilo que o perturbasse. Enviamos assassinos contra ele e não voltaram. Não posso imaginar o que fez com eles. - Gundabald pareceu intrigado por um momento. - Nunca encontramos um rastro. Nem roupa, nem armas, nem ossos e sequer crânios ou dentes. Simplesmente desapareceram. Sua mãe não nos deu uma mão até que a convencemos de que seus poderes eram demoníacos e ele a levaria junto. Foi difícil de persuadi-la. Acredito que pôde haver entre eles essa intensidade sexual que chamam amor. Em qualquer caso, ele sucumbiu às argúcias de sua mãe. Tinham um lugar perto de sua fortaleza... Um ninho de amor onde escapuliam para se encontrar em particular. Todos nós tínhamos saído em uma partida de caça... Entende que as caçadas comuns aborreciam seu pai... E Gisela o incitou a ir a seu refúgio especial. Eu... — Ele fez uma pausa para criar efeito e depois explicou sinceramente. - Cravei-lhe um dardo no coração. Morreu no momento, antes que seu outro ser tivesse tempo de lhe curar.

Regeane inclinou a cabeça e descansou sua testa sobre o respaldo da cadeira. Perguntou-se durante quanto tempo se negou a ver, se negou a entender.

Tinha passado sua vida carregada com a dor de sua mãe, longas noites de pranto e auto-acusações. O desespero de sua mãe tinha sido sua companhia constante enquanto Gisela arrastava Regeane de uma igreja a outra, de um santuário a outro. Gisela tinha passado o resto de sua vida de joelhos, mendigando o perdão de Deus para o único pecado que não se atrevia a admitir, sequer ante Regeane: o assassinato do homem que amava.

—Aqueles saxões... — Continuou Gundabald. - Davam-me medo, mas quanto a aquilo, sua mãe resultou novamente uma ajuda inestimável. Seu pesar era tão terrível que tínhamos que vigiá-la para que não ferisse si mesma. Assim que sua gente ficou convencida de que não tínhamos parte em sua morte. Quando compreenderam que era o fim de sua linhagem, sua dor foi quase tão grande como a de Gisela. Partiram para seus bosques do norte. Desgraçadamente, como averigüei mais tarde, também levaram a maior parte de suas riquezas com eles. Sua mãe conservou unicamente o que lhe tinha dado na manhã seguinte ao casamento: uma soma muito generosa, um bonito dote para uma mulher, mas apenas o suficiente para as necessidades de uma família. Agora você tem a oportunidade de reparar nossas fortunas... E está se fazendo de estúpida! —

- Sinto. - Disse Regeane em voz baixa. A loba rilhou seus dentes, mas a mulher tentava realmente soar arrependida. - Não tinha me explicado totalmente a situação. Minha mãe entendeu seu dever para com sua família. Estou segura de que eu entenderei o meu.

Um dardo. Uma flecha através do coração. Ela nunca tinha visto um homem morto por um dardo, mas eram armas comuns. Principalmente se usavam contra animais grandes, cervos, javalis ou ursos. Uma vez tinha visto um cervo alcançado por um. Embora o dardo não cravara em um ponto vital, o cervo caiu com o ombro quebrado, morrendo pela dor e a perda de sangue em alguns instantes. A mente de Regeane saiu de sua memória. Wolfstan sabia ser traído pela mulher que amava, inclusive enquanto caía.

Seu tio e seu primo planejavam usá-la da mesma forma em que haviam usado sua mãe. Embora se negasse a ajudá-los, sabia que aquilo não deteria seus planos. Eles só haviam recorrido a sua mãe quando todos outros métodos falharam com Wolfstan.

Gundabald a olhou com desconfiança. Sua capitulação tinha sido muito rápida.

—Bom, parece que de repente falamos todos com hipocrisia. – Ele disse.

—Sim. - Respondeu Regeane. - Mas eu não tenho outra opção, certo?

Gundabald limpou outro dos pratos. Era um guisado de pescado muito condimentado com especiarias, abundantes cebolas, alho-porro e ardentes grãos de pimenta.

—Quer um pouco? — Perguntou, servindo e caindo sobre ele com os dedos.

O aroma assaltou o nariz da loba através do quarto.

—Não. Não tenho apetite. Minha cabeça está dando voltas.

Regeane deu um olhar a seu redor. O ar no quarto era uma névoa fumegante por causa das brasas que saíram do braseiro.

O fogo estava agonizando e os braseiros restantes se obscureceram. O frio começava a se arrastar para o interior.

Regeane caminhou até a mesa. Gundabald estava ocupado com sua cobiça e um jarro de bom vinho tinto. Hugo, ao ver que sua prima se aproximava, se apressou para o outro lado da mesa. Gundabald pôs ergueu os olhos para o alto, irritado.

—Onde está sua espada? — Resmungou com a boca cheia.

Hugo mostrou uma expressão envergonhada.

—Empenhei-a para comprar bebida a alguns dias.

Regeane se deteve ante a mesa.

—Coma alguma coisa. - Convidou Gundabald.

Ela negou com a cabeça.

—Só quero uma taça de vinho.

Hugo serviu vinho e a ofereceu, mantendo o braço estendido o mais longe possível dela.

Regeane pegou o vinho e provou um gole. Muito bom, pensou. Depois de esvaziar a taça, deixou-a sobre a mesa. O esgotamento pesava sobre ela como uma capa de chumbo.

—Recorde. - Disse Gundabald.

—Sim. - Respondeu ela.

—Na realidade, você não tem escolha.

A face de seu tio estava vermelha, coberta de graxa e congestionada por todo o vinho que havia bebido. As marcas das unhas de Regeane eram visíveis em suas bochechas. Provavelmente não podia senti-las naquele momento, mas pela manhã sentiria, junto com sua ressaca.

Ela sentiu que havia ganhado pelo menos uma pequena vantagem e que lhe convinha aproveitá-la.

—Necessitarei de um pouco de dinheiro. – Ela disse.

—Para que? — Perguntou Gundabald, comendo um grande camarão-rosa que estava amarelado por açafrão. - Maravilhoso! — Ele disse bebendo um pouco de vinho branco.

—Para comprar roupa! — Disse Regeane. - Olhe-Me. Este é meu melhor vestido. Necessitarei de um manto novo e dois vestidos respeitáveis pelo menos. Por não mencionar algo para o banquete nupcial.

—Não se preocupe. - Disse Gundabald. – Ele não estará em Roma até dentro de meses.

—De toda forma, tenho que começar, - insistiu ela.

Gundabald estava quase bêbado. Era feliz, as coisas saíram a sua maneira. Sabia que a moça ia ser um problema, mas tinha meses para quebrantá-la, para esmagar seu espírito.

Fora, o vento açoitava o edifício. Uma rajada particularmente forte sacudiu as venezianas, soando como se um martelo gigante estivesse golpeando as paredes. Ele estremeceu. A próxima vez, não a pegaria quando já tivesse escurecido. Certo, a face de sua sobrinha estava torcida e cheia de marcas, seu vestido estava rígido por causa das manchas de sangue, mas apesar de tudo parecia muito inteira para o golpe que havia recebido.

Da próxima vez a enfrentaria de dia e poderia aprender a julgar exatamente quanto castigo podia receber sem ficar mutilada ou morta. O sofrimento físico infligido de forma regular anularia sua vontade de resistir. E melhor se não deixasse marcas e nem cicatrizes.

Gundabald procurou um pouco de dinheiro em sua bolsa. Regeane viu o brilho do ouro entre as moedas, mas não pensou que fosse conseguir tanto. Estava certa. Mais ou menos vinte moedas de cobre e quatro dinares de prata caíram sobre a mesa. Agradecida, ela recolheu rapidamente o dinheiro e entrou em seu quarto.

Os ferrolhos que a aprisionavam se fecharam com um estalo assim que atravessou a porta. Também havia um ferrolho do seu lado e ela o colocou seu lugar. Despojou-se de seu vestido e sua roupa interior. E então a loba cheirou comida!

Regeane rebuscou sob as mantas e encontrou o recipiente. A anciã devia tê-la colocado ali. Graças ao pote de barro e as mantas, a comida seguia quente. O quarto estava gelado e as portinhas da janela gradeada não faziam nada por deter o vento.

Livre e bem-vinda, a loba acudiu. Estava faminta. Levou-lhe menos tempo para terminar o guisado que à mulher havia trazido. O pelo a isolava do frio. A áspera língua fez um último percorrido pelo recipiente.

Então, a mulher se elevou nua e entrou silenciosamente na cama. Regeane se encolheu e agradeceu à anciã. Ela havia deixado uma manta mais e lençóis limpos de linho. Estavam remendadas, gastos e puídos, mas eram suaves e agradáveis ao tato.

Quando a loba se foi levou a maioria das lesões de Regeane com ela. O corpo já não lhe doía, embora estivesse esgotada, quase a beira da inconsciência. Apesar de tudo, sua mente não deixava de trabalhar.

Gundabald! O diabo! Era o mesmo. Regeane sabia que só tinha começado a saborear a miséria que seu tio planejava para ela.

Como tinham conseguido convencer sua mãe a cooperar no assassinato de quem a tinha amado e protegido? Que mudança teria suposto entre Wolfstan a Firminius, o segundo marido de sua mãe? Ela só recordava sua notável corpulência, sua preguiça e sua monumental cobiça.

Não, não tinha nada a esperar de Gundabald e sim tudo a temer. Devia fugir de algum modo, mas não tinha idéia de como. O pouco dinheiro que ele lhe tinha dado não a levaria longe.

A loba, como a criatura intrépida que era estava furiosa e encolerizada pela privação de sua liberdade. Era fisicamente amadurecida, mas sua maturidade sexual não se encaixava com a da mulher. Ela era a esbelta caçadora, a fornecedora de carne da alcatéia capaz de alcançar inclusive o cervo mais rápido. A virgem vestal da luz de lua: inalcançável, intacta. Podia elevar para defender à mulher no leito conjugal.

Oh, deuses! Pensou a mulher. Um verdadeiro desastre. Devia fugir. Como? Onde?

Algo ativou sua memória da mesma forma em que um mendigo irritado puxaria suas mangas. Wolfstan! Sua gente acreditava que a linhagem de Wolfstan se extinguira. Gundabald os deixara acreditar... Mas não era certo. Ela estava ali, com os mesmos poderes de seu pai. Eles o chamavam de Talismã. Quem havia lhe contado sua história? Regeane não podia recordar e estava muito cansada para tentar. Por fim tomou uma decisão. Poderia encontrar o povoado de seu pai? Enfrentaria à perseguição e as traições de Gundabald e Hugo. Que assim fosse. A caçadora da escuridão a olhou a beira do sonho com olhos resplandecentes, chamando-a.

Teria êxito ou morreria tentando. Loba e mulher concordaram. Regeane seguiu à loba para a escuridão onde, na terra de sombras da letargia, ambas podiam correr livremente... Através dos bosques intermináveis de seus sonhos.

Regeane despertou logo. Só uma fraca luz azul brilhava em torno das portinhas. Procurou algo limpo para vestir na cesta que havia sob sua cama. A anciã tampouco lhe tinha falhado ali. Havia lavado um vestido de linho cinza velho, mas conservado e o manto marrom. Completou o conjunto com roupa interior e um véu muito puído de sua mãe, com grandes emplastros translúcidos.

Teve medo de não poder abrir a porta, mas a anciã estava ali, dedicada a sua interminável tarefa de limpeza e tinha aberto os ferrolhos.

Regeane acordou Hugo, que protestou fracamente, mas lembrou as ordens de Gundabald e passou junto à anciã, que varria a sala com uma vassoura de ramas. Deteve-se a seu lado e colocou uma das moedas de prata em sua mão. Hugo já estava fora e descendo pelas escadas.

A anciã soube pelo tato, que era mais que uma moeda de cobre. Seus olhos se abriram enquanto a escondia.

—Boa sorte. – Ela sussurrou. - Que a Virgem te guarde. Tome cuidado. Esses dois são porcos... Porcos!

Regeane correu escada abaixo atrás de Hugo. O céu era cinza, como a luz a seu redor.

—Sequer amanheceu, - protestou Hugo. - Aonde vamos? - Ao mercado dos ladrões?

—Matarei a essa pequena coño da Silve por me deixar com este problema. - Murmurou seu primo. - O que lhe fez? Estive procurando-a ontem à noite.

Provavelmente Gundabald o mandou, pensou Regeane.

—Não pude encontrá-la em nenhuma dos botequins habituais. - Seguiu queixando Hugo. - Desapareceu. Oh, minha cabeça... Minha língua está como o chão de uma latrina. Os olhos me vão arrebentar. A comida me queimou ao engoli-la, mas ao sair foi pior: é como se alguém me enchesse o traseiro de graxa quente.

—É a pimenta. Um jarro de vinho sossegaria suas regiões inferiores? —Perguntou Regeane.

—Um jarro de vinho sossegaria muitas regiões.

Regeane lhe deu algumas moedas de cobre.

—Por favor, não compre a mesma porcaria que Silve ontem.

—O que era? —inquiriu Hugo.

—Ela disse que levava massa de papoula e cicuta.

—Está claro por que não pude encontrá-la ontem à noite, - comentou seu primo com displicência. - Estará morta em alguma parte e ninguém a descobriu porque ainda não começou a cheirar.

O estômago de Regeane retumbou com fome.

—Vá conseguir seu vinho, - ela disse irritadamente.

Hugo voltou com um odre, do qual bebeu liberalmente a caminho do mercado. Embora o vinho tenha lhe animado um pouco, seguiu queixando sem cessar enquanto caminhavam.

—É perigoso, - ele disse, - inclusive para um homem. Poderia receber insultos inapropriados para o ouvido de uma dama.

Regeane se deteve tão subitamente que Hugo tropeçou nela. Estavam e uma praça.

—Vá. – Ela sussurrou entredentes a Hugo. - Passe um bom momento de diversão. Não me importa como, mas não me incomode enquanto tento fazer minhas compras. Agora, vá.

Hugo obedeceu, afastando-se depois de lhe jogar um olhar de apreensão.

A pequena praça do mercado estava cheia de comerciantes cujas mulas se achavam ainda arreadas as carretas. Contudo era um grupo muito dinâmico, preparado para desvanecer rapidamente assim que o guarda papal, a única lei eficaz na cidade, fizesse um de duas periódicas varridas por Roma. Estavam perto do rio. Os edifícios que rodeavam o lugar estavam descuidados e em muitos casos, os pisos baixos ficavam abandonados às ocasionais enchentes do Tibre e a onipresente umidade.

A carreta do vendedor de roupas estava encaixada entre a desventurada mercadoria de um negociante de escravos e um carregamento de móveis quebrados. Para Regeane pareceu lixo sem valor. O vendedor de móveis era agressivo: ao ver o Regeane, tentou lhe vender uma "bonita" cadeira... Uma cadeira que seria perfeita se tomasse a moléstia de adicionar um pé. E, borbulhou alegremente. Ele tinha várias que serviriam e que podia lhe oferecer a um preço muito conveniente.

—Não é mais que lenha, - disse ela.

O comerciante cacarejou alegremente quando Regeane passou e começou a examinar os vestidos penduravam nas aduelas de sua carreta de duas rodas.

Ela lançou um olhar aos escravos e afastou rapidamente os olhos. Estremeceu. Era uma visão dolorosa. Todas eram mulheres muito jovens, velhas ou feias para interessar aos traficantes de mercadoria humana mais atraente nos mercados maiores.

Os vestidos eram igualmente decepcionantes. A maioria estava danificados e todos eram muito pequenos. Regeane era considerada de estatura alta. A condição do tecido a desanimou mais que nenhuma outra coisa. Silve havia dito que havia verdadeiras gangas ali, mas nada do que ela tinha visto valia a pederneira e o aço necessários para queimá-los. Se conseguisse encontrar bom tecido estava disposta a desfazer as costuras, branquear, tingir e recoser. Mas com um tecido tão podre que se rompia ao menor tato, não havia esperança.

—Não servem nem como trapos de limpeza, - sussurrou.

O vendedor de móveis parecia zangado.

—Lenha! — Ele disse na gíria romana. - Trapos de limpeza! Bruxa Bárbara... Necessita de uma lição.

O vendedor de roupa riu novamente e tirou algo que tinha guardado sob os refugos de sua carreta. Embora estivesse manchado na barra, o vestido era bonito. Um sobre vestido de brocado azul debruado em pele branca. O vendedor o fez oscilar no ar ante ela.

—Quanto? —perguntou Regeane com desconfiança.

—Só seis cobres, - r respondeu o vendedor, enquanto o colocava em suas mãos.

Sim, estava em bom estado. Os peritos dedos de Regeane exploraram a malha. Não era seda pura, mas ela não esperava que fosse. Não ali. Se não conseguisse lavar as manchas, poderia...

O mundo desapareceu. Ela pôde sentir o pau ao redor de sua garganta, e inclusive antes que se fechasse, soube que estava morta. As mãos do homem apertando o arame e girando as cavilhas de madeira atrás de seu pescoço eram muito fortes para ela. Mesmo assim o arranhou com as unhas, sentiu que a pele se desprendia e que as pontas de seus dedos se enchiam de sangue. Sabia que as mãos não soltariam o arame e que provavelmente o homem sentiria certa satisfação ante a prova de sua agonia.

O fio de aço esmagou sua traquéia. Tinha perdido a visão. Tinha perdido o fôlego. Tinha perdido a vida. O que restava era o grito... Silencioso... Só em seu cérebro, e seguia e seguia e...

Regeane arrojou o vestido longe dela.

—O que acontece? Está doente? - Gritou o vendedor de roupa. - Está prenhe?

—Por quê? — Replicou ela acidamente. Apoiou-se na carreta, tentando recuperar o controle de seu estômago. - Por que quando uma mulher de menos de setenta anos fica pálida ou parece doente, o homem mais próximo lhe pergunta se está grávida?

—Porque freqüentemente está. - Respondeu uma voz musical. - Mas acredito que em seu caso se trata de uma extraordinária percepção.

Regeane se voltou para olhar quem tinha falado. Era uma mulher que estava fazendo oscilar no ar a luxuosa túnica, sustentando-a com um dedo como se fosse algum sujo refugo.

—Tome esta... Coisa. – Ela disse ao vendedor. – E volta a deixá-la na tumba anônima onde jaz sua proprietária. Eu o pagarei.

—Oh, Deus! — Exclamou Regeane. - Que asco. — Ela limpou as mãos em seu manto, sentindo-se poluída.

O vendedor enterrou profundamente a túnica nos trapos de sua carreta.

A mulher continuou falando em tom preguiçoso:

—Sua anterior proprietária traiu seu amante, um homem chamado Pablo Afartha, que tinha grande influencia sobre nosso defunto Papa Lombardo. Seu amante pertencia ao partido do Papa atual. Pablo mandou torturá-lo, mas, por desgraça para ela, não até a morte. Foi liberado quando Adriano se converteu em Papa. Está cego de um olho e lhe faltam alguns dedos, mas ainda tem um olho bom e duas mãos. Estrangulou-a e ela vestia esse vestido naquele momento.

—É um bom objeto. - Resmungou o homem.

A imponente mulher falou em tom cortante:

—Leva essas coisas a minha casa. Pergunta por minha faxineira, Susana. Ela te pagará e o queimará. Santo sangue! Suas últimas funções naturais descoloriram a barra. Faça o que te disse.

—Sim, minha senhora. - Respondeu docilmente o homem.

Regeane se sentia desarrumada. Estava. O manto lhe tinha cansado até pés e seu véu estava nos ombros. A recém chegada, uma mulher alta, estava tocando seu cabelo.

A jovem teve uma impressão de roupa rica e o delicioso perfume da seda. Dois homens grandes que flanqueavam a dama impediam maiores progressos. Regeane tentou se afastar. Impossível. Estava presa entre a carreta do vendedor de tecido e a do homem dos móveis, unidas pela parte de atrás.

—O que faz uma formosa criatura como você andando neste lixo? Seria fácil te encontrar um... Protetor que te comprasse roupa melhor. - Disse a dama.

—Eu não haveria... Não pensava... Eu não sabia... — Balbuciou Regeane, tentando se afastar da dama e sua escolta. Os dois homens se plantaram como blocos de pedra, impedindo-a que partisse. A dama bloqueava o passo entre eles. Todos pareciam divertidos.

Regeane não tinha estado nunca tão perto de ninguém tão bem vestido ou limpo e perfumado como aquela mulher. A loba estava encantada e meio apaixonada já.

—Co... Co, co... — Disse o vendedor de móveis, imitando Regeane—. Te . – Fique em pé e fale com Lucila como uma mulher educada. Está tão nervosa como uma franga em um pátio cheio de galos. – Ele comentou com a dama.

Regeane se sentiu incomodada. A loba se sentiu incomodada.

Regeane se elevou e estudou a mulher chamada Lucila. A primeira vista parecia jovem, mas então compreendeu que era uma ilusão criada por vários arranjos destramente aplicados. Sua blusa era de linho egípcio, uma fina malha bordada com seda branca. Sua túnica era um denso damasco de seda, tingido em dois tons de verde e de uma cor tão fresca e luminosa que Regeane se recordou dos primeiros brotos da primavera. Seu rosto mostrava uma maquiagem muito destra. Seguia sendo formosa, mas mostrava as delatoras marcas da idade nas linhas em torno de olhos e boca e na tênue, muito tênue série de rugas na testa e na face.

—Como faz isto a seu cabelo? Com que arte? — Perguntou Lucila. - Ensine-Me, eu a pagarei muito bem. Gostaria de aprender.

—Não há nenhuma arte. - Disse Regeane. - Não sei nada disso. Meu cabelo é assim desde que posso me lembrar. —Seu cabelo era como a pelagem do lobo prateado, sombreado de escuro e branco nas pontas. Cada fio parecia molhado na luz da lua.

—Nenhuma arte. - Repetiu Lucila. - Claro que não. Fui uma néscia ao perguntar. É obviamente como a natureza te fez. Sequer leva um enfeite. — O cabelo de Regeane caiu de seus dedos.

Regeane abriu a boca enquanto as mãos dela subiam para investigar seu seio. Suas bochechas arderam.

—Oh, Deus meu. Esqueci-me.

A escolta-os de Lucila e os dois comerciantes se dobraram em risadas.

Lucila alongou o braço, envolvendo com a mão um dos seios da jovem.

—Que os anjos benzam minha alma, — disse em voz baixa. - Um pêssego amadurecido. Minha pobre querida, você não necessita uma bandagem.

Regeane sabia que devia estar zangada pelas liberdades que a mulher tomava com sua pessoa, mas descobriu que o toque da senhora estimulava uma punhalada de prazer em uma parte de seu corpo, bem longe de seu peito. Pegou a mão de Lucila, mas não a afastou. Lucila retirou a mão devagar, deixando que sua mão escorregasse entre os dedos de Regeane.

—É uma mulher livre? — Perguntou abruptamente a dama.

—Livre e nascida livre. - Respondeu Regeane com orgulho e um pouco de aborrecimento. Aquela mulher estava assustando-a. Perguntou-se, se devia gritar chamando Hugo, mas desprezou a idéia imediatamente. Os dois mercenários que acompanhavam a Lucila estavam bem armados, bem vestidos e bem pagos e era indubitável que tinham prática como serventes de uma casa nobre: qualquer deles poderia pulverizar Hugo com uma só mão.

—Casada ou prometida? — Perguntou Lucila.

—Prometida. - Respondeu ela, dubitativamente.

Lucila reparou na incerteza em sua voz.

—Então você não gosta de seu prometido?

—Não sei. - Regeane se sentia em falta. - Não conheço e sequer o vi nunca.

—Aah! - Disse Lucila e sorriu, baixando as pálpebras. Regeane ficou assombrada ao ver que os cílios estavam pintados de negro e as pálpebras coloridas de azul pálido, que se desvanecia para suas sobrancelhas.

—Por que não vem para casa comigo? — Perguntou Lucila. – Te darei um bom jantar e pode compartilhar minha cama. Pela manhã, minhas faxineiras lhe darão um vestido melhor que qualquer que pudesse comprar aqui. E se eu te achar especialmente agradável, como acredito que ocorrerá, receberá também um pouco de ouro.

Regeane não disse nada a princípio porque não entendeu a oferta. Quando o fez, resultava tão alheia a sua experiência que ficou desconcertada. Ruborizou-se, depois se zangou consigo mesma por ruborizar e fez um resolvido esforço para sair de seu canto.

Lucila e os dois mercenários se tornaram a um lado rindo. Regeane se dispôs a fugir, não por desgosto, mas por causa da confusão que sentia. Mas foi detida imediatamente.

O comerciante do brechó, que subira no assento do carro, tinha obstinado a parte de atrás de seu vestido. Agitou-a brandamente.

—É uma pequena franga coberta de penugem. Não prestes atenção, Lucila. Suas plumas ainda estão úmidas. Nem sequer entende a estupenda oferta que lhe fez. Ouça o bárbaro sotaque de seu latim. É um franco.

—Ele está certo, encanto. - Disse Lucila. - Não fuja até que esteja segura de que é o que quer. As moças foram de meus braços às camas de reis, Papas e cardeais. – Ela elevou uma formosa mão de longos dedos em um gesto elegante. - Eu, e eu sozinha, fiz as fortunas de várias famílias nobres.

O vendedor de roupa soltou o vestido de Regeane e lhe deu uma mãoda no ombro.

—Está vendo? - Disse indicando a Lucila. – Ela é à cortesã mais rica e de maior êxito de Roma. Seu interesse por ti é uma honra. Ah, estes severos e virtuosos bárbaros guardam a suas mulheres tão zelosamente... Ainda parece uma virgem. Deve ser. – Ele seguiu falando enquanto elevava o braço de Regeane. - Olhem que pele tem, branca como o mais fino mármore, com apenas um fraco rubor de rosa. – Ele descreveu poeticamente. - Seguro que é ainda virgem.

—Não sei, — disse Lucila, golpeando-os dentes com a unha. - Como todos os bárbaros, ela passou muito tempo ao ar livre. Está algo morena e isso não está na moda atualmente.

—Morena! — Exclamou o vendedor. Soava mortalmente ferido. - Não é morena. Um toque do sol tira os tons mais quentes da carne. — Ele levantou o braço de Regeane, exibindo-o como um troféu. - Olhe esse pêlo dourado, mais suave que a pele de um gatinho recém-nascido. Olhe como brilha a luz do sol. — O homem devia ter uma boa imaginação: o céu estava cinza e não se viu o sol durante semanas. - Pense como brilhará a luz do abajur quando se despir em sua câmara. Pense o delicioso que será instruir esta jovem Vênus nascida da espuma nas primeiras artes...

Regeane tinha ouvido o bastante. Mais que bastante. Liberou seu braço da presa do vendedor.

—O que acontece? — Ela gritou. - Acaso procura uma comissão?

Todos os homens riram.

—Sim. - Disse Lucila. – Ele começou a me fazer gestos com os braços no momento em que se aproximou de sua carreta, mas não se preocupe. Ele já ganhou seu pagamento. O homem te admira: tem um bom olho. Diga-me, ainda quer fugir?

Regeane sabia o que teria dito sua mãe: "Suba o véu, erga o manto e foge! Esta mulher é a imagem do vício. A mesma encarnação do pecado". Sim, pensou Regeane, e você matou meu pai. Assassinou o homem que te amava e confiava em ti. Em uma cintilação, sua mãe se foi e a loba olhou para Lucila.

O cenho da mulher se franziu ligeiramente, como se desse conta de que havia presente alguém mais.

Mil sinais alagaram os sentidos humanos e lupinos de Regeane. O enganoso aroma de ansiedade, medo e humores corporais em decomposição que empapava a pele e fazia mostrar os verdadeiramente pouco escrupulosos, não estava ali. Só sabão limpo, carne cálida nas axilas e as virilhas. Não arrastava nauseabundos eflúvios de tristeza ou dor... Só paz e silêncio, mas em alguma parte havia pesar.

A loba partiu, sabendo que havia algo que não havia dito ou podia dizer a Regeane, mas não registrou nenhuma desaprovação, só um desejo do contato de Lucila. Bom, pensou Regeane e o que tenho por diante? Só o estreito quarto de pedra e um marido desconhecido que poderia ser repulsivo e cruel.

—Bem? — Perguntou Lucila. - Ainda quer fugir?

—Não! — Disse Regeane. - Nunca voltarei para casa.

—Sim. - Respondeu a dama. - Uma grave resolução. E em alguém tão jovem. Diga-me...

Hugo gritou do outro lado da carreta.

—Essa pequena zorra me mordeu!

Regeane olhou por cima das mulas, o grupo de escravas.

Lucila riu entredentes.

—Parece que uma das escravas mordeu um cliente.

—Sei. - Respondeu Regeane. - A meu primo Hugo.

Lucila estalou a língua com simpatia.

—Uma pena.

—Não. Espero que o tenha feito sangrar.

Todos olharam para Hugo e o negociante de escravas.

—Chuparolas! - Gritava o negociante a Hugo. - Por que manuseia a mercadoria se não tem moeda para comprá-la?

—É um alcoviteiro borrado e comemerda! — Gritou Hugo enquanto tirava sua adaga.

—Oh, não! — Se alarmou Regeane, tentando empurrar Lucila e seus homens de armas.

Lucila pegou o braço de Regeane com força férrea.

—O que faz? Ficou louca? Colocar-se em uma briga em um lugar assim... Meus patrícios podem ter convertido em alguma coisa, pequena Bárbara, mas não esquecem que uma vez governaram o mundo.

Ela empurrou Regeane entre as duas carretas e ordenou a um de seus homens de armas que permanecesse a seu lado. O comerciante do brechó e o vendedor de móveis saltaram imediatamente, formando uma barreira diante dela.

Regeane conservou a calma. Lucila tinha razão, sua ingerência não podia fazer nenhum bem, a não ser conseguir que a golpeassem ou matá-la junto com Hugo.

Lucila deu uma cotovelada no mercenário que não estava ocupado com Regeane.

—Depressa. – Disse. - Golpeie a esse idiota na cabeça e tranqüilize o negociante com um pouco de prata... Se não for muito tarde.

Por sorte, Hugo, não o mais bravo dos homens e o negociante de escravos, que realmente não tinha estômago para lutar com mais que palavras, estavam parados a certa distância, trocando insultos.

Entre os dois, tinham abundante material. Hugo, que mal podia manter uma conversa cortês em um entrecortado latim, dominava as mais vis obscenidades que circulavam entre a chusma romana. O negociante de escravos tinha também um repertório arrepiante.

Uma multidão estava se reunindo para ver o espetáculo e animar os competidores, esperando sem dúvida que algum insulto particularmente exótico conseguisse instigar a um ou outro dos antagonistas a um ataque. A situação podia ficar feia a qualquer momento.

Mas o homem de Lucila alcançou Hugo e lhe deu um forte golpe na têmpora com o pomo de sua espada. Hugo cambaleou. Seus olhos cobraram um aspecto frágil e depois se fecharam lentamente. O fornido mercenário o pegou pela parte de atrás da camisa e deixou que caísse pouco a pouco no chão.

—Pelos Testículos do cornudo. - Sussurrou Lucila. - Graças ao céu pelas pequenas Mercedes.

A mulher se aproximou do negociante de escravos, que ainda agitava os braços e gritava preso de uma esplêndida fúria romana. Lançando-lhe um olhar desdenhoso, Lucila o fez calar com uma frase de guia de ruas, muito rápida para que Regeane pudesse segui-la e pôs um pouco de prata em sua mão.

—Qual mordeu meu primo? — Perguntou Regeane.

O negociante de escravos jogou um olhar a infeliz massa de mulheres e crianças que constituíam seus estoque e começou a gritar novamente.

—O que passa agora? — Inquiriu Regeane, assustada.

Lucila suspirou.

—A garota escapou.

Ela cuspiu uma palavra ao confuso negociante de escravos, algo que Regeane não entendeu, mas que fez com que o homem parasse como se lhe tivesse jogado brasas ardentes na face.

O negociante se ajoelhou sobre os paralelepípedos.

—Estou arruinado. – Ele gemeu. - Minha esposa morrerá de fome, meus filhos...

Lucila disse várias coisas sobre as relações do negociante com sua esposa, adicionou uma breve opinião sobre a paternidade de seus filhos, que fez com que Regeane ficasse boquiaberta e ruborizada e depois organizou a busca da moça.

—Por que não deixar que escape? — Sussurrou Regeane.

Lucila sacudiu a cabeça.

—Não. Pense. Cedo ou tarde será presa por alguém e o que lhe acontecer então será pior que o que possa acontecer aqui. Não pode ser melhor.

Regeane assentiu, compreendendo a voz da razão. Até o mais cruel protetor seria preferível a lutar passando fome e mendigando nas portas das Igrejas.

A loba veio aos olhos e orelhas de Regeane. A jovem cambaleou ligeiramente pela surpresa. A luz da praça se tornou mais intensa e os aromas se converteram em uma experiência entristecedora: a pedra molhada, o ar úmido, a roupa mofada, transpirações que foram da velha sujeira pegajosa até a fresca e acre ascensão de adrenalina. Uma verdadeira inundação de mudanças, mas um, o mais importante de todos, estava perto. Uma respiração rápida, assustada, perto da carreta do comerciante de brechó.

Em alguma parte, a loba de prata baixou a cabeça para tocar com seu focinho o de um cachorrinho, ainda inseguro sobre suas patinhas. A confiança passou entre eles. A loba ficou satisfeita e partiu.

Regeane se encontrou com os olhos fechados. Abriu-os, tirando as três moedas de prata que restavam.

O negociante de escravos ainda estava gritando e puxando o cabelo.

—Compro a moça. - Disse Regeane—. Quanto quer por ela?

O negociante se interrompeu.

—O que? — Perguntou Lucila

—Eu disse que compro a garota. - Repetiu Regeane, apertando as moedas. -Diga-me seu preço.

Os olhos do homem se cravaram nela, com um olhar calculista.

—Espere um momento. - Disse Lucila—. Vais comprar uma escrava fugitiva que nunca viu. Está doente? Deixa que te toque a fronte. Deve ter febre.

—Não! — Gritou o negociante de escravos. - Seguro que sabe onde está a menina. Estão de acordo.

Achando infrutífera a busca da escrava, a multidão estava começando a se reunir a seu redor, para contemplar o novo espetáculo.

—Onde está, Benjamima? — Gritou o negociante para Regeane.

A paixão parecia ser a ordem do dia. Regeane encarou o homem.

—Quer meu dinheiro ou não? — Insistiu enquanto via se combater à fúria e a cobiça no rosto do homem. Ela deu à cobiça algum estímulo. - Três dinares de prata.

—Feito.

Regeane colocou as moedas em sua mão estendida.

—Onde está, então? — Perguntou Lucila, com as mãos nos quadris.

—É minha, — disse Regeane. - É minha testemunha.

—Sim, eu a apoiarei. É a proprietária da menina. Agora, nos diga onde se oculta sua propriedade.

Regeane se voltou para a carreta do comerciante de brechó.

—Saia. – Ela ordenou. – Saia agora.

A multidão se aproximou. A carreta tinha sido registrada, seu conteúdo removido com braços e paus. Ninguém acreditava que a fugitiva pudesse estar ali. Podia se ouvir a risada entre alguns dos espectadores.

—Saia. - Repetiu Regeane. - Está a salvo comigo. Que tenha mordido Hugo só faz com que eu goste mais de você. – Ela olhou para Hugo, que estava sentado, murmurando ininteligivelmente para si mesmo e sustentando a cabeça. Ela seguiu falando. - Desejei com freqüência uma oportunidade similar... Sim, similar é a palavra... Para mim.

A mocinha se deixou sair de trás dos vestidos pendurados dos lados da carreta. Era o bastante pequena e forte para se pendurar como um macaco dentro do vestido e fugir dos paus que pinçavam a mercadoria da carreta. Só Regeane e a loba tinham ouvido sua apressada respiração.

Era uma menina pouco atraente. Seu cabelo loiro estava emaranhado e cheio de porcaria. Pouco podia dizer de seus traços, pois o pequeno nariz estava torcido e dois jorros de sangue saíam dele, manchando sua boca e seu queixo. Estava descalça e um trapo esfarrapado era seu único vestido. Sua expressão era de rebelde mau gênio. Resistência obstinada. Regeane notou.

—HErrokkin wicca. - Murmurou a menina ao vê-la. - A bruxa de HErrokkin.

Uma imagem passou cintilando da mente da loba a da mulher: uma face de beleza ultra terrena, mas tão branca que parecia feita de neve. Olhos de terror cintilando com miríades de azuis pálidos, verdes e negros de gelo glacial. Ela, era dos desertos nevados aonde nunca chegava a primavera. A "nunca nascida", mais velha que os deuses, reina bruxa de cúpulas e geleiras sumidas em um inverno eterno. Ela, para quem o único sacrifício apropriado era o humano, sempre disposta a escolher suas próprias vítimas: caminhantes incautos, viajantes dos passos altos, enganados pelos esplêndidos dias, deslumbrados pela neve, vagando em círculos, loucos de terror. No fim, quando afundavam esgotados na neve, seus serventes, os lobos, reclamavam-nos. Os homens diziam ou possivelmente só murmuravam, que eles "tinham lhe cuidado os olhos".

A mocinha era saxã. Regeane falava seu idioma. Embora seu pai morresse antes que ela nascesse, ela havia tido uma preceptora saxã durante muitos anos.

—Não. – Ela respondeu na língua nativa da menina. - Ela nunca abandona suas neves.

Regeane tirou o véu e deu a mocinha.

—Limpe a face. Venha comigo. Seremos companheiras.

A menina se levantou devagar, estudando atentamente a face de Regeane e depois correu para a fonte com o véu na mão.

Lucila estava ao lado de Regeane. Parecia confusa e um pouco desaprovadora.

—Não trabalho com crianças e não lido trato com quem faz. – Ela disse. Um olhar à horrorizada expressão de Regeane foi o bastante. — Esqueça que tenha dito alguma coisa, por favor. - Rogou.

Regeane e Lucila seguiram à menina até a fonte. A escrava tinha conseguido limpar o sangue, mas a camada superior de fuligem estava intacta. Regeane lhe lavou a face vigorosamente, grunhindo:

—Está realmente imunda. Não cuidaram nada de ti? Meu deus, seu cabelo é um ninho de ratos. Não posso fazer nada com ele aqui.

A menina fechou os olhos e aceitou as esfregadas, com dignidade.

—Não tenho mais que uma face. Não a lave.

—Quero ver como é por debaixo da sujeira. - Respondeu Regeane sorrindo. - Bem, pequena. Isso está melhor. Tem fome?

—Claro que ela tem fome. - Disse Lucila. – As crianças sempre estão famintos.

—Não importa, — disse obstinadamente a menina.

—Ela é saxã. – Explicou Regeane com orgulho. - A maioria dos saxões morreria antes de se queixar.

Lucila elevou o queixo da menina, fazendo uma rápida valoração profissional.

—Não esta mau, melhor que a primeira vista. Um broto e muito verde, mas ainda pode crescer até ser uma beleza.

A menina se separou de Lucila.

—Eu não quero ser bonita! Quero ser um homem. Então poderia me vingar por isso! — Ela disse olhando Hugo, que tinha se colocado em pé. O mesmo soldado que lhe tinha deixado sem sentido estava o ajudando com simpatia, a cambalear para a fonte.

—Não se sinta muito mal por ser uma mulher, — aconselhou Lucila à menina, lhe dando amáveis tapinhas na cabeça. - As mulheres também conseguem suas ocasiões de vingança. Argh, que cabelo! Provavelmente está cheio de piolhos.

—Sim. - Confirmou a menina. - Picam-me a cabeça e também a roupa. Em casa me mantinha limpa. Odeio isto. – Ela passou seu olhar de Regeane a Hugo. - Em casa, — sussurrou, - meu pai teria lhe ensinado o que custa colocar as mãos em cima da filha de um Guerreiro.

Os olhos da menina se encheram de lágrimas.

—Estou chorando. Não quero chorar. Chorar é de débeis, mas quero ir a casa.

O suave lamento alcançou o coração de Regeane através de todas as camadas de cautela e indiferença, até a parte mais profunda de seu ser.

—Está muito longe, - soluçou a menina. - O navio deve ter navegado milhares de milhas. Nunca verei meu lar novamente.

Lar. Pensou, Regeane. Sim, também eu gostaria de ir para meu lar. Pelo menos ela sabe onde está o dela. Tudo o que eu tenho é um nome, Wolfstan e um povo que desapareceu no bosque.

Sem preocupar com a imundície e os piolhos, Regeane sustentou à menina contra seu corpo e deixou que desafogasse seu pesar. Sentiu um agradável calor pela primeira vez, desde que a morte de sua mãe quando os magros braços a rodearam e por um momento se fecharam como se nunca fosse soltá-la.

Lucila meneou a cabeça.

—Tem bom coração, eu vejo. É triste, mas há milhares como ela. Não pode ajudar todos.

—Não. - disse Regeane. - Mas posso ajudar a esta. – Ela afastou à menina de Hugo com um gesto protetor. Seu primo estava encharcando a cabeça na água e murmurando imprecações contra o estado geral do universo. Regeane lhe lançou um olhar depreciativo.

—Vem comigo? — Perguntou Lucila.

—Sim. – Ela respondeu enquanto usava o véu úmido para secar as lágrimas da menina.

Lucila suspirou e tirou um quadrado de linho limpo. Regeane deixou cair o véu sobre o beira da fonte, onde aterrissou com um ruído úmido. Pegou o tecido limpo e esfregou a face da menina.

—Bem, bem, pequena. – Ela sussurrou. - Não está tão longe. Se seu pai for um Guerreiro, talvez possamos...

De repente a praça se encheu com o estrondo de cascos de cavalo.

Lucila deu um grito de alarme, e seus homens se uniram rapidamente a ela.

—A tropa! — Gritou alguém.

A Tropa Romana, a guarda papal controlado pela Papa Adriano era o braço da ordem civil na cidade, respeitada e temida pelos cidadãos.

—Não. - Disse Lucila brandamente. - Não pode ser a tropa. Eu saberia. Além disso, nunca perturbam este lugar. —Sussurrou algo a um de seus homens de armas, que desapareceu rapidamente por um beco, ao igual a vários comerciantes. Outros começaram a recolher sua mercadoria apressadamente, para se retirar para as casas próximas.

Regeane se apertou contra a fonte. Sentia nua. Seu manto estava caído perto da carreta do vendedor de roupa e seu véu estava molhado.

Os homens armados se desdobraram e começaram a investigar entre as carretas e mesas.

—Malditos sejam todos eles. - Grunhiu Lucila. – Que tenham comichão, ardam e sangrem. Os bastardos estão bloqueando a única saída da praça. Pegue a mão da menina. - Ordenou Regeane. - Pensarão que é sua mãe e uma mulher casada. Raramente incomodam...

Um dos homens armados gritou:

—Deixem de correr, néscios! Não queremos a vós e nem a seu lixo.

—Cristo! — Murmurou o homem de Lucila. - É Basílio o Lombardo.

—Não... — Ordenou Lucila, mas não pôde continuar. Seu guarda-costas tampou sua boca com a mão e a levou para a casa livre mais próxima.

Regeane baqueou. A menina lhe dava puxões do braço.

—Não olhe. – Ela disse. – Olhe para frente. Se virem que está olhando, saberão onde ela se colocou.

Regeane estava aterrorizada e ao mesmo tempo, desconcertada. O que podiam procurar ali aqueles homens? Eram mercenários. Suas armas e armaduras os assinalavam como os mais competentes da violenta casta. Usavam túnicas escuras de linho e novas armaduras de couro. Perneiras fortemente presas com ligas. Estavam dando caça aos comerciantes com as espadas desembainhadas. Aços esplendidamente forjados brilhavam a luz cinza. Cada homem levava um escuro escudo de couro de boi no braço.

O líder levava um manto de rico veludo negro sobre sua armadura e o punho de sua espada estava mais adornado que as armas do resto dos homens, então Regeane supôs que devia ser o líder, se aproximou do comerciante de brechó. Começou a interrogar o homem, que havia se abaixado ante seu cavalo.

As respostas recebidas pareceram satisfazê-lo, pois fez retroceder seus arreios e permitiu o vendedor se levantar. O homem permaneceu em pé, tremendo, visivelmente aliviado de que o poderoso guerreiro tivesse deixado de ameaçá-lo.

O guerreiro fez retroceder novamente seu cavalo. Deus. Pensou Regeane. É uma formosa criatura. Tratava-se de um cavalo berbere, da espécie que ainda eram famosos por certas regiões da Grécia e norte da África. Branco, mas com cinza nos cascos, cauda e focinho. Um magnífico pescoço arqueado, peito longo, musculoso, mas alto na cruz, com patas longas, magras e elegantes. A crina ligeiramente mais escura e a cauda se frisavam esplendidamente. Um macho. O longo membro permanecia em sua capa especial.

O animal estava inquieto e Regeane sabia por que: a loba estava com ela tanto como era possível durante o dia e o cavalo a notava.

A praça tinha ficado em silêncio e as pessoas e os mercenários esperavam as ordens do líder. O cavalo deu coices e soprou. Seu cavaleiro o refreou firmemente, puxando de sua cabeça para trás. Ao mesmo tempo, seu olhar percorreu a praça.

Regeane pôde ver bem sua face: levianamente bonito. Olhos grandes, escuros, aquilino perfil romano, com nariz, boca e queixo fortes e longos. OH, não! Ela pensou. Nunca tinha visto antes a aquele homem em particular, mas havia encontrado com o tipo bastante freqüentemente. Careciam de amor ou misericórdia, existindo em um absoluto egoísmo... A mesma classe que ela temia que seu futuro marido pudesse pertencer. As intermináveis guerras os faziam surgir da mesma forma que uma onda de espuma ao romper na praia.

Regeane tinha aprendido em suas viagens a ser absolutamente cautelosa com eles. Não que rechaçassem a bondade, ao cuidar dos outros, os gestos doces da intimidade humana. Simplesmente, sequer sabiam da existência daquelas coisas. Para eles, o mundo era uma grande passagem cinza de imagens humanas como as figuras sem rosto de um velho friso rodeando algum monumento esquecido... Só que, às vezes, as figuras sem rosto sangravam.

Uma mudança de expressão muito breve para interpretar flutuou por seus traços quando ele viu Regeane. Ele voltou-se para o comerciante de brechó.

Regeane atraiu a cabeça da menina e a enterrou em sua saia para que ela não o visse.

O homem falou em tom despreocupado e rapidamente ao mercenário que estava a seu lado. Uma lança atravessou o peito do comerciante de brechó, que morreu feito um farrapo, como um de seus vestidos danificados. Sua face não mostrava medo nem dor, só uma moderada surpresa.

Na outra carreta, o vendedor de móveis começou a gemer, assinalando diretamente Regeane.

Regeane empurrou à menina, para afastá-la de si.

—Corra! — Ela gritou.

O líder dos mercenários desembainhou a espada, esporeou seu cavalo e o carregou para ela.

A loba estava com Regeane, metida em seu sangue, seus músculos, seus ossos, lhe emprestando a força da fera e a destreza, a concentração absoluta do assassino despreocupado de si mesmo. Um pandemônio tomou a praça. Alguns tentavam fugir, outros atacar com armas improvisadas: peças de lenha, tochas, Martillos e pedras do pavimento.

Regeane manteve sua posição, sabendo instintivamente que, se corresse, morreria antes de ter dado muitos passos.

Cavalo e homem passaram a seu lado em uma nuvem de couro e aroma de suor. O joelho do cavaleiro golpeou sua têmpora, ao se dar conta que seu plano frustrou. Regeane permanecia a sua esquerda, protegida pela fonte. Não podia usar comodamente sua espada.

Deus, que golpe. Regeane cambaleou enquanto sua visão esclarecia.

O semental se voltou com uma graça quase felina e se aproximou, golpeando o chão com seus cascos dianteiros, levando-a para espaço aberto, longe da fonte.

Regeane saltou de um lado no centro da praça. O mercenário riu, os dentes brilhando em sua face curtida pelo ar livre e lhe dando um ar de deleite quase infantil. Ele a tinha agora. Estava seguro.

Havia uma oportunidade. Enquanto os cascos dianteiros do semental desciam, mulher e loba viram um espaço aberto. Regeane se lançou para a cabeça do cavalo e pegou a brida no momento. Puxou com o braço direito, voltando a cabeça do cavalo muito rapidamente para que ele pudesse seguir o movimento. As patas da fera escorregaram sob seu corpo.

Ela viu a espada se elevando pela extremidade do olho... E desaparecer depois, ao cair homem e cavalo com estrépito a seu lado. Separou-se de um salto dos cascos que se agitavam e deu um último olhar à expressão de aturdida incredulidade na face do homem.

Uma boca como veludo. Ela pensou enquanto fugia por uma das estreitas ruelas que rodeavam a praça. A rua fazia pendente para cima, como uma rampa. Da praça chegou um grito furioso:

—Peguem ela! Pelos ossos de Cristo, terei o sangue dessa zorra!

Os cascos ressoaram sobre a pedra. Regeane fugiu como o vento. A rampa terminava em uma parede lisa.

A entrada das poucas casas que davam para a ruela estava bloqueadas por fortes levas de madeira, como as janelas que olhavam para baixo na escuridão.

A sua direita, a rua continuava como um lance de degraus da pedra. Estavam sujos da eterna umidade do Tibre e os refugos das casas dos arredores. O mau cheiro afogava à loba, mas a mulher se lançou à carreira rua acima. Correndo, com os pés escorregando na sujeira, Regeane chegou ao alto, de quatro pés.

Soou um grito e Regeane se voltou. A pequena saxã estava subindo os degraus de dois em dois.

—Siga correndo. – Ela gritou. - Um deles está justo atrás de mim.

Regeane o fez. A menina se aproximou dela.

—Por que não foste com Lucila? — Reprovou Regeane.

—Vai discutir agora? Já me castigará logo. — A menina adiantou-se à Regeane e seguiu adiante.

Ouviram gritos e maldições quando o cavaleiro encontrou os degraus. O golpear dos cascos se converteu em pisadas de botas.

O coração de Regeane martelava de terror. A ruela estava se estreitando e já não era o bastante larga para que as duas caminhassem uma ao lado da outra. As paredes se aproximavam mais e mais. A rua fez um giro e acabou em... Uma parede lisa.

Regeane se voltou, apoiando as costas contra a parede, e deu uma desesperada olhar a seu redor. As casas que rodeavam a ruela tinham três pisos de altura... Três pisos para cima. Lisas superfícies de estreitos tijolos de terracota subindo para o frio céu cinza.

A loba tentou acudir, arrastar Regeane à mudança, mas não pôde. Estava muito fraca e cedeu ao parecer se dar conta de que só conseguia esgotar as forças da mulher.

Os passos soaram mais perto. Apressados.

—Ssst! — O sinal soou perto de seus pés. A abertura estava tão cheia de escombros que ela tinha passado por cima.

—Depressa! — Chamou a menina. – Se continuar tremendo ele te pegará.

—Não estou tremendo. - Protestou Regeane em um vaio. - É o bastante grande?

—Sim... Possivelmente... Bom, não sei. Baixei muito rápido e não sei. Mas, por favor...

O mercenário apareceu à entrada do beco. O apavorado cérebro de Regeane calculou que era aproximadamente três vezes maior que ela. Outra parte de seu cérebro apresentou uma grotesca imagem da parte superior de seu corpo presa no deságüe enquanto o soldado lhe cortava a metade inferior de seu corpo e as pernas, com sua espada.

As mãos de Regeane afastaram as folhas mortas para um lado. A loba acostumada a cavar fez um rápido cálculo. Regeane se lançou no buraco.

Com um grito de fúria, o guerreiro saltou atrás dela.

O túnel corria colina abaixo e suas paredes estavam escorregadias a causa do limo.

A mão do homem se fechou sobre seu tornozelo. Regeane chiou e arranhou desesperadamente o interior do deságüe de argila. Era muito liso para pegar.

Algo aferrou seu cabelo e deu um puxão. Ela saiu pelo outro extremo do túnel como um porco engordurado, aterrissando justo aos pés da menina e deixando um sapato na mão do soldado.

Alguns gritos que eram a prova da raiva frustrada do homem ressoaram no encanamento.

—Me solte o cabelo! — Mandou Regeane quando pôde ficar em pé.

A menina pareceu ofendida.

—Tiveste sorte de que conseguisse te pegar. É muito melindrosa. Tinha que ter entrado quando lhe disse. — Ela tentou fechar o deságüe, onde ainda ressonava a fúria do soldado. - Não se preocupe. – Ela disse. - Não poderá passar até que tire mais peças de sua armadura.

—E fazer isso não lhe levará muito tempo, - disse Regeane enfaticamente enquanto puxava a menina.

O pátio estava rodeado por casas de dois pisos. Cada porta e janela estavam trancada. Regeane não podia ver nenhuma saída.

—Acima. - Disse a menina assinalando uma fila de balcões de pedra que percorriam o primeiro andar. Eram diminutos e estreitos, mas inclusive naquele favela, cada um tinha pelo menos um vaso de barro de ervas e flores. O mais próximo tinha vários mais e oferecia uma possibilidade de se ocultar.

Regeane pegou à menina e a empurrou por cima do corrimão, subindo depois atrás dela. Provou as venezianas com os dedos. Pranchas sólidas. Viu ferrolhos encima, abaixo e no centro. Não havia saída.

O guerreiro escorregou fora do deságüe. Regeane e a menina se agacharam atrás dos vasos de barro e tentaram se tornar tão pequenas como fosse possível. O guerreiro sob elas se moveu em círculos, examinando o pátio vazio. Podia ter descartado sua armadura, mas levava uma grande espada de aspecto mortífero. Regeane se recordou do comerciante de brechó e estremeceu.

—Eu não gosto disso. – Ela cochichou. – Ele vai nos encontrar.

Sentiu que a menina lhe segurava o braço com mais força. Sacudiu-se para se liberar e ficou em pé. O homem estava justo sob o balcão.

Regeane pegou um suporte de vasos de sálvia cinza com longos caules de flores azuis e o deixou cair sobre a cabeça do soldado. Embora lhe acertasse totalmente, o golpe não lhe fez muito dano. Ele estava com o elmo.

O mercenário deu um rugido de fúria e se voltou, saltando para subir no balcão. Ficou pendurado do corrimão com uma mão, esgrimindo a espada com a outra para impedir que Regeane se aproximasse.

Os dedos da jovem se fecharam em torno das asas de um grande jarro de romeiro. Parou o golpe com ele. A mão do homem e o pomo da espada se chocaram com a vasilha. O guerreiro gritou novamente, desta vez de dor e começou a deixar cair.

Regeane foi muito rápida para ele. Com toda sua força, rompeu o fundo da vasilha contra a fronte do mercenário.

Homem e jarro caíram, aterrissando com estrondo sobre as lajes. O soldado rodou entre a sujeira e o jarro quebrado, apoiando-se nas mãos e joelhos para se levantar.

—Oh, Deus! - Sussurrou Regeane. - Não.

—Sim. - Disse a mocinha com a boca convertida em uma apertada linha. - É muito obstinado. — Ela escolheu uma panela de barro com flores de camomila. Quando o soldado voltou a cair, ficou quieto.

Regeane se apoiou no corrimão, tremendo e buscando ar.

—Por que querem te matar? — Perguntou a menina. - O que fez?

Regeane sacudiu a cabeça.

—Nada. – Ela respondeu completamente desconcertada.

A menina a olhou, com o cepticismo marcado em cada um de seus traços.

—Não vai dizer então. – Ela disse, soando profundamente ofendida.

—Não sei o que tenho que te dizer. De verdade não sei.

—Pode ser que tenha razão. - Disse a menina pensativamente. - Chorei de forma vergonhosa na praça e agora pensa que sou fraca. — Olhou para Regeane com uma expressão de beligerância quase adulta, só danificada por uma ligeira projeção do lábio inferior. - Mas não sou fraca. — Ela saltou o corrimão, deixou-se cair na terra e pegou a faca do homem caído.

Regeane se apressou em se reunir a ela.

Os dedos da menina se retorceram no cabelo do soldado.

—Não! — Gritou Regeane. - Não é uma boa idéia. É perigoso. Ainda não é uma pessoa livre e eu sou estrangeira. Poderiam nos castigar.

Junto à cabeça do homem, a menina olhou Regeane com expressão de desgosto.

—Está procurando desculpas. Bonita protetora vai ser. Nem sequer tem coragem para cortar a garganta de um homem. Estaria melhor sozinha.

Regeane pensou que, por diversas razões, ela podia estar certa, mas não pensava deixar que a menina corresse aquele risco. As conseqüências eram inaceitáveis, tinha visto os espantosos castigos infligidos aos escravos.

Pegou a mão da menina e puxou-a, para afastá-la do homem inconsciente.

—Não, não vai lhe cortar a garganta. Venha. Tentaremos encontrar uma forma de...

Regeane se calou ao ver que a desaprovação no rosto da menina se convertia em terror.

 

                                            CAPÍTULO 5

—O que acontece? —perguntou Regeane.

A menina rebuscou sob seu vestido. Levava algo ao redor do pescoço, um pedaço de pedra em uma correia. Pegou-o, sussurrou uma oração em sua própria língua e começou a retroceder rapidamente.

Regeane ouviu os passos e olhou ao redor. Uma suave gemido de terror se elevou em sua própria garganta. A coisa meio coxeou e se deslizou para ela. A maior parte de seu corpo estava coberto por uma pesada capa negra com capuz, mas o que podia ver era já bastante ruim. Sustentava o capuz sobre a parte inferior da face com cotos de dedos.

Os ossos se sobressaíam entre farrapos de carne pálida e podre. Dentro do negrume do capuz, o nariz estava meio devorado pela enfermidade, com o tabique claramente visível. A loba de prata sentiu o mau cheiro da morte, mas por cima do espantoso nariz, dois olhos olhavam vivamente para Regeane. Olhos que eram quase bonitos: grandes, de cor avelã e orlados com cílios escuros.

—Meu jardim, — sussurrou. - Danificastes meu pequeno jardim.

Ele se deteve, abaixando ao lado da rota vasilha de sálvia, onde as flores azuis destacavam orgulhosamente entre a terra e os pedaços de argila. Acariciou as pétalas brandamente, com um pálido e ossudo dedo indicador.

—Meu jardim. – Ele se lamentou em voz baixa, para si mesmo. - Meu pobre e pequeno jardim. Era tudo o que restava.

—Sinto muito. - Balbuciou Regeane. - O soldado estava nos perseguindo.

—Mas isso não lhes dava direito a danificar o jardim de Antonius. - Acusou alguém a Regeane.

As portas da pequena praça se estavam abrindo. Uma moça estava em pé em uma delas. Seu longo cabelo estava tingido de hena, de vermelho brilhante, mas era negro nas raízes. Era para ser bonita, salvo pelo grande buraco em uma bochecha, através de qual se podiam ver duas filas de dentes, com claridade.

Uma mão levantou a saia de Regeane. Alguém soltou um risinho, ela olhou para baixo.

Aquela coisa saltava sobre os cotos de suas pernas. O braço unido à mão era longo e simiesco. A face era côncava, como se tivesse sido esmagada e aplainada pelos golpes de um Martillo gigante. Os mucos emanavam de seu nariz e sua boca sorridente, cheia de raízes grandes de dentes amarelos, deixava fugir uma corrente de baba.

Regeane deu um chiado afogado e retrocedeu.

A coisa a seguiu, estirando, enquanto cantarolava "Senhora bonita, senhora bonita".

Ela retrocedeu até se chocar com outro personagem, que só a olhou com solenidade, um moço tão deformado por sua corcunda que se apoiava em pés e mãos. Seus olhos eram vazios. Regeane compreendeu ao evitar suas mãos, que ele era cego.

Estavam por toda parte. Cada porta e balcão albergava uma ou outra obscenidade retorcida. Alguns luziam marcas de tortura e mutilação: olhos arrancados, narizes e orelhas cortadas, cotos em lugar de mãos ou pés... Estavam vivos, ou de algum jeito tinha chegado a um bairro povoado só pelos mortos?

Regeane sentiu que algo segurava o outro lado de sua saia. Deu um violento puxão, mas depois compreendeu que era a menina, que se aferrava desesperadamente a ela, a face enterrada nas dobras de seu vestido. Rodeou-a com o braço.

—Não gosta de nós? - Gritou a mulher ruiva com uma risada. - Quem mandou que traga aqui sua face bonita e nos recorde o que perdemos? Parta. — Ela recolheu um pedaço de vaso de barro e o atirou em Regeane.

Eles se aproximaram ao redor de Regeane, acossando-a, suas vozes uma cacofonia de palavras idiotas, risinhos e aqui e ali, o mais aterrador, um lamento de ódio ou raiva.

Regeane sentia uma estranha debilidade. A loba tentava reclamá-la. Sentiu a urgente necessidade de mudar, um tremor entre o mundo cotidiano e os errantes fantasmas da luz da lua.

—Que vergonha. — A voz era rouca, mas autoritária. Saía do primeiro ser que tinha visto Regeane, que tinha lamentado a ruína de seu jardim. Ele avançou, apoiando-se em um longo bastão. A parte inferior do capuz estava agora em ascensão sobre a arruinada face e tudo o que ela podia ver eram aqueles dois olhos estranhamente bonitos que a olhavam por cima do tecido negro. - Que vergonha. – Ele repetiu airadamente.

Quando chegou à altura de Regeane descreveu um amplo círculo com seu bastão, fazendo retroceder os que se apinharam ao redor das duas recém chegadas.

—Eis aqui uma estranha que veio entre nós, procurando cortesia e amparo. – Ele disse, enquanto voltava à cabeça encapuzada para o soldado que ainda jazia sobre as pedras da rua. – Não importa o que somos, não podemos estar mortos a toda compaixão ou humanidade. Se isso acontecer entre nós, no que nos converteremos?

A multidão ficou calada. A amável recriminação do encapuzado parecia ter grande peso entre eles.

— Drusis, - ele disse ao homem sem pernas que estivera tentando elevar a saia de Regeane. - Vá chamar meu irmão. E limpe a face. – Ele acrescentou com severidade. - Não está apresentável para os olhos de uma gentil senhora.

Para a surpresa de Regeane, Drusis adotou uma expressão envergonhada, abaixou a cabeça e se afastou com rápidos saltos. Antonius se voltou para Regeane. Os olhos claros e tranqüilos pareciam contemplar seu interior.

—Drusis trará meu irmão, - ele assegurou, - e ele pode te tirar daqui. Deve perdoar as más maneiras de meus amigos. Não é freqüente que um forasteiro se desvie A... Até a casa dos mortos.

A menina saxã apareceu entre as dobras da saia de Regeane, para olhar à figura encapuzada.

—Então é um morto? — Ela perguntou covardemente.

Os olhos passaram da face de Regeane à menina.

—Não exatamente, mas o mais parecido. Sou um leproso.

Regeane sentiu que seus joelhos se debilitavam. Não de medo, mas de alívio. O temor de ter entrado em um recinto povoado por aquelas formas escuras que via nos alpendres das Igrejas ou perto dos cemitérios desapareceu. Comparados com aquelas visões, os pobres proscritos deformados não eram terríveis, mas patéticos.

—Oh! - Ela suspirou. - Graças a Deus. Eu... Eu temi que fossem outra coisa.

Os olhos cor avelã voltaram para sua face com, se ela não se equivocara, uma expressão de certa perplexidade.

— O tomei por um fantasma, - ela explicou.

—Não. – Disse Antonius serenamente. - Logo o serei, mas ainda não. Vê coisas assim freqüentemente?

—Sim. - Admitiu ela com relutância. Depois matizou sua declaração. - Bom, não tão freqüentemente. Só duas ou três vezes ao ano, mas quando acontece...

Houve um movimento na multidão. Um homem se aproximava através dela.

—Que diabos... —disse, interrompendo assombrado ao ver Regeane. O leproso encapuzado se voltou para ele.

—Esteban, irmão meu, esta senhora e... — Ele assinalou à menina com um rápido gesto da mão. - Sua pequena amiga chegaram perseguidas por aquele ali. —Assinalou ao soldado, estendido ainda entre a terra e os restos dos vasos de barro. - Por favor, se puder, as conduza até um lugar seguro.

Esteban era um homem alto, de rosto magro, cabelo cinza e uma barba igualmente cinza que se frisava em seu queixo. Sua roupa era tão singela como a dos granjeiros latinos que Regeane via todos os dias levando seu gado e no mercado: uma túnica de lã castanha e sandálias. Não levava o manto que usavam a maioria dos homens nascidos livres, mas a velha capa antiga dos camponeses, um simples quadrado de tecido com um buraco para a cabeça, apertado com um cinto. Mas até com aquela singela vestimenta, havia algo na posição de seus ombros, e na firmeza da boca sob o forte nariz, que revelava a alguém acostumado à autoridade, a dar ordens e que fossem obedecidas.

—Cresta. – Ele disse à mulher do buraco na bochecha. - A quem pertence isso?

A mulher se aproximou do guerreiro caído e o examinou.

—É um dos seguidores de Basílio, o Lombardo. Não sei como se chama, mas Basílio é seu amo.

—Basílio, é? — Comentou Esteban. Uma pequena ruga apareceu em sua testa. - O que está fazendo aqui? Sixtus, Numerus, - ele ordenou assinalando dois homens, um com ganchos de ferro em vez de mãos e outro carente de nariz, orelhas, e parte do couro cabeludo. - Leve daqui este lixo e atirem em alguma parte. Não quero que desperte aqui. Você, minha dama, venha comigo. – Ele disse voltando-se para o Regeane.

— Eu os acompanharei, - disse Antonius timidamente, - se minha presença não te ofender.

—Oh, não- Respondeu Regeane, negando com a cabeça. Estava agradecida por seu resgate.

Então recordou as poucas moedas de cobre que restavam em sua bolsa, tirou-as rapidamente e estendeu a mão para Antonius, com as moedas em sua mão.

—Por favor, tome isto. – Disse. - É por seu jardim, suas flores. Lamento muito ter quebrado os vasos de barro, mas verá como as flores crescerão novamente.

Antonius não se moveu nem alongou a mão para pegar o dinheiro. Em troca, seus olhos procuraram os de seu irmão Esteban.

—O óbolo da viúva. – Ele disse e se voltou novamente para Regeane. - Estou bem atendido. Meu irmão se ocupa de todas minhas necessidades. Sou eu quem deve se desculpar por ter sido tão infantil por causa de alguns vasos de barro.

Ao olhar para Esteban, Regeane descobriu que a severidade em sua expressão se abrandou até se converter em um olhar amável.

Regeane olhou ansiosamente para o soldado: os homens de Esteban o levavam arrastando-o pelos pés. Um procedimento bastante duro. Ela pensou. O crânio do ferido batendo sobre os degraus.

—É possível que eu seja chamada ante o magistrado e acusada de... Isto? Não me preocupo comigo, mas a menina... É... Ela não é ainda uma pessoa livre.

—Não. - Cortou Esteban. - Ele não devia estar aqui. Se eu não estivesse a serviço de Cristo, ordenaria sua execução sumária. A Papa Adriano ordenou que a facção lombarda permanecesse fora de Roma e...

Antonius interveio com uma suave risinho.

—Parece que Adriano não teve tanto êxito como esperava, controlando suas atividades.

Esteban parecia vexado.

—Não. – Ele grunhiu. - Mas acredito que quando Adriano for ciente do problema, tomará medidas oportunas.

—Nem sonhe. - Disse Antonius, em um tom mais sério. - As famílias romanas ainda estão repartindo suas apostas e provavelmente o clero faz o mesmo. Acredite, irmão e tome cuidado. – Ele advertiu.

—O que é "repartir uma costa"? — Perguntou a menina.

—"Repartir apostas" — Corrigiu Regeane e como ela tampouco sabia, falou à menina que não fizesse tantas perguntas.

O lábio da pequena se projetou para fora, e seus olhos cintilaram. Ela e Regeane se olharam mutuamente.

—Só fiz uma. E, além disso, meu pai dizia que a única forma de averiguar algo é fazer perguntas. Por isso as faço.

—Tem razão. - Aprovou Antonius. - As perguntas, com respostas ou não, sempre são uma necessidade. Neste caso, "repartir apostas" refere-se ao última Papa que foi dominado pelo bando lombardo em Roma. O atual Papa, Adriano, declarou sua independência do lombarde Desidérius e expulsou seu homem, Pablo Afartha, da cidade. Basílio era o capitão de Pablo Afartha. Muitos dos pobres desventurados que venha aqui devem suas aflições à natureza, mas outros as sofreram nas mãos do Pablo e Basílio. Seu pecado foi pertencer à facção equivocada. Por isso se refere à partilha de apostas, os romanos ainda não estão seguros de que a política de Adriano vá ter êxito. Em outras palavras, temem que o atual Papa possa cair também sob a influência dos lombardos. Assim tentam ter muito cuidado para não ofender a ninguém.

—Mas o que tem isto a ver comigo? — Perguntou Regeane, preocupada.

—Irmão. - Sussurrou Antonius. - Se pudéssemos entrar e nos sentar, eu agradeceria. Estes dias acho tanto o calor como o frio difíceis de suportar. E me esgoto inclusive ao dar alguns poucos passos.

Suas palavras foram serenas, sem nenhum matiz de gemido ou auto compaixão. Regeane compreendeu que eram simplesmente a verdade.

—Sinto muito. - Respondeu Esteban penitentemente. - E eu estou esquecendo meus deveres como anfitrião.

Regeane teria desdenhado suplicar por ela mesma, mas sabia que a menina devia estar esfomeada. Por seu aspecto, resultava óbvio que o negociante de escravos a tinha feito passar fome com a intenção de quebrantar seu pequeno e independente espírito.

—Por favor, senhor. Se fosse possível encontrar algo de comer para a menina...

—Acredito que poderemos conseguir algo para as duas, — respondeu Esteban. - Venham por aqui.

Esteban abriu marcha através da praça, com Antonius arrastando os pés atrás deles. Seguiram-no até o interior de uma igreja, um lugar pequeno, bastante nu, como a maioria das capelas de gente pobre de Roma.

As brancas paredes de estuque tinham poucas janelas estreitas que deixavam entrar largas agulhas de luz. Seu único adorno era uma pintura no afresco ao redor do santuário, que emoldurava o altar com seu dossel quebrado e a superfície de mármore nua.

A pintura representava um prado na alvorada. A erva verde estava enfeitada com flores primaveris: papoula, jacintos silvestres, a delicada violeta, manjericão, e por cima de todos eles, resplandecente em ametista e ouro, a primeira luz mágica do amanhecer. Iluminada por uma abertura no topo da cúpula sobre o altar, a cena enchia a singela e pequena igreja da fragrância de uma manhã primaveril e a liberdade de amplas vistas sob o céu aberto.

—É o amanhecer, - disse Regeane.

—Não. - Respondeu Antonius atrás dela. É o crepúsculo. Sei bem, eu o pintei. É fácil confundir o ocaso com o alvorada. A luz é quase a mesma.

—É maravilhoso ser capaz de fazer algo tão bonito. - Comentou a menina.

Regeane falou à pequena, recordando a condição das mãos de Antonius, os brancos cotos de osso se sobressaindo da carne.

—Não importa, - disse Antonius. - Ela não entende.

Regeane conduziu à menina através da igreja, mas a pequena saxã se deteve e puxou sua mão.

—O que é o que não entendo? Se não entender algo, quero que me expliquem. – Ela protestou. Seu rosto tinha uma expressão teimosa e o lábio inferior estava se destacando novamente.

—Venha, - mandou Regeane, envergonhada, - e deixa de estorvar.

A menina provou sua força contra a presa de Regeane em seu braço e decidiu que um avanço digno era melhor que ir a rastros.

—É uma dessas coisas que se supõe que saberei quando for maior. As pessoas estão sempre me dizendo isso! Se simplesmente me explicassem, eu entenderia agora!

Regeane ouviu uma risinho a suas costas e compreendeu que Antonius não estava ofendido.

—Não pode ser tua filha. – Ele disse. - É muito jovem.

—Claro que não sou sua filha, — disse indignada a pequena. - Eu sou saxã. Ela é uma franco. Não vê a diferença?

—Seja o que for, — interveio Esteban, - é um aporrinho.

Já estavam perto do altar. Esteban abriu uma porta na parede e fez passar Regeane e ela soube que eram seus aposentos.

A jovem se sentiu de repente consciente de seu próprio estado desalinhado. Seu manto tinha desaparecido. Recordou com um arrepio que o comerciante de brechó estivera sobre ele sangrando até morrer e pensou que não o queria de volta. Tinha usado o gasto véu como trapo. Tinha perdido seus sapatos, um para seu perseguidor e o outro havia caído ao subir no balcão. Olhou para baixo e moveu os dedos dos pés. O vestido que usava estava puído e para começar, estava manchado pela imundície das ruas e o limo do túnel. Seu cabelo lhe pegava ao couro cabeludo, condensado pelo suor e a sujeira.

O quarto estava imaculadamente limpo e embora pouco mobiliado, poderia ter pertencido a qualquer das bonitas vilas patrícias que guardavam a cidade.

Um canto a um extremo da quarto tinha uma cama com cortinas. Era como a maioria das camas francas, uma caixa de madeira que servia como recipiente para o cobertor de plumas e a colcha. Mas o cobertor tinha o brilho da seda e o singelo patrão das bordas era de linho dourado. O linho dos lençóis e cortinas era tão branco como a neve e tinha os mesmos adornos, mas de renda e com as aberturas bordadas em seda.

Havia uma mesa que ocupava toda a longitude do quarto. A primeira impressão de Regeane foi que era muito velha, e a segunda que antigamente devia ter pertencido a um palácio. Era dura e de carvalho, com um brilho acetinado e a superfície estava adornada com folhas de acanto de marfim. Os bancos que havia junto a ela eram de igual qualidade, e estavam decorados com o mesmo motivo em marfim.

A um extremo da mesa, perto da parede de pedra, elevava-se uma cadeira lavrada de alto respaldo ante um suporte de livro sobre o qual descansava um grande livro. O olho de Regeane captou o brilho do pão de ouro e o azul do pergaminho iluminado.

Um móvel da estadia se destacava em virtude do fato de não se encaixar com a qualidade do resto. Tratava de um singelo banco de madeira com uma almofada de palha ao extremo da mesa, oposto à cadeira de alto respaldo. Antonius entrou coxeando no quarto atrás de Regeane e se aproximou dele.

—É o meu, para que quando... — Ele fez uma pausa durante um momento profundo, porque Regeane entendeu o que ele não disse. - Quando eu já não o necessite, poderá queimar.

Ele se moveu com dificuldade, como se sentisse dor. Regeane se deu conta de que o momento de queimar o banco podia chegar logo.

O latim de Antonius era claro e bonito, mais próximo ao idioma dos Césares que o jargão falado nas ruas de Roma. Limpo e preciso, com o sotaque de um homem de bom berço e educação, embora estranhamente balbuciado. Regeane não gostou de pensar na condição dos lábios dos quais saíam àquelas palavras.

A voz do leproso podia ser jovem, mas seus movimentos eram lentos, dolorosos e inseguros, como se arrastasse graças a um esforço de vontade. Os olhos de seu irmão pousaram sobre ele com grande amor e tristeza resignada, expressando mais claramente que qualquer palavra a certeza do destino de Antonius.

Regeane e a menina vacilaram na porta. Antonius se deteve o lado do banco.

—Por favor, entrem. Não têm por que temer o contágio. Enquanto estou neste quarto me sinto só em meu banco e não toco nada que seja de meu irmão. Ele não está infectado não ficou nunca, embora os outros desventurados que moram aqui e eu estejamos a seus cuidados.

—Oh, não. Não é isso. - Explicou Regeane, olhando seu vestido andrajoso e o cabelo emaranhado da menina. - Nosso próprio estado é...

—Estamos sujas. - Disse rotundamente a pequena. – E sentimos muito, mas não tínhamos tempo para nos assear. Estávamos correndo por nossas vidas. O negociante de escravos que me tinha, não deixava que eu me lavasse e me mantinha encadeada, pois temia que fugisse. Era um homem mau, embora tivesse razão. Eu teria fugido se tivesse me dado uma oportunidade. E, - ela acrescentou olhande Esteban com desafio em seus olhos azuis escuros, - não sou um aporrinho. Meu pai sempre dizia que eu era uma menina boa e obediente. E sou.

Antonius riu entredentes novamente, o som atenuado pelo pesado manto. Esteban reprimiu um sorriso e mostrou Regeane e a menina uma pequena pia, onde fizeram o possível por reparar os danos sofridos em sua fuga: as duas tinham a face e as mãos limpas quando voltaram para o outro cômodo.

Esteban pôs vinho, pão e queijo amarelo ante elas e depois se sentou em sua grande cadeira à cabeceira da mesa, tomando somente um pouco de vinho aguado.

À vista e o aroma da comida, Regeane compreendeu que tinha uma fome voraz. Fez quanto pôde para não devorar tudo de repente. Só quando ela satisfez o pior de sua fome e ficou mais relaxada bebendo a goles o vinho, começou Esteban a lhe fazer perguntas.

—Me diga, por que Basílio o Lombardo a perseguia?

—Não quis dizer a mim. - Interveio a menina. - Pode ser que lhe conte.

Aquilo incomodou Regeane.

—Posso entender seu cepticismo, mas não o leve muito longe,. Sou de confiar na maioria das matérias. Nós duas sabemos o que está acostumado a dizer dos mentirosos.

A menina lhe cravou o olhar.

—Dou-me por corrigida. – Ela respondeu em tom rígido. E se aplicou à comida.

—Irmão, - disse Antonius, - não acredito que tenha que procurar além de sua face encantadora. Basílio a viu e...

—Não. - Cortou Regeane. - Ele tentou me matar. Veio contra mim com a espada na mão.

—Como escapou disso? — Inquiriu Antonius.

—Foi esplêndido. - Comentou a menina. - Ela pegou o cavalo pelo bocal e o atirou ao chão. Eu tinha ouvido falar dessa manobra de guerreiro, - ela disse entusiasticamente. – Ouvia os homens de meu pai quando falavam dessas coisas, mas nunca tinha visto.

—Quem é você? — Perguntou Esteban. - A menina me disse que é uma franco. Como se chama?

Regeane se voltou para ele.

—Regeane, filha de Gisela e... — ela pensou e depois seguiu orgulhosamente, - e de Wolfstan.

—Gisela, da família de Pipino?

—Sim.

—Está prometida a Maeniel, o estrangeiro. Não é de estranhar que Basílio queria te matar. - Disse Esteban, voltando a se sentar em sua cadeira. Parecia horrorizado. - Que fazia uma dama de sua fila vagando sem escolta pelas ruas de Roma e nada menos que no mercado dos ladrões? — Seu tom era de ultraje.

—Estava tentando comprar um vestido, — gaguejou Regeane. - Somos muito pobres e... Chama-se Maeniel, então? Gundabald não me disse seu nome: só me explicou que era um senhor montanhês.

Sim, — respondeu Esteban. - É um homem algo misterioso, este Maeniel, mas tem uma fortaleza que domina uma passagem através dos Alpes.

—Uma posição muito poderosa. - Acrescentou Antonius. - O rei dos francos te procurou um bom compromisso.

—Não entendo. - Disse Regeane. - O que tem isso a ver com Basílio?

Esteban afastou sua cadeira da mesa.

—Não precisa se preocupar por tais coisas, moça. Diga-me onde se hospeda seu tio, chamarei dois de meus homens para que a levem de volta sem perigo. Não apareça nem o nariz à rua até que eu possa deixar cair uma palavra nas orelhas de alguns quantos amigos e fazer com que Basílio seja expulso da cidade.

—Não! — Gritou Regeane, saltando tão rapidamente que quase tombou o banco. - Não voltarei para minha casa. Quanto a esse Maeniel, pode encontrar a alguma outra mulher para casar. Hoje, na praça, conheci uma mulher chamada Lucila. Ela...

—O que é essa insensatez? — Gritou Esteban, golpeando a mesa com o punho. - Lucila! É tão néscia, tão ingênua para não imaginar o que Lucila quer de ti?

Regeane olhou para ele, com o queixo elevado insolentemente. Procurou a mão da menina, pegou-a e disse:

—Não sou uma néscia, nem tampouco uma ingênua. Sei exatamente o que Lucila quer de mim, mas isso é melhor que ser vendida a algum homem que me aborrecerá. Melhor que viver uma vida de medo, assustada em comer e beber...

Assombrado, Esteban a olhou fixamente.

—Que fantasias são essas? Quem te encheu a cabeça com tantas tolices? Como pode desprezar um matrimônio honorável, para ir com uma cortesã como Lucila...

—Regeane, - disse Antonius, levantando-se pela metade de seu banco. - Deixe de gritar e sente-se. Ninguém vai aqui vai te obrigar a fazer nada.

Regeane se voltou para ele. Antonius ainda levava o manto por cima da face, mas os olhos escuros olhavam serenos e compassivamente os seus.

—E, - ele continuou, voltando-se para seu irmão, - eu não considero que seu evidente medo desse matrimônio seja tão infundado. Considere a situação da filha de Desidérius. Aquele matrimônio também foi visto como um enlace inteligente, que asseguraria a paz e a amizade entre dois grandes reino. Como acabou? A moça foi enviada de volta a casa, expulsa com desonra da cama de seu marido, sua reputação arruinada. Era a filha de um duque lombardo. Há outras histórias aterradoras. Às vezes as mulheres eram ainda piores. Regeane não é uma menina. Nenhuma menina fugiria de Basílio e...

A pequena saxã o interrompeu com orgulho.

—Ela o fez cair no chão. O cavalo escoiceava como um louco e o guerreiro amaldiçoou e gritou. Todos começaram a lutar. Eu me arrastei entre as pernas das pessoas e pude fugir.

Esteban se tornou para trás em sua cadeira e ocultou seu rosto com uma mão, mas Regeane pôde ver que estava sorrindo.

—Muito bem. – Ele disse, deixando cair sua mão sobre a mesa e devolvendo o olhar a Regeane. - Como de costume, meu irmão tem razão. Quase sempre me leva de volta ao caminho da sabedoria quando me desvio dele. Estas coisas devem ser discutidas de forma serena e racionalmente, assim sente. Ninguém a obrigará a nada.

Regeane se sentou, com os joelhos ainda trêmulos. Esteban se inclinou para ela e uniu os dedos.

—O que sabe de política, moça?

Ela meneou a cabeça.

—Quase nada.

—Melhor. - Disse Esteban. - Graças a isso não terei que eliminar tolas idéias equivocadas. Ouça, assim é como está o mundo. Roma, a antigamente orgulhosa senhora do mundo, tem caído em maus tempos.

—Já notei, - respondeu Regeane.

—Sim. - assentiu ele, elevando suas escuras sobrancelhas. - Não precisa ser um gênio. A cidade está em ruínas e em duas de três partes, seus habitantes lutam contra a pobreza e a escassez de comida. Os magníficos aquedutos que construíram meus antepassados estão secos e inclusive as fontes das quais até recentemente emanava água pura se esgotaram. Encontramo-nos quase impotentes, situados como estamos entre duas grandes potências: o ducado do Spoleto e o reino dos lombardos. Qualquer dos quais, devo acrescentar, estaria encantada de engolirmos, se sentar sobre os escombros e limpar os dentes com nossos ossos. E o que os impede, moça?

Regeane olhou a chicoteada face com um sentimento de surpresa. Não estava acostumada a que cavalheiros distintos lhe falassem assim.

—O respeito a Santa Igreja, - ela aventurou.

Esteban soltou uma risada oca.

—Não, querida. Os francos o impedem.

Regeane estava desconcertada.

—Como podem os francos impedir que os conquistem? Estão muito longe.

—Mas são muito poderosos, e disse Esteban, - e tanto Desidérius como o duque do Spoleto os temem. Ao rei dos francos interessa muito assegurar a passagem dos Alpes. Se não o fizesse, poderia despertar alguma bonita manhã da primavera com um exército lombardo às costas. Então já pode ver por que Desidérius gostaria de impedir um matrimônio entre uma mulher da casa real e esse senhor montanhês, Maeniel. Basílio é um confidente, servidor e amigo de Desidérius, rei dos lombardos.

—Sigo sem entender por que sou tão importante, - insistiu Regeane. - Não poderia o rei limitar a encontrar outra dama para que se casasse com esse Maeniel?

—Sim, mas estas questões são bastante delicadas e, enquanto isso, Desidérius, vendo Maeniel sem compromisso, poderia empreender outras manobras para lhe atrair ao bando do reino lombardo. Além disso, em certos aspectos é ideal para os propósitos de Carlos.

Regeane afastou o olhar de Esteban e o centrou no pão que tinha na mão. Esmiuçou um pouco com os dedos.

—Minha família é pobre, isso é o que quer dizer e eu não tenho nenhum parente orgulhoso que possa opor a tal enlace. E não sou nenhuma grande beleza, então...

—Ao contrário. - Disse Esteban. – É em sua juventude e beleza no que estava pensando quando disse que é ideal.

—Meu tio Gundabald me chama "pálida" e "peito plano".

—Seriamente? — Perguntou Estevam. Seus olhos se endureceram e sua boca desenhou uma firme linha. - Por que, rogo-lhe, ele diz tais coisas de uma donzela que está a ponto de casar?

Regeane levantou o olhar até sua face. Algo nela e na maneira em que fez a pergunta lhe fez sentir medo. Este homem tem poder. Ela pensou. Não sabia que tipo de poder nem quanto, mas em sua expressão podia ver a absoluta confiança de um governante em si mesmo.

—Ele quer que eu... — Ela vacilou, compreendendo que não se atrevia a comunicar os planos de Gundabald a aqueles homens. - Quer que o ajude... Acredita Que esse senhor agradecerá o matrimônio...

Os olhos de Esteban se estreitaram.

— Começo a gostar de cada vez menos desse Gundabald e sequer conheço.

—Que cruel insulto, - corroborou Antonius com suavidade, - e além falso.

Regeane se voltou para ele. Seus bonitos olhos estavam fixos nela. A sombra de uma fome quase esquecida se insinuava neles.

—Não tem o viço da matrona, mas a graça da donzela. O ar da primavera está sobre ti. É um broto, com pétalas aveludadas ainda sem desdobrar, o dourado fruto de seu coração não tocado pelo sol do amor.

O poema foi tão formoso e gentilmente expresso que as Mãos de Regeane voaram para suas bochechas.

—Em outras palavras, - disse Esteban, - há muitas coisas em ti que a fariam valiosa para um marido: beleza, juventude e a possibilidade de consolidar suas relações com a casa real e legitimar sua posição.

—Por outra parte, - acrescentou Antonius, - não está tão indefesa como pode acreditar.

—A que se refere? —perguntou ela.

—Carlos é um rei muito poderoso e engenhou este matrimônio pessoalmente. Se lhe chegar notícias que seu marido a maltrata, poderia ver isso como uma afronta a sua honra. E, querida minha, Carlos é um homem a quem eu me cuidaria em insultar.

Regeane sacudiu a cabeça.

—Mas Carlos não me conhece e, além disso, Gundabald disse que meu prometido teria provavelmente a moral de uma raposa e que tem outras mulheres às quais prefere, a mim. E eu serei envenenada... — Para seu horror, Regeane sentiu lágrimas nos olhos. - Eu lamento, mas não venha? Não posso me manter com fruta e água de manancial...

—Deixa de choramingar, - cortou a menina. - Está se pondo em ridículo e convencendo estes homens de que é uma covarde quando na realidade é intrépida, como eu. Além disso, você não pode se casar.

Antonius inclinou a cabeça de um lado.

—Por que não?

—Não tem nada de peito e não pode te casar sem seios, porque não pode prender um homem.

Regeane passou da miséria à mortificação de um salto.

—O que? — Gritou.

Esteban afastou a face e Antonius puxou de seu capuz até cobrir os olhos.

—É você gosta de me envergonhar? — Perguntou Regeane furiosamente à menina. - Como te atreve...

—Espere! — Disse Esteban. - Não te zangue. Ela é uma menina e tem a franqueza das crianças. Compreendemos. —Sorriu perversamente. - Eu gostaria de saber algo mais desse assunto dos seios.

—Irmão... — Advertiu Antonius, que já se recuperara.

Regeane afastou o olhar e a menina seguiu falando animadamente.

—Minha prima, Matilda veio a nos visitar. Ia se casar. Minha tia a colocou de pé do meu lado e eu era mais alta.

—Mmmh... — Disse Esteban. - E?

—Bem, disseram que era uma desgraça que eu fosse tão grande e de peito tão plano e corresse por aí e jogasse como um moço e que se não deixasse de crescer logo e conseguir um pouco de peito, nunca me casaria. – Ela explicou, fazendo uma pausa para tomar fôlego. - Perguntei-lhes para que necessitava de seios e me disseram que não poderia me casar sem eles. Eu os disse que esperava não tê-los nunca, mas depois chorei. Meu pai me disse que não devia me preocupar ainda pelos seios, que não eram importantes. O importante era ser confiável em todas as questões de conseqüência.

—Sim. - Disse Antonius. - Temos tato, gentileza, e desculpas, não?

—Refere-se a coisas como dizer que está ocupado quando enam realidade está vadiando?

Antonius assentiu com a cabeça.

—E também, disse, empenhar a palavra com moderação, mas uma vez dada cumpri-la sempre, para bem ou para mal.

—Certo. - Disse Esteban.

—E, - suspirou a menina, - ter jogo na batalha. Ela tem, - assinalou Regeane, - e eu também. Mas sigo sem entender sobre os dos seios.

—Bem, não pergunte a estes homens pela questão, - aconselhou Regeane acidamente. - Espere até que estejamos sozinhas e lhe explicarei isso.

A menina cedeu.

—Ainda é inocente. - Explicou Regeane aos outros. - Não posso levá-la para casa comigo. Ela mordeu ao Hugo e ele a esbofeteou. Deus sabe o que lhe faria. Não, eu sei o que lhe faria e o fato que seja uma menina não é nenhuma diferença para ele. Não penso voltar com ela e deixar que lhe ponha as mãos em cima.

—Nada bom, - disse Antonius. - Irmão, não pode ver quanto dano está fazendo aqui? Esta jovem tem pânico de seus parentes. Regeane, acredito que você sabe por que.

—Sim, - confirmou ela, amargamente. - São muito pobres e querem minha ajuda para tirar dinheiro de meu marido.

Esteban assentiu com cabeça. — O que farão com o dinheiro se conseguirem?

Ela se encolheu de ombros.

—O mesmo que fazem agora: gastá-lo bebendo e fornicando em cada botequim e bordel de Roma. Alardeiam sobre a riqueza de meu futuro marido, dizendo que a simples menção de seu nome abriu imediatamente as bolsas dos prestamistas.

Regeane mordeu o lábio. Tinha tomado sua decisão à noite anterior. Seu medo era que aquele Esteban, quem quer que fosse, pudesse ter autoridade para devolvê-la pela força. Em tal caso, ela não ia se arriscar que dissessem a Gundabald que tomasse medidas contra sua fuga. Mas tinha mais medo pela menina que por ela mesma. Uma noite com Hugo e a pequena despertaria muito menos segura da bondade do mundo que agora. Primeiro Regeane tinha que garantir sua segurança.

—Por favor, - ela continuou. – Deixe à menina na colônia saxã de Roma e voltarei pacificamente para meu tio, se desejar.

—Não. - Exclamou Antonius decididamente. - Não. Irmão, olhe para esta dama: chegou faminta e o vestido que usa não seria apropriado nem para a faxineira mais baixa de uma casa honorável, muito menos para uma senhora de sua classe. E, Regeane, dita a meu irmão o que dita sobre ti. A menina pode permanecer aqui entre nós. Muito de nós, não estão afligidos por nenhuma enfermidade, mas sim são vítimas da crueldade de Pablo Afartha. Essa mulher, Cresta, tem a língua amarga, mas um coração amável. Ela cuidará da pequena.

Regeane sentiu uma onda de alívio. Estava segura e estranhamente a loba também, de que com o amparo de Antonius a menina estaria a salvo, inclusive ali.

—Não sei. - Disse devagar Esteban. - Os homens de sua família são seus guardiões por lei e tradição.

O suspiro de Antonius fez ondear o tecido que cobria sua boca.

—Toda minha vida, sua face, junto com outra, foi a mais formoso que jamais vi. Quando eu vagar entre as sombras pedirei aos deuses para recordar somente esses dois rostos. Mas, irmão, há momentos nos que, ao tratar contigo, sinto-me como se enfrentasse um livro falante de direito. Se este senhor montanhês chegar a Roma e encontrar sua noiva em sua atual condição de abandono é muito provável que creia que foi repudiada por seu parente real e que o matrimônio não foi pensado como uma honra, mas sim como uma brincadeira cruel. Poderia rechaçá-la e voltar para os lombardos. Irmão, suplico-lhe que não permita que seus escrúpulos se imponham a seu sentido comum. Envie à moça com a Lucila.

Esteban olhou pensativo para Antonius.

—Lucila é uma velha amiga, fará o que eu lhe peça.

O olhar de Regeane passava rapidamente de um ao outro.

—Não entendo. Há alguns momentos falava como se Lucila fora uma mulher de... Das ruas e sua casa uma casa de... De má reputação.

Esteban agitou uma mão para Regeane em um gesto de negação.

—Não. Não, nada disso. As damas de Lucila não são da rua e nunca se convertem nisso. Normalmente chegam a ela como virgens e depois de algum adestramento, Lucila as coloca discretamente nos braços de um protetor ou outro, onde freqüentemente permanecem durante muitos anos. Não são poucas as que acabam casando-se bastante respeitavelmente.

—Isso sonha celestial, - disse Regeane. - Oxalá eu fosse tão livre.

—Bem, pois não é. - Disse Esteban com severidade. - Seu matrimônio é até certo ponto dinástico e o rei dos francos deve entender que nós...

—Irmão! — Cortou-lhe Antonius.

Regeane voltou a olhar um homem e logo o outro. Esteban estivera a ponto de revelar um segredo, e Antonius o impedira.

—Ah, — continuou Esteban, - meu irmão e eu somos de uma casa nobre. Temos bons contatos. Escreverei uma carta a Lucila e explicar a situação. É uma mulher de grande inteligência e como já disse, amiga minha. Seria a primeira em compreender a importância deste compromisso para ti e para a cidade. Lucila é uma firme partidária da Santa Sé. — Ele mostrou um sorriso rápido, bastante estranho, e lançou um olhar significativo a Antonius. - Como eu, querida. Agora, quanto à menina, me diga seu nome, pequena e o de seu pai. Há muitos saxões vivendo aqui em Roma, posso fazer averiguações entre eles. É possível que alguém conheça sua família.

A menina lançou um olhar de recriminação a Regeane.

—Oh, Deus, sim! - Exclamou Regeane. - Sabia que era uma necessidade quando a comprei do negociante de escravos, mas ela tinha mordido Hugo e eu...

—Desejou tê-lo mordido. - Terminou a pequena por ela.

As bochechas de Regeane começaram a arder novamente. Olhou enviesadamente para a menina

—Eu não disse isso, - ela protestou. - Bom, não exatamente... — Acrescentou em tom equívoco. Sua face inteira ardia. Estava segura de que suas bochechas estavam de cor vermelha. - Tem que repetir tudo o que ouve?

A face da menina se elevou para a dela. Os olhos azuis eram lagos de recriminação. O lábio inferior estava novamente estendido.

—Por que não, se for me abandonar como se fosse uma gata prenhe?

—Uma o quê?

—Meu pai diz que as três coisas mais molestas no mundo são um homem ébrio, uma mulher rabugenta e uma gata prenhe. Diz que todos nós queremos nos liberar delas. Explicou-me quando atou uma tira de couro ao redor das coisas de nosso gato. Já sabem, - ela disse, - as coisas pequenas e peludas que eles têm na parte de atrás.

Regeane sentiu que sua face estava vermelha como o sol.

—Oh, pelo amor de Deus, silêncio! – Ela disse, temerosa de olhar para os dois homens.

—Por que me devo calar? — Protestou a menina. - Todo mundo conhece os gatos, são umas feras muito luxuriosas. Mas meu pai tinha razão, não houve ninhadas durante algum tempo, mas depois voltaram e meu pai disse que a gata devia ter encontrado outro amigo. Eu lhe perguntei por que nosso gato não defendia sua honra, mas ele disse... Ai! — A menina se queixou ante o toque de Regeane em seu tornozelo. – O fiz agora? — Ela perguntou com voz afligida, segurando o pé nu.

Regeane olhou rápida e discretamente para os homens. Antonius estava olhando para baixo. O manto negro lhe cobria a maior parte da face, mas seus ombros se agitavam. A mão de Esteban se elevou para ocultar um sorriso.

—Deixa de falar de gatos e seios e todas essas tolices. Diga-nos seu nome. - Ordenou Regeane à menina entredentes. - E diga-o agora! Ouve-me?

—Oh, de acordo. Ia dizer agora. Elfgifa.

—Elfgifa. - Repetiu Esteban.

—E seu pai?

—Eanwolf. É um dos Guerreiros do rei. - Disse a menina orgulhosamente.

—Obrigado, Elfgifa. - Disse Esteban, falando de forma séria e cortês, como se dirigisse a um adulto. - Se seu pai for um homem importante, é provável que algum dos saxões que vivem aqui em Roma o conheça e possamos te devolver para sua família. Sua senhora não quer te abandonar, mas tem suas próprias responsabilidades e deve atendê-las.

A menina assentiu.

Esteban ficou em pé.

—Agora, — ele disse a Regeane, — verei como lhes enviar com a Lucila. E quando vê-la, - disse brandamente a Elfgifa. – assegure-se de lhe perguntar pelos seios, ela te explicará sua função e importância. — Uma sombra de seu sorriso malvado retornou a sua face. - Pode lhe dizer que eu te aconselhei que perguntasse.

 

                                         CAPÍTULO 6

Umas poucas horas depois, Regeane se inundava em uma piscina no tepidarium da vila de Lucila. Sua anfitriã estava sentada junto a beira estudando-a com aberta admiração.

—Que lástima. Tinha em mente o homem perfeito para ti. É um pouco velho; de fato é muito velho, mas também realista querida. Sabe que não compartilharia sua cama pelo prazer disso. Choveriam os presentes e, se for tão discreta como encantadora, poderia acabar sendo uma mulher rica e influente.

Regeane girou sobre suas costas e flutuou na água quente, olhando o teto do banheiro. O grosso cristal do teto abobadado deixava uma luz suave e difusa, mas ainda brilhante. Sentia-se absolutamente relaxada e feliz. Uma meia hora atrás, ao chegar, estivera chorando e meio histérica de alívio ao encontrar Lucila não só viva, mas também em perfeito estado.

—Derrotamos verdadeiramente esses diabos! Esse rato do Basílio foi muito temerário ao vir a Roma, apesar do Papa. Quando chegou o Guarda Papal, enviei homens para lhes buscar, a ti e à menina, mas não puderam encontrar nenhum rastro. Lamento que parecesse que tinha abandonado-as. Evoie, o capitão de minha guarda, assustou-se ao ver Basílio. Estava convencido de que era uma tentativa de assassinato por parte dos lombardos. E tinha razão, mas errara de mulher.

Uma delegação de faxineiras de Lucila chegou para levar Elfgifa, entre exclamações de admiração. A mais sábia delas, Susana, declarou que ela era formosa, algo que Regeane teve a certeza de que encantou em segredo à menina. Depois, todas se mostraram de acordo em que ela necessitava de um bom esfregão e roupa nova.

Elfgifa fez a pergunta que Esteban lhe tinha sugerido. Todos os presentes, inclusive Lucila, a acharam divertida. Partiram dobradas pelo riso levando a pequena para lhe dar um banho, comida, roupas.

Regeane parecia estar presa no centro de alguma jóia resplandecente. A piscina era de mármore cinza, o piso a seu redor de cor pêssego, as paredes de mármore alabastro adornado com incrustações de pórfido verde em forma de árvores fantásticas e altas samambaias.

A água formava ondas a seu redor, embalando-a, aliviando seus temores e relaxando a tensão em seus músculos. Regeane flutuava em uma descuidada e lânguida paz.

—Acredito que nunca havia estado em um lugar tão formoso, - ela disse a Lucila. - Não sabia que se vivia em lugares assim, desfrutando deste luxo. Pensava que só as Igrejas tinham esta pedra resplandecente, talhada e polida com tanto cuidado.

Lucila sorriu ante a espontânea admiração de Regeane.

—Oh, sim. Alguns viviam e alguns poucos continuam fazendo. Dizem que esta vila foi construída pelo Imperador Adriano, para um favorito dele... Não sei se era um moço ou uma mulher. Mas procurava um lugar de retiro tranqüilo, pequeno, onde pudesse vir e relaxar sem estar rodeado das hordas de cortesãos, trepadores, suplicantes e outras moléstias.

—Fez uma coisa maravilhosa, - disse Regeane vagamente, fechando os olhos e flutuando na água cálida como o sangue.

—Seriamente?

Lucila examinava a estadia com uma expressão ligeiramente cínica. A mudança em seu tom fez com que Regeane abrisse os olhos e procurasse inquisitivamente sua face.

—Não é assim?

—E se eu te dissesse que antigamente, o fogo que esquentavam estes banhos era alimentado por escravos que jamais viam a luz do sol? Homens e possivelmente mulheres, a quem estava negado o mais singelo dos prazeres humanos. Como a água devia manter sempre quente e disposta para o prazer de seu amo, aqueles escravos não tinham descanso em sua tarefa.

Regeane ficou em pé.

—Sinto muito. —Lucila sorriu com amável malícia. - Danifiquei sua diversão?

—Sim.

A água era pouco profunda, chegando aos ombros de Regeane, que se aproximou até onde se sentava Lucila. A formosa estadia parecia ter se escurecido de repente pelo horror.

Regeane pôs os braços na beira da piscina. Lucila estendeu a mão e recolheu o longo cabelo da jovem em um nó à altura de seu pescoço.

—Meu prazer não vale tanto sofrimento.

Lucila riu.

—Não se preocupe pequena. Isso era há muito tempo. Agora, meus homens recebem um pagamento extra para alimentar o fogo e sempre estão contentes em fazê-lo. Gastam o dinheiro nos botequins e bordéis de Roma. Este mundo é melhor que o dos antigos. Só queria assinalar que toda esta beleza e luxo não surgem por arte de magia. Sempre terá que se pagar um preço.

Lucila, nua como Regeane, meteu-se na água atrás dela e começou a lhe lavar o cabelo, esfregando o couro cabeludo com seus dedos e desfazendo os enredos com um pente de aço.

Regeane descansou sua bochecha contra o fresco mármore da beira da piscina e se abandonou às cuidados de sua anfitriã. Mudou de postura quando os dedos desceram de sua cabeça e começaram a acariciar seus seios brandamente.

—Já vejo... O preço.

—Não. - Disse Lucila com uma suave risada. - Nada disso. Vem favoravelmente recomendada. Esteban é... — Ela fez uma pausa. - É um homem poderoso. Um protetor poderoso. Não precisa me amar, sequer me permitir que eu te faça amor.

Ela terminou de lavar o cabelo de Regeane e deixou que caísse por cima de seu ombro. Estava atrás dela, seus seios apertando-se contra as costas de Regeane, seu ventre contra a suave curva de suas nádegas. Inclinou a cabeça, aproximando os lábios à orelha da jovem.

—Não precisa aceitar meu amor, pequena, mas o aceite. Pois meu amor não pode te ferir. Não posso te deixar grávida e não posso escravizá-la em um matrimônio que odeia. Sequer posso tomar essa... Oh, tão negociável virgindade. – Ela riu brandamente. - Não tenho a ferramenta necessária.

No mais fundo do cérebro de Regeane, a loba de prata se revolveu, despertando e se elevando do abismo da escuridão primitiva para dar as boas-vindas ao prazer que davam as carícias de Lucila. A fera, incendiada pela mais doce felicidade da vida é inocente da queda da graça do homem. O desejo ardia na loba. Desejo sem consciência, memória e nem pesar.

Regeane se rendeu à loba como se rendeu ao contato de Lucila. Eram uma e a mesma. Sua cabeça se tornou atrás para descansar, com os olhos fechados, contra o ombro de Lucila, enquanto os longos dedos da mulher exploravam seu corpo.

—Venha. - Sussurrou Lucila guiando Regeane para os degraus ao extremo da piscina. – Saia da água para que meus beijos possam te deleitar.

Tombaram juntas sobre toalhas de linho ao lado da piscina. Certo, Lucila já não era jovem, mas sim formosa, de pele suave, músculos firmes, ventre liso e grandes seios empinados. Amadurecidos e cheios. Só suas mãos e face mostravam sua idade, a ligeira dobra da pele em suas mãos e a tristeza em seus olhos quando se inclinou sobre o jovem corpo de Regeane.

—Ah, que tortura. Por que me atormento assim? — Sussurrou.

—Que tortura? — Perguntou enquanto estendia suas próprias mãos, tentando devolver algo do delicioso prazer forjado pelos amáveis e seguros dedos de Lucila.

—Cale-se. - Murmurou, baixando sua boca até o peito de Regeane. - Quieta. Ame-me. Deixa-me que te ame.

Regeane sentiu a loba, forte em seu interior, gemendo profundamente em sua garganta enquanto seu corpo ardia em um trêmulo fogo de prazer.

A umidade fluiu entre suas coxas, rica, cálida e doce, quando a boca de Lucila chegou abaixo, abrindo os lábios, a vermelha língua entre seus dentes para o último e mais íntimo beijo de todos.

Mais tarde, vestiram-se na câmara de Lucila. Ela lhe deu uma túnica de seda transparente e depois colocou outra igual.

—E minha roupa? — Perguntou Regeane.

—Bah... Esses trapos... Mandei queimá-lo.

Lucila cobriu sua túnica com uma suave estola branca de linho, com bordados de ouro no pescoço e nas barras. Regeane colocou a túnica e olhou para baixo.

—Não posso ir assim. É... Indecente.

Lucila sorriu.

—Não. Também tenho uma estola para ti, mas antes quero te mostrar algo.   .

A quarto de Lucila era como a maioria do quartos romanas: muito singelo, sem adornos e com as paredes caiadas. Sua grande cama de cedro com incrustações de ouro era o único que se sobressaía do normal. Estava comodamente provida com uma colcha de plumas de ganso, brandas almofadas e lençóis de linho branco.

Ela notou a direção do olhar de Regeane.

—Sim. Os bárbaros do norte ensinaram algumas coisas aos romanos, benditos sejam por isso. Dormem mais cômodos que nós.

Ela se voltou para Regeane, com um pedido nostálgico, quase triste nos olhos. Tocou-lhe gentilmente a bochecha.

—Compartilhe a cama comigo esta noite, minha beleza.

Regeane tomou a suave mão entre as sua s e a beijou. Inexplicavelmente, havia lágrimas em seus olhos.

—Pensei que nunca conheceria o amor, mas hoje me mostraste o que é. Alegra-me que ainda me queira, que não me tenha achado... Tola.

—Tola? —Lucila liberou sua mão e segurando a face de Regeane entre as mãos, beijou-a brandamente nos lábios. - Inexperiente, possivelmente. A experiência vem com tempo. Mas tola... Não. Não. Nada de tola, minha doçura. Venha.

Havia duas coroas de flores na cama, sobre o cobertor. Açucenas brancas e rosas entretecidas com romeiro e tomilho. Lucila pôs uma na cabeça de Regeane, e depois a levou a um extremo do quarto, onde uma tapeçaria cobria a parede. Puxou de um cordão e a tapeçaria correu para um lado.

Regeane viu a si mesma. Nunca havia se visto, não por completo. A figura que lhe devolveu o olhar estava além de sua idéia de beleza, além de seus sonhos mais selvagens.

A face, coroada de flores, era de um suave ovalóide; os olhos demostravam uma líquida ternura em suas profundezas de ouro e negro luminoso; os lábios tinham o rubor das pétalas de rosa; sua pele refletia a palidez das açucenas com sua fresca suavidade aveludada. Seu corpo era como havia dito Antonius, magro, mas com a esbelteza do broto a ponto de flor em abrir. Os seios pequenos com pontas rosas, altos e turgentes contra o vestido de seda; o escuro triângulo púbico que ocultava um mistério de desejo e fecundidade.

Regeane estirou a mão quase até tocar o espelho de prata. Aquela moça-mulher que estava de pé ante ela devia ser uma pintura, não podia ser real, não podia ser ela. Mas os dedos da mão estendida imitaram o movimento de seu próprio braço e tocaram a brunida superfície do espelho.

Lucila estava perto, com um sorriso como a da serpente que ofereceu a maçã a Eva.

—Gundabald mentiu, — disse Regeane.

—Seu tio?

—Sim. Ele me disse que era feia.

—O muito alcoviteiro! — Lucila cuspiu a palavra e acariciou o longo cabelo que se espalhava pelos ombros de Regeane. – É o que fazem os alcoviteiros: mentir às moças que vendem. Degradá-las por ter perdido sua honra. Dizem-lhes "só eu poderia te amar", para que desprezem a si mesmas e sejam mais fáceis de comprar e vender. Mas eu não me dedico a isso. Minhas mulheres conhecem seu valor. Ah, eu adoraria te levar a um banquete. Convidaria os filhos das melhores famílias de Roma para me divertir vendo-lhes rivalizar pela honra de ser o primeiro em te possuir, o primeiro a te abraçar, sem saber que eu me tinha adiantado. Mas já basta.

Lucila retrocedeu. Deu um novo puxão no cordão e a tapeçaria cobriu o espelho novamente.

—O que experimentamos hoje não é mais que uma degustação, o aperitivo antes do banquete que será te ensinar a ser deleitada. Eu a encaminharei, na arte de agradar a seu homem e a si mesma. E, por último, a tarefa mais delicada: ensinar-lhe a ser sua firme fonte de prazer ilimitado. Mas venha, este é meu momento favorito do dia. Sentaremos juntas no átrio, tomaremos o ar e veremos pôr-do-sol. Não é bom se olhar muito tempo em um espelho. Em seu caso poderia levar a um excesso de vaidade; no meu, querida, ao desespero.

—É formosa. - Disse Regeane enquanto passeavam pelo caminho de cascalho que conduzia ao lago do átrio.

—Sim. - Respondeu Lucila. - Acredito que conservo algo do que era quando tinha sua idade. E indubitavelmente ainda poderia segurar um amante ou dois, mas cheguei a um momento de minha vida no qual valorizo meu ócio, minhas tardes tranqüilas no jardim, só ou na companhia de um bom amigo. Sou o bastante rica para me permitir isso

Ela fez uma pausa junto à fonte que alimentava o lago. Uma ninfa de bronze, esverdeada pela idade, vertia água limpa, através de um pendente de pedra incrustada de musgo esmeralda, no grande e tranqüilo lago. A água refletia as cores cambiantes do céu da tarde, agora um lençol de ouro pelas nuvens tingido pelo sol, que ia se tornando turquesa e violeta ao aproximar a escuridão.

O jardim da vila era um sonho de beleza. Lírios púrpuros e amarelos floresciam a beira da água, havia grupos de lavanda, aqui e lá, arqueados com caules de rosa com grandes flores.

Os canteiros, dispostos contra a parte de trás da casa, tinham ervas amantes do sol: mil em rama coroada de amarelo, pequenas e fragrantes flores de camomila, manjericão de grandes folhas e sálvias de flores vermelha. Altas e espinhosas roseiras subiam pelos pilares do alpendre, com a forte cor vermelha do outono.

O gentil aroma de cada flor as envolvia. De vez em quando, Lucila se detinha para acariciar brandamente uma pétala com os dedos e aspirar o perfume. Comentou que era uma pena que a rosa gálica murchasse na estação. Regeane a seguiu, envolta em um sonho, até que chegaram a um banco de mármore, sobre o qual havia um jarro e duas taças. As taças eram milagres de arte de um vidreiro. Regeane elevou a sua para prender a última luz. Um camafeu branco sobre azul mostrava uma procissão de jovens donzelas levando a grinalda para adornar o carro da noiva.

—Que bonito, — sussurrou.

—E apropriado. - Disse Lucila ao levantar o jarro de prata para servir o vinho. O bico de prata era a cabeça de um lobo.

A consciência golpeou Regeane no estômago. Estava em uma armadilha.

A taça lhe caiu sobre um maço de tomilhos que crescia a seus pés. O vinho manchou as flores brancas como uma mancha de sangue.

Estava em uma armadilha, uma bela e perigosa armadilha.

Sim, podia abandonar o encanto daquele jardim celestial, o prazer das carícias de Lucila. Mas aquele idílio só podia ter um final. O senhor montanhês chegaria para reclamá-la e um dos dois morreria!

—Meu Deus! O que acontece? — Exclamou Lucila, deixando sua própria taça para segurar as mãos de Regeane.

Regeane se abaixou, aferrando o estômago por um momento. Sentia novamente aquela distância do mundo e as primeiras sombras antes da mudança. Combateu-a desesperadamente. As sombras ao seu redor no jardim se aproximavam, mas retrocederam quando sentiu as mãos de Lucila em seus braços.

—O que acontece, moça?

Regeane se deu conta de que por um momento se permitiu pensar como uma mulher normal... Pensar em seu iminente matrimônio e seu noivado como qualquer outra jovem. Não podia. Não se atrevia.

Inclinou-se, procurando torpemente a taça entre o tomilho, com medo de tê-la quebrado.

—Sinto muito. – Sussurrou. - Sua preciosa taça...

—Ao diabo com minha taça, - disse Lucila, erguendo-a nos braços. – Você está bem? Nunca tinha visto tal expressão de terror em um rosto humano. O que aconteceu? O que te assustou tanto?

—Aqui está. — Regeane levantou a taça. - Graças ao céu, não se quebrou.

Lucila pegou a taça de suas mãos, encheu-a de vinho, e a sustentou ante os lábios de Regeane.

—Assim está melhor. A cor volta a sua face. Agora, me diga o que está acontecendo.

Regeane sabia que seria incapaz. Ninguém entenderia a loba de prata, nem sequer uma mulher tão mundana e inteligente como Lucila. Regeane forçou o torvelinho de sua mente a adotar certa coerência. Havia passado com a loba a maior parte de sua vida e o engano se convertera em sua segunda natureza. Bloqueou a pergunta de Lucila com outra.

—O que aconteceria se eu desafiasse o rei e me convertesse em uma cortesã como você?

Lucila afastou o olhar bruscamente para o escuro jardim.

—Eu não poderia ser parte disso.

—Por quê? — Perguntou Regeane com desespero. - Tão poderoso é Carlos?

—Sim. - Disse Lucila, voltando para olhá-la fixamente. – Ele é sim. E isso me custaria a vida.

Regeane sentiu novamente o terror de sua fuga de Basílio e o desespero que encheu seu coração na noite de sua conversa com Gundabald. Quando falou pela primeira vez com Lucila na praça, pareceu-lhe que de algum modo milagroso se abria uma via de escape ante ela. As exigências que suportava uma cortesã, a venda de seu corpo por dinheiro era repulsiva, mas poderia suportar aquela vida em troca da liberdade que oferecia à bela e silenciosa criatura em que se convertia à luz da lua. Uma cortesã que vivia sozinha, poderia idear desculpas para seu amante ou amantes nas noites em que a senhora de céu reclamasse seu coração. Mas ao que parecia, seu encontro com Esteban e Antonius havia fechado de repente aquela porta em sua face. Estava presa novamente, com Gundabald e Hugo como seu único refúgio. Não estava segura de poder confiar neles, uma vez convertida em sua cúmplice. Qualquer dos dois poderia traí-la por cobiça ou simplesmente por rancor.

Lucila observou preocupada e com o cenho franzido a face de Regeane, escurecida pelo crepúsculo azul que se abatia sobre o jardim.

—Pequena, me diga o que te assusta tanto. Pode ser que não seja nada tão horrível que não possamos nos ocupar disso, não é? Conte-me o É o toque de um homem, o amor de um homem? Acredite-me, isso pode se resolver. Eu mostrarei a você o que acontece. A maioria das mulheres tem medo a princípio, mas não demora em se converter em aborrecimento ou, se o sangue da mulher é o bastante cálido e o homem o bastante experiente, alegria.

Ela se aproximou mais de Regeane e colocou um braço ao redor de seus ombros.

— Vou te contar um segredo. Os homens gostam de agradar suas esposas, e até os mais torpes e tolos deles podem aprender a dar prazer, mesmo às mulheres mais difíceis.

O olhar de desolação na face de Regeane não mudou.

—É o parto, então?

Regeane sacudiu a cabeça.

—Perdi-me.

—Suponhamos que há outras mulheres.

Lucila soltou uma risada aguda.

—Isso é tudo? — Ela perguntou enquanto dava pequenos tapas na mão de Regeane. Então beijou sua face. – Oh, pequena minha, com seus recursos, sua beleza, sua graça e seu grande nome, sequer terá reconhecer a existência de outras mulheres. Saiba lhe escravizar e o conseguirá. Asseguro-lhe. Se aprender embora só seja um pouco do que posso te ensinar, ele te adorará.

Regeane fingiu se tranqüilizar. Bebeu a goles seu vinho. A luz havia saído do céu, mas não ainda não estava escuro. As flores brancas do jardim brilhavam ainda fracamente contra as massas mais escuras de vegetação. O lago começava a se encher do reflexo das estrelas.

Atrás dela, nas salas abertas da vila, podia se ouvir o ruído dos pratos e faqueiros. As luzes brilhavam através das portas abertas e as vozes dos serventes de Lucila iam e vinham enquanto arrumavam a mesa para o jantar.

Estava começando a refrescar. O braço de Lucila ao redor de seus ombros lhe dava calor e de alguma forma, apesar de Regeane não poder confessar todos seus temores, consolo.

—Vamos, querida. – Disse-lhe Lucila lhe dando um aperto. – Sente-se melhor?

—Sim. -Respondeu Regeane brandamente, levando a taça aos lábios. - Mas há uma arte mais que poderia me ensinar. – Acrescentou com vacilação.

—Qual?

—A arte a qual recorrer, quando todas as outras falham.

Lucila a olhou intrigada durante um momento, depois compreendeu e se enrijeceu. Deixou cair os braços dos ombros de Regeane e se separou dela.

—Sei, - disse friamente, - que não é tão ingênua como parece. Isso ocorreu a você ou é uma idéia que esse teu tio te colocou na cabeça?

Regeane deixou a taça no banco e ficou em pé. Encarou Lucila, uma figura magra com estola branca, a face da mulher mais velha só um pouco visível na luz dos abajures da sala, às suas costas.

Regeane sentiu que as lágrimas corriam por suas faces. Lágrimas de raiva e dor.

—Muito bem. – Soluçou. – Eu tenho medo, mas não dos homens nem das crianças e nem de que meu futuro marido tenha outras. A verdade é... Oh, meu Deus. – Ela vacilou. - A verdade é que não posso te dizer a verdade. Como pode saber o que foi minha vida? Estas horas, estas poucas horas que passei contigo, são as primeiras horas felizes em anos. Desde que sangrei pela primeira vez, desde que comecei a me converter em mulher, desde que... — Fechou os punhos e olhou fixamente o céu sem lua. – Oh, Deus, como poderia explicar? — Ela clamou. Cobriu a face com as mãos e tentou fugir.

Mas Lucila atraiu para si o trêmulo corpo da moça, sossegando-a como a uma menina assustada, enquanto acariciava seu cabelo.

—Está bem, está bem. Não se atormente assim. Acredito que está tão assustada como diz. Não sei por que não pode me dizer esse teu escuro segredo, mas estou segura que existe, embora seja somente em sua mente. E sim, se desejar tão desesperadamente, eu te ensinarei essa última arte. Deus sabe que não é difícil. Neste mesmo jardim crescem uma meia dúzia de plantas. Administradas com moderação, algumas ajudam à natureza. Se aumentar a dose e serão daninhas. Os físicos jogam uma cápsula de dormideira no vinho e quem o bebe desfruta de um melhor sono e não sofre dor; mas em doses excessivas, o sonho se torna eterno.

—Não quero para ele, mas para mim.

—O que?— Lucila retrocedeu. - Para ti?

—Alguns tipos de morte são melhores que outras. - Explicou Regeane miseravelmente.

Os olhos de Lucila sondaram implacavelmente a face molhada de lágrimas de Regeane.

—Oxalá pudesse te convencer para que me confiasse esse terrível segredo, - murmurou. - Tenho a sensação de que em tudo estou há muito mais que... — ela se interrompeu ante a chegada de uma das criadas.

—Minha senhora, nós a esperamos à mesa. Devo trazer a menina?

—Oh, Elfgifa. Tinha me esquecido dela, mas não importa. Há comida de sobra. Sim, sim, traga-a. Deve estar cansada de nos esperar.

—Não, minha senhora. - Negou a criada. – Ela dormiu justo depois do banho e despertou só a alguns momentos.

Outra das faxineiras se aproximou, trazendo pela mão uma bocejante Elfgifa.

—Venha. – Disse Lucila com tranqüilidade, tomando a mão da confusa Regeane. - Estou esquecendo meus deveres de anfitriã. Não te angustie mais, conversaremos amanhã. Desfrute desta noite. Somente conversa ligeira durante o jantar. Depois de tudo, conhecemo-nos hoje. Por que deveria me confiar os segredos de seu coração?

Regeane esteve calada durante a comida, com seus temores afastados pelos problemas do jantar pouco familiar estilo romano.

Comeram recostadas, com a comida levada até seus leitos e servida pelas donzelas. Havia uma mesa separada para cada prato. Embora para Lucila pudesse se tratar de um pequeno jantar informal era um grande acontecimento para Regeane.

As mesas estavam cobertas com toalhas de linho branco bordadas. Os pratos e taças eram de prata. Sobre suas cabeças, abajures em forma de pombas de alabastro lançavam chamas de suas bocas. Pintadas nas paredes da câmara, aves cantoras realizavam seu gentil rito amoroso da primavera entre as flores de um jardim.

Elfgifa, com os olhos fora das órbitas e comportando-se o melhor possível, observava como um falcão cada movimento de Lucila, copiando-a cuidadosamente, igual à própria Regeane.

Lucila as tratou com divertida indulgência e como tinha prometido, manteve a conversa em um tom ameno. Contudo, Regeane seguia sentindo-se instruída, pois a maior parte da conversa de Lucila girava em torno das numerosas facções da cidade Santa.

A comida era singela, mas estava belamente preparada. Os aperitivos foram azeitonas especiais e queijo branco coberto de pimenta. A isto seguiu carne de porco assado com um recheio de pão, mel, veio e louro, regado com um fantástico vinho tinto.

O sabor do vinho assombrou Regeane.

—É maravilhoso. – Ela disse a Lucila, fascinada por sua suavidade e leveza.

Lucila riu.

—Oh, os francos consideram que um vinho está pronto para beber quando pode derrubar um homem, mas nós envelhecemos os melhores, selando-os em jarros de argila. Isso faz maturar o sabor e o torna mais suave. Este vinho só tem dez anos, mas eu provei estranhas colheitas de mais de quarenta e cinqüenta anos.

—Não se danifica? — Perguntou Regeane.

—Às vezes, mas as ânforas que sobrevivem fazem com que valha a pena. O pior que pode ocorrer é se converter em vinagre, então se usa para cozinhar. Este vinho é de minha própria colheita. Pouca gente se molesta em envelhecer o vinho estes dias, — explicou Lucila. - As boas safras têm um preço conseqüentemente elevado, então resulta bem mais lucrativo vender o vinho jovem assim que pode ser bebido. — Ela parecia triste ao falar. - Assim desaparecem as artes civilizadas, mas eu guardo uns quantos jarros para minha própria mesa.

Quando as três terminaram com a carne de porco, as mesas foram retiradas e elas relaxaram com um vinho branco frio e doce, servido com bolos de mel. Já tarde e a vila de Lucila era separada do buliçoso coração de Roma, tinha a quietude de uma granja rural. O que Regeane podia ouvir eram as débeis canções noturnas dos insetos no jardim e o murmúrio da refrescante brisa que corria pela porta aberta.

O longo dia, o estômago cheio e a meia taça de vinho aguado que Lucila lhe tinha permitido beber foram muito para Elfgifa, que dormiu em seu leito. Só despertou brevemente quando Lucila fez um gesto a uma criada, para que a levasse para a cama. Elfgifa protestou, mas estava claro que só queria um beijo de boa noite de Regeane antes de deitar. Regeane deu e a menina foi pacificamente. Então houve um breve momento de silêncio entre as duas mulheres, que se rompeu quando começaram a falar quase de uma vez.

—Sinto muito...

—Quero me desculpar, Regeane...

Ambas riram.

—Eu sou quem deve se desculpar, - disse Regeane. - Sinto-me como uma tola... Suponho que me deixei levar por meus temores.

—Nada disso, querida. Não devia te pressionar tanto.

De repente, uma das faxineiras irrompeu do jardim.

—Minha senhora, há um grupo de homens nas portas!

Regeane ouviu gritos e uma queda. Uma mulher gritava.

Lucila saltou de seu leito e correu para o jardim.

No átrio havia uma meia dúzia de homens armados. A luz de suas tochas se refletia nas escuras águas do lago. Um deles se adiantou e Regeane viu a face que recordava da praça.

—É esta. - Disse o homem assinalando-a. – Peguem-na.

Regeane se encolheu e se voltou, não sabendo para onde correr, mas Lucila enfrentou-o.

- Está louco, Basílio? — Ela gritou. - Estamos sob o amparo do Santo Pai!

Os homens que acompanhavam Basílio vacilaram.

A alta figura de Lucila, seu queixo elevado sem medo, estava entre Regeane e Basílio.

—Farei com que lhes cortem a cabeça por isso! A todos! — Ameaçou.

Os homens de Basílio se retiraram, olhando uns aos outros.

Vendo que tinha vantagem no momento, Lucila avançou para aproveitá-la.

—Saiam de minha casa agora mesmo e esquecerei este desgraçado incidente.

Basílio riu. Seus dentes brancos brilhavam na escuridão.

— Que isso, está nos ameaçando com o poder da Igreja e do Papa... Quando é a maior rameira de Roma. Rameira e alcoviteira.

Lucila se enrijeceu de raiva, seu rosto era uma gelada e bela máscara de fúria. Sua resposta foi baixa, rouca e letal.

—Um passo mais, Basílio e não me incomodarei em pedir sua cabeça, o verei morrer na tortura.

Basílio lhe devolveu um olhar carregado de desprezo e se voltou para seus homens.

—Acaso são crianças, já que temem a ira de uma mulher? Eu disse que peguem à moça! E quanto a ti, zorra, - ele disse a Lucila, - cruze novamente em meu caminho e a enviarei a fazer seu trabalho no inferno.

Basílio e seus homens avançaram para elas.

Lucila pegou Regeane pela mão.

—É inútil. – Ela sussurrou. - Não posso conte-los. Onde se colocaram meus homens? Corra! — Ela gritou enquanto empurrava Regeane através de uma porta, para a parte traseira do jardim.

A abrupta mudança da luz das tochas à escuridão da passagem cegou Regeane. Quando pôde ver novamente, estava tropeçando pelos sulcos de uma horta. Diante dela, os ramos de uma árvore e depois um muro.

Basílio e seus homens saíram da passagem, no resplendor de suas tochas.

O pé de Regeane se chocou com algo. Lucila se inclinou e o pegou. Era uma enxada.

O mais próximo dos homens de Basílio estava a menos de seis pés delas. Lucila girou e o golpeou diretamente na virilha com o cabo da enxada. O homem se dobrou, uivando.

—Corra, moça, corra! — Gritou Lucila.

Os mercenários de Basílio pensaram, possivelmente um pouco intimidados pelo destino do primeiro. Então outro saltou para diante e tentou tirar a enxada de Lucila. Um engano. Ela golpeou-lhe na têmpora, lhe fazendo cair de joelhos com as mãos na cabeça. Depois o cortou cruelmente na face com a folha de seu instrumento.

Regeane não podia deixar Lucila, não havia dúvida de que Basílio a mataria.

Basílio desembainhou sua espada e passou junto à Lucila, ignorando outro golpe de sua enxada. Pegou Regeane pelo braço. Ela gritou e se debateu, cambaleando e caiu de bruços sobre a terra do jardim. A espada de Basílio cravou no sulco junto a sua face, fazendo chover barro sobre sua cabeça.

Regeane ficou de joelhos, pegando um punhado de terra. Basílio lhe pegou o cabelo com uma das mãss, puxando para descobrir sua garganta e preparando a espada para lhe cortar a cabeça.

Regeane deixou voar o barro, que deu totalmente na face do homem. Basílio lançou um grito de fúria e a deixou livre para limpar os olhos.

A escuridão da lua alagou o cérebro de Regeane. Era a loba. Assustada e aterrada, ela cambaleou. A luz das tochas a deslumbrava mais que à mulher.

Sobre a esteira de sua surpresa e terror chegou uma fúria triunfante.

Basílio ainda estava esfregando os olhos com uma mão enquanto cortava o vestido descartado de Regeane com sua espada. Acreditava que ela estava ainda dentro de sua roupa. A loba de prata arremeteu torpemente contra ele, que lhe deu uma patada nas costelas.

A vontade da mulher, ainda viva no animal, ficou afligida pela raiva. A loba girou como uma enguia em torno das pernas de Basílio, furando-as com as presas para derrubar o inimigo. Conseguiu lhe ferir na panturrilha. Basílio gritou e atacou com a espada, mas a loba se esquivou.

Três homens lutavam com Lucila, sujeitando-a e os outros dois tentando lhe tirar a enxada. De momento estavam muito ocupados. Um quarto mercenário ficou atrás deles, com a tocha na mão.

—Condenado néscio! — Gritou Basílio. - Afugente este cão!

O fogo cintilou nos olhos da loba de prata, ocultando tudo.

—Jesus tenha piedade! — Exclamou o homem. - Não é um cão!

A mulher dominou à loba. As tochas! Apague as tochas! Na escuridão é a mais forte.

A loba retrocedeu, afastando-se das chamas. O homem da tocha tentava desesperadamente desembainhar sua espada.

A loba, enlouquecida pela raiva e o fogo, só pensava em duas coisas: garganta e virilha. Com a lógica implacável de um assassino, foi na virilha. A garganta se encontrava muito longe e ela não estava bastante segura de seus poderes.

Estendeu-se saltando para cima como uma serpente no ataque. Falhou a virilha, mas seus dentes se fecharam sobre a carne da coxa. Sangue, suor e o espesso aroma da carne crua encheram a boca e focinho da loba.

O homem lançou um penetrante grito de pura agonia, liberou-se de um puxão e golpeou ao animal na cabeça com a tocha.

A loba se deixou cair, rodando.

O homem cambaleou para trás, chocando-se com a Lucila e outros soldados. Todos caíram em um monte. As tochas piscaram vacilantes sobre a terra úmida, meio apagadas.

O jardim ficou de repente na escuridão.

A loba arremeteu com um rugido de fúria contra os homens em cima de Lucila, que se dispersaram, correndo e arrastando-se em todas as direções.

Basílio tentou pegar uma tocha enquanto Lucila se levantava para seguir lutando, a enxada ainda em suas mãos. A mulher lhe deu um golpe no peito, rompendo algumas costelas e outro nas costas, lhe fazendo cair de barriga para baixo no barro.

Gritos e lamentos chegaram de trás da loba. Apareceram mais tochas.

—A tropa do Papa! — Gritou alguém. – Estão chegando!

O jardim era um caos. Os criados de Lucila se agruparam para defender sua senhora.

Basílio e seus homens fugiram. A loba os perseguiu através de alguns arbustos de granada e entre as árvores do jardim, para uma parede baixa. Os mercenários o saltaram em segundos.

A loba vacilou e depois seguiu adiante. Nunca tinha andando verdadeiramente livre. Um fácil salto a levou sobre o muro. Basílio e seus homens já se afastavam ao galope.

Durante um momento, ela ficou imóvel na escuridão, os flancos agitando pelo esforço, até que o retumbar de cascos fez com que se resguardasse.

Uma companhia da tropa civil romana passou junto a ela, perseguindo Basílio e seus homens.

Reinou o silêncio. A loba de prata correu para fora dos matagais e ficou com as patas sobre o pó do caminho, com alarme e terror agitando-se em seu interior.

Além dos muros da vila, podia ouvir vozes. Afastou-se com rapidez caminho abaixo, instintivamente, procurando o refúgio da escuridão. A escuridão da noite.

Não havia lua, só a deslumbrante serpentina da Via Láctea brilhava sobre ela. Um caminho de luz. Ignorava o que tinham visto Lucila e Basílio. Basílio tinha a face cheia de barro e Lucila estava lutando por sua vida.

Mas a loba de prata sabia uma coisa: não queria retornar. Era livre; estava perdida e assustada, mas apesar de tudo sentia uma alegria frenética.

Era livre.

Seguiu trotando, ao passo de um animal para quem uma caçada de cinqüenta milhas não é nada.

O coração da loba cantava. Velhas lembranças faziam bulir o sangue em suas veias. Lembranças que não eram deles. Oh, havia bosques que recordava seu coração de loba, bosques que vestiam as ladeiras das montanhas, pinheiros e abetos, uma paisagem dos lagos cheio de peixes. Bosques de terra baixa e de carvalhos e olmos, povoados pelas escuras e chifrudas formas dos cervos, que se alimentavam em clareiras banhadas pela luz da lua.

Ela os tinha caçado, muitas vezes. Era a senhora de afiadas presas e pés ligeiros da noite, tomando seu tributo de sangue sob a luz de prata. Corria por planícies ressecadas pelo sol onde a fumaça da relva em chamas enchia de repente suas fossas nasais. Comia até se fartar das feras que fugiam aterradas das chamas.

Rastreava sua presa através de desertos gelados e sem vida. Sua barriga retumbava de fome. Suas garras, com espinhos de gelo entre elas deixavam rastros sangrentos na neve. Seu coração desejava o calor, o sangue da presa, o estômago cheio e o sono.

Ela era todas essas coisas e mais: a força, o valor e beleza desafiante. Sou loba ou mulher? Perguntou-se, e então se deteve no alto de uma colina para sentir a quietude, a vida, a solidão perfeita da noite que a envolveu como os braços de uma mãe acolhem seu filho e o protege do dano.

O vento era frio, refrescado pelo aroma do rocio que começava a condensar sobre a vegetação e a frisar agradavelmente o cabelo de seu pescoço e cara. A mulher teria sentido frio, mas a loba, protegida por sua pelagem estava quente.

A legião de estrelas enviava uma fraca luz sobre a paisagem. De um lado, as escuras colinas se afastavam, baixando brandamente até a planície da Campânia; Do outro estava a cidade de Roma e suas luzes, um bando de vaga-lumes que flutuava ao redor da lisa e negra serpente do Tibre. A brisa que chegava dali lhe levou o mau cheiro de um esgoto aberto.

Sou loba ou mulher? Perguntou-se novamente. A loba e a mulher estavam de acordo entre si: cada uma estaria incompleta sem a outra. Mas os espaços abertos das colinas e inclusive a desolação da Campânia devastada pela guerra chamavam o coração da loba, que queria voltar sua cara para o vento limpo, desaparecer na alta erva e seguir sendo para sempre uma fera entre as feras.

Mas a mulher pensava. A mulher sabia que a manhã chegaria e ela se encontraria nua e indefesa e sozinha. Para bem ou para mau, seu destino estava unido para sempre aos adormecidos cujas luzes flutuavam como brasas agonizantes no vale.

Nem loba nem mulher, ela pensou, mas algo mais que qualquer delas, ou pelo menos, diferente e, possivelmente, por isso condenada. Acabaria sendo odiada e amaldiçoada, morrendo nas chamas da fogueira, condenada pela Igreja? Ou possivelmente lapidada por humanos temerosos de seus poderes? Ela recordou com um medo frio, o quão rápido o cortejo fúnebre havia aceitado a acusação de Silve. Outros podiam ser tão precipitados como eles.

Que ela tivesse vivido tanto era um desafio à ordem aceita de seu mundo... Um desafio à morte. E viveria até que lhe arrancassem a vida. Viva e sem renunciar nunca à mulher pela loba ou à loba pela mulher. Viveria para si, para estar livre ou morta.

Trotou no centro do caminho e farejou o ar. Entre o aroma de cavalos e suor animal e humano, pôde detectar o aroma do sangue.

A loba baixou o focinho até o chão. Tinha ferido um dos homens de Basílio, que ainda estava sangrando. Empreendeu a perseguição.

Basílio e seus homens não tinham voltado para a cidade. Tinham rodeado os subúrbios, cruzando a Campânia por volta do mar.

Na rica planície da Campânia, a natureza tinha sorrido beneficamente ao homem. Benzida com terra fecunda, verões aprazíveis e invernos suaves, tinha transbordado de leite e mel. Mas aquilo havia terminado. Quatro séculos de guerra por aquele premio entre os prêmios, a cidade imperial a convertera em um ermo de pântanos e ruínas.

Ao contrário da maior parte da rochosa a Itália, não era fácil de defender, nem restava poder o bastante forte para protegê-la. A fortaleza de Cassino, elevando-se sobre a planície, oferecia refúgios aos poucos viajantes que se aventuravam por aquela escuridão infestada de terror. Só caravanas armadas viajavam a noite. Elas, e a loba de prata, atraídas por algo que ainda lhes era desconhecidas.

O animal se moveu com o meio galope fácil de um lobo caçador, seguindo o rastro de sangue, o aroma dos cavalos e de homens completamente claro.

Seu olfato captou a fumaça da lenha, antes inclusive de ver o fogo. Acelerou o passo.

Tinha sido uma vez um templo de Apolo, um santuário do deus da luz. Agora, as altas colunas haviam caído e o santuário era uma casca vazia. Inclusive a estátua do deus havia desaparecido. Só a face de um terrível monstro surgia do frontão, as serpentes de seu cabelo, sua língua saindo da boca para lamber o sangue dos sacrifícios.

Basílio e seus homens haviam acampado nas ruínas. Estavam reunidos em torno da fogueira que ardia no quebrado alpendre do templo.

A loba se aproximou às escondidas entre os negros troncos de álamo do que tinha sido antigamente o sagrado arvoredo dos deuses. Deteve-se, com a face protegida pelos altos caules dos arbustos, para ouvir e olhar. Sentiu-se decepcionada. Basílio tinha muitos mais homens com ele, além dos quais havia levado a vila de Lucila.

Muitos para que uma só loba os desafiasse.

Basílio estava de pé nos manchados degraus do templo, falando com alguém escondido pela luz do fogo.

—Não há resgate para ti, nem para esse teu irmão. Não, agora que o prendi. Qualquer caminho que tome o levará a destruição.

—Tanto a odeia, então? — Inquiriu uma voz da porta do santuário em ruínas.

A loba conhecia aquela voz. Antonius. Afastou-se de um lado, onde seus olhos não ficassem deslumbrados pelas chamas, e o viu, vestido de negro, o manto cobrindo sua face como sempre.

—Odiar? — Perguntou Basílio. - Cristo, nada disso. Seu irmão me traz sem cuidado. Quando eu tomar a cidade, poderá seguir sendo o Papa desde que faça o que lhe digo.

Papa! Aquilo sacudiu inclusive a mente da loba. Regeane tinha notado que "Esteban" tinha poder, não quanto nem de que tipo. Não lhe tinha ocorrido que Esteban pudesse ser o próprio Papa Adriano.

Aproximou-se mais, fitando de uma frondosa tela de arbustos baixos, os homens reunidos ante o alpendre do templo.

—Não acredito que eu possa lhe ser muito útil. - Disse Antonius com irada amargura. - Sou um moribundo e espero que meu irmão tenha melhor sentido que se deixar coagir por ameaças contra meu podre cadáver.

—Uma descrição muito acertada, meu amigo... Envolve-te o mau cheiro do ossário. - Disse Basílio. - Mas era um homem jovem ao contrair a enfermidade, e claro que duraria bastante tempo preso a uma cruz.

Os olhos de Antonius, tudo o que seu dono mostrava ao mundo fecharam pouco a pouco. Os ombros sob o manto negro se abateram resignados. Ficou em pé, foi até o fogo e pegou um dos ramos acesos.

—Suponho, - disse com tranqüila dignidade, - que não negará o fogo contra o frio, sequer a um cativo.

Basílio se afastou como se temesse o contágio.

—Não, não o farei. E terá comida se a desejar.

—Não.

—Como queira. - Disse Basílio com indiferença. - Agora, se arraste a seu buraco e nos deixe descansar de sua visão e sua pestilência.

Tac! Uma flecha tremeu no tronco de uma arvorezinha perto da loba de prata. O animal se afastou imediatamente, sumindo nas sombras. A mulher necessitou de todas as suas forças para dominar os reflexos da loba.

Ouviu-se o grito de Basílio:

—Que diabos acontece?

—Os olhos... — Respondeu um dos homens. - Os olhos de algum animal, nos olhando da escuridão.

A loba de prata ficou tremendo entre os troncos das árvores.

—Avivem o fogo, então e deixem de disparar às sombras. - Grunhiu Basílio.

A loba de prata se escondeu, afastando-se quando os homens com tochas se aproximaram do lugar onde ela se escondera.

Alguém riu.

—Olhe, Drusis. Caçaste uma árvore.

— Eu vi os olhos, - insistiu Drusis de maneira obstinada. - Falhei o tiro que fiz, isso é tudo.

—Fosse o que fosse agora estará à milhas daqui.

—Os olhos eram grandes e estavam bastante acima do chão: era um lobo. Eu já cacei lobos.

—Não na Campânia. - Disse Basílio. – Era uma coruja.

Ainda discutindo, eles voltaram para acampamento e começaram a deitar para passar a noite.

A loba de prata esperou até que o acampamento ficou em silêncio. Só havia um homem de guarda para cuidar do fogo; estava sentado, dormitando nos degraus do templo, tranqüilo na segurança de que nenhum grupo grande de homens podia surpreendê-los em campo aberto.

Durante a comoção, Antonius havia se retirado para o interior do templo, para dormir.

A loba choramingou e mordeu o ar quando Regeane tomou o controle. Antonius estava em perigo mortal e a mente mais aguda da mulher compreendeu em seguida. Sabia que nem Adriano nem Antonius alterariam a política estatal pela ameaça de Basílio. De fato, aquela tática era uma necessidade suicida. Antonius sofreria uma morte horrível e um furioso Adriano o vingaria sem dúvida nenhuma, matando Basílio. Todos sofreriam e nada teria mudado.

A loba não compreendia as circunvoluções da crueldade humana. Para ela, Antonius era simplesmente um amigo. Um irmão de alcatéia, doente e necessitado de amparo. A mulher retrocedeu e liberou o animal, que atuou por instinto.

A loba rodeou devagar e silenciosamente a parte de atrás do templo e encontrou o que procurava. Embora tivesse a fachada frontal de mármore, o resto da estrutura era de tijolos. Uma das árvores do bosque tinha caído, derrubando parte da parede e deixando uma ampla brecha. A entrada coberta de arbustos e sarças estava a alguns metros sobre a terra. A loba passou sem dificuldade e procurou Antonius.

O leproso estava sentado ante seu pequeno fogo, com a cabeça inclinada e as costas contra a parede perto da porta. A loba se aproximou, detendo-se do outro lado do fogo.

Até sozinho, Antonius mantinha coberta a parte inferior de seu rosto, mas a loba pôde ver o bastante para entender por que. De um lado, seus lábios tinham desaparecido e os dentes estavam a descoberto. A lesão se estendia até o nariz. A área respeitada pela enfermidade albergava a sombra de uma grande beleza.

A ruína humana recordou a Regeane uma daquelas estátuas dos antigos deuses, abandonada e rota, parte da face erodida pelo vento e a chuva, mas ainda mostrando rastros de sua glória passada. Como havia dito Basílio, Antonius era muito jovem.

Seus olhos estavam fechados.

A loba de prata ficou ali, desconcertada. Ao entrar no edifício não tinha nenhum plano claro em mente, só uma esperança de ajudar de algum modo Antonius a fugir de Basílio. Fugir. A idéia era ridícula. Sequer podia lhe fazer entender o que queria. Como podia falar com ele? Como podia lhe persuadir para que falasse com ela?

A mulher teria rido. A loba só estava frustrada. Gemeu brandamente, expressando seu desgosto.

Antonius pestanejou, parecendo surpreso, mas não assustado.

Ao princípio, deveu pensar que era um cão, pois fez um gesto de estender a mão. Então seus olhos repararam no longo focinho vulpino, as orelhas erguidas e o magnífico cabelo de cor prata e negro de sua face. Retirou a mão.

—Meu pobre amigo, - ele disse. - Usurpamos sua toca? Seus olhos devem ser o que o arqueiro de Basílio viu.

Como o animal permanecia imóvel, olhando, ele seguiu falando.

—O que acontece? Quer algo de mim? Algo de comer? Quase desejaria que estivesse pensando em mim. Suas presas seriam mais misericordiosas que a cruz de Basílio.

Ele voltou-se para um lado. Havia meia fatia de pão, algumas azeitonas e queijo da cabra em um trinchador de madeira perto da porta. Ele pegou tudo, colocando-o ante o lobo.

—Aqui tem. Não gosta da comida de Basílio. Quanto menos comer, ficarei livre dele e deixarei de ser um problema para meu irmão.

A loba baixou o focinho até o trinchador e depois, ignorando-o, trotou para a porta, beirando o lugar iluminado pelo fogo de Antonius.

O homem de guarda estava recostado contra a base de uma das colunas em ruínas. Tinha colocado um pouco de lenha fresca no fogo, que ardia bem, com suas chamas ondeando e crepitando na brisa noturna. O homem roncava brandamente.

A loba voltou junto ao fogo de Antonius, olhando-o nos olhos.

—Lobo. Você começa a me intrigar muito. Não se comporta como nenhuma fera selvagem que tenha visto.

Deliberadamente, a loba se estirou para o manto, fechou os dentes sobre sua ponta e puxou.

—O que? —Perguntou Antonius surpreso. - Quer meu manto?

Desesperada por se fazer compreender, apanhou-lhe brandamente pela mão e puxou. Como loba, Regeane era grande.

Antonius se afastou um pouco do fogo.

A loba lhe soltou o braço e retrocedeu.

Ele a olhou fixamente, e depois estudou sua mão com assombro.

—Se queria me matar, — disse brandamente, - poderia fazê-lo com facilidade.

A loba emitiu um som grave e urgente com a garganta. Correu para o buraco na parede, e depois de volta a Antonius.

—Isto é uma loucura. O que é? Quem é?

Ela pegou novamente a ponta de seu manto e puxou.

—Não vê? Eles têm cavalos... Pegariam-me.

A loba grunhiu brandamente, mostrando um pouco as presas.

—Aqui estou, - disse Antonius enquanto se levantava, - dando explicações a um lobo.

Ela voltou a puxar o manto.

—Talvez tenha razão. Tudo parece melhor, que o quê Basílio planejou para mim.

Antonius teve que selar seu cavalo sozinho. Ela encontrou as selas de montar na escuridão, o aroma do couro era como um grito para seu olfato. Esperou impaciente nas sombras a beira do acampamento, mantendo-se a favor do vento para que os cavalos não se assustassem, olhando para o soldado que ainda roncava nos degraus do templo.

Os cavalos estavam presos a uma corda estendida entre duas árvores. Os dentes da loba cortaram a corda com uma dentada. O cavalo mais próximo se levantou. Uma forma negra recortando-se contra o céu. Ela saltou para um lado, evitando o golpe de um coice. Os cavalos ficaram livres. Ainda presos juntos, não correram, mas sim se moveram em círculo.

A loba gostaria de ser capaz de amaldiçoar, mas teve que se afastar dos animais com um grunhido de fúria. Era muito perigoso, não poderia se aproximar o bastante para separá-los uns dos outros.

O cavalo de Antonius se agitou. A loba viu que o cavaleiro tinha perdido o controle e mantinha-se sobre a sela por um milagre.

O soldado nos degraus do templo deu um grito.

A loba estava frenética.

Basílio e seus homens despertaram, procurando armas e tochas.

A loba abaixou as orelhas e arremeteu, mordiscando os esporões do mais próximo dos cavalos. O animal açoitou o ar com seus cascos e se lançou contra os mercenários, que haviam se agrupado.

Cegos de pânico, os homens de Basílio se dispersaram para não ser pisoteados. O próprio Basílio correu para o alto do alpendre do templo enquanto os cavalos passavam a galope, com Antonius montado sobre o último deles, preso desesperadamente ao pomo de sua cadeira.

—Detenham-lhe! — Gritou Basílio.

Os homens ao seu redor estavam muito estupefatos para reagir. Basílio empunhou uma flecha e disparou.

A loba viu que o cavalo de Antonius cambaleou sob o cravar do dardo em seu flanco.

Basílio pegou outra flecha e a loba carregou contra ele pelo mesmo caminho que havia seguido os cavalos.

—Deus meu! — Gritou alguém. - É o cão... O cão da vila.

—Que cão, nada! - Respondeu outra voz. - É a Lupa, a loba de Roma.

Basílio se voltou, apontando à forma prateada que voava para ele.

O fogo ardia ante a loba. Entre ela e Basílio. Ela viu a raiva em seus olhos acima da arma e o brilho de uma afiada seta apontada contra ela. Liberou-se do fogo e se escondeu, preparando-se enquanto o homem disparava.

A ponta do dardo queimou seu lombo ao passar por ele, para afundar logo nas chamas. Ela saltou para cima, as presas brilhando, em busca da garganta de Basílio.

Basílio usou a flecha como uma arma, para lhe dar um golpe nas costelas. A loba caiu rodando pelos degraus do templo.

—Matem essa maldita coisa! Matem-na! — Gritou Basílio a seus homens.

A loba se levantou e correu.

Seguiu os cavalos. A mulher se esforçava para controlar a loba. Parte dela estava aterrada, mas ao mesmo tempo se sentia triunfante e encantada. Tinha privado Basílio de sua presa e quase acabado com ele. Afrouxou o passo e olhou as estrelas, dando conta pela primeira vez de que o cavalo de Antonius ia em direção equivocada. Afastava-se de Roma, cruzando a Campânia para a costa.

Ela se deteve, os flancos agitados e olhou em seu ferimento, um abrasador arranhão no lombo, fora do alcance de sua língua curativa. Picava e queimava. Sacudiu-se e sua pelagem se elevou, para cair depois em seu lugar. Decidiu que não era uma ferida mortal, sequer séria.

Ao longe pôde ouvir a voz de Basílio:

—Vão atrás deles, - ele dizia a seus homens. - O cavalo está ferido, cravei-lhe uma flecha nas costelas. Antonius é um aleijado e não chegará longe a pé.

A resposta dos homens foi ininteligível, inclusive para os ouvidos sobrenaturalmente finos da loba, mas a relutância deles se fez evidente pelo grito de Basílio:

—Em nome de Deus, por que sofro com estes néscios? Peguem as tochas. Não é mais que um animal selvagem. São mulheres, para se assustar tanto?

Ela tinha que encontrar Antonius antes que Basílio o fizesse. Baixou seu focinho e começou a procurar. Em alguns momentos captou o rastro dos cavalos, inclusive o aroma do sangue do que estava ferido e que se atrasara em relação aos outros. As setas das flechas eram letais. O ferimento e a hemorragia matavam rapidamente.

Não demorou muito a encontrar Antonius. Ele estava em pé junto ao animal ferido, que resfolegava com as patas estendidas e a cabeça encurvada.

A loba soube que ele tinha visto aproximar sua sombra prateada, para lhe ouvir falar:

—E agora, meu amigo? — Disse olhando pelo caminho que tinham seguido. As tochas dos homens de Basílio se aproximavam deles.

A loba ficou entre ele e o cavalo, afastando-o do animal. Quando o cavalo a cheirou ficou em pé. A cabeça se elevou e ela pôde ver o pálido brilho de um olho em branco.

Com um rugido, ela se lançou contra o animal, fazendo que seus dentes estalassem justo junto ao pescoço do cavalo.

Com um grito de terror, o cavalo empreendeu uma cambaleante carreira pelo caminho.

A loba ficou quieta, ouvindo o barulho dos cascos que se afastavam no silêncio.

— Já sei! - Disse Antonius, olhando o luminoso clarão das tochas atrás deles. – Eles seguirão ao cavalo.

A loba gemeu brandamente, emitindo um som gutural.

—Mãe de Deus, - sussurrou Antonius. – Você pode pensar.

A loba não aventurou nenhuma resposta. Não estava contente pelo que tinha feito: o cavalo estava morrendo e ela se sentia afastada de si mesma. Havia mais compaixão no coração da loba pelo cavalo que pelo o humano. "Usar" era um conceito completamente humano. A loba não o entendia, suas ações estavam ditadas pela necessidade.

Voltou à face para o limpo vento e afastou Antonius das tochas. Tinha que encontrar um lugar para ele, pois pela manhã a loba a abandonaria. A alvorada assinalava o fim de seu poder. Devia encontrar proteção antes de se converter novamente em mulher. O pensamento pendurava sobre sua cabeça como uma espada.

Em seus ouvidos, a noite cantava com mil vozes.

Regeane se sentiu como quando era uma menina sobre os joelhos de sua mãe, enfrentando um livro pela primeira vez. As diminutas letras eram fascinantes, e estava segura de que encontraria segredos maravilhosos nelas se aprendesse interpretá-las.

Assim eram as vozes da noite, um livro aberto ante os olhos de uma fera enjaulada. Um livro que ela não podia ler. Como loba ou mulher, tinha passado muito tempo encerrada.

Deixou Antonius para trás por um momento e correu em um amplo círculo, a cabeça elevada para farejar o vento. Podia cheirar a água ao longe e o aroma almiscarado do cervo.

Tinha que seguir recordando à fera que, quando chegasse à alvorada, a alegre criatura se desvaneceria e a mulher ficaria abandonada, a Deus saberia que terrível destino, só e nua na Campânia.

Além disso, Antonius estava sofrendo. Não podia caminhar muito bem e os envoltórios de trapo de seus pés se converteram em farrapos. A loba choramingou brandamente.

—Sim, Lupa. - Disse Antonius. - Espero que saiba o que fazer, porque eu não tenho a menor idéia.

Ela subiu ao alto de uma colina. Deteve-se, uma forma escura e esbelta sob as estrelas.

A brisa era fresca. Mesmo de longe podia cheirar a cidade. Um aroma mais limpo de fumaça de lenha chegou a suas fossas nasais. As tochas dos homens de Basílio? Não. No alto, sobre a planície, ela viu a luz distante de Monte Cassino. Poderia encontrar ali refugio para Antonius? Contra a vontade decidiu que não. Seria o primeiro lugar onde Basílio o procuraria e não sabia se os monges poderiam impedi-lo, se tivessem alguém sob seu amparo.

Ela se deu conta de que os aromas traçavam para ela o mapa da Campânia. Cassino no horizonte e um aroma úmido e vertiginoso. O que era? Procedia de um monte de ruínas nas proximidades.

Voltou para junto de Antonius e o guiou naquela direção.

Ocultas em uma dobra de terra perto de um limpo arroio, havia umas poucas chaminés quase cobertas pela exuberante vegetação que crescia perto da água, nas planícies secas.

A mente da mulher recordou algo parecido que tinha visto em Paris, sobre o Sena. Uma fábrica de cristal.

Afundou o focinho em uma poça de água clara e o lambeu. A água estava fresca e doce.

Antonius se abaixou a seu lado.

—Onde me trouxeste, Lupa?

A loba emitiu um som grave e gutural.

Antonius esperou. Ela se afastou a trote e começou a traçar círculos. Logo encontrou o tubo. Os fornos de cristal precisavam ser ventilados por baixo, para que o fogo fosse o bastante forte para fundir a areia.

Havia dois fornos. O primeiro túnel estava fechado com terra e refugos, mas o segundo estava aberto. A loba levou Antonius para o túnel.

—Lupa, está segura?

A loba estava se assustando: não estava segura de quanto tempo tinha passado fora. Era tarde. Devia voltar a Roma antes que amanhecesse. Choramingou com urgência.

Antonius se arrastou pelo buraco. O tubo levava a fundo do forno em forma de nabo.

—Está bom. – Ele disse ao chegar.

Parte da chaminé desabara e espessos arbustos e árvores pequenas tinham crescido ao redor dele. A entrada estava oculta pelos altos arbustos. A loba só pudera encontrá-lo porque outro lobo o usara no passado como toca e ela tinha captado o aroma.

Esperou que, se os homens de Basílio investigavam a região, não ocorresse olhar os fornos em ruínas. Possivelmente sequer saberiam o que eram.

Quando Antonius ficou a salvo no interior, ela saiu a toda pressa e começou a correr para a cidade.

Estava aterrada e seu medo cresceu enquanto corria. Não se tinha dado conta do tão longe que estava. Quando alcançou as tumbas ao longo da Via Apia, compreendeu que estava presa, não poderia chegar à vila de Lucila antes da alvorada. Quando o sol saísse no horizonte e a luz cinza a seu redor se tornasse dourada, seria novamente uma mulher.

A casa onde se alojavam Hugo e Gundabald não estava longe. Não tinha outra opção.

Enquanto subia pela escada de fora, topou com Hugo que descia. Tudo o que queria a loba exausta e desesperada era passar sem ser vista, mas Hugo não sabia.

Seu primo ficou boquiaberto e apesar da fraca luz da alvorada, Regeane viu que seu queixo se desencaixava e sua face ficava verde de medo. Hugo subiu de costas até a porta, tentando fechá-la para que não ela passasse.

A loba saltou para sua garganta, lhe golpeando no peito e fazendo com que caísse. Encontrou-se com as patas sobre ele, olhando fixamente sua face horrorizada.

A boca de Hugo se abriu. Parecia como se quisesse gritar, mas estava muito paralisado pelo terror. Olhou o focinho enrugado e cheio de dentes longos e brancos. O abrasador fôlego da fera lhe acariciou a bochecha. Seu grunhido era forte como um trovão.

A loba tinha Hugo como sempre tinha desejado, mas sabia, a seu pesar, que não podia prolongar o momento. Pelo aspecto de seu primo, ele morreria de medo se seguiam assim.

Que agradável.

Era uma pena que estivesse a ponto de se converter em humana, se mordesse ficaria com um sabor desagradável na boca.

Sentiu-se moderadamente agradecida por aquela satisfação momentânea. Sabia que Gundabald a faria pagar por isso.

Hugo urinou e se deprimiu. Uma cálida luz entrou pela porta. Regeane pegou o manto de seu primo, algo para se cobrir. Fora, já havia amanhecido e ela estava nua.

 

                                             CAPÍTULO 7

Regeane despertou em sua cela ao meio-dia e permaneceu presa à parede. Não havia sentido mais a fera. Seu corpo era a de uma fêmea humana, mas a loba estava em seu cérebro. A loba podia ser a única razão de que estivesse viva.

Encontrava-se nua. O estreito quarto de pedra estava vazio. Uma corrente em torno de seu pescoço chegava até a parede. Sua pele estava azul por causa do frio, seus dedos intumescidos.

Estava de joelhos, um ombro apoiado contra as pedras. Seu cabelo lhe dava um pouco de calor, por isso mantinha a cabeça encurvada, para que caísse sobre seus seios e ombros como um manto.

Em qualquer caso, não podia ficar em pé. A corrente era muito curta. O colar de ferro pesava muito e suas bordas eram ásperas. De tanto em tanto, via mover um pouco de sangue caindo em seus seios e estômago.

Havia muitas outras manchas de sangue em sua pele, algumas partículas secas e escuras; outras vermelhas, só começando a coagular. A fera disse: - Durma, se afaste do frio e da dor. Mas a mulher não podia. Tinha chegado ao ponto em que o frio e a dor eram tão intensos que não podia fugir deles.

Sentia cruéis contrações no estômago e suas costas palpitavam com uma dor embotada onde tinha sido açoitada por Gundabald.

Acabou tendo quase tanto medo de seu tio quanto Hugo havia tido dela. A princípio, Gundabald parecia ter perdido todo controle, pegou-lhe do cabelo e fez com que permanecesse caído de bruços no chão, com uma de suas botas lhe pisando o ombro. Usou seu cinto para açoitá-la, até que o manto de Hugo ficou ensangüentado e seus gritos fizeram o caseiro intervir. Gundabald não quisera lhe abrir a porta, mas o homem e sua esposa permaneceram ali, amaldiçoando-a tão grosseiramente por gritar e incomodar os outros inquilinos e a ele por ser a causa dos gritos, que a surra terminou.

—Acha que vai sair com as tuas, não? — Ele disse enquanto lhe arrancava o manto de Hugo. - Que essa coisa do inferno virá para te curar...

Regeane, temendo que ele pensasse em violá-la, lutou desesperadamente com as únicas armas que restavam: voz, dentes e unhas.

O caseiro começou a gritar e a esmurrar a porta novamente.

Gundabald a tinha encurralado perto da cama. Regeane pediu ajuda aos gritos, que seu tio queria matá-la, mas Gundabald prometeu ao caseiro uma peça de ouro se lhes deixassem sozinhos.

O caseiro e sua mulher partiram.

Gundabald golpeou Regeane com um pedaço de lenha. Deu-lhe três golpes, mas ela não estava de todo inconsciente quando ele a arrastou até a cela e fechou o colar sobre seu pescoço.

Seu coração palpitava. O lado esquerdo de seu rosto estava inchado. Moveu seu pescoço contra o áspero do colar, desta vez deliberadamente.

O sangue fluiu... Vermelha, cálido, inclusive quente sobre sua pele de tom azul.

Quando Gundabald fechou a porta de repente, ela tinha começado a despertar. Tinha lutado contra a corrente, gritando, puxando a argola da parede com força sobre-humana, lutando com o colar. Não serviu de nada. O ferro forjado estava além de suas faculdades.

Nem sequer no pior de seus pesadelos, ela havia sonhado que Gundabald pudesse chegar tão longe. Depois de lutar, suplicou. Mendigou pelo menos um pouco de água. Alguma coisa, mesmo trapos para se cobrir.

Não houve resposta e ela finalmente compreendeu que Gundabald e Hugo deviam ter ido com o caseiro ao botequim mais próximo. Provavelmente já estariam bêbados e dormindo, pelo cansaço dos esforços da manhã.

Seu estômago se retorceu e sua garganta deu um salto. Engasgava-se. Inclinou-se para um lado e vomitou uma poça de líquido verde claro, que começou a se mover pelo chão desigual para a parede.

Havia outra poça perto, de cor amarela. Regeane tinha suportado a tortura de sua bexiga repleta durante quase toda a manhã. Ao ficar insuportável havia cedido à necessidade.

Fechou os olhos. A cela fedia, tanto para seu olfato como para o da loba. Mas soprou um vento gélido e o quarto se encheu do limpo e delicado aroma da Rosa Canina.

Viu o rosto de uma mulher, depois o de um homem. Ele não era grande coisa: cabelo loiro e curto, cor areia, maçãs do rosto largas e um sorriso malicioso. Podia passar a seu lado pela rua e não reparar nele. A mulher era pequena e com a mesma beleza frágil, branca e rosa das exuberantes flores de seu refúgio. Jaziam nus, juntos, com os membros entrelaçados. As aveludadas pétalas de rosa caíam devagar sobre sua cálida pele, que se ruborizava com o calor de um inextinguível fogo erótico. Ele a embalava em seus braços. Tinha-lhe feito amor; relaxada a extenuação do corpo da mulher era uma clara prova. E se a posição das mãos do homem provava também alguma coisa, ele estava preparando-a gentilmente para ser amada novamente.

Até que viu as lágrimas em sua face.

O homem se voltou. Estava nu. Indefeso. Suas armas não estavam longe, mas nunca as alcançaria.

Regeane e a loba despertaram com um sobressalto. O colar rasgava seu pescoço. Umas poucas gotas de sangue desceram por seu braço.

O pedaço de céu que podia ver pela janela tinha uma cor cinza escura. A loba, cujo relógio interno partia com as estrelas, sabia que era a tarde. Outro dia escuro e chuvoso que se aproximava de seu fim. Quando chegasse a noite, a loba acudiria, tentando curá-la, protegê-la. Mas quanto poderia durar aquilo?

A loba olhou Regeane através de uma tela de neve levada pelo vento. Mas não era a neve do sul, com grandes e suaves flocos que se derretiam sobre a pelagem ou inclusive o nariz, mas neve como areia gelada, que feria a pele exposta como se a raspasse com pedra-pome, congelando o sangue que emanava da ferida aberta.

Os olhos da loba estavam nublados e as costelas lhe marcavam. Sua espinha dorsal parecia uma pedra dentada ao longo de seu lombo. Ela também necessitava de comida, água, sono e calor. Sem isso, acabaria perecendo como a mulher.

Regeane sabia o que procurava Gundabald: uma pálida marionete de uma mulher. Uma criatura tão temerosa em lhe desgostar, que acatasse qualquer ordem e pretendesse estar contente em obedecê-lo, para não arriscar a provocar sua ira... E seu castigo.

Quantas vezes, teria que ser arrastada à cela e encadeada pelo pescoço? Quanta fome, quanta sede teria que sofrer? Quantas surras, surras que a loba curaria novamente uma e outra vez, antes de dela se converter em uma coisa quebrantada e sem vontade? Vivendo como Hugo e Silve, entre uma jarra e uma fodida. Disposta a fazer o que lhe ordenasse para não sofrer aquele horror novamente.

De repente, ela e sua irmã de pesadelo eram uma só. Os olhos da loba a olharam da terra onde só o sol percorria o horizonte, projetando um fogo púrpuro, vermelha, violeta e ouro. Seus raios pintavam uma planície morta, branca e gelada. Quando o sol desapareceu, a loba morreu. Foi há muito tempo atrás e somente uma de suas mortes. Ela jazia na neve e não havia carne suficiente em seus ossos para mantê-la em calor ao longo da gélida noite. Seguia ali, enterrada no gelo para sempre; seu espírito tinha alcançado as estrelas.

Havia uma oportunidade... Só uma. Lucila. Regeane podia ser resgatada, mas depois de ter visto Antonius cativo de Basílio, não estava segura de que Adriano seguisse sendo o Papa. Ou de que Lucila tivesse poder para liberá-la.

Mas se Lucila não tinha poder, Regeane sim. A liberação estava ao seu alcance. Tocou a beira cortante do colar para estimar seu fio. Recordou os ensinos da loba sobre rios de sangue escuro e brilhante pulsando sob a pele.

Seus olhos se fecharam como fariam os de uma fera doente. Esperou em paz, sua decisão tomada, descansando, conservando suas forças para o que lhe esperava.

A voz de Lucila no quarto contíguo, fez com que despertasse.

—Condenação! — Ela gritava. - Avive esse fogo. Estive em catacumbas mais cálidas e acolhedoras. Não, miserável idiota! Ponha mais lenha. Quero uma boa chama.

Regeane ouviu a voz do caseiro, um murmúrio obsequioso enquanto se inclinava verbalmente ante uma exigente Lucila.

—Queremos comida. Não, não quero essas sobras tuas! Vi um botequim rua abaixo em que vendiam comida.

O caseiro deve ter formulado alguma objeção.

—O que? Não me diga que não farão! Vê isto? É ouro. Não cobre, nem prata, mas ouro. Vá com Eurico ao botequim e quero o melhor que tiverem. Quero vinho, comida, pão... O melhor. E espero o dinheiro que sobrar. Uma peça de ouro basta para alimentar uma família durante um ano.

Os ferrolhos da porta fizeram ruído.

Regeane tentou gritar, mas não pôde emitir mais que um rouco sussurro:

—Lucila...

—Ouço-a, então deve estar bem. Diz que a pegaram?

—Sim, minha nobre senhora. A moça gritava lastimosamente. Minha esposa e eu subimos para tentar lhe dar auxílio, mas seu tio fechou a porta e não pudemos...

O resto da réplica se perdeu no ruído e os estalos dos ferrolhos.

Porco embusteiro. Pensou Regeane. Ele ficara estado encantado em deixar se subornar por Gundabald.

Lucila entrou no quarto e Regeane viu como a cor desaparecia de seu rosto. A mulher baqueou e vacilou ao vê-la.

— Tranqüilize-se. – Murmurou Regeane. - Não deixe que esses homens me vejam assim.

A porta estava ligeiramente entreaberta. Lucila a fechou firmemente. Fechou os olhos e se afastou de Regeane, apoiando a cabeça na porta.

—Seu tio ficou louco? — Ela perguntou murmurando.

—Não. Não acredito. Quer dominar minha mente e não lhe importa se ficará ou não algo a que dominar quando tiver terminado.

—Minha senhora, - chamou Eurico do outro lado da porta. - Necessita de ajuda?

—Saiam todos. – Gritou Lucila.

—O que ocorre, minha senhora? — Insistiu Eurico. E soava preocupado.

—Nada, - balbuciou Lucila. - Nada do que eu não possa me ocupar. Vá com o caseiro comprar a comida e deixe dois homens na porta, com ordem de não deixar entrar ninguém. Se seu tio voltar inesperadamente, não quero ter que matá-lo com minha adaga. Agora, vá! — Ela gritou, dando um golpe na porta com o pé.

Poucos momentos depois, Regeane estava sentada em uma cadeira em frente ao fogo, os pés metidos em uma cuba de água quente, comendo uma terrina de frango e alho porros em um espesso molho. Usava um desfiado vestido feito para uma mulher em avançado estado de gestação, que descia em pesadas dobras sobre seu corpo.

Lucila se inclinou para examinar seu rosto.

—Deus! – Ela sussurrou. - Tinha me parecido pior a um momento.

Regeane sabia que a loba estava presente.

—O que te aconteceu ontem à noite? — Perguntou Lucila abruptamente. Estava pinçando em um arca que continha algumas objetos de Gisela. - Meu Deus! - Disse elevando um andrajoso adorno de cor indeterminável. - Sua mãe não tinha idéia do que era apropriado para sua fila? Era uma nobre; deveria ter se vestido melhor, mesmo à custa de passar fome.

Regeane se levantou. Seu corpo estava quente. Tinha terminado com o prato de frango e estava pegando outro da mesa: espinafres cozidos com fatias de doce e saboroso toucinho.

—Minha mãe tinha um vestido bonito. – Ela explicou entre bocado e bocado. – Eu a enterrei com ele. —Tentou soar patética.

Lucila deixou cair o objeto. O olhar que lançou a Regeane podia ter talhado o cristal.

—Não... Se... Atreva... A... Brincar... Comigo... Moça! O que aconteceu ontem à noite? Quero saber. E quero saber agora!

Regeane tinha uma história preparada.

—Eu... Assustei-me. Corri na escuridão e perdi-me... — Disse levantando o olhar da comida e fitando Lucila.

Lucila assentiu com gravidade.

—Estava assustada... Encontrei a hospedaria... Quase tinha amanhecido. Meu tio pensou que eu havia estado com um homem... Ficou louco. Graças a Deus que vieste. Estava morrendo, — explicou fracamente.

—Ai... Ai... Pobre moça. - Comentou Lucila, cada palavra gotejando sarcasmo. - E todo isso sem roupa.

Regeane terminou o prato. O olhar de Lucila estava sobre ela como uma presa mortal. Não podia pensar nenhuma mentira convincente. No geral, era mais ou menos honesta, mas dizer a verdade naquele caso era impossível. Pegou uma fatia de pão, cheio de saborosas olivas negras e molhou um pedaço no prato. Então disse uma palavra, a mais suja de todas as que ouvira a anciã dizer.

—Ah! — Disse Lucila, voltando-se para sua tarefa. - Nisso arca está melhor. Havia sangue na terra do jardim. Muito sangue e no muro e no caminho. Alguém, ou algo fez um bom trabalho com Basílio e seus amigos. Mas você não sabe nada, não é? Estava muito ocupada correndo nua em plena noite.

—Não dá para insistir nesse ponto. - Respondeu Regeane, tentando recorrer à dignidade.

—Além disso, - disse Lucila, estudando sua face, - Você se cura muito rápido. Quando a vi no quarto, temi que a tivessem desfigurado, mas agora só tem algumas poucas manchas púrpuras e amarelas. De todas as formas, quando voltarmos à vila farei com que meu próprio físico a examine.

Regeane assentiu com um alívio tão profundo, que se sentiu enjoada.

—Voltaremos para a vila?

—Oh, sim. Não temos outra opção. Seu senhor montanhês deve ficar impressionado e não acredito que esta... Pocilga o consiga. O Papa me encomendou a tarefa de persuadir Maeniel de que este enlace é uma honra para ele. Os homens não apreciam o que conseguem sem esforço, então deve aprender a se vestir e se comportar com um pouco de propriedade na sociedade educada. A resolver os problemas da administração de uma grande casa e finalmente deve ser apresentada. Por sorte, seu marido será sem dúvida um bárbaro imundo, então não esperará grande coisa.

—Sei que está zangada comigo, - disse Regeane. - Mas não é necessário que insulte meu prometido por isso. E o que é isso de ser apresentada?

—Ser apresentada às pessoas adequada pela pessoa adequada. - Replicou altivamente Lucila. - E quanto a esse tal Maeniel, começo a pensar, apesar de que ontem à noite dirigisse minhas simpatias como um baixo, que será um desafio para ele. Seja da forma que for. Este matrimônio, embora você não saiba, se torna mais importante cada dia. Acudirei novamente os prestamistas em seu nome. Se não puderem contribuir com suficientes moedas para que a vistamos e adornamos adequadamente, possivelmente as arcas do estado se abram um pouco. Vamos, acabe de comer. Devemos partir o quanto antes. Não quero uma briga entre seus parentes e meus homens. Quero evitar que se fale de ti... Seja o que for. Não podemos deixar que esse monstruoso tio a mate ou a deixe aleijada antes das bodas. Quando a entregar a Maeniel, minha responsabilidade terá terminado. Não tenho muito tempo. Seu ansioso bárbaro chegará logo a Roma.

—A Roma!

—Sim. O Papa o mandou chamar. Opina que não temos tempo a perder.

Regeane disse outra das palavras que lhe tinha ensinado a anciã.

—Advirto-a. - Disse Lucila com severidade. - Que há muitas formas de desencardir a boca de uma jovem e eu conheço a maioria delas.

—Deixei-me levar por uma forte emoção, - respondeu docemente Regeane.

Lucila ia responder lhe, mas uma comoção do outro lado da porta a impediu.

—O que acontece? — Ela perguntou. - É seu tio?

—Não. - Disse um dos soldados. - É uma... Mulher?

—Pode que seja a anciã, - explicou Regeane. – Deve querer limpar o quarto. Deixa que passe.

A porta se abriu de repente e Silve irrompeu engatinhando. Viu Regeane, e emitiu doze gemidos, sorveu seis vezes pelo nariz e lançou um número indeterminável de balidos de ovelha enquanto se resguardava sob a mesa. Estava tão molhada que deixou um rastro de água da porta.

—O que faz aqui? — Estalou Regeane. - A última vez que a vi, você estava tentando fazer com que aquele cortejo fúnebre me matasse. Agora, tem a coragem de voltar...

—Queria roubar a alma do morto! Queria! Queria! Por favor!— Pediu Silve—. Tenho frio! Tenho fome! Hugo me pegou e me roubou o dinheiro que tinha ganhado trabalhando toda a noite. – Ela disse com um ruído parecido ao de um deságüe. - Já basta. Eu ia partir. De verdade! Ia embora. Não contarei. Não o contarei a ninguém, prometo! Juro sobre a cabeça de meu pai, a de minha mãe, a de minha irmã...

—Silêncio! — Ordenou Lucila. - Quem é?

—Minha donzela.

—Sua donzela! — Repetiu horrorizada. - Se for uma...

Nem a anciã havia usado nunca a palavra que Lucila pronunciou.

—Não sou! — Chiou Silve. - Sempre cobro pelo menos um cobre.

—Como máximo um cobre, diria eu. - Replicou Lucila com desdém.

Silve fez alguns ruídos que recordavam um frango mal estrangulado que tivesse escapado das mãos de seu verdugo com o pescoço quebrado pela metade. Regeane lhe deu um pouco de pão e uma terrina de sopa.

Do lugar que Silve ocupava chegou um sonoro sorvido e o ruído de uma rápida mastigada.

—O que é essa tolice de que você estava roubando a alma de alguém? —Perguntou uma ultrajada Lucila. – Você faz essas coisas?

—Não! — Gritou Regeane, vermelha de indignação. - Além disso, para que quereria eu a alma de alguém? Seja o que for, não tenho trato com o Maligno. Nasci como nasci e não posso evitar. Culpe-me por isso. Minha mãe o fazia. Hugo e Gundabald não pensam que é humano.

—Não é! —chiou Silve. – Ela fez com que um lugar que não estava ali, estivesse. Tinha dentes, grandes dentes. Havia fogo a seu redor, as vespas morriam nele... Aquelas coisas fantasmas emprestavam... Ficou negra e fugiu.

—Você! É uma... — A Regeane não ocorria nenhuma palavra o bastante suja. – Eu te protegi daquele pesadelo, putinha ingrata. Se não fechar a boca, saia debaixo dessa mesa e vá embora, como é devido, lhe... A... Converterei em sapo e passará o resto de sua vida sentada nas ruínas do Foro, pegando moscas com a língua. Venha aqui!

Lucila elevou as mãos ao céu.

Regeane nunca tinha visto o gesto e o achou interessante.

—Não resolveremos nada aqui. - Disse Lucila.

Silve saiu se arrastando de seu esconderijo e se sentou em uma das cadeiras, engolindo ainda seu pão.

—Arg! Deus! —comentou Lucila. - Convertê-la em sapo seria uma melhora!

Silve rompeu a chorar, babando no pedaço de pão.

—Não faça com que chore. - Disse Regeane. - É pior.

—Dá para notar. - Disse Lucila—. Deixe de miar! — Ela ordenou a Silve em um tom que não admitia a possibilidade de desobedecer.

Silve deixou de miar.

—Está quente?

—Sim. - Respondeu Silve.

—Comeste?

—Sim. - respondeu Silve.

—Muito bem. - Disse Lucila às duas. - Vamos agora mesmo. Minha carruagem espera lá embaixo.

—Silve, você vem conosco. Pode viajar a meu lado, - acrescentou Regeane apressadamente. Estava acostumada ao aroma de Silve. De fato, era um ponto em que a loba e ela não estavam de acordo. A loba o achava interessante, enquanto Regeane teria preferido prescindir da experiência.

Lucila compartilhava sua opinião a respeito.

—Não, não em minha carruagem! — Ela se opôs com firmeza. - As piolhos de sua virilha que devem se amontoar em torno de sua fonte de ganhos bastaria para partir contra uma cidade fortificada e estou segura de que um pouco de trabalho com um pente faria sair piolhos de sobra para defendê-la. Além disso, parece que nunca se lavou em sua vida. Um monte de lixo apodrecendo ao sol é uma companhia bem mais agradável.

Silve abriu a boca.

—Feche o bico. - Disse Lucila.

A criada obedeceu, mas ainda tentou sussurrar:

—Poderia ir.

—Oh, não, não poderia. Não estou dando escolha. Você fará o que eu te mandar. Ou... Farei com que a estrangulem, a prendam a uma bigorna e a joguem no Tibre.

Os lábios de Silve se abriram novamente.

—E... Possivelmente... —Continuou Lucila, - se me sentir bastante irritada, pode ser que não a mande te estrangular, mas que a joguem no Tibre com a bigorna no pescoço, para que respire água até chegar ao fundo.

Silve ficou com a boca aberta, mas nada saiu dela.

Regeane pegou um velho manto de sua mãe e o deu à criada. Estava gasto e feio, mas era amplo e quente.

—Vamos! — Disse Lucila. – Desça! E não fale com ninguém enquanto espera. Calada. Entendido?

Silve não disse nada, mas assentiu vigorosamente.

—Em marcha!

Silve saiu voando.

—Não pode deixá-los atrás sem mais, - disse Lucila.

—A que se refere?

Lucila sorriu pela primeira vez, mostrando todos os dentes.

—Às pessoas que sabe muito de ti.

—Por isso levamos isso?

—Sim.

Lucila estava procurando ainda algo decente para Regeane, entre as roupas. O vestido que lhe dera a cobria bem, mas estava curto. Renunciando a encontrar nada mais, ela inspecionou a barra.

—Talvez possa baixá-lo um pouco... Está cortado!

—Hugo e Gundabald. - Suspirou Regeane. - Devia ter bordados em fio de ouro ou prata e eles o cortaram.

Lucila soltou uma exclamação de exasperação.

—De verdade ia afogar Silve?

—Sim. - Respondeu Lucila, tirando o manto e envolvendo Regeane com ele. - E ainda pode ser que o faça, se não obedecer. Não quero que ande passeando pelas ruas contando histórias de seu futuro marido, os lombardos, Basílio, seus asquerosos parentes e o Papa. Deus sabe que ele já tem muitas preocupações. Seu matrimônio é importante, muito importante. Assegurar os passos alpinos é vital para os interesses do Rei Carlos E... Os do Papa. Desidérius, o rei lombardo, deu liberdade a Basílio aqui, lhe prometendo o senhorio da cidade se consegue derrocar o Papa Adriano ou colocá-lo sob seu domínio. Adriano não ousaria ofender o neto do Carlos, o Martillo. Não pode permitir que circulem rumores sobre ti em todos os bordéis e abrevaderos da cidade. Silve não arrastará seu nome pela lama, e tampouco o farão esses teus parentes. Se me causarem problemas, farei que todos sejam silenciados. Entendido? Entendeste-me?

—Sim. - Respondeu Regeane apressadamente.

Ela notou que o manto era bonito, até usando-o para ocultar a maior parte de seu corpo e seu rosto. Castanho outonal, Regeane pensou que devia ter sido a cor natural da suave e sedosa lã usada para tecê-lo. Tinha um bordado de largas folhas de salgueiro em uma mistura de linho, de ouro e prata.

—Ai do salgueiro, - sussurrou. - Chora pelos que vão morrer. Onde está o cipreste?

Os lábios de Lucila se apertaram e uma dura e vazia expressão congelou em seu rosto. Por alguns momentos, ela aparentou sua idade ou inclusive mais. Uma matrona ante uma tumba.

—Ainda não é tempo de ciprestes, - ela replicou. - Guardam aos mortos, mas acredito que estaria melhor com uma nova donzela e como órfã.

—Por que uma bigorna?

—Simplesmente é o melhor. Retém o corpo no fundo até que a decomposição esteja muito avançada e não se pode identificar. Embora no caso desses três, duvido que alguém se interessasse. O que é ainda mais seguro.

—O que faz quando lhe esgotam as bigornas?

—Não seja descarada. - Disse Lucila. - Está quente e comeste?

—Sim.

—Muito bem, desça a liteira imediatamente. Em marcha!

 

A carruagem de Lucila era como os usados pelos romanos no passado: fechado com cortinas e com almofadas de seda e veludo no interior. Mas os romanos de outros tempos tinham sido comodamente transportados sobre os musculosos braços e ombros de escravos suarentos, com um condutor provido de um longo látego para garantir a suavidade do trajeto.

A carruagem de Lucila não rodava com suavidade; quatro mulas cinza a puxavam. Os aros de aço da carruagem golpeavam os paralelepípedos. Podia haver seda e veludo no interior, mas não bastava para tornar a viagem cômoda.

Lucila ia sentada a um extremo da carruagem, com as costas contra as almofadas e Regeane ao outro. Com almofadas ou sem elas, a jovem saltava no ar a cada buraco ou saliência e às vezes caía dolorosamente sobre o traseiro, e também vezes perdia o equilíbrio. Tinha que se apegar às pesadas cortinas para não cair na rua.

Uma roda entrou em um profundo buraco. Regeane escorregou para um lado, agitando os braços desesperadamente, segura de que acabaria na estrada. Lucila pegou sua mão no segundo e a puxou de volta, com um duro sorriso.

—Relaxe. – Ela disse. – É como montar a cavalo, tem que seguir o movimento. - Mais rápido, - ela ordenou ao condutor.

Regeane se pegou ao acolchoado do fundo, mas inexplicavelmente a carruagem não acelerou, mas sim acabou se detendo.

Algo golpeou uma das pesadas cortinas ao seu redor. Lucila murmurou algo feio em um latim gutural e depois afastou a cortina para aparecer.

Uma pequena multidão se amontoava em torno da carruagem. Contemplavam o esplêndido veículo com uma mistura de fascinação, curiosidade e velada hostilidade. Uma voz entre a multidão gritou:

—Afaste as cortinas, Lucila e deixa que o povo dê uma boa olhada na puta do Papa!

Lucila afastou a cortina, apartando-a com um forte ruído de argolas.

—Muito bem, aqui estou! Agora, cavalheiro, se aproxime para que eu possa ver tua face... E recordá-la!

O homem que a tinha insultado se encolheu e desapareceu por um beco.

—Que valente! — Comentou Lucila. - Compartilha algum de vós sua opinião? É seu amigo? Pode alguém me dar seu nome?

Uma nervosa corrente de risos percorreu os ociosos rodeavam a carruagem, que desapareceram rapidamente.

Lucila gritou uma ordem e fechou as cortinas de um puxão. A carruagem começou a avançar novamente.

—A puta do Papa, é? — Ela disse entre os dentes apertados. - Eu gostaria que olhassem melhor. — Ela lançou um rápido e duro olhar para Regeane. - Não parece surpresa de que me chamem assim

—Não estou. – Ela se ouviu dizer Regeane. Recordou que na noite anterior Basílio tinha chamado Antonius de irmão do Papa. Esteban. Ela pensou, enquanto Lucila a olhava pela extremidade do olho. É o Papa. E Lucila... Quando Esteban soube a classe de indesejáveis que eram Hugo e Gundabald, não teve nenhum reparo em enviá-la com Lucila, em colocá-la sob seu amparo. – Suponho, - que foste a amante da Papa durante muito tempo.

Lucila ficou atônita durante um momento.

Uma chuva de projéteis golpeou as cortinas.

Lucila mordeu o lábio inferior, crispando os punhos, mas não voltou a abrir as cortinas. Regeane ouviu o ruído de cascos e um grito de dor. Supôs que quem havia atirado as pedras teria sido castigado por um dos guardas.

—É um monstro com cabeças de hidra. - Sussurrou amargamente Lucila.

—O que?

—A massa romana.

—O que aconteceu?

—Ninguém quer uma Papa forte, Regeane. - Explicou Lucila. - E os lombardos menos ainda. Os esbirros de Basílio começaram a pronunciar sermões nas Igrejas, que acusam Adriano de sofrer de uma vil enfermidade que o torna indigno de ser o supremo pontífice.

—Quer que todos o creiam um leproso como Antonius?

Naquele momento, a carruagem se deteve junto à porta da casa de Lucila. Regeane saltou sem esperar ajuda. Lucila foi atrás dela um pouco mais devagar.

Quando Regeane entrou no átrio um pequeno corpo se lançou contra ela, como o projétil de uma catapulta. Elfgifa se pendurou de seu pescoço, lhe rodeando a cintura com suas largas pernas.

—Você voltou! Sabia que voltaria! Fui eu quem te encontrou. Disseram-lhe isso?

—É verdade? — Perguntou Regeane a Lucila enquanto se liberava da menina.

—É uma menina terrível, terrível. - Respondeu Lucila encantada. - Sim, foi ela. Quando ouviu que você havia desaparecido, ela saltou o muro. Voltou dali a pouco tempo com o moço mais imundo que vi, me pediu uma moeda de prata e um banho.

—Um banho?

—Sim. - Disse irritada Lucila. - Um banho. Recebeu seu banho e sua moeda, e - ela continuou colocando as mãos nos quadris e olhando para Elfgifa, - um grande beijo.

Elfgifa franziu os lábios e baixou os olhos com modéstia.

—Prometi-lhe um beijo, mas lhe disse que nunca beijaria a ninguém tão sujo. – Ela explicou sacudindo a cabeça. - Meu pai disse que um homem que não se lava antes de estar com uma mulher e depois, não se respeita a si mesmo e nem à mulher. Posso entender o de "antes", mas por que depois? Disse-lhe que pensava que lavando antes bastaria, mas ele disse que depois também. Por quê?

Os lábios de Lucila se contraíram em um sorriso.

—Por que não o perguntou?

A menina franziu o cenho e começou a adiantar o lábio inferior.

—Ele sorriu como vocês estão fazendo agora e disse que eu entenderia quando crescesse.

—Não comece a dizer que quer entender agora. - Disse Regeane com severidade. - Envergonhou-me ante Esteban e Antonius.

Elfgifa as olhou com rebeldia.

—Deve recordar que só é uma menina. - Interveio Lucila. - Terá que esperar para entender algumas coisas.

—Obrigado por me avisar. - Suspirou Elfgifa. - É o que diz meu pai quando digo coisas que não quer ouvir. Sei que sou uma menina, mas entendo... — Ela se interrompeu ao cruzar outro fio de pensamento. - Além disso, Tio Thungbrand e Tia Huldigun nos visitaram e nenhum deles se lavaram. Perguntei a meu pai e ele me disse que são alheios a qualquer tipo de água; não entendi, mas se embebedam tanto como alguns dos homens de meu pai e rolaram sob a mesa com eles e...

—Certamente a isso se referia seu pai. - Disse Lucila.

—Tampouco jogam água a seu vinho?

—Isso. Agora vá. Chamei meu físico pessoal para que veja Regeane.

—Pegou-o? — Perguntou Elfgifa. - Póstumo, o menino que me disse onde você estava, disse que três francos, um deles chamado Hugo viviam perto do Foro. Disse que estava gritando esta manhã.

Lucila começou a apressar Regeane para o fundo da casa.

—Sim, pegou-lhe.

—Oh. Posso vê-lo?

—Não, não pode. - Disse Lucila com severidade.

Elfgifa pegou firmemente a mão de Regeane.

—Se eu for ser sua donzela pessoal, tenho que...

—Quem te disse que vai ser donzela pessoal?

—Sua donzela, Susana. Ela me disse. E quero ser. Ela diz que é estupendo. Dá ordens aos criados e os comerciantes lhe dão presentes caros, para que lhes favoreça ante sua dama. Pode tomar todos os amantes que quiser e não precisa se casar com algum velho sujo por seu dinheiro e... Embora casar com um velho sujo por seu dinheiro é outra coisa que não entendo. É que os jovens não têm dinheiro?

—Vejo, - disse Lucila ominosamente, - que terei que falar com a Susana.

—Oh, não. - Pediu Regeane. – Ela não deve ter falado por mal. - A sensação daquela mãozinha cálida na sua era muito reconfortante. - Por favor, deixe que Elfgifa fique.

Lucila olhou com severidade para a menina.

—Muito bem, pode ficar se... Se prometer se sentar no canto e ficar calada enquanto o físico examina sua dama. Se for ser uma donzela de honra, o primeiro que deve aprender é quando falar e quando guardar silêncio.

—Susana não me havia isso dito.

—Não? — Perguntou Lucila. - Presentes caros dos comerciantes... É? Parece que é algo que ainda não aprendeu.

Pappolus, o físico, apareceu na estadia. Era um jovem alto e bem vestido, com um ar de solenidade excessivo para seus anos. Regeane resistia a se despir ante um homem, mas com Lucila sobre ela como uma fêmea de dragão e Elfgifa observando curiosa de um canto, ela atreveu-se por fim a mostrar as costas ao físico. Pappolus a examinou e deu sua opinião em longas e complicadas frases salpicadas de impressionantes palavras gregas, cobrou seu dinheiro, deu-lhes um ungüento para as costas de Regeane e partiu.

Lucila farejou suspicaz o ungüento e o pegou.

—Uma vez ele prescreveu um ungüento para o olho de uma de minhas garotas. O problema não se curou, mas sim foi pior. Fiz averiguações e descobri que Pappolus acredita que o esterco de hipopótamo, que importa do Egito em pó, é um remédio soberano para tudo. Custou-me salvar o olho da garota. Mas embora odeie admitir, tem mais experiência que eu em impedir que fiquem cicatrizes. Por isso o chamei.

Ela deu a Regeane uma beberagem para dormir. A moça a rechaçou a princípio, mas acabou por beber. Lucila a levou até um cubículo, um pequeno quarto, escuro inclusive de dia. A única luz era a do abajur na mão de Lucila e o resplendor do sol que brilhava mais à frente do pórtico. Fez com que Regeane tombasse.

Na cama, Regeane pôde sentir como a poção nublava sua mente e embotava seus sentidos.

Lucila ficou ao seu lado, sustentando o abajur em forma de pomba. À luz da chama, parecia só uma face sem corpo, um vazio na fresca e agradável escuridão.

—Descanse. - Disse em tom tranqüilizador. – Durma. Durma. – Ela repetiu ainda mais baixo.

Embora Lucila fosse o mais silenciosa possível, o estalo do ferrolho bastou para despertar Regeane e a loba.

Estava meio paralisada pela bebida e o cansaço. Os poderes da loba não eram infinitos. Suas reservas se esgotaram, havia comido e estava quente. Agora, devia dormir.

Antonius? Estava sozinho na Campânia. Sem sua ajuda, morreria. Pensou que Lucila não a torturaria nem a faria passar fome, mas podia aprisioná-la com tanta eficácia como Gundabald. Com mais eficácia, de fato, pois tinha mais recursos.

As pálpebras de Regeane se abriram. Viu que a janela tinha barrotes, igual à da hospedaria.

A luz diurna era mais brilhante que no dia anterior. A chuva devia ter passado. Era primeira hora da tarde. A loba bocejou. Durma. Faça agora o que ela exige. A noite chegará.

 

                                        CAPÍTULO 8

A loba despertou Regeane no crepúsculo. Abriu um pouco os olhos. Entre os cílios, ela podia ver as estrelas, como pequenas luzes perfurando o escuro veludo azul. Permaneceu quieta. Duas vozes falavam perto.

—Sinto muito, não vou lhe dar mais. Poderia matá-la.

Ela reconheceu a voz: era a de Pappolus, o físico.

—Duvido. - Replicou Lucila com cepticismo. – Ela tem a constituição de uma leoa. Não acreditaria em que condições estavam quando a encontrei, e agora está quase curada. Não é de todo humana.

—Ora! Bom Deus, mulher. Eu pensava que estava acima de seu sexo na hora de confiar mais na razão, que nas superstições. Além disso, já lhe disse, às vezes não funciona.

—Sim, mas neste caso, por que não? Outras vezes balbuciavam a respeito de todo tipo de coisas: amores, amigos, planos, luxúria, cobiça e uma incrível quantidade de inveja, ciúmes e puro ódio.

—Certo. - Replicou Pappolus. - Algo disso é verdadeiro e a maior parte é imaginário.

—Mas ela só disse tolices.

—Tolices que me arrepiaram a pele: pétalas de rosa, brancos e rosados como a pele de uma bela mulher, inundados em poças de sangue... Entendo que vai casar se, não? Muito bem, case-a e desfaça-se dela.

—Quem é o supersticioso agora?

—Poderia ser uma criatura da natureza. O mundo real cria muitas coisas estranhas e perigosas. Eu mesmo vi a girafa enquanto estudava nas ribeiras do Nilo. Há poucas coisas mais peculiares que esse animal. Impressionou-me muito. Por outra parte, pode ser que diga tolices porque seus pensamentos sejam tolices. Já te disse no passado, que julga a outras mulheres segundo sua própria nobreza de espírito. Mas muitas são realmente estúpidas. Alguns filósofos, como sabe, viam-nas como meros animais, como um gato ou uma vaca que de alguma forma tivesse aprendido a falar. Um bom cão ou cavalo as supera em capacidade de pensamento abstrato e em lealdade. Como sabe, um cão ou um cavalo servirão ou defenderão seu amo até seu último fôlego. Mas as mulheres, com muita freqüência, são incapazes de mostrar avaliação pelos benefícios que lhes concede o homem. Desafiam seus pais, enganam seus maridos e pedem uma lealdade irracional a seus filhos! Do mais insatisfatório, - ele riu. - Agora, minha querida dama devo me desculpar, pois outro paciente distinto me espera. Eu vos rogo que me permita partir.

—Vá, por favor. - Disse Lucila, torvamente.

Quando Regeane ouviu fechar porta, sentou-se na cama e abriu os olhos.

—Ah! - Disse Lucila. – Pensei que estaria acordada. Ouvi como mudava sua respiração ao escurecer.

—Drogou-me para averiguar meus segredos.

—Não o bastante bem, temo. - Respondeu Lucila, dirigindo um incendiário olhar à porta pela qual tinha saído o físico. - Idiota... Se não soubesse que esse imbecil se põe a tremer ante a idéia de me desgostar, enviaria assassinos atrás dele. Provavelmente ajudaria mais a seu "nobre paciente" que os remédios.

—O que ele queria saber?

Lucila levantou o abajur que levava, para ver a face de Regeane.

—Onde está Antonius?

—Oculto na Campânia. Direi-te onde, mas não estou segura de que você possa encontrá-lo

Conseguiu fazer frente ao olhar de Lucila com uma expressão de limpa inocência. De algum lugar quente e luminoso, a loba olhou desgostosa para Regeane.

—Bem, - disse Lucila. - Certamente, os homens de Basílio não podem. Segundo minhas fontes, alguém, ou algo o arrebatou ontem à noite e o escondeu tão bem que não o encontraram sequer penteando a região próxima ao velho santuário de Apolo.

—Mas eu sim. Eu posso.

Lucila se aproximou da porta, abrindo-a para se assegurar de que não houvesse ninguém no corredor. Ao longe, Regeane pôde ouvir o ruído de chaleiras e frigideiras e risadas femininas. Lucila fechou a porta novamente, assegurando-a com o ferrolho.

A única luz do quarto procedia do abajur de alabastro em forma de pomba na mão de Lucila. A chama ardia em seu interior, visível através dos flancos translúcidos do ave. Piscava e brilhava sobre o azeite, projetando sombras cambiantes que se moviam pelas paredes. Lucila pôs o abajur sobre uma mesa baixa perto da cama, de forma que sua face ficou na sombra, sua expressão impossível de ler.

Regeane podia cheirar o medo no corpo da mulher, um aroma acre tão forte que quase fazia lacrimejar a loba. Só em outra ocasião tinha detectado um aroma tão poderoso: um salteador capturado na Via Julia quando ela e sua mãe chegaram a Roma, que saía da cidade caminho de sua execução. Lucila devia estar desesperada.

—O que quer? — Perguntou Regeane.

—É hora de que Antonius morra. - Sussurrou Lucila na escuridão.

—Não sou uma assassina.

—Não tem que ser.

Regeane se deu conta de que Lucila sussurrava porque lhe faltava o ar. Soava como se não pudesse respirar.

—O que quer que eu faça, então?

—Lhe leve o veneno. E... E... — Os estertores da mulher se tornaram mais rápidas. Parecia um animal esgotado.

—E? — Apressou-a Regeane.

—E lhe diga que eu o enviei. Ele saberá o que fazer e como. - Disse Lucila com um último esforço.

— A escolha entre a vida e a morte é dele.

Lucila não respondeu; afundou-se na cama junto a Regeane.

—Muito bem, farei o que me pede, mas queria uma recompensa.

—Naturalmente. - Disse Lucila, fazendo um descuidado gesto com a mão. Tinha a cabeça encurvada.

—Necessitarei de ajuda com o contrato matrimonial, quero que estipule que terei uma residência separada, com meus próprios criados.

—E com homens de armas aos quais possa pagar e que sejam, portanto leais. - Acrescentou Lucila.

—É inteligente.

Lucila sorriu. Um sorriso terrível. Pensou Regeane. O sorriso que esta mulher de rosto lívido deve usar em vez das lágrimas ou a loucura.

—Isso é o que sou? — Perguntou Lucila.

A loba se girou alarmada, com o pelo arrepiado.

—Deus saberá o que aconteceu ontem à noite, — seguiu falando Lucila, - mas certamente, eu não. Você desapareceu. Simplesmente se esfumou. Basílio te perseguia com sua espada e n momento seguinte... Nada. Mas seus homens estavam gritando e pelo sangue que havia no chão, feridos.

Regeane não respondeu, e Lucila lhe lançou um olhar apreciativo.

—Como eu gostaria de ter aqui esse néscio do Carlos. Não ouviríamos nada mais de senhores montanheses, a quereria para ele. Pelo menos a primeira vez. Poderia te introduzir na corte franco como uma amiga de Adriano. Seria uma mulher enriquecida e poderosa, poderia te dedicar a qualquer atividade que...

A loba não ouvia. Estava muito longe. Tinha encontrado a manhã e o sol lhe esquentava a face. Caminhava pelo topo de uma colina. Era campo aberto. A vegetação que pisava era baixa, mas abundante, embora áspera.

Havia muitas árvores pequenas disseminadas entre as colinas. Tinham cascas grosas e nodosas e pequenas folhas verdes e suaves que, como a vegetação, brilhava ainda com os diamantes do rocio da manhã. O gorjeio dos pássaros estava por toda parte. A voz do vento se elevava e caía em seus ouvidos.

A loba levantou a cabeça. As colinas se prolongavam na distância. Verdes a princípio, as mais próximas e depois de uma pálida cor azul até o limite do mundo no horizonte.

—Agora, vá e se banhe. - Interrompeu a voz de Lucila. - Jantaremos juntas e você levará o veneno a Antonius.

Regeane se levantou e foi para a casa de banhos. Ao sair da piscina, encontrou com duas das criadas de Lucila que a esperavam para vesti-la com uma túnica grega de grande beleza. O objeto caía sobre suas esbeltas formas, chegando até o chão em suaves dobras.

As criadas de Lucila lhe ofereceram jóias. Aquilo requeria pensar um pouco mais. Por fim, escolheu um antigo pendente de prata e pérolas. Os elos eram grandes e o metal muito brando, que podia lhe fazer marcas com a unha. Colocou sandálias de ouro nos pés e um broche de ouro no cabelo.

Regeane se deu conta de que estava sendo vestida para o prazer de Lucila quando se olhou no espelho. A suave malha era quase transparente; não de todo, mas quase. Revelava seus rosados mamilos e a escuridão de seu triângulo púbico.

Uma das criadas lhe ensinou a soltar o cinto da cintura e os dois broches dos ombros, de forma que a túnica caísse a seus pés.

Regeane pediu para ver Elfgifa e foi conduzida até um pequeno e cômodo quarto. A menina dormia numa confusão de joelhos e cotovelos. Perecia uma suja e pequena bola; dava a impressão de ter passado a tarde brincando no jardim. Umas poucas mechas de cabelo loiro se frisavam sobre sua frente. Regeane os afastou a um lado e lhe deu um terno beijo.

A donzela que compartilhava o quarto de Elfgifa era uma mulher robusta e maternal de cabelo cinzento.

—Fui à ama de leite de Antonius no passado. – Ela disse a Regeane. - Fazia muito tempo que não tínhamos um menino na casa. Sentia falta de.

—O que opina da menina? Sofreu danos graves em seu cativeiro?

—Não, não acredito. Como ela diz, está muito bem criada. Embora às vezes se mostre um pouco desavergonhada, é gentil e obediente. Sempre tem um, ”por favor," e um "obrigado" para todo mundo. Esteve um pouco descuidada; diz que sua mãe morreu e não a recorda, e seu pai não se incomodou em casar novamente. Deve querer muito à menina. Adora-lhe, estará louco de tristeza. Espero que possam se reunir logo. É uma cruel separação.

Regeane assentiu.

—Que terno. E nem sequer é tua. — Lucila era uma forma escura na soleira. - Imagina como a amaria se fosse sua própria filha.

Regeane não respondeu. A criada fez um movimento para sair.

—Fausta! — Disse Lucila à mulher. - Você queria tanto como eu. Não abandone a minha dor.

—Minha senhora, - disse Fausta brandamente. Há anos, minha família me levou ao negociante de escravos. Minha mãe chorava enquanto meu pai convinha um bom preço. Eu tinha só treze anos. Viam em minha irmã a beleza que podia conseguir um marido e a irmão como as costas fortes para trabalhar a terra. Em mim, viam a compra de um novo boi. Você comprou-me porque disse que eu tinha uma face amável. Ajudei-te a criar seu filho. Tudo de bom em minha vida veio de suas mãos. Eu o quis e quis também a ti, mas ninguém no mundo o ama como você. Se encontrar a morte esta noite, você também o fará. Não me peça que traia a nenhum de meus amores. Não é a única que chora.

Ao terminar, Fausta saiu discretamente, levando o abajur e deixando só escuridão atrás dela.

O rosto de Lucila estava pálido e vazio. Ela tremia.

O vento soprou na estadia, afastando o aroma de Lucila. Regeane agradeceu. Sequer a loba encontrava interessante a atmosfera que envolvia à mulher.

—Seu filho, Lucila. Seu filho?

—Irei banhar-me agora. Reunirei-me contigo na sala de janta. E... Não tolerarei mais discussões sobre o assunto. Minha decisão está tomada. Se não quisesse a Fausta, amanhã mesmo estaria na rua, mendigando seu pão nas escadas da igreja e passando sua velhice refugiada da chuva em um portal.

Antes que Regeane pudesse responder, Lucila se voltou, afastando-se. O ar da noite que chegava através da janela era frio. Regeane fechou as portinhas, trancando-as e cobriu Elfgifa. A menina se agitou. Regeane beijou uma suave e ainda suja bochecha. Elfgifa suspirou profundamente e se estirou um pouco sob a cálida roupa da cama.

Estava segura a menina? Regeane não sabia com certeza.

A loba estava satisfeita. Algo em Fausta, sua fala tranqüila, seu aroma de maçãs amadurecidas era reconfortante. Um bom membro da alcatéia. Não arrojada, mas sempre digna de confiança. Firme.

Regeane se apressou para a sala de janta.

Jantaram na intimidade, como tinha prometido Lucila. Os dois leitos estavam um em frente ao outro sobre uma mesa baixa que continha o que para a Lucila era obviamente uma comida ordinária... E um luxuoso festim para Regeane.

Uma perfumada brisa chegou à estadia, vindo do jardim às escuras.

O jantar estava disposto sobre a mesa antes elas: veado feito sobre um fogo aberto e coberto com seu próprio molho, um capão guisado com mel e amêndoas, azeitonas negras, pão e alguns ovos duros.

Sobre uma bandeja de prata havia uma jarra e taças de cristal vermelho. Lucila serviu uma taça de vinho para Regeane.

—É minha colheita mais velha. Reservava-a para o banquete nupcial de meu filho, mas servirá para seu funeral, pois deve morrer esta noite. Diga-me onde está.

Regeane se encolheu de ombros.

—Não lhe poderia dizer. Encontrei um esconderijo.

—Lembre-se.

—Não. - Se defendeu Regeane. - Eu não sou uma caçadora. Não me movo da mesma forma que Basílio e seus torpes valentões. Sou... Diferente.

Lucila deixou fugir um soluço gutural. Depois baixou a cabeça, apoiando a testa sobre a almofada no extremo do leito.

Regeane alongou uma mão para a comida. Seus dedos pegaram um pedaço do veado e o levaram aos lábios. A loba estava faminta, quase esfomeada e pôs Regeane a trabalhar o mais rápido possível.

As sensações da loba eram muito fortes para a mente verbal da mulher. A loba só sabia que, em algum lugar no mais fundo de seu ser, tinha tomado uma decisão. Tinha chegado a ela sem debates nem análise, quase sem pensar nas ramificações ou nas conseqüências: ia salvar Antonius. Regeane estava de acordo.

Com a claridade nascida da quase histérica tensão de seu interior, Regeane contemplou os formosos afrescos do quarto que davam uma ilusão de luz e espaço, os abajures de alabastro, as almofadas de veludo vermelho púrpura.

Lucila não comeu, embora tomasse uma taça do escuro vinho.

A sala de janta que tinha parecido tão esplêndido a noite anterior resultava agora miserável e barato. Os afrescos estavam sujos e obscurecidos pelo tempo e a gordurenta fumaça de milhares de comidas. Aqui e lá se desprendiam pedaços de pintura, mostrando as paredes nuas. Os abajures em forma de pomba eram o toque pretensioso de uma dona de um bordel. Mas isso era Lucila, não? Por muitas palavras bonitas que usasse... Uma alcoviteira.

Regeane terminou o veado. Pegou uma asa e um peito do capão e seus dentes rasgaram a branca e suave carne.

Embora Lucila servisse às melhores famílias de Roma, sua deusa seguia sendo a luxúria. Afrodite com dedos de ouro. Nobres senhores tomavam às moças como Maeniel faria com ela. Lucila recebia seu pagamento. E o sangue de seu filho.

Durante o que pareceu um longo tempo, Regeane comeu sem falar. Sentia-se presa em um labirinto. Uma viagem que tinha começado quando Gundabald lhe disse que ia casar se e o que queria que ela fizesse a seu marido. Queria que fosse uma mulher complacente e levasse Maeniel a uma falsa sensação de segurança.

Mas nas noites de lua cheia ou inclusive, ela pensou alegremente, em qualquer escuridão ela podia mudar. Mudar e rasgar a garganta de seu inconveniente marido. Os homens do jardim não tinham tido muitas oportunidades a noite anterior. Ela não só era muito maior que um lobo normal, mas também muito mais inteligente. Podia esperar e escolher seu momento.

Contemplou a seu redor a puída grandeza da luxuosa estadia. Sentiu-se doente, enojada pela disposição de Lucila em assassinar seu próprio filho por conveniência política.

A voz de Lucila interrompeu seus pensamentos:

—Onde está?

—Por que quer lhe matar?

Lucila pegou o cabelo de Regeane do outro lado da mesa, lhe sacudindo cruelmente a cabeça.

—Por que me tortura com esta tolice? — Gritou. - O que é Antonius para ti? O que te importa que viva ou que morra? Diga-me onde está e acabemos com isso.

A Regeane custou todas suas forças para impedir que a loba ocupasse seu lugar, mas a fera falou e sua voz ressoou na garganta da jovem. Ao mesmo tempo, Lucila lhe deu uma forte bofetada na face.

O rugido e o golpe cortaram a raiva de Lucila, que se afastou tremendo.

—Cristo, o que foi esse ruído? — Sussurrou. - O que é, por Deus?

—Não volte a me tocar. - Cuspiu Regeane—. Não... Vou... Levar... Veneno... A... Antonius.

—Disse...

—Não. – Ela exclamou Regeane saltando de seu leito.

—Prometeu! —A voz de Lucila era aguda e assassina como a de um ave de rapina.

—Menti! Tinha que sair daquele quarto. Tinha que... Não sei se posso ajudar Antonius, mas vou tentar.

A cabeça de Regeane se tornou para trás quando a loba tentou tomar o controle... Depois, a criatura da noite fugiu, grunhindo pelo golpe da mulher. Regeane se deteve. Estava baqueando, em parte pelo esforço de manter a raia à loba e em parte de pura fúria humana.

Lucila a olhava em um surpreso silêncio.

—Regeane, Regeane... Pensa que quero matar meu próprio filho?

—Não. Penso que crê que deve fazê-lo.

Lucila assentiu.

—Sim, acredito. Recorde à multidão, a rapidez com que se reuniram em torno de minha carruagem, os insultos que me lançavam?

—Sim.

—Bem. Se essa multidão chegasse a acreditar que a família de Adriano está corrompida como a de Antonius, o destruiriam. As facções políticas, querida, não são simplesmente um problema em Roma, mas uma enfermidade. O que lhes freou até agora é que Adriano goza do profundo respeito das velhas famílias senatoriais e o povo o adora. Mas se Antonius é revelado como um leproso pode que a Basílio baste isso para derrubar Adriano. — Lucila se voltou, passando as pernas por cima do leito para ficar em pé. Voltou para perto de Regeane com os braços estendidos. - Ocultamo-lo desde que sua enfermidade começou a se manifestar a três anos. Agora... Agora não posso lhe salvar. E embora pudesse Deus misericordioso, para que? Para que, moça? Para esperar até que lhe apodreça algum órgão vital e morra de forma lenta e miserável? — Os braços de Lucila caíram dos lados. Ela elevou uma mão e a levou a cabelo, puxando os longos fios tingidos com henna como se quisesse arrancá-los. - Ou até que Antonius tome o assunto em suas mãos e faça o que deve, para não converter no instrumento da destruição de Adriano?

Regeane não respondeu. Não tinha resposta para Lucila. Sentia a atração da noite em sua carne, em seus ossos. A loba queria se afastar, cheirar o vento limpo, correr através dos campos sob as estrelas. Longe dos humanos como Lucila, que a tinham mantido encerrada durante tantos anos em estreitas habitações de pedra com barrotes nas janelas. Longe dos humanos que criavam aqueles agônicos e incompreensíveis enigmas como a política e a guerra.

O quarto se obscureceu a seu redor. A loba se dispôs a sair. Loba e mulher cheiraram a refrescante brisa noturna que chegava do átrio.

Regeane olhou o abajur pendente enfeitado de pombas de alabastro. Algumas deviam ter esgotado o azeite e se apagavam lentamente uma atrás da outra.

Lucila cambaleou contra o leito.

—Oh, Deus. – Ela gemeu. – Cristo! Sou tudo o que dizem de mim... Puta, rameira, uma porca que devora a sua própria cria, e meu filho... Oh, Deus, Antonius!

Seu rosto adquiriu uma cor branca suja. Uma tênue camada de suor brotou de suas têmporas.

Regeane se tranqüilizou. Quando se esgotou por fim o azeite do abajur, a quarto se tornou mais escuro. A loba se aproximou.

Lucila caiu de joelhos. Olhou para Regeane sem compreender.

—Aonde vai? O que vai fazer?

Regeane retrocedeu para o negrume do átrio. A mudança a afligia, paralisando sua garganta e sua língua. Mal pôde formar as palavras de sua resposta.

—Vou ver o que há na noite.

 

                                                 CAPÍTULO 9

Os dedos do emissário do Papa aferravam firmemente uma das taças de prata de Maeniel. Estava deitado sobre a mesa, profundamente adormecido entre os restos do festim da noite anterior.

Maeniel coçou a cabeça tentando se recordar como ele se chamava. Captou o olhar de Matrona ao outro lado da mesa.

—Qual era seu nome?

—Harek.

—Harek. - Repetiu Maeniel. - Que estranho. Teria jurado que era romano.

Matrona soltou um frio som de desprezo. Um vaio é sempre frio, mas o de Matrona foi mais frio que a maioria.

—Muitos deles adotam nossos nomes de bárbaros. Acreditam que os faz parecer mais duros, — ela disse com um sorriso que não era muito melhor que o som de antes. - Não posso dizer que a este ajudou muito.

Maeniel assentiu. O mensageiro não chegava aos cinco pés de estatura e Matrona era como uma torre ao seu lado.

—Ao princípio estava um pouco estirado. - Comentou Gorgo. - Mas logo se foi soltando.

—Se soltou muito. - Disse Matrona.

—Oh, não sei.

Gorgo era um homenzarrão cujo longo cabelo castanho se misturava com sua espessa barba e seu bigode. Mantinha-se ereto em seu assento, um verdadeiro lucro depois de uma noite bebendo.

—E o que diz de quando perseguiu Silvia pelo salão? — Perguntou Matrona.

—Silvia? —Interveio Maeniel. – Ela estava assustada?

—Não, só se mostrava recatada.

—Possivelmente procurava um pouco de intimidade - Sugeriu Gorgo com delicadeza.

—Não entendo por que. - Disse Matrona. - Nunca se incomodou em procurar antes.

—Isso é verdade.

—Silvia. - Maeniel ruminou o assunto. - Conseguiu apanhá-la?

—Sim, na cozinha.

—Conseguiu seu objetivo? — Perguntou Gorgo.

—Não saberia dizer, - respondeu Matrona, mas carregou bravamente, afastando as coisas com as mãos. Parecia que estava nadando.

—Silvia não tem por que assustar de uma rajada de vento. - Disse Maeniel.

—Silvia não tem por que assustar nem de uma avalanche, - comentou Gorgo.

—Certo. - Corroborou Maeniel, olhando interessado ao homem da mesa. - É muito bravo para ser um romano.

—Em todo caso, - disse Matrona, - os dois se comportaram como se acreditassem que fosse.

—Não nos descreva isso.

—E isso que a cozinha tem o chão de pedra, - continuou Matrona.

—E isso que achou Silvia atraente. - Disse Gorgo. - Pensava em comprovar se era capaz de voar.

—Não o faça. - Lhe proibiu Maeniel.

—Não das almenas, - explicou Gorgo. – Somente aqui no salão. Chamou-me bárbaro, bárbaro tosco e estúpido.

—A bebida, - disse Matrona, - tira o pior dele.

—Eu não abri o buraco no teto. - Protestou Gorgo. - Além disso, é o que lhe disse: se não houvesse buraco no teto, como sairia a fumaça? Afogaríamo-nos todos ao acender um fogo.

Maeniel observou o buraco e coçou novamente a cabeça.

—De toda formas não entendo para que queriam tanto espaço, - murmurou Gorgo.

O salão era o que restava de uma pequena basílica romana. Era um longo espaço em forma de T, com coberta abobadada e uma alta cúpula sobre a mesa a um extremo. Em algum momento do passado, alguém tinha usado um bico no centro da abóbada que cobria o extremo. O mesmo instrumento havia aberto um grande buraco no piso de mármore. Os restos de uma grande fogueira fumegavam ainda no poço sob o buraco do teto. Muitos dos homens de Maeniel dormiam amontoados em torno do tosco espaço. Havia pernas se sobressaindo sob a mesa, no extremo do salão.

—Onde está Gavin?

—Não sei. - Respondeu Matrona, ocupada em liberar a taça dos dedos de Harek.

—Vê-se que pertence à Igreja, por ser de prata. - Disse Gorgo.

Maeniel olhou para o canto, Gavin não estava entre os adormecidos. Onde teria se metido? Caminhou ao longo da mesa, olhando os pés. Alguns tinham os pés para cima, outros para baixo, mas nenhum pertencia a Gavin.

No fim o encontrou, de pés para cima, entre os pés maiores de Silvia no extremo da mesa.

—Gavin e o emissário do Papa em uma noite? — Ele perguntou a Matrona.

—Não. - Respondeu ela enquanto seguia lutando com a taça. - Acredito que ele só ficou em cima dela para dormir em um lugar cômodo e tranqüilo. Pediu-me permissão e eu lhe disse que sim.

—Mas estava muito bêbado. - Disse Maeniel.

Matrona conseguiu liberar por fim a taça e se afastou para guardá-la sob chave, com as demais.

—Sei. - Respondeu por cima do ombro. - Por isso lhe disse que sim.

Pobre Gavin. De toda forma, pobre ou não, tinham que partir e Gavin não despertaria por si mesmo até a tarde. Pegou-o pelos tornozelos e o tirou um puxão de debaixo da mesa.

—Aaah! O sol! — Gritou Gavin. Voltou para seu lugar, arrastando-se com os dedos e tentou e colocar novamente sobre Silvia.

Maeniel sentiu simpatia por ele. Parecia um lugar fofo e acolhedor, quase tão grande como uma cama. Mas Silvia estava despertando e não queria nada de Gavin. Afastou-o com o braço, fazendo-o cair de lado.

Gavin se queixou. O frio do chão de pedra se filtrou por suas roupas. Ele se enroscou como uma larva ferida e gemeu brandamente.

Maeniel voltou a puxá-lo pelos tornozelos, lhe sustentando como um carrinho de mão, com as pernas no ar e os braços sobre o chão.

—Oh, Deus! — Chiou Gavin, segurando a cabeça com ambas as mãos.

— Quer que te jogue na fonte? — Perguntou Maeniel. A fonte do pátio era alimentada por água do degelo das geleiras do passo.

Gavin estremeceu violentamente, mas decidiu no momento que a sobriedade era a melhor parte da coragem.

—Estou acordado, Maeniel.

—Bem. - Maeniel lhe soltou os tornozelos.

Gavin tentou ficar em pé. Estava pálido e entreabria os olhos por causa da luz.

—Vamos a Roma. - Disse Maeniel. – Sairemos hoje.

—Não. - Gemeu Gavin. - Haverá algo de mal nessa mulher, seguro. Terrivelmente mal. Já conhecemos parte do mal. Você viu a carta: seus parentes mais próximos são alguns patifes, inclusive conseguiram surpreender o Papa. E sabe que vivendo entre esses romanos depravados e dissolutos é difícil lhe surpreender!

Os olhos de Maeniel passearam pelo salão. Silvia bufava e roncava debaixo da mesa.

—Romanos dissolutos. – Murmurou. - E o que somos nós?

Gavin cambaleou ao longo da mesa, procurando uma jarra com um pouco de vinho ou cerveja. Por fim encontrou uma e a levou aos lábios. Seu pomo de Adão se moveu de cima abaixo durante um momento.

—Nobres e castos bárbaros de coração puro. – Ele respondeu ao deixar a jarra. - Sei por que é o que me disse ontem à noite o emissário do Papa. Quem escreveu foi um tal de Tácito.

Matrona colocou os punhos sobre os quadris, jogou a cabeça atrás e respondeu com um uivo:

—Você só é casto, Gavin, quando não consegue apanhar a mulher que persegue. Vi montões de esterco mais puros que seu coração e quanto à nobreza, não é mais que o bastardo de alguma suja faxineira que provavelmente andava muito devagar.

—Verá, — disse Gorgo, - que aprendeu a não mencionar a sobriedade.

O rosto de Gavin adquiriu uma insana e quase impossível cor púrpura esverdeada.

—Meu PA, - ele disse em tom estrangulado. – È...

Matrona começou a arregaçar.

—Vamos, Gorgo. Já começa a falar de seu pai, terá que lhe jogar à fonte.

Gavin retrocedeu de um salto, refugiando-se atrás o Maeniel. Este viu que ele estava com um olho arroxeado e tinha uma brecha no lábio.

—Quem ousou atacar meu capitão? — Perguntou meio de brincadeira. - Matrona?

A mulher soltou um risinho maligno.

—Não, desta vez não fui eu.

—Eu o fiz. - Interveio Joseph. Era um homem grande, de rosto lúgubre, com um bigode que lhe cobria o lábio superior. - Confundiu-me com Matrona.

—Não. - Negou Gavin horrorizado.

—Sim. - Disse Joseph, meneando a cabeça. - E temi que repetisse seu engano com alguém menos paciente que eu, então que te coloquei para dormir.

Gavin se afastou a tropeções, murmurando algo sobre a falta de respeito e os falsos amigos.

—Gorgo, Joseph. - Ordenou Maeniel. - Vão pegar um pouco de dinheiro.

O pessoal estava despertando ao longo da mesa, procurando e encontrando bebida para combater a ressaca.

Gorgo e Joseph voltaram com um grande cofre.

—Pesa muito. - Se queixou Joseph.

—Bem, esvaziem chão. - Disse Maeniel.

Os dois homens obedeceram e um monte de ouro e prata caiu no chão. Havia antigas moedas, jóias com pedras preciosas e semipreciosas e algumas vistosas peças de cristal, baixelas, taças, pratos, bandejas e terrinas.

Matrona se aproximou com dois pares de alforjes e começou a enchê-los. Um para jóias, o outro para moedas de ouro e prata. O serviço de Maeniel se congregou ao redor, homens e mulheres escolhendo jóias para si mesmo e às vezes para os outros.

Gavin colocou um diadema na cabeça. Era quase todo de cobre, mas tinha um anel de ouro e pássaros de prata sobre ele.

—Era de um rei?

—Não. - Disse Maeniel. Parecia ligeiramente doente. - De um sacerdote.

—Um sacerdote cristão? — Perguntou Gavin com estranheza.

—Não, pagão. Um... — Maeniel procurou a palavra. - Um druida. Agora, tire essa maldita coisa. Porque é uma coisa maldita e não demorará em descobrir se seguir com ela na cabeça.

Gavin tirou a coroa, jogando-a de volta ao monte.

Maeniel lhe deu uma palmada.

—Escutem! Saímos hoje para Roma. Quem quiser vir, peguem algumas moedas: teremos que dormir sob um teto de vez em quando e ouvi dizer que viver na cidade Santa é caro. Matrona, quem ficará para cuidar do gado?

Matrona tinha aproveitado a distração geral para tirar o vestido e colocar um disfarce que tinha encontrado no cofre. Ele consistia em um jogo de correntes de ouro que cobria seus seios e outro que descia de seus quadris e ocultava sua zona púbica. Matrona era uma mulher alta de cintura esbelta e amplo peito e quadris. Sua pele era escura. Tinha grandes olhos castanhos, de pálpebras pesadas e sonolentas e lábios formosos e sensuais.

Gavin ficou olhando-a com os olhos frágeis e a boca aberta.

—Matrona, os animais! Vacas, ovelhas, cabras, cavalos... — Disse Maeniel, estalando os dedos. – Recorde-se.

—Há três famílias com mulheres prenhes. - Respondeu Matrona. - Falei com elas, que não querem se arriscar a viajar. Ficarão.

Joseph olhou com tristeza para Gavin.

—Deixa que Matrona o leve para a cozinha, meu senhor: derreteram-lhe os miolos.

Maeniel reparou em que as correntes mal ocultavam o corpo de Matrona.

—Por favor, - ele disse fazendo um gesto elegante, - atenda Gavin antes de irmos.

—Não sei por que me incomodo, - disse Matrona, - seus miolos sempre foram papa.

A mulher fez estalar os dedos ante o Gavin antes de ir, o capitão a seguiu como se o puxassem por uma argola em seu nariz.

—O que fazemos com o emissário do Papa?

—Não o desperte. - Disse Maeniel enquanto se afastava. – Coloque-o em cima de Odobaldo. Ele o levará são e salvo montanha abaixo.

O emissário do Papa despertou quando já tinham percorrido mais da metade do caminho de descida. Gavin tinha adormecido sobre seu cavalo e Matrona lhe tinha metido um punhado de neve pelas costas. O grito de Gavin despertou o emissário, que gritou por sua vez, ao se dar conta de onde estava.

—Tranqüilo. - Lhe disse Maeniel, que cavalgava atrás dele. - Não assuste Odobaldo, sua tarefa requer concentração. É um atalho escarpado.

—Oh, sim. - Murmurou o mensageiro. - O cavalo.

De fato, não tinha intenção de distrair o Odobaldo. O atalho não só era escarpado e estava meio coberto de gelo, mas também o lado se voltava para o vale. Uns cinco mil abetos se aferravam a um pendente muito pronunciado, para reter a neve. Se caísse, os espinhosos ramos das árvores os fariam pedaços durante a descida; depois, uma rocha do vale os reduziria a algo com a consistência da polpa de uma fruta; além disso, parecia ter um rio no fundo do vale que levaria seus restos.

—Aonde vamos? — Ele perguntou trêmulo.

—A Roma. - Disse Maeniel despreocupadamente.

—Com todo o serviço?

—Normalmente me acompanham quando viajo.

O emissário do Papa fez gesto de pegar as rédeas.

—Tampouco importa que incomode o Odobaldo com ordens. - Disse Maeniel. – Ele já conhece o caminho.

 

                                                 CAPÍTULO 10

A loba se liberou na noite, com a fera ao controle. Queria fugir de Lucila e sua terrível dor. Fugir da sufocante cidade, do mau cheiro de seus esgotos, de seus cansativos muros. Afastar-se dos terrores de um mundo dominado por homens como Gundabald e Adriano, um mundo capaz de obrigar uma mulher a matar o próprio filho.

Correu, em uma veloz forma cinza atravessando os arredores de Roma até a alta relva da Campânia. Graças a Deus, pensou. Graças a Deus pela loba. A loba sempre fizera se sentir livre, mesmo quando estava encerrada. A loba sempre lhe tinha permitido fugir, sempre lhe tinha dado liberdade. A loba tinha afogado seu pesar por sua mãe, e tinha aliviado a sensação de isolamento que tinha sentido ao se dar conta de que não só vivia em um mundo, mas também em dois.

Regeane pensava. Regeane calculava. Regeane temia. Regeane lutava. Mas a loba de prata se limitava a ser.

Ela se deteve na vegetação movida pela brisa noturna. O campo estava fracamente iluminado pela lenta e interminável dança das estrelas.

Aos olhos da loba, era um trêmulo e escuro mar de erva, uma brilhante e ondulado tapete de vida.

Os ritmos da noite eram intemporais, formados pelas necessidades da terra ao passar sob as estrelas. O vento se elevava ao liberar a terra de seu calor no fresco ar da noite e as fibras da relva acariciavam umas a outras, sussurrando no silêncio.

Regeane ouviu os gritos de caça dos morcegos que voavam e giravam sobre ela, procurando suas presas.

Os homens podiam ter abandonado a Campânia, mas ao redor de Regeane tudo fervia de vida. O rumor da vegetação ao se mover, os chiados dos insetos ao desafiar e fazer o amor, lutando, emparelhando-se, criando e morrendo em seu acelerado mundo em miniatura. As rãs coaxavam, cantando suas antigas canções nos poças ocultos nas dobras do formoso manto da terra.

Aos ouvidos da loba, inclusive o aveludado bater das asas de um mocho soava com força. Ouvia claramente o nervoso chiado e a correria dos ratos que procuravam comida entre a relva.

Cheirou um cervo nas proximidades, o almíscar era tão claro como uma palavra pronunciada em voz alta.

O aroma do sangue secando e desaparecendo no lugar onde um arminho havia surpreendido um coelho.

Regeane entendeu que a loba sabia... Sabia coisas que ela não.

Tinha saído sem planos da vila de Lucila. Havia pegado o pendente com a vaga idéia de levar a Antonius, para que comprasse com ele comida e teto até que ela encontrasse uma forma de resgatá-lo. Mas que resgate podia haver para Antonius ou para ela?

Só tinha à loba e sua consciência de que o mundo era algo mais que os planos de homens como Gundabald ou loucuras de guerra e política. Mas a mulher tinha uma idéia muito difusa do que sabia a loba.

A loba permaneceu absolutamente quieta, imóvel como só podia estar uma criatura selvagem durante a caça. Explorou a Campânia com olhos, olfato e ouvido. Seu corpo tremia como uma harpa golpeada pela intensidade de seu próprio desejo, sua necessidade. Ouvindo. Vendo mas, sobretudo, sentindo com todo o corpo, até que ouviu música ao longe, os distantes acordes levados pelo vento da noite. A loba se lançou à carreira.

Regeane correu. O vento na face, as estrelas e um profundo fogo sobre ela. O ato de correr a encheu de alegria. Desfrutou dos movimentos dos poderosos músculos da loba, do avanço e retrocesso da medula de ferro em seus ossos.

Fugiu do mundo dos homens, para o vasto e escuro universo que observava indiferente as loucuras da humanidade e estava segura de seu próprio passo.

A mente da loba se uniu a seus ancestrais em outras carreiras sob outras estrelas. Às vezes impulsionadas pelo terror e a fome através da desolação, com o estômago presa por contrações. Às vezes alegres, quando a presa era descoberta e derrubada e ela se aproximavam com o resto da alcatéia, saboreando o cálido sangue em sua boca.

E as carreiras nas noites de amor. Por alguns momentos, pareceu-lhe que não corria sozinha. Uma forma escura corria junto a ela. Amor, breve e dolorosamente alegre amor, distinto do amor humano, com suas culpas, medos e remorsos. Amor, uma lança de fogo em suas virilhas; seu deleite atravessando todo seu ser. Amor, o aroma do leite quente da toca, a vida que fluía de suas mamas a pequenas bocas. Os suaves e jovens corpos apertando-se contra ela em busca de calor e segurança.

Amor, um círculo onde se recebe o que se dá. Um amor que se rende e adora, que não se toma nem se força.

Desfrutou daquelas lembranças, lembranças sem palavras, imagens, fragmentos de sonho arrancados do tempo. Imagens do que o mundo havia sido, do que deveria ser e do que não seria nunca mais. Não para ela. A mulher ia ser casada com um homem que tomaria sua virgindade pela força e possivelmente a submeteria a mais violências, a menos que o matasse primeiro.

Estava tão presa pelas lembranças da loba que quase se surpreendeu ao ver que tinha chegado a seu destino. Viu a procissão ante ela.

A loba se deteve tão repentinamente que se sentou no chão. E quando a mulher compreendeu o que estava vendo, emitiu um suave gemido de desgosto.

Parada, a loba a ignorou. E a mulher teve que assumir a indiferença da loba e mostrar de acordo. A música era a mais bela que jamais havia ouvido, até interpretada como estava por mãos e lábios que eram pó, com instrumentos levados por homens e mulheres que não eram a não serem ossos no seio da terra.

À cabeça da procissão, os sacerdotes, homens e mulheres, dançavam gozosamente ao som da lira, da cítara e da flauta. O grave e incessante ritmo do tambor enlaçava as melodias.

Os sacrifícios, bois brancos com os chifres dourados e grinaldas de flores e folhas neles, avançavam mansamente, dirigindo-se com calma para seu destino. Atrás, em fila de quatro, caminhavam os adoradores do deus, coroados de louro e com longas grinaldas de ramos verdes, margaridas, lírios e rosas. Havia porta tochas ao longo dos flancos da procissão.

A roupa que usavam todos pertencia ao passado remoto e lembrou Regeane dos poucos monumentos em ruínas que restavam em Roma, representando às famílias governantes reunidas para honrar aos seus deuses. Os homens usavam togas drapeadas com uma dobra lhes cobrindo a cabeça. Suas esposas vestiam a longa estola do matrimônio honorável e sujeitavam o cabelo longo no alto, com um diadema. Ambos os sexos levavam consigo crianças pequenas. Os jovens e crianças maiores caminhavam entre eles, tentando emular a dignidade de seus maiores.

Enquanto Regeane estudava o grupo, recordou-se de um dia chuvoso em que se deteve junto a um baixo-relevo de algum imperador desconhecido que guiava sua família para a capital em solene procissão. Um velho granjeiro, que havia vendido seus produtos, parou junto a ela, deixou seu carro de mão no chão e olhou o friso com tristeza, perguntando Estivemos assim alguma vez... Ante nossos deuses?

O primeiro impulso da loba foi fugir. Estavam mortos. Os mortos tinham direito à paz e o gozo da lembrança amável. Não precisavam rememorar a agonia e sofrimento dos vivos.

A diferença de tantas das sombras que tinha visto a loba, aqueles mortos tinham talhado seus laços com a terra, com a dor dos que respiravam e sangravam, sofriam e amavam. Tinham superado as vãs penalidades ao terrível preço do fim de suas vidas.

Que direito tinha ela, uma criatura da luz da lua e da escuridão, a lhes levar sua necessidade?

Mas tinha necessidade.

Tinha fome... De justiça.

E nunca haveria justiça entre os mortais para ela ou para Antonius.

Talvez pudesse encontrá-la entre os mortos. Pelo menos, quando os esforços de Antonius terminassem, poderiam lhe dar as boas-vindas e deixar que se unisse a eles.

A reluzente procissão passou a seu lado. O ar da noite levava o mordente arrepio do inverno. As estrelas brilhavam em densa e magnífica solidão. Mas a fria brisa que agitava a pelagem da loba não movia nem uma dobra de suas roupas. As flores de uma primavera esquecida luziam nas coroas dos bailarinos. A procissão partia no quente e quieto ar de uma tarde do verão. A loba a seguia através da fria noite de inverno.

O caminho sagrado que percorriam levava a uma alta rocha que se elevava sobre o campo. Um templo, branco como o osso coroava a rocha. Suas pálidas colunas e frontais se recortavam contra o céu de meia-noite.

Até onde se encontrava, a loba podia ver que era uma ruína. Sem coberto, as colunas rotas e quedas, o frontal despojado das estátuas de marfim com olhos e cristal que antigamente honraram uma nação e seus deuses.

Mas seguia sendo majestoso, envolto na luz das estrelas, um brinquedo do vento e da chuva, contemplando com paciente tranqüilidade a planície parda e o eterno esplendor do mar azul escuro sob ele.

A loba se deteve os pés da rocha e olhou para cima.

O escarpado passo até o topo, antigamente pavimentado com mármore e com estátuas de reis, imperadores e deuses dos lados, não era agora mais que um caminho coberto de relva.

O mármore tinha sido arrancado muito tempo atrás, para os fornos de barro de Roma e Nápoles. As poucas estátuas que restavam em pé estavam mutiladas, sem cabeças e nem mãos. Muitas tinham caído e eram só pedaços envoltos em hera, jazendo nos pendentes que usavam a rocha.

A mulher dentro da loba se perguntou o que veriam os mortos olhos dos fantasmas? Viam o templo em seu antigo esplendor ou o mesmo que ela, uma ruína abandonada? Tinha importância para eles?

A loba farejou o vento, cheirando a doce e limpa brisa do oceano e compreendeu que não importava. Viviam além do tempo, sem preocupações mundanas que minguassem seu ardor ou manchassem seu amor. Para eles, o hoje era como o ontem ou o amanhã. A vida, um momento eterno.

Entrarei, pensou, como suplicante. E pedirei ajuda para Antonius... E para mim.

Perto da rocha cresciam matas de louro; um ramo foi parar na boca da loba. Um suplicante deve levar uma mão. A loba começou a subir o pronunciado pendente para o templo do topo, para as estrelas.

O caminho sagrado dava voltas à rocha, subindo para o céu. O ar estava espaçoso e a brisa soprava constantemente.

Quando a loba chegou ao alto, encontrou o templo escuro e vazio. O vento gemia brandamente entre as colunas rotas. Ante as portas do ato sagrado, o fogo eterno dos deuses era uma pilha cônica de cinza pálida e morta. A eterna brisa marinha atraiu à cinza até um véu de pó, dançando ante ela no fresco ar noturno.

A loba se deteve, o ramo de louro firmemente sujeito entre os dentes. Um brilho de risada irônica dançou em sua mente, tão tênue que a loba não soube se era seu ou de alguém distinto.

Temia incomodar aos mortos. Agora seus temores não são nada. Olhe com que facilidade escapa de ti quando o deseja. De algum jeito, Regeane conseguiu formar as palavras em sua mente. Solo tinha os limitados recursos da loba para isso, e embora a loba pensasse bem, o fazia com imagens e padrões, e não com palavras como os humanos. Mas em alguma parte das curvas da mente da loba, encontrou os símbolos que necessitava, brilharam em palavras quando lançou seu grito silencioso. Venho como suplicante. Escutem-me. Respondam-me. Ajudem-me.

O vento soprou com mais força durante um momento. Formou redemoinhos em torno do círculo do fogo, elevando uma nuvem de antigas cinzas no ar e gemeu entre as rotas colunas do templo.

Vozes. Vozes que cantavam no vento. Vozes fora do tempo. Vozes cujos lábios eram pó.

Algumas condenavam. Algumas zombavam. Algumas inclusive riam como se chegassem de uma imensa distância por um longo e retorcido corredor da eternidade, onde tivessem esquecido que uma vez foram humanos.

Vozes. Vozes sem palavras, sussurrantes que se desvaneciam até desaparecer a seu redor.

Regeane se recompôs no cérebro da loba e voltou a clamar em silêncio. Ninguém ouça a suplicante?

A resposta foi à sombra de um som. Como se um fôlego vagabundo ou o ar em contínuo movimento tivesse sido preso no pedestal quebrado onde antigamente estivera a estátua do deus.

Guarde silêncio, ordenou a voz, pois onde eu mouro, o suplicante é sempre ouvido.

O doce aroma pareceu fazer mais forte nas fossas nasais da loba.

Ela se aproximou de Regeane do extremo oposto do templo, vestida de branco, levando a longa túnica brandamente drapeada e o manto de uma mulher, que lhe cobria a cabeça e os braços. Só suas mãos eram visíveis. Tinha a forma e aspecto de uma mulher, mas seu crânio era algo horrível, a luz das estrelas resplandecia sobre os ossos nus de uma caveira.

A loba, com a indiferença da fera, lançou um suave gemido gutural.

A voz da aparição ressoou na mente da loba. Quem é você? Por que vem ao Cumas para perturbar os nobres mortos sagrados?

As vozes no vento se elevaram em um crescente de gemidos, soluços, uivos e maldições. O golpe de ar agitou o pelo da loba e fez soar as folhas do ramo que ela levava na boca.

O espectro se aproximou.

Sou loba, pensou Regeane enquanto sua consciência lutava para separar a da loba. O mundo pareceu ceder quando a mente da mulher começou a dar voltas, tentando forçar aos músculos da loba a fugir choramingando de terror da coisa que enfrentava.

Uma fúria vermelha explodiu através da dupla consciência quando a loba dirigiu sua raiva contra a criatura que tentava controlá-la, afastá-la de seu objetivo.

Regeane foi empurrada a um cego negrume. Já não podia ver nem ouvir. O gosto e o tato lhe foram negados ao ser lançada a um vazio sem luz, gritando em silêncio. Sua união foi tão súbita e simultânea como o resplendor do raio e o som do trovão de uma tormenta sobre a cabeça.

Em um momento estava na escuridão e no seguinte era uma mulher loba, nua sobre o chão quebrado ante o templo em ruínas e seu fogo morto, com o ramo de louro na mão.

Era mulher e de uma vez loba, e nunca tinha conhecido tal poder. Podia sentir a trêmula tensão dentro dela. Estava tensa como um arame entre os dois pólos opostos de sua natureza, tensa como uma corda de harpa levada a seu limite absoluto antes de emitir sua mais doce nota... Ou partir.

Enfrentou o horror antinatural ante ela.

A forma se deteve.

O vento noturno fluiu sobre a carne nua de Regeane como a água fria. Vento do mar, um banho de fulgor. Regeane alongou o braço com as folhas de louro para a figura, seu perfume ainda espesso em suas fossas nasais.

—Venho a ti, - ela disse, - como suplicante e me enfrenta com o horror.

—Você me convocou, - respondeu a voz. - O que me importa o que vê? — A língua bífida flutuou sobre os dentes sem lábios. Atrás dos olhos vazios da máscara de osso, a longa forma de uma serpente se moveu além do olhar negro no oco do crânio. - Quem é você, que vem vestida só com sua carne, nua como a deusa e levando seu pendente?

—Nasci da escuridão. Os olhos de meu pai se fecharam antes que se abrissem meus. Não sou deste mundo nem do outro e tenho direito a ser o que sou.

A mulher da cabeça de morte desapareceu em um retorcido e enroscado negrume... E a serpente se elevou ante Regeane, a escura cabeça triangular uma sombra entre ela e as estrelas que brilhavam através do telhado quebrado.

Mas a mulher que não era Regeane e nem a loba se manteve firme. Quando a olhou com os olhos abertos, sem piscar, a serpente se desvaneceu na sombra até que restaram as estrelas. Regeane se viu em frente a uma velha torcida e enrugada.

A luz era fogo em seus olhos. O templo estava aberto ante ela, impressionantemente belo, como devia estar no dia de sua consagração, iluminado pelas tochas e a luz de mil abajures enfeitados com grinaldas verdes. Os festivos adoradores estavam formados, vestidos de branco, adornados com louro florido e levando um arco íris de flores primaveris nos braços.

Estavam como se tivessem sido interrompidos em sua celebração por aquela intrusa de mais à frente do mundo, fitando Regeane com o olhar pétreo e distante dos mortos.

Elevava sobre eles a estátua do deus, como Regeane em sua nudez original e iluminada pela beleza da juventude. Sorria à multidão que antiga e para sempre o adorava.

Regeane caminhou ao redor do fogo e para a porta.

—A suplicante será ouvida. - Sussurrou a velha enrugada. - Mas não avance mais, pois além desta soleira está a terra dos mortos.

Oh, havia beleza ali, pensou Regeane ao encontrar com os olhos distantes da multidão.

- Pois ali espreita o caos, esperando. E a beleza pode ser uma máscara para o horror, e o horror uma entrada para o inimaginável.

Regeane se voltou novamente para a anciã de pé ante a porta. Mas era velha? Mesmo para a criatura de poder em que se convertera Regeane, a aparição parecia mudar continuamente.

Juventude e velhice flutuavam como sombras por seus traços. A suave pele se danificava pelas rugas. Um atraente sorriso se convertia em uma careta maligna e trincada. O lustroso cabelo passava a ser uma série de murchos fios sobre uma cabeça calva e avultada.

E então tudo começava outra vez e outra e outra e outra, eternamente.

—Parece que não posso vê-la. - Disse Regeane.

—Não, ninguém pôde alguma vez. Diga-me, o que desejas? Pois não tem muito tempo. Disse que vem como suplicante, eu te ouvirei. Fala.

—Procuro a vida de um homem. Quero remodelar sua carne para lhe curar.

Todos os reunidos no templo romperam a rir. O pranto dos mortos é terrível, pensou Regeane, que tinha fugido dele freqüentemente. Rasga o coração. Mas sua risada é pior, horrorosa além do acreditável, porque não resta nada de humanidade nela. Só uma fria e ressonante burla.

Regeane esteve a ponto de fugir, mas o orgulho e o poder que sentia a impediram.

A figura que estava na porta não sorriu. Sua face, salvo pelas lentas mudanças de juventude e velhice, mantinha-se igual e ao fitá-la, Regeane compreendeu que cada face que levava a encurvada bruxa era distinta e de uma vez a mesma em sua destruição pelo tempo. Fundiam-se de uma a seguinte em uma seqüência ininterrupta como possivelmente tivessem feito desde o início do mundo e como faria até que terminasse. A criatura não riu, mas assentiu com a cabeça.

—O que desejas é muito singelo. - Disse a voz. - O fogo atrás de ti arde ainda, embora sua chama não seja terrestre. Traga-o aqui, coloque-o no poço e então cruze esta soleira. Talvez emirja, talvez não, mas o que desejas se obterá.

Cruzamento a soleira, pensou Regeane. Viaje à terra dos mortos. Com um tremor, a triunfante força de vontade que havia a sustenido, se veio abaixo e ela começou a correr.

Não recordou depois quando deixou de correr sobre dois pés para fazê-lo sobre quatro, mas o fez em algum momento de sua precipitada fuga e a loba se encontrou afastando-se da rocha, tomando profundas baforadas do ar da Campânia enquanto corria.

A noite estava avançando. A loba podia saber pelo aroma do vento e das lentas mudanças nas estrelas. O rocio estava começando a pousar na erva sobre a qual ela voava como um raio de prata.

Correu para Antonius.

Morte. Soubera que a morte não era o final de tudo, mas não tinha compreendido a verdadeira importância de seu conhecimento.

O terror da possibilidade sem limite.

Ali era onde ela pecava contra o pensamento humano como faziam os mortos.

Uma das coisas mais importantes que os homens pedem à vida, ao mundo é a previsibilidade. O sol se eleva. O sol entra. Os servos se inclinam ante seus senhores, os senhores ante os reis e imperadores.

Os romanos tinham sido opressores, condenando povoados inteiros a uma abjeta escravidão. Mas seu ordenado governo havia levado a menos previsibilidade à vida. As pessoas sob seus pés e seu jugo sabiam o que esperar. Mas naquele choque de nações onde os lombardos lutavam contra o Papa, onde francos e saxões se misturavam com os antigos galos e todos batalhavam pela supremacia e o poder, quem sabia o que esperar?

Ela era ela mesma para eles, para a humanidade, uma criatura de substância inquieta... Uma com a noite insubstancial e o universo, uma impossibilidade. Desconhecida e, por conseguinte ingovernável e por isso os homens queriam destruí-la... E o fariam se a pegassem.

Podiam entender uma mulher e também uma loba, mas as duas como uma? Nunca.

Ela deixou de correr perto da fábrica de cristal. Podia cheirar a Antonius, cheirar seu medo e os terríveis avanços da enfermidade que pouco a pouco destruía sua carne.

A loba se deteve, sentindo o rocio que umedecia sua pele. Seus flancos se agitavam pelo esforço da longa carreira através da noite e estava sedenta.

Bebeu do riacho que antigamente utilizassem os vidreiros, lambendo a água cristalina com sua língua. A loba passou pelo rito, de sensação desconhecida para o homem, de polir seu cabelo e sacudir, lhe fazendo elevar e cair de forma cômoda.

Morte. Sim, eles a matariam se conseguiam apanhá-la. Ela estremeceu pensando nas torturas para os declarados culpados de magia negra: morrer afogada ou na pira.

Mas por mais cruéis que fossem as dores, a morte acabaria eles e a morte era parte do universo.

Mais à frente... Quem sabe?

Possivelmente o maior terror que enfrentavam os mortos era o de não poder morrer, o de vagar pelo oceano desconhecido além da vida... Errar para sempre pelo mar da eternidade.

 

                                                       CAPÍTULO 11

Encontrou ao Antonius DEITADO e envolto em seu grosso manto. Por alguns momentos, se ACONCHEGOU contra ele, tremendo.

—Lupa. – Ele suspirou ao sentir o corpo apertado a seu lado. –Então voltaste. Não sei se me alegro ou me sento aflito. Estava pensando que este pequeno forno poderia ser minha tumba. A princípio o pensamento me aterrou, mas depois de um tempo se tornou mais grato; poderia ficar aqui, minha carne fundindo-se com a terra, meus ossos dissolvendo, olhando os jogos das andorinhas sobre mim. – Ele meditou. - Há andorinhas aqui, sabe? Constroem seus ninhos no beiral da chaminé e deve criar geração atrás geração.

Sim, pensaram ela e a loba, e se os homens de Basílio não fossem cegos humanos, tivessem notado sua presença e pensado que havia ruínas perto. E o tivessem apanhado.

—E as estrelas... Encerrado em uma cidade como eu estava, se esquece as estrelas, quão formosas são quando a Via Láctea constrói uma ponte através do céu noturno. Como pode um artista esperar captar sua glória? Possivelmente, se fico aqui apodrecendo durante alguns séculos, possa aprender algo delas. — Antonius riu entredentes, como se lhe divertissem seus próprios pensamentos, a idéia de sua iminente morte e dissolução.

À loba não se divertia; para ela, era simples derrotismo. Ficou em pé de um salto, grunhindo.

Os formosos olhos de Antonius a olharam fixamente da sombra de seu capuz.

—O que foi isso, Lupa? Uma ordem ou uma advertência?

Ambos. Pensou Regeane, trotando para seus pés. Lançou uma dentada ao ar muito perto deles.

Antonius se incorporou, estudando a loba sob a tênue luz das estrelas.

—Lupa, - disse ele brandamente. - Não vê que não há outra saída para mim? Estou tão bem aqui como estaria em qualquer outra parte. Basílio não pode me encontrar, nem me usar contra meu irmão. Há água perto. Posso me arrastar fora e beber quando quero. Raramente tenho fome já. Em alguns dias deixarei de sentir as poucas queixas de minha barriga. E, depois de alguns dias mais, um pouco de dor não fará nenhuma diferença.

Mais loba, que mulher agora, Regeane estava enfurecida. Estava disposta a se aventurar atrás das portas da eternidade por ele, que ali estava falando tão tranqüilo em morrer como se propusesse uma visita ao botequim mais próximo.

Abaixou, afundando as ancas para trás, e se lançou contra ele com um rugido de fúria que ressoou nas paredes do forno como um trovão. Deixou-se cair a terra justo antes de se chocar contra seu peito.

Antonius ficou em pé trabalhosamente. A loba retrocedeu, apaziguada e ele a estudou por um momento.

—Lupa? — Perguntou ansiosamente. A loba trotou para o pequeno túnel que era a entrada ao forno. - Já vejo que não me permitem morrer em paz.

Estranhamente, ele parecia aceitar aquela perspectiva com a mesma equanimidade e ânimo com que tinha contemplado descansar para sempre naquele pequeno santuário. Como sempre, usava o escuro manto por cima de seus mutilados lábios e nariz, mas estava sorrindo. A loba sentiu o sorriso, um fulgor pacífico em lugar de vê-lo.

—Muito bem. Submeto-me a ti. Leve-me onde queira.

Regeane encontrou o pastor umas horas mais tarde. Tinha temido problemas com seus cães, mas ao ver os desalinhados mestiços compreendeu que seus medos tinham sido completamente tolos.

Os cães se encontraram com lobos antes, mas nunca como ela. A loba de prata, a diferença dos furtivos lobos cinza da Campânia, era uma criatura de poder deslumbrante. Era uma densa massa de músculos e ossos vestido com a trêmula luz da lua, duas vezes maior que qualquer lobo que tivessem visto antes.

Os cães se detiveram, os grunhidos morrendo em suas gargantas, as orelhas e os rabos firmemente colocados entre as patas. Fugiram para se esconder perto da branca massa de ovelhas.

As ovelhas estavam firmemente agrupadas contra o perigo e a fria noite. E a loba de prata compreendeu que, se tentasse atacá-las, os cães lutariam movidos pelo desespero ante a ameaça. Do contrário não fariam nada, sequer alertar o jovem pastor que a loba via mais além do rebanho e que estava dormindo ante uma tosca choça perto de um pequeno fogo no alto da colina.

Olhou aos cães desdenhosamente. Um deles despiu seus dentes em um grunhido silencioso, cheio de terror.

A loba se surpreendeu ante a súbita consciência de seu próprio poder. Podia ouvir o seguro, firme martelar de seu coração, sentir os músculos de seu peito e as ancas tensas, prontas para pôr em marcha os nervos de aço que moviam suas patas.

Não era uma loba, mas a loba. Uma criatura de força sem igual, em sua plenitude. Sabia e os cães também, que podia acabar com eles e rasgar depois as gargantas de tantas ovelhas como quisesse. O pastor podia ser facilmente sua primeira presa, uma vítima indefesa de sua nova força. E por que não? Sua choça, a roupa que usava, a comida que tivesse, serviria para alimentar e proteger Antonius. Se a comida não fosse o bastante, ela poderia matar algumas ovelhas.

A loba de prata andou com passo longo para a forma adormecida na cúpula. O pastor não era mais que um moço, um menino a beira da adolescência. Em repouso, sua face mostrava a plácida inocência de todos os adormecidos. A atraente e aterradora vulnerabilidade da humanidade em repouso. Uma impotência intemporal ante a mãe noite e as estrelas eternas.

A loba, implacável aristocrata dos assassinos, não estava disposta a questionar a conveniência. O moço estaria morto antes de despertar de tudo. Regeane deteve em seu passo e o animal agitou a cabeça, irritado. A mulher sabia o que era o moço, provavelmente o filho mais jovem de um dos pequenos granjeiros cujas diminutas propriedades confinavam com os vastos terrenos dos ricos. Viviam em uma pobreza tão absoluta que adoecia Regeane. Ela se perguntava como era possível levar uma vida tão desprovida de todo prazer, felicidade, ou inclusive esperança. Muitos inclusive tinham deixado de tentar criar seus filhos, vendendo os que não morriam na infância como escravos, assim que estavam grandes para trabalhar. Jovem como era o pastor, provavelmente sequer seu amo lhe desse muito valor. Se sobrevivesse ao incessante trabalho e os riscos da Campânia e podia aumentar suas magras rações de escravo com outra comida até a maturidade, então receberia melhor trato e alimento. Agora mesmo, sua sobrevivência era tão incerta como a vida d menor isca de peixe de cães ou gatinhos. Podia ser capaz de esforçar bastante para ganhar alimento da grande mãe do mundo, mas também podia não ser. Em tal caso baixaria silenciosa e discretamente ao pó com os refugos do mundo. Mas acontecesse o que acontecesse, Regeane não permitiria que a loba fosse o instrumento de sua sentença.

A loba de prata se deteve a beira do fogo e baixou a cabeça. A lenha era escassa na Campânia e o pequeno fogo do pastor demonstrava sua pobreza: um anel de ramos pequenos e moitas em cachos em torno da base de um grande lenho verde de oliva, alimentando uma chama solitária.

As ovelhas baliram e murmuraram brandamente, perturbadas pelo aroma da loba. Com atraso, um dos cães lançou um agudo latido.

O pastor despertou e viu a loba através de um véu de chamas. Pegou seu cajado, tentando pegar o último ramo aceso da fogueira. Meio consumido, ele se fez em pedaços em sua mão, lhe queimando os dedos. Tentou ficar em pé, escorregou e ficou de joelhos.

Os extremos quebrados do ramo se prenderam e o fogo se tornou mais brilhante. Através das chamas, o pastor viu que no lugar onde estivera um lobo um momento antes... Havia uma mulher.

Uma formosa mulher, vestida só com uma magnífica nudez e um colar de prata e pérolas.

O jovem pastor se inclinou, levando a fonte a terra e murmurou algumas palavras:

—Oh, rainha da noite, por que vem a mim?

Embora mulher em corpo, a mente de Regeane ainda estava dominada pela loba, cheia da intrepidez do animal. Seu plano era tosco, pela metade: havia esperado subornar o jovem com o colar e se isso falhasse se converteria em loba e o aterrorizaria para que se rendesse. Ver-se adorada era desconcertante.

Mas, ela decidiu que o culto não era tão ruim. Temera ter que lhe fazer algo para que se submetesse e sua tarefa parecia então bem mais fácil.

Aproximou-se dele, mantendo o fogo entre os dois. O pastor a olhou por entre os dedos.

A mulher loba sorriu. Algo que a loba não teria pensado e que a mulher não teria atrevido a fazer.

—Não teme ficar cego por olhar a nudez de uma deusa?

Para sua surpresa, o moço levantou sua cabeça e lhe lançou um olhar de adoração.

—Dizem que quem vai à senhora da noite será desejado por todas as mulheres e conservará a beleza de seu rosto toda sua vida. E que quem a toca...

Algo deve ter mudado na expressão de Regeane, porque a coragem do moço o abandonou, e ele voltou a se prostrar.

—Tenha piedade! Não me mate!

Regeane tinha frio. O amargo ar noturno perseguiu sua carne nua quando se tornou mais mulher. Combateu o impulso de abandonar aquela situação perigosa, converter-se em loba novamente e correr. Rilhou os dentes, tentando não estremecer e pensou Agora você é a deusa. Use seu poder!

— Não tema. – Ela disse, desabotoando o colar de Lucila. - Não procuro sua vida. Quero que proteja alguém a quem amo. Dê-lhe proteção.

O moço levantou sua face aturdida do chão e pegou o colar de sua mão. Não teve coragem para contemplar sua face novamente, mas olhou a pequena e suave mão da mulher que o estendia. Uma mão que podia ser a de qualquer moça.

Regeane se afastou pela relva.

—Espere, - disse roucamente o moço. - Nunca voltará a me acontecer nada, como esta noite.

Regeane vacilou. Estava a beira da mudança, quase podia sentir a cascata de raios de lua em sua carne.

—Por quê? — Sussurrou brandamente. O fogo estava muito baixo. Mal podia ver a face do moço.

—Oh, senhora da noite! Somente me toque uma vez para que nunca possa fracassar no amor!

—Feche os olhos e levanta a face para mim.

Os olhos do moço se fecharam; ele estava tremendo. A nuvem de cabelo tocado pela lua de Regeane caiu ao redor de sua face e seus lábios roçaram o dele em um beijo suave e doce.

Regeane retrocedeu e se deu conta de que Antonius estava de pé ao seu lado. Sua face estava coberta pelo tosco manto negro, mas seus olhos a olhavam fixamente, muito abertos, surpresos e assustados. Então a escuridão da lua fluiu através dela e ela se tornou novamente a loba.

O jovem pastor se inclinou, fechando fortemente os olhos, mas Antonius permaneceu de pé, olhando-a.

—Por que, Lupa? — Perguntou brandamente. - Por quê?

Mas Regeane já estava longe, uma sombra de prata que corria pela Campânia, para casa.

Decidida a não ser presa como havia sido na noite anterior, ela manteve um passo forçado até que viu as luzes da cidade e cheirou novamente a usual mistura de fumaça e lixo que associava as moradas humanas. Passou a meio galope e procurou a vila de Lucila.

Ao saltar a parede da horta, ela viu uma tênue franja de branco no horizonte. Trotou para o átrio e já incapaz de esperar, baixou seu focinho no lago.

À luz crescente, viu seu reflexo na água. Os olhos profundos e amarelos na pele prateada e o espesso pelo que rodeava sua face. De repente, um tremor de escuridão fluiu sobre ela, que se encontrou de joelhos ante o lago, olhando sua face humana, o cabelo escuro que caía sobre seus ombros e seus olhos estranhos e tristes.

Regeane permaneceu ajoelhada entre as margaridas outonais, dobrada pelo cansaço e a beleza do jardim silencioso à primeira luz.

O lago refletia as cores do amanhecer, azul transparente e depois rosa. As flores, carregadas do rocio noturno, estavam começando a soltar sua fragrância no fresco ar da manhã. Os aromas de hortelã e camomila das plantas sob seus joelhos a envolviam.

Regeane fechou os olhos e respirou fundo.

—Oh! Meu Deus! - Disse uma voz. – Oh, Deus querido, doce e misericordioso. Não me admira que tenha medo de se casar.

Lucila estava sentada em um dos bancos ao lado do lago.

—Você me viu. - Sussurrou Regeane. – Agora sabe.

—Vi... — Lucila levou a mão à face e afastou o olhar de Regeane. – Oh, Deus, vi... Não acredito no que vi.

Ela se voltou para encarar a mulher mais jovem.

Regeane ficou em pé devagar e andou pelo caminho de pedra para Lucila, perguntando: — Deixe-me seu manto? O ar é frio e alguns serventes poderiam sair. Estou nua.

—Está bem - Disse Lucila, olhando-a fixamente com olhos incrédulos. - Nua como uma ninfa. Por um momento, pensei que meus olhos estavam me enganando. Já sabe, por causa da idade, - ela balbuciou. - Pensei: "Um lobo. Como é que um lobo entrou aqui? Devo chamar meus serventes para afugentá-lo, e depois me ocorreu: Velha mulher, não é nenhum lobo, mas uma estátua do jardim, de joelhos entre as flores e então... - Lucila se afastou de Regeane, com a face rígida de terror. - E então... E então... Se moveu.

Regeane estava a alguns metros de Lucila. Estendeu a mão.

—O manto, por favor. Tenho frio.

Ausente, ainda olhando boquiaberta para Regeane, Lucila tirou o manto dos ombros e o colocou na mão de Regeane.

A jovem se envolveu no pesado tecido.

—Obrigado.

—Não me olhe assim. - Disse Lucila. - Não com esses olhos. Sei que pareço uma bruxa adoentada, mas tenho meu orgulho, E... Passei uma noite ruim.

—Vai denunciar-me?

—Te denunciar? Por quê?

—Por ser uma bruxa, uma feiticeira.

Lucila riu. O breve estalo de riso foi ligeiramente histérico.

—Claro que não. Nunca denuncio ninguém salvo os que conspiram contra Adriano. Todos sabem que vivi muito tempo fora da lei para simpatizar com esses juízes superiores, os soldados de punho de ferro que...

Regeane se afundou no banco. Lucila tomou-a nos braços.

—Oh, querida. Oh, minha pobre querida. — De repente ela olhou para Regeane com horror. - Esteve na Campânia toda a noite?

—Sim, com Antonius. Ele está a salvo. Deixei-lhe aos cuidados de um pastor.

Lucila enterrou a face nas mãos. Suspirou profundamente, deixando cair às mãos em seu colo e olhou para o lago. Soltou um risinho rápido que surpreendeu Regeane.

—Então pensa que é uma bruxa, é?

—Não sei o que sou. - Disse Regeane.

—Pode fazer... O que vi... À vontade?

—Não. Quero dizer, não sei. - Respondeu Regeane, olhando a seu redor. - Nunca havia pensado. Minha mãe e eu não falávamos disso.

—Não, porque ela não quisesse. Verdade? Isso explica o domínio que seu tio tinha sobre ela. Por que ela deixava que ele e esse filho dissoluto as vestissem com trapos enquanto saíam e gastavam seu dinheiro.

—Não. - Protestou Regeane.

—Sim. - Disse Lucila. - E explica também o domínio que têm sobre ti. — Lucila ficou calada um momento, olhando seu colo. Seus dedos brincaram ociosamente com as dobras do vestido. - Posso ver a idiota da tua mãe: uma Santa, afastada do mundo. Não é o que me disse? Ocultou-a como um segredo vergonhoso. E entre barras, ferrolhos e estreitas celas, tudo o que podia ver eram as velas de cera das Igrejas e santuários, engalanados com a carne gasta e putrefata de pretendidos Santos e homens sagrados.

Regeane bocejou e sussurrou:

—Basta. —Suspirou profundamente. - Deixe-a. Não me recorde isso. Às vezes ela conseguia pedaços de carne morta ou pequenas lascas de osso; amassava-as até convertê-las em pó e me fazia beber.

—Arg! - Disse Lucila—. Igual a esse físico idiota com seu esterco de hipopótamo.

Regeane bocejou novamente.

— Eu tentava tomar suas poções. – Ela disse enquanto começava a chorar, as lágrimas correndo por sua face. - Ela sofria tanto... Eu queria aliviar sua dor.

Lucila ficou em pé de um salto.

—Parece-me que era você quem sofria! – Ela grunhiu. - Tudo porque ela não podia nem queria aceitar a situação e tentava te proteger.

—Sim. - Admitiu Regeane insegura. - Mas quem poderia. Quem gostaria?

—Eu posso. - Cortou Lucila. - Eu quero. Devo fazê-lo. E ela poderia ter tido algo de...

—Basta Lucila, por favor! - Chorou Regeane. - Eu queria a minha mãe.

—Menina, menina... — Disse Lucila, dando voltas ante o banco. - Todos nós queremos nossas mães. Eu também queria à minha, mas ela era como a tua, sempre choramingando e se rebaixando ante Cristo e seus Santos e todo o tempo aterrorizada pelo punho e a bota de meu pai. Parindo um menino atrás do outro. Não posso recordar quantos. Morriam freqüentemente, a maioria antes de ter sequer uma oportunidade de saber o que era a vida. Possivelmente fossem afortunados. — Seu rosto era uma máscara de amargura. - A vida de um granjeiro nos Abruzzos é bastante cruel para submeter o espírito mais duro. Sei bem, pois quase o fez com o meu. Mas não importa, é de sua vida e seu espírito que falamos agora. Sua vida e seu futuro. Acima de tudo, como chegou esta... Esta mudança?

—Eu... Eu não...

Lucila deixou de passear ficou em frente a ela, dando golpes no chão com seu pé calçado por uma sandália.

—Vamos, vamos... Quando começou?

—Quando me converti em mulher ao sangrar pela primeira vez. Eu... — Regeane suspirou. - Eu mudei.

—Assim... —Os olhos de Lucila se estreitaram. – Então esta tua faculdade é como esse cabelo tão bonito, não algo que tenha aprendido, mas faz parte de sua natureza.

—Acredito que nasci com isso. A meu pai também acontecia.

Agradada, o risinho de Lucila surpreendeu Regeane novamente.

—Bela, conheci uma bruxa ou duas em meus tempos. Mais de duas, para ser sincera. Uma mulher de minha profissão se envolve em todo tipo de entendimentos sombrios. E deixa que te diga que seus poderes deixariam louca de inveja a qualquer uma delas: velhas pestilentas, metidas em drogas, presas na superstição e engano mais revoltantes. Mas você... Não, o que você tem é verdadeiro poder, moça.

—Poder? — Perguntou Regeane. - Ou uma maldição?

—Poder ser se assumir, uma maldição se o negar. - Disse Lucila. - Vamos, vamos. Eu a vi ler o passado em uma peça de tecido quando nos conhecemos. Pode mudar de forma e se converter em uma criatura da noite. Diga-me, que mais pode fazer?

Regeane se levantou, segurando o manto, sua mente em um torvelinho.

—Poder. - Murmurou.

De repente, ela cambaleou e a face de Lucila pareceu retroceder uma grande distancia. Revolveu-lhe o estômago e sua garganta se encheu de bílis. Sentiu que o suor cobria sua pele.

Quando deu por si estava sentada no banco, com a cabeça entre seus joelhos e rodeada pelo braço de Lucila. Levantou a cabeça e a descansou no ombro da mulher.

—Preciso comer. – Explicou. - Comer e dormir. A mudança... A escuridão da lua me esgota.

—A escuridão da lua, - repetiu Lucila. – Então é como o chama. A escuridão da lua?

—Sim, porque a atração é mais forte na lua cheia. Raramente posso resistir então e embora minha mãe o combatesse com jejum e oração, eu sempre mudava.

—Suponho que você jejuava, — disse Lucila secamente, - e ela se ocupava das orações.

—Sim, mas não funcionou.

Lucila assentiu e abraçou Regeane. Apertou a face da jovem contra seu ombro e contemplou o jardim. A alvorada vermelha e azul estava tornando-se de ouro ao chegar ao átrio a luz do novo sol. O ar estava cheio de gorjeios e pássaros como jóias voavam entre as flores.

—Fechamentos, surras, fome, poções repulsivas colocadas à força garganta abaixo... Tudo no nome da purificação. - Meditou Lucila. - Tudo inútil. Não é uma grande preparação para a vida. Mas venha, acredito que posso remediar sua fome e sede. De noite, Susana deixa uma bandeja para mim em meu estúdio.

Regeane se deteve e fez gesto de pegar o vestido e as sandálias que tinha descartado a noite anterior.

—Não. - Disse cortante Lucila. - Deixe esses trapos de rameira onde estão e me siga.

Lucila a levou através de outro jardim. Era um jardim severamente formal, com um passeio de mármore adornado e sebes ornamentais. Estava salpicado de numerosos pedestais. Nenhuma estátua, somente pedestais. Regeane se surpreendeu ao vê-los.

—Sim. - Disse Lucila. - Antes o jardim estava cheio de bonitas estátuas de bronze. O anterior residente, Bispo Majencio, disse que as achavam espantosamente pagãs e mandou fundi-las.

—Oh! - Lamentou Regeane. - Que pena.

—Não derrame nenhuma lágrima pelas estátuas, doçura. Adriano acha e eu também, que esse Majencio achou-as espantosamente valiosas e vendeu-as por um alto preço a um comerciante grego que navegou para Constantinopla com elas. Mostrou-se bastante loquaz ao falar de paganismo, mas quando Adriano lhe perguntou o que tinha feito com o bronze, ele desenvolveu uma terrível gagueira. Quando Adriano investigou seus outros assuntos, descobriu que a maioria das coisas que ele tocava ficavam em seus dedos, pelo menos o tempo necessário para vendê-las.

—O que fez?

—Majencio?

—Não, Adriano.

Lucila riu entredentes.

—Majencio ocupa agora uma sede em algum lugar anônimo entre os saxões. Estará as suas largas entre grandes e peludos guerreiros bebedores de cerveja e mulheres loiras que nunca se banham e arrumam o cabelo com manteiga. Só fala latim. Ao que parece, sua grei o considera um pastor muito satisfatório; não pode lhe reprovar nenhum de seus maus hábitos e continuam rendendo culto a árvores, poços e rios. Ele os incentiva a abandonar seus antigos costumes em um idioma do qual não entendem uma palavra, embora esteja convencido de que poderiam lhe entender se simplesmente... Tentassem.

Regeane começou a rir.

—O que te parece este? — Lucila fez um gesto para o jardim, e se detiveram junto a uma porta para que Regeane pudesse contemplá-lo.

—Eu não gosto muito. - Disse ela. – É bastante frio. Espero que Majencio não roube nada dos saxões. Cortariam-lhes as mãos.

—Não é má idéia. Os bronzes pertenciam à igreja e eram muito bonitos. Mas o lago continua aqui. - Disse Lucila, assinalando um enorme lago no jardim. – Há carpas nele.

Regeane olhou para baixo. Duas grandes carpas passavam pelo fundo, com suas aletas ondeando brandamente na água imóvel. — Mmmh... — Regeane fitou-as, com fome e perguntou esperançosamente. - O café da manhã?

—Vá! —Lucila parecia um pouco surpresa. – Cruas ou cozidas?

—No momento, — disse Regeane com impaciência, - de ambas as formas.

—Ah, sim! - Disse Lucila enquanto começava a abrir a porta. – Esqueci que passa a noite correndo sob quatro patas.

O quarto era pequeno e escuro e cheirava a cedro e móveis polidos. Saía em um jardinzinho privado rodeado por muros.

O que Regeane notou primeiro foi uma bandeja coberta por um guardanapo em uma mesa no centro. Carregou contra ela.

—Calma! — Disse Lucila. - Não vai fugir. Levante os braços.

O manto de Regeane caiu no chão. Lucila lhe pôs um vestido de linho grosso e se sentaram à mesa. Havia peras amadurecidas, queijo aromatizado com ervas, pão, e um cântaro de vinho branco, o único que ela ignorou.

Lucila se serviu um pouco de vinho, misturando-o com água.

—Como está Antonius?

Regeane deixou de comer um momento. Teve que tomar ar para falar.

—Está bem... Já sabe, mas...

—Como pode estar. - Completou Lucila.

—Sim, sequer ser raptado por Basílio alterou sua compostura.

Lucila agitou a cabeça e suspirou. Tomou seu vinho, aproximou-se do alpendre e contemplou o jardim.

—Não, claro que não. A execução tampouco o alteraria... Como você diz. Pode ajudá-lo?

Lucila fazia a pergunta em uma voz tão baixa que Regeane quase não a ouviu. Mas quando penetrou até sua consciência, deixou de comer novamente.

—Sim.

Lucila retrocedeu para ela.

—Como?

—Um...

—Regeane, você vai sofrer a mesma gagueira que Majencio, ao falar com Adriano?

—Minhas atividades requerem muitas explicações.

—Isso está claro. - Disse Lucila. Depois de se inclinar ligeiramente, voltou novamente para o jardim.

Regeane comeu, sentindo-se melhor a cada bocado. Por fim relaxou. Repleta, ela deu um olhar ocioso a seu redor.

O estúdio de Lucila tinha uma elegante dignidade da que precisava a sala de jantar. Prateleiras de livros percorriam as paredes e a estruturas continham pergaminhos e as prateleiras planas estavam cheias de livros ou em muitos casos, montes de papéis. Um cristal no telhado enviava a clara luz da manhã ao lugar onde estava Regeane. O pórtico dava para o jardim.

De uma fonte na parede brotava água, que ia cair sobre uma pilha. A cabeça da fonte era de folhas do acanto de bronze combinadas para fazer pensar na face de um deus aparecendo entre as folhas em um bosque. O bronze brilhava sob delicado ouro do novo sol; a água borbulhava ao cair.

O resto do jardim estava à fresca sombra da manhã. Camomila, valeriana e papoulas se apinhavam densamente ao longo das paredes do jardim. A camomila brotava com entusiasmo em almofadas de cor amarela e branca, presididos pelas cabeças vermelhas e brancas das papoulas e as puas de valeriana.

O telhado sobre o pórtico era formado de parreiras, nuas agora por causa do inverno. Restavam umas poucas folhas, verdes no centro e que se moviam ligeiramente sob a brisa invernal.

—O que é este lugar?

—Um lugar onde raramente convido alguém. Sequer meus amigos. - Disse Lucila, que caminhou até a uma prateleira, de onde tirou um pergaminho que deu a Regeane.

—É grego. – Disse decepcionada a jovem, ao desenrolá-lo. - Não entendo o grego.

Examinou o papiro de perto. Tinha sido colada a ele, uma peça de vitela para protegê-lo, pois era muito velho e já estava se desfazendo nas extremidades.

—Eu tampouco, mas tenho uma tradução latina aqui na prateleira.

Regeane enrolou o pergaminho cuidadosamente.

—É antigo e deve ser precioso.

Lucila assentiu e o colocou novamente em seu lugar.

—É uma carta escrita pela Rainha Cleópatra do Egito a Julho César, sobre a questão do calendário. Dá-lhe a opinião do sábio egípcio Sosthumeus e as suas próprias. Depois, faz algumas sugestões. - Vale à pena notar que ele as aceitou. Acredita-se que é a única carta que resta escrita pela própria mão da rainha. Foi salva do incêndio da biblioteca de Alexandria.

—Oh. - Sussurrou Regeane olhando o rosto de Lucila. – O que mais há aí?

—Nesta prateleira existem escritas de Arete, uma das primeiras a escrever um estudo da lei natural e sua relação com as mulheres. Diz-se que seus concidadãos de Cirene redigiram suas leis sobre matrimônio de acordo com suas sugestões. Também é chamada Licergia, ou "legisladora". Aqui estão às poetisas Myrtis, Erinna e Anyte, algumas das gregas. E aqui umas poucas romanas: Sulpicia...

Regeane rompeu a chorar.

—Todas são mulheres. - As lágrimas não eram um alívio. Abrasavam sua face e queimavam seus olhos e inchavam seu nariz. Quando Lucila tentou consolá-la, ela se afastou e foi lavar o rosto na fonte do jardim.

—Todas mulheres. - Repetiu ao voltar junto à Lucila.

—Sim. Não desprezo os autores masculinos e de fato, tenho muitos livros deles, mas não aqui. E pode entrar para ler ou estudar quando quiser: só te peço que não tire nenhum livro deste quarto. Não porque não confie em ti, mas porque não confio nos outros. Vi homens que, ao descobrir que um livro era obra de uma mulher, apressaram-se em jogá-lo às chamas. Eu protejo o que há aqui, embora não posso pensar que vá sobreviver a mim.

Regeane assentiu.

—Sinto-me honrada. – Ela disse. - Não dormiste.

—Não.

Os olhos de Lucila estavam debruados de vermelho. Seu longo cabelo loiro estava jogado de um lado e sob a luz e Regeane pôde ver quanto havia já de fios cinzentos nele.

—Tenho poderes. Tentarei salvar Antonius.

—Sim, eu sei. - Respondeu Lucila. - Há uma poetisa que não está aqui: ainda não encontrei uma coleção de seus poemas... Os sacerdotes têm feito bem seu trabalho. Mas não posso pensar que não será recordada, pois estendeu a mão e tocou a corda central da solidão e desejo em cada alma humana. Esta noite pensei muito nela:

A lua se pôs.

E as Plêiades:

É o meio da noite,

E o tempo passa. Passa...

E eu agonizo sozinha.

Os olhos de Regeane ardiam, mas não chegou nenhuma lágrima. Doía-lhe a cabeça.

—Ela o matou. Gundabald a ajudou. Ela ajudou Gundabald... Não sei se importa qual deles... Ele era meu pai. Eu recebi os poderes dele. Mas ela os chamava de maldição e estava segura de estar amaldiçoada... Através de mim.

—Sim. - Replicou Lucila. - Eram as tolices que dizia sob os efeitos da droga da Pappolus. Algo sobre pétalas de rosa molhados de sangue. Fomos tolos ao não entendê-la.

—Não posso te prometer nada específico, pois não sei aonde me levarão meus poderes.

—Sim. - Disse Lucila pegando seu braço. - Agora, venha para a cama. Seu adestramento a sério começa esta noite. Você vai jantar com o Papa.

 

Regeane dormiu na grande cama de Lucila. Sua anfitriã, ao seu lado, passou à inconsciência assim que sua cabeça tocou o travesseiro. Regeane, entretanto, permaneceu acordada alguns breves e bonitos momentos. A loba a visitou.

Ela e outros de sua espécie estavam caminhando ao longo de uma estreita praia sob um escarpado. A pedra era de um profundo negro sangrento, manchada um pouco de vermelha e púrpura em alguns lugares, rota ao longo de linhas prismáticas em ângulos retos como os tijolos. A areia era marrom, manchada pelas largas raias mais escuras da pedra. O céu era uma massa de nuvens de tormenta de cor cinza escura, que foram se elevando até descarregar seus trovões, entre franjas de céu azul. No mar, a névoa flutuava sobre as águas como fumaça.

As ondas rompiam devagar, cinza ao longe, azuis ao se aproximar da costa e finalmente verdes ao salpicar com sua espuma as patas dos lobos.

Aqui e ali, eles tinham que se desviar para evitar grandes montes de madeira à deriva, de cor branca e prata. Finalmente chegaram a uma ponta de terra que entrava na água.

O ar que soprava do oceano era claro e frio, contendo em cada fôlego a essência da eternidade. Longas franjas de luz começaram a se filtrar entre a névoa. E os lobos ficaram contemplando como o sol ascendia esplêndido... Sobre a beirada do mundo.

 

                                                       CAPÍTULO 12

Era uma das mulheres mais formosas que Regeane jamais tinha visto. Ela inspecionou a jovem com desdém aristocrático.

—É a moça, Mãe?

—Regeane, - disse Lucila, - apresento-lhe a minha filha Augusta.

Regeane se inclinou tanto quanto pôde na rígida túnica branca com brocado de ouro que usava.

Augusta levou uma unha laqueada aos lábios, usando-a depois para alisar uma de suas sobrancelhas altas e arqueadas na moda e depois a outra, enquanto seus dois gloriosos olhos de cor de violeta estudavam Regeane.

—É bastante cortês, Mãe. – Ela comentou. - Diga-Me, Regeane, rogo-lhe, qual é sua linhagem?

Como havia sido treinada para fazer, Regeane começou a recitar sua linhagem, começando por um Luprand que havia sido filho de Carlos Martel e uma concubina e que, apesar de ter se convertido em abade, conseguiu engendrar sete filhos. Augusta a interrompeu antes que tivesse terminado com a primeira geração.

—Excelente, minha querida moça. Vejo que tem o nome de seus antepassados nas pontas dos dedos. Assim é como deve ser: uma família ilustre, embora... Recente.

—Recente? — Surpreendeu Regeane.

—A família de meu marido, - disse Augusta com altiva condescendência, - remonta sua linhagem desde o divino Julho.

—Sim, querida. - Interveio Lucila com alegre malícia. – Já sabemos. Você conta a todos cedo ou tarde. Pelo geral cedo.

—Não seja difícil, Mãe.

—Não, querida. - Respondeu Lucila. - Mas nos desculpe um momento, tenho umas instruções de último momento para Regeane.

Augusta tentou parecer educadamente aborrecida e irritada ao mesmo tempo, logo se voltou para se afastar caminho abaixo, fazendo uma pausa a cada pouco momento para admirar seu reflexo nas escuras águas do lago do átrio.

Regeane pensou que havia muito a admirar. O magro e curvilíneo corpo de Augusta estava envolto em uma túnica de suave seda rosa, ricamente bordada com ouro e pérolas orientais. Seu cabelo castanho avermelhado estava sustenido com esmeraldas e uma rede para cabelo, de correntes douradas. A face emoldurada por aqueles ornamentos tampouco defraudava; Augusta era abençoada com maçãs do rosto altas, o característico nariz estreito e alto dos aristocratas e grandes olhos que sugeriam paixão de forma formosa e sutil.

—Oh, vá... O divino Julho. É verdade?

—Não seja tola, menina. - Disse Lucila. – Ela é minha filha e alardeia a família de seu marido. Mas devo admitir que ninguém que a visse poderia imaginar que sua avó era uma camponesa dos Abruzzos, que se deitava todas as noites em um colchão de palha, enquanto se coçava por causa de piolhos.

Regeane soltou uma risada.

—Mãe, — disse Augusta por cima do ombro. - Está dizendo coisas ofensivas a essa moça?

Lucila suspirou profundamente.

—Não, querida, - ela respondeu com doçura. - Tenha paciência, terminaremos em seguida.

—Bem, resolvam rápido. Se conversarem muito tempo, chegaremos tarde à festa. E isso é inconcebível, Mãe.

Lucila se crispou um instante, mas relaxou sua irritação com outro profundo suspiro.

—Sim, querida. - Disse com amabilidade enquanto apertava os dentes. - Maldita seja, mas não há remédio. Necessito de Augusta para te introduzir na nobreza romana. Menina, você deve ser apresentada aos notáveis da cidade em companhia de alguém que seja extremamente respeitável. Minha filha se encaixa muito bem na descrição. — Ela deu um grunhido de fúria. - Não consigo imaginar como eu a fiz. Uma linhagem distinta por uma camponesa e uma prostituta, culminando na comparação da antiga virtude romana que é minha querida filha, Augusta. Não só fez um matrimônio impecavelmente ilustre, mas também nenhum escândalo manchou seu nome.

—Uma família relacionada com o divino Julho César... — Começou Regeane.

—Acredito que os vínculos entre a família de seu marido e o primeiro César é mais mitológico que real. Entretanto, não se pode dizer com segurança. Os genes dele era enorme e suponho que seja possível que descendam de um parente longínquo do grande homem. Mas, - ela adicionou ressentidamente, - também muitas outras pessoas. Em qualquer caso, viviam na pobreza e na escuridão, em uma vila arruinada nas colinas Sabinas e vestiam lã tosca. Só estavam um pouco melhor que seus servos, até que foram salvos há aproximadamente cinqüenta anos pela oportuna chegada de uma princesa lombarda. Ela tinha aspirações sociais, uma vontade férrea e dois carros carregados de ouro.

Para seu horror, Regeane se encontrou sorrindo novamente.

—Lucila, se quiser que me mostre receosa, não deveria me contar...

—Sim. Sim, claro que quero que se mostre receosa... Abertamente. Vou te ensinar coisas sobre o mundo e é imprescindível que aprenda um pouco de hipocrisia elegante. Além disso, pequena, é importante conhecer as raízes da eminência social e política e aprender que eles procedem do mesmo monte de esterco que o resto de nós. Então não a impressionarão tanto as linhagens elevadas, a roupa elegante e as maneiras delicadas. Aprenda a olhar à pessoa que há sob todo isso.

Regeane assentiu sobriamente.

—A princesa lombarda...

—Tinha uma vontade de ferro e uma presa igualmente firme sobre os cordões de sua bolsa. A família inteira aprendeu a pular assim que ela estalava os dedos. Arrumou inteligentes compromissos para os irmãos e irmãs de seu novo marido, para não mencionar seus numerosos primos. Suponho que pegou também alguns quantos mais, de conventos e monastérios e em pouco tempo estavam entre as primeiras famílias de Roma.

—Mãe, - chamou Augusta aproximando delas, - realmente devo insistir...

—Odeio que me envenenem. - Sussurrou Lucila para Regeane com uma voz que gotejava silenciosa fúria. - Mas se devemos, devemos. Eu a apresentarei ao Papa, embora fique atrás e deixarei que seja Augusta a falar. Ela será sua protetora, não eu. Tente se dar bem com ela. Por sorte, não é difícil: tudo a aborrece, menos falar de roupas, jóias e o problema do serviço, - Lucila disse erguendo os olhos para o alto, - o elevado preço dos escravos. Mencione qualquer destes assuntos e terá êxito. Quando chegarem à vila do Papa, deixa que Augusta converse. Mantenha o olhar baixo, a boca fechada e os olhos e as orelhas bem abertos. Haverá um momento de conversas antes que comece a festa e alguns dos homens podem tentar te atrair para fora com o pretexto de te mostrar a vila. Não deixe que nenhum fique sozinho contigo, fique perto de Augusta e siga seu exemplo.

Augusta estava o bastante perto para ouvi-la e Regeane considerou que provavelmente a última frase ia dirigida a ela.

—Naturalmente, Mãe.

Elfgifa entrou no átrio. O cabelo da pequena estava ainda úmido pelos cuidados acabava de receber e se vestia como Regeane, com uma roupa de linho coberto por outra de pesada seda bordada e outra de manga larga e rígido brocado. Ela se retorceu e olhou para Regeane com olhos rebeldes.

—Meu vestido está me arranhando.

—Mostre um pouco de gratidão. - Respondeu Regeane. – É assim que agradece a uma amiga que te favorece? O que diria seu pai? Lucila a vestiu para a festa, com seus gastos. Deu-te um estupendo vestido novo e tudo o que sabe dizer é que ele arranha. Seja educada e lhe agradeça.

Elfgifa fez uma reverência ou tentou, pois dobrou um pouco os joelhos.

—Obrigado. Não quero ser ingrata. Meu pai diz que sempre devemos amar nossos amigos e a quem nos beneficia, mas — ela tocou o vestido, - por que puseram a parte áspera no interior e a suave por fora? As pontas dos fios de seda me arranham a pele.

—A parte Lisa vai por fora porque é mais bonito assim, - disse Lucila.

—Bem, então, por que não o uso do avesso até chegarmos à festa, e então o uso normal?

—Porque não pode, por isso. Imagine o quão tola pareceria tirando e vestindo sua roupa diante da rua diante da vila do Papa.

—Prefiro parecer tola que esta coceira. Além de... — Elfgifa se interrompeu de repente e farejou o vestido de Augusta. - Cheira.

—Esquece de dizer que cheira bem. - Disse Lucila acidamente.

—Certo, cheira bem. Mas segue sendo um aroma muito forte. Como as violetas.

Regeane notou que o aroma de violetas era quase forte perto de Augusta. A mulher baixou seu nariz aristocrático para Elfgifa.

—O perfume é quase minha própria assinatura pessoal. Minha donzela o prepara segundo uma fórmula inventada por ela mesma, a partir de pétalas de flores recolhidas todas as primaveras. Recebi muitos cumprimentos... — Lançou-lhe um som exasperado. - Mas por que dou explicações a uma menina? Mãe, é absolutamente necessário que ela nos acompanhe?

- Sim, é. - Disse Lucila. - Acredito que posso ter localizado sua tia entre quão saxões vivem em Roma. É a abadessa de um convento no bairro saxão e estará na festa.

Elfgifa parecia alarmada. Segurou com sua mão livre, a de Regeane.

—Eu não quero ir para casa, - Disse. - Quero ficar aqui e brincar com o Póstumo.

—Ele não saiu? — Perguntou Regeane.

—Oh, sim. - Disse Lucila. - Enquanto estava dormindo, saltou o muro novamente. Meus serventes a encontraram horas depois, brincando no canal com esse sujo maroto.

—Ele estava me ensinando a lutar. - Explicou Elfgifa com orgulho. - Há um truque para cegar um homem e outro lugar onde pode se apertar com os dedos... —A menina começou uma demonstração prática abaixando entre suas pernas.

—Mãe. - —bocejou Augusta.

Lucila pegou a mão de Elfgifa, fazendo com que ficasse em pé.

—Jovenzinha, não acredito que agora queiramos escutar as pérolas de sabedoria que te repartiu Póstumo, se não se importa.

—Por que não? Também está me ensinando palavras, E...

—Não as diga! — Ordenou Lucila com voz de pedra.

—Por que não? —perguntou Elfgifa, surpreendida.

—Simplesmente, não diga. - Disse a mulher, guiando Elfgifa para a entrada da vila. - Regeane, você viajará na carruagem de Augusta. Elfgifa, você virá comigo. Temos que ter um conversa.

 

 

A carruagem de Augusta era como a de Lucila, um luxuoso habitáculo puxado por uma récua de mulas brancas. Como estavam longe da favela, elas viajaram com as cortinas abertas. Regeane achou o passo lento preferido por Augusta muito mais cômodo que o adotado pelo veículo sua mãe.

As mulas pegaram uma rua estreita e sinuosa, flanqueada pelos jardins murados das suntuosas vilas dos ricos. Regeane ia reclinada ao lado de Augusta.

—Uma menina muito mal educada e rebelde. - Disse Augusta. Ela estava se olhando em um espelho, aproveitando a última luz da tarde para assegurar-se que sua maquiagem estivesse bem e que nem um fio cabelo de seu complexo penteado estivesse desconjurado.

A loba se elevou da escuridão no cérebro de Regeane, deu uma boa olhada em Augusta e bufou de aversão. O forte aroma a violetas era quase insuportável.

Augusta ouviu o barulho.

—O que é?

Regeane fez com que a loba baixasse. Encorajado pela tênue luz, o animal queria sair, saltar da carruagem para a rua. Saltar os altos muros das vilas e investigar com seus olhos e focinho, os verdes jardins ao outro lado. Queria desfrutar das mudanças da tarde que se desvanecia pouco a pouco. O suave passar do dia de ouro para o rosa e depois o tranqüilo azul do crepúsculo. Correr entre as fontes e as flores, cheirando o ar fragrante de pinheiros e ciprestes.

A loba não queria pensar. Queria viver e desfrutar dos prazeres de um mundo negado a mulher e loba durante tanto tempo.

—O que houve? — Repetiu Augusta, interrompendo os desejos de Regeane.

—Nada. - Disse Regeane apressadamente.

Augusta a olhava criticamente.

—É atraente, mas o encanto principal da juventude é a juventude mesma. Diga-me, sua mãe engordou ao envelhecer?

Regeane recordou sua mãe pálida e calada. Parecia somente um pequeno vulto nas mantas quando Regeane foi despertá-la naquela última manhã. Salvo pela face no travesseiro e as mãos sob a bochecha, parecia que não havia ninguém na cama.

Regeane não tinha necessitado tocar Gisela para saber que sua luta com uma interminável procissão de pesares havia terminado. Mas havia tocado em sua face e a textura da carne lhe tinha recordado, de forma horrível e incongruente, a carne de um frango recém morto: fria e um pouco úmida com o rocio noturno. Rocio que não fica sobre uma pele cálida, viva. Havia permanecido ali um bom momento, procurando gritos ou inclusive lágrimas em seu interior, sem encontrá-las.

Estivera ali sabendo que algo, não podia dizer realmente o que, algo importante tinha acabado afinal.

Ficara em silêncio, tentando recordar quanto havia amado a casca vazia que estava no leito ante ela. Sem poder encontrar naquele amor mais que lágrimas ou gritos. E então, havia ido até Gundabald e enviado Hugo em busca de um sacerdote.

—O que está acontecendo? — Perguntou Augusta.

Regeane compreendeu que seus pensamentos deviam se mostrar em sua face.

—Minha mãe morreu recentemente. – Ela disse em voz baixa. - Mas não. Já que pergunta, minha mãe foi uma mulher bastante magra em toda sua vida.

—Lamento que meu comentário a tenha entristecido.

Não soava como se ela lamentasse, pensou Regeane. De fato, Augusta havia pegado seu espelho novamente e estava se contemplando nele.

—Mas sem dúvida encontrará consolo em seus felizes esponsais.

Regeane esteve a ponto de rir abertamente, mas se dominou no último momento.

—Não é bom para uma moça jovem como você passar muito tempo de luto, adotar expressão afligida e andar por aí com um véu negro. Suas oportunidades passarão logo.

—Sim. - Respondeu Regeane mecanicamente.

A carruagem rangeu ao redor de uma esquina. Por um momento, Regeane pôde contemplar toda Roma ante ela. O Tibre era uma cinta de fogo e os edifícios estavam envoltos no dourado resplendor do sol poente.

—Sua família fez bem em te afastar de seu pesar. - Disse Augusta. - Esse senhor montanhês, Maeniel é conforme tenho entendido, um homem endinheirado.

A loba estava repentinamente atenta, alerta, ouvindo com cada sentido afinado ao máximo. Regeane soube que algo estava errado. Mas o que?

—Eu acredito. – Ela respondeu cautelosamente.

As mulas que puxavam a carruagem dobraram a esquina e a cidade em seu lago de luz se perdeu de vista. O crepúsculo azul caía nas ruas entre os altos muros. As tochas dos soldados de Augusta lançavam brilhos contra a pedra.

Regeane tentou pensar freneticamente em uma forma de fugir, de sortear a os soldados que guardavam a carruagem pela frente e por atrás.

Deu-se conta de que havia ficado rígida, as costas apertadas contra as almofadas e as mãos fechadas. Tentou relaxar e endireitou os dedos pouco a pouco. Por sorte, Augusta seguia ocupada com o espelho e não tinha visto o desconforto de Regeane.

Sabia que estava em perigo. Não entendia o porquê ou de que tipo, mas era perigo, pois ela recordava o texto da nota que Lucila havia enviado a Augusta lhe pedindo que patrocinasse Regeane. E estava presente ao longo da conversa dela com Augusta. Embora Lucila havia dito que Regeane estava respeitavelmente comprometida, não havia mencionado nem uma vez o nome de Maeniel. Regeane só conhecia outra pessoa de quem Augusta podia ter ouvido o nome... Gundabald.

 

                                                   CAPÍTULO 13

Regeane passou o resto da viagem dizendo a si mesmo que não fosse néscia. Dizendo que havia pelo menos uma dúzia de formas de que Augusta pudesse se inteirar sobre o nome de Maeniel sem falar com Gundabald. Talvez circulavam fofocas sobre o matrimônio entre a nobreza romana. Talvez Lucila o havia dito em outra ocasião. Talvez...

Mas o que Regeane não fez foi pedir a Augusta que lhe explicasse como sabia o nome de Maeniel. Nem mostrou em suas palavras ou expressão que tinha notado algo estranho.

Depois de tudo, ela raciocinou. A explicação podia ser a que ela temia e em tal caso não queria colocar Augusta em guarda.

Já havia escurecido quando chegaram ao palácio Laterano e por um momento, todos os pensamentos de perigo fugiram da mente de Regeane. Nada em sua vida a preparara para tal esplendor. Estava presa em um torvelinho de impressões confusas.

O palácio, como muitas outras casas romanas, mostrava uma imponente fachada branca para a rua, mas mais à frente do pórtico de colunas, reinava um luxo supremo.

De um vestíbulo presidido por afrescos das Três Graças e as Nove Musas, entraram em um magnífico peristilo radiante de luz e ocupado pela reluzente grupo das primeiras famílias de Roma.

As esplêndidas roupas de homens, mulheres e crianças rivalizavam com as tochas, colocadas entre os altos ciprestes, derramando sua luz nos atalhos e leitos de flores.

Havia lagos e fontes por toda parte. Salpicavam e faiscavam, refletindo os ornamentos com rubis dos convidados e as chamas das tochas.

Augusta pegou Regeane pela mão e então, como uma régia e magnífica mariposa, começou a levá-la entre os grupos de pessoas no jardim.

Ao princípio, Regeane se sentiu torpe. Sabia que devia haver muitas coisas que ignorava, sofisticados matizes de conduta entre aquela multidão deslumbrante, questões de precedência e protocolo absolutamente impossíveis de imaginar. Mas se deu conta rapidamente de que pouco se esperava dela, exceto que aparentasse seriedade e se permitisse ser admirada.

E era. Em pouco tempo desde sua entrada no jardim, Regeane tinha recebido mais cumpridos que em toda sua vida. Augusta falou muito de suas conexões reais e evitou cuidadosamente mencionar sua pobreza, ficando com cada grupo só o tempo necessário para que Regeane fosse vista e apreciada, evitando as conversas longas nas quais Regeane pudesse revelar uma embaraçosa ignorância dos assuntos romanos.

Além disso, decidiu Regeane, provavelmente se esperasse muito pouca sofisticação por parte de uma moça em idade de ser apresentada a sociedade pela primeira vez.

Regeane estava sem fôlego quando Augusta fez uma pausa de alguns momentos, perto de uma fonte coberta de musgo nas sombras à beira do jardim iluminado.

—Tudo isto faz com que a cabeça te dê voltas?

Regeane reconheceu a voz de Lucila. Vinha das sombras perto da fonte.

—Não, nem tanto. Um pouco confuso, mas nada mais. Embora pareça divertido.

Lucila riu entredentes.

— E é, mas eu realmente não pertenço a este lugar. Não como Augusta. A maioria das pessoas se mostra cortês comigo porque nunca sabem quando podem necessitar minha influência com Adriano. Outros pretendem que não existo. Mas tenho alguns verdadeiros amigos aqui e desfruto destas ocasiões pelo prazer de vê-los.

—Mãe, realmente você é impossível. - Disse Augusta. - Quase todos são pelo menos educados contigo.

—Sim, suponho que seja verdade. O tempo cobrou seu preço entre os recalcitrantes. Mas eu sou quase uma instituição, como a bonita fonte atrás de ti... Olhe-a bem, moça.

—Não o faça! — Advertiu Augusta. - Essa fonte não é algo que uma donzela deva ver.

Mas Regeane já estava olhando e suas bochechas avermelharam. A fonte que corria ao longo da parede era um friso de ninfas e sátiros. Um dos homens com chifres estava urinando entusiasmado no lago: a água brotava de seu membro ereto. Outro estava abraçando uma ninfa com uma mão enquanto a jarra que levava na outra descarregava no lago a seus pés. O resto estava acoplado com descolada luxúria, seus corpos nus colocados em cada postura possível do contato sexual humano.

—Oh! - Disse Regeane. – Oh! Nossa!

Lucila riu.

Augusta soltou a mão de Regeane e se afastou para um grupo de pessoas reunidas no jardim.

—Está zangada. - Disse Regeane. – Sinto muito. Suponho que não devia ter olhado.

—Tolices! — Cortou Lucila. - Pode olhar o que gostar. Além disso, eu gosto de irritar pelo menos uma vez Augusta cada vez que nos vemos. Em qualquer caso, ela já cumpriu sua função: queria que fosse vista pela nobreza em sua companhia, não na minha. No festim desta noite, você e Elfgifa estarão a seu lado; sua irritação ou boa vontade não importam, pois é o Papa quem decide a colocação dos comensais, não ela. Depois de tudo, você é da realeza. Provavelmente Augusta agradará estar tão perto de seu leito no banquete, ao seu lado.

Regeane deu outro longo olhar à fonte e para sua surpresa, descobriu que seus olhos coçavam, enchendo-se pouco a pouco de lágrimas.

—Parecem tão felizes, - disse brandamente.

—O amor é algo feliz. Eu descobri que é e espero que algum dia você também o faça. Mas venha, não temos muito tempo e quero que se reúnas em particular com Adriano antes que comece o banquete.

—Lucila, como Augusta sabia o nome de Maeniel? Você disse a ela? Ela mencionou-o no caminho, na carruagem.

Lucila fez uma pausa. Seus olhos se estreitaram.

—Não, eu não disse. Atuo sobre a premissa de que o melhor é que Augusta saiba o menos possível de meu negócio. Ela é uma conformista e lhe aterra a menor inconveniência social. Treme ante a idéia de desgostar de qualquer forma a incrivelmente estirada família de seu marido. É minha filha e a quero, mas não é muito forte nem muito inteligente. Não posso acreditar que oculte algo; tampouco se atreva a me desgostar. Mas me manterei alerta. Alguém mais o pode ter dito. As fofocas fluem como água em Roma e o que se diz aqui é repetido no momento no Vaticano. Ninguém pode manter a boca fechada... E Augusta menos que ninguém.

Lucila levou ao Regeane fora do jardim iluminado, cruzando pequenos pátios em sombras, escuros e silenciosos sob a luz das estrelas. Longe das magníficas habitações ocupadas pela recepção e ao coração privado da vila.

Encontraram-lhe sentado em um banco em um pequeno e tranqüilo jardim. Um abajur ardia seu lado. Estava jogando pão às carpas do lago a seus pés.

Atraídos pelo pão e a luz, os peixes eram sombras movendo-se na água, vistas só pelo brilho de um olho ou o fulgor das brilhantes escama à luz.

—Querido. - Disse Lucila brandamente.

Adriano levantou a cabeça, atirou o resto do pão à água, e respondeu;

—Lucila.

E Regeane ouviu seu coração na palavra, em sua forma de falar.

Lucila caminhou para ele com as mãos estendidas.

Ele tomou suas mãos e se olharam fixamente durante um longo momento antes de se abraçarem. Ela guardou silêncio no círculo de seus braços, a cabeça apoiada em seu ombro.

—Querido, querido meu. O que faz se ocultando aqui?

—Estava visitando alguns velhos amigos. – Ele disse assinalando os peixes com um olhar. – E esperando saudar outra. —Deixou-a ir, e ficaram de mãos dadas, olhando os peixes do lago a seus pés.

—Bem, eu trouxe para outra amiga para que o saúde. - Disse Lucila, chamando Regeane.

Regeane entrou no círculo de luz. Ao se aproximar, elevou o vestido de brocado e tentou se ajoelhar e beijar o anel do Papa.

Mas Adriano, Esteban, a pegou pelos cotovelos e fez com que se levantasse e lhe deu um suave beijo na frente.

—Vamos lá. - Disse a Lucila, que estava ao seu lado. – É bem melhor que beijem meu anel. É, — ela acrescentou com uma rápida piscada, - muito mais divertido.

Ele pegou Regeane pelos ombros e a afastou para trás para lhe dar uma boa olhada.

—Lucila me disse que você pôde resgatar Antonius de Basílio e levá-lo a um esconderijo seguro.

—Sim? — Respondeu ela com voz insegura, pensando furiosamente Quanto lhe disse Lucila? Vai exigir uma explicação?

Mas ele não o fez. Em vez disso, Adriano começou a examinar à própria Regeane, olhando-a e assentindo com a cabeça em sinal de aprovação. Depois lhe deu alguns tapinhas leves na bochecha e disse a Lucila:

—Fez maravilhas com ela, querida.

Lucila encolheu um pouco os ombros com humildade e sorriu.

—Ela nasceu formosa. Umas roupas bonitas, um novo penteado... Tem uma graça natural que é inteiramente dela e se mostra inclusive em momentos estranhos. Pergunto-me se o rei franco sabe que tem tal prêmio entre suas damas reais. Se soubesse, talvez lhe conviesse um enlace mais elevado...

—Não, não. Este matrimônio é muito importante. Entrem em minha biblioteca e lhes explicarei melhor.

A biblioteca estava separada do jardim por uma singela colunata com cortinas. Prateleiras de livros e nichos para pergaminhos percorriam as paredes. O suspiro de deleite de Regeane deteve Adriano e Lucila.

—Também gostou de minha biblioteca. - Disse Lucila.

—A especial?

Lucila assentiu.

—Céus! Não olhou essa e sequer nossa pequena fonte.

—Não? — Perguntou Adriano arqueando as sobrancelhas. - Mostraste-lhe nossa fonte? Não é uma visão apropriada para uma donzela.

—Uma donzela que se converterá logo em uma mulher casada. Precisa saber o que vai enfrentar, — disse Lucila com irritação.

—Lucila, — interveio Regeane, - não acredito que a alegria ou as delícias do amor tenham muito a ver com aquilo com o qual enfrento.

—Nunca se sabe...

—Não, nunca. - Interrompeu Adriano. - Mas, contudo, penso que a moça tem razão ao preferir os mais tranqüilos prazeres independentes da inquisição intelectual. Freqüentemente conseguem confortar o espírito com problemas quando se torcem os eventos do mundo... Então, você gosta de ler? — Ele perguntou a Regeane.

—Sim. Às vezes, quando era mais jovem, - Regeane lançou a Lucila um rápido olhar de advertência, - passava... Sozinha, longos períodos de tempo. Meu padrasto tinha uma grande biblioteca, de mais de sessenta livros. Eles eram, como vou dizer... Um grande consolo em minha... Solidão.

Adriano fez um amplo gesto expansivamente para as prateleiras que percorriam as paredes.

—Os livros são para ser lidos, e os meus por desgraça, ficam freqüentemente acumulando pó, pois os assuntos de estado me deixam pouco tempo para eles. Então, se notar algum particularmente interessante para você me alegraria...

—Tem uma da vida de Alexandre? — Perguntou Regeane. - Tenho lido freqüentemente sobre as façanhas do mais nobre entre os gregos. Eu gostaria de saber mais sobre ele.

—Tenho três livros sobre a vida de Alexandre. Enviarei um a você. Seu padrasto tinha sessenta livros... É uma biblioteca realmente boa para um laico. O que aconteceu com eles?

Regeane baixou o olhar.

—Gundabald os vendeu junto com o resto.

—Gundabald novamente... — Murmurou o Papa coçando o queixo. - Mas não importa, sentem-se. Não temos muito tempo, tenho que me reunir logo com meus convidados.

Lucila e Adriano se sentaram juntos em um banco com almofadas e Regeane ocupou a cadeira de alto respaldo em frente a eles.

—Regeane. - Disse Adriano. - Regeane, verá que te chamo de amiga e que te trato como a uma de meus íntimos. Sabe por quê?

Ela meneou a cabeça.

—Porque, - continuou o Papa. - Lucila te chama amiga. E ela honra a muitas poucas pessoas com esse nome, reservando-o para quem lhe fez um grande serviço, ou considera absolutamente leal. Compreende?

Regeane assentiu.

As mãos do casal se uniram, entrelaçando os dedos. Adriano e Lucila se olharam nos olhos, sorrindo. Então Adriano se voltou para Regeane.

—Como Lucila te chama amiga, eu também vou confiar em ti. Mas o que eu disser não deve sair daqui. Entendeste-me?

—Sim.

—Muito bem, ouça então. Nesta primavera, Carlos, o rei dos francos atravessará os Alpes para guerrear contra os lombardos em meu nome. Por isso é tão importante seu matrimônio, Regeane. O principado de Maeniel domina a rota e sua lealdade ao Carlos tem que ficar garantida antes que comece a campanha.

Lucila se levantou de um salto e caminhou rapidamente para as colunas que separavam a estadia do jardim. Olhou fixamente às estrelas.

—Conseguimos. - Ela disse em voz baixa, quase para si. – Conseguimos, - ela repetiu mais forte. Levantou os punhos por cima de sua cabeça e gritou. – Conseguimos.

—Sim. - Disse Adriano. – Conseguimos.

Regeane sentiu que o sangue sumia de sua face, deixando-a aturdida. Pareceu-lhe ouvir um estalo ao fechar as mandíbulas.

—Então não há forma de evitar. - Murmurou entre os dentes apertados. - Devo me casar com ele.

—Sim. - Respondeu Lucila com um olhar de feroz alegria. - Mas quanto durará esse matrimônio enquanto Carlos seja o dono da Lombardia é algo que não sabemos.

Lucila se aproximou de Adriano. Irradiava poder e tinha o passo de uma rainha.

—Conseguimos. – Ela repetiu – E uma moça camponesa dos Abruzzos tem o destino de nações em sua mão. Não posso acreditar. Mas por que é meu Antonius o preço?

Adriano tomou sua mão novamente, fez com que se sentasse a seu lado e a beijou nos lábios.

—Por que é tão importante que ganhe o Rei Carlos? — Perguntou Regeane.

—Em uma palavra. - Respondeu Adriano. - Paz.

—Paz?

—Olhe a seu redor, moça. Não tem olhos? Mais da metade desta cidade, antigamente a mais populosa do mundo está em ruínas. Todos os dias os pobres se congregam nas Igrejas e refúgios, mendigando pão com as mãos estendidas. Nossas fontes, que uma vez emanaram água pura dos arroios da montanha, agora estão verdes e estancadas e só se enchem quando chove; os aquedutos que antigamente as alimentavam estão abandonados ou em mãos de nossos inimigos. Reis bárbaros lutam pela tiara Papal como cães por um osso. Cada um deles espera colocar seu próprio candidato no trono do primeiro apóstolo e usar à Igreja como uma ferramenta de suas ambições.

—Sigo sem ver por que Carlos é melhor que Desidérius ou o Duque de Spoleto ou qualquer desses outros reis. - Insistiu Regeane.

—Regeane, está se permitindo questioná-lo? — Reprovou-lhe Lucila.

—Não, não, não. - Disse Adriano com rapidez. - Alegra-me ver que não é uma pequena boba sem miolos. E mais, sua pergunta me recorda a ti quando tinha sua idade e é do mesmo tipo que você teria feito.

Lucila sorriu.

—Sim, suponho que esteja certo. Eu te questionei freqüentemente a princípio.

Adriano lhe devolveu o sorriso. Pôs uma mão no cabelo de Lucila, atraiu sua face e lhe deu um beijo na frente.

—Não. É uma boa pergunta. — Ele passou o braço sobre os ombros de Lucila e se voltou para Regeane. - Carlos é como o resto, um homem muito ambicioso e também tem idéias definidas sobre o papel da Igreja como pedra angular da política estatal. Mas, - ele disse levantando um dedo, - já garantiu minha independência como governante do Ducado de Roma e prometeu devolver as terras roubadas por Desidérius e os outros reis Lombardos. E, - ele adicionou triunfalmente, - está muito longe. Em resumo, nem os francos podem governar Roma, nem Roma aos francos.

—Sei. - Disse devagar Regeane. Adriano estava manipulando um estado estrangeiro e remoto contra outro mais próximo. - Está metido em um jogo muito perigoso. E quando o rei lombardo souber de seu acordo com os francos e saberá, pois não pode ocultar para sempre, irá às nuvens. Usará todos os meios a seu alcance para te destruir.

—Oh, não seja criança. Já o fez. - Sorriu Lucila.

—Sim. - Disse Adriano. - Por que pensa que Basílio seqüestrou Antonius e ameaçou crucificá-lo?

Regeane meneou a cabeça. — Não tenho nem idéia.

Adriano se inclinou para ela.

—Queria me forçar, ao preço da vida de Antonius, a ungir os filhos do Carlomán, a convertê-los em reis por minha mão: esses dois moços, os filhos de seu irmão morto seriam os principais aspirantes ao trono em que se senta Carlos. Seriam um foco para todo tipo de rebelião e descontentamento. Cada revoltoso e descontente tentaria atraí-los a sua causa. Carlos é jovem e embora pareça que se converterá em um grande rei, muitos duvidam ainda. E outros tentarão lhe colocar a prova, já seja por cobiça ou por anseio de poder. Minha intervenção, já comprada ou forçada por Desidérius, poderia fazer do trono de Carlos um assento muito inseguro. Supõe-se que Arquimedes disse: "Me dêem uma alavanca e eu moverei o mundo"... Bem, esses dois moços são a alavanca que usei para trazer através dos Alpes e que me ajudarão na batalha contra os lombardos. Submeter-me às demandas de Desidérius para ungi-los destruiria todos meus planos... E provavelmente também me custaria à vida.

Lucila se separou de Adriano e descansou novamente o braço sobre as almofadas do banco. — Entende agora por que Antonius deve morrer?

—Para isso me trouxeste aqui, para que tome parte em um assassinato?

Pela extremidade do olho, Regeane viu o brilho de um relâmpago longínquo. Estava muito longe para ouvir o trovão, mas um golpe de vento fez com que se agitassem as cortinas que separavam a biblioteca.

—Silêncio, moça. - Respondeu severamente Adriano. - Não estamos lhe pedindo que mate Antonius e nem a nenhum outro. – Ele disse a Lucila enquanto colocava a mão sobre o rosto. - Não, querida. Eu não darei essa ordem, nem você tampouco.

—Mas deve... — Chorou Lucila desesperadamente. - Deve fazer. Meu Deus, ontem... — Ela pegou os ombros de Adriano e o sacudiu. - Ontem a chusma se amontoou em torno de minha carruagem e me atirou pedras, me chamando de puta do Papa e te acusando de estar corrompido pela maldição do diabo, a enfermidade vil. Adriano, acha que não quero Antonius?

Ele a abraçou e Lucila se balançou para trás, o empurrando com suas mãos como se negasse o consolo.

—Houve um tempo em que era minha vida, eu vivia só para ele... Mas não posso permitir que se deixe levar, derrotado pelo cadáver de um homem podre antes de ser envolto no sudário.

Regeane estremeceu, intumescida pela fria rajada de vento que prévia à tormenta e por sua lembrança dos fantasmas esperando em seu templo sobre o mar.

—Não. - Disse Adriano implacavelmente. - Não darei a ordem e você tampouco. Não só porque quero aos dois, mas também porque me conheço e sei com o que posso viver. Não. Chamei-o de irmão durante muito tempo. Além disso, sequer sua morte poderia me salvar. Já se fala de um sínodo de bispos que vai ser convocado... Sem dúvida inspirado por meus bons amigos Desidérius e Basílio, o Lombardo. Querem me julgar e determinar minha aptidão para o cargo de Supremo Pontífice. Se me considerasse tocado pela enfermidade de Antonius, bem...

Ele atraiu a Lucila para si e ela apoiou a cabeça em seu ombro como uma menina cansada. As lágrimas corriam por sua face.

—Então, — disse a mulher, - vamos fracassar agora, depois de ter chegado tão longe?

—Possivelmente. - Respondeu Adriano, com seus lábios no cabelo dela. - Possivelmente, mas fracassaremos como começamos: honorável e honestamente, porque não posso, por mais... Irregular... Que nosso amor tenha sido ou parecido aos olhos do mundo, tem sido outra coisa mais que honorável e honesto.

Lucila o atraiu para si e lhe sorriu através de suas lágrimas.

—Sim, isso é verdade. Tentamos fazer o melhor para esta nossa cidade, sitiada e caída pela guerra e para sua gente.

Adriano assentiu.

—Sim, amiga minha. Temos feito e por isso não me renderei a suas demandas ou as de Desidérius. Falaste antes de ter o destino de homens e nações em suas mãos.

—Diz que encontro no destino de Antonius uma recriminação para meu orgulho?

—Não. - Respondeu Adriano. - Não para seu orgulho, mas para seu preço, o preço da responsabilidade. Se ocorrer o pior, abdicarei. E também o faria antes de permitir que Antonius ou você sofressem algum mal. E depois, outros podem seguir minhas políticas tão bem como eu... Ou melhor. A um homem em minha posição não faz nenhum bem se acreditar indispensável. — Ele riu entredentes. - Inumeráveis homens ocuparam o trono do Pedro e sem dúvida muitos mais se sentarão onde eu estou e tentarão se convencer de que eles, e só eles, são os ungidos de Deus e não podem ser substituídos. Mas eu não sou tão ingênuo, Lucila. Eu entendo perfeitamente que sou, mais um elo em uma cadeia humana que se remonta através dos tempos e chega a gerações ainda não nascidas. Não me salvarei ao preço da infâmia.

—A infâmia, não. - Disse Regeane. - Mas...

Adriano e Lucila se surpreenderam e Regeane compreendeu que quase haviam se esquecido que estava ali.

—Acredito, - ela continuou devagar. - Que eu posso ajudar Antonius, Talvez inclusive lhe salvar. Só não... — Ela gaguejou, dando-se conta de que arriscava seu futuro. Estava terrivelmente assustada, mas reuniu forças e seguiu adiante. - Não me façam muitas perguntas sobre como...

Adriano sorriu e Regeane pôde ver, mesmo na estadia meio em sombras, o mesmo brilho de autoridade em seus olhos que tinha visto em seu primeiro encontro.

—Que não façamos muitas perguntas, não é?

—Por favor, não. - Tremeu ela.

Adriano sorriu abertamente.

—Não tenha medo. Como já te disse, ao longo dos anos aprendi que aqueles a quem Lucila chama amigos são discretos e confiáveis. E também aprendi a não questionar muito estreitamente suas atividades.

Regeane deu um profundo suspiro de alívio.

—Obrigado.

—Uma moça educada. - disse Adriano ironicamente.

—Uma moça incomum. - Disse Lucila. - Muito incomum.

Adriano se voltou para Lucila e arqueou uma sobrancelha.

—Suplico-lhe, meu amor. Ouça bem o que ela tem que te dizer. - Disse Lucila.

Regeane tomou ar.

—Vou pedir algo para mim.

—Do que se trata? — Perguntou Adriano.

—Quero que seja você e não meu tio Gundabald, que prepare o contrato matrimonial. E quero que o contrato inclua uma provisão que me permita ter minha própria residência e meus próprios serventes e homens de armas.

Os olhos do Papa se estreitaram quando estudou Regeane.

—Teme realmente a esse homem, verdade? Tanto, que quer viver separada dele.

—Sim. - Respondeu Regeane. - Assim é.

O cenho de Adriano se franziu profundamente enquanto olhava de Lucila a Regeane.

—Não há remedeio para Antonius.

Lucila não respondeu e ficou em pé. Estava tão belamente vestida como o resto dos convidados do Papa, com uma longa camisa de seda verde bordada com rosas brancas que fazia ressaltar seu esplêndido cabelo loiro e sua formosa cútis. Ela afastou-se de Adriano, indo para uma porta no extremo oposto do quarto.

—Estive chorando. – Ela disse. - Tenho que me arrumar e necessito de um espelho.

—Está tão encantadora como sempre. - Respondeu Adriano com doce galanteria. - Mas se não me engano há um espelho na mesa junto à porta. — Ele se voltou e olhou fixamente para Regeane. - Posso ver que nenhuma de vocês pensa me dizer nada mais sobre seus planos.

As mãos de Regeane se crisparam em seu colo, seus dedos estavam brancos. Não respondeu.

—Não. - Disse Lucila, inclinada sobre a mesa, que estava cheia de livros, pergaminhos soltos, pranchas de cera, plumas, tinta e outros objetos administrativos de todo tipo. - Há um espelho aqui?

—Grande parte do trabalho da chancelaria se realiza nesta sala. - Disse Adriano. – Todo tipo de coisas terminam aqui.

—Mas um espelho... — Comentou Lucila, começando a procurar entre os objetos na mesa.

Fora, Regeane viu um que relâmpago abria um caminho dentado de luz pelo céu. Imediatamente, ouviu ao longe o rumor do trovão.

Outra rajada de ar, não o bastante forte para ser chamada de brisa, chegou do aguaceiro e refrescou o ar viciado do quarto. Regeane era consciente da rebelião silenciosa e mal-humorada da loba.

O que tinha ela a ver com a política ou as festas ou a vestidos caros?

Fora, a chuva estaria varrendo a Campânia. A loba queria correr com a chuva, ver os fogos da tormenta percorrendo os céus e estremecer com o trovão que passava pelas nuvens. Ser uma parte da majestade da tormenta ao passar pelo campo invernal.

Mas a mulher se manteve quieta e compreendeu que Adriano não lhe tinha dado uma resposta.

—O contrato de matrimônio. – Ela repetiu.

—Sim, - disse ele astutamente, - o contrato. Diga-me, quanto da riqueza desse homem pensa em tomar como parte do acordo? Um terço? Um quarto? Tudo o que ele esteja disposto a pagar pelo privilégio de casar com uma mulher da casa real?

Os olhos de Adriano se cravaram em Regeane, frios e dominadores à luz das velas.

Regeane se surpreendeu da ferocidade em sua voz ao responder.

—Sua riqueza? Não tinha me dedicado a seu dinheiro, - ela cuspiu a palavra desdenhosamente, - um só pensamento até que o expuseste. Só quero garantir minha própria segurança. Tenho medo. — A palavra pareceu levar todo seu terror das negras profundezas de sua alma ao ar livre. - Tenho medo. – Ela chorou. - Não pode ver o quão assustada estou?

Adriano se retirou.

—Sim, posso notar. Seu medo é imenso. Realmente não compreendo a razão, mas vejo que está assustada.

—Talvez, - disse Lucila, - é porque nunca foi uma mulher.

—Sim. - Respondeu ele. – Ou talvez seja porque você e esta moça de face bonita e inocente enfrentam algo tão sinistro que não ousam me dar detalhes.

Lucila havia encontrado o espelho e estava se aproximando de Adriano com o círculo de prata encostado contra seu vestido.

—Acredito recordar que se ocupou pessoalmente do assunto do Pablo Afartha, - continuou Adriano, - assinando sua sentença de morte...

—Eu não assinei nada. - Disse Lucila. - Só fiz saber o arcebispo de Ravenna que não ficaria prostrado pelo pesar se Pablo morresse de repente. Então aconteceu. Ele morreu de repente. - Disse ela com fria satisfação em sua voz.

—Tão de repente, que não teve tempo para a contrição.

Lucila pareceu enfurecer.

—Em nome de Deus, Adriano. Quanto tempo deu Pablo a Sergus para a contrição? Foi cegado, espancado, meio estrangulado e levado a tumba enquanto ainda se debatia, para morrer asfixiado na agonia e no desespero. Eu gostaria de te lembrar que Sergus era seu amigo e meu.

Adriano parecia velho e cansado.

—Muito bem. – Ele disse em voz baixa. - Trato feito. As condições do contrato matrimonial será como desejas.

Regeane suspirou profunda e agitadamente.

Lucila se olhou no espelho que tinha na mão. Seu gemido ressoou no quarto. Imediatamente, a prata caiu sobre o chão de pedra, quando Lucila o atirou como se fosse uma serpente.

O espelho rolou pelo mármore e chegou até aos pés de Regeane. A jovem se inclinou em sua cadeira e olhou a superfície refletiva de prata.

A face que viu não era a dela. Regeane se tornou para trás, afastando o olhar. Houve outro relâmpago, o bastante perto para iluminar brilhantemente o quarto durante um momento. As cortinas ondearam com o vento.

—O espelho de Adrastea! — Gritou Lucila. - O espelho de Adrastea aqui! —Ela estava com a face da cor de cinza, azul ao redor da boca e dos olhos. Regeane soube que ela também havia sentido a presença.

—Tolices. - Disse impaciente Adriano. - Acalme-se, Lucila. Como poderia estar aqui o espelho de Adrastea?

Lucila ficou quieta um momento, com uma mão contra o peito e recuperou a calma com um evidente esforço de vontade. Na distância, Regeane ouviu que começava a música.

No jardim, grandes e pesadas gotas de chuva começaram a estelar contra as lajes e salpicar no lago.

Adriano se levantou do banco.

—Devemos ir agora. Meus convidados estarão reunidos no triclinio esperando que os saúde.

Regeane recolheu o espelho a seus pés. Sentia o mesmo que em Cumas. A mesma confusa sensação de irrealidade que havia sentido quando a procissão fantasma passou junto a ela. Soube que o espelho estava ali para ela, que de algum modo havia sido lhe enviado, embora não podia imaginar por quem. Apesar de tudo, pegou-o e o deixou cair entre o forro de seda e o pesado brocado do vestido de fora.

Adriano se deteve ao lado de Lucila e lhe deu um rápido beijo, dizendo tristemente.

—Esta noite, depois da festa, poderemos estar sozinhos.

Seus rostos e a forma em que se olharam fizeram Regeane pensar em um velho matrimônio que vira muitos mudanças na fortuna, muitos conflitos, mas que ainda se mantinha unido. Unido por laços formados ao longo de uma vida e pelo amor, pelo riso e pelas lágrimas até ter alcançado um tipo de pacífico entendimento que nenhuma crise mundana podia quebrar.

—Meu amor. - Disse Lucila, lhe tocando a face.

Adriano partiu e elas ficaram sozinhas.

—Venha. - Disse Lucila. - Adriano tem razão, devemos nos apressar.

Ela pegou um abajur da mesa e começou a guiar Regeane através do escuro labirinto de cômodos de volta ao triclinio onde se celebrava a festa.

Haviam chegado a um longo alpendre de colunas quando Lucila se deteve, resguardando a chama do abajur com a mão enquanto esperava que o vento amainasse. O ar impulsionava à chuva através do alpendre em prateadas cortinas de água.

Regeane e Lucila esperaram enquanto o vento retorcia e agitava os arbustos e árvores do jardim e a chuva caía em torrentes.

—Não sei o que está planejando, - disse Lucila brandamente, - mas te aconselho que mantenha Antonius oculto. — Ela pegou o braço de Regeane, que sentiu como se suas unhas lhe mordessem a carne. - E se te ocorre tentar me assustar com sua outra forma, pense outra vez. Lobos não me dão medo. Eu os via freqüentemente quando cuidava os rebanhos de meu pai nas montanhas. São umas feras covardes, que se pode afugentar a pedradas e maldições!

Regeane liberou seu braço com um rápido movimento.

—A mim não pode afugentar a pedradas e maldições.

Fora, o vento havia morrido. A chuva caía reta, um denso e barulhento dilúvio. A tormenta estava mais no alto. Uma névoa de umidade flutuou através do pórtico, chegando até o cabelo e a face de Regeane.

Lucila começou a andar.

—Vamos. Danificará seu vestido.

Regeane ficou onde estava sentindo que a loba se agitava intranqüila em seu interior.

—Algo está errado. Há perigo. A loba o sente. Eu o sinto. – Ela sussurrou.

—Claro que há perigo. Agora mesmo eu sou um perigo para ti, mas não se dá conta. Eu não sou Adriano. Adriano é um homem e pode se permitir ser complacente. A chusma choraria se ele abdicasse, mas essa mesma chusma me culparia, saquearia minha vila e me arrastaria pelas ruas para me levar ante um tribunal lombardo que estaria encantado em acabar com minha vida. Tudo isto pode acontecer se Antonius for descoberto. Minha vida depende de ti e eu sequer estou segura do que é.

—Não a consolará saber que eu tampouco estou. Nunca tive ocasião de descobrir.

Regeane se voltou para Lucila, que retrocedeu um passo e deixou fugir um lamento rouco.

—Não... Não me olhe. – Ela balbuciou. - Seus olhos refletem a luz como... Os de um animal.

—Como os de um lobo. - Disse Regeane. Podia ouvir a áspera respiração da mulher. – Lucila, - ela implorou. - Por favor... —Alongou a mão na escuridão, mas Lucila se afastou um pouco mais. - Lucila, está perdendo seus nervos? Diga-me o que acontece. O que ocorre?

—Por que pegou o espelho de Adrastea? Sei que é de Adrastea. O motivo é original, o seu próprio. Ela desenhou-o para o ourives que o fez. Estava em todas suas posses pessoais.

—Porque o espelho me foi enviado. Está destinado a mim. - Disse ela, se aproximando novamente de Lucila.

—Não se aproxime mais. - Sussurrou Lucila. - A última vez que vi esse espelho foi quando o coloquei no ataúde de Adrastea. Então puseram a tampa de pedra de seu sarcófago para sempre em cima do espelho. Em cima da encantada, perversa e ambiciosa face de Adrastea. Eu sei de onde vem esse espelho... Porque eu o coloquei em sua mão.

 

                                                 CAPÍTULO 14

Regeane caminhou até seu leito no triclinio, sobre um tapete de flores.

A sala era tão bonita como qualquer igreja que Regeane já vira. O chão coberto de flores tinha um padrão em mármore branco e verde.

Os leitos, cobertos de veludo vermelho estavam distribuídos ao redor de duas enormes mesas em forma de meia lua; o do Papa ocupava o espaço perto da parede do fundo na abertura entre os extremos das mesas e estava elevado sobre um soalho.

Havia músicos no espaço livre entre as duas mesas semicirculares e a suave cascata de notas de harpas e cítaras se misturava com o lamento das flautas.

Sobre as paredes curvas, os espetaculares afrescos dos doze apóstolos dominavam as brilhantes roupas de sedas e veludos dos convidados.

Um rígido Cristo bizantino aparecia em um mosaico atrás do leito do Papa, com a mão elevada para benzer o pontífice enquanto jantava.

Os apóstolos dos afrescos não eram rígidos nem formais. Passeavam em grupos através da exuberante beleza de um estio romano. Pareciam camponeses descansando na hora da sesta sob as árvores carregadas de frutas e folhagens, contemplando os prados cheios de papoulas de cor vermelha e o trigo amadurecido e dourado nos campos. O leão de Marcos brincava como um gatinho na alta vegetação verde. A águia de Mateo voava como um falcão à caça. Pedro passeava sob uma árvore, suas chaves no cinto, as redes barradas a seu lado.

—Antonius! — Disse Regeane tristemente.

—Sim. - Respondeu Lucila. - A princípio pensei que era uma loucura que ele rondasse por essas tolas oficinas de pintores, moendo cores, engordurando-se com o gesso e o estuque, quando Adriano podia lhe patrocinar, lhe assegurar uma brilhante carreira na Igreja. Mas quando vi o que ele fazia... Ai, nós os pobres romanos, afundados em muita barbárie, ainda encontramos consolo na beleza. Como se fosse importante. – Ela adicionou com amargura.

—E é. - Disse Regeane, ainda olhando a magnífica pintura.

—Sim. - Respondeu Lucila pensativa. - Sim, você tem razão. Talvez estas coisas sejam nossa imortalidade. Talvez nos recordem por elas quando todo o resto virar pó.

Elfgifa estava atrás do leito de Regeane. As amigas de Augusta armavam um grande alvoroço com respeito a ela. De fato, vestida com roupa de adulta, seu cabelo trancado com pérolas como Regeane, ela parecia uma pequena e perfeita mão.

Uma mulher vestida com as sóbrias roupas de uma monja abriu caminho entre as reunidas e se apresentou:

—Sou a Abadessa Emilia e a menos que me equivoque, - ela disse assinalando à menina. - Ela é Elfgifa.

As damas ao redor da menina se afastaram para deixar que a Abadessa Emilia se aproximasse. Emilia ficou em frente a Elfgifa com as mãos nos quadris, com uma expressão desaprovadora no rosto.

—Tia Emilia. - Disse Elfgifa.

—Não me venha com essa de "Tia Emilia", menina má. Seu pai está louco de preocupação por sua culpa.

O lábio inferior de Elfgifa começou a se sobressair, o que Regeane reconheceu como um sinal de perigo.

—Não foi culpa minha que os piratas me capturassem.

—Sim foi. - Retumbou Emilia. - Sabe muito bem que lhe disseram a não te afastasse para brincar com os filhos dos pescadores. Nossa costa não é segura, - explicou ao resto das pessoas. - Os homens do norte rondam por toda parte, tentando pegar os nossos como escravos e vendê-los aos gregos. Seu pai temia haver te perdido para sempre. De fato, - Emilia agitou seu dedo na face de Elfgifa, - cresceste tanto que até se ele a tivesse encontrado, não sei se a reconheceria.

Elfgifa olhou para Regeane.

—Por que sempre dizem que cresci? O que esperam ao passar minha idade, que encolha? Você também cresceu, - ela disse a Emilia, - aqui. — A pequena estendeu seus braços em um gesto ao redor de sua cintura. - Está robusta.

Uma onda de suaves risadas dissimuladas percorreu o grupo de mulheres ao redor de Emilia.

—Que ultraje! — Disse Lucila. – Jovenzinha! Nenhuma palavra mais. Saúda sua tia como é devido com um beijo na face. Acredito que a caminho daqui tivemos uma discussão sobre as diferenças entre a conduta particular e a pública.

—Recordo. - Disse Elfgifa, parecendo arrependida e culpada.

Emilia pregou seus braços e olhou à menina.

—É Elfgifa, certamente. — Ela sorriu abertamente e beliscou à menina na bochecha. - A palavra que buscas é, "gorda".

Elfgifa parecia irritada.

—Meu pai diz que "gorda" não é agradável, - Ela insistiu. – É robusta.

Emilia soltou um alarido de risada.

—É filha de meu irmão em tudo. Ele sempre está me chateando com minha cintura, sempre que nos vemos, embora faça já alguns anos da última vez. Que Deus o benza. Eu lhe digo que não se deve confundir a piedade com a miséria. Minhas damas no convento passam o tempo dedicadas as obras de caridade. Cuidamos dos órfãos, visitamos os doentes, alimentamos e damos proteção aos peregrinos que vêm a nossa porta. Acreditem-me, quando uma moça passa a noite velando ao lado da cama de um homem agonizante ou um longo dia dirigindo a educação de um punhado de revoltosos jovenzinhos, não pode sentar à mesa e encontrar uma terrina de papa aguadas e algumas fatias de pão negro. Nós os trabalhadores nas vinhas de Cristo precisamos manter nossas forças.

—Estou segura de que o fazem. - Murmurou Augusta. - Agora, quanto à menina...

Elfgifa se voltou e olhava acusadora para Regeane.

—Vai me enviar para longe, verdade? — Ela correu para Regeane e se jogou em seus braços.

Regeane pegou à menina e a elevou, colocando-a sobre seu quadril. Elfgifa pôs os braços ao redor do pescoço de Regeane e apoiou a face contra a dela.

Por um momento, Regeane se sentiu afligida pelo carinho. A intensidade da sensação a fez tremer.

—Não quer ir para casa? Sua Tia Emilia cuidará bem de ti até que seu pai possa vir te buscar. É uma mulher amável.

—Sim. - Disse Elfgifa. - Mas me fará estudar minhas lições. E me falará continuamente do bom e do mau. Se sair para brincar, atuará como se fosse um pecado e me fará trabalhar na cozinha e esfregar as panelas. Não me permitirá subir em árvores e terei que ficar dentro de casa quando chover. E me dirá, se erga ou nascerá uma corcunda nas costas. E mais, não te suje o vestido. Meu pai diz que se usar roupa se supõe que se suja, E...

Lucila ergueu a mão, colocando fim na narrativa de Elfgifa.

—Deveriam ter te chamado Cabezota e não Elfgifa. Regeane te quer. Tente não lhe causar mais dor que o necessário. Além disso, um pouco de trabalho e disciplina te fará bem. Em seguida será devolvida a seu pai e poderá ficar selvagem, como de costume.

—Oh, céus! — Disse Emilia, elevando os braços. - É verdade. Ele trata à menina como se fosse um dos homens deles, como se seus pensamentos e opiniões tivessem importância.

—Isso é porque têm. - Disse Lucila. - É a filha de um Guerreiro, não? No mínimo se converterá na senhora de uma grande casa.

Emilia pareceu aturdida e logo lançou um rápido sorriso a Lucila.

—Nunca tinha visto dessa forma, mas suponho que tem razão.

Lucila se dirigiu a Elfgifa:

—Regeane a envia com Emilia por que... No momento, é muito mais seguro. Ela a quer bem e quer o melhor para ti.

A menina jogou a cabeça para trás e seus profundos olhos azuis olharam com tristeza para Regeane.

A mão livre de Regeane acariciou os suaves cachos da parte de atrás do pescoço de Elfgifa.

—Quero que esteja contente e a salvo, pequena. – Ela lhe disse em voz muito baixa. – E você não estaria contente nem a salvo comigo. Quero vê-la com pessoas que lhe queiram e possam cuidar bem de ti. — Meneou a cabeça. - As circunstâncias... — As palavras lhe falharam por um momento e seus olhos se encheram de lágrimas—. As circunstâncias, neste momento, impedem que eu o faça.

Elfgifa olhou solenemente para Regeane por um momento, e depois apertou os braços ao redor de seu pescoço. Seu suave beijo foi um sussurro de amor e confiança contra a face de Regeane.

—Serei boa. – Ela prometeu. - Tentarei fazer o que me diz Tia Emilia.

—Mãe, - disse Augusta., - O Papa vai a seu leito. O festim está começando e devemos nos reclinar.

Regeane baixou Elfgifa e se encontrou envolvida no rápido e inesperado abraço de Emilia.

—Obrigado por sua compaixão, nunca saberá o quanto felizes nos fez ao nos devolver a menina. Meu irmão a adora. Tem nossa eterna gratidão.

A abadessa partiu rapidamente para unir-se às outras monjas ao outro lado da sala.

Lucila fez um gesto com a cabeça para Regeane, como se fossem simples conhecidas e também se afastou para seu leito, perto do extremo da mesa.

Regeane ficou quieta por um momento, contemplando-a, com a Elfgifa segura pela mão e Augusta a seu lado.

—Que estranho. – Murmurou. - Deve ser um dos personagens mais poderosos em Roma, mas a conveniência faz com que...

—Silêncio! - Cortou severamente Augusta enquanto dava um rápido olhar a seu redor. - Alguém poderia te ouvir. Minha mãe é uma contínua desgraça e confusão para mim, - ela adicionou com ar de martírio. - Tem uma fortuna suficiente para viver modestamente, como seria adequado para uma matrona romana e se consagrar à Igreja e ao alívio dos pobres. Mas em vez disso se mistura abertamente com os elementos mais baixos da cidade. Mete-se em política e outras matérias impróprias de uma mulher de classe. E acima de tudo, continua vendo um homem cuja companhia deveria evitar como ocasião de pecado.

Regeane conteve a réplica mordaz que já estava formando em sua mente. Elfgifa interrompeu seus enfurecidos pensamentos:

—Vamos comer novamente?

—Sim. - Disse Regeane autoritária. - É o costume aqui e como convidadas devemos honrar nossos anfitriões.

—Não me queixei. - Respondeu Elfgifa em tom ferido. - Só era uma pergunta.

 

                                                   CAPÍTULO 15

A música era formosa e relaxante. A conversa entre os convidados, civilizada e tranqüila; a comida e os muitos vinhos uma complexa tapeçaria de cor e sabores, uma cascata de riqueza.

Regeane ficou assombrada, mas encantada, pelos primeiros pratos do banquete. Ela e Elfgifa desfrutaram dos tordos e patos refogados em um molho de vinho branco, sua carne impregnada do doce sabor dos figos usados para cevá-los.

Augusta lhes lançou um olhar de desaprovação, contentando-se com uma salada de endívias, agriões em azeite, um pouco de mel e um pouco de vinho.

—Na minha idade, tenho que vigiar meu peso. Deveriam ter mais cuidado. – Ela advertiu animosamente. - Os hábitos alimentícios de agora os seguirão toda a vida.

Elfgifa provou respeitosamente um pouco de salada e torceu a face pelo sabor amargo dos vegetais.

Estavam sentadas perto do leito do Papa e Regeane viu que Adriano sorria ante a reação de Elfgifa e lhe enviava um prato de sua própria mesa.

—Para a menina. - Disse o sorridente criado quando o apresentou a Elfgifa.

Augusta se enrijeceu de aversão ao ver o conteúdo do prato: peras cozidas em mel de canela e vinho, em um molho ligeiro espesso e com algumas pontas de ovo.

Elfgifa ignorou a advertência de Augusta de que danificaria seu apetite para o jantar.

—Não importa. Eu gosto do que há agora.

Os serventes levaram a pesada baixela de prata lavrada e os convidados lavaram e secaram os dedos. O garçom principal derramou água de rosas sobre suas mãos.

Elfgifa deixou entrar a água de rosas pelo nariz ao tentar cheirar a água perfumada e lavar as mãos ao mesmo tempo. Começou a espirrar violentamente.

Rígida de fúria, Augusta permaneceu reclinada sobre seu cotovelo direito, como se Elfgifa não existisse, enquanto Regeane vermelha pela vergonha tentou reparar o dano e deter os espirros limpando a face de Elfgifa com um guardanapo molhado na mesma água de rosas.

—Oh, céus! — Ela sussurrou completamente exasperada. - Não pode deixar de alvoroçar embora seja um instante?

A pequena face de Elfgifa se franziu como se estivesse a ponto de chorar. Regeane se arrependeu de suas palavras.

—Sinto muito. - Disse a menina. - Não pretendia fazer isto, mas a água cheirava bem e eu quis...

—Silêncio. - Disse Regeane, enquanto segurava a face da pequena entre suas mãos e beijava sua fronte. - Boa garota. Agora, não chore.

Elfgifa se negou a ser consolada e deixou cair à cabeça.

—Por isso quer se liberar de mim? Porque não sou uma boa garota? Devo ser má, porque todos me dizem continuamente o que não tenho que fazer E... Oh! Olhe que bonito! — Ela disse, esquecendo seu pesar como uma sombra passageira.

Um dos serventes estava oferecendo taças aos convidados, cada uma com a forma de uma flor diferente.

—Posso escolher a que queira? — Perguntou Elfgifa ao servente quando ele se deteve ante elas com a bandeja. A menina se agitou com deleite. - Eu gosto do girassol... Não, a campainha. Não sei. A açucena é tão bonita...

—Não seja tão pesada. - Disse Augusta com voz terrível. - Tome uma decisão e não a mude.

Elfgifa se encolheu e seus dois grandes olhos azuis se tornaram lagos de lágrimas imediatamente.

—Não seja cruel, Augusta. - Interveio Regeane. – Ela é só é uma menina.

—Já me dei conta. - Vaiou Augusta. - Uma desagradável, suja e odiosa pequena...

Elfgifa pareceu ferida e se apertou contra o flanco de Regeane.

Regeane pôde sentir sua própria irritação levando o sangue de sua face e passou o braço pelos ombros de Elfgifa.

—Sim. – Ela disse brandamente. - Pode escolher a que mais você goste.

—Acredito que prefiro a campainha azul. - Lhe sussurrou Elfgifa enquanto olhava assustada para Augusta.

Regeane deu uma olhada no servente. O bonito jovem estava olhando para Augusta com aversão.

—Muito bem. Eu ficarei com a açucena, e — ela adicionou malevolamente. - Como te pareceu bonito, Augusta terá o girassol.

A açucena de Regeane era de estranho cristal transparente, com pontos brancos nas pétalas, enquanto que a de Elfgifa era de um azul pálido rajado com marcas de safira mais escuras, cada uma elaborada para se fazer pensar no delicado colorido das flores da primavera.

A bebida servida nas taças era um vinho de sobremesa. Regeane escolheu um doce feito de passas, Elfgifa um aromatizado com rosas e Augusta, como era de esperar, tomou a bebida com fragrância de violetas.

Uma jovem passou pela abertura entre as mesas e ocupou seu lugar perto dos músicos. A conversa entre os convidados se foi detendo enquanto esperavam que ela começasse a cantar.

—Não parece grande coisa, não é? —disse Augusta.

De fato, aos olhos de Regeane, aquela moça vestida com simplicidade era anódina, a beira da fealdade. Tinha o cabelo escuro e seu rosto de maçãs altas se distinguia só por um nariz farpado, mas quando começou a cantar, Regeane esqueceu o corpo alto e fraco e a face quase feia.

A voz da moça era um fio dourado de beleza líquida. A flauta a acompanhava com uma triste e cadenciosa melodia. Cantava uma singela letra sobre um poeta que pediu aos deuses que respeitassem a vida de sua amada. A voz da moça e as poesias líricas frases do poeta pintaram um arrebatador retrato de uma jovem necessitada e encantadora golpeada por uma cruel enfermidade, o terror e o pesar de seu amante.

Regeane se encontrou com os olhos cheios de lágrimas, mas Augusta não pareceu absolutamente comovida pela música. Quando a moça saudou os presentes e saiu ao acabar a canção, ela fez uma inspiração e disse:

—É Dulcina, outro dos casos de caridade de minha mãe. Encontrou-a rondando pelos botequins. A menina era uma escrava e seu amo não a alimentava muito bem. Ela cantava para comprar um pouco de comida extra com os poucos cobres que os paroquianos atiravam a seus pés. Agora, graças ao patrocínio de minha mãe, ela é o entretenimento mais popular de Roma. Mas, valha-me Deus, Propertius aqui, nada menos.

—Propertius? —Perguntou Regeane.

—O autor do poema ao qual Dulcina colocou a música. Que apaixonados são os versos sobre sua Cintia, que deploráveis. Muitos clérigos os desaprovam. Mas essa é minha mãe: sempre uma sentimental; Apesar de todo seu cínico palavrório, ela acredita no amor.

Regeane recordou Adriano e Lucila juntos, sua unidade inclusive na dor por Antonius e ante o fracasso e provavelmente a derrota.

—Pode ser que seja porque conheceu o amor.

—Tolices. - Disse Augusta. - Tolices. Essa aborrecida, mas devo admitir, proveitosa conexão deve ter rompido há muitos anos. Agora não é mais que uma fonte de problemas para os dois. Não é tanto por estar apaixonada, como por ser uma sentimental. Mas notei que nunca deixa que os sentimentos se interponham na hora de destruir seus inimigos.

Regeane não respondeu, mas reconheceu para si que, por mais que odiasse admitir, Augusta tinha um pouco de razão. Havia percebido certa inclemência em Lucila e pensou desapaixonadamente que, se falhasse em encontrar uma cura para Antonius ou conservá-lo oculto, provavelmente ela lhe faria pagar o preço.

Elfgifa estava relaxando.

—Eu gosto da música, é bonita. – Ela disse. - E a taça é preciosa, mas vão nos dar mais comida?

Os lábios de Augusta se estreitaram em uma linha cruel enquanto olhava com ferocidade para Elfgifa.

—Acreditei que depois de atacar como uma cerda essas peras, já não teria...

—Uma cerda! — Exclamou Elfgifa e durante um segundo, Regeane viu o selvagem chefe bárbaro que era seu pai gravado nos traços da menina. Sua boca era firme. Os pequenos olhos azuis tinham um brilho resistente.

Regeane rodou sobre si mesmo, imobilizando Elfgifa sobre o leito com o peso de seu corpo.

—Quieta. – Ela sussurrou no ouvido à pequena, que se debatia. - Pare agora mesmo. Não se atreva a armar encrenca aqui.

Elfgifa ficou rígida, queixando:

—Ela chamou-me de cerda...

- Não importa do que a tenha chamado. - Respondeu Regeane em um rouco e furioso sussurro. – E ela não te chamou cerda. Queria dizer que você comeu muitas peras e isso é certo.

—É surpreendente. - Disse Augusta. – A forma em que você e minha atordoada mãe criam essa menina. É errado. O que ela necessita...

Regeane elevou o olhar e viu que Adriano as observava com uma careta ardilosa no rosto. Parecia achar a função em seu leito tão interessante ou mais que a dos músicos. Sentiu que sua face lhe ardia.

—Por amor de Deus, deixem de discutir agora mesmo. As duas. – Ela suplicou. – O Papa está nos olhando. Estão dando um espetáculo.

Augusta lançou um gélido olhar de desprezo ao Regeane e Elfgifa.

—Eu nunca dou espetáculo.

—Muito bem. - Disse Elfgifa ressentidamente e dedicando um olhar igualmente desagradável a Augusta. – Eu a agüentarei por ti.

—Obrigado. - Disse sarcasticamente Regeane. Sentiu um agradecimento bem mais sincero ao ver que os serventes entravam com o prato principal.

Quando o jovem criado sobriamente percorreu as mesas recolhendo as delicadas taças em forma de flor, deteve junto a elas e sussurrou brandamente para Regeane:

—Parece que a jovem dama, - ele disse assinalando Elfgifa com um gesto de cabeça, - gosta da taça que escolheu e Sua Santidade lhe roga que a aceite como um presente.

Elfgifa lançou um olhar triunfante a Augusta e levou a taça ao peito.

Os olhos de Augusta eram como adagas.

Regeane, muito cansada das duas, concentrou-se torvamente em selecionar o jantar de entre a quantia que lhe oferecia. Decidiu por um lombo de javali jovem coberto por um delicioso molho de ameixa,e um prato de ouriços de mar com pimenta. Augusta se conformou com uma truta cozida em um molho de mel e amêndoas. Elfgifa compartilhou o javali de Regeane, mas torceu o nariz ante o pescado e os ouriços de mar.

Ao primeiro bocado de javali, os olhos de Regeane se fecharam com deleite e ela conseguiu esquecer-se temporalmente de Elfgifa e Augusta. Perdeu-se no prazer de comer um prato perfeito, soltando um suspiro pesaroso quando ela e Elfgifa o deixaram limpo.

A predição de Augusta resultou ser falsa. As peras não tiveram efeito sobre o apetite de Elfgifa, e Regeane voltou sua atenção aos ouriços de mar.

Os pequenos salgadinhos picantes proporcionaram o final perfeito para uma experiência que Regeane considerou mais sutil e de uma vez espetacular que um simples jantar. Estava procurando em sua mente palavras para descrever a satisfação que sentia quando as palavras de Augusta irromperam em seus pensamentos.

—Uma jovem solteira não deveria ser vista comendo tal prato em público, querida. - Disse condescendente Augusta. - Se dizem que os ouriços de mar são mais afrodisíacos inclusive que as ostras.

—O que é um afrodisíaco? —Perguntou Elfgifa.

Os músculos nas têmporas de Regeane deram um brusco puxão quando a loba tentou, sem êxito, jogar as orelhas para trás.

—Não importa. - Disse com impaciência.

Estava alongando a mão para um prato de azeitonas quando viu Gundabald.

A sala se voltou imprecisa enquanto o terror percorria seu corpo.

Gundabald estava sentado no extremo da mesa em frente à sua, com o Hugo ao seu lado. Absorta na comida e as disputas entre Augusta e Elfgifa, Regeane não o vira antes.

Ele captou seu olhar e elevou a taça para ela, com um petulante sorriso na face.

Os dedos de Regeane apertaram o veludo de seu leito enquanto tentava se levantar. E de ter sido o bastante forte, o cego terror que sentiu ao ver seu tio e o cruel significado de seu sorriso a teria posto em pé e a feito fugir as pressas.

Mas não podia fazer nada absolutamente. A sala estava dando voltas. As náuseas retorceram os músculos de seu estômago. Sentiu que sua pele ficava banhada pelo suor de pânico.

A loba tentava ir a sua ajuda, mas estava presa em seu corpo pela luz: as tochas que resplandeciam nas paredes, as velas nos adornos do teto, as colunatas que separava a sala do jardim em sombras... Com tantas velas, as colunas pareciam estar envoltas em chamas.

Os sons eram fortes e vozes e música se misturavam.

Regeane compreendeu que a loba estava em seus olhos e orelhas e que a sala brilhantemente iluminada era um lugar de terror para ela. As luzes a deslumbravam, a multidão apinhada e o forte aroma adocicado da comida e o perfume azedando a carne quente e úmida, o som de vozes rugindo como uma corrente em seus ouvidos.

Regeane deixou cair à cabeça sobre as almofadas. A voz de Augusta trovejou como um fluxo de tormenta em suas orelhas, cacarejando com fingida simpatia.

—Minha pobre querida, tomaste muito vinho?

Muito vinho? Regeane sabia que não tinha bebido tanto, só alguns goles das bebidas servidas com a comida e o vinho de passas na taça em forma de flor não tinha sido suficiente para embebedá-la. Não a menos que houvesse algo mais nele.

A escuridão alagou seu cérebro, esfumando as bordas da realidade. A bílis a afogou enquanto lutava com a loba assustada com todas suas forças pelo controle de seu corpo.

Havia vozes a seu redor e ela se deu conta de que através da cascata de som podia ouvir Gundabald e Hugo, ouvi-lo falar, distinguir suas palavras entre as de outros a seu redor. E a loba ouviu, ouviu com a intensidade de uma criatura que podia ouvir o sussurro da asa de uma traça ou um camundongo entre a vegetação ou a pegada de um gato à espreita.

—Já parece enjoada, - dizia Gundabald. - Nossa protetora nos serviu bem. Podemos tomá-la na confusão...

Então os perdeu ao desvanecer o poder da loba. A sala inteira parecia estar movendo e as luzes eram um borrão de brilho, mas a náusea se deteve por um momento.

Regeane resistiu ao adormecimento, procurando tempo para pensar.

Tombada junto a ela, Elfgifa a olhava com desconcerto.

Na face de Augusta, Regeane viu um olhar de satisfação.

Regeane se dobrou e sussurrou à orelha de Elfgifa:

—Vá ao Papa e lhe diga que chame a seu guarda. Estão a ponto de nos atacar.

A menina a olhou consternada durante um momento,e então atuou, escorregando para trás fora do leito.

Augusta gritou irritada, tentando prendê-la, mas a pequena estava já sob a mesa.

Elfgifa emergiu três leitos mais abaixo, arrastou-se sob a mesa e começou a caminhar para os músicos reunidos ante o soalho do Papa.

Regeane viu os olhos de Augusta cravando aqui e ali enquanto procurava alguma forma de deter a menina. Ela sorriu pelo pânico que sentia. A dignidade de Augusta a impedia de se agachar sob a mesa para perseguir Elfgifa. Em vez disso, Augusta pegou a taça em forma de campainha e a sustentou sobre o duro chão de mármore, captando o olhar de Elfgifa.

A batalha de vontades que teve lugar foi breve, mas encarniçada.

Regeane viu as expressões que aconteciam na face de Elfgifa: desmaio, medo por seu tesouro, pesar e por fim, raiva. O pequeno corpo se enrijeceu e Regeane viu novamente nos traços de Elfgifa, o saxão que era seu pai; seus olhos ardiam com um fogo azul quando se virou, ignorando Augusta e a taça e continuou sua marcha diretamente para o leito do Papa.

Regeane ouviu o ruído da taça ao estrelar-se contra o solo, assim que Elfgifa chegou ao assoalho. A menina vacilou, mas não deu nenhum outro sinal de tensão.

Um dos homens sentados perto de Adriano fez um gesto para deter a menina, mas Adriano lhe deu AA boas-vindas e a sentou a seu lado. Um instante depois ela estava lhe sussurrando ao ouvido.

Regeane viu que Adriano se voltava rapidamente para um leigo de rosto duro que estava perto. O homem ficou em pé e saiu a toda pressa.

O zumbido da conversa entre os convidados decaiu durante um instante, para se tornar mais intenso enquanto um arrepio de ansiedade percorria os presentes. Havia levado a menina algum tipo de mensagem?

Regeane se tentou levantar novamente.

—Não se atreva. – Disse-lhe Augusta, fazendo com que se sentasse. - É descortês se levantar em um banquete antes que o anfitrião.

Mas o Papa já estava em pé, dirigindo-se a seus convidados:

—Meus amigos... —disse.

Regeane se retorceu, tentando fugir da mão de Augusta. A estadia ondulava a seu redor.

Cascos de cavalo trovejaram na rua empedrada perto da praça em frente ao palácio. Regeane ouviu um grito de terror absoluto:

—Os lombardos! Os lombardos!

A estadia fez erupção a seu redor quando os convidados começaram a fugir, derrubando os leitos, as mesas e inclusive os altos candelabros em sua carreira.

Regeane foi tirada a puxões de seu lugar, com um braço retorcido em suas costas por Hugo. Os convidados fugiram entre gritos, pisoteando alguns deles em sua fuga.

A face barbuda e picada de varíolas de Gundabald se inclinou sobre ela, a polegadas da sua própria. Deu-lhe alguns suaves tapas na bochecha.

—Tenho uma jaula para lobos, - ele disse em voz baixa. - Uma jaula e um colar de ferro. Não voltará a fugir.

Depois de falar, deu uma bofetada na face ao Regeane, lhe jogando a cabeça para trás. Um brilho de dor se cravou em seu crânio. Por um momento, ela ficou cega e surda. Depois, uma asfixiante onda de sangue encheu sua boca e garganta.

Regeane pode ouvir a atemorizada choramingação de Hugo a suas costas:

—Depressa, Pai. Depressa, antes que ela mude.

—Não pode mudar. - Respondeu Gundabald com uma risinho perverso. - Há muita luz.

Regeane sentiu o frio contato dos grilhões de ferro em sua garganta. Louca de medo debateu-se contra a presa de Hugo, abaixando a cabeça para evitar o colar e a cadeia e viu a mão de Gundabald afastando-se para lhe dar um novo golpe.

Atrás dela, Hugo afrouxou a pressão sobre seu braço.

—Estou em chamas, - Regeane o ouviu dizer em tom incrédulo. - Estou em chamas! – Ele repetiu, assombrado. - Estou em chamas! — Ele gritou soltando o braço de Regeane e fugindo para as fontes lá fora.

No cérebro de Regeane, a loba parecia ter enlouquecido. Arremeteu-se contra Gundabald, procurando seus olhos com as unhas. Ele saltou para trás, tentando lhe dar um golpe com a corrente. Perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente sobre o chão de mármore.

Regeane se voltou. Um escuro corredor que levava ao interior da vila parecia chamá-la. Perto, Elfgifa estava dançando, gritando com deleite:

—Eu coloquei muito fogo! Atirei-lhe todo o azeite do abajur em cima!

Regeane pegou o braço da menina e empreendeu uma carreira cambaleante. Pareceu passar uma eternidade antes que conseguisse alcançar as sombras. Perguntou-se que droga haveria colocado Augusta no vinho de passas.

Empurrou Elfgifa com força.

—Corra por sua vida! Hugo a matará!

Ouviu o ruído dos pés afastando-se às pressas e o grito de Emilia.

Ao dobrar uma esquina, o corredor se tornou negro de repente. Os olhos da mulher já não poderiam ver nada. A loba tomou o controle, puxando-a ao chão. A mudança foi uma selvagem convulsão. Não a encantada e etérea escuridão da lua que flutuava como um véu, mas uma terrível onda de prata que rompeu sobre ela, enviando-a em uma negra ressaca de loucura.

Seu corpo se retorceu e a respiração saiu de seus pulmões entre gemidos. A droga se consumiu em seu corpo em um brilho de luz.

As patas da loba pisotearam a seda e brocado de seu vestido quando emergiu livre e triunfante. Só teve alguns instantes para se repor, quando Gundabald lhe aproximou uma tocha dos olhos.

O fogo a deslumbrou por um momento, mas ela podia cheirar... Um aroma de comida e perfume rançoso. E, sob eles, o azedo mau cheiro de um corpo com o qual estivera familiarizada durante muito tempo.

Fez-lhe frente com um rugido de fúria primitiva que pareceu estremecer as paredes a seu redor. Por um instante, Regeane quis com uma absoluta pureza de propósito desconhecida para a humanidade, sentir que seus dente se cravavam na branda carne da garganta de seu tio.

Gundabald se retirou. Sua face havia empalidecido inclusive à luz da tocha. E fugiu por onde havia chegado, para a segurança do triclinio.

 

 

                                                                    CONTINUAR

 

 

                                                       CAPÍTULO 16

A loba correu para a Basílica Luterana. Cheirava mais limpa que o palácio. A crua fúria e dor em seu coração afastaram à mulher como se nunca tivesse existido. Fugiu em busca das limpas e verdes colinas além da cidade.

Em alguns momentos, estava trotando entre as altas colunas que suportavam o telhado da igreja e que pareciam um bosque de mármore aos olhos da loba.

A enorme igreja estava inundada nos aromas de incenso e cera das velas, misturados com a fresca umidade de um edifício resguardado durante muito tempo da luz solar. Um lugar tão inocente como as clareiras do bosque que enchiam os sonhos da mulher. E então, de repente, a luz das tochas além dos portais da catedral cintilou em seus olhos.

A raiva queimava ainda no coração da loba. Correu para as tochas sem saber o que procurava: um inimigo ao qual combater ou a liberdade a alcançar?

Deteve-se derrapando na sombra, junto ao lugar onde Adriano enfrentava aos lombardos. Estava sozinho. A mulher, agora uma figura remota na mente da loba, não o advertira a tempo.

A praça estava cheia de soldados lombardos a cavalo, todos armados até os dentes.

Adriano havia elevado os braços para ordenar silêncio.

 

 

 

 

—Por que vêm aqui? Como se atrevem a ameaçar o vigário de Cristo?

As tropas pareciam retroceder, apinhadas, acovardadas pelas palavras do Papa.

Mas Basílio se adiantou até a vanguarda.

—Tudo terminou. – Ele gritou a Adriano. - Tomamos a fortaleza de Nepi, Palestrea e Piou, e agora Roma é nosso prêmio. Renda-se a mim antes que o passemos pela espada.

Das sombras, a loba podia ver o perfil de Adriano sobre ela. Era uma cabeça de César em uma moeda de prata, inflexível, de mandíbula forte e boca firme sob o nariz afilado como uma folha, seus olhos como pedra refletindo a luz das tochas. Clérigo e ao mesmo tempo guerreiro. Com ameaças ou sem elas, a loba soube que nunca se renderia.

A loba ouviu um golpe, um ruído de ruptura de madeira e pedra. Chegaram gritos da profunda escuridão da praça. Havia luzes em cada janela e balcão. Estava congregando uma multidão que chegava de cada bairro da cidade, pronta para proteger à Papa.

Os cavaleiros lançaram olhares inseguros por volta dos recém chegados, mas...

 

 

 

 

                                         

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