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A LUZ E AS TREVAS / Taylor Caldwell
A LUZ E AS TREVAS / Taylor Caldwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A LUZ E AS TREVAS

Primeira Parte

 

Capítulo I

A tempestade passara sobre Paris e fora seguida de um silêncio oco e sem ecos. Mas uma pátina úmida e lívida se formara sobre os telhados caóticos, que uma lua incerta, envolta em véus esfarrapados, cobria, a intervalos, de um prateado opaco. A neblina subia rapidamente do rio, transformando-se em nuvens pálidas sob a ação do luar, pairando como fumaça sobre a cidade. Aqui e ali, os telhados dos prédios mais altos lembravam os contornos de navios despedaçados, vogando ao luar, e as torres de Notre Dame, a uma distância enganadora, pareciam vastas sombras, suaves e irreais.

O nevoeiro avançava num silêncio sem remorsos, espraiando-se pelas ruas, inundando-as. Mas ainda não chegara àquela ruela, de casas velhas e malconservadas. Os andares superiores projetavam- se sobre as pedras prateadas do calçamento, e as janelas, estreitas e protegidas por gelosias, estavam às escuras. As sarjetas, imundas, gorgolejavam. A rua ora ficava nas trevas, ora era iluminada por um luar vago, dependendo de a lua se esconder atrás das nuvens ou pular para fora delas, como se estivesse sendo perseguida.

Não havia luz de qualquer espécie naquela ruela torta e estreita, pouco mais do que um beco, levando a outros becos ainda mais apertados. Mas, não; uma luzinha tremeluzia através de uma fresta na janela ao rés-do-chão. Era tão fraca, tão espectral, que só um olhar desesperado poderia descobri-la.

A cidade, à meia-noite, parecia morta, pelo menos vista daquela rua, onde não havia qualquer ruído, apenas uma quietude letárgica. De repente, essa quietude foi quebrada pelo eco distante de pés correndo, por um respirar ofegante e o barulho de passos apressados. A respiração transformou-se em soluços exaustos e agoniados. A lua voltou a aparecer, projetando o seu brilho pálido por toda a extensão da ruela. Um homem corria, tropeçava, olhava, como louco, em redor, dando a impressão de procurar refúgio ou abrigo.

Parecia desesperado, ofegante e descabelado. Na mão direita carregava uma espada desembainhada. A noite estava fria, demasiado fria para que ele andasse sem casaco. Tinha a camisa, branca, rasgada, e, na manga direita, via-se uma mancha escura e úmida, ao passo que da sua face direita escorria um filete de sangue. Á lama e a água tinham-lhe empapado o gibão e as botas. Seus longos cabelos estavam grudados na cabeça, como se tivessem sido mergulhados na água. Acabava de emergir do rio, no qual pulara pata fugir aos seus perseguidores. Mas não conseguira escapar-lhes: a pequena distância, embora escondida por um ângulo da rua, podia ver a sombra avermelhada de uma tocha, assim como ouvir o barulho de pés correndo.

Era um homem jovem, tinha boa vista e, ao luar, via que o fim da rua não tinha saída e que, formando um ângulo reto com ela, havia um outro beco. Deu um pulo para a frente, tropeçou e estacou, tremendo. Não ia ter tempo de alcançar aquele beco. Seus perseguidores iriam vê-lo. Estava exausto. Não podia prosseguir.

Seu olhar, desvairado, bateu nas portas trancadas das casas miseráveis que ladeavam a ruela. Arrastou-se, trêmulo, para debaixo de uma sacada, procurando aliviar a dor, que parecia querer arrebentar-lhe o coração. Olhou para trás, para a esquina que acabava de dobrar. Acabaria morto ali mesmo, na rua. Não havia saída. Num abrir e fechar de olhos, os seus inimigos cairiam em cima dele.

Nisso, viu tremeluzir uma vela, perto de onde ele estava. Deu um pulo na direção da luz e olhou para dentro. Um velho estava sentado a uma mesa, numa sala nua e paupérrima. Uma única vela, enfiada numa garrafa de vinho, espalhava um pouco de luz junto do seu cotovelo direito, permitindo-lhe ler um livro de grandes dimensões. O jovem olhou por entre as frestas das gelosias. Sua emoção era tão intensa que, mesmo correndo perigo mortal, ficou impressionado com a maneira lenta e meditativa com que o ancião virava as páginas e inclinava a cabeça.

Havia uma porta perto dele. O jovem empurrou-a com toda a força. A porta cedeu com um ranger doloroso. Ele não esperava que ela cedesse, e deu graças a Deus em voz alta. Viu-se num corredor escuro e úmido, que cheirava a poeira e a ratos. À direita, uma porta dava para a sala que ele vira da rua. A porta estava entreaberta. O desconhecido abriu-a, entrou e tornou a fechá-la, passando o ferrolho.

O velho, espantado, levantou os olhos e soergueu-se com uma expressão de alarme. Viu diante de si um jovem, o rosto e os lábios muito brancos, armado de uma espada e sangrando. Reparou nos seus olhos escuros e enlouquecidos, nas roupas pingando, e soltou um grito abafado.

Mas o desconhecido já estava olhando para a porta, disfarçada por cortinas, que comunicava com um quarto sem janelas e às escuras. Uma jovem, despertada pelo grito do velho, surgiu à porta, de camisola de dormir, as tranças castanho-claras caindo-lhe sobre os ombros. Agarrou uma das cortinas rasgadas, como que para se proteger, ao ver o estranho e feroz visitante que acabava de entrar.

Num momento ele avançara três ou quatro passos e se colocara atrás dela. Ergueu a pistola e encostou-a nas costas macias da moça. O velho ficou de pé, junto da mesa, como que hipnotizado. À moça não se mexeu nem virou, mas o seu rosto ficou imóvel e cinzento, e a mão agarrou com força a cortina.

O jovem falou por entre os dentes, em voz baixa mas em tom ameaçador:'

— Estou sendo perseguido. Vão ver a luz. Apague a vela!

Aguçou os ouvidos.

— Não, é demasiado tarde. Já entraram na rua. Já viram a vela. Vão desconfiar. Não demora que batam à porta. O senhor vai dizer-lhes que eu não entrei aqui. Se não me obedecer, a moça morre. Imediatamente.

O velho afundou lentamente na cadeira. A mão, enrugada e inchada, caiu pesadamente sobre o livro aberto. O pavor espalhou- se no seu rosto barbudo. Não podia ver o desconhecido, mas via os olhos arregalados da moça, fixos nos dele.

— Quem é o senhor? — perguntou, num sussurro.

O homem invisível não respondeu, mas não havia dúvida de que tinha ouvido. Da rua chegou um tumulto de vozes roufenhas e furiosas, e, através das gelosias, penetrou um vislumbre de luz vermelha. A jovem continuou sem falar ou sem se mexer, mas as juntas das mãos estavam brancas como cera.

Ouviu-se forçar a porta. Ela cedeu, e vários homens penetraram no corredor e bateram na porta trancada.

— Abram! Abram a porta, em nome de Sua Majestade e do Cardeal! — Abram a porta — disse o homem invisível, num murmúrio.

O velho conseguiu pôr-se de pé. Durante um momento, olhou para a moça, e seus lábios tremeram. Ela devolveu-lhe o olhar aflito. O ancião avançou para a porta e abriu-a. Dois mosqueteiros, envergando a farda de Monsieur le Cardinal, entraram com tal violência que o velho quase caiu para trás. Do lado de fora, no corredor, avistou os rostos grosseiros e vermelhos de outros mosqueteiros. Um deles segurava uma tocha. Todos empunhavam espadas desembainhadas.

— Que é isto? Que desejam, messieurs? — perguntou o velho, numa voz fraca.

Os homens ofegavam. Não responderam logo, mas olharam para a moça. Por fim, um deles falou:

— Não viram um homem? Ele não se refugiou aqui?

— Não há ninguém aqui, a não ser eu e a minha neta, messieurs.

Olhou para os corpos pesados, para os rostos brutais dos mosqueteiros, e um brilho estranho iluminou-lhe os olhos pálidos e afundados.

— Quem é o homem? — perguntou. — Algum ladrão? Um assassino?

Um dos mosqueteiros riu, selvagemente.

— Pior, vovô. Um huguenote. Mais do que isso, está conspirando contra o Rei e o Cardeal. Jura que não o viu?

O velho respondeu, numa voz mais forte e controlada:

— Não, não o vi. Estava lendo para a minha neta e preparando-me para ir para a cama.

À luz da vela, os mosqueteiros olharam para ele com desconfiança.

— É estranho — disse um deles, evidentemente o chefe. —

Ele não teve tempo de alcançar o fim deste beco. Só pode se ter refugiado numa destas casas.

Alguém gritou, da rua:

— Sangue! Sangue, aqui na soleira!

O chefe olhou severamente para o velho.

— Há sangue na soleira da sua porta, vovô! O criminoso passou por aqui. Tem certeza de que não viu nem ouviu nada?

— Já disse — respondeu o velho, com serena energia. — Se duvidam da minha palavra, revistem a casa. São só três cômodos; não lhes vai levar muito tempo. Aquele ali é o quarto da minha neta. Mais adiante fica a cozinha, onde eu durmo. A seguir, há um corredor, que vai dar num beco que passa nos fundos da casa. Podem procurar à vontade.

Olhou para a jovem. Por um momento, as pálpebras brancas da moça descaíram-lhe sobre os olhos, mas ela não se mexeu. Viu como que uma convulsão perpassar-lhe a boca pálida, mas, com a simples força do seu olhar, compeliu-a ao silêncio e à imobilidade.

Os homens hesitaram. Um deles deu um passo à frente, mas logo estacou. Os olhos duros e ferozes dos homens do Cardeal examinaram o velho de alto a baixo. Mas ele encarou-os calmamente.

— Por que não revistam a casa? — repetiu.

Uma expressão de dúvida estampou-se no rosto dos mosqueteiros, e o chefe disse, impaciente:

— Estamos perdendo tempo. É evidente que ele não está aqui. Deve ter se escondido nalguma destas malditas casas.

Encaminhou-se para a porta, e os homens seguiram-no, olhando ameaçadoramente para o velho. O rosto da jovem empalideceu ainda mais, dando a impressão de que ela ia desmaiar. O velho estava de pé, com a luz da vela batendo-lhe no rosto, e nos lábios barbados. A porta fechou-se atrás dos homens do Cardeal. Lá fora, ouviram-se as altercações iradas deles, o ruído dos seus pés correndo. A luz vermelha da tocha bruxuleava por entre as gelosias. Ouviu-se a voz do chefe, berrando ordens:

— Armand, fique perto da casa e vigie, e você, Jean, também. Eu e os outros vamos revistar todas as casas da rua. Ele não pode ter ido longe, maldito seja!

Fez-se silêncio na sala miserável, cujas paredes caiadas estavam repugnantemente manchadas de umidade e velhice. A luz da vela tremulava. O velho voltou para a sua mesa, espevitou o pavio e curvou-se sobre o livro. Seus lábios mal se moveram num sussurro:

— Cécile, volte para a cama, minha filha.

A moça ficou à espera, os olhos fixos no avô.

— Sim, volte para a cama — murmurou o homem invisível.

— É melhor.

A moça recuou lentamente. Havia uma cama pobre no quarto às escuras. Deixou-se cair nela. A palha da enxerga estalou, sob o seu peso-pluma, e ela suspirou profundamente. O visitante permaneceu atrás das cortinas rasgadas.

O velho virou uma página do livro. Lia, realmente, e os seus lábios moviam-se silenciosamente, à medida que os seus olhos iam devorando as linhas impressas. De repente, como se tivesse esquecido o forasteiro, começou a ler em voz alta, e o homem atrás da cortina percebeu que aquela era a sua maneira habitual de ler:

— “Livre é todo aquele que vive conforme deseja; que não pode ser violentado, cerceado ou compelido; cujos impulsos não são freados, cujos desejos atingem os seus objetivos, que não faz aquilo que deseja evitar. Quem, pois, quererá viver em erro? Ninguém. Quem quererá viver iludido, impelido a cair, injustiçado, desvairado, lamentando abjetamente a sua sorte? Ninguém. Portanto, nenhum homem mau vive conforme gostaria e, por conseguinte, não é livre.”

Havia uma grandeza tranquila e misteriosa naquelas palavras, ditas em voz baixa e melodiosa, que se sucediam como os compassos de uma música solene, entoada pela alma para si mesma, nas profundezas de uma paz radiante. O efeito era extraordinário. A sala vazia, fria e sombria, iluminada apenas pela luz daquela vela bruxuleante, que projetava enormes sombras sobre as paredes rachadas, impressionava pela quietude e majestade. Era impossível acreditar que a violência irrompera recentemente naquela sala. Uma imobilidade secular parecia tomar conta dela. E o homem por trás da cortina escutava, atento e espantado.

— Epitectus! — exclamou, por fim, num murmúrio alto.

E riu, incrédulo.

— Não há dúvida de que o senhor está familiarizado com os filósofos — disse o velho, sem erguer os olhos do livro. — Como não há dúvida de que, falando em voz alta, se ouve da rua.

Seus olhos não se desviaram da página que lia, e passou, lentamente, para outra.

— Além do mais, desconfio de que ainda estejam nos vigiando através das gelosias.

O desconhecido não respondeu. O velho debruçou-se ainda mais sobre o livro. Seu rosto tinha uma fina e singular nobreza, nos contornos e no nariz alto e estreito. Até mesmo a barba, grisalha e maltratada, lhe dava um aspecto clássico, aristocrático e melancólico. Era quase calvo; apenas uma fímbria de cabelo grisalho lhe contornava o crânio estreito e frágil. Suas roupas eram paupérrimas e cheias de remendos. Suas mãos eram tortas e calosas, mas com dedos compridos e delicados, que tremiam levemente. À medida que os seus olhos iam varando as páginas, a luz da vela revelava- lhes o azul pálido e a serena intensidade.

— Quem é o senhor? — murmurou o jovem.

O velho não respondeu logo. Terminou a página e passou para outra. Quando, por fim, respondeu, foi sem erguer os olhos:

— O meu nome não tem importância, mas, se faz questão de saber, é François Grandjean. Sou um dos encarregados da conservação do Palácio da Justiça. Também sou bretão.

Hesitou e perguntou, mal movendo os lábios:

— E o senhor? -

Após longa hesitação, veio a resposta, também murmurada:

— Meu nome é... Arsène.

O murmúrio estacou abruptamente.

— E, naturalmente, o senhor não é varredor. Nem sequer morador desta cidade.

Um sorriso cansado perpassou os olhos e os lábios do ancião.

Recostou-se, suspirou, passou a mão pelos olhos, bocejou, deixou pender a cabeça. Olhou, fatigado, para a vela, levantou-se e fechou o livro, com mãos trêmulas. A capa era de couro finíssimo, embora velha, e tinha a encimá-la uma coroa dourada, que a mão do velho tocou reverentemente. Tornou a bocejar, pegou na vela embutida no gargalo da garrafa e ergueu-a. Sentia ainda o olho agudo e redondo do mosqueteiro espiando através da gelosia.

Voltou-se de costas para a janela e sussurrou:

— Vou entrar no quarto da minha neta e, dali, para a cozinha. Pode me seguir.

Avançou, sem fazer barulho, na direção da cortina, sempre segurando a vela. Ouviu o desconhecido recuar. A luz da vela mal abria uma brecha na escuridão do quarto. O velho olhou apenas para a neta, deitada na humilde cama. Tinha puxado as cobertas rotas para o queixo, e os seus olhos azuis brilhavam silenciosamente. Neles não havia medo, apenas firmeza. Assim, deitada, via-se que era muito jovem. Devia ter pouco mais de quinze anos e possuía a mesma nobreza de feições do avô, o que lhe conferia uma grande beleza. O ancião inclinou-se sobre ela e beijou-lhe amorosamente a testa.

— Boa noite, minha filha — disse. — Deus lhe dê um sono tranquilo.

Dirigiu-se para os fundos do quarto, abriu a porta e deixou-a aberta. A luz da vela apagou-se. Tanto a sala quanto o quarto ficaram na mais completa escuridão.

Aos ouvidos do jovem chegavam a suave respiração irregular da moça e o som da chuva caindo.

— Obrigado, mademoiselle — murmurou. — Sinto ter sido forçado a assustá-la.

Esperou que ela dissesse algo, mas a moça permaneceu calada.

— Sinto profundamente — sussurrou ele.

Depois, esgueirou-se em silêncio para a porta dos fundos, abriu-a e saiu, fechando-a atrás de si.


Capítulo II

Quando Arsène entrou na cozinha, viu o ancião ajoelhado na lareira, reavivando velhas brasas e acrescentando-lhes pequenos gravetos. Colocara a vela em cima de uma mesa nua e manchada, e a sua luz revelava a pobreza daquela cozinha sem janelas, com um teto oblíquo e inclinado, e paredes cujo reboco apresentava fendas. A umidade pingava do teto e escorria pelas paredes, em gotas, que refletiam a luz do fogo e da vela, reluzindo como se fossem minúsculas bolas de prata. A cozinha continha um armário de madeira, torto e cheio decanecas, jarros e pratos de madeira, uma mesa com a perna quebrada e um banco de pau. No chão, a um canto, junto da mesa, via-se uma enxerga de palha, coberta de trapos. O chão era de pedras irregulares, com as fendas cheias de umidade e sujeira.

Arsène parou um momento na soleira, encostado ao umbral, pois sentia-se fraco e exausto. Arquejava. Nas mãos, segurava ainda a espada e a pistola. O velho continuou a reavivar o fogo, como se estivesse sozinho e não visse o forasteiro apoiado à porta. Assim que o fogo começou a estalar na lareira de pedra recoberta de cinzas, colocou sobre ele uma vasilha de ferro, cheia d’água. Após um momento de hesitação, Arsène pousou a pistola e a espada em cima da mesa. A luz das chamas brilhava no cabo da espada, que era de ouro, todo trabalhado e incrustado de pedras preciosas. O jovem hesitou, suspirou, sentou-se no banco, apoiou o cotovelo na mesa e a cabeça na mão. O sangue ainda lhe umedecia a manga, e um filete descia-lhe da face, passando por entre os seus dedos brancos.

Fechou os olhos, voltou a abri-los e olhou com curiosidade para o velho.

— O senhor é valente — disse, numa voz fraca e forçada.

François Grandjean olhou por cima do ombro, ainda ajoelhado na lareira. Seus olhos de um azul pálido tinham um brilho inescrutável, como se achassem aquilo divertido.

— Não sou tão valente assim — disse ele, na sua voz calma. — Vi logo que o senhor não mataria Cécile, mesmo que eu o traísse. Nem sequer me mataria.

O jovem olhou para ele e riu abruptamente.

— Que conclusão singular! O que o fez pensar assim?

O velho levantou-se e esfregou as mãos para sacudir as cinzas.

— Já vivi muito e conheci muitos homens. O senhor não é um assassino.

O jovem ficou calado.

— Não obstante — continuou François —, o senhor já matou. Talvez várias vezes... não é assim?

Arsène continuou calado. Seus olhos escuros estudavam François, com um brilho duro, frio e altaneiro.

— Também eu — disse François, calmamente — já matei. Mas, como o senhor, só por necessidade e sempre com arrependimento.

Arsène não fez qualquer comentário. Apenas perguntou, curioso:

— Se acha que eu não teria matado a moça ou o senhor, por que me protegeu?

François mergulhou um dedo na vasilha de ferro, a fim de experimentar a temperatura da água. As chamas vermelhas do fogo e a chama amarela da vela misturavam-se na cozinha escura e fétida.

— Sou bretão — disse ele, por fim —, e desde épocas imemoriais os bretões são homens do mar. Quem ama o mar tem um coração cheio de mistérios e nunca é enganado.

Arsène meditou sobre essas estranhas palavras, que não pareciam responder à sua pergunta. Mas estava muito cansado e fechou novamente os olhos.

— Quem ama o mar não é vítima de mentirosos — acrescentou François.

Aproximou-se de Arsène e tocou-lhe na manga de seda branca, rasgada e manchada de sangue.

— Monsieur, se quiser tirar a roupa. ..

Arsène olhou com indiferença para o braço.

— Não é nada. Apenas um arranhão provocado por uma bala.

— Tentou levantar-se, mas deixou-se cair de novo sobre o banco.

— Preciso ir embora — disse, numa voz abafada. — Vão continuar a me procurar. A minha presença aqui é um perigo.

— Mais perigo será se o senhor sair — retrucou François. — Eles ainda estão lá fora, esses diabos a soldo de Richelieu. Vão pegá-lo e não terão piedade de quem o escondeu.

Sorriu.

— Eu nem sequer teria a desculpa da sua ameaça, pois me diriam que, em nome do Cardeal e de Nossa Senhora, deveria tê-lo traído à custa da própria vida.

O seu tom de voz traduzia ao mesmo tempo ironia e amargura. Arsène olhou para aquele rosto romano e sorridente, e o seu interesse aumentou.

— Quer dizer que o senhor acha a vida assim tão valiosa? — perguntou, varrendo a côzinha com o olhar.

— Acho-a menos temível do que a morte — replicou François.

O perigo que passara e o que agora sofria pareciam ter roubado a Arsène toda a coerência. O rosto do velho flutuava, como que solto no ar, diante dele. Comentou, infantilmente:

— É estranho encontrar um estudante de filosofia num lugar como este.

— Não é mais estranho do que vê-lo aqui — respondeu François, com um olhar significativo para a espada de cabo de ouro e pedrarias.

Desabotoou as abotoaduras de pedras da camisa com mãos suaves. Arsène resistiu um pouco, mas logo se resignou a que lhe tirasse a camisa. Toda a resistência parecia tê-lo abandonado. François reparou na brancura e maciez dos seus ombros e do seu tronco, não obstante ser todo ele forte e bem formado. A luz da vela iluminava-lhe o rosto. Parecia ter ao redor de vinte e seis anos, e as suas feições não podiam ser mais perfeitas. Os olhos eram grandes e escuros, mas duros, e à sua volta havia rugas de cinismo, astúcia e audácia. Apesar disso, a sua expressão era inteligente, viva e bem- humorada. Tinha uma bela testa, com fortes sobrancelhas negras, e cabelos espessos e compridos, da mesma cor dos olhos. O seu nariz era longo e aquilino, com narinas bem abertas, e as maçãs do rosto eram largas. A boca, embora grande, não era mole nem demasiado sensível, embora as comissuras parecessem mais acostumadas a sorrir do que a exprimir reveses. Era o rosto de um grão- senhor, mas não o de um nobre decadente, pois nele não havia fraqueza, langor ou elegância afetada. A sua pele era limpa e bem tratada, mas não perfumada, e o lenço que ele tirou do gibão, para enxugar o suor da face, não tinha beiradas de renda, mas era do mais fino linho.

Fez uma careta, quando os dedos estranhamente suaves do velho lhe examinaram a ferida, mas não se queixou. Na sua atitude não havia falsa bravura, e sim indiferença. Não obstante, acompanhou os movimentos do ancião com atenção.

— Tem toda a razão — disse François. — A bala atingiu-o de raspão, embora profundamente. O senhor perdeu muito sangue. Mas os jovens substituem rapidamente o sangue perdido, assim como substituem os sonhos pela realidade.

Havia algo de incomum no seu tom de voz, um quê de amargura.

— Isso quer dizer que o senhor prefere os sonhos à realidade? — perguntbu Arsène.

— Não existe realidade sem sonhos — murmurou François. distraidamente.

Mergulhou um pano em água quente e limpou a ferida. O jovem gemeu e retesou-se. O ferimento era muito profundo e borbulhava de sangue. François puxou as extremidades da ferida e se- gurou-as com os dedos, ao mesmo tempo que, com a outra mão, apertava firmemente uma região vizinha ao ferimento. Sorriu para Arsène com os seus olhos muito azuis.

— Aprendi isto cuidando dós animais, na fazenda da minha mãe — disse ele. — Num abril e fechar de olhos o sangue vai coagular, e o ferimento parará dè sangrar.

Fez-se silêncio na cozinha. A luz do fogo e a luz da vela dançavam juntas; Os dedos do velho eram fortes e firmes. A dor diminuiu. Passaram-se alguns momentos. Arsène começou a sentir a carne insensível, sob a pressão dos dedos de François. A ferida foi aos poucos parando de gotejar.

— Os sonhos e o misticismo deveriam ficar para os padres e outros mentirosos — disse Arsène. — Não são para gente honesta.

— Pelo contrário — murmurou François, examinando a ferida.

— São só para gente honesta. Os mentirosos e os charlatães ser- vem-se deles para oprimir e manipular os indefesos e os ignorantes. Enquanto os homens honestos não se apossarem deles, não haverá justiça no mundo, nem fé e nem progresso intelectual. Sem os sonhos, a honestidade, a misericórdia, a indignação e a coragem permanecem impotentes.

Pegou numa tira de pano e amarrou-a fortemente acima da ferida. A seguir, lavou o sangue do rosto de Arsène com gestos tão delicados como se ele fosse uma mulher. Voltou a sorrir para o jovem, um sorriso um pouco triste.

— O corte, infelizmente, vai lhe deixar uma cicatriz na face

— disse ele. — Mas a sua amada não vai se importar. Aos olhos das mulheres, um homem sem cicatrizes peca por falta de virilidade.

Arsène tentou sorrir, mas a fraqueza invadiu-o novamente, fazendo-o arquejar. O ancião colocou uma vasilha menor no fogo, retirou do armário uma garrafa e um caneco de latão e colocou-os na mesa.

— Num momento ficará pronto um bom caldo quente. Entre- mentes, beba este vinho. Não é de boa safra, nem tem um buquê excelente, mas restitui as forças.

Encheu o caneco com o vinho acre e levou-o aos lábios de Arsène. O jovem bebeu, fez uma careta horrível e afastou o caneco.

— É horrível — disse, francamente.

François não ficou ofendido. Levou de novo o caneco à boca de Arsène, que bebeu de novo e de novo resmungou.

— Autêntico veneno — disse, limpando a boca com o lenço.

François levantou a garrafa e olhou-a com tristeza.

— O pior é que você diminuiu sensivelmente a minha ração.

— Sinto muito — retrucou Arsène, com ironia.

Mas logo sentiu o vinho correr-lhe pelo corpo e dar-lhe novas forças.

— Os pobres têm necessidade de força e de violência — observou François. — Principalmente nos dias que correm. Mas sempre precisaram delas. Vinho forte para os oprimidos, vinho requintado para os opressores. No fim, tudo tem o seu significado.

Apontou para a enxerga.

— Agora, depois que tiver tomado o caldo, deite-se ali. Amanhã trataremos de o ajudar a fugir.

— Isso é que não, meu amigo. Tenho de ir embora imediatamente.

François abanou a cabeça.

— Na qualidade de meu hóspede, o senhor me põe em perigo, mas mais me poria em perigo indo embora. Não conseguiria ir longe, depois de tudo o que passou esta noite. Ou eles o descobririam, ou o senhor acabaria caído nalguma sarjeta.

Mergulhou uma tigela na sopa quente e estendeu-a a Arsène. O jovem achou-a quase tão má quanto o vinho, mas tomou-a.

— Engraçado! — murmurou, olhando em volta. — Sempre esposei a causa dos desgraçados, mas apenas de um ponto de vista intelectual. Nunca soube que vocês viviam assim.

François deitou-lhe um olhar penetrante, mas não respondeu. Passado um momento, disse:

— Não existe realidade, nem sonho, sem conhecimento.

Arsène protestou, ao ser conduzido para a enxerga. A verdade era que achava a sarjeta melhor do que aquilo. Mas François obrigou-o a se deitar e jogou os trapos malcheirosos sobre as pernas dele.

— Descanse — disse-lhe. — Amanhã será outro dia.

— Mas onde é que o senhor vai dormir?

— Em frente da lareira. Já dormi em lugares muito piores.

Estendeu o corpo velho e emaciado sobre as pedras, diante do fogo. O jovem ficou a olhar para ele, do seu enxergão de palha. As feridas não mais o faziam sofrer. Sentia apenas um grande cansaço.

— Mas aposto que já dormiu em lugares melhores — murmurou.

François não respondeu. Virou-se para o fogo e fechou os olhos.

Arsène também fechou os olhos. Ouviu a chuva e o vento, pois a tempestade voltara a cair, lá fora. Mas não pôde dormir logo. Os acontecimentos daquela noite surgiram novamente diante dele. Não gostava de matar, embora não por repugnância ou escrúpulo, e sim porque matar era violar a dignidade humana. As caras dos dois homens a quem matara nessa noite pareciam penetrar-lhe por entre as pálpebras fechadas. Um deles era jovem, ardente e'amigo de rir. Parecia muito dado a aventuras, e Arsène duvidava da sua adesão ao Cardeal. Suspirou. Enfiara a espada no flanco do rapaz e ele caíra, ainda sorrindo. Morrera apenas com um gemido de pena pelo término das aventuras. O outro, bem mais velho, era um fanático, cheio de ódio, e tentara matar Arsène, levado por uma espécie de compulsão mística. Arsène não se arrependia de o ter matado. Homens como aquele eram perigosos.

Ainda suspirando com dó do jovem, Arsène adormeceu, mergulhando num emaranhado de sonhos complicados. Ao amanhecer, os sonhos tinham se transformado em pesadelos, cheios de febre e de dor.


Capítulo III

Um dos sonhos de Arsène não foi exatamente um sonho, e sim uma recordação, estranhamente misturada com um pesadelo.

Parecia-lhe que voltava a ser criança e que estava diante de uma enorme roseira, coberta de grandes rosas príncipe-negro. Devia ser muito pequeno, pois tinha apenas uma vaga consciência da intensidade do sol, da grama, dos arbustos, de um lago cheio de cisnes, de aleias bordejadas de rosas e grandes árvores. Havia também um muro velho e branco, a parede dos fundos da casa de seu pai. Mesmo agora, no sonho, ele sentia uma profunda tristeza e nostalgia. Sentia o silêncio, como não o sentira quando criança; via as compridas sombras azuladas das árvores e ouvia o doce cantar dos pássaros. Não sabia por que razão a roseira, com suas grandes flores vermelhas, o fascinava tanto. Não gostava daquela espécie de rosas, cujo tom vermelho-escuro e cujas pétalas espessas lhe repugnavam. Além do mais, não tinham perfume, e ele sempre gostara de perfumes.

Fazia muito calor, naquele jardim no campo, e o sol inundava tudo de uma luz branca e brilhante, queimando-lhe a cabeça e os ombros. Mas, por alguma razão, ele não voltava para a frescura purpúrea da casa. Vira sua jovem mãe chorar, essa manhã. Não suportava vê-la em lágrimas, de modo que fugira para ali, e ali ficara, embora a governanta o tivesse chamado várias vezes. Sentia-se invadido por um ódio inexplicável.

Ouviu o murmúrio de vozes e olhou por sobre o ombro. Atrás dele, à esquerda, havia um caminho ladeado de arbustos, e era dali que as vozes vinham. Uma delas pertencia a seu pai. A outra, estranha, pertencia a um desconhecido. Arsène sentiu aumentar a raiva e a aversão, ao pensar naquele homem forte e elegante, monsieur, o Arcebispo de Paris. Sua roupa preta, com babados brancos no pescoço e nos punhos, seu rosto redondo e vermelho, com um sorriso xaroposo e velhaco, e os pequenos e faiscantes olhos azuis — tudo lhe era repulsivo. O arcebispo acariciara-lhe os cabelos, não fazia nem uma hora, examinara-o atentamente e abanara a cabeça com um suspiro de tristeza.

— Ah, é triste, muito triste — murmurara, finalmente. — Mas não demasiado tarde, Monsieur le Marquis du Vaubon.

Pronunciara o título com unção.

— Espero que não — retrucara o pai de Arsène, com um sorriso furtivo no rosto moreno e vulpino.

Era um homem nervoso e muito magro, inquieto, caprichoso e desconfiado. Não olhava diretamente para Arsène, quando falava. Mas a verdade era que raramente olhava de frente para alguém, com aqueles seus olhos pretos e brilhantes. Seu nervosismo manifestava-se num quase constante fungar, num menear com a cabeça, no sorriso torto e sem significação, no jeito de esfregar a orelha direita com o indicador, no tremer de ombros e na maneira rápida e desconjuntada de andar. Vestia-se com uma elegância quase exagerada, mas suas pernas eram finas, seus joelhos curvos e seus punhos, ossudos. Havia nele um quê de febril, uma certa incoerência de atitude, que despertava suspeitas nos outros. Sua voz era estridente, e às vezes engasgava embaraçosamente. Suas feições eram compridas e insignificantes, com uma boca estreita e um queixo recuado. Suas atitudes eram imprevisíveis, histéricas e femininas, o que o tornava ao mesmo tempo temido e desprezado pela família e a criadagem. Quando ria, o seu riso tinha uma nota de histeria. Era, além disso, um riso inesperado e provocado pelas coisas mais inexplicáveis, que não causavam vontade de rir nos outros. Para cúmulo, ele era anormalmente desconfiado. Suspeitava de falsidade, hipocrisia, complôs e mesquinharias por parte de todos e, quando se tratava dos criados, de ladroeira e velhacaria. Suspeitava menos da jovem esposa do que dos demais, mas até ela, a pobre e linda criatura, não ficava isenta das suas acusações.

Mesmo quando muito criança, Arsène se dava conta de que o pai vivia num clima crônico de ódio, terror e desconfiança de todos. Por causa disso, poucas pessoas o visitavam. A família vivia reclusa por trás das paredes brancas, Às vezes, Armand ia a Paris, secretamente, e sempre só. Sua mulher, Sabina, nunca o acompanhava, embora Arsène soubesse que ela nascera lá. Enquanto criança, Arsène não entendia o que provocava aquele medo constante em seu pai. Mais tarde, ficara sabendo que há pessoas que nascem assim, que vivem toda a vida como ratos, espiando, assustados, de dentro de um buraco. Desde o início rira do pai e o desprezara pelo terror sem motivos em que ele vivia. Detestava a sua elegância, os seus maneirismos, as suas explosões caprichosas e violentas, tão femininas na falta de lógica, o seu sentimentalismo doentio, nascido da autocomiseração e da auto-adoração. Mesmo quando era ainda pouco mais do que um bebê, Arsène percebera que o pai se considerava uma vítima da humanidade, um mártir, tanto da sua imaginária fragilidade física quanto das maldades e dos complôs dos outros. Para ele, todos os homens eram canalhas ou idiotas, e ele, Armand, tinha que estar eternamente em guarda para não ser traído. Arsène não se lembrava de o ter visto mostrar compaixão ou bondade para com uma única pessoa, exceto a esposa, e mesmo assim de mistura com demonstrações de desconfiança e exigências amorosas.

Não se deixando enganar pelo pai e nunca se furtando a mostrar a sua aversão infantil por ele, embora temperando-a com o respeito de toda a criança pela pessoa que lhe deu' a vida, Arsène era, não obstante, o favorito do pai. Talvez porque, na cor da pele, dos olhos e dos cabelos e numa certa veemência de atitudes, o garoto se parecesse com ele. Pelo filho mais novo, Louis, que era louro, de olhos azuis e nervosamente calado, como a mãe, sentia apenas indiferença e uma marcante irascibilidade. Na opinião de Armand, Louis não tinha espírito e ardor, atributos que julgava possuir em grande quantidade. Os acessos de gênio e violência de Arsène agradavam-lhe. Achava que o menino tinha um temperamento valoroso e aristocrático. Como muitos homens da sua estirpe, Armand era dado a ataques de afeto, quando menos nervoso. Louis e sua mãe, Sabina, fugiam deles com um misto de medo e timidez, mas Arsène, de temperamento menos sensível e possuidor, mesmo em criança, de um certo cinismo, suportava tranquilamente esses arroubos do pai. Isso encarecia-o ainda mais aos olhos de Armand, que demonstrava a sua gratidão pelo filho, mimando-o e dando-lhe belos presentes. Como decorrência da falta de disciplina, Arsène desenvolvera os seus defeitos naturais de egoísmo e sobranceria e, com eles, o seu crescente desprezo pelo pai. Se não possuísse também um estranho sentimento de justiça, uma boa dose de senso de humor, uma feroz independência e uma mente fria e lógica, ter-se-ia tornado insuportável, um desses jovens mimados e impossíveis, que fazem a vida intolerável para as pessoas menos prepotentes e mais sensíveis.

Tinha apenas uma vaga suspeita do significado da presença do Arcebispo de Paris, essa manhã, naquele lar hunguenote. Ainda na noite anterior, ouvira a mãe chorar, numa das suas raras ocasiões de revolta contra o marido.

— Não permito que esse monstro entre nesta casa, que foi do meu pai, do meu pai, que morreu em La Rochelle! Não permitirei que a sua memória seja difamada, que os seus ossos tremam na sepultura!

— A senhora parece esquecer-se, Madame, de que eu sou seu marido — retrucara Armand friamente, mas com aquela ameaçadora nota de histeria que nunca deixava de amedrontar a suave Sabina. — Esquece-se de que os homens têm razões que as mulheres não podem entender. "

— Entendo que sois ambicioso — replicava Sabina, as lágrimas correndo-lhe pelas faces.

Armand ficara um momento calado, fazendo-a pensar que ele nada diria, na sua indiferença por ela. Mas, de repente, ele explodira em gritos incoerentes, acompanhados de gestos violentos.

— Madame, alguma vez pensou até quando serei capaz de suportar viver na sua maldita Gasconha, no meio dos seus camponeses?

Arsène lera terror nos olhos azuis da mãe. Ela levantara-se e levara a mão ao rosto, como se tomada de um medo horrível. Mas murmurara, numa voz incrédula:

— Seria capaz de sacrificar a memória de seu pai e do meu... desses dois homens que lutaram juntos e abdicaram, de tudo... pela ambição? Seria capaz de fazer um pacto com o demônio e adorá-lo?

Armand olhara em volta e umedecera os lábios trêmulos. Por um momento parecera envergonhado e hesitante. Mas depois falara num tom furioso, que Arsène sabia se originar parcialmente nele mesmo:

— A senhora fala como uma traidora idiota! Henrique de Navarra disse: “Paris vale uma missa!”. . . Por acaso serei menos do que esse grande rei?

Sabina olhara longamente para ele, alta, esbelta e bela, com os seus olhos azuis fuzilando.

— Nem por Paris, nem pela França trairia os nossos pais, e sim por você mesmo, pela sua ambição mesquinha, pelo seu orgulho, pelo seu desejo de favores e alegria e de regressar a uma corte corrupta, pela ânsia de merecer um sorriso desse demônio que é Richelieu. Há muito tempo que sei disso. Não posso dizer nada para dissuadi-lo, bem sei, mas pense na maldição dos mortos!

Erguera a mão branca e trêmula, como se para amaldiçoá-lo, e ficara ali, tremendo, mas sem medo, cheia de orgulho, ódio e desprezo. Entre os cachos dourados do seu cabelo, o rosto dela tremia com uma luz pálida.

Armand saíra da presença dela, furioso. O arcebispo viera, mas recusara delicadamente o convite de Armand para ocupar uma suíte no château. Tanto ele como o seu séquito tinham se instalado desconfortavelmente na pequena estalagem da aldeia, cujo proprietário, ele próprio um huguenote, ficara muito honrado e tratara de espanar as suas imagens e os seus crucifixos — que escondera no sótão —, colocando-os em lugares bem visíveis. Depois, desencavara velhos livros de orações, relíquias da sua juventude, e era visto persignando-se frequente e assiduamente, para espanto e satisfação da sua devota esposa.

— Só um imbecil — dizia ele,— usa a mesma roupa, qualquer que seja o tempo.

O corpulento e elegante arcebispo, que sempre levava em conta os preconceitos daqueles a quem pretendia seduzir, não se dirigira, na manhã seguinte, ao château na sua carruagem dourada, nem usara as suas vestimentas mais requintadas. Fora a pé até o château, percorrendo a estrada poeirenta e pedregosa em solitária humildade, embora, se alguém estivesse presente para observá-lo, teria visto o arcebispo parar de vez em quando para enxugar o suor da testa e praguejar. Aparentemente, ele era um abade humilde e reverente, que ia visitar algum pecador recalcitrante, movido de caridade cristã. O calor e a poeira daquela manhã de verão não ajudavam a melhorar o seu gênio, mas o seu sorriso era fixo e suave na cara rotunda, ao ver Armand du Richepin à sua espera junto ao portão, incapaz de esconder a sua excitação.

Tinham passeado pelo jardim, conversando em murmúrios.

— Pode ficar certo, meu caro marquês, de que Sua Eminência não leva em conta os pecados dos pais, ao pensar nos filhos — disse o arcebispo. — Falei-lhe do seu convite, embora ele tivesse perguntado, naturalmente, por que não tinha ido a Paris falar comigo. Se a tivesse solicitado, ter-lhe-ia concedido permissão.

Armand murmurou algo ininteligível. Estava embaraçadíssimo. O que aprendera na sua juventude, os conselhos do seu pai, ainda o influenciava, e ele sentia desconfiança e medo do seu visitante. Mas, acima disso, levado pela sua febril ambição, desejava agradar, mostrar-se conciliador. Sempre que sentia falhar em si a força de vontade, tinha apenas que olhar para a mansão branca e nua e para aqueles campos escaldantes, que tanto odiava. Que horrível lugar de exílio! Para um temperamento como o dele, capaz de só se sentir feliz no meio de pessoas que o aprovassem, que desejava ardentemente viver a excitação, a alegria e as intrigas da corte e gozar da presença de muitas e encantadoras mulheres, a vida sossegada de um senhor da província era detestável, insuportável. Passara a infância e a adolescência em La Rochelle, e a lembrança da alegria e do movimento das ruas fazia-o consumir de saudades.

Embora muito criança, Arsène percebia vagamente essas coisas, pois possuía uma enorme intuição, baseada mais na astúcia do que na sensibilidade. Procurava ser indiferente, mostrar desprezo, mas, apesar disso, sentia-se excitado. Tinha alma de aventureiro, e a paz da vida rural já começava a aborrecê-lo, a torná-lo consciente de uma solidão que a presença do seu irmão, mais suave e tranquilo, nada fazia para aliviar. Sabia que, dentro de um momento, seu pai e o novo arcebispo o descobririam, ali à espera, e que o arcebispo de novo lhe passaria a mão pela cabeça e suspiraria, sorridente.

Agora, no sonho, ele também estava à espera. Só que, de repente, o sonho começou a ficar escuro, e o ar quente, a ficar frio. Uma sensação de terror tomou conta dele. Um horror se aproximava, pela aleia de arbustos. Não se podia mexer. A única coisa que conseguia fazer era tremer e procurar mover as pernas, paralisadas e pesadas com o pesadelo. O horror estava cada vez mais perto. » Ouviu o dobrar de um grande sino, lento e anunciador de morte. O dobrar de finados. Começou a soprar um vento, violento e terrivelmente frio. Soprava-lhe através do corpo, mas atiçava fogo dentro dele, em vez de frio. Tentou lutar contra o pesadelo, mas não podia mexer-se. Gritou. Ouviu o murmúrio de vozes, perto dele, e gritou alto. Foi então que despertou.

A primeira coisa de que teve consciência foi de uma dor imensa, envolvente e flamejante. Lembrou-se vagamente de que o seu grito fora rouco e doloroso. Sentia a garganta inchada, cheia de saliva, transpassada por lâminas de aço em brasa. Procurou mover o braço direito, mas não conseguiu levantá-lo. Diante dos seus olhos, flutuavam, alternadamente, a escuridão e centelhas de luz vermelha.

Tão intensos tinham sido a recordação e o pesadelo que ele esperava ver o rosto do pai e a cara do arcebispo. Mas, à luz bruxuleante da vela, viu apenas o rosto preocupado do velho François debruçado sobre ele, a sombra de um rosto pálido de mulher e as caras de dois desconhecidos, um deles velho e o outro jovem. A lembrança dos acontecimentos recentes ainda não, subira à superfície da sua consciência. Em meio à febre, tudo quanto podia era olhar desvairadamente, a respiração saindo-lhe, estentórea, da garganta torturada. Foi então que se lembrou vagamente de François Grandjean e da jovem Cécile. Olhou para eles, sem falar. Ainda estava deitado na enxerga de palha, a um canto da cozinha miserável, e sentia ora um frio de morte, ora um calor escaldante.

— Os ferimentos estão sarando — murmurou o velho desconhecido. — Você tratou-os muito bem, François.

— Obrigado, meu caro abade — retrucou François. — Mas a garganta é que me preocupa. Ele acordou antes do amanhecer, ontem, delirando de febre, sem saber onde estava. Pensei que fosse das feridas mas, quando lhe ouvi a voz, percebi que alguma doença tinha tomado conta dele. Foi ficando cada vez pior, e por isso o chamei, sabendo da sua capacidade.

Arsène ouviu essas palavras como se elas estivessem sendo ditas a uma tremenda distância, tal o eco que faziam nos seus ouvidos. Achavam que ele continuava delirando. Viu os dois velhos e o jovem afastarem-se. A jovem, nas suas pobres roupas, ajoelhou-se ao lado dele e aplicou-lhe na garganta um trapo com um ungiiento que ardia e cheirava mal. Arsène fez um esforço para se mexer, para falar, mas a sua voz lembrava a de um corvo ferido. Viu o rosto jovem da moça, cheio de compaixão e muito belo. Era ainda uma menina, mas compreendia o sofrimento, e a sua expressão era de quem amadureceu com a dor.

— Precisamos levantá-lo e carregá-lo para a câma de Cécile. Embora pobre, pelo menos é melhor do que esta enxerga — disse François. — Não pode ficar aqui, no chão frio, com esta febre. Acha que ele pode morrer, abade?

O velho abade hesitou. Olhou com tristeza para o doente, e a ansiedade toldou-lhe o rosto.

— Isso, só Deus é quem pode dizer — murmurou ele. — Você disse que não sabia o nome dele, nem a sua condição?

— Não, não sei. Já lhe contei como ele chegou aqui. Mas é evidente que ele não é como nós. As suas roupas, a sua espada, a sua maneira de falar, tudo indica que ele é um cavalheiro, um aristocrata. Só me disse que se chamava Arsène, nada mais. É fácil entender a sua desconfiança, a sua reserva.

O velho abade suspirou.

— Já pensou no que lhes poderia acontecer, a você e a Cécile, se ele morresse aqui?

— Já, já pensei — replicou François calmamente. — Mas não sei a quem chamar, não conheço ninguém que possa identificá-lo. E, embora corramos perigo abrigando-o, permitindo-lhe morrer em segredo, temos que confiar em Deus. A guarda do Cardeal estava atrás dele. Deveríamos chamar o Capitão dos Mosqueteiros do Rei? É evidente que ele não é um mosqueteiro, não é um soldado. Estava fugindo. Como, então, confiar nos homens do rei? Tratariam melhor um gentil-homem huguenote, sem dúvida o que ele é? Nada sei a respeito dele.

— Pode ser um criminoso — disse o abade, hesitante.

François abanou a cabeça, mas retrucou:

— Mesmo assim, deveríamos jogar um moribundo na sarjeta? O sofrimento deve provocar a nossa compaixão, seja quem for o sofredor.

— Você dá-me lições, François — disse o abade, humildemente. — Mas eu estava pensando em você, meu amigo.

Os três homens, os dois velhos e o jovem, levantaram Arsène, fazendo-o gritar novamente de dor. Carregaram-no para o quarto de Cécile e deitaram-no na cama dela. Arsène sentiu que lhe tinham tirado a roupa, que vestia apenas uma camisa branca e grosseira e que tinha as pernas nuas. Decerto desmaiara de novo, porque, quando voltou a abrir os olhos, sentiu que lhe aplicavam panos embebidos em água quente na garganta inchada, A moça segurava um caldeirão de água quente, no qual o abade mergulhava os panos que depois punha sobre a garganta de Arsène.

— Espero que não seja nada contagioso — disse François, aos pés da cama.

— Vamos rezar para que não — replicou o abade, com um suspiro. — Já vi criancinhas morrerem assim, sufocadas. Mas ele é moço e forte.

Os pés gelados de Arsène não tardaram a sentir o contato de uma pedra quente. Ele tremia de arrepios, suava de calor. Os dedos dos pés procuraram, ansiosamente, o conforto da pedra. Tinham empilhado cobertores sujos e rasgados em cima dele.

— Ninguém deve desconfiar da presença dele na sua casa — disse o abade. — Conheço um médico, mas, neste caso, não podemos confiar em ninguém. Temos que nos contentar em fazer o que pudermos e em rezar por ele.

François segurava uma vela. Era de noite. A luz da vela tremulava sobre o teto descascado e as paredes gotejantes. O abade continuava a tratar dele. Arsène, vencido pela fraqueza e pela náusea, fechou os olhos, que doíam horrivelmente. Parecia sentir apenas a garganta, e ela ameaçava fechar-se inexoravelmente. O ar que respirava lutava para chegar aos pulmões, lutava para sair deles. Ouvia o esforço que o seu coração fazia. Era como se tivesse um emaranhado de cordas na garganta e procurasse expulsá-las tossindo. Sentiu o gosto de sangue na boca.

Estou morrendo, pensou, com completa indiferença.

Sua mãe ficaria inconsolável. Ah, não, a bela Sabina morrera, havia dez anos, de sofrimento e solidão. Seu pai, aquele hipócrita mentiroso e apavorado, choraria a sua morte? Ou sentiria alívio? Alívio por não ter mais que se ^esconder, que inventar falsidade, que aplacar, suplicar e prometer? Arsène sorriu para si mesmo, com um misto de desprezo e compaixão. Tinha sido um fardo para o pai, que apesar disso o adorava servilmente. Agora, a sua morte seria para ele uma libertação. Mas seria também um golpe. Ao pensar nisso, Arsène esqueceu o desprezo que sentia pelo pai e ficou triste. Nunca até então sentira tristeza pelo pai. Quanto ao irmão, Louis, não pensava nele.

De repente, viu que estava sozinho e que no quarto escuro se ouvia apenas um ruído raspante. Passaram-se minutos, antes que ele se desse conta de que era a sua própria respiração. A pedra continuava quente nos seus pés. A dor na garganta diminuíra um pouco. Mergulhou num sono profundo.


Capítulo IV

Acordou sentindo-se tão fraco que pensou, horrorizado, estar paralítico. Havia em seu corpo um entorpecimento, uma insensibilidade, que o aterrorizavam, antes mesmo de ter aberto os olhos. Tentou falar, mas saiu-lhe apenas um grunhido da garganta, da qual, contudo, a dor felizmente fora embora.

Sobre os seus olhos havia como que uma película leitosa, que persistiu mesmo depois de ele ter recuperado a consciência. Finalmente a película tornou-se menos espessa, afastou-se, e ele pôde ver claramente.

Continuava deitado na cama da jovem Cécile, no quarto miserável e sem janelas, com suas paredes rachadas e manchadas, e o seu chão de pedra. Mas, da sala da frente, vinha um facho de luz brilhante e amarela, na qual flutuava uma poeira cintilante. As gelosias tinham sido removidas da janela, com os seus cantos de vidro em forma de diamante, e o sol penetrava por ela, atravessado por listras pretas e nítidas. O ar estava quente e muito parado. Arsène ouviu o pregão distante e estranho de uma peixeira, passando pela ruela, e o barulho das rodas de uma carroça sobre o empedrado da rua. A fraqueza era como um peso em cima dele, e de novo tentou falar, mas dos seus lábios saiu um murmúrio inaudível.

Ouviu alguém se mexer na cozinha escura, atrás do quarto, e a jovem Cécile entrou. Arsène viu-lhe o rosto pálido e calmo, e a cabeça, circundada por tranças de cabelo castanho-claro, meio escondidas por uma touca branca, orlada de babados. Reparou na tranquila nobreza da expressão da moça, triste e demasiado amadurecida para a sua idade. Era alta, e a sua esbeltez beirava a magreza. Mas movia-se com dignidade, e, quando sorria, os seus pequenos dentes pareciam muito brancos, entre os contornos róseos dos seus lábios macios. Vestia um corpete preto, que lhe delineava o busto alto e imaturo, e uma saia ampla e também preta, que subia um pouco à frente, deixando-lhe ver os pés, calçados em sapatos grosseiros. A sua maneira de vestir, a sua atitude reservada, o modo de andar sem fazer barulho, tudo fazia com que ele reconhecesse nela a marca da criada.

Cécile aproximou-se da cabeceira da cama e pousou a mão fresca na testa dele. Arsène sentiu-lhe a aspereza e as calosidades e estremeceu involuntariamente. A jovem olhou para ele, sem medo ou respeito, do fundo dos seus olhos azuis. Aquilo irritou-o, e ele perguntou, num murmúrio abrupto:

— Estive doente?

Ela não deu a perceber que tinha reparado no tom dele, ou na fria arrogância dos seús olhos. Sorriu de novo.

— Sim, monsieur. Muito doente. Há duas semanas que estou cuidando do senhor.

Ele ficou calado. Recordava-se agora, vagamente, das noites de pesadelo, dor e febre, cheias de sombras pretas e vermelhas e da presença constante daquela moça calada e expedita, cuidando dele. Fora a sua mão que lhe levara água fresca aos lábios. Fora o toque das suas mãos, suave e firme, que o aliviara; tinham sido as suas mãos fortes e jovens que haviam mudado o corpo dele, ardendo de dor, para um lugar mais fresco do lençol branco e grosseiro. Pensou nas noites sem dormir que ela devia ter passado, após ter trabalhado duro durante o dia; pensou nas coisas desagradáveis que ela devia ter feito para ele, no risco que ela tinha corrido. Não havia dúvidas de que ela era apenas uma criada, mas não o conhecia, e mesmo assim cuidara dele — um estranho, um fugitivo, cujo nome ela ignorava — com devoção. Por quê? Ah, decerto ela e o avô deviam ter visto que ele não era nenhum vagabundo, pela espada dele, pelos restos das suas ricas vestimentas, pela sua atitude e pela sua voz. Embora a febre só»o tivesse abandonado havia pouco, a sua mente continuava alerta.

Ela olhou para ele atentamente, e um pequeno raio de sol pousou-lhe na face e tingiu-lhe o cabelo de dourado. De repente, ela parecia ler-lhe os pensamentos tão claramente como se ele os tivesse traduzido por palavras. Corou, mas o seu rosto permaneceu calmo. Devolveu-lhe sem hesitar a frieza do olhar dele, e os seus próprios olhos tornaram-se orgulhosos e algo duros.

Não obstante, respondeu:

— A febre passou. O abade disse que o senhor está convalescendo e só precisa de atenção. Farei o que puder pelo senhor, quando voltar à noite, do trabalho.

Foi até um banco de madeira, onde estavam os calções dele. Debaixo deles estavam a espada e a camisa branca e rasgada. Arsène viu as abotoaduras da camisa, o ouro e as pedras brilhando ao raio de sol que entrava pela janela. Cécile enfiou a mão no bolso dos calções e dele retirou uma bolsa de seda, de que Arsène já não se lembrava.

Aproximou-se de novo da cama, a bolsa na mão. Ele ficou espantado com a expressão do rosto dela, dura e tranquila, e com o brilho acerado dos seus olhos azuis. Cécile colocou-lhe a bolsa perto da mão.

— Monsieur — disse ela, calmamente —, meu avô deu-lhe tudo o que tinha, ou seja, quase nada; privou-se, por sua causa, da pouca comida que pode comprar, do pouco leite e do pouco vinho, do pão para fazer sopas. Comprou unguentos para as suas feridas e salva para ajudar a combater a febre. É um homem velho e fraco. E bom. Muitíssimo bom.

Por um momento, a dureza da sua expressão deu lugar a uma incontrolável tristeza. Mas logo foi substituída por um olhar que tinha muito de desprezo.

— O senhor veio para esta casa sem ser convidado e ameaçando. Recebemos o senhor, escondemo-lo, tratamo-lo, embora o senhor estivesse quase morto e com medo da própria sombra. Nunca deixamos de ter velas acesas à sua cabeceira, nunca o deixamos só, enquanto o senhor se debatia na minha cama e delirava, gritando. O que fizemos pelo senhor não foi na esperança de qualquer recompensa, apenas rezando para não sermos castigados por isso.

Fez uma pausa, olhou para ele de maneira direta e penetrante, e prosseguiu, com toda a calma, mas com crescente desprezo e impaciência:

— Não lhe devíamos nada. Discuti com o meu avô, mas ele tem um coração tão grande que se compadece até de um cão ferido, caído na sarjeta. E o senhor veio da sarjeta para esta casa, não foi, monsieur?

Arsène estava espantado com a insolência dela. Uma criada, a quem até a lei mal considerava um ser humano, uma criatura a quem não se permitia uma palavra impertinente, que podia ser presa e surrada por isso, ou mesmo por ousar erguer os olhos para um seu superior! Mas ela não só era insolente, como ousava olhá-lo nos olhos, sem medo e com desdém.

Apesar da sua fraqueza e da imprudência dela, Arsène não pôde deixar de sorrir. Mas Cécile não sorriu. Aproximou ainda mais a bolsa da mão dele.

— Há quinze coroas de ouro na sua bolsa, monsieur — disse ela. — Contei-as na noite em que o senhor chegou. Não tocamos em nada. Mas agora o senhor vai precisar de boa carne, de muito leite, de comidas finas, para se recuperar o mais rápido possível. Não podemos pagá-las. Cabe ao senhor escolher entre uma convalescença rápida ou uma cura lenta e dolorosa. Suplico-lhe que escolha da maneira mais sensata, para nos vermos, o mais depressa possível, livres do perigo da sua presença e do cansaço que resulta de cuidá-lo.

Arsène estava cada vez mais divertido e curioso. Seus dedos frios e trêmulos tentaram abrir a bolsa. De repente, parou, olhou para a jovem, que parecia esperar, as mãos cruzadas no peito, os olhos dardejando, severos.

— Meu avô não lhe pediria nada — disse ela, friamente. —

Ficaria chocado, se soubesse que eu lhe disse tudo isso. Mas o meu avô é como uma criança, que precisa ser protegida, do senhor e dele mesmo. Entendeu, monsieur?

Abriu a bolsa e derramou as moedas de ouro sobre os dedos dele. Suas faces pálidas estavam agora coradas. Arsène riu, mas a sua risada mal passou de um murmúrio, tão fraca lhe saiu.

Sussurrou, com ironia:

— Mademoiselle, como a senhorita é boa! Não creia que sou ingrato. Reconheço na senhorita uma pessoa de grande bom senso. Fique com esse dinheiro e faça com ele o que quiser. Não lhe pedirei contas,

Se ele pensava que a desarmava, enganava-se. Ela pegou nas moedas, guardou-as e enfiou-as calmamente no bolso da sua saia. Depois, sacudiu o travesseiro, segurando-lhe a cabeça firmemente com a mão esquerda. Arsène sentiu toda a força e a juventude que havia nela. Cécile passou as mãos sob o corpo dele, sem qualquer mostra de embaraço, alisou o lençol e puxou as cobertas rasgadas para cima. Depois, foi à cozinha »e voltou com uma tigela de sopa. Sentou-se na beira da cama e levou-lhe a tigela aos lábios, segurando-lhe de novo a cabeça com o outro braço.

Arsène olhou para o rosto jovem e severo da moça, para os lábios rosados e firmes, e para os olhos azuis, tão belos e profundos, de expressão austera e contida.

Por um momento, não bebeu a sopa. Sorriu para ela e abanou a cabeça.

— Não, mademoiselle, não posso beber com um rosto como o seu tão próximo do meu. Parbleu! Um rosto desses faria qualquer homem ficar com febre.

Ela olhou para ele com exasperação e pressionou a tigela contra os lábios de Arsène.

— Monsieur — disse, severamente —, são quase seis horas. Estou muito atrasada. Beba, por favor, e poupe-me uma descompostura da patroa. É o mínimo que o senhor pode fazer por mim — acrescentou.

Ele bebeu, obedientemente, com docilidade exagerada. Por duas vezes se engasgou, pois ela fazia-o beber depressa demais, como se estivesse ansiosa por se ver livre dele. Não olhava para Arsène, e sim para o raio de sol, que aumentava sobre o chão de pedra.

A sopa era quente e rala, um caldo com sabor a carneiro e cebola. Arsène sentiu as forças lhe voltarem. Cécile pousou-lhe de novo e com impaciência a cabeça no travesseiro e levantou-se.

— Vou comprar-lhe bom vinho esta noite, melhor do que lhe demos até agora — disse ela, com ironia. — E também pão branco, manteiga e, talvez, um coelho, se houver no mercado.

Entrou de novo na cozinha e voltou com uma tigela vazia, algumas fatias de pão preto e um jarro de vinho, que despejou na tigela.

— Não é bem a comida a que o senhor está acostumado, mas vai ter que servir até que eu volte.

Pegou numa capa preta que havia aos pés da cama e colocou-a sobre os ombros. Arsène ergueu a mão com dificuldade.

— Posso perguntar-lhe — disse ele, na sua voz fraca — por que foi que fez tudo isto por mim, mademoiselle, quando é evidente que o fez contrariada?

Ela já estava na porta que separava os dois cômodos. Parou e olhou para ele, com uma cara que exprimia tristeza e desprezo ao mesmo tempo.

— Não precisa me agradecer, monsieur. Desprezo o que o senhor é e não lhe tenho estima. É ao meu avô que o senhor deve mostrar gratidão, pois eu lhe obedeço em tudo, embora ele seja igual a uma criança indefesa.

Dito isso, saiu, mas ainda ouviu o débil riso dele, como se ele achasse tudo aquilo muito divertido. O sangue subiu-lhe às faces, e ela murmurou algo, ao trancar a porta atrás de si.

Arsène devia ter dormido logo depois, porque, quando acordou, o quarto estava em total escuridão e a sala parecia inundada por uma luz cinzenta. Com os sentidos mais aguçados, ele podia agora distinguir o cheiro acre de poeira. O silêncio pressionava-lhe os ouvidos com melancólica insistência.

Mas ele estava mais consciente das forças que lhe voltavam e que lhe permitiam ensopar pedaços de pão no vinho amargo e comê-los. Horrível iguaria, mas Arsène ficou espantado com a sua voracidade. Aquela pobre gente dera-lhe do melhor que tinha: aquele quarto miserável, aquela magra comida.

Recostou-se no travesseiro mofado e pôs-se a pensar. Ocorreu- lhe, com surpresa infantil, que milhões de franceses viviam assim, milhões de criaturas anônimas, que nada sabiam das Tulherias e do Louvre, da Corte e dos teatros, dos salões de baile dos châteaux, de perfumes e de joias, de carruagens douradas e de grandes parques. Conheciam apenas ruelas malcheirosas, sujeira, fome, dor e doenças. Mas isso não devia ser novidade para ele! Não era tão estúpido assim.

Sim, eu sabia, pensou surpreso, mas ao mesmo tempo não sabia. Não sabia, porque nada disso me importava. Para mim, como para tantos outros, a França era a Corte, as intrigas dos cavaleiros, dos estadistas e dos jesuítas, propriedades e castelos, risadas em salões iluminados, guerras excitantes, galanteria, rendas e mulheres. Aqueles milhões de desgraçados, ignorantes e pisoteados, silenciosos e oprimidos, não eram a França. Não eram seres humanos. Viviam só para servir aos senhores e aos sacerdotes, a sem-vergonhas ricos e a mentirosos hipócritas. Não carregavam espadas, não faziam trapaças, não eram conhecedores de vinhos, não faziam complôs, não entendiam de modas, não conspiravam, não usavam rendas nem botas altas, não liam novelas obscenas nem compunham alegres epigramas. Em suma, existiam apenas como um mar escuro e imóvel, sobre o qual flutuavam os barcos de velas coloridas dos senhores. Um mar escuro e imóvel! Não, talvez um caos escuro e imóvel, à espera do primeiro relâmpago!

Mesmo sendo um huguenote, veemente, violento e desdenhoso, ele nunca pensara nas massas que formavam o povo francês. Como para todos os da sua classe, os da sua casta, o povo não existira. O povo que era a França.

O Cardeal Duque de Richelieu costumava frequentar a casa de seu pai depois que ele fora reintegrado na Corte, um bôtel nos Champs-Elysées. Arsène lembrava-se da sua cara sutil e satânica, dos olhos que pareciam ao mesmo tempo sobrenaturalmente ardentes e desumanamente frios. O homem fascinava-o, enchia-o de um ódio profundo mas sub-reptício, e ele vira com desprezo as demonstrações de servilismo do pai, os seus sorrisos nervosos e bajuladores. Ele, Arsène, limitara-se a sorrir e a ouvir, num silêncio cortês. Sabia que o Cardeal suspeitava dele, que não lhe tinha simpatia. Pior ainda, sabia que o tinha na conta de rapaz irresponsável, entregue às paixões próprias dos moços. Mas até que ponto o Cardeal sabia a respeito dele?

Tinha havido discussões, mas Arsène não conseguia recordar as frases elegantes e descuidosas que tinham sido ditas. Lembrava-se, porém, de uma coisa que o Cardeal dissera:

— Os homens não fazem as castas. A humanidade tende a mergulhar e a se erguer a certas camadas pela força de dotes inerentes, concedidos pela misteriosa vontade de Deus.

Arsène reconhecera, a contragosto, a agudeza daquela observação. Agora, deitado na cama de Cécile, sentia raiva da sua anterior ingenuidade. Espantava-o a sua imaturidade. Com uma única frase, o Cardeal dispusera de milhões de pessoas destituídas de luz e de esperança, ignorara o caos escuro e imóvel, fechara os ouvidos ao débil clamor do terremoto distante. (Só que ele ainda não sabia até que ponto aquela raiva tinha raízes no ódio e no medo que sentia do Cardeal.) Ficou abalado com aquelas revelações. O seu protestantismo fora apenas para ele, e para outros como ele, uma crença materialista, nascida não da indignação ou da compaixão, e sim do ódio das sutilezas, das superstições e do absurdo. No fundo, era uma expressão de revolta contra o pai e de horror às mentiras. Além do mais, tornara-se, para ele, uma doutrina exclusiva, que nada tinha a ver com religião ou dogmas, uma doutrina social, que interessava apenas a si mesmo e a outros da sua estirpe. Um modo de vida, adequado ao seu temperamento. Uma forma de se libertar de um mundo de elegância e de intrigas doentias.

Agora, vagamente (levaria ainda muito tempo para se tornar clara e poderosa), ele via na sua crença uma liberação para todos os homens, uma liberação da escravidão e da opressão, do sofrimento e da exploração, da servidão, da fome e da crueldade. Era como que a emancipação de incontáveis multidões, curvadas sob o açoite dos poderosos, atormentadas e sem horizonte.

Pela primeira vez na sua vida, dentro de si se agitou um sentimento de compaixão universal, de raiva e indignação impessoais. Por temperamento, ele era astucioso, ora frio, ora violento, ora atirado, ora cauteloso, amando a aventura pela aventura, com um gosto pela aventura nascido da sua natureza vingativa. Recordou, com alguma humilhação, que, nas poucas vezes em que pensara no povo, fora com um desprezo e um ódio tão grandes como os do Cardeal e os dos jesuítas. O mesmo desprezo e o mesmo ódio dos príncipes alemães, ao abraçarem o protestantismo. Para eles, o protestantismo não se originara da indignação ante a miséria do povo, e sim de um temperamento avesso às restrições, à supervisão e à obediência, aos tributos impostos por Roma. Fora uma revolta pessoal, que nada tivera com um sentimento de compaixão pelos servos ou com a angústia calada do povo. Fora a revolta de simples e violentos temperamentos t, atônicos, desgostosos com as intrigas e as hipocrisias dos latinos, contra as quais a sua ingenuidade pueril não tinha defesas. A rebelião de crianças grandes, que odiavam a diplomacia francesa e italiana e que, incapazes de compreendê-la, só podiam temê-la e desconfiar dela.

A sua mente, aguçada pela recente febre e pela fraqueza do seu corpo usualmente forte, elevava-se como um vento capaz de levantar formas fogosas e apaixonadas. A sua inteligência não era do tipo filosófico ou meditativo. Fora sempre uma inteligência rápida e enérgica, viva e sensual, embora dura e calculista. Nunca fora dado à espiritualidade, à poesia, à intuição. Robusto e ativo, ele se deleitara na ação e no perigo. (Mas, embora ele não soubesse, no fundo havia uma ânsia de justiça, de lógica e de horror à falsidade.) Desprezara quase tudo, e no entanto a sua vida fora passada em meio a risadas e a paixões sensuais. Bom, embora arrogante, egoísta, embora cheio de capacidade de amar, egocêntrico mas dotado de um forte senso de humor, ambicioso mas, às vezes, extraordinariamente generoso e mão-aberta, sempre achara a vida colorida e excitante, cheia de amigos e companhias alegres. Entre os que se ligavam a ele em complôs perigosos, havia homens de olhos brilhantes, palavras nobres e espírito de sacrifício. Eram poucos, e ele tinha sentido apenas desdém e vontade de rir deles. Tinha a certeza de que, com mais uma volta da roda, eles teriam sido jesuítas entusiastas. Por natureza, Arsène desconfiava de todos os fanáticos, fossem eles bons ou maus.

Agora, sentia dentro dele a primeira vaga, ainda indecisa mas já gigantesca, de consciência, piedade e fúria impessoal. Mas eram apenas sombras; na qualidade de sombras, o sol brilhante da realidade poderia vir a dispersá-las. Sentia o coração bater rapidamente e a fraqueza aumentar, à medida que sentia o espírito mais forte, como se querendo separar-se do seu corpo emaciado.

Pensou em François Grandjean e em Cécile. Continuava muito ingênuo e, no seu novo entusiasmo, pensava, infantilmente, que todas as pessoas pobres eram como eles. A sua natureza era tão emocional que a estabilidade impessoal era, para ele, uma lição difícil de aprender. Orgulhara-se de um certo desligamento cínico, e teria ficado humilhado se descobrisse que, na realidade, não era capaz de tal desligamento.

Agora, a escuridão era muito grande. Ouviu o barulho de uma chave e logo um vulto pequeno e encurvado entrar no cômodo da frente. Os seus movimentos eram silenciosos e cautelosos. Ouviu esfregar a pederneira contra o aço, e a luz de uma vela se acendeu subitamente no escuro. Viu que o seu visitante era um sacerdote muito velho e muito pequeno, de costas encurvadas e pés arrastando. Lembrou-se vagamente de ter visto aquele padre quando estava febril e de ter ouvido a sua voz suave.

Vela em punho, o velho abade aproximou-se do quarto. À luz do castiçal improvisado, que ele segurava alto e timidamente, o seu rosto aparecia vividamente iluminado. Arsène viu nele tristeza e bondade, acanhamentos e puerilidade. Tinha olhos castanhos e afundados, um grande nariz romano, uma boca cansada e mansa, tudo compondo um rosto magro e pálido, que lembrava uma caveira. O seu cabelo ralo era branco-prateado, as suas roupas eram grosseiras e remendadas. No entanto, havia nele algo de heroico, um quê de firmeza e tranquilidade.

Mas Arsène olhou para ele com a crescente aversão que sentia por todos os padres, uma aversão que era quase física, como se motivada pela aproximação de uma criatura repelente. Esperou em silêncio, vendo o abade pousar a vela numa mesa que havia perto da cama. O velho aproximou-se da cama e curvou-se ansiosamente sobre o doente. Arsène devolveu-lhe o olhar, em que se liam frieza, desprezo e aversão.

O abade sorriu.

— Ah! — murmurou ele. — Estamos muito melhor. Estamos conscientes. Isto é ótimo.

Estendeu a mão para apalpar a testa do jovem, mas Arsène virou a cabeça para o lado, com uma careta. O abade ficou como que paralisado, a mão ainda estendida. Após um momento, deixou cair a mão, e o seu sorriso bondoso tornou-se um pouco fixo, como se estivesse espantado.

— Eu estou bem — disse Arsène, na sua voz fraca e rouca. (O velho padre matreiro, o urubu fedorento, farejando carniça!)

— Sim — retrucou o abade, suavemente —, o senhor já está bem, graças à devoção e às noites em claro dos seus amigos, e à misericórdia divina. Houve horas em que nada podíamos fazer, senão orar, orar por um homem cujo nome não conhecíamos e que parecia à beira da morte.

Fez uma pausa e sorriu, como se estivesse ligeiramente envergonhado.

— Receio, porém, ter me preocupado mais com o perigo que os meus amigos corriam do que com o senhor.

Arsène nada disse, mas os seus olhos brilhavam desdenhosamente, à luz da vela.

O abade sentou-se num banco e olhou ansiosamente para o jovem.

Arsène obrigou a voz a obedecer-lhe, e perguntou, friamente:

— Por que foi que o senhor veio?

O abade suspirou.

— Fiz uma promessa aos meus amigos de que, depois das vésperas, lhe faria companhia até que um deles voltasse.

— Não é necessário — disse Arsène, virando a cabeça para o outro lado.

O velho nada disse. De repente, Arsène sentiu sede. Como se adivinhasse, o abade levantou-se, foi até a cozinha e voltou.com um copo de água, que levou aos lábios do doente. Arsène bebeu. Olhou por cima do copo e ficou espantado com a doçura que havia no sorriso compreensivo do outro. Todo o seu antagonismo, toda a sua aversão foram, involuntariamente, por água abaixo.

— Você precisa dormir, meu filho! — disse o abade.

E Arsène adormeceu.


Capítulo V

Arsène sonhou que estava passeando alegremente a cavalo, nos jardins do Bois. A manhã estava cor-de-rosa, tudo à sua volta estava quieto, cristalino e ensolarado, e não havia ninguém, a não ser ele, ali. Via as sombras compridas das árvores, ouvia os doces murmúrios da passarada. Sentia a suave brisa da manhã no rosto, trazendo-lhe o perfume de milhares de flores, e pensou: Nunca me senti tão feliz. Mas não sabia dizer o que lhe causava tanta felicidade.

O seu cavalo trotava, alegremente, pelo caminho silencioso, que o sol manchava. Um galho roçou o seu chapéu emplumado. Tirou o chapéu e deixou o vento soprar-lhe os cabelos. Começou a cantar, cônscio da sua juventude e da sua alegria de viver. O céu, através das árvores, formava quadrados e losangos turquesa. Que manhã tão fresca e tão pura! Tudo aquilo parecia um mundo apartado da Corte corrupta, com seu cheiro a pós e a perfumes fortes, com sua alegria forçada e seus olhares malévolos, com suas intrigas e sua elegância moribunda. Aquele era um mundo onde a vida imperava, e o mundo das posturas rígidas e das atitudes untuosas só existia à noite e na morte.

— Sou livre! — exclamou ele, em voz alta, e os pássaros e a brisa murmuraram, num eco: — Livre! Livre!

Mas, como se as palavras tivessem um poder mágico, um terrível encantamento, a luz desapareceu da terra, escureceu as árvores, e as flores, ofuscantes de cor, perderam todo o seu colorido e tornaram-se cinzentas. As fontes, que ele ouvira a distância gorgolejar e cantar, de repente assumiram o ronco ameaçador de cataratas. O vento passou a soprar frio como se viesse de mares gelados. O ar, um momento antes tão quente e oloroso, tornou-se gélido e com um cheiro como se proviesse de cidades incendiadas. Sentiu o chão tremer sob os seus pés; as árvores inclinaram-se, uivando, e as folhas, repentinamente murchas, caíram dos galhos e formaram rodamoinhos à volta dele. A poeira levantou-se e, transformada em fumaça cinza, sufocou-o. Tudo ao seu redor eram trovões, tremores de terra e desolação. Um medo terrível tomou conta do seu coração. Olhou em volta, apavorado, esperando ser destruído. Viu os ramos das árvores arrancados e despidos, como se fossem ossos, e a grama ondular furiosamente, tocada pela tempestade.

Olhou em torno, à espera de ver chegar os inimigos. Mas estava sozinho. E, ao se aperceber de que ninguém mais estava no meio de todo aquele horror de morte, destruição e ruína, sentiu-se ainda mais apavorado. O cavalo, debaixo dele, tremia, a cabeça encurvada.

Então, ouviu um murmúrio, que fazia parte do rodamoinho. Passaram-se alguns momentos, antes que ele percebesse que era o murmúrio de milhares de vozes roucas, subindo e descendo, gritando e berrando, ameaçadoras e dolorosas.

— Livres! — gritavam. — Livres! Livres!

Uma multidão de vozes, um mundo de gritos, subindo das entranhas da terra, atravessando os ramos retorcidos das árvores, descendo do céu, ecoando no espaço, soprando no vento e ressoando através das fontes e dos trovões. Não tardou que Arsène só ouvisse aquelas vozes, e o terror se apoderasse de todo o seu corpo.

Sentiu tudo tremer debaixo e à volta dele, como se o universo estremecesse nos seus alicerces e nas suas órbitas. O ar estava escurecendo; tornara-se asfixiante, como se a terra estivesse girando em meio à fumaça.

— Livres'! — gritaram as inúmeras vozes, e havia agora nelas um tom mortal, inexorável e assustador. Um universo de vozes espraiando-se implacavelmente pelo céu e pelo mundo. De repente, o céu tornou-se vermelho, como se refletisse a luz de centenas de cidades em chamas, e o rodamoinho aumentou, com um terrível zumbido.

— O Juízo Final! — pensou Arsène e ficou à espera do fim. O céu, escarlate de chamas, clareou ameaçadoramente acima dele, em cima dele, em meio à escuridão abismai da noite.

— Livres! — berraram as vozes, triunfantes, e ele ouviu o estrondo de milhões de pés libertos, embora nada pudesse ver. Mas sentia no rosto o bafo de exércitos e multidões, arquejando, prenunciando destruição.

— É o fim — pensou Arsène.

Então, no exato momento em que pensou isso, não mais sentiu medo. Uma tremenda alegria cresceu dentro dele, de mistura com uma indignação exultante. Ergueu os braços para o ar.

— Livre! — gritou, juntando a sua voz às demais. Não era o fim, e sim o furioso prelúdio da manhã, a tempestade que pressagiava a calmaria, a ruína e o caos que antecedem a vida.

Acordou. Mesmo enquanto abria os olhos espantados, ouvia os últimos ecos das mil e uma vozes, elevando-se para o espaço, por entre as estrelas. Depois, fez-se silêncio, mas os seus tímpanos ainda ressoavam, e o silêncio era ainda mais intenso após a terrível gritaria.

O sonho era mais real do que o que ele viu, quando abriu os olhos. Estava agora muito escuro, e, à luz da vela, perto dele, sentava-se o velho abade, encurvado na sua cadeira, os lábios murchos movendo-se, os olhos fechados. O rosário rolava lentamente entre os seus dedos recurvos, e no seu rosto havia um ar de êxtase. Arsène olhou para ele. Não podia mais sentir desprezo pelo velho. De repente, o êxtase na expressão do velho cessou e os seus lábios pararam de mexer. O rosário escorregou para os seus joelhos ossudos e lá ficou, como se fossem lágrimas negras. O seu rosto adquiriu uma expressão de terrível sofrimento e exaustão. Suspirou profundamente e inclinou a cabeça. Uma a uma, as lágrimas brotaram de sob as pálpebras dos seus olhos fechados, e cada lágrima era uma gota de dor e sofrimento, brilhando pateticamente à luz da vela. Levou as mãos ao peito, convulsivamente, num gesto comovente, pois traduzia desespero e uma enorme tristeza.

Arsène ficou imóvel, na sua cama de palha. Ter deixado que o velho percebesse que o seu sofrimento fora visto por olhos estranhos teria sido imperdoável. Arsène sentiu-se movido por uma piedade até então desconhecida. Tinha a certeza, embora não soubesse explicar por quê, de que aquele sofrimento e aquelas lágrimas não se originavam de uma meditação fanática, de uma contemplação mística dos tormentos de Cristo. Não era coisa de padres, afastados dos homens, nem a expressão formal de um êxtase deliberadamente induzido. Eram as lágrimas de um velho, carregado de sofrimento, lágrimas terrenas, de dor, as lágrimas de todos os homens, amargas e isentas de misticismo, inconscientes de Deus.

Ele chora, pensou Arsène. Chora como homem, e não há fé, nem esperança, no seu choro. Era como se a realidade, para ele, se tivesse tornado mais exigente do que a superstição e lhe tivesse tornado impossível rezar, lhe tivesse afugentado toda a fé. O sentimento de piedade cresceu dentro de Arsène. Correu-lhe pelas veias, como o sangue corre dolorosamente pelos membros paralisados. Nunca sentira tal piedade, e a lembrança do sonho que tivera mesclou-se a esse novo sentimento.

Fechou os olhos. Virou o corpo enfraquecido na cama, de modo a fazê-la ranger. Suspirou, murmurou, imitando os movimentos e sons de uma pessoa despertando. Gemeu fracamente. Abriu de novo os olhos. O velho abade inclinava-se sobre ele com o seu sorriso doce, ansioso e solícito. Nas suas faces emaciadas brilhavam ainda as marcas das lágrimas do sofrimento. Sua mão, débil mas suave, pousou na testa de Arsène. O sorriso do velho era tão bondoso, tão calmo, ao ver que o doente não tinha febre, que Arsène duvidaria do que tinha visto, se não fossem os vestígios das lágrimas no rosto do abade.

— Estou bem — repetiu Arsène, devolvendo-lhe o sorriso.

— Sim — disse o abade. — E está na hora do seu caldo, meu filho.

Não disse aquilo untuosamente, à maneira dos padres, mas com amorosa sinceridade. Saiu do quarto, e Arsène viu-o agarrar-se à ombreira da porta, como que para apoiar-se. Regressou com uma tigela de sopa quente e uma colher. Sentou-se ao lado de Arsène e mergulhou a colher no caldo. Sorriu novamente, e Arsène sentiu-se comovido. Permitiu, docilmente, que o velho lhe desse de comer. Pouco a pouco, sentia voltarem-lhe as forças. O abade não falou, mas via-se que estava feliz com o apetite do jovem.

Arsène recostou-se nos travesseiros bolorentos, a vida voltando-lhe ao corpo.

— Por que o senhor, como todos aqui, me socorreu e me tratou, sendo eu um desconhecido saído da noite? — perguntou ele, numa voz cheia de desacostumada gratidão.

O velho abade ficou surpreso. Olhou para Arsène, incrédulo.

— Que pergunta estranha, meu filho! — disse ele. — Você estava ferido e perseguido. Estava doente. Que outra coisa poderíamos ter feito?

Arsène pensou nisso e fránziu a testa. Ah, mas vocês todos sabiam que eu não era nenhum pobre-diabo sem lar. Havia a minha espada e a minha pistola, as minhas roupas e o meu dinheiro. Tudo provas de riqueza. Se eu fosse um mendigo, talvez vocês não tivessem feito nenhuma dessas coisas por mim.

Olhou rapidamente para o abade. O rosto do velho, olhando para Arsène, tornara-se severo e digno. Não havia dúvida de que lera os pensamentos do rapaz.

— Não — disse ele, calmamente. — Não foi por desconfiarmos de que você não era como nós, e sim um grão-senhor. Além do mais, sabíamos que você corria perigo e que, ao abrigá-lo aqui, es- távamos arriscando as nossas vidas. François contou-me que os mosqueteiros do Cardeal estavam atrás de você e que ele o escondeu.

Arsène ficou envergonhado, mas retrucou:

— E o senhor, um padre, não ficou preocupado com o fato de os homens de Sua Eminência estarem à minha procura, com espadas desembainhadas?

O velho abade suspirou e desviou o olhar. O ar de terrível sofrimento voltou-lhe ao rosto, mas ele nada disse. Por fim, sussurrou:

— Você estava fugindo e ferido, caçado e desesperado.

A vergonha de Arsène aumentou. Havia algum mistério em tudo aquilo, tinha a certeza disso, pela expressão de tristeza no olhar do ancião.

— Agradeço a todos do mais fundo do meu coração — disse ele, suavemente — E prometo que não esquecerei o bem que me fizeram.

O rosto do abade ficou de novo severo e digno.

— Não lhe pedimos nada, monsieur, a não ser que recupere a saúde rapidamente e saia desta casa. O senhor é um perigo constante para nós.

— Não temam — replicou Arsène, com um quê de desprezo. — Asseguro-lhe que, mesmo que os asseclas do Cardeal conhecessem a minha verdadeira identidade, não levantariam um dedo contra mim.

Mas não pôde deixar de pensar, cinicamente, se isso seria inteiramente verdade.

— Mesmo sabendo que o senhor é um huguenote? — perguntou o padre, olhando-o de frente.

— Ah então, vocês sabem. — Sorriu Arsène, olhando atentamente para o velho. — E nem isso o preocupa? O senhor não odeia o protestantismo, como todos os padres?

O abade levantou-se, pegou na tigela e na colher e levou-as para a cozinha. Voltou e sentou-se novamente no banco ao lado de Arsène. Olhou-o fixo e os seus olhos fundos brilharam à luz da vela.

— Nada que faz os homens pensar é mau — disse ele. — E uma; espada pode cortar fora a carne gangrenada. Uma fonte de água fria pode levar por água abaixo a corrupção.

Arsène ficou perplexo, pois não entendia sutilezas. As palavras do ancião irritavam-no, com a sua ambiguidade. Ambiguidade que, ele sabia, era a própria essência do sacerdócio, o cantochão dos charlatães e dos mentirosos.

Disse, algo infantilmente:

— Sou seu inimigo confesso.

O velho encarou-o com genuína surpresa. Mas logo sorriu, como se para uma criança, com ar divertido.

— Nenhum homem é meu inimigo — retrucou —, a menos que eu o admita como tal.

— Isso é um sofisma místico — observou Arsène, com desdém.

— Não — disse o padre —, é uma verdade. Nenhum homem pode ferir outro, a menos que o outro admita que ele seja capaz de feri-lo. Não existe o mal se negarmos a sua existência; não há ameaça para a alma, a menos que a alma aceite a realidade do mal.

— E q senhor se recusa a acreditar que o mal existe? — perguntou Arsène, ao mesmo tempo divertido e desdenhoso.

Mais uma vez se envergonhou ao ver a súbita tristeza do velho. O abade desviou o olhar e fixou-o no espaço.

— Sou fraco, velho e pecador — murmurou ele. — Se eu tivesse verdadeira fé, saberia que o mal só existe na imaginação dos homens e nos corações corruptos dos inimigos de Deus. Deus não criou nada de mau; portanto, o bem é a única realidade. Como é, pois, possível crer na existência do mal?

O seu rosto iluminou-se, tornou-se subitamente extasiado, como se algum maravilhoso segredo lhe houvesse sido revelado por outra voz. Seu corpo emaciado pareceu crescer, como o de um prisioneiro quando se vê livre das grilhetas. Um misto de alegria e heroísmo surgiu nos seus olhos, brilhou como se fosse o reflexo do sol. Lançou sobre Arsène toda a radiância do seu rosto transfigurado.

— Meu filho — disse ele, numa voz trêmula —, você me fez uma coisa miraculosa!

Incapaz de sutilezas, Arsène ficou- espantado e olhou para o abade com desconfiança. Quereria engabelá-lo? Conhecia as artimanhas dos padres. Além do mais, sentia-se como um garoto ignorante, na presença de um homem de grande estatura. Isso não contribuiu para lhe restaurar o bom humor.

Depois, outro pensamento lhe ocorreu. Lembrou-se, vagamente, de que muitas vezes, durante o dia, outra pessoa tinha estado lá, um jovem como ele, trazendo-lhe tigelas de caldo e bacias, cuidando dele, lavando-lhe as feridas. Tinha uma leve recordação de um rosto fino e magro, de considerável beleza. Olhou para o abade. A luz sobrenatural abandonara-lhe o rosto, substituída por uma paz radiante.

— Havia outra pessoa aqui, às vezes — disse Arsène, irritado com o ar extasiado do abade. — Quem é?

O velho olhou para ele, estupidificado. De repente, o seu olhar tornou-se terno.

— É o meu sobrinho, um jovem de Toulouse — disse ele. — É estudante. Cuida da minha humilde casa, e eu lhe ensino o que sei. Também é poeta. — Hesitou, ficou triste. — A mãe dele, minha irmã, morreu de fome. Houve uma seca na terra deles, e o meu sobrinho veio morar comigo.

Olhou de novo para o vácuo e suspirou.

Arsène ficou a olhá-lo com interesse e desusada curiosidade. Aquele pobre velho recordava-lhe os curas miseráveis de aldeias também miseráveis, criaturas que ele não considerara como seres humanos. Ficou espantado de que, no passado, a humanidade lhe tivesse parecido, e a outros como ele, atributo exclusivo dos afortunados e dos cultos, dos nobres e dos aristocratas. Para além daquele círculo perfumado e sofisticado existira um vasto mundo de subcriaturas, passando fome, oprimidas e desprezadas, com quem apenas os padres se preocupavam. Agora, porém, ele via humanidade naqueles desgraçados, a marca da sua própria raça nas suas feições torturadas, uma capacidade igual à sua de viver, de sofrer e de ter alegria, refletida nos seus olhos.

Se isso é assim, pensou ele, alguma coisa deve estar muito errada. Havia algo que exigia vingança dos céus, a compaixão dos santos, a retribuição de todo o mundo. Da mesma forma que Genghis Kahn, os poderosos tinham estendido as suas toalhas- de banquete sobre os corpos moribundos dos indefesos, e festejado em voz alta por sobre os gemidos. Mas sem dúvida o dia da libertação se aproximava, e ai de quem ficasse no caminho do sangrento dilúvio. Ouviu de novo, como no sonho, os gritos de mil e uma vozes, o som de milhões de pés libertos. Quando esse dia viesse, não haveria piedade para com os opressores, para com os que sorriam nos castelos ducais, para com os bispos exploradores do povo, para com os tronos e os reis.

O abade viu os olhos do doente escurecerem e brilharem, e exclamou:

— Pronto, já o cansei! Você precisa repousar, meu filho.

Trouxe uma bacia com água fresca e lavou o rosto e as mãos escaldantes de Arsène, enxugando-os com um trapo limpo.

—• Estive pensando — disse Arsène, com um sorriso — e garanto-lhe, mon abbé, que isso não é coisa que eu costume fazer.

Mas o abade não sorriu. Ficou de pé, com a bacia na mão, e olhou para o jovem com uma expressão grave e estranha. Seus olhos castanhos estavam severos e brilhantes. Mas nada disse. Levou a bacia e o trapo para a cozinha, voltou, sentou-se no banco e ficou vendo a vela queimar, como se houvesse esquecido Arsène. Suas mãos enrugadas estavam de palmas para cima, sobre os joelhos, numa atitude de cansaço e desolação, os ombros estavam inclinados sob a roupa. Toda a sua atitude era de paciência, mas também de sofrimento.

— Qual o seu nome, mon abbé? — perguntou Arsène, após uma longa pausa, e numa voz desusadamente suave.

O velho estremeceu. Olhou para Arsène, espantado.

— Meu nome é André Mourion, monsieur — disse ele por fim, como se despertasse de um sonho. — E esta é a minha paróquia. Paróquia pobre, mas eu faço o que posso.

Suspirou profundamente, e o som que emitiu foi como um soluço.

— E a moça, Cécile — insistiu Arsène. — É uma empregada?

À menção do nome da jovem, o velho padre sorriu, como se tivesse visto um raio de sol.

— Sim, monsieur. Ou, melhor, ajuda as costureiras da casa de Madame de Tremblant, que tem quatro filhas e muito serviço de costura. Cécile me contou que uma delas, Mademoiselle Clarisse, está noiva e deve casar em breve.

Parou, surpreso, pois o rosto de Arsène enrubescera, ao ouvir falar naqueles nomes.

— Conhece a família? — perguntou o abade.

Arsène ficou ainda mais vermelho.

— Ligeiramente — murmurou. — Apenas ligeiramente.

Virou a cabeça para o lado, para fugir ao escrutínio do outro.

Estava muito confuso. Não pensara na linda e loura Clarisse desde a noite em que chegara àquela casa; não pensara em Clarisse, sua noiva. Reviu-a mentalmente, elegante e delicada, com um corpo esbelto e gracioso e um rosto malicioso, cheio de petulância e alegria. Viu os seus cachos louros e os seus brilhantes olhos azuis, suas mãos pequenas e brancas e os seus belos ombros acetinados. Ou- viu-lhe a voz cristalina, as risadas despreocupadas, e recordou-lhe os gestos caprichosos e imperiosos. Era a terceira filha de Madame de Tremblant, dama famosa pela devassidão, e a única possuidora de grande beleza, embora as outras filhas, pobres criaturas langorosas, também fossem bastante bonitas. Fora um triunfo, para Madame de Tremblant, contratar o noivado de Clarisse com o filho de Armand de Richepin, Marquês de Vaubon, reintegrado nas boas graças do Rei e da- Igreja.

Um pensamento embaraçoso tomou conta de Arsène. Voltou abruptamente a cabeça e olhou para o abade.

— Cécile sabe o nome do gentil-homem de quem Mademoiselle de Tremblant ficou noiva?

O abade abanou a cabeça.

— Não, acho que não.

Estava mais espantado do que nunca. Lembrou-se, então, de algo que fez com que o seu velho rosto se iluminasse.

— Cécile também está noiva — disse ele — do meu sobrinho, Henri Chalon. Madame de Tremblant prometeu empregá-lo como seu lacaio. Cécile caiu nas boas graças de Madame e, ao saber do seu próximo casamento, ela tomou a si ajudar os pobres noivos. Cécile e Henri vão morar na residência de Madame de Tremblant, o que vai ser ótimo.

— Que ocupação para um poeta! — murmurou Arsène, com intenção de ridicularizar.

O abade olhou para ele com dignidade.

— François Villon não passava de um vagabundo — disse, em tom de censura.

Arsène pensou no rosto belo e nobre da jovem Cécile, no seu porte distinto e na sua voz suave. E pensou em Madame de Tremblant, uma autêntica bruxa velha, para quem nada era sagrado e tudo era mau. Ficou indignado e espantado consigo mesmo. Que coisa estranha. Ele sempre achara graça em Madame de Tremblant, a intrigante, a alegre e astuta confidente e grande amiga de Sua Majestade, a Rainha. Nenhuma festa da Corte seria completa sem a sua estridente e devassa supervisão, seus leques e suas atitudes, suas piadas ferinas e seus epigramas. Até mesmo as amantes do Rei tinham medo da sua língua, e o Cardeal, dizia-se, encarava-a com ar divertido e apreciador. Ela sabia de tudo, inclusive quando não devia falar. Incorrer na sua inimizade era o pesadelo de todos os cortesãos ambiciosos e de todas as damas corruptas. Corria, inclusive, o rumor de que ela era temida em Londres devido à sua influência, e de que muitos tesouros secretos tinham entrado em sua casa como presentes do embaixador britânico. O próprio Buckingham, quando não havia perigo em ir a Paris, costumava hospedar-se na casa dela.

Madame de Tremblant orgulhava-se abertamente da sua ambição, da sua natureza traiçoeira, do seu poder e da sua perversidade. Tendo ficado viúva logo após o nascimento da última filha, herdara do pai e do marido, o Conde de Tremblant, que também fora o favorito do Rei e da Igreja, uma enorme fortuna e grandes propriedades. Embora estivesse beirando os cinquenta, continuava bela, arrogante, libertina e sem escrúpulos, e as suas toaletes causavam inveja à própria Rainha. Mas mantinha as filhas enclausuradas como freiras, enquanto examinava, fria e astutamente, todos os jovens bons partidos da Corte. Muitos havia que dariam graças aos céus por desposar qualquer uma das moças, por motivos de dote e influência. As três mais velhas, entre as quais se contava Clarisse, já estavam noivas e os seus noivados refletiam a perspicácia e o gênio casamenteiro de Madame de Tremblant.

Arsène pensou em todas essas coisas e alheou-se completamente. Quando olhou para cima, viu que o abade o contemplava com ar preocupado, e deu-se conta de que estava de cara amarrada.

— Está sentindo dor? — perguntou o abade.

— Não — respondeu Arsène, impaciente.

Mas estava exausto. Era tão raro pensar que ficava cansado, da mesma forma que os músculos que não se usam muito ficam facilmente doloridos. Ao ver a preocupação espantada do abade, lembrou-se do pai, que muitas vezes o olhava assim, perturbado, à espera de uma explicação.

Os dois homens olharam um para o outro em silêncio, mas Arsène viu apenas o rosto fino e moreno do pai.

Durante toda a sua vida descuidada, sentira apenas aversão, desdém e tédio pelo pai. Mais dado ao ódio do que ao afeto, não odiara, contudo, Armand de Richepin, pois ninguém consegue odiar a quem nos adora. Agora, lembrando-se do pai, sentia o velho desdém, a velha indiferença divertida, mas, ao mesmo tempo, uma nova piedade, um novo afeto, uma nova preocupação.

Agora Arsène sabia que o terror que o pai sentia era menor por si próprio do que pelo filho. Envergonhou-se da passada crueldade, lembrando-se menos das fraquezas, da avareza e da ambição paternas e mais do seu amor e devoção por ele. Atormentara o pobre homem, sem nenhum motivo, exceto o seu próprio egoísmo e a sua insensibilidade.

Examinou o abade, seus olhos escuros apertados e brilhantes. Poderia confiar naquele velho, que vestia a odiada batina, representativa de uma hierarquia que ele tanto detestava? A superstição não seria mais forte do que a piedade, e a escravidão de uma alma mais poderosa do que a compaixão humana?

— Posso confiar no senhor, mon abbé? — perguntou, abruptamente.

Surpreso, o' abade só pôde olhar para ele, espantado. Depois, inclinou a cabeça, com uma espécie de orgulho humilde.

— Sou um velho pecador — murmurou tristemente André Mourion. — Más nunca, que eu saiba, traí, fosse quem fosse.

Arsène hesitava ainda, os olhos fixos no outro. Havia tantas dificuldades a considerar, mesmo ppndo de lado a possibilidade de ser traído pelo padre! Considerou-as. O abade ficou a olhar para ele, vendo a frieza e a suspeita estampadas no rosto do jovem, a dureza dos seus olhos escuros, o tremor impaciente da sua boca amarga. Durante as noites todas em que cuidara dele, sentira-se próximo daquela criatura, que tanto sofrerá. Diante da morte, da dor e da compaixão, tinham sido dois homens apenas. Agora, o velho sacerdote sentia o afastamento, a frieza, a casta daquele desconhecido, via-lhe o olhar altaneiro e aristocrático, brutal e desdenhoso. Conhecia bem aquele olhar, deitado do alto de carruagens douradas, ao longo de estradas poeirentas ou ruas cheias de gente, um olhar que o consignava, e a todos os pobres, ao limbo, ao lugar dos sub-homens. E sentiu apenas o mesmo desespero e a mesma tristeza de sempre.

— Fique sabendo, velho — disse Arsène, numa voz que combinava com o olhar —, que, se você me trair, terá um destino pior do que a morte, mesmo que o diabo do Papa em pessoa interceda a seu favor.

Estacou, abruptamente, vendo o abade esboçar um sorriso, como se estivesse ouvindo as ameaças de uma criança mimada e insensível. Mas no seu sorriso havia tristeza e compreensão.

— Não precisa me ameaçar, monsieur — retrucou, com suavidade. — Não tenho medo de nenhum homem, e nada temo, a não ser a maldade, a depravação e a falta de coração dos homens.

Havia tanta sinceridade na sua voz que Arsène ficou envergonhado. Não obstante, perguntou, friamente:

— Quem pode confiar nos padres?

Arquejou um pouco, de cansaço, mas afastou a mão do abade, que procurava apalpar-lhe a testa para ver se ele tinha febre.

— Quero que me faça um favor, antes que os outros voltem. Trata-se de levar uns recados e é segredo. Vá até ao Hôtel du Vaubon, nos Champs-Elysées. Lá chegando, pergunte por um jovem lacaio chamado Pierre Brissons. Peça para ele vir até o portão e diga-lhe que vejo da minha parte, e ele o levará até o meu... à presença de Monsieur le Marquis du Vaubon, a quem o senhor dirá: “Vim de parte de um certo Arsène de Richèpin. . .”

Fez uma pausa e fixou de novo os olhos penetrantes e arrogantes no rosto do abade, como que à espera da sua reação. O abade olhou para ele e recuou um ou dois passos. A boca abriu-se e uma expressão de incerteza e consternação tomou, por momentos, conta do rosto do velho. Mas não havia nele medo e nem temor. Olhou uma vez para a porta, como se por ela pudessem entrar inimigos. Umedeceu os lábios enrugados e fitou Arsène.

— Como pode ver — disse o jovem —, eu não preciso ter medo de ninguém, nem mesmo do seu maldito Cardeal.

A sua voz era de alarde, mas ele não tinha a certeza do que dizia. O Cardeal, sinistro e sutil, onipotente e sempre alerta, sem dúvida sabia das atividades do filho do Marquês de Vaubon, como sabia de tudo. Talvez não houvesse um homem em Paris cuja morte ele mais desejasse, mas teria que ser uma morte obscura e anônima, por causa do grande amigo do Cardeal e de Sua Majestade, o Rei.

Além disso, Arsène, apesar das recentes revelações a que fora submetido, não podia facilmente libertar-se dos hábitos e das convicções de toda uma vida. Consequentemente, ficou aborrecido com a ausência de temor manifestada pelo abade e da falta de adulação por parte dele. Estava por demais acostumado à ideia de que a missão da Igreja era servir aos poderosos. Via, irritado, que a única preocupação do abade era pela situação dos seus pobres amigos, mais precária agora do que nunca.

— Ninguém vai sofrer — disse Arsène, com desdém. — Como poderiam vocês saber a minha identidade? O senhor dirá isso a Monsieur le Marquis, se ele perguntar por que razão não o informaram antes. — E acrescentou, com impaciência: — Não preciso lhe dizer que Monsieur le Marquis, o amigo íntimo do Cardeal, é meu pai.

— Eu sei — disse o abade, numa voz baixa e trêmula.

Fitou em Arsène uns olhos tristes e intensos, cuja cor castanha lembrava a sombra da água iluminada pelo sol, sob os salgueiros.

— O senhor nao parece impressionado — comentou Arsène, com uma risada breve, e sentiu-se imediatamente envergonhado.

O abade nada disse, mas torceu convulsivamente as mãos.

— Não se demore a falar com o marquês — continuou Arsène. — Diga-lhe que é do meu interesse que nem ele saiba onde me escondo. Diga-lhe que lhe dei ordens para o senhor não falar nisso. Ele é um homem nervoso e impaciente, e o senhor não deve ficar intimidado com as suas maneiras. Diga-lhe também — acrescentou — que eu estou me recuperando e que, dentro de uma semana, voltarei para casa. Pode ser que ele desconfie: confia tanto nos padres quanto eu, e o senhor terá que convencê-lo de que é digno de confiança.

— Acha que ele vai acreditar em mim, monsieur?

— Sem dúvida. — Arsène olhou para a espada e apontou para ela. — Leve-a. Meu pai terá a certeza de que o senhor veio da minha parte. Peça-lhe também que me mande dinheiro. — Riu, divertido. — Mademoiselle Cécile carregou o meu dinheiro e estou tão pobre quanto um mendigo. . . uma situação muito estranha. Peça também ao marquês um embrulho com roupas, pois fui forçado a me desembaraçar do casaco e da capa, para poder atravessar a nado o Sena. — Pensou um pouco. — Diga a meu pai que fui levemente ferido, mas já estou bem. — Apalpou a cicatriz na face morena e olhou para o braço envolto em ataduras. — E que eu vou precisar ficar escondido uns dias mais. Não é necessário dizer-lhe que também estive doente.

Olhou para o abade com um pouco de espanto. Era a primeira vez que pensava na dor e na preocupação do pai. Até então, tivera-as na conta de bobagens, de emoções ridículas, nascidas do terror e do nervosismo crônico do marquês. Chegara mesmo a provocar medo nele, pelo simples prazer de lhe ver o rosto contorcido e os olhos apavorados, denunciadores de apreensão no rosto pálido e suarento do pai.

O abade pegou na espada, mas parecia não vê-la, embora girasse mecanicamente o cabo, fazendo a luz da vela refletir-se nele. Arsène seguia-lhe os movimentos com curiosidade. Em que estaria o velho pensando? A seguir, como se o tivesse esquecido, o abade saiu do quarto, com seus passos trôpegos.

Só depois de ele ter saído foi que Arsène, amaldiçoando a sua falta de visão, se apercebeu de como pusera em perigo o seu benfeitor. Provavelmente, Armand não confiaria nele, levado pelo terror e pela covardia que lhe eram inerentes. Era bem possível que mandasse prender o padre. Não se podiam prever as reações histéricas do marquês. Podia acusar o abade de ter matado o filho, de ser um impostor, de ter tentado roubá-lo. Podia gritar denúncias e acusações, fazendo com que o abade fosse arrastado para uma prisão e lá morresse. Paris inteira bem podia ficar sabendo do acontecido com ele, Arsène, pois Armand não se notabilizava pela prudência e reticência. A única esperança era de que o abade o fosse encontrar em maré de rara calmaria e o pudesse convencer da situação em que o filho se encontrava. Porque havia outras pessoas, no Hôtel du Vaubon, que facilmente acreditariam e se apressariam em mandar recado ao seu diabólico patrão. Se assim fosse, seriam logo enviados assassinos para eliminar, caladamente, Arsène de Richepin e atirar-lhe o corpo deformado no Sena ou enterrá-lo numa sepultura anônima. Mesmo no caso de o abade conseguir fazer-se acreditar, podia ser seguido de volta à casa, se a conversa fosse ouvida por certas pessoas.

— Meu Deus! — murmurou Arsène. — Por que eu fui ter um homem imbecil e efeminado como pai?

A sua imaginação, aguçada pela recente doença, não tardou a povoar aquela pobre casa de inimigos, que entravam sem fazer barulho e sem serem vistos, e o matavam, ali, sozinho e indefeso naquela cama. A jovem ou seu avô podiam entrar no quarto e encontrá-lo afogando-se no próprio sangue ou,' pior ainda, podiam voltar no meio da matança e ser assassinados, para nada poderem contar do que tinham visto.

Não deixava de ser estranho o fato de esse pensamento horrorizar mais o rapaz do que o da própria morte. Era horrível pensar que a única recompensa que ele podia dar aos seus benfeitores era uma morte rápida e impiedosa. Ficou alarmadíssimo e apoiou-se no cotovelo, sem sequer sentir o braço ferido. Não tinha nem mesmo a espada para se proteger, e ao velho e sua neta, isso se tivesse força para se levantar e usá-la. Começou a suar frio. Olhou em volta, como um animal desvairado, à procura de um lugar onde se esconder. Nesse momento, ouviu um barulhinho. Alguém estava entrando, pé ante pé.

À débil luz da vela, Arsène distinguiu o vulto de François Grandjean e, atrás dele, a silhueta esbelta de Cécile.


Capítulo VI

Ao sair do trabalho, François Grandjean ia esperar a neta no portão do Hôtel de Tremblant. Apesar de estar velho e cansado, a sua presença representava mais segurança para a moça, obrigada a atravessar as ruas de Paris à noite. Cavalheiros galantes e perfumados, em cadeiras douradas, ou mascarados e envoltos em capas, formando grupos dispostos a tudo para se divertir, muitas vezes atacavam jovenzinhas que voltavam sozinhas para casa, aproveitando-se do escuro das ruas. O mínimo que elas podiam esperar era ser beijadas e apalpadas lascivamente. E a polícia, em vez de proteger as vítimas, fechava os olhos a tais proezas, a troco de algumas moedas que os libertinos lhe atiravam. Além disso, a polícia sabia que não adiantava interferir. Mais de um guarda fora parar na sarjeta, com a cabeça partida, por ser indiscreto. (Dizia-se que o próprio Rei, até passar a se interessar desmedidamente por questões culinárias, costumava também participar desses esportes noturnos.)

Quando voltavam juntos para casa, François vinha armado de um grosso cajado, e Cécile puxava o capuz para a frente, de modo a tapar a bonita cabeça, e imitava o andar de uma velha, à aproximação de perigo. Não se esquecia de que uma jovem criadinha, sua colega no palacete dos Tremblant, desaparecera misteriosamente à meia-noite, quando se dirigia à casa da mãe inválida.

Tinham passado pelo mercado, onde Cécile escolhera competentemente uma galinha bem gorda, verduras, uma garrafa de vinho decente, uma réstia de cebolas e um coelho. Espantado, François ficara não obstante calado, ao vê-la regatear, mas abrira a boca, incrédulo, ante a moeda de ouro que ela dera em pagamento. Passando por uma barraca de flores, Cécile comprara um buquezinho de violetas, que enfiara no decote do corpete. Ao saírem do mercado, ele não pudera mais se conter, e perguntou:

— Minha filha, de onde você tirou esse dinheiro?

— Da bolsa de Monsieur Arsène, com licença dele. Na verdade, peguei a bolsa toda — acrescentou a moça calmamente, do fundo do capuz. Parou à porta de uma patisserie e, enquanto François, a cabeça tonta, permanecia do lado de fora, comprou várias tortas, que colocou nas mãos do avô. De repente, Cécile largou a rir amargamente. — O cavalheiro insinuou que não gostava da nossa comida — disse ela.

— Você pediu-lhe dinheiro? — perguntou François, num tom de voz doloroso.

— Claro que sim. Já lhe disse. Ele é um poço de soberba. Precisamos ver-nos livres dele, e a boa comida apressará esse dia.

O rosto exausto de François corou e, ao passarem por uma sentinela que carregava uma tocha, Cécile viu que ele estava muito aborrecidp.

— Vovô — disse ela, na sua voz jovem e gélida —, não podemos nos permitir pieguices bobas. Ele veio para nossa casa sem ser convidado. Tratamo-lo com caridade cristã, e ele quer pagar-nos com desprezo, como se fosse nosso dever cuidar de gente da sua casta. Não tem nem um pouco de gratidão. Dentro de um ou dois dias, vou exigir-lhe pagamento integral por tudo o que lhe fizemos.

O velho não podia ver o rosto da neta, mas sentia a firmeza do seu andar e ouvia a inflexível amargura do seu tom de voz.

— Não posso permitir isso — disse ele.

Ela apoiou-se no avô e riu, indulgentemente.

— Vovô, eu só tenho quinze anos, mas conheço o mundo. Nisso eu não posso lhe obedecer.

— Você é dura, ma petit — suspirou o ancião. Mas não pôde deixar de sorrir. — Você me disse — acrescentou — que o nosso inválido está muito melhor. Essa é uma ótima notícia. Ele tem sofrido muito.

— Mas não por nossa culpa, nem nós temos nada a ver com isso. Devia dar graças a Deus por não o termos entregue aos guardas do Cardeal ou expulso de casa. Não podemos esperar nada desses monstros, nenhuma gratidão. Pelo menos, podemos exigir uma recompensa. Se bem que eu duvido de que ele se digne recompensar-nos.

Chegaram à casa miserável onde viviam. O abade não estava, mas Arsène apoiava-se num cotovelo e recebeu-os com excitação febril.

— Minha pistola! — exclamou com voz fraca. — Preciso dela imediatamente!

François correu para a cabeceira da cama, examinando, com olhos experientes e ar ansioso, o rosto abatido e vermelho do doente e os seus olhos inflamados. Mas Cécile, sem sequer lhe deitar um olhar, passou diretamente para a cozinha, com as compras.

— Minha pistola! — gritou Arsène, afastando para o lado a mão de François.

O ancião, espantado, ergueu a pistola do banco e, sem dizer palavra, entregou-a a Arsène. Lutando para sentar-se na cama, o jovem engatilhou a pistola. Mas logo a atirou para longe, com um gemido.

— Vazia! — exclamou.

Fitou febrilmente o velho.

— Claro! — disse François, suavemente. — Não usou a arma antes de se refugiar aqui?

Os lábios ressequidos de Arsène abriram-se para falar, mas logo ele se calou, deixando-se cair, ofegante, no travesseiro. François examinou-o preocupado, achando que Cécile fora muito otimista quanto à sua recuperação. Aquele homem estava era delirando, ao gritar pela pistola. Por outro lado, a ausência do abade era incompreensível. Era a primeira vez que lhes falhava.

Mas a primeira preocupação de François foi acalmar Arsène.

— Não há necessidade de armas nesta casa — garantiu-lhe.

Olhou para a mesa, sobre a qual se via um copo meio cheio de água. Ofereceu-o ao doente, mas Arsène sacudiu impacientemente a cabeça. Seus olhos fixaram-se em François com desvario. Era evidente que estava perdendo o controle de si mesmo.

— Fui um idiota — murmurou, por entre os dentes cerrados.

— Mandei aquele imbecil do abade fazer um recado pará mim. . .

— Fez uma pausa e depois explodiu, já sem controle algum: — Mandei-o falar com o meu pai, um idiota que mais parece uma mulher e que não vai lhe dar ouvidos! A qualquer momento, os assassinos entrarão por esta porta e nos destruirão a todos!

François ouviu aquilo entre espantado e temeroso. Arsène fixou os olhos nele.

— Tenho que dar um jeito de sair imediatamente desta casa, não só por mim, como por vocês também.

François encaminhou-se para a porta e trancou-a com ferrolho. Depois, voltou para junto da cama.

— Conte-me tudo — disse, calmamente.

Ouviu com atenção a história que Arsène lhe contou, numa voz furiosa e arquejante. Quando Arsène terminou, ele sentou-se no banco sem mostrar qualquer perturbação, e pôs-se a pensar.

— Será que você não me entendeu, velho? — perguntou Arsène, tomado de uma terrível impaciência. — Meu pai é Armand de Richepin, Marquês de Vaubon, e eu mandei. . .

— Já ouvi — atalhou François, com toda a calma. — Não precisa se excitar, Monsieur du Richepin. Pensou que me ia impressionar? Se pensou, garanto-lhe que se enganou.

— Vamos pensar com calma. O abade Mourion não é nenhum idiota, nem nenhuma criança. Já tratou com muitos homens. Confie na sua sabedoria, monsieur. É a única coisa que podemos fazer.

Cécile acendera o fogo na cozinha e pusera a galinha e o coelho numa grande caçarola. Voltou para o quarto, uma expressão fria no rosto jovem, uma atitude calma. Olhou para Arsène com desprezo.

— Esse é um que não confia em ninguém — disse ela. — Mas como culpá-lo, quando nos lembramos de que sempre julgamos os outros por aquilo que somos?

A luí da vela brilhou nos seus belos olhos azuis, nos seus cabelos castanho-claros e nâ sua garganta branca. Ficou junto da porta, ereta e quieta. Arsène olhou para ela, furibundo.

— Vá embora, mocinha — disse ele.

Mas Cécile entrou no quarto e colocou a bolsa vazia de Arsène na cama, ao alcance da mão dele. Depois, voltou-se para o avô.

— Ouvi o que ele contou. Talvez os seus temores se justifiquem. Mas o senhor acha mesmo que o pobre abade seja discreto?

— Não tenho dúvida quanto a isso, minha filha — retrucou François, com um suspiro fundo.

Estava muito preocupado com a agitação e a atitude de Arsène.

— Descanse sossegado, monsieur. Não há nenhum perigo. Pelo menos não pior do que o que nós já passamos. O senhor ficará mais doente, se permitir que a sua imaginação se perca em improbabilidades.

A sua voz e a sua atitude eram tão calmas, tão suaves, que Arsène tranquilizou-se, apesar dos seus receios e de não ter ilusões quanto ao pai. Deixou que François lhe alisasse o travesseiro, lhe lavasse o rosto e as mãos, enquanto Cécile assistia, fria e distante.

— Como vamos poder suportar, se acontecer algo com o abade? — murmurou ela, deitando a Arsène um olhar duro.

— Temos que confiar na discrição dele — replicou François, olhando reprovadoramente para a neta. — Sabemos como o abade é sensato. E podemos ter a certeza de que não há coerção de espécie alguma que o leve a nos trair.

Arsène ficou de novo alarmado, mas não por si mesmo.

— Nunca me perdoarei, se algo de mau lhe acontecer — disse ele, e as palavras soaram estranhas aos seus próprios ouvidos.

François olhou-o com bondade.

— Precisamos confiar no abade — repetiu ele.

Olharam um para o outro num silêncio súbito e comovido. A moça ficou impressionada, apesar da raiva, que sentia. Olhou para Arsène com certa brandura, trazendo ao rapaz a recordação de noites febris, em que tratara dele.

Arsène exclamou, impulsivamente:

— Mademoiselle, nunca lhe agradeci a sua bondade e a sua caridade, mas juro, por tudo quanto é sagrado, que nunca as esquecerei.

— Sagrado para nós ou para o senhor? — perguntou ela, no mesmo tom frio, embora os seus olhos azuis brilhassem de maneira diferente. — Mas não tenha medo de que eu, pelo menos, me vá esquecer. Somos pobres e desgraçados. Está em seu poder aliviar, até certo ponto, a nossa situação.

Arsène sorriu, involuntariamente.

— Nenhum ouro pode pagar o que fez, mademoiselle — disse ele, num tom cerimonioso e, ao mesmo tempo, irônico.

— Mas pode ajudar muito — garantiu ela.

E riram os dois, embora François apertasse os lábios e abanasse a cabeça, ao ouvir as palavras da neta.

— Mil coroas — prosseguiu Cécile, olhando para Arsène com vontade de rir e calculismo — dariam para comprarmos uma bela fazendola. Ou serão mil coroas um preço demasiado alto a pagar pela sua vida?

François, levantou-se, protestando, mas Arsène respondeu, gravemente:

1— Mil coroas não seriam demais, na minha opinião, mademoiselle.

— Isso — retrucou Cécile — é uma questão de opinião, monsieur.

E acrescentou, com um sorriso:

— Não é a minha opinião.

Voltou para a cozinha e, enquanto cozinhava o jantar, cantava, numa voz doce e cristalina. Arsène ficou a ouvi-la com prazer.

— É uma pena — disse François, com indulgência. — Não há suavidade nela. — Suspirou. — Encara a vida com os olhos bem abertos. Já eu, apesar de velho, não posso suportar certos aspectos da vida e tenho que procurar refúgio na filosofia, num sonho.

— E o senhor acha que um sonho, uma filosofia são proteção contra as feridas da vida? — perguntou Arsène.

Sentia-se agora calmo, e uma agradável sonolência se apoderava dele.

— São como drogas — admitiu François. — Há os que procuram refúgio no álcool, nos prazeres, nas guerras, no claustro, nas mulheres ou na aventura, quando a vida se torna intolerável. Todos temos que ter o nosso antídoto. A aventura, monsieur, era o seu.

Arsène franziu o sobrolho. Mesmo que fosse verdade, ele não podia admitir essa fraqueza. Recostou-se nos travesseiros e fitou em François os olhos escuros e veementes, reluzindo com renovada vitalidade à luz da vela.

— Sempre detestei a hipocrisia e as mentiras — disse ele. — Sempre odiei maquinações e fraudes. Se combatê-las é apenas uma aventura ou uma forma de fuga, então sou culpado.

— Mas por que foi que o senhor as combateu? — perguntou François calmamente, mas com um olhar penetrante. — Para libertar os oprimidos, aliviar os sofrimentos dos indefesos, libertar os que estão presos? Para abrir os portões das prisões, a fim de que todos os homens possam ver a luz?

Arsène ficou calado, mas o brilho do seu olhar aumentou, tornou-se ardente.

François abanou a cabeça.

— Não, não foi por isso.

— Sou huguenote — murmurou Arsène, embaraçado.

— Mas por que razão? — insistiu François.

Arsène ficou de novo excitado. Estendeu as mãos numa gestí- culação agitada.

— Porque odeio os padres, os que conspiram, os intriguistas, os mentirosos, os jesuítas. . . toda essa hierarquia do diabo.

— Trata-se, então, de um ódio pessoal, nascido de uma aversão pessoal — disse François, com tristeza. — Um ódio que não provém de uma indignação moral, de uma compaixão universal, da compreensão dos sofrimentos do povo.

Arsène calou-se. Lembrou-se do sonho que tivera, e a visão fez com que, embora olhasse para o velho, não o visse. François percebeu que algo de misterioso estava ocorrendo no coração do jovem aristocrata.

— Os maus homens — murmurou François — pervertem até mesmo as obras de Deus e dos Seus santos, pondo-os ao seu serviço. I Lsam a tocha de Deus para incendiar as casas do povo. Erguem a Cruz como se fosse um cajado, para lacerar e ferir os ombros dos desprotegidos. Ao lutar contra os destruidores da religião, muitas vezes acabamos destruindo a fé. Isso está errado. André Mourion é um padre, mas o senhor não poderia tachá-lo de mentiroso, de hipócrita, de canalha.

Acrescentou, após uma breve pausa:

— Ninguém sofre mais do que ele...

Levantou-se e, dirigindo-se a um armário que havia na parede oposta, dele tirou três volumes esfarrapados, que segurou nas mãos gastas, ao voltar para a cabeceira do doente.

— Aqui estão as palavras de Erasmo, de Huss, de Lutero. O senhor se diz huguenote, mas aposto que não leu nenhum destes livros.

Arsène olhou para os volumes com bom humor.

— É, nunca na minha vida li esses livros — admitiu.

Esticou a mão trêmula.

— Mas hei de lê-los, se o senhor me permitir.

E acrescentou, com voz de surpresa:

— Por acaso o senhor é huguenote, François Grandjean?

O velho ficou um momento em silêncio e depois disse:

— Não há nome que me designe, nem marca, nem sinal. As designações são escolhidas por homens inseguros, que precisam de uma palavra para cristalizar as suas vagas emoções, de uma luz fraca para guiar-lhes os passos incertos.

Sentou-se de novo no banco e disse:

— Roma já não é a Cidade da Fé, uma cidadela do misticismo. É uma organização política, e os seus padres são estadistas e políticos, ansiosos pelas glórias do poderio material e da subjugação de reis e governos, ambiciosos de poder para si mesmos. O Santo Império Romano, através da corrupção, da intriga e da avareza, transformou-se no Negro Império Romano, que procura escravizar todos os homens para ficar cada vez mais rico. Que é feito da fé que antes lhe dava verdade e radiância? Tornou-se uma espada implacável nas suas mãos.

E acrescentou:

— Enquanto a espada da ambição não for quebrada, nenhum homem, em nenhuma parte do mundo, estará a salvo, nenhum governo estará firme, e o sonho dos justos, um sonho de liberdade e esclarecimento, terá que ser sonhado nas celas das prisões e na solidão mais escura.

Suspirou profundamente.

— A Igreja de Deus transformou-se na Igreja de patifes e saltimbancos, de atores e malfeitores, de mentirosos e inimigos, de intriguistas perigosos. A sombra da mitra está ofuscando o sol de Cristo.

Arsène fechara os olhos cansados, mas as palavras de François pareciam escritas em fogo contra um fundo escuro.

— Mas não pense — disse François, severamente — que a Reforma vá trazer luz, liberdade e justiça para os homens, se se preocupar apenas com coisas materiais, pois a fé deve ser sempre a primeira necessidade da alma, e a cerimônia da fé, o primeiro deleite dos olhos.

Após um breve silêncio, acrescentou:

— Não pode haver uma real libertação do espírito, sem Deus. Na luta contra a Igreja, não podemos abandonar a fé.

As suas palavras morreram para os ouvidos de Arsène, e o jovem adormeceu — um sono profundo e repousante.

Devia ter dormido bastante tempo, pois a sua primeira impressão, ao acordar, foi de que se tinham passado horas. E a primeira coisa que viu foi o rosto do abade, curvado sobre ele, sorrindo docemente.

Um intenso alívio tomou conta do jovem, e ele soltou uma exclamação de júbilo.

— Shh! — disse o abade, pousando-lhe a mão na testa. — Está tudo bem.

— Falou com meu pai? — perguntou Arsène, tentando levantar-se.

— Não — respondeu o abade. — Disseram-me que ele não estava bem, que estava doente de preocupação pelo filho, Arsène de Richepin, que desaparecera misteriosamente.

Arsène ergueu o rosto para ele, mas logo desviou os olhos, como que envergonhado.

— Conte-me — murmurou. — Conte-me como foi.

Pensou no pai, sofrendo de uma terrível dor e ansiedade, temendo falar para não prejudicar ainda mais o filho. Sentiu como que uma ferida abrindo-se no seu coração.

— Falei com o jovem de quem me falou — disse o abade, na sua voz suave. — Ele me levou à presença do seu irmão, Louis de Richepin, que haviam chamado à cabeceira do seu pai. Monsenhor de Richepin mostrou-se muito amável e muito preocupado.

Arsène voltou-se para o abade e olhou para ele sem falar. Parecia-lhe estar vendo o irmão, com o seu rosto pálido, de asceta, os seus cabelos louros e os seus olhos severos e fanáticos. Não temia aquele fraterno inimigo, pois sabia do amor não retribuído que Louis tinha pelo pai. Mesmo assim, não conseguiu esconder a preocupação que sentia.

— Não confiou nele, mesmo como padre? — perguntou por fim. — Meu irmão é um dos amigos mais íntimos do Cardeal e foi ordenado por ele. É meu irmão, mas sob certos aspectos eu confiaria mais no próprio diabo.

— Ele não me fez perguntas perigosas — retrucou o abade, com um sorriso. — Nem ficou muito espantado, quando lhe contei a minha história, de que o senhor fora ferido e estava sendo cuidado por amigos. Ficou satisfeito com o que eu lhe disse, embora me olhasse de maneira estranha e fria, como se com desconfiança. Depois, disse: “Fico tranquilo de sabê-lo nas suas mãos, mon abbé. Cuide também da sua alma, e não só do seu corpo”.

Enfiou a mão no bolso, e dele tirou um crucifixo de ouro, que colocou na mão de Arsène.

— Pediu-me para lhe dizer que ele próprio abençoara este crucifixo e esperava que lhe servisse de luz para guiá-lo de volta à casa.

Arsène rompeu a rir de maneira tão violenta que forçou a garganta e teve um acesso de tosse. Jogou o crucifixo para o abade.

— Fique com ele, lembrança do seu jovem pai em Cristo! — exclamou.

O abade ergueu o belo crucifixo, engastado de joias, e olhou-o intensamente. Depois, colocou-o suavemente na mão de Arsène.

— Não é o crucifixo que está poluído — disse, com ar grave.

— Não lhe fará nenhum mal, monsieur, e pode lhe dar conforto. Aceite-o, com a minha bênção.

Arsène revirou o crucifixo nas mãos escaldantes e depois pousou-o descuidadamente na mesa-de-cabeceira.

— Com a sua bênção, mon abbé, talvez tenha algum poder

— disse ele, gentilmente. — Sem dúvida percebe que éu sou um motivo de preocupação para a minha família, não?

O abade fingiu não ouvir. Apontou para um post-manteau que havia sobre a mesa.

— Aí estão algumas roupas, conforme pediu. E também cem coroas de ouro.

— O meu querido irmão não lhe pediu detalhes sobre a minha condição?

O abade hesitou, lembrando-se do breve mas visível brilho de esperança que perpassara o olhar do jovem padre, quando ele lhe contara que Arsène tinha estado muito doente e quase morrera. Recordou, também, que o brilho desaparecera quando ele garantira a Louis de Richepin que o irmão se recuperaria, e os comentários severos que se haviam seguido tinham-no convencido de que o jovem padre não estava muito satisfeito com a notícia e que, de certa maneira, ele, o abade, seria responsável por qualquer coisa que acontecesse de desagradável. Mas disse:

— Contei-lhe até onde pude, com discrição, e ele ficou satisfeito.

— Não procurou detê-lo?

— Não — respondeu o abade, de novo hesitando. — Pareceu-me muito preocupado com a condição do pai.

Não acrescentou que Louis de Richepin se mostrara muito nervoso durante a conversa e não parara de olhar para a porta dos aposentos privados, como se temesse que alguém estivesse ouvindo atrás dela, e que fora ele, e não o abade, quem se mostrara apressado. Além disso, não tinha parecido muito desejoso de saber detalhes. Sempre que o abade se oferecera para dá-los, o jovem padre franzira a testa e, quando o abade insinuara as circunstâncias que haviam levado Arsène a procurar abrigo, Louis de Richepin erguera a mão num gesto peremptório e altaneiro.

— Só pelo fato de o meu irmão se envolver em aventuras amorosas e noturnas, não vejo por que a família precise ficar sabendo dos detalhes — dissera ele, com frieza, e levantara-se como que a dar por encerrada a audiência. — Arsène é imprudente e atirado. Tem que arcar com as consequências.

Mas Arsène, olhando atentamente para o abade, adivinhou o que tinha acontecido. Lembrou-se de que Louis ajudara a espalhar o boato de que o irmão era um vagabundo e um libertino, sempre atrás das esposas e das amantes de outros homens. Arsène bem sabia que esses boatos eram provocados pelo medo da verdade. A sua vida tornara-se bem mais alegre e agradável, graças a tais boatos, e mais de uma bela dama o perseguira com ardor, graças a essa reputação.

Pobre e mesquinho Louis, pensou Arsène, com desprezo indulgente. Como devia tremer, que dilema devia ser o da sua consciência, protegendo o irmão odiado por causa do pai! Arsène regozijou-se, ao pensar no conflito que o irmão devia estar tendo, entre o amor filial e o dever sacerdotal. Mas não se podia prever o dia desastroso em que o dever triunfaria.

— Tem certeza de que não foi seguido? — perguntou Arsène ao abade.

— Certeza absoluta — respondeu o ancião.

Ouviu-se bater suavemente à porta da rua, e o abade levantou-se para abri-la, pois François estava ocupado com Cécile, na cozinha, preparando o saboroso jantar comprado com o dinheiro de Arsène.


Capítulo VII

O abade Mourion acolheu o recém-chegado com exclamações de prazer e levou-o até à cabeceira de Arsène.

— Este, monsieur — disse ele, sorrindo —, é outro dos seus -enfermeiros, meu sobrinho Henri.

Cansado da emoção, para ele nova, da gratidão, Arsène sorriu polidamente, enquanto o estranho lhe trazia uma reverência encabulada. Homem de extremos e veemências, Arsène decidiu imediatamente que não simpatizava com Henri Chalon. A orgulhosa dignidade de François, o suave heroísmo do abade, a independência e a gravidade da jovem Cécile, tudo isso estava ausente naquele rapaz. Suas maneiras eram afetadas, nervosas e quase servis.

Havia, além disso, algo, na palidez do seu rosto fino, que fazia Arsène se recordar do irmão, Louis. Henri era alto e magro, com ombros curvos e redondos e gestos fúteis e. hesitantes. Suas roupas, embora pobres, tinham um leve ar janota. Um babado de renda barata adornava-lhe a gola e os pulsos finos, e ele usava botas que evidentemente lhe haviam sido dadas, mas que ele engraxara até ficarem brilhantes. O cabelo, escuro e comprido, enrolava-se sobre os ombros com graça artificial. Não obstante, ele tinha uma certa beleza, que Arsène recordava vagamente. Seus traços eram finos, até delicados, e havia um quê de aristocrático nas narinas sensíveis e no longo e estreito nariz. Seus olhos eram extraordinariamente grandes para um homem, suaves e profundos, como se fossem de veludo castanho. Tinha a boca pequena, fraca e bem-feita. Contudo, era a expressão dele o que irritava Arsène — demasiado ansiosa, demasiado tímida, demasiado conciliatória, mas denotando, de vez em quando, uma arrogância desconfiada. Segurava na mão um chapéu emplumado. Aquele, então, era o poeta, o noivo da jovem e severa Cécile, o aspirante à posição de lacaio em casa de Madame de Tremblant.

Arsène sentiu vontade de rir daquele candidato a gentil-ho- mem. Não gostou da atitude dele para com o abade, que evidentemente o adorava. Eram visíveis a sua petulância e a sua arrogância, semelhantes às de uma mulher. Mas, para com Arsène, todo ele era deferência, se desfazia todo em atitudes gentis.

— Estimo, monsieur, que o senhor esteja se recuperando dos seus padecimentos — disse ele, numa voz alta e demasiado musical.

— Estou bem — retrucou Arsène, com uma secura que não pôde controlar. — Muito obrigado por tudo.

— Oh, não foi nada, absolutamenté nada — disse Henri, com um gesto ansioso. Olhou desdenhosamente para o quarto miserável. — Nossa única pena foi não poder dar-lhe um quarto melhor. Se tivéssemos sabido da sua identidade. . .

— Sou Arsène de Richepin — disse Arsène e olhou para o abade, que por sua vez olhava para Henri com orgulho e adoração.

Sentiu raiva, como se o abade se tivesse degradado.

Henri fez nova reverência, os longos cabelos caindo-lhe quase até os joelhos, e uma espécie de floreado com o chapéu emplumado. Arsène mordeu o lábio.

— E eu, Monsieur de Richepin, sou Henri Chalon, às suas ordens. — Voltou-se, com ar imperioso, para o abade. — Tio, Monsieur de Richepin tem tudo o que deseja, para esta noite?

— Tem, sim, Henri. Não vai ser necessário você pernoitar mais aqui.

Uma das mãos enrugadas do abade tocou na manga do sobrinho.

Henri Chalon pareceu muito desapontado. Disse, em tom de quem pontifica:

— Não concordo, tio. Uma ou duas noites mais vão ser necessárias.

— Pelo contrário — disse Arsène. — Estou quase bom e não quero privá-lo de uma noite que seja de sono.

— Não será uma privação, monsieur — falou Henri, com nova reverência —, e sim um prazer fazer-lhe companhia.

Sentiu o delicioso aroma que vinha da cozinha e olhou interrogativamente para o abade.

— É, vamos ter um banquete, esta noite — disse o abade, alegremente.

O rosto pálido e fino de Henri Chalon iluminou-se como que em êxtase. Uma sensação de inquietação tomou conta de Arsène, e ele virou a cabeça e fechou os olhos. À medida que as forças lhe voltavam ao corpo, voltavam-lhe também o velho egocentrismo e o antigo orgulho. Suas negras sobrancelhas franziram-se sobre as pálpebras cerradas, e o seu perfil aquilino tornou-se mais agudo. Criado numa classe que considerava o povo como sendo menos do que vermes e mais impotente do que eles, não podia deixar de sentir desprezo por aquelas criaturas, que achavam alegria na simples antecipação de um jantar. Depois, sentiu desprezo por si mesmo, por ter descido a ponto de honrar aqueles vermes com o seu desdém.

Pensando que ele estava cochilando devido à fraqueza, o abade e seu sobrinho sentaram-se à luz da vela, perto da cama, e puseram- se a conversar em voz baixa. Arsène ouviu o que eles diziam, as sobrancelhas tremendo de impaciência. Esqueceu tudo, a recente gratidão, a nova compaixão que descobrira com François Grandjean e com o Abade Mourion. O velho e o rapaz falaram de coisas pueris: das pessoas que moravam em volta deles, do tempo e de outras coisas inconsequentes. A voz do abade era baixa e suave, a de Henri, pomposa e cheia de vaidade e amor-próprio. Se sabiam algo do mundo para além das suas fronteiras miseráveis, não parecia. De repente, Arsène, que desprezara as intrigas, os escândalos e os deboches dos nobres e da Corte, achou todas essas coisas importantes, divertidas e excitantes. Pôs-se a pensar em Clarisse, sua noiva, e sentiu por ela um desejo profundo, que nunca dantes experimentara.

Esqueceu o estranho sonho de libertação e fúria, e ficou consciente apenas da enxerga de palha, dos cheiros fétidos e poeirentos do quarto, do aroma enjoativo do coelho e da galinha cozinhando. Remexeu-se na cama e suspirou profundamente. Sentiu o abade levantar-se e inclinar-se sobre ele, e estremeceu.

— Está dormindo — disse o abade, em voz baixa. — É jovem. Ainda pode dormir.

Henri falou, num tom que demonstrava indulgência para com a ingenuidade do tio:

— E por que não haveria de dormir? Ele esteve muito doente, mas agora está se recuperando. Que coisa extraordinária! Eu já desesperava de que algo de bom me acontecesse, e eis que Monsieur de Richepin entra nesta casa de maneira tão estranha. Agora, é como se fosse uma luz nas trevas.

— Não entendo, Henri — disse o abade, voltando para o seu banquinho. — Que importância tem isso para nós?

Henri ficou um momento calado, mas logo disse, com um misto de impaciência e encabulamento:

— Sem dúvida ele vai mostrar-se grato. — Fez uma pausa e continuou, com um quê de raiva: — Só os poderosos podem favorecer as artes. Tenho as minhas esperanças. . .

O abade ficou um momento pensativo. Depois perguntou, num tom que denotava embaraço:

— Henri, decerto você não está pensando em incomodá-lo, está?

Parou abruptamente, como se a vergonha que sentia fosse demasiado forte para lhe permitir continuar.

Henri explodiu, com veemência efeminada:

— E por que não? Acha que eu posso me contentar para sempre com esta nossa vida miserável, com esta degradação de corpo e espírito? Tio, talvez o senhor esteja satisfeito; eu não estou. Preferia morrer a viver para sempre assim! Se acha que eu deva estar satisfeito, por que me ensinou tanta coisa? Por que me abriu os olhos? Por que me inspirou?

O abade interrompeu, com voz trêmula:

— Ensinei-lhe o que pude, Henri, para que você fosse sábio, tivesse compreensão e humildade diante de Deus. A glória da sabedoria está nela mesma. Ou a pessoa deve querer adquirir sabedoria para ser recompensada com as coisas deste mundo? — Calou-se um momento, e depois continuou, com profunda tristeza: — É suficiente, para um homem, conhecer Deus através do aprendizado da Sua glória, da Sua existência. Esse é o princípio, o fim e o propósito da sabedoria.

— Não compreendo! — exclamou Henri, com desprezo. — Só sei que não posso suportar mais esta vida. Preciso sair dela!

Via-se que aquele era um velho tema de discussão entre os dois, pois o abade limitou-se a suspirar e a calar. Após um longo silêncio, o abade dissè:

— Se você tem que se preocupar com este mundo, preocupe- se com as suas misérias, com os seus sofrimentos. Dedique a sua vida a minorar a dor e o padecimento. Entoe os cânticos do povo, para que os surdos ouvidos do poder possam ser tocados e o duro coração da majestade possa comover-se. Cante a piedade, a justiça, a misericórdia. Os versos artificiais e maneirosos, feitos para agradar aos ouvidos decadentes dos ociosos e dos ricos, morrem como notas de flautim em meio a um furacão. — E acrescentou, com terrível solenidade: — Pois o furacão se aproxima e só uma voz forte e destemida se fará escutar acima dele.

Arsène, que tudo ouvia, sentiu-se, a contragosto, interessado. Estranhas palavras, naquele miserável tugúrio, em meio às sarjetas de Paris! Lembrou-se do sonho e sentiu uma misteriosa excitação. Quantas vozes como aquela, do abade, haveria em todo o mundo? Quantas estariam falando coisas estranhas e revolucionárias, em arrabaldes esquecidos das grandes cidades orgulhosas? Arsène teve a impressão de ouvir de novo o clamor de pés correndo através da tempestade, só que agora os passos saíam das sarjetas e eram as passadas de um exército.

Devia ter adormecido porque, quando de novo acordou, havia duas velas sobre a mesa e o som de risadas. Cécile colocara tigelas, pratos e colheres em cima da mesa, e havia uma grande terrina de galinha e coelho, temperada com molho de vinho e ervas. Havia também uma garrafa de vinho e um prato com pão branco. Arsène ouviu exclamações, misturadas com as risadas.

— Tabaco! — disse François. — Faz tanto tempo que eu não fumo um bom cachimbo! Minha filha, você não devia ter comprado tabaco para mim com o dinheiro de Monsieur de Riche- pin.

— Por que não? — retrucou Cécile friamente. — Também lhe comprei um novo cachimbo, vovô. O senhor não estava poupando para isso e não teve que gastar o dinheiro em unguentos para Monsieur de Richepin?

Estava de pé, perto da vela, e Arsène, ao acordar, viu-a só a ela. Parecia muito pálida, com um ar cansado, e até mesmo os lábios tinham perdido a cor rosada. Mas mantinha a cabeça erguida, e a luz formava sombras douradas nas suas tranças, enroladas em volta da pequena cabeça. A nobreza em que Arsène primeiro reparara emprestava um ar grave às suas belas feições, e os seus olhos azuis, embora olheirentos, eram grandes, profundos e aristocráticos. Seus seios, jovens c pontudos, assomavam sob o corpete negro, e ele reparou na força e na esbeltez dos seus ombros e braços, nos movimentos seguros e calmos dos seus dedos calejados e na flexibilidade dos seus pulsos. Tinha apenas quinze anos, mas já possuía uma severa maturidade, uma firmeza e — no rápido luzir dos seus olhos — uma peculiar intrepidez muito acima da sua pouca idade. O interesse de Arsène cresceu, como sempre acontecia quando ele via uma mulher bela ou fora do comum, e sentiu uma súbita compaixão por aquela menina.

Cécile, por sua vez, reparou no olhar dele e parou de cortar pão para fitá-lo. Tinha estado a sorrir, mas, quando os seus olhos encontraram os dele, o sorriso desapareceu, e as sobrancelhas castanho-claras da jovem se franziram.

— O senhor está acordado, monsieur? — perguntou ela, numa voz reservada e indiferente, apesar da doçura do timbre.

François deu a volta à mesa e sorriu para Arsène.

— Estávamos esperando que acordasse, monsieur, para podermos saborear juntos o jantar, comprado com o seu dinheiro — acrescentou, erguendo uma sobrancelha.

— Comprado com o dinheiro que nós ganhamos, vovô — retrucou Cécile, voltando a cortar o pão.

— Agradeço-lhe o tabaco e as considerações que levaram a comprá-lo — disse François, gravemente.

Arsène riu. Seus dentes brilharam, brancos e jovens, à luz da vela. Seus olhos escuros riram também, e ele soergueu-se, apoiado no cotovelo. Com um murmúrio solícito e um olhar reprovador a Cécile, Henri Chalon levantou-se e arrumou os travesseiros bolorentos , atrás de Arsène, para que ele ficasse mais confortável. Cécile viu aquilo com uma expressão divertida nos olhos. Sentado no seu tamborete, o abade sorria docemente. De repente. Arsène lembrou-se dos camponeses que trabalhavam nas propriedades do pai e da populaça que enchia as ruas de Paris, e ficou pensando na sua simplicidade. Aqueles três, ali, naquele quarto miserável, eram tão camponeses ou tão populaça quanto ele próprio. Por alguma razão, que não se deu ao trabalho de examinar minuciosamente, seu estado de espírito melhorou, sua atitude tornou-se mais cortês, e encarou até o pobre do Henri Chalon com olhos generosos e compreensivos.

Olhou para François e disse, com falsa gravidade:

— Encarreguei mademoiselle, esta manhã, de comprar para o senhor o melhor tabaco e o mais fino cachimbo. Espero que os aceite como uma pequena expressão da minha gratidão.

François sorriu, os lábios de Cécile abriram-se involuntariamente num sorriso, e Henri Chalon ficou perplexo, olhando de um para o outro. Ao encarar o tio, ficou ainda mais confuso, pois o abade fitava Arsène com súbita consternação e tristeza. Arsène também reparou no olhar dele, tão grave e sensato, e de repente sentiu um rubor subir-lhe às faces. Para o diabo, o velho padrei Seria ele realmente capaz de ler os pensamentos das pessoas?

— Somos gente pobre e miserável — disse lentamente o abade. — Agradecemos os pequenos presentes e a condescendência daqueles que têm poder para nos oprimir.

François achou muito estranho aquele comentário; Cécile abanou a cabeça, os olhos faiscando, e Henri abriu a boca. Mas Arsène desviou o olhar, e o rubor cresceu nas suas faces, ao mesmo tempo em que espichava o lábio inferior com altanaria.

Henri recobrou o aprumo e inclinou-se para Arsène com uma revoltante mistura de servilismo, bajulação e desejo de conciliação.

— Sim, monsieur — disse ele, na sua voz fina, que parecia não ter ressonância. — Não pense que somos ingratos. . .

— Ingratos! — exclamou Cécile, indignada.

Segurava o facão de cortar pão na mão e parecia chocada.

— Monsieur é que não deve se mostrar ingrato, ele que tanto nos deve!

Arsène sorriu de novo. Inclinou a cabeça na direção de Cécile, mas olhou para Henri com um desdenhoso retorcer de lábios.

— Estou realmente em dívida com todos vocês — disse ele.

— E não creio que vá me esquecer. Mademoiselle tem toda a razão

— acrescentou. — É uma jovem com discernimento.

E atirou-lhe um olhar sorridente.

O rosto pálido e fino de Henri iluminou-se de súbita esperança. Olhou para os amigos com ar de júbilo. Mas Cécile, o sobrolho franzido, encheu o prato do noivo e passou-o para ele com certa irritação. Encheu os outros pratos, e Arsène reparou que os melhores pedaços eram para o abade e para o avô. Depois, deitando a

Arsène um olhar velado, hesitou e, a contragosto, tirou um pouco da carne mais branca dos pratos dos outros e colocou-a no dele. Arsène observava-a atentamente. Estava encantado com a beleza dela, e os seus olhos passearam pelo rosto e pelo corpo da jovem, sem esconder o prazer que sentiam.

Para sua surpresa, descobriu que Cécile era uma excelente cozinheira. Nem mesmo Anton, o precioso mestre-cuca de seu pai, seria capaz de obter um resultado melhor, com o mais fino vinho e as ervas mais exóticas. O vinho não era mau. O pão estava fresquinho. A comida parecia fazer-lhe voltar as forças, a saúde e a juventude. Teve uma sensação estranha, ao ver o apetite desmedido dos outros. Até o abade comeu copiosamente. François bebeu vários copos, e a gravidade da sua expressão cedeu. Sua cabeça já não era a cabeça de um velho cansado, e sim a de um senador romano. Só precisava de uma toga. A única pessoa que conservou alguma dignidade foi Cécile, que comia com cuidado, sorrindo de leve diante dos elogios dos outros. Henri, tranquilizado e corado, olhava-a com uma adoração que parecia surpreender a moça, pois ela deitou-lhe um olhar intrigado e vagamente afrontado.

Uma forte chuva de primavera começara a cair, na rua, batendo com estrépito no telhado e nas gelosias. A luz da vela bruxuleou, espevitou-se, lançou longas sombras sobre as paredes úmidas e rachadas. Mas havia calor, bondade, sorrisos e risadas ao redor daquela pobre mesa, cheia de comida, e Arsène esqueceu-se de que estava num tugúrio. Sentiu que estava no meio de amigos velhos, e o seu coração encheu-se de boa vontade para com eles e de gratidão pela sua companhia.


Capítulo VIII

Arsène pensou que tinha dormido apenas um momento, pois ouviu ainda conversas, quando acordou. Mas, ao despertar completamente, viu que as duas grandes velas estavam quase consumidas e que a sua luz era agora fraca e amarela. Além disso todos os vestígios do jantar tinham desaparecido, e o tampo da mesa estava úmido de ter sido esfregado. Sombras compridas e finas subiam pelas paredes e pelo teto. A chuva continuava a cair lá fora, e as sarjetas gorgolejavam com a água que atraíam.

As vozes que ele ouvira ao acordar eram graves e abafadas. Arsène olhou por sob as pálpebras e viu que apenas o Abade Mou- rion e François Grandjean estavam no quarto e haviam se afastado, para não perturbar o doente. Suas cabeças estavam inclinadas, quase juntas. Eram apenas dois velhos, gastos e grisalhos, mas os seus rostos tinham a elevação da inteligência e a austeridade da sabedoria. O rosto do abade era terno e triste, ao passo que o de François, embora também triste, refletia uma severidade latente e uma serenidade ao mesmo tempo amarga e paciente. A luz das velas iluminava-lhes tenuemente as feições, ressaltando-lhes as maçãs do rosto na carne mirrada, penetrando-lhes as órbitas e realçando- lhes as testas enrugadas.

Houve uma pausa na conversa, que o abade quebrou com um suspiro.

—• Meu amigo, está ficando muito tarde. Asseguro-lhe, uma vez mais, que o nosso hóspede está quase bom e que, dentro de alguns dias, não restará nenhum sinal da doença, a não ser uma certa fraqueza e aquela cicatriz na face. Mas dessa ele vai gostar!

E o abade sorriu ternamente, como sempre quando falava nas bravatas dos jovens e na sua veemência.

— Por isso, faça o favor de se deitar, pois está mais morto do que vivo.

François abanou a cabeça, distraidamente.

— Tinha um pouco de febre, quando adormeceu. Além disso, há coisas que precisamos fazer para ele.' Não vou despertá-lo, pois descobri que o sono faz mais do que qualquer unguento. Mas o senhor, caro abade, não há razão para o senhor ficar comigo.

O abade suspirou de novo.

— Não fiquei com você, sempre que pude? Além do mais, esta noite estou sentindo um certo peso, um mal-estar. Na sua presença, meu amigo, sinto-me um pouco aliviado.

François ficou um momento calado e depois disse, com visível dificuldade:

— Nunca lhe disse nada a meu respeito, embora sabendo que isso seria justo. Talvez, se o senhor soubesse, não quisesse que o seu sobrinho casasse com Cécile, embora Henri pudesse achar interesse na história. . .

O abade pousou suavemente a mão no braço do amigo.

— Com relação a você, meu caro François, deixo de ser um padre para ser apenas seu amigo. Não me diga nada. Não é bom reavivar velhas feridas. Conheço a sua alma, e isso é o bastante para mim.

Arsène escutava com grande interesse e surpresa, obscuramente satisfeito com o significado daquelas revelações. Esperou que François se abrisse, mas, em vez disso, o velho suspirou repetidas vezes como st tivesse o coração sobrecarregado.

Disse apenas, numa voz abafada:

— Como sabe, Cécile não tem dote.

— Tem o seu coração e tem a ela mesma — retrucou o abade, numa voz ligeiramente trêmula.

— Preocupo-me com a menina — disse François, como que para si mesmo. — Que é que esses dois podem esperar da vida? Nada. Abdiquei de tudo, por meio de um único gesto impensado e apaixonado. Agora que estou velho, fico pensando. Nunca temi a fome e nem o terror, mas agora eu me pergunto: Gostaria que Cécile tivesse que enfrentar isso durante toda a sua vida? O que me parecia heroico parece-me horrível para a minha neta. Somos capazes de tudo suportar, menos que os nossos filhos passem pelo mesmo.

— Mas Cécile tem muito da sua alma, François. É valente e forte, bem mais valente e mais forte do que Henri.

François explodiu subitamente num riso incontrolável, cheio de desespero. Sacudia a cabeça com violência, mas nada dizia. Parecia estar rindo de si mesmo. Passou as mãos pelo rosto barbado e abanou de novo a cabeça. O abade olhava para ele, comovido e alarmado.

Mas logo François começou a falar, a princípio em voz baixa, depois com crescente paixão, sublinhada pelo bater dos punhos cerrados nos seus joelhos puídos. Ao mesmo tempo, olhava para o espaço, mas parecia nada ver, enquanto dizia:

— Nunca temi os homens ou as coisas que eles fazem. Mas agora as vejo, reveladas em todo o seu terror. Sempre me senti capaz de arcar com o meu destino, mesmo nas horas mais terríveis. Havia em mim uma ilusão, uma espécie de delírio. Agora, vejo que o meu sonho era apenas sordidez e loucura. Espanto-me da minha ousadia, de ter pensado que poderia lutar contra o mal que há no mundo. Como posso ter sido tão louco? Agora vejo que a minha vida foi em vão, comparada com a de outros homens, que são maus, cruéis e perversos. Eles são fortes. O mal é mais forte do que o bem, mais poderoso do que Deus. Às vezes, penso que gostaria de voltar a ser jovem, nestes dias portentosos. Digo a mim mesmo que nunca o mundo precisou mais de uma voz e de uma mão fortes, do que agora, em que o mal é mais poderoso do que a virtude.

Fez uma pausa, e o silêncio tomou conta do quarto, iluminado com a luz mortiça das velas. Depois François continuou, numa voz rouca, de quem tentava controlar a paixão:

— Esta hora fatal, de guerra e intriga, de movimentos secretos e subterrâneos! Estes dias terríveis, em que os malfeitores se movimentam nas trevas! Onde estão o bem e a misericórdia? É isso o que eu penso, que estou velho e não fiz nada. Às vezes, fico pensando que tudo isso é fútil, até mesmo os desejos.

Sua voz tornou-se um murmúrio, e a mão descaiu-lhe para o peito. O abade contemplava-o com uma expressão de compaixão.

— Só uma alma nobre pode sentir isso — disse, suavemente. — Perdoe-me se o ofendo, mas não posso deixar de lhe dizer isto. Há os que gritam que nunca, como agora, os maus puderam tanto. Pois eu digo que essa observação provém de uma ignorância da história, e do mal perene que existe num certo tipo de criatura. Todas as gerações têm os seus malfeitores, os seus vilões, as suas criaturas sem alma e sem escrúpulos. Temos que lidar com eles, como lidamos com outros fenômenos violentos da Natureza, como as pragas e as epidemias, orando a Deus.

François não respondeu. Seus olhos fitavam o chão numa espécie de horror hipnótico.

— Precisamos ter fé, não na humanidade — disse o abade, com tristeza —, mas no que a humanidade pode vir a tornar-se.

François continuou calado. Ria silenciosamente para si mesmo, e havia algo mais terrível do que o som, naquele riso mudo.

O abade voltou a falar, mais alto agora, e num tom de urgência:

— O tempo e a topografia da história mudam, mas o homem c as verdades eternas, que estão na natureza do homem, permanecem para sempre as mesmas. O homem é o potencial imortal, no meio do fluxo caótico. Mesmo nos momentos mais desespera- dores, nunca me esqueço disso. Mesmo quando vejo os homens chafurdar, e a ruína que causam à sua volta, acredito, tenho que acreditar, que neles há todas as potencialidades dos anjos e que essas potencialidades têm finalmente que emergir, apesar dos tempos de trevas.

Arsène pensou que devia estar sonhando, que a febre devia estar fazendo com que ele evocasse aquelas palavras, em meio ao silêncio que reinava no tugúrio. Ouvia com atenção, como se fossem ditas numa língua que ele não entendesse bem e precisasse aguçar os ouvidos para lhes captar o significado e, captando-o, ficasse incrédulo. Não era possível que o significado fosse aquele! Ele devia estar cheio de febre, não podia estar ouvindo aquelas coisas estranhas, ditas à meia-noite por dois velhos alquebrados e vestidos de trapos!

Mas, ao mesmo tempo em que a si mesmo dizia aquilo, sentia um misterioso pulsar do coração. Era como um cego, que sente o calor do sol nas pálpebras fechadas. Nunca viu o sol, mas tem consciência do seu poder e da sua imensa glória.

Desacostumado de pensar, familiarizado apenas com as emoções mais superficiais, vivendo apenas através dos seus instintos exuberantes e da paixão pela aventura, Arsène achava aquela nova sensação avassaladora, caótica e algo assustadora. Toda a sua mente, todo o seu ser estavam como que convulsionados, abalados por um vento forte e quente, deslumbrados por luzes sobrenaturais, completamente desorientados. O ceticismo, de que sempre se orgulhara, fora varrido, como uma folha é levada por um remoinho. Apaixonado e violento, possuído por uma ingenuidade que podia ser perigosa na sua força, ele não era dado a interrogações e análises, a uma contemplação ajuizada. Portões tinham se aberto ante os seus olhos. O instinto e as emoções faziam-no ficar diante deles, boquiaberto ante o que eles revelavam. Mais tarde, viria a desilusão para aquele homem ardente. Nisso estava o perigo.

Os seus pensamentos, as suas emoções exauriram-no pela sua própria intensidade, embora ainda não tivessem uma forma definida, como se fossem nebulosas, que contivessem as potencialidades de novos mundos. Arsène fechou os olhos, aparentemente por um momento. Quando voltou a abri-los viu que estava só. Os dois velhos tinham desaparecido, com suas palavras enigmáticas, velhas e eternamente novas. O coto de uma vela tremulou e sibilou, prestes a morrer.

Ouviu um rumorejar perto dele, uma suave respiração, um movimento. Cécile aproximava-se da cama. Julgando que o doente dormisse profundamente, aproximou-se, de camisola, os longos cabelos louros desatados espalhando-se pelos seus ombros e busto. Arsène semicerrou instintivamente os olhos, mas podia ver a derradeira luz da vela brilhar-lhe nos cabelos, aureolar-lhe de ouro as têmporas muito brancas. Quando ela se inclinou sobre ele, viu as veias azuis no seu colo jovem, sentiu a quente maciez da sua carne, revelada através do decote da camisola. Toda ela exalava a úmida doçura da juventude, semelhante a um sopro de primavera, um perfume novo para narinas acostumadas a aromas artificiais. Olhando através das pestanas, sentindo o súbito pulsar do seu corpo, Arsène via-lhe apenas os pálidos lábios entreabertos, descaindo de cansaço, e a curva macia, porém firme, do seu queixo.

Cécile hesitou, inclinada sobre ele. Arsène sentia a mão dela pousar-lhe de leve na testa, vendo se ele tinha febre. Depois, com um suspiro, ela soprou a vela. O ar úmido e bolorento do quarto licou permeado do cheiro acre da cera derretida e do pavio apagado. O quarto estava agora inteiramente às escuras, mas cheio da respiração dela e das emanações da sua carne jovem.

Mas ela não foi logo embora. Arsène ouviu-a suspirar de novo. A sua presença era mais urgente, mais necessária na escuridão do que à luz. Era como que uma força magnética, inocente, compul- siva, cheia de paixão e embriaguez.

Então ele sentiu os lábios dela na sua testa, como um toque de relva de verão, fragrante e quente do sol.

Cécile se fora, deixando-o no escuro, com os olhos muito abertos, ouvindo o sangue pulsar-lhe nos ouvidos e sentindo uma emoção desconhecida no coração.

Era como se, pela primeira vez na vida, ele tivesse consciência de algo inefavelmente doce e encantador, por demais emocionante, e tão irresistível, poderoso e tremendo, que ninguém, nem Deus, se lhe poderia opor.


Capítulo IX

— Certes! — exclamou Armand, Marquês du Vaubon, irritadamente para Louis, seu filho. — Você tem uma opinião bem má do seu irmão!

— O responsável por essa opinião não fui eu — retrucou Louis, com a sua costumeira sobranceria, ao mesmo tempo tão humilde. — Os homens é que criam as opiniões dos outros.

Estava sentado numa cadeira dourada, no pomposo quarto de dormir do marquês, cuja atitude ele reprovava pela sua frivolidade e inconsistência. Arsène muitas vezes dissera que Louis era capaz de mostrar mais desaprovação e desagrado pela simples posição dos seus ombros largos e magros e pela postura da sua cabeça do que outros homens, por meio de gestos, olhares ou palavras.

Louis de Richepin, Monsenhor du Vaubon, era ainda jovem e extremamente belo, de uma beleza de estátua assexuada. Essa condição de assexuado era a mesma dos grandes anjos de mármore da Catedral, cuia masculinidade é revelada pela ausência de curvas e busto, e pela posse de grandes rostos severos e de contornos fortes. Havia em Louis de Richepin a majestade do mármore, a inexora- bilidade da pedra, as dimensões de um arcanjo criado pela imaginação de um escultor. Alto, seco, esbelto mas de movimentos lentos, tinha no corpo uma elegância dura e aristocrática e em todo ele uma calma impressionante e intimidante. O próprio Cardeal declarara, com um misto de aborrecimento e espanto divertido, que Louis muitas vezes lhe dava medo, com os seus silêncios altaneiros, a sua nobre reticência e severidade, a fria e impessoal censura que se lia nos seus olhos pálidos e gélidos. Louis era louro, quase destituído de cor, lembrando, às vezes, uma estátua de neve e gelo, vestida com o preto e o branco das roupas eclesiásticas. Suas mãos eram brancas, finas, mas muito fortes. Caminhava com augusta dignidade. Todo ele lembrava, no tamanho, na frieza, um iceberg.

O Cardeal, que secretamente desprezava e temia o verdadeiro celibato, esforçara-se, sutilmente, para apresentar Louis a mulheres irresistíveis, procurara-lhe oportunidades de encontros lascivos. Mas fora tudo em vão. Havia outra coisa que também enfurecia o Cardeal: Louis não tinha nada do apetite dos franceses, nenhum amor pela boa mesa. Isso causava grande irritação em Richelieu, que muitas vezes dizia:

— Eu nunca mandaria um amante de iguarias para uma missão em que os escrúpulos tivessem que ser postos de lado. Mas também não confiaria num homem que não liga para um bom vinho ou um prato requintado.

Não obstante, ele confiava no seu secretário, Louis de Richepin, como não confiava nem no comandante dos seus mosqueteiros ou no seu parente, o Padre Joseph, a Eminência Cinza. Naquela ausência de paixões humanas, naquela austera majestade, residiam as qualidades em que mesmo um homem tão sutil e diabólico como Richelieu confiava, como nem no seu Deus. Sentia também um pouco de vergonha diante dessas qualidades, uma vergonha que se escondia no fundo da sua alma tortuosa e maquiavélica. Por vezes, acusava-se de certa ingenuidade na confiança que depositava em Louis, mas nunca tivera bases que justificassem essa acusação.

A devoção de Louis à Igreja e ao Cardeal não podia ser questionada. Era capaz dos mais extraordinários sacrifícios e das maiores provas de desprendimento. Nunca pensava em si. Vivia apenas para servir à Santa Madre Igreja e aos seus representantes. Às vezes, o Cardeal, observando-o com o canto dos seus olhos astutos, ficava pensando se Louis não teria ouvido nenhuma das histórias incríveis, mas verdadeiras, que se contavam a seu respeito. Se Louis as ouvira, era evidente que não lhes dera crédito. Se tivesse acreditado nelas — disso o Cardeal estava certo — não teria hesitado em denunciar o seu superior, ou mesmo em destruí-lo abertamente. Por isso, embora com grande impaciência e irritação, o Cardeal disfarçava muito da sua natureza irascível e voluptuosa na presença de Louis, mas, mesmo assim, por vezes não conseguia resistir a exibir alguns dos seus traços de caráter, movido por um desejo irrefreável de espantar ou confundir o seu secretário. Acabara chegando à conclusão de que Louis era incapaz de suspeitar de que alguém tão ilustre e brilhante quanto o Cardeal fosse capaz de ser venal, perverso ou traiçoeiro.

Muitos odiavam Louis e o temiam, pela sua enorme influência junto do Cardeal, que todos sabiam confiar nele acima de qualquer outro homem. Muitos procuravam utilizar-se dessa influência, sem obter o menor resultado, sem que Louis sequer suspeitasse de que a tentativa fora feita. Uma vez, o próprio rei tentara sondar Louis, no sentido de saber detalhes sobre o Cardeal, mas Louis olhara para Sua Majestade de maneira tão gélida, tão perplexa, que o rei sentira ao mesmo tempo raiva, vergonha e espanto.

— À porta da casa do Cardeal há um homem feito de gelo transparente e que não derrete — comentara o rei, furioso, mas com uma cerra e secreta admiração pela própria metáfora.

Nunca, nem puxando pela imaginação, podia Armand suspeitar de que Louis sentia por ele o único amor humano que já dispensara a qualquer criatura. Se alguém lhe tivesse dito isso, ele teria ficado boquiaberto, atônito, achando que a pessoa era idiota. Só Arsène sabia disso e às vezes ficava pensando se não estaria louco. O que havia naquele homem feminino, nervoso, de emoções fáceis e voz de mulher, de paixões imprevisíveis mas mesquinhas, de caprichos insensatos e espírito malicioso, que fosse capaz de inspirar uma devoção tão completa e glacial? Porque havia algo de glacial e medonho naquele sentimento. Era como se uma montanha coberta de gelo tivesse concebido um amor imenso, terrível e mudo por um pardal, um amor que nada tinha de humano ou de natural, sem sangue e sem calor, mas trazendo no seu bojo ventos sinistros, capazes de mover as entranhas da terra, e o poder de rios sombrios, correndo através de tortuosas cavernas, e relâmpagos estéreis, que ziguezagueiam sobre picos pedregosos, inacessíveis ao homem. Era assustador, era medonho. E a pobre criatura, que era vítima, em vez de receptora desse amor, seria esmagada, aniquilada, daria berros histéricos, se chegasse sequer a suspeitar da existência desse sentimento. Por isso, Arsène, apesar de se dar conta daquilo, com uma intensidade estranha num rapaz tão sensual e tão sem imaginação, tinha o cuidado de apenas dizer ao pai, quando intercedia pelo irmão:

— Mas Louis gosta muito do senhor, meu pai, portanto seja mais paciente com ele.

— Pode ser, mas ele tem por você uma aversão que não é natural — retrucava Armand, em tom petulante. — Como é que então você, seu pobre-diabo, pode querer que eu sinta senão aborrecimento em relação a ele? Além disso, ele me oprime. Dá-me calafrios. Sempre me deu. Devia tê-lo estrangulado, quando ele nasceu. — E ria, infantilmente e com maldade, como se essas palavras o fizessem vingar-se do filho. — Ele não é humano. Nasceu sem partes de homem.

Deitado na sua posição de inválido, junto à janela ensolarada, naquele dia quente de primavera, Armand pensou nisso, ao olhar para Louis, sentado diante dele, tão rígido, tão alto, tão ereto na sua batina preta. Louis parecia ter uma aversão inconsciente à luz do sol. Sentava-se na sombra. Mas os raios do sol se refletiam no seu belo rosto, como se fossem lanças de radiância, tocadas pelo gelo. Parecia mesmo uma estátua. Armand não se apercebia de como ele era patético, de como era só, horrivelmente só. Não fazia a menor ideia do desespero frio e amargo, negro e monstruoso, que se ocultava nas cavernas subterrâneas e anônimas da alma solitária de Louis. Não sabia que a única emoção de que Louis era capaz, além do amor pelo pai, era o ódio. E mesmo esse ódio não tinha as características humanas de homens menos importantes do que cie, embora contivesse, em estado latente, a mesma crueldade, a mesma falta de escrúpulos, a mesma inexorabilidade, a mesma monstruosidade. Armand só sabia que Louis alternadamente o irritava, o assustava, o fazia ficar embaraçado e curiosamente sem ar, como se o jovem sacerdote trouxesse consigo o ar rarefeito, a sensação de incapacidade de respirar, peculiar às grandes alturas.

Armand não era um inválido, mas estava-se recuperando da aflição e apreensão causadas pelo misterioso desaparecimento de Arsène. O seu natural nervoso fazia, porém, com que ele fosse vítima de frequentes ataques de lassidão, dores vagas, exaustão e melancolia. Tudo isso induzia uma indolência paradoxal em uma pessoa lão nervosa, rápida de movimentos e inquieta. Seu corpo, seu rosto, seu temperamento eram os de um homem irrequieto e caprichoso, o que ele realmente era, quando estava no seu estado normal. Detestando toda e qualquer responsabilidade, desconfiado, velhaco, puerilmente traiçoeiro, tinha frequentemente que se retirar para os seus aposentos e descansar do constante torvelinho cm que o punham as suas emoções, superficiais mas avassaladoras. Durante esses períodos, entregava-se a luxos e caprichos, chamando o cabeleireiro e os valets para atendê-lo constantemente. Era tão vaidoso quanto uma mulher fútil. Seus longos cabelos negros, lisos, oleosos e com forte tendência a cãs, eram tingidos, alisados com pomadas olorosas, escovados e penteados, de modo a caírem sobre os seus ombros estreitos, em cachos geométricos. O seu comprido nariz, sempre franzido, era coberto de pós-de-arroz. Os cílios que franjavam os seus olhos negros, pequenos e muito juntos, eram cobertos de uma tintura oleosa, que os tornava espessos e pretos, da mesma forma que as negras sobrancelhas, tão parecidas com as de Arsène. Seus olhos eram tão penetrantes, tão inquietos, tão brilhantes, tão desconfiados, que por sua vez inspiravam desconfiança. Havia mais de um traço de ruge nas maçãs do seu rosto, altas e estreitas, e na sua boca fraca e espasmódica, com o lábio inferior pendente e petulante. Seu rosto era seco, de pele grosseira, apesar dos unguentos perfumados, e sulcada de rugas profundas, das narinas até a boca, e por sobre a testa alta e estreita. Toda a sua expressão traduzia ansiedade crônica, malícia, desconfiança de tudo, velhacaria e espírito traiçoeiro. Mesmo quando estava só, ou calado, as suas mãos gesticulavam involuntariamente, faziam gestos em sentido, os dedos finos e morenos cheios de anéis reluzentes.

Achava-se irresistível às mulheres e, a julgar pelas que lhe andavam à volta, talvez fosse. Era por demais vaidoso para pensar que a sua posição na Corte, o afeto que o rei tinha por ele e a sua fortuna pudessem ter algo a ver com aquela devoção das mulheres. Adorava roupas elegantes, era um ditador de modas, desenhando muitos dos seus gibões e chapéus, e até mesmo a renda que mandava fazer especialmente para ornamentar as golas e os punhos. Não havia dúvida de que tinha bom gosto e um instinto natural para modas, estilos e cores, pois todos procuravam copiá- lo, e a sua opinião sobre o que se usava era solene e servilmente acatada. Suas roupas eram de cores escuras e intensas; ameixa, azul profundo, escarlate, vinho e negro. Tinha um orgulho extraordinário dos seus tornozelos, finos e femininos, das suas pernas bem- feitas e dos seus graciosos e pequenos pés. Era também um conhecedor de perfumes, que os seus perfumistas particulares preparavam numa câmara fechada a sete chaves, no Hôtel de Vaubon. Uma amostra do perfume mais recente, chamado Fleur d’Amour, estava num belo frasco de cristal e ouro, sobre a mesa barroca junto da sua chaise-longue, e ele cheirava-o no meio da conversa com Louis, seu filho. Toda a sua pessoa estava inundada de perfume, bem como o lenço de seda e rendas que ele segurava delicadamente na mão. As narinas de Louis dilatavam-se, nauseadas, ante o ataque daquele perfume almiscarado, e ele punha a cabeça para trás, como se a procurar defender-se. Armand notou isso e, de maldade, pôs mais perfume no lenço e começou a gesticular ainda mais com ele.

O bom gosto de Armand estendia-se a toda a sua mansão. O seu quarto de dormir era de estilo barroco, mas não exagerado. Havia elegância em cada mármore, em cada detalhe dourado, em cada mesinha de ébano. A combinação de cores era perfeita. As paredes eram recobertas de seda de vários tons de ouro, sutilmente combinados de modo a produzir o efeito de raios de sol filtrados. O tapete persa, sobre o soalho encerado, era uma bela mistura de tons de azul, ouro, fios escarlate e verde delicado. A cama de dossel, com seus postes de madeira dourada e trabalhada, tinha pesados cortinados, iguais aos das janelas altas, de vidraças bisautées, e era também recoberta do mesmo tecido. Sobre a cômoda negra e dourada, ao pé da cama, via-se um formidável estoque de perfumes, pomadas, pós, escovas e pentes de ouro, sem falar nas loções para os pés e para as mãos e nos cosméticos para os olhos e sobrancelhas. Um enorme lustre de cristal, semelhante a um conjunto de estalactites, pendia do teto de gesso com arabescos dourados. Nas paredes viam-se quadros decadentes e impróprios. Como uma concessão, talvez de última hora, porém necessária, havia um crucifixo de ouro, em cima de uma mesa arrumada como um altar, com um pano branco, orlado de renda.

Armand achava, e tinha razão, que aquele crucifixo não combinava com o resto do aposento, ao mesmo tempo feminino e lascivo. Mas, na qualidade de convertido, de quem voltara para o seio da Santa Madre Igreja, ele precisava dar sempre mostras da sua piedosa devoção. Por vezes, quando não tinha visitas perigosas, mandava colocar um belo biombo chinês à volta do crucifixo, que ficava à vista quando Louis, ou outros como ele, em quem não se podia confiar, resolviam visitá-lo. Mas o seu olhar inquieto pousava nele de vez em quando, com irritação mal contida, de quem achava que o crucifixo destoava do resto do quarto. E aquilo lhe aumentava o natural nervosismo.

Fora Louis quem dera ao pai o crucifixo de ouro, julgando que o Cristo de marfim e a beleza da peça agradassem àquele homem fútil e amante do belo, e pudessem, quando ele o contemplasse com prazer estético, imbuí-lo do seu significado mais profundo. Não podia saber, na sua simplicidade altaneira e distante, que a mera visão do crucifixo irritava e até mesmo enfurecia Armand, que nunca se esquecera do pai e de La Rochelle. O crucifixo perturbava e atormentava Armand como nenhum outro objeto, e às vezes ele o olhava com um ódio estranho, num homem tão superficial. Certa ocasião, diante de Arsène, atirara-o para o chão, num misto de raiva e repugnância, dizendo que preferia abjurar de tudo a conservá-lo no seu quarto.

Mas Arsène apanhara-o do chão e, rindo, recolocara-o no lugar.

— A beleza, não importa a sua forma, é sempre sagrada — dissera ele.

Armand calara-se abruptamente, em meio ao acesso histérico, e olhara para o filho.

— Não tenho nada contra o objeto, e sim contra quem o deu — resmungara, finalmente, esfregando as mãos finas, estremecendo e olhando para a porta, como se desconfiasse de que algum criado pudesse estar ouvindo.

Mas Arsène, com um dos seus raros vislumbres intuitivos, tivera a certeza de que não era só isso.

Agora, enquanto Armand falava languidamente com o filho mais moço, os seus olhos a toda hora se desviavam para o crucifixo. Segurava o frasco de perfume contra as narinas frementes. Sua mão cnjoiada não parava de tremer debilmente. Debaixo do ruge, ele estava um pouco pálido e o seu coração pulsava, com aquele tremor intolerável que prenunciava um ataque histérico. A presença de Louis tinha sempre aquele efeito sobre ele, mas faltava-lhe sutileza para compreender isso. Não conseguia ler a paixão triste que havia naqueles grandes olhos azul-claros, não percebia a tragédia que se escondia naquele corpo rígido mas gracioso, oculto pela batina. Não via grandeza sombria naquelas mãos entrelaçadas e brancas. Sabia apenas que Louis o fitava e o seu mal-estar crescia.

Mas sabia que Louis estava preocupado com ele. Pardieu, se aquele pobre-diabo não tivesse ido visitá-lo, ele, Armand, teria saído na sua carruagem a passeio pelo Bois, farejando os olores primaveris da terra, sentindo o sol coar-se por entre as novas folhas das árvores! A solicitude muda, porém visível, do filho oprimia-o. Fingiu estar muito cansado e sentir dores, para atormentá-lo. Tudo aquilo era instintivo. Ele não podia compreender o amor que Louis sentia por ele.

Mon Dieu!, pensou. O seu rosto não tem mais expressão do que o de um peixe num aquário!

Em voz alta disse, remexendo-se nos travesseiros:

— Você nunca entendeu o diabo do Arsène. Talvez você seja incapaz de compreendê-lo, Louis. Arsène é alegre, encantador. Tem um coração de ouro. É divertido, é elegante. Todo mundo gosta dele. Talvez você sinta ciúmes.

Um leve espasmo percorreu os lábios bem desenhados de Louis, mas ele retrucou, calmamente:

— Arsène é um jogador. Frívolo, amigo de aventuras. Ama o perigo por si mesmo. É imprudente e não muito inteligente.

Havia na sua voz um leve tremor, como se estivesse emocionado, e virou a cabeça para o lado.

Armand riu com malevolência. Agitou o lenço, saturado de perfume, e olhou bem para o filho, ao mesmo tempo em que dava de ombros.

— Não obstante, Sua Majestade gosta dele. Mais do que de você, meu caro Louis. Ainda ontem ele me mandou um bilhete, no qual dizia: “Onde está o divertido do Arsène? Sentimos muita falta dele”.

De novo um espasmo perpassou os lábios marmóreos de Louis.

— Certa vez — continuou Armand, com deleite — Sua Majestade me disse: “Sua Eminência gostaria de que Arsène fosse comandante da sua guarda. Mas eu prefiro-o à frente do meu estandarte, isto é, se ele alguma vez ficar num único lugar o tempo suficiente para ouvir a minha proposta”.

Uma expressão de estranha ansiedade brilhou nos olhos de Louis.

— Sua Eminência ainda ontem disse exatamente isso, que gostaria de ter Arsène como comandante dos seus mosqueteiros. Mas quando foi que Arsène deu ouvidos senão aos seus próprios desejos, apesar de ser um excelente espadachim?

Armand ficou olhando pela janela, com um sorriso e um ar de quem sonhava.

— Ele podia vir a ser um novo Monsieur de Bassompierre, se quisesse. É também um bom jogador de xadrez. Sua Eminência mencionou esse fato. Mas ele não liga para nada. É demasiado independente. . .

— Por demais dado aos seus ridículos prazeres — interrompeu Louis, com um olhar sombrio.

Armand ficou furioso.

— Repito, você faz um juízo preconcebido a respeito do seu irmão. Paul de Vitry, por exemplo, é grande amigo dele. De Vitry vê mais em Arsène do que você, seu padreco.

Louis levantou-se de repente e avançou, com seu passo lento, mas leve, para o crucifixo. Ficou a olbar para ele, as mãos involuntariamente juntas, numa atitude de prece. Quando por fim falou, sua voz era estranha:

— Pai, o senhor alguma vez ouviu falar em Les Blanches?

Armand virou a cabeça e olhou, com súbito terror, para as costas eretas e bem-feitas do filho. Sentou-se, agarrou-se aos braços da poltrona. As juntas dos seus dedos ficaram brancas, os tendões saltaram, e ele empalideceu.

— Les Blanches — repetiu, numa voz que mais parecia um vagido. Umedeceu os lábios, que haviam ficado ressequidos sob a espessa camada de ruge. — Não, nunca ouvi falar. Que vem a ser isso de Les Blanches?

Louis, mesmo não querendo, sentiu uma dor no coração diante do terror manifesto na voz do pai. Não podia suportar aquilo. Voltou para junto de Armand, inclinou-se para ele e estendeu a mão para tocar a do pai. Mas logo recuperou o sangue-frio.

— Não é nada — murmurou, tranquilizador. — Absolutamente nada. Só que Monsieur de Vitry é suspeito de ser o organizador, o chefe de Les Blanches, que dizem ser uma sociedade secreta de huguenotes, cujos fins são a traição, o crime, a derrubada do governo de Sua Majestade Católica.

Respirou com dificuldade e procurou sorrir, um sorriso doloroso e patético. Armand deitou-lhe um olhar de medo, de animal assustado.

— Eu só estava pensando — prosseguiu Louis — que uma pessoa como Monsieur de Vitry não é boa amizade para Arsène, seu filho e meu irmão.

Armand continuou sentado na poltrona, agarrado aos seus braços. Gotas de suor surgiram-lhe na testa.

— Bobagem — murmurou, incapaz de falar em voz alta.

Engoliu em seco e depois, recuperando a voz, exclamou, apavorado:

— É mentira! Uma das suas mentiras sacramentais, Louis! Conheço Monsieur de Vitry e conheci o pai dele, já falecido. Além do mais, Arsène é demasiado esperto paia ter algo a ver com esse tal. .. esse tal de Les Blanches. . .

— Eu não disse que ele tinha algo a ver com eles — retrucou Louis, suavemente.

Fechou um momento os olhos, como se sentisse alguma dor.

— Eu disse que se comentava por aí que de Vitry era o organizador e o chefe da sociedade, Arsène provavelmente ignora isso. De Vitry é por demais astuto. Mas, se ele fosse preso, não ficaria bem para Arsène, na qualidade de seu amigo. Não podemos ser alvo de suspeitas, nós, que há tão pouco tempo regressamos ao seio da Santa Madre Igreja.

— Vou falar com Arsène, quando ele voltar — prometeu Armand.

Recostou-se nas almofadas, levou o lenço ao nariz e enxugou disfarçadamente a testa. Sua mão tremia visivelmente. Seu rosto estava todo contorcido. Fingiu raiva.

— Esse Arsène! Quando é que ele vai parar de se envolver em brigas de bordel! Já lhe avisei. Desta vez, a coisa deve ter sido séria, ou ele não ficaria tanto tempo ausente. — Hesitou e mentiu: — Mandei averiguar. Sei onde ele está. Foi uma mulher, parece que a amante de. . . de. . .

Não conseguiu lembrar-se de um nome ao mesmo tempo importante e convincente.

— Ê uma vergonha — concordou Louis, com severidade.

Armand, agora sossegado, sorriu velhacamente. Mas os seus lábios e os cantos dos seus olhos não pararam de tremer,

— Que sem-vergonha ele saiu! Meu avô era igualzinho. Nenhuma mulher estava a salvo, nem mesmo a ama do seu décimo segundo filho!

Pôs-se a dizer coisas incoerentes. Sua voz lembrava o vibrar das asas de uma ave-mãe, procurando afastar a raposa que procura roubar-lhe os filhotes.

— Talvez você não saiba, Louis, que eu peguei o desgraçado do seu irmão com uma criada, quando ele tinha apenas catorze anos. Um escândalo!

— Realmente — murmurou Louis, desviando os olhos do pai.

Armand riu, um riso rouco.

— Sem dúvida, sem dúvida. Mas o que é que se pode fazer com um libertino desses? Dei-lhe uma surra, e o senhor arcebispo passou-lhe uma descompostura e várias penitências. Nada adiantou. Bem, ele ainda é jovem. O juízo vem com a idade, a sensatez vem quando a virilidade começa a falhar...

Louis poderia ter retrucado que tal não era o caso do pai, mas limitou-se a olhar para Armand com pena.

— Vamos rezar para que assim seja — disse,

Armand dominou a vontade de rir e olhou, delicado, para o teto,

— Arsène rivaliza, em virilidade, com Sua Eminência!

Lembrou-se do que Louis dissera demasiado tarde. Olhou alarmado para a cara do filho, a si próprio amaldiçoando a imprudência. Mas a expressão de Louis continuava grave e remota, e, embora os seus olhos fossem penetrantes, o jovem padre nada disse.

Armand tocou furiosamente a campainha para chamar o valet.

— O preguiçoso! — exclamou, com voz frenética. — Está na hora do meu banho, e ele de conversa com as criadas! É demais!

A porta abriu-se, e Armand começou a gritar uma série de pragas. Mas quem apareceu não foi o valei, e sim Arsène, em carne e osso, pálido, sorridente e à vontade.


Capítulo X

Armand empalideceu e pestanejou, incapaz de falar diante daquela aparição. Louis levantou-se sem querer, com uma espécie de pressa convulsiva, agarrando-se às costas da cadeira dourada, um breve espasmo percorrendo-lhe o rosto frio e estatuesco.

Mas logo Armand soltou um grito e rompeu em lágrimas. Estendeu os braços para Arsène, fazendo movimentos frenéticos com as mãos, semelhante à mãe cujo filho corre perigo, o rosto contorcendo-se e tremendo.

— Seu sem-vergonha! — exclamou, sufocando as lágrimas. — Onde você andou se escondendo, em que boudoir? Vamos, dê-me um beijo! Mon Dieu, como senti falta da sua cara sem-vergonha! Eu o detesto, vou deserdá-lo! Vamos, me dê um beijo!

Havia mais. do que amor, mais do que alívio e alegria, naquela voz trêmula. Arsène, rindo, avançou para o pai e suportou-lhe os abraços apertados, os beijos demasiado veementes, inclusive para a adoração que Armand votava ao filho. Em meio a todas essas efusões, os lábios pintados do pai tocaram o ouvido de Arsène e murmuraram:

— Cuidado! Les Blanches! Louis!

E de novo o abraçou e o beijou, entre gritos de emoção.

A expressão de Arsène não deixou transparecer nada do que ouvira. Quando, por fim, pôde se libertar dos abraços do pai, le- vantou-se e apertou a mão de Armand com calor, afeto e confiança. Depois, voltou-se para Louis.

— Bon jour, Monsieur le Curé — disse, numa voz bem-humorada mas afetuosa, que tinha algo de irônico e satírico. — Você está com bom aspecto, como sempre.

Os irmãos olharam um para o outro em silêncio, Arsène sorridente, Louis frio e distante, setis grandes olhos azuis brilhantes e fixos. Por fim Louis disse, num tom digno e controlado:

— Ainda bem que você voltou, Arsène. Meu pai ficou doente de preocupação. Não acha que nos deve uma explicação para tão longa ausência?

Armand apressou-se a exclamar, com certa incoerência:

— Mais oui! Naturalmente! Ele está envergonhado, o pilantra! Claro que está envergonhado, ou não teria mandado aquele abade velho e miserável falar com você, Louis, e dar-lhe uma desculpa esfarrapada sobre não sei que “acidente”! Ah! — continuou ele, apontando com o dedo fino para Arsène dizendo, numa voz que denotava pavor: — Que belo hipócrita, hein! Um abade e um libertino! Onde foi que você encontrou o inocente? No boudoir da sua amada? Ou ele tinha ido confessá-lo, no momento em que o marido descobriu a esposa nos seus braços? '

Arsène deu nova risada, mas Louis limitou-se a olhar para ele. Arsène apontou para o próprio rosto e piscou o olho.

— Olhem para esta cicatriz. Não fica bem? Mas permita-me ter os meus segredos, pai. Seria falta de galanteria revelá-los, não acha? Quando há uma dama envolvida, deve-se guardar silêncio, não é assim?

Armand só então reparou na linha vermelha e irregular que havia na face do filho e olhou-a com cara assustada, pois via-se que não se tratava de um ferimento superficial. Reparou também que Arsène estava muito mais magro e muito mais pálido, e que parecia exausto, abatido. O seu coração de pai que adorava o filho deu um pulo, num misto de terror e dor.

— Quer dizer que havia uma dama no meio? — perguntou Louis, friamente.

Arsène deu de ombros.

— Por que a pergunta, Louis? Não foi você mesmo quem me deu uma reputação libertina? Não deixa de ser estranha tanta perspicácia, num padre casto como você. Ou será que os padres suspeitam e esperam sempre coisas obscenas? Repito, é muito estranho.

Pela primeira vez, um rubor esparelhou-se nas pálidas faces de Louis, lembrando o reflexo do pôr-do-sol sobre um campo nevado. Arsène, mais do que qualquer outro homem, tinha sempre o poder de desconcertá-lo e enfurecê-lo. Deitou ao irmão um olhar comprido, aparentemente impassível, mas virulento.

— Não acha que está na hora de encarar a vida com mais seriedade, Arsène? Não pensou em Mademoiselle de Tremblant, que adoeceu com o seu prolongado desaparecimento? Fui várias vezes visitá-la, consolá-la.

Arsène riu malevolamente.

— Sem que o sangue lhe pulsasse com mais força nas veias frígidas, Louis? Como é que você pôde olhar para uma beldade daquelas, para aqueles ombros tão brancos, para aquele colo, sem que o seu gélido coração batesse mais forte?

Louis não respondeu. Continuou a olhar fixo para o irmão, mas ficou mortalmente pálido, como se a mão do demônio o tivesse tocado.

— Você está doente! — exclamou Armand. — Vá logo para

a cama. Chame o Pierre para ajudá-lo a se deitar, seu cachorro fedorento!

Arsène pegou negligentemente no frasco de perfume que havia sobre a mesinha, ao alcance do pai. Levantou a tampa e aspirou profundamente. Inclinou a cabeça, olhou para o espaço. Franziu a testa, espichou os lábios, sorriu, abanou levemente a cabeça. Apesar do seu medo e da sua agitação, Armand ficou espantado, à espera de uma explicação para o procedimento do filho.

— Maravilhoso — comentou Arsène, a mão tremendo de fraqueza, ao recolocar o frasco no lugar. — Acho que é o melhor que você já conseguiu. Mas não lhe parece que tem almíscar demais? Um pouco menos tornaria o perfume bem mais sutil.

Armand umedeceu os lábios e aproveitou a deixa de Arsène com uma ansiedade histérica, tocada de orgulho e irritação. Seus reluzentes olhos negros não tinham sossego.

— Como é que você se atreve a criticar um perfume destes, se você não tem a menor delicadeza? Não, não tem almíscar demais! Quase não tem nenhum almíscar.

Pegou no vidro e cheirou-o com ar crítico e extasiado, sem tirar os olhos de Arsène.

— Este é realmente o melhor perfume que já consegui. Mandei um frasco a Sua Majestade e outro para Monsieur le Cardinal. Eles apreciam o que é bom. Não andam por cavalariças, como você, seu sem-vergonha! Dei-lhe o nome de Fleur d’Amour.

— Banal — disse Arsène, abanando a cabeça. — Sem imaginação. Por que não batizá-lo de “Sua Majestade”? Seria mais delicado e poderia levar a rainha-mãe a tomar mais do que um banho a cada seis meses.

Armand riu estridentemente, mas as louras sobrancelhas de Louis franziram-se em sinal de reprovação.

— Não acha isso falta de respeito? — perguntou.

— Insisto em que tem demasiado almíscar — disse Arsène para o pai.

Louis fez um movimento breve e encaminhou-se para a porta.

— Estarei à sua espera na Sala Rosa, Arsène. Preciso trocar algumas palavras com você.

Armand deixou-se novamente levar pelo terror. Agarrou a mão de Arsène e olhou com ódio para Louis.

— Você não tem mesmo coração, Louis! Não vê que Arsène está fraco, doente e precisando de repouso? Faço questão de que ele se deite imediatamente! Não faltará ocasião para conversas inconsequentes.

— De qualquer maneira — teimou Louis, de pé junto à porta —, eu preciso, e vou falar com Arsène.

— Vá para o diabo! — gritou Armand, perdendo completamente o controle.

Sorrindo, Arsène pousou a mão no ombro do pai e pressio- nou-o.

— Eu também quero falar com Louis — disse, numa voz peculiar.

Armand olhou para o filho, ofegante, com as pupilas dilatadas, como se quisesse preveni-lo de algo. Arsène abanou ligeiramente a cabeça, sem deixar de sorrir. Armand ficou um pouco aliviado, mas continuou a tremer.

A porta fechou-se atrás de Louis. Fez-se silêncio no quarto. Movendo-se sem fazer barulho, como um gato, Arsène foi até a porta e abriu-a. O ensolarado corredor estava vazio, e Arsène sen- líu-se envergonhado. Devia ter sabido que Louis, o imaculado, o orgulhoso, jamais, nem mesmo no interesse de tudo o que considerava mais sagrado, teria descido ao ponto de escutar às portas.

Rindo para si mesmo, Arsène voltou para junto do pai, que estava sentado na sua poltrona, rígido, as rosetas de ruge destacando-se nas faces murchas e morenas. O medo tomara novamente conta dele. Abanou a cabeça para o filho e ergueu a mão carregada de anéis.

— Não — murmurou. — Não quero saber de nada. Não me conte nada.

Arsène sentou-se na cadeira que Louis deixara vaga e puxou-a para o sol.

— Sofri muito — disse Armand, e havia uma comovente dignidade na sua elegante frivolidade. — Mas o que eu sofri não interessa agora que você está de volta são e salvo.

Apertou as mãos uma contra a outra, como se estivesse com dor.

— Nenhum homem, nenhuma mulher, nada me causou tanta preocupação quanto você, Arsène. Talvez porque nunca amei ninguém a não ser você.

As lágrimas subiram-lhe aos olhos e nada havia nelas de piegas, apenas uma comovente sinceridade. Arsène ficou muito emocionado. Pegou na mão trêmula do pai e beijou-a.

— Peço-lhe perdão, meu pai — disse, com voz grave e comovida. — Tenho sempre que lhe pedir perdão. Não sou digno do seu amor. Mas preciso fazer o que tenho que fazer.

As lágrimas rolaram pelas faces de Armand, borrando-lhe o ruge, mas ele olhou para Arsène com desespero. Por fim, disse, com dificuldade, e num tom implorativo:

— Havia uma mulher no meio, Arsène?

Arsène hesitou. Depois, ergueu a cabeça e olhou, com expressão sonhadora, pela janela. O sol entrava, trazendo calor e poeira. Da rua vinha o rumor de muitos passos, o som de muitas vozes, o rolar de muitas carruagens sobre as pedras da calçada.

— Sim — respondeu Arsène, em voz baixa —, havia uma mulher.

Armand suspirou. Recostou-se na poltrona, sempre com a mão na do filho. Fechou os olhos enrugados, exausto. O kohl negro destacava-se nos pés-de-galinha e nas pestanas do marquês.

— E Mademoiselle de Tremblant? — perguntou, com voz fraca.

— Clarisse nada tem a ver com isso — retrucou Arsène. — É minha noiva e vamos casar em junho, conforme planejado. Esta. . . esta outra mulher não _ entra na minha vida. É muito jovem, muito doce, muito bela. É minha amiga. É pura como o cristal. Não, não é para mim. Nunca ousaria tocá-la, — Seu rosto expressivo ficou triste. A cicatriz na sua face ficou mais marcada. — Não obstante— continuou, numa voz quase inaudível — soube, pela primeira vez na minha vida, o que é o amor, o que o amor pode ser. Não sinto pena e nem desejo. Duvido de que alguma vez volte a vê-la.

— Ah, 1’amour! — exclamou Armand, sem abrir os olhos e suspirando sentimentalmente.

Mas havia algo de mecânico na sua voz, como se ele fosse indiferente ao amor.

— Não pode torná-la sua amante? Quem é capaz de lhe resistir, seu libertino?

Abriu os olhos e sorriu impudentemente.

Mas Arsène, subitamente grave, levantou-se e olhou para o pai.

— Que foi que o senhor me sussurrou ao ouvido? Que quis dizer com aquilo?

De novo possuído pelo medo, Armand murmurou:

— Louis, antes- de você entrar, ele me perguntou se eu conhecia um tal de Les Blanches.

Agarrou novamente a mão de Arsène com mão fria e rígida.

— Ele não o acusou de pertencer à sociedade, Arsène! Mas disse que o seu amigo, Paul de Vitry, era o organizador. . .

Arsène estremeceu. Apertou os lábios e olhou fixo para o pai.

— Louis disse como foi que soube disso?

— Não. Não, eu não quis ouvir. Arsène, eu não quero saber de nada! Já não lhe disse isso? Não lhe implorei que tomasse cuidado, que parasse, que. . .

Arsène interrompeu, inexorável:

— Devia ter ouvido o que ele tinha para dizer. Devia ter-lhe leito perguntas. Trata-se de uma coisa importantíssima.

— Por quê? — gritou Armand, a quem o medo fazia esquecer .1 precaução. — Que é que isso lhe pode interessar? Não, não, não precisa me responder! Não quero ouvir! Não vou ouvir. Não lhe vou pedir de novo para pensar no seu pai, na minha posição, em mdo o que eu sempre quis, e conquistei e desejei. . .

A expressão de Arsène mostrava que ele não ouvira nada do que o pai dissera. Era dura e intensa.

— Teve notícias de Paul? Viu-o? Ele desapareceu? Pelo amor de Deus, pai, responda!

Armand nunca ouvira o filho falar assim, num tom de voz grave, implacável, frio e agitado. Torceu as mãos, procurando fugir daquele olhar inexorável.

— Quer me matar? — gemeu. — Será que não há paz neste mundo para mim? Não poderei gozar daquilo que consegui. . .

— Mentindo, traindo, violando? — concluiu Arsène, em voz baixa e amarga. — Inclinou-se sobre o pai, pressionou-lhe os ombros com as mãos, forçou-o a olhá-lo nos olhos. — Precisa responder ao que eu lhe perguntei. Onde está Paul? Ele foi. . . onde está ele?

Armand estremeceu, choramingou.

— Como você me tortura, Arsène! Você não tem pena, amor ou consideração por mim. Que tenho eu a ver com esse tai Paul de Vitry? Odeio-o, detesto-o pelo que ele está fazendo com... não sei de nada, Arsène! Só sei que, dois dias depois que você. . . desapareceu, ele veio até aqui perguntar por você e fingiu espanto quando eu lhe disse que você não tinha voltado de uma das suas excursões noturnas. Tinha o braço numa tipóia, debaixo da capa. Estava muito pálido.

— Então — disse Arsène, em voz alta, mas para si mesmo — isso quer dizer que ele conseguiu escapar.

Suspirou. A palidez do seu rosto diminuiu. Chegou mesmo a sorrir um pouco. Depois, a fraqueza fez com que ele cambaleasse c se agarrasse aos cortinados da janelá.

Armand continuou, gaguejando de nervoso:

— Ele voltou, não faz muito. Disse-lhe que você tinha mandado um abade, uma criatura miserável, com um recado, dizendo que você estava bem e voltaria breve. A-amaldiçoei-o por arrastá-lo para essas p-perigosas aventuras a-amorosas, à noite.

Arsène pensou no amigo, dedicado e idealista, e sorriu involuntariamente. Não resistiu a perguntar:

— E que foi que Paul disse?

Qs olhos de Armand brilharam, vingativos.

— Disse: “Sim, concordo em que é uma loucura. Mas uin rapaz precisa se divertir. Peço-lhe humildemente perdão, Monsieur le Marquis. Mas o que se pode fazer quando se tem o sangue quente, e a vida é curta? Decerto o senhor também já fez das suas, e ainda é jovem o bastante para desculpar tais aventuras”.

Armand sorriu e as suas emoções eram tãô caprichosas, tão superficiais, que, mesmo naqueles momentos tão sérios e graves, era capaz de inclinar a cabeça para o lado e sacudir os cachos, perdidos em reminíscências.

— Retruquei-lhe — continuou — que é preciso haver discrição, mesmo na aventura e no amor. Os maridos são notoriamente intransigentes'com relação às esposas. Disse-lhe que ele não era companhia adequada para você, Arsène, e que eu lhe agradeceria se pusesse um ponto final nessa amizade.

— O senhor é demasiado virtuoso para ter um filho corno eu, pai — disse Arsène gravemente.

Armand ficou indignado.

— Rapazinho, fique sabendo que eu tive aventuras como nenhum de vocês pode sequer imaginar, com as suas intrigas bobas e primárias. Mas eu era discreto, tinha elegância. Você é simplesmente grosseiro, como os alemães e os ingleses. Deve ser herança da sua mãe. O pai dela era alemão. Você herdou dele a falta de delicadeza, a ausência de maneiras.

Estava agora mais à vontade, e apenas o tremor dos seus lábios pintados revelava o que ele passara. Falou em voz alta, para o caso de que alguém estivesse ouvindo escondido.

Arsène sorriu.

— Tem razão — admitiu.

Ficou brincando com uma borla dourada que pendia dos cortinados, enquanto o coração lhe voltava ao ritmo normal.

—• Vou procurar emulá-lo, pai.

Dirigiu-se para a porta.

— Esse Louis! — exclamou Armand, e o terror se espelhou de novo no seu rosto. — Aquela serpente branca! Cuidado, Arsène. Cuidado com a sua língua. Você tem um inimigo que não é brincadeira. Vai tomar cuidado?

Arsène levantou a mão e inclinou a cabeça.

— Serei discreto — prometeu. — Não tenha medo. Quem vai fazer perguntas agora sou eu. Louis não tem sutileza.


Capítulo XI

Arsène não se havia dado conta de como a doença o enfraquecera, até que começou a descer a escadaria de mármore e metal dourado, que ocupava o centro da mansão do Marquês de Vaubon. Pareceu-lhe que a escadaria não estava fixa, que flutuava e ondulava através do espaço, subindo e caindo. Teve que se agarrar ao corrimão dourado e fechar os olhos, para não despencar de cabeça. Quando, finalmente, abriu os olhos, estava banhado em suor, a meio caminho da escada, cujos últimos degraus brilhavam à luz do sol. Diante dele, no patamar, estava o retrato do seu avô, Étienne de Richepin, Marquês de Vaubon, uma figura heróica, que perecera, havia muito, após um longo martírio.

O retrato pendia, em meio ao silêncio reinante, contra um fundo de paredes forradas de seda rosa e tinha uma moldura dourada. Arsène muitas vezes pensara, cinicamente, por que razão seu pai permitira que o retrato ficasse em exibição, pois Étienne de Richepin fora um dos mais ferozes inimigos da Santa Madre Igreja. Mas chegara, finalmente, à conclusão de que o pai fora movido pela vaidade, e não por uma secreta fidelidade e uma consciência pesada. Rorque Étienne de Richepin, esbelto, moreno e fogoso, com olhos que pareciam penetrar e arder, era uma figura inspiradora, mesmo em retrato. Havia ao mesmo tempo força e delicadeza naquele rosto aristocrático, que uma pequena barba ponruda e os bigodes pretos não conseguiam esconder. Sob o chapéu emplumado, os seus ilhos eram cheios de vida, e as suas sobrancelhas, severas e bem marcadas. Como a maioria dos huguenotes, vestia uma roupa escura. A gola não tinha rendas, era de linho branco e engomado, assim tomo os punhos. O seu casaco, o seu gibão eram de pano vermelho escuro, com botões de ouro. Tinha a mão branca, fina e ao mesmo tempo forte, pousada no cabo da espada incrustada de pedras, a mesma que agora pendia da cinta de Arsène.

Arsène sempre admirara aquele retrato, embora ultimamente tivesse sorrido do fanatismo revelado nos olhos do avô. Étienne de Richepin acreditara ardentemente, e até a morte, em algo. Arsène não acreditava em nada, e por isso sorria. Certa vez, Armand, que raramente falava no pai. afirmara que ele tinha dito:

— Tirem-me todas as coisas, inclusive a vida, mas deixem-me it fé em Deus e nos homens, e eu continuarei tendo tudo.

Uns meses atrás, Arsène achara essas palavras pateticamente divertidas. Como Étienne de Richepin fora ingênuo!

Agora, ao parar, ofegante, junto do retrato, pareceu-lhe que uma voz alta e clara o chamava e que essa voz vinha dos lábios finos e severos do avô. Olhou para aqueles olhos brilhantes e austeros, e uma força viva obrigou-o a ouvir, a meditar e a compreender. As pessoas muitas vezes diziam, ao ver o retrato, que Arsène se parecia incrivelmente com o avô, mas ele nunca acreditara. Agora, via que sim. O rosto que olhava para ele era o seu próprio rosto, apenas mais velho c barbado.

Estou febril, pensou ele, passando a mão pela testa molhada e apoiando-se, com a outra mão, à parede. Mas não podia libertar-se daqueles olhos, que pareciam ao mesmo tempo implorar-lhe e exigir algo dele. O retrato adquiriu uma terceira dimensão. Era um homem vivo, de carne e osso e espírito ardente, que estava encaixilhado naquela moldura, e o peito, debaixo do colarinho branco e do gibão escarlate, pulsava e arfava.

Arsène ouviu a voz que nunca antes ouvira. O seu tom era firme e arrogante, mas paciente, inflexível e estranhamente suave. Não conseguia entender as palavras, mas a voz penetrou-lhe na alma. Começou a ofegar, na sua agitação e fraqueza. Parecia pairar entre a luz e a sombra.

Foi então que, ao fundo da escadaria que dava a impressão de descer até a eternidade, viu seu irmão Louis, observando-o calmamente. O sol batia-lhe no rosto casto e inexorável, naqueles pálidos olhos azuis, que lembravam fragmentos de porcelana, fria e reluzente. Brilhava-lhe na cabeça loura, revelava os contornos marmóreos dos seus lábios de asceta. Era uma verdadeira estátua de batina.

Não havia nada de terrível naquela presença, mas Arsène achou-a subitamente sinistra, desumana. E, contrastada com o retrato do avô, estranhamente morta, significativa e portentosa. Morta, sim, mas nem por isso menos poderosa e perigosa. Arsène teve a misteriosa sensação de que havia algum significado espiritual na justaposição do retrato e do padre, algo tremendo, que lhe estava sendo revelado. E ficou como que em suspenso.

Recuperando-se, desceu lentamente a escadaria. Louis parecia observar-lhe cada passo. Havia um brilho peculiar nos seus olhos, semelhante ao sol refletindo-se em estalactites. Sem dizer palavra, dirigiu-se, com seu andar ereto e majestoso, para o ambiente frívolo da sala de recepções, e ficou à espera do irmão.

Arsène deparou com ele no centro do salão, contrastando com as paredes brancas e douradas, a batina preta destacando-se contra o fundo do grande tapete azul brilhante e a delicadeza das cadeiras e dos canapés forrados de damasco rosa. O lustre de cristal pen- dia-lhe sobre a cabeça, explodindo, ao sol, em cores vibrantes. Algumas dessas cores refletiam-se no rosto impassível de Louis. A um canto do salão havia um grupo de estátuas de mármore, representando uma ninfa e um sátiro numa posição destinada a fazer corar a pessoa mais sofisticada. Arsène olhou para as estátuas e para Louis, e sorriu, sem querer.

— Você está doente — disse Louis, numa voz fria de gelo e sem vida.

Seu olhar percorreu o irmão com uma curiosidade distante, na qual não havia afeto ou preocupação.

Arsène, moreno, esbelto e mais alto do que a média, era no entanto muito mais baixo do que Louis, e mais seco de corpo. Mas havia vitalidade no seu olhar, encimado pelas sobrancelhas negras e bem delineadas. Havia animação e impaciência na sua boca expressiva, cujos cantos se voltavam mais frequentemente para cima do que para baixo. Até o seu nariz, fino e curvo, de narinas dilatadas, expressava energia e gosto pela vida. Seus movimentos eram rápidos, ardentes, cheios de graça e virilidade. Todo ele era fogo em presença do gelo. Louis olhou-o friamente, detestando tudo o que o irmão representava, odiando-o por aquela energia e vitalidade que ele não possuía, mas que não obstante temia.

— Sim, estive doente — disse Arsène, com indiferença. — Mas já estou me recuperando. Você queria falar comigo, Louis?

Mas o irmão continuou a olhar para ele fixamente.

Por fim, disse, com frieza:

— Sim, preciso lhe falar. É extremamente importante. Importante para o nosso pai, cujo bem-estar e cuja paz de espírito são o meu maior desejo.

— Você tem desejos? — retrucou Arsène, com bom humor.

Mas a pergunta era velha e mecânica, pois ele a fizera muitas vezes. Apesar disso, nunca deixava de trazer um brilho estranho ao rosto de Louis.

— Você mudou, Arsène — comentou ele, calmamente. — Não posso dizer qual foi a mudança, mas ela é evidente. Será demais esperar que você passe a encarar a vida com mais sobriedade, mais responsabilidade? Ou será apenas uma decorrência dá doença?

Olhou para Arsène e voltou a verificar, com certa surpresa, que de fato o irmão mudara. O seu olhar parecia mais firme, a boca, mais grave, a testa, mais pensativa. Que quereria dizer aquilo? Havia até uma certa tristeza em seus lábios.

Arsène não respondeu. Também ele estava surpreso.

— Contudo — disse Louis — não disponho de muito tempo. ) que eu tenho para dizer é preciso dizer depressa. Espero que você me dê toda a sua atenção, pois duvido de que volte a ter uma oportunidade como esta.

— Você está ficando chato — disse Arsène, irritado.

Louis estava se colocando no ridículo papel de um mestre- escola censurando um aluno recalcitrante. Intolerável, embora divertido. Mas Arsène farejava perigo.

— Fale de uma vez. Quero me deitar. Como você mesmo pode ver, ainda não estou completamente bom.

Mas Louis continuou no centro da sala, impassível e calado. Por fim, disse:

— Ouvi dizer que o seu grande amigo, o Conde de Vitry, é o organizador de uma conspiração huguenote, conhecida pelo nome de Les Blanches. Sem dúvida ele lhe falou disso, não?

Arsène olhou bem para o irmão.

— Não me lembro — murmurou, calmamente. — Mas o que isso tem a ver comigo?

— Era de esperar que você mentisse — retrucou Louis, com ar digno. — Você sempre foi mentiroso e não hesitaria em mentir descaradamente para proteger o Conde de Vitry. Isso não me preocupa. O que me preocupa é a sua possível conexão com Les Blanches. Preocupa-me por causa do meu pai.

— Você está fazendo acusações absurdas e infundadas! — exclamou Arsène. — Mas isso faz parte da natureza dos padres. Partem do princípio de que, se fizerem acusações estúpidas e ameaças ferozes, as suas vítimas, no afã de se defender, acabarão contando a verdade de que vocês suspeitavam. Fique sabendo que esse é um jogo que você não pode fazer comigo, Louis! Conheço bem os truques dos padres. Você fala de Les Blanches e acusa Paul de Vitry de conexão com o movimento. De que se trata? Não sei de nada a respeito, e nem Paul, tenho certeza. Onde foi que conseguiu essa informação? Quem é o seu informante?

Louis ficou calado, o rosto impassível. Mas não tardou a sorrir, um sorriso que mais parecia uma convulsão.

— Nunca subestimei a sua inteligência, Arsène — disse ele, tranquilamente. — Mas agora você se mostrou por demais ingênuo, sem um mínimo de sutileza. Pensou mesmo que me levaria a dar- lhe informações importantes?

Arsène ficou ao mesmo tempo embaraçado e profundamente alarmado. Ele é que subestimara Louis, o qual sempre fora o alvo de piadas e chacotas para ele e o pai. Diante dele estava um inimigo mortal, a ser respeitado e temido. Assumiu uma atitude despreocupada, franzindo a testa, como se estivesse intrigado.

— Não sei do que é que você está falando disse, fingindo-se perplexo.

Louis suspirou e encolheu os ombros. A sua expressão tornou- se severa, inexorável e ameaçadora.

— Vamos acabar de uma vez com a brincadeira. O Conde de

Vitry não perde por esperar, mas isso não me diz respeito. Conforme já lhe disse, minha única preocupação é com o meu pai. Se você fosse apanhado com de Vitry, durante uma reunião de Les Bran- ches, meu pai morreria de choque e de dor. Porque — e falou lentamente — não haveria misericórdia para nenhum dos cúmplices de de Vitry. Como você vê, estou sendo muito franco. Os guardas do Cardeal interromperam uma dessas reuniões, faz algum tempo, perto do Quai de Ferraille, e o combate foi terrível. Oito dos guardas foram mortos. Parece que o diabo em pessoa se encarrega de proteger os membros do Le Blanches. . .

Arsène empalidecera visivelmente e os seus olhos brilhavam, agitados. Mas, ao ouvir as últimas palavras do irmão, o sangue voltou-lhe às faces, e ele respirou fundo. Louis observou isso, e o leve sorriso implacável voltou-lhe à boca fina.

— Da próxima vez, porém, o mal não levará a melhor — continuou ele. — Para começar, sabemos mais. É verdade que todos os membros fugiram, embora muitos tenham sido feridos. Devem ser ótimos espadachins, muito melhores do que os homens selecionados para a Guarda de Sua Eminência. Dizem que não se ligam aos poderosos, justamente os mais indicados para apreciar tanta destreza. Mas isso não vem ao caso. Como já disse, da próxima vez não vão ter tanta sorte. Planejaremos as coisas com mais cuidado. Temos os nossos espiões, os nossos informantes. Naturalmente — acrescentou, depressa — nada disso lhe interessa. . .

— Naturalmente — murmurou Arsène.

— Perdoe-me se o entedio — disse Louis, de novo com um sorriso frio, agora temperado de ironia. — Pensei, porém, que, na qualidade de amigo do Conde de Vitry, você pudesse estar interessado. Pode lhe dizer, por exemplo, que desista da sua traição e dos seus crimes. Prefiro crer que seja infantilidade dele, pois descende de uma família muito ilustre, que sempre serviu devotadamente à França. O próprio conde é muito dotado. Por várias vezes visitou esta casa; e a irmã dele, como você sabe, é Madre Superiora do Convento de Sacré Coeur, em Marselha. No caso de ser capturado em flagrante, como sem dúvida será, nem mesmo eu poderia ajudá- lo, e nem quereria.

— Compreendo — disse Arsène, com desprezo.

Louis considerou aquilo uma observação infantil e prosseguiu, calmamente:

— Já temos os nomes de muitos membros da organização, mas não de todos. É uma questão de tempo ter a lista completa. Depois, é só pegá-los em flagrante, durante uma das suas reuniões. Aí, nenhum escapará, seja qual for o seu nome, a sua posição ou as conexões da sua família. Pretendemos aniquilar essa conspiração até o último homem. Pretendemos salvar a França e a Igreja, purificá-las num rio de sangue. . .

E o seu rosto contorceu-se de fúria fria e vingativa.

— É um velho hábito — disse Arsène, dando de ombros, mas espantado diante da inusitada manifestação de emoção do irmão. — O fogo e o sangue são as armas costumeiras da Santa Madre Igreja. Sem falar na tortura. Tudo provas da sua eterna e amorosa solicitude.

Louis fingiu não ter ouvido. Continuou:

— As obscenas blasfêmias do alemão Lutero não voltarão a poluir a França, pode ter a certeza disso. A Igreja está no sangue e na alma dos franceses. Nenhum veneno estrangeiro penetrará neles.

De repente, a fúria tomou conta dele. Olhou para o irmão, sorridente, despreocupado e com ar irônico, e o ódio desvairou-o. Aquele encantador aventureiro! Aquele idiota, sempre disposto a rir! Aquele bêbedo libertino! Amigo de dançar, sem força ou firmeza! Mas era a ele que o pai amava e adorava, era ele quem tinha de ser protegido por causa do pai! Louis cerrou os punhos, escondidos nas pregas da batina, e todos os desejos, todas as angústias e amarguras da sua vida, todas as frustrações se avolumaram dentro dele como uma corrente de lava! Ah, naquele momento, ele era capaz até de matar! Não sabia que o ronco surdo que ouvia era o rugido do seu próprio e torturado coração.

Algo como uma neblina se formara diante dos seus olhos, e ele não percebia que Arsène o contemplava, espantado. Porque o seu rosto já não parecia humano, e os seus olhos estavam cheios de fogo. Arsène, assustado diante de algo que ele sabia não ser normal e próprio das emoções dos homens, recuara, involuntariamente. Sua mão procurara instintivamente o cabo da espada, pois percebia que, de certa maneira, era ele o objeto de toda aquela fúria.

A voz de Louis saiu-lhe dos lábios como que estrangulada.

— Cuidado! — gritou.

Deu meia-volta e dirigiu-se para a porta, num passo apressado e desordenado. Mas, uma vez na porta, a fúria de repente cedeu, deixando-o outra vez gelado e sensato. Apoiou a mão na porta e inclinou a cabeça. O coração ainda lhe batia com força, e ele fez um esforço para respirar lentamente. Tinha a testa úmida, como se dedos gélidos se tivessem pousado nela.

Por sua vez acalmado, Arsène olhou penetrantemente para o irmão. Não era a primeira vez que lhe assistia àquelas enigmáticas manifestações de ira e, se alguma vez tinha procurado entendê-las, agora n -o mais se dava a esse trabalho. Faziam parte das peculiaridades e do caráter esotérico do irmão, divertidas, embora sem importância. Mas, desde que adoecera, o mundo adquirira novas dimensões para Arsène, novas nuances e significações, que ele nunca havia descoberto. Era como um homem que se recupera de falta de visão, e todo ele estava excitado e maravilhado, invadido por sensações novas e demasiado intensas.

Enquanto Louis, a cabeça inclinada e as costas trêmulas, procurava readquirir a habitual compostura, Arsène dizia para si mesmo: Toda a minha vida assisti a esses ataques. Que quererão dizer? Qual será a causa? Muitas vezes, no meio de uma conversa qualquer, ele foi possuído por uma espécie de acesso, ao olhar para mim ou discutir comigo. Terá tanto ódio de mim a ponto de perder a compostura? Mas por que me odiará tanto, embora seja tacanho de mentalidade e fraco de temperamento? Que foi que eu lhe fiz, para despertar nele tanta inimizade, tanto ódio? Que terei eu, para lhe provocar tanta fúria? Não compreendo!

Uma sensação oculta, como que de sonho, tomou conta dele, comq se estivesse pensando em meio a um terrível pesadelo. E sentiu-se cheio de compaixão. Embora eu seja diferente dele, pensou, ele não me deveria odiar dessa maneira. As divergências de temperamento não constituem uma desculpa, uma causa, para emoções tão monstruosas, principalmente em alguém tão frio.

Queria falar com Louis, perguntar-lhe a explicação para aquela explosão. Mas não conseguiu falar. Limitou-se a aguardar.

Louis ergueu a cabeça, e um arrepio perpassou-o. Rezou, em silêncio: Meu Deus, pequei de novo contra Vós! Senti vontade de matar igual a Caim! Sou mau, e nem toda uma vida de oração, dedicação e castidade conseguiu modificar-me. Perdoa-me, Senhor!

Uma calma gelada apossou-se finalmente dele, uma calma que não era paz. Voltou para Arsène um rosto tranquilo, embora a sua palidez fosse mortal e os seus olhos azuis estivessem embaçados e raiados de vermelho.

— Já disse tudo o que tinha a dizer. Já o preveni. Amanhã, não poderei fazer mais nada.

A sua voz era fraca, porém firme. Olhava para Arsène, mas este teve a estranha sensação de que o irmão não o via. Tendo dito isso, Louis abriu a porta e preparou-se para ir embora.

Então Arsène falou, num tom de voz grave e hesitante, para um jovem tão despreocupado:

— Louis, eu também tenho algo a dizer, se você me puder conceder um momento.

Louis voltou-se e fitou-o com um olhar cego, de estátua. Era outra vez o padre, paciente.

— Por favor, quer me ouvir, Louis? É importante, pelo menos para mim.

Só então Louis reparou no rosto do irmão e nele viu gravidade e preocupação. Entrou de novo na sala e fechou a porta atrás de si.

— Monsieur le Cardinal está à minha espera — disse ele. — Contudo, se o assunto é tão importante assim, pode falar.

A sua atitude era tão tranquila, a sua voz táo "comedida, que Arsène mal podia acreditar que, alguns minutos atrás, Louis tivesse parecido literalmente louco. Seus olhos tinham voltado ao normal e havia neles o habitual briino, que mais parecia brotar da superfície do que de dentro dele.

Com o rosto do irmão inclinado para ele, Arsène hesitou. Passou a mão pelos longos cabelos escuros, como se não soubesse por onde começar.

— Louis — disse, por fim —, estive algum tempo ausente. Você teve a delicadeza de não me perguntar onde eu estive.

Um clarão ínescrutável passou pelo rosto de Louis. Ergueu a mão.

— Não perguntei, nem quero saber.

Arsène abanou impacientemente a cabeça, mas disse, em tom de súplica:

— Escure, por favor. Você disse que eu mudei. É verdade. Estive pensando, e talvez a mudança se deva a isso. Como posso lhe dizer? Não sei. Você não está me ajudando.

O olhar de Louis mostrou interesse. Aproximou-se mais do irmão.

— Você quer se confessar comigo, como padre? — perguntou, numa voz ao mesmo tempo -incrédula e esperançosa.

Arsène ficou calado. Depois, disse, desviando o olhar:

— Sim, de certa forma. Custa-me muito dizer isto, pois sempre fui despreocupado, sempre vivi à superfície das coisas Você precisa ter paciência comigo, Louis. Estas palavras soam estranhas na minha boca. Acho difícil dizê-las. São como botas alheias, que não servem direito nos pés da getite, mas que nos forçamos a calçar.

Fez uma pausa. Louis ficou à espera, majestoso na sua batina negra, uma expressão estranhamente suave no seu rosto. Uma curiosidade enorme o consumia, uma curiosidade nãp isenta de maldade. Seria possível que aquele devasso, aquele cortesão, aquele frequenr tador de boudairs tivesse sofrido uma conversão?

Arsène prosseguiu, corno se pensasse em voz alta, em vez de estar falando com o irmão:

— Não consigo exprimir o que me aconteceu. As ideias que tenho são estranhas, abalam-me até o mais fundo do ser. Parece que estou num mundo diferente, que vi e ouvi coisas extraordinárias.

Oihou para Louis, o rosto ora escurecendo, ora brilhando.

— Posso lhe dar a impressão de ingenuidade, Louis. Falo com você como padre. Acho que você pode me explicar essas coisas, ajudar-me a compreendê-las, pois deve ter ouvido falar nelas, se é que não as experimentou você mesmo.

A mão grande e branca de Louis brincava com o crucifixo de ouro que lhe pendia do pescoço. Sua expressão era suave e benévola.

Arsène fez um gesto desesperado com as mãos.

— Está vendo? — exclamou. — Não estou lhe dizendo nada! As coisas em que estive pensando não podem ser traduzidas em palavras! Nunca antes tinha pensado em religião, na fé, no poder que elas exercem sobre as vidas dos homens, nos milagres que elas podem realizar. Só agora tive um vislumbre disso. . .

Louis não estava muito espantado. Na qualidade de padre, ouvira muitas coisas surpreendentes. Olhou para o irmão com benig- nidade e alguma desconfiança.

— Muitas vezes tentei lhe dizer, Arsène, que o único refúgio, a única paz estão no seio da Santa Madre Igreja. Você não quis escutar, você riu. Será possível que as minhas palavras não tenham, afinal, caído em solo estéril?

Arsène permaneceu calado, olhando para o irmão com expressão estranha. Por fim, disse:

— Esperava que você pudesse me ajudar a compreender o mundo, a entender os homens, a encontrar o meu caminho.

— A Igreja — disse Louis, gravemente, com um estremecimento na voz — é a intérprete do mundo, a boca de Deus. Entregue-se nos braços dela, com humildade, Arsène, e compreenderá todas as coisas.

Os lábios de Arsène moveram-se. Um ponto de luz brilhante pareceu acender-se nas pupilas dos seus olhos. Disse, de maneira quase inaudível:

— Sinto que há algo que eu preciso fazer. . . algo que eu preciso entender. Algo contra o qual eu devo empregar a minha força.

Fez de novo um gesto desesperado. Avançou até a janela e olhou para baixo, para a corrente humana que descia os Champs- Elysées. Esqueceu-se da presença de Louis, que de repente se tornara um peso para ele. Aquele padre obtuso e patético, que só Linha palavras banais para lhe dizer! Não sentia raiva do irmão, nem animosidade contra ele, apenas um grande cansaço.

Disse, como se para si mesmo:

— A Igreja só pode sobreviver de duas maneiras: servindo nobremente aos melhores interesses dos homens ou servindo aos poderosos. São duas maneiras irreconciliáveis. Pelo que eu tenho visto e ouvido, ela se curva aos reis e aos opressores. Poderá vir a mudar? Os homens deverão trabalhar por essa mudança, ou para destruí-la, dedicando-se à causa dos oprimidos e dos que não têm voz?

Louis ouviu e estremeceu. Ficou olhando para as costas do irmão, custando-lhe acreditar que o tivesse ouvido dizer aquilo. Os seus lábios moveram-se, uma angústia subiu-lhe aos olhos, e ele apertou convulsivamente as mãos. Se Arsène tivesse visto aquelas estranhas manifestações, teria ficado espantado.

Finalmente, gritou, numa voz forte, mas estrangulada:

— Temos que acreditar que a Igreja não pode errar, que todos os seus servos trabalham apenas para o bem dos homens e a glória de Deus, e que a vontade de Deus é colocar todos os homens sob as asas protetoras da Igreja! Como é possível viver, sem se acreditar nisso?

Arsène continuou de costas, como se um clarão ofuscante lhe tivesse passado diante dos olhos. Suas mãos, finas e morenas, apoiaram-se com força no peitoril da janela. Queria olhar para o irmão, mas uma força misteriosa, semelhante a uma pressão estranha, im- pedia-o de contemplar aquela alma atormentada.

— É preciso crer! — gritou Louis, elevando a voz. — Ou então morrer! Ou enlouquecer!

Fez-se silêncio, e o ar, naquela sala frívola e clara, pareceu de repente soprado por uma rajada violenta, prenunciadora de tempestade.

E Louis voltou a gritar, como se clamasse num deserto cheio de dor e escuridão:

— Fé! Precisamos sempre ter fé! Precisamos recusar-nos a ver, sabendo que os olhos são capazes de mentir, que o coração engana. Precisamos ater-nos ao Cristo, na escuridão da noite, e acreditar sempre. Precisamos lutar. . .

Um grande suspiro se ouviu na sala, um suspiro vindo do fundo do coração, como o prolongamento de um gemido.

Arsène voltou-se lentamente e olhou para o irmão. Fechou os olhos, e uma tremenda onda de compreensão e compaixão se abateu sobre ele. Pensou: A tragédia não é o Calvário, e sim Getsêmane.

Quando abriu os olhos, Louis já não estava na sala.


Capítulo XII

Não é possível!, pensou Arsène. Só posso ter sonhado.

Porque não lhe parecia que tinha realmente ouvido o que ouvirá ou visto o que vira. Algurrias semanas antes, teria ficado estupefato, confuso. Mas, agora, olhando para o irmão, sentira-se no mesmo tempo profundamente comovido e alarmado. Tocara no pilar de gelo, e ele se derretera ao contato, quente e urgente, da sua mão. Afinal, também ele era um homem atormentado. A compaixão, que ultimamente aprendera a sentir por todas as coisas, pesava como ferro no seu coração.

Voltou para junto do pai, que esperava por ele, ansioso.

— Já foi embora? — perguntou, aflito. — Ele o ameaçou, Arsène? Que foi que Louis lhe disse? Roí as unhas até o sabugo!

Mas Arsène respondeu, gravemente:

— Louis está doente, pai. Doente, mental e espiritualmente. Prometa-me que, doravante, vai tratá-lo com mais paciência, com mais compaixão.

Armand ficou a olhar para o filho, sem conseguir entender.

— Ora, que bobagem! — exclamou, por fim. — Ele não tem sentimentos. Mas, se for em seu benefício, prometo até beijá-lo e abraçá-lo. Escutarei as suas piedosas imbecilidades. Farei até uma novena! Isso chega para você?

Arsène sorriu.

— Acho que sim. Seja bondoso com ele. E, agora, estou muito cansado. Vou me deitar um pouco.

Acenou com a mão, em despedida, e subiu lentamente para os seus aposentos. O valet favorito do marquês, Pierre, estava à espera dele. Sobre uma mesa, havia um jarro com chocolate quente e uma bandeja de prata, com bolos de creme. Pierre puxara os cortinados de renda da janela e abrira a cama. Arsène sentou-se num tamborete e deixou que Pierre o despisse.

Pierre, um jovem nativo da Picardia, dono de um rosto perspicaz, não falou, senão quando Arsène já estava debaixo das cobertas. Encheu uma xícara de chocolate e passou-a às mãos de Arsène. Os dois trocaram um olhar significativo.

— Dois, monsieur, eu abati dois com a minha espada — disse Pierre, em voz baixa e áspera. — Quando o senhor saiu correndo da casa, doze mosqueteiros saíram em sua perseguição. Lutei contra quatro. Matei dois e feri os outros. Mas fiquei muito preocupado, até Monsieur le Com te me tranquilizar.

Arsène riu debilmente.

— Que seria de mim sem você, Pierre! E sem a sua espada!

— Monsieur tem ótimas pernas. Quando as coisas ficam pretas, as pernas são o mais importante.

Olhou com preocupação para a cicatriz na face de Arsène.

— Não foi bem tratado esse ferimento — disse ele. — Se eu o tivesse tratado, quase não teria ficado cicatriz.

Arsène levou a mão à face.

— Você não acha que me dá beleza? Não faz mal. Os outros tiveram mais sorte do que eu?

— Monsieur de Bouilliard, sinto dizer, continua entre a vida e a morte. Mas ele é muito gordo. Antoine teve um bocado de trabalho para socorrê-lo.

— Há um traidor entre nós, Pierre. Você não desconfia de quem seja?

Pierre franziu a testa e abanou a cabeça, os olhos brilhantes.

— Ah, monsieur Se eu desconfiar, era uma vez o traidor! — Suspirou, satisfeito. — Que noite aquela! Nunca na minha vida me diverti tanto.

— Você é por demais feroz, Pierre. — Mas Arsène falou mecanicamente. Pensou um momento e disse: — Pierre, quero que você me acorde pouco depois do pôr-do-sol. É muito importante.

— Monsieur le Marquis convidou alguns amigos para jantar, esta noite. O senhor pretende jantar com eles?

— Não. Você vai dizer ao Sr. Marquês que eu ainda estou dormindo e que pedi para não ser incomodado. Ninguém deve saber que eu saí de casa.

— O senhor vai sair esta noite? Mas isso é impossível, na sua condição!

— Preciso falar com o Conde de Vitry, Pierre. Não me aborreça. Espero que você não deixe ninguém entrar aqui, de modo a parecer que ainda estou dormindo.

De repente, Arsène sentiu-se tomado por um invencível torpor. Pierre ficou à cabeceira da cama, contemplando, com preocupação e afeto, aquele rosto pálido, marcado por uma cicatriz vermelha. Brincou com os botões do seu gibão e abanou a cabeça. Depois, fechou melhor os cortinados e saiu, pé ante pé, do quarto. Tão preocupado estava que foi direto para a cozinha, ralhar com as criadas. Era o valet predileto da casa e valia-se desse favoritismo para exercer uma certa tirania sobre os demais criados.

Pouco depois do pôr-do-sol, voltou ao quarto, onde Arsène ainda dormia. Tirou para fora um casaco preto, um gibão, uma capa e um chapéu emplumado. O quarto estava escuro. Arsène respirava irregularmente. Pierre sacudiu-o de leve.-

Arsène despertou a custo.

— Trouxe-lhe água — murmurou Pierre. — Mas monsieur vai cometer uma imprudência, saindo esta noite.

Arsène abanou, impaciente, a cabeça e, resmungando entre dentes, sentou-se na cama. Estava tonto de fraqueza. Ficou calado, enquanto Pierre, franzindo a testa em sinal de desaprovação, o ajudava a vestir-se. Mal podia ficar de pé sem cambalear. As mãos tremiam-lhe, ao prender a espada e-examinar a pistola que Pierre lhe estendia.

— Mando aprestar uma cadeira? — perguntou o valet.

— Não, claro que não. Não quero que ninguém saiba que saí. Meu Deus, mas estou fraco como um bebê!

— Permite, ao menos, que o acompanhe?

— Que idiota você me saiu, Pierre! Para quê? Para que meia dúzia de pessoas venham bisbilhotar neste quarto? Não lhe disse que vou fingir que estou dormindo e que você vai ficar montando guarda à porta? Onde está a sua inteligência?

Desceram, pé ante pé, pela escada dos fundos, com Pierre à frente, reconhecendo o caminho. Não encontraram ninguém. Da cozinha vinha o som de vozes e até eles chegavam aromas deliciosos e as risadas das criadas. Continuaram a descer até as adegas, onde o cheiro acre dos vinhos se misturava com o da poeira, Teias de aranha pendiam dos tetos úmidos e baixos. Pierre acendeu uma vela. Esgueiraram-se por entre fileiras e fileiras de garrafas e imensos tonéis. As adegas pareciam intermináveis, e levaram bastante tempo a atravessá-las. Por fim, chegaram a uma porta de ferro, embutida nas paredes de pedra. Pierre puxou de uma grande chave e abriu a porta. Uma rajada de ar frio se abateu sobre eles. A porta dava para um comprido e tortuoso corredor de pedra.

Arsène penetrou no corredor, e Pierre trancou a porta atrás dele. Como num pesadelo, Arsène foi abrindo caminho através da escuridão, apalpando com as mãos as paredes molhadas. Em certos trechos, o corredor mal dava passagem, e Arsène tinha que avançar de lado. Parecia que nunca mais iria ver o fim. Sentia a camisa grudada nas costas e ouvia a sua própria respiração, alta e cava, e

0 arrastar dos pés no chão de pedra.

Aos poucos, o ar foi ficando mais quente, e o chão foi subindo.

Havia uns degraus toscos, talhados na pedra. Arsène subiu-os com esforço, quase soluçando de cansaço. Estava agora num outro corredor. Podia ouvir o gorgolejar dos esgotos por trás das paredes e o gotejar da umidade. Sobre a sua cabeça, ouvia-se o clamor distante do tráfego. Parou para enxugar o rosto e respirar aquele ar impuro, que cheirava a podre. Algo lhe roçou o pé, na escuridão, fazendo-o estremecer, junto com o guinchar das ratazanas e o barulho das suas patas, fugindo dele. Aqui e ali, um par de olhinhos fosforescentes parecia encará-lo com más intenções. Puxou da espada e lançou-a contra eles. Depois, apressou o passo.

Por fim, chegou ao extremo do corredor. Ergueu as mãos e sentiu a aspereza da ferrugem. Reunindo as poucas forças, empurrou a tampa de ferro até conseguir que ela se movesse, revelando o brilho longínquo de um céu estrelado. Toram necessários vários minutos para se içar ao nível do chão e mais tempo ainda para recolocar no lugar a tampa de ferro.

Estava num beco deserto, cheio de lixo e paredes derruídas. Olhou em volta. Até- ali chegava a voz distante da cidade. Envolvendo-se na capa, puxando para baixo a aba do chapéu e caminhando rente às velhas paredes, Arsène desceu o beco e foi sair numa rua próxima do Luxemburgo.

Era uma rua sossegada, vazia, ladeada por casas pequenas mas de aparência digna, cujas janelas, de vidraças bisautées, deixavam ver, lá dentro, a luz de velas e lampiões. Uma brisa fresca, de primavera, soprava na rua deserta. Sobre um dos telhados, via-se a lua nova. Arsène avançou pela rua empedrada, mantendo a cabeça inclinada, até chegar a uma casa cinzenta, com janelas de sacada. Os cortinados de seda cinzenta estavam corridos, mas ele viu uma linha de luz num dos aposentos do andar de cima. Dirigiu-se às traseiras, por entre sebes verdes e olorosas.

Bateu rapidamente à porta do jardim e ficou à espera. Ofegava e sentia náuseas. O luar aumentou, assim como a brisa, sussurrante e misteriosa. Na extremidade do jardim havia um muro de tijolo, coberto de trepadeiras floridas. Um pássaro piava, sonolento, numa das velhas árvores. Não se ouvia outro som.

A porta abriu-se silenciosamente, e surgiu uma mulher, segurando uma vela. A luz bruxuleava sobre o seu rosto pálido e pontudo, emoldurado por cachos negros e lustrosos. Era uma mulher jovem, de aspecto voluptuoso, com um corpo esplêndido, envolto em sedas escuras. Um colar de ouro e de diamantes brilhava-lhe no pescoço cheio e branco. À luz da vela, os seus olhos eram frios e cautelosos, negros e inescrutáveis, e a boca era vermelha.

Era Madame Antoinette duPrès, a amante de Paul de Vitry, que Arsène sempre achara detestável, das poucas vezes em que condescendera em reparar nela. Fora casada com um pequeno comerciante, um dos mais devotados seguidores de Paul, que morrera num levante de rua. Pouco depois, Paul fizera da viúva sua amante e dona da sua casa. Paixão e amizade tinham-no levado a agir assim, e Madame duPrès parecia dedicada ao amante, que por sua vez não via defeitos nela. Mas Arsène reparara na dureza dos lábios dela, no brilho avarento dos seus olhos, na arrogância da sua atitude, uma arrogância de plebeia. Tinha também a impudência dos plebeus e procurava esconder a grosseria inata com uma elegância exagerada e maneiras de grande dama. Conseguia intimidar os mais ingênuos dentre os amigos de Paul com a sua altanaria e impertinência.

Além disso, dirigia a casa de Paul com mão dura e parcimoniosa, infernizando a vida das duas criadas e mantendo um olho atento na despensa. Manobrava também Paul, que a adorava e tinha um pouco de medo dela. Achava divertido o espírito prático da amante, que contrastava com a sua natureza gastadora e generosa, compassiva e inclinada a perdoar.

— Se não fosse a minha Netta, em breve eu estaria mendigando nas ruas de Paris — costumava dizer amorosamente, enquanto lhe acariciava o alvo pescoço, ou lhe afagava os dedos gorduchos.

Arsène costumava ignorá-la. Na sua opinião, ela não passava de uma ajudante de cozinheira, elevada ao nível de patroa. Tinha uma voz rouca e sensual, que o irritava, assim como o irritava o fato de Paul insistir para que ela estivesse presente a todas as reuniões e jantares. Nessas ocasiões, ela ocupava, orgulhosa e complacente, a cabeceira da mesa, atendendo os convidados, inclinando a bela cabeça, distribuindo olhares, no que ela imaginava ser o jeito de uma dama da aristocracia. Tratava Paul com ar indulgente e superior, e às vezes fechava a cara, quando ele dava demasiada atenção aos seus amigos.

Ao jogar a luz da vela sobre o rosto de Arsène, os seus grandes olhos pretos brilharam de antagonismo e a sua boca polpuda apertou-se. Um rubor subiu-lhe às faces. O seu peito arfou. Pensara que ele tinha morrido e o seu coração deu um pulo.

— Monsieur le Com te? — perguntou Arsène, abruptamente.

Madame duPrès inclinou a cabeça para trás, numa atitude insolente. Arsène afastou-a para o lado e, já no corredor, tirou a capa e o chapéu, que jogou nps braços dela, como se fosse uma criada. Corando, ela começou a deixar tudo cair no chão, mas o olhar fixo de Arsène fez com que parasse. Ele foi entrando e apertando o boldrié que tinha ficado grande demais, devido à doença.

Encontrou Paul de Vitry deitado num sofá, na pequena sala de visitas, diante do fogo. A sala era simples, mas mobiliada com bom gosto, e das paredes pendiam os retratos dos ilustres ancestrais do conde. Um grande castiçal de prata, em cima de uma mesa dourada, fornecia a luz sob a qual Paul lia um livro. Arsène parou um momento à porta, contemplando-o, observando o rosto pálido e abatido do amigo e o cansaço que se notava nas suas atitudes. Um dos braços pendia de uma tipóia, contra o peito, e os dedos da mão estavam brancos e cerúleos.

O coração de Arsène transbordou de afeto e compaixão. Mor- bleu!, pensou. Ele está muito pior do que eu.

Paul de Vitry era um jovem moreno e esbelto, dono de uma grande vitalidade e de um par de olhos cinzentos ao mesmo tempo ternos, bem-humorados e ingênuos. Tinha belos traços e uma expressão onde se misturavam a tristeza, o senso de humor e a doçura. Ao contrário de Arsène, usava os cabelos, escuros e encaracolados, à maneira dos puritanos ingleses — os Cabeças-redondas

— cortados bem curtos. Isso lhe dava um ar juvenil e vulnerável e lhe revelava as orelhas pequenas. O seu modo de vestir era também severo e puritano, com roupas de lã preta e camisas brancas e simples, abertas no colarinho. Seus sapatos eram de couro rústico.

No conjunto, a sua aparência era ao mesmo tempo gentil e resoluta, firme e bondosa. Ao passar as páginas do livro, suspirou. De repente, tomo se sentisse o olhar de Arsène fito nele, ergueu os olhos, assustado. Mas logo sorriu, um sorriso cheio de afeto e alegria.

— Arsène! Você voltou? — perguntou ele, numa voz suave e ligeiramente trêmula.

Estendeu o braço livre, e Arsène segurou-lhe a mão. Ficaram olhando um para o outro e sorrindo.

— Ah, mas você esteve doente e foi ferido — disse Paul, olhando para a cicatriz na face do amigo e sem soltar a mão.

— E você? Você não teve melhor sorte — retrucou Arsène, sentando-se na beira do sofá, — E os outros, também se recuperaram?

Paul fez que sim, sempre sorrindo.

— Também, menos o pobre do Gaston de Bouilliard.

Uma sombra escureceu-lhe o rosto.

— Foi ferido no pulmão direito. Parece que não vai resistir.

Sentou-se, apoiado nas almofadas.

— Mas diga-me: Onde você tem estado? Que aconteceu com você, depois daquela noite?

Madame duPrès entrou na sala. Sentou-se numa cadeira e começou a bordar. Parecia absorta no que fazia, mas escutava tudo o que se dizia.

Arsène contou as suas aventuras, e Paul ouviu com interesse, o rosto expressando as mais variadas emoções.

— Temos um traidor entre nós — disse Arsène, com um olhar feroz — Precisamos descobri-lo e acabar com ele imediatamente. Enquanto ele estiver vivo, não estaremos a salvo.

— Tenho pensado muito — disse Paul, com ar preocupado.

— Mas quem pode ser? Sempre fomos muito discretos. Só o seu ' criado, Pierre, e o criado de de Bouiuiard nos acompanharam e sabiam onde nos reuniríamos. Será possível que tenhamos sido seguidos?

— Só podemos ter sido seguidos por quem foi informado — observou Arsène. — Além disso, já sabem que você é o chefe de Les Blanches. Quem poderia ter revelado isso? Vários outros nomes são também conhecidos.

Paul franziu a testa, numa expressão de alarme e perplexidade.

— Isso é péssimo — murmurou. — Não vamos poder nos reunir durante algum tempo. Mas quem será o traidor?

Disse os nomes de todos os membros de Les Blanches, mas, a cada nome, Arsène abanava a cabeça, impaciente.

— Não. Esse não — repetia ele. — Só há dois motivos pelos quais um homem traí: ambição ou falta de idealismo. Todos os nossos membros são homens de dinheiro e posição. Todos se afiliaram, levados pelas suas convicções. O traidor não está entre eles, Gaston de Bouilliard fala demais. Terá falado o que não devia? Não, não pode ser. Ele é bastante inteligente e prudente, no que toca à sua própria segurança.

Franziu a testa, concentrando as ideias. Madame duPrès inclinou-se mais sobre o bordado.

— Se começarmos a suspeitar uns dos outros, estamos perdidos — queixou-se Paul.

Procurou acomodar-se melhor. Madame duPrès levantou-se imediatamente e endireitou as almofadas. Paul sorriu.-lhe amorosamente e ela passou-lhe a mão rapidamente pela cabeça, antes de voltar para o seu lugar, acompanhada do olhar dele.

Arsène não pôde deixar de franzir o sobrolho, ao ver aquilo. Levantou-se e, olhando para o fogo, disse:

— Por favor.- Paul, gostaria de falar com você em particular.

Fez-se silêncio na sala, e Arsène sentiu, mais do que viu, o mudo olhar de desculpas que Paul atirou à amante. Madame duPrès levantou-se, pegou no bordado e saiu majestosamente da sala. Arsène esperou um momento. Depois foi até as portas de madeira trabalhada e fechou-as. Paui corou um pouco e sorriu, embaraçado, mas não disse nada.

Arsène voltou a sentar-se ao lado do amigo e contemplou-o com os olhos brilhantes e ar grave. Pela primeira vez, Paul apercebeu-se de uma mudança misteriosa no amigo. Arsène começou a falar, depressa e em voz baixa:

— Paul, certa vez você me acusou de ter entrado para os Les Blanches por gostar da aventura e por detestar os padres, e não por ser homem de fortes convicções.

— É verdade — admitiu Pauí, intrigado.

— Sim, era verdade — - disse Arsène. Hesitou, desviou o olhar e franziu a testa. — Acontece que, ultimamente, eu tenho visto e ouvido coisas estranhas — murmurou. —• Minha mente está sofrendo uma reviravolta. Não consigo pensar claramente. Antes, eu ria de você, não o compreendia. Não procurava compreender. Agora, estou pronto para ouvir.

Paul ficou calado, muito emocionado. Arsène voltou-se para ele e viu a sua expressão, ao mesmo tempo feliz e incrédula. Instintivamente, voltaram a se dar as mãos.

Só então Paul começou a falar, com voz suave e pensativa, e os seus olhos cinzentos, iluminados pelas chamas da lareira, pareciam brilhar com uma luz interior:

— Durante toda a minha vida, desde que comecei a pensar, tive um sonho e me interroguei: O que sustenta as pessoas, na sua eterna angústia, na sua ausência de esperança e no seu infinito sofrimento? Serão elas como as algas, levadas de um lado para o outro pelas marés, e incapazes de pensar, capazes apenas de sofrer, mas não de questionar e se revoltar? Será que elas aguentam por não poderem fazer outra coisa?

O seu rosto refletia dor e tristeza, ao levantar os olhos para Arsène, que o ouvia com atenção.

— Ou — continuou Paul — haverá nas pessoas uma fé inconsciente, que em parte provém delas mesmas e em parte de uma fonte profunda e mística? Haverá uma lua divina, que faz subir a maré nos corações dos homens e a leva a rebentar nos contrafortes do mundo, trazendo no seu bojo estranhos tesouros, estranhas criaturas e as formas de uma nova vida? Será esse o segredo da resistência, a fé primitiva das pessoas simples, que para elas é eternidade, a origem de toda a vida, a promessa de um futuro e de novos continentes de desejos e esperanças?

Sem poder se conter, levantou-se e colocou-se ao lado de Arsène, a luz das chamas aumentando o fervor dos seus olhos.

— Quem pode resistir às pessoas, quando elas sentem dentro de si essa imensidão? Ninguém, nem reis nem padres, nem as armas e nem sequer a morte. E então eu percebi que o povo estava de novo começando a se manifestar, após séculos de opressão e desespero. Estávamos numa era de luz, de tomada de consciência, de reconhecimento dos tiranos, de compreensão do poder do povo!

Pousou a mão trêmula no ombro de Arsène.

— Não sou huguenote por tradição ou por revolta, como você, Arsène! Sou huguenote porque acredito, e sei que, na Reforma, soa a voz do povo, grave e apaixonada, desejosa de liberdade, prenhe do futuro. O povo está de novo se erguendo da lama em que refocilou durante sécuios de trevas, e olhando à sua volta. Ouve-se já a sua voz tonitruante! O povo se levanta, aqui, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na Espanha! E esse movimento se espraiará até os séculos vindouros, levando nas suas ondas as velas da liberdade, da fraternidade, da paz, do conhecimento e da igualdade!

Arsène sentiu-se tomado de emoção. Nos seus ouvidos ressoou como que um clamor surdo, e ele fechou os olhos, procurando reviver o sonho que tivera.

— Esta é apenas a aurora — disse Paul, com voz trêmula. —• Não viveremos para ver a lua cheia, Arsène. Mas ela virá. Quem pode ofuscar o sol, fazer com que ele volte a desaparecer atrás do negro horizonte? Ninguém! Chegará o dia em que não haverá franceses ou ingleses, alemães ou espanhóis, russos ou italianos. . . apenas homens. As intrigas e os complôs de reis e padres e tiranos podem apenas escurecer um pouco o dia com nuvens passageiras, mas nunca fazer deter o curso do sol.

Palavras incríveis, sem sentido!, pensou Arsène. Apesar disso, sentia-se emocionado, como deviam ter-se sentido os pagãos, ao ouvir as primeiras palavras de Cristo.

Paul continuou, numa voz mais forte:

— Os rios do mundo correm à porta de todos os homens. Estamos ligados, por um cordão umbilical, à estrela mais distante. Essa é uma verdade que, através de milhares de anos, os homens maus procuraram negar, com mentiras e superstições, com traição e cobiça. É uma verdade que eu nem sempre conheci. Minha mãe era católica devota. Fui criado na fé de Roma. Ela me ensinou a universalidade de todos os homens? Não, ensinou-me superstições e ignorância, opressão e intolerância. E quem perpetrou esse pecado monstruoso contra a humanidade? O cristianismo? Não, os maus servidores do cristianismo! Por isso, a minha briga não é com a Igreja, mas com os seus servos. É a eles que devemos combater, destruir, se quisermos que a compaixão e a fraternidade imperem no mundo. — Fez uma pausa e prosseguiu: — E foi por isso que pensei em Buckingham, na Alemanha. Tive a ideia de ir à Inglaterra, à Alemanha, e engajá-los na minha cruzada. Alguns deles pensam como eu. . .

Mas Arsène ficou subitamente horrorizado, alarmado.

— Os ingleses! Nossos inimigos hereditários! E os seus irmãos, os alemães, também nossos tradicionais inimigos! Isso é absurdo. É uma traição, Paul. Detesto os ingleses e desprezo os alemães. Estive na Prússia e na Saxônia. Que bestas, que gente sem maneiras! A alma alemã é ao mesmo tempo grosseira e mística, romântica e porcina, prática e ilógica. É cheia de pesadelos, preocupada com fantasias delicadas e coisas materiais, como queijos horríveis. — Riu. — Lernbro-me de ter ouvido o Duque de Richelieu

“Uma nação que fabrica e come queijos tão ruins é digna de Lutero”.

Paul suspirou, sorriu levemente e abanou a cabeça. Sentou-se e olhou para o fogo.

Arsène ficou sério. Inclinou-se para o amigo.

— Paul, não entendo muito do que você disse, apenas sinto alguma coisa. Mas não posso compactuar com nada que represente uma traição à França. . .

— Você não entende! — exclamou Paul, com tristeza impetuosa. — Não consegui fazer com que você compreendesse que não existem nações, mas apenas homens, e que a nossa preocupação é com os homens, e não com reinos ou políticas. Falo-lhe de almas humanas e da liberdade dos homens, e você me responde com bobagens sobre queijos! Você não passa de um bravo, mais nada. Não há lugar para você ao meu lado.

Mas Arsène não ficou ofendido. Olhou para Paul e mordeu o lábio.

— A Reforma — disse Paul, unindo as mãos e olhando para o fogo — é mais do que um movimento religioso. É um movimento secular. É o nascer de um novo mundo, um mundo de novas fronteiras, de uma nova economia, de uma nova compreensão do lugar do homem na Natureza e diante de Deus, de uma nova política, de novos governos e de novos filósofos. A Igreja tem dito: “Para os patrões, piedade, domínio e caridade. Para o povo, servidão, obediência e ignorância”. Mas nós dizemos: “Para os patrões, responsabilidade, justiça e misericórdia. Para o povo, responsabilidade, fraternidade, luz e liberdade”. Este é o movimento inerente à Reforma, que não se interessa apenas por doutrinas, mas também pelos homens.

O rosto dele brilhava, iluminado pela força da sua fé e da sua paixão. Parecia ter esquecido Arsène. Bateu com o punho fechado, lenta e pesadamente, no joelho. Uma beleza fervorosa tomou conta dele.

Arsène suspirou e abanou de novo a cabeça.

— Não consigo entender essas coisas, Paul. Morbleu! Gostaria imensamente de entender! Mas, embora não as entenda, sei que você fala a verdade. Ficarei do seu lado, cegamente, como um soldado que não compreende inteiramente as ordens recebidas, mas que deseja obedecer, confiar.

Paul sorriu. Estendeu a mão livre e apertou calorosamente a do amigo.

— Sempre confiei em você, Arsène. Sei que posso continuar a confiar.

— Você é um santo! — exclamou Arsène,'impulsivamente, cheio de amor pelo amigo. — Não é dado aos homens compreender os santos, e sim apenas adorá-los.

Paul riu um pouco daquela extravagância. Ainda estava preocupado e aborrecido. Não conseguira fazer com que aquele rapaz exuberante, impetuoso, entendesse. Mas conhecia a sua devoção e sabia que, embora se baseasse apenas no afeto pessoal, ela era forte e sincera.

E Paul sabia também que os líderes precisam valer-se dessa forma de adoração e fidelidade, mesmo que sejam cegas e estriba- das na perplexidade. Nem a todos os homens era dado compreender.

Mas Arsène, voltando para casa através do túnel, sentiu que estava um pouco mais perto de compreender as coisas que ouvira o Abade Mourion dizer, e que, embora houvesse muita coisa que ele jamais conseguiria entender, estava a serviço de um sonho que não podia falhar à humanidade.


Capítulo XIII

Era costume de Louis de Richepin, depois da missa matutina a que ele assistia e na qual por vezes oficiava, dar um passeio matinal pelo Bois.

Àquela hora, ninguém estava no bosque, senão ele, caminhando sob as árvores de folhagem primaveril, manchada pelo sol. Os caminhos por onde ele pisava estavam úmidos e sombrios, impregnados dos cheiros da terra, e diante dele arrastavam-se pequenos caramujos e a brancura ainda menor das minhocas. Mas os pássaros já estavam acordados, cantando docemente nos ramos das árvores, e o formato das suas asas, ao levantarem vôo, refletia o brilho do sol, fazendo com que elas levassem uma momentânea radiância às sombras do bosque. Aqui e ali, ele via florzinhas despontando na relva nova e, por vezes, quando a brisa soprava, uma rajada de perfume lhe batia, invisível, no rosto.

A paz e o silêncio mergulhavam profundamente num coração que conhecia pouca paz. Ele avançava lenta e majestosamente, e as suas feições iam se tornando menos rígidas e mais calmas. De vez em quando, ele parava para observar, com estranha ternura, a passagem de algum animalzinho, ou a trajetória de um pássaro contra o céu puro da manhã. Pensava que meditava, mas, na realidade, não pensava em nada. Sua mente, sempre tão cheia de ideias severas, de imagens de dor ou desespero, ficava como que vazia, e ele conhecia uma trégua bendita.

Costumava carregar um livro de orações, e marcar, com um dedo, as páginas. De vez em quando, fixava os olhos no livro, e os seus lábios se moviam. Mas a sua mente e o seu coração não absorviam o que lia porque, durante algum tempo, ele se sentia feliz. Passeando por aqueles caminhos silenciosos, manchados pela luz e pela sombra, ele não pensava em nada, nem mesmo em Deus, que o perseguia por todo o lado, menos ali. Porque ali era um santuário, onde reinava completa paz.

Naquela manhã, ele trouxera consigo um livro que tinha achado, na noite anterior, na biblioteca do Cardeal. Sua Eminência vira-o pegar no livrinho, cuja capa de couro, de onde o dourado das letras havia muito saíra, estava se transformando em poeira marrom.

— É um livro estranho, esse — dissera o Cardeal, com uma voz esquisita. — Eu não o aconselharia a lê-lo.

— Por quê? — perguntara Louis, surpreendido. — Muita gente o leu, pois as páginas estão gastas e rasgadas. Monsieur le Cardinal não o leu?

O Cardeal sorrira, os olhos fixos no livro que o secretário tinha na mão. Ficara longos momentos sem responder.

— Li — dissera, por fim. — Li-o e muitas vezes. Entretanto, não o aconselho a lê-lo, Louis. Mas não o proíbo.

Fez uma pausa, e os seus olhos, mutáveis como os de um gato, brilharam com certa malevolência. Franziu as sobrancelhas e olhou para Louis com uma curiosidade fria, mas sorridente.

— Leia-o, então — disse ele.

Ao sair da biblioteca, Louis parara à porta e olhara para trás, por uma razão que ele próprio não conseguia entender. O Cardeal estava olhando para ele, e o seu sorriso tinha algo de divertido e maligno.

Fora então que, com um choque profundo, Louis disse para si mesmo: Ele me odeia!

Aquele olhar e aquele pensamento tinham feito com que o jovem sacerdote passasse a noite sem dormir. Colocara o grosso volume em cima de uma mesa, perto da cama austera, e o lampião só se apagara ao amanhecer. Louis ficara deitado, olhando para o livro e lembrando-se do olhar que surpreendera no Cardeal.

Levantara-se, ouvira missa e preparara-se para o seu passeio matinal pelo Bois. O livro continuava em cima da mesa, e Louis hesitara. Depois, apertando os lábios, pegara nele e carregara-o consigo.

Percorrera uma distância considerável, com o livro na mão, ju- - rando repetidamente que não o leria. O peso dele nas suas mãos parecia-lhe agora algo pecaminoso, poluidor, mortal. Mas a manhã estava tão serena, tão radiante e bela, que achou que nada poderia atingi-lo ou deprimi-lo, fosse o que fosse.

Abriu o livro numa página ao acaso, como se uma mão invisível tivesse virado as páginas. As letras eram castanhas e desbotadas. O título havia muito desaparecera da capa, bem como o nome do autor. Louis parou numa clareira banhada de sol, entre duas grandes árvores, e leu:

“A terrível herança do povo! Herda todas as tristezas, todos os sofrimentos, todas as angústias e agonias. Tenta catar fé e esperança, furtivamente, como os homens catam nas ruínas à procura de comida. Lançam-se, com lanternas fracas, através da terra escura, assestando desesperadamente as suas luzinhas sobre um caos sem sentido, cortado por caminhos enganosos, que não levam a nada, ou levam a poços e abismos. Gritam, no meio da noite, em resposta a ecos que escarnecem deles; acampam em montanhas pedregosas. Não encontram nada, nem sequer uma orientação, nas frias estrelas. Deparam com templos vazios, cujos ídolos caídos não têm nome. Fogem dos berros de exércitos invisíveis, Buscam, no meio das sombras, os rostos de amigos, mas só encontram fantasias. Vagueiam por entre a névoa e encolhem-se sob as tempestades. A terra é, para eles, um território selvagem e desconhecido, que os detesta, como uma terra distante odeia os estrangeiros

“E então os homens pensam, no fundo do seu coração: Somos estrangeiros e a terra olha para nós com ódio. Não temos pátria, nem na escuridão de onde viemos, nem na escuridão para onde vamos. Estamos perdidos numa eternidade que não nos dá atenção, e só as nossas vozes e as nossas orações voltam para nós, como um eco dos céus. Na aurora fugidia, não há luz para nós, Estamos sós na morte e vamos para o abismo infinito sem esperança, apenas com um derradeiro grito”.

O livro pareceu fechar-se sozinho nas mãos de Louis. Permaneceu ali, ao sol, mas toda a paz se fora do seu rosto. De repente, estremeceu, como se tocado por um vento gélido. Sentiu uma profunda náusea, uma vertigem, como se tivesse caído de muito alto, e ouviu o doloroso pulsar do seu próprio coração.

É ridículo, disse para si mesmo, mas o pensamento ecoou, com um som cavo, por todos os labirintos do seu cérebro. É um livro mau, pensou. Mas não é a primeira vez que leio coisas perniciosas e sempre senti apenas desprezo por elas.

Parecia-lhe que um sussurro malévolo lhe soprava ao ouvido: Ah, mas é a primeira vez que leio as coisas que de há muito jaziam, latentes, na minha alma!

Olhou para o livro que tinha na mão e disse, em voz alta:

— Foi o próprio Satã quem me deu isto, para testai a minha fé!

Satã! E ali, parado ao sol, teve a impressão de ver o rosto levemente sorridente do Cardeal e de ihe ouvir a voz:

— Meu caro Louis, a superstição é o realismo dos simples, a alegoria dos inteligentes.

Fitara em Louis um olhar irônico e sorrira de novo.

Cada vez mais nauseado, Louis saiu do sol para a sombra formada pelas árvores. Sentia-se extraordinariamente fraco e impotente. Sentou-se na grama que beirava o caminho e olhou novamente para o livro. Voltou a estremecer e atirou o livro longe. Cobriu o rosto com as mãos. Não podia suportar olhar para toda aquela paz, toda aquela beleza, que agora lhe pareciam cheias de angústia.

De novo o rosto do Cardeal surgiu diante dele, satírico, e Louis 'disse, mais uma vez, para si mesmo:

— Eis me odeia..

Via agora, com horror, até onde ia aquele ódio, que nem por ser impessoal era menos horrível. Até ele, a quem sempre servi fielmente, pensou, me detesta. Não existe ninguém, em todo o mundo, que me ame, ou que alguma vez me tenha amado.

Outro pensamento terrível tomou conta dele, ao se lembrar do estranho sorriso e do olhar que o Cardeal lhe deitara. Pensa que eu sou um hipócrita, um mentiroso, um homem de pouca fé, disse para si mesmo, surpreso. Foi por isso que não me tirou este livro horrível das mãos. Queria que eu o lesse e visse, nas suas páginas, como um espelho, o meu próprio rosto.

Um velho sentimento de horror se apoderou dele, mais profundo do que o desânimo, sem nome, frio e paralisante. Sentiu toda a sua força, toda a sua vida se esvaírem do seu corpo e, no lugar delas, fincar pé a dissolução, como se o seu coração estivesse morrendo. Mil vezes ele combatera aquele horror, aquela agonia da alma; mil vezes julgara ter triunfado. Agora, sabia que jamais ganhara uma única batalha, apesar de todas as suas preces, da sua tremenda vontade de acreditar, da afirmação mística, semelhante a um grito num remoinho. Procurara crer com a simplicidade de um camponês, com a ingenuidade de uma criança, mas sempre sentira um terrível sentimento de degradação. Ladainhas e padre-nossos, rosários e novenas, tudo isso ele experimentara, no seu tormento. Mas a sua mente continuava entocada, como uma coluna de sal no meio de carreiros de formigas, e cheia de repugnância.

Certa vez, o Cardeal lhe dissera:

— Existem os que crêem com o coração e há os que acreditam com o espírito, mas só uns poucos crêem com a inteligência. No entanto, os que acreditam com a inteligência são os verdadeiramente grandes, os líderes.

Acreditei com o coração e com a alma, pensou ele, retorcendo as mãos, desolado. Mas nunca acreditei com a inteligência.

Procurou conjurar um sentimento de culpa, assim como um homem enlouquecido bate com a cabeça contra a parede. Mas não sentia culpa, apenas a velha sensação de vazio, de horror, de desespero.

Fora esse conflito entre a sua inteligência e o seu desejo de crer que o levara para a Igreja. Entrara para a Igreja porque desejava crer, porque acreditava que na fé encontraria, finalmente, um pouco de paz, algum consolo para um mundo que parecia odiá-lo, algum amor capaz de mitigar a fome que o seu coração sentia. Muitas vezes se convencera de que tinha encontrado a verdadeira fé e, nessas ocasiões, se julgara feliz porque a dor desaparecera embora não fosse substituída pelo êxtase. Acima de tudo, porém, encontrara ódio, muito embora não ousasse olhar para dentro da própria alma e descobrir a razão para esse ódio. A inteligência, porém, suspeitava-a. Desconfiava que o ódio nascesse do fato de ele não ter fé, de se sentir ameaçado e precisar odiar os outros que não tinham fé e ameaçavam a pouca fé que ele às vezes sentia, com as suas afirmações de falta de fé.

Naquela manhã, ele não conseguia desviar os olhos do seu ódio, e lembrava-se de que, certo dia, o Cardeal lhe dissera, com um estranho sorriso:

— Sempre desconfiei de que os santos homens da Inquisição fossem ateus.

A mente assustada de Louis ficara confusa, mas agora ele sabia que essa confusão fora auto-induzida, em autodefesa, pois não ousava olhar para dentro de si mesmo.

— Não se transforme num fanático, meu caro Louis — dissera-lhe o Cardeal, em outra ocasião. — Não confio em fanáticos; são homens que odeiam a si próprios e, por conseguinte, também aos outros homens.

Isso fora na ocasião em que Louis, num dos seus raros mas selvagens ataques de fúria, esquecera o respeito que devia ao Cardeal e gritara contra a política de Sua Eminência, de aplacar os nobres huguenotes “em nome da vida e da força da França”. Que vida e que força podia ter a França, se a heresia triunfasse?, exclamara Louis, com a voz trêmula de paixão e furor. Que importava que a França se tornasse a maior dentre as nações, se a praga dos huguenotes ficasse cada vez mais forte e pusesse em perigo a sua alma? Era preferível a França ser a última das nações, mas acabar com a praga.

Contudo, quando o Cardeal lhe respondera, na sua voz fria e serena, Louis ficara calado. Tinha querido protestar de novo, mas uma inexplicável insensibilidade lhe paralisara a língua. Agora ele compreendia, e a insensibilidade já não era inexplicável.

Voltara a enfrentar o velho conflito com desespero e determinação. Os huguenotes tinham-se tornado uma obsessão para ele. A heresia ameaçava não só a Igreja, mas a si mesmo, a sua vida e a sua paz. Tornara-se uma espada apontada contra a sua garganta, por um homem que o odiava e troçava dele. Á sua natural severidade transformara-se em crueldade; a sua melancolia natural, em ferocidade. Por fim, ele se iludira a ponto de pensar em si como um fiel soldado de Cristo, devotado a Deus. Seus subordinados suportavam- lhe a severidade, as punições e penitências, e os trabalhos intermináveis que ele lhes impunha. Riam dele, odiavam-no. Louis via-lhes o ódio nos olhos submissos. E nunca, nem mesmo agora, conseguira controlar a sensação de vazio do seu coração, a súbita e terrível tristeza que c acometia, o mal-estar e a amargura, ao ver, nos olhos de outro homem, ódio contra si mesmo.

Sentia, cada vez mais, o coração vazio. O que o oprimia não era um cansaço físico, embora dormisse pouco. Era uma ausência de sentimentos, como se uma parte do seu espírito estivesse paralisada. Não era capaz de sentir nada, a não ser ódio, raiva e uma terrível angústia. Mas, agora, até mesmo essa angústia cedera, e permaneciam apenas o ódio e a raiva, como dementes que houvessem tomado conta de uma casa vazia, da qual todas as outras pessoas tivessem fugido.

Só no Bois, naqueles passeios solitários e matinais, é que ele conseguia encontrar um pouco de paz. Mesmo assim, era a paz da negação, quando ele tinha forças para parar de pensar, quando conseguia escapar ao Deus no qual a sua mente não acreditava, apesar de todos os seus esforços, e quando o terrível e enorme anseio de toda a sua vida, sem nome e sem forma, parava de açoitá-lo com asas invisíveis, mas violentas.

Agora, porém, o Bois acabara, para ele. Nunca mais poderia voltar a passear pelo bosque, sem se lembrar daquele horrível livro, que parecia desafiá-lo com as suas palavras mudas. Levantou-se, com um suspiro que mais parecia um gemido, e olhou em volta, como um homem que procura um meio de fugir da morte.

E, como sempre que descia aos seus infernos particulares de desespero e tortura, viu a cara do irmão; o ódio reavivou-se no seu íntimo, com renovada intensidade, como uma explosão de pólvora. Porque o irmão se tornara, para ele, o símbolo da heresia que, pelo simples fato de existir, ameaçava a fé e a vida de Louis de Riche- pin. Arsène tornara-se o sinal visível da sua própria falta de amor e do seu misterioso mas infinito sofrimento, aquele bufão sorridente, aquele devasso, libertino e aventureiro! Louis ainda não sabia que fora o seu ódio por Arsène o que o levara a ingressar numa Igreja que não lhe dava consolo e nem alívio, que o tornara inimigo de todos os homens e despertara nele uma inexorabilidade, uma inflexibilidade, que acabariam por destruí-lo. O Cardeal havia muito suspeitava disso e achava divertido meditar nas pequenas imponderabilidades pessoais dos homens, que tantas vezes determinam o destino do mundo. Detestando também a humanidade, mas divertindo-se com isso, o Cardeal nunca se cansava dessas meditações, que lhe proporcionavam um prazer acima da concupiscência.

Torcendo as mãos, gemendo baixinho, Louis andava de um lado para o outro, na sua batina negra, uma expressão horrível no rosto, ao pensar no irmão. O sol da manhã batia-lhe nos olhos, fa- zendo-os luzir malignamente. Imerso nos seus pensamentos, não ouviu o suave pisar das patas de um cavalo, até que o animal parou à sua frente e a amazona sorriu para ele, com um misto de timidez e êxtase.

Louis olhou para cima e estremeceu. Uma jovem de não mais de dezessete anos sentava-se, leve e graciosa, no dorso do grande cavalo branco. O voluminoso traje de veludo preto enfatizava-lhe a alvura do rosto e do pescoço, nos quais havia também uns tons de rosa, repetidos, com mais força, na suave curva dos lábios. Debaixo das sobrancelhas cor de bronze, lisas e acetinadas como asas de borboleta, os seus olhos eram dourados, brilhantes e ardentes de juventude e vida. Do pequeno chapéu emplumado cascateavam cachos de cabelo castanho, nos quais o sol punha tons de ouro escuro e vermelho-bronze. Era miúda de corpo, com uma cinturinha impressionantemente fina e um busto ereto e orgulhoso, embora tenro. Seus diminutos pés apoiavam-se, com firmeza, nos estribos. Com uma mão enluvada, segurava de leve as rédeas, enquanto a outra empunhava o chicote.

Toda ela era graça, delicadeza e beleza, embora a luminosidade das suas cores lhe desse um ar mais febril do que saudável. Uma luz parecia brotar-lhe da pele, uma luz intensa, que fazia os que a amavam temer que um dia ela acabasse por consumir aquele corpo frágil e encantador.

Sorriu para o jovem padre, e o seu rosto se iluminou, radioso.

— Bom dia, Monsenhor de Richepin! — disse ela, numa voz que lembrava a de um rouxinol.

A glacial rigidez desapareceu do rosto de Louis. Fez uma curvatura e sorriu, sentindo um calor desconhecido irradiar-se pelo seu corpo.

— Bom dia, Mademoiselle de Tremblant! — exclamou.

Aproximou-se do cavalo e pousou a mão no seu pescoço trêmulo. A uma distância discreta, o cavalariço, montado num pequeno cavalo baio, esperava, olhando para as árvores.

— Não é muito cedo para estar passeando? — continuou Louis.

Uma estranha falta de ar fez com que ele ofegasse um pouco, ao mesmo tempo que um tremor lhe perpassava o corpo. A jovem deixou as rédeas caírem sobre o pescoço do cavalo, e, embora o seu sorriso tivesse desaparecido, a cor aumentou nas suas faces e em seus lábios.

— Dou um passeio a cavalo todas as manhãs — respondeu ela.

Houve um eloquente momento de silêncio entre o jovem padre e a moça, enquanto fitavam os olhos um do outro. Depois Louis disse, numa voz pouco segura, como que sacudida pela emoção:

— E como está sua irmã, Mademoiselle Clarisse?

— Bem melhor, agora que Arsène voltou, embora ele só lhe tenha mandado bilhetes. Mas prometeu ir visitá-la hoje.

Ao ouvir aquele odiado nome, o rosto de Louis contorceu-se. A mão descaiu do pescoço do cavalo, e ele desviou a cabeça. Mas, vendo que a jovem tirara o pé do estribo, apressou-se a lhe oferecer a mão. Ela pulou do dorso do animal e ficou de pé, junto dele. A aba do seu chapéu emplumado mal alcançava o ombro de Louis. Por um momento, olhando um para o outro, não se deram conta de que as suas mãos permaneciam entrelaçadas. A luz verde das árvores enfatizava o dourado dos olhos da jovem.

Demasiado afastado das paixões dos homens comuns, exceto no que dizia respeito ao ódio, Louis não compreendeu o significado do calor e do tremor que o percorriam. Estranhou o bater descompassado do seu coração, e a beleza do bosque pareceu-lhe, dê repente, ter aumentado. Aos seus ouvidos, o canto dos pássaros era extasiante, o vento, um verdadeiro hino, e o céu brilhava, luminoso. Sob os seus pés, o chão dava a impressão de se mover.

Ao olhar para a moça, constatou, surpreso, que ela parecia estremecer, e as suas faces estavam escarlate. Só quando a sentiu retirar os dedos enluvados é que compreendeu — e sentiu um profundo choque, de dor e privação.

A jovem avançou graciosamente pelo caminho do bosque, e ele acompanhou-a. Ela olhou para trás, para o cavalariço, mas o criado cavalgara até o cavalo abandonado, pegara-lhe das rédeas e sentara- se, esperando, em silêncio, como se obedecendo a um sinal. Ficou a olhar para a patroa e o padre, até eles desaparecerem por entre as árvores, e depois piscou o olho, riu, murmurou uma ou duas palavras grosseiras para os pássaros e pôs-se a assobiar estridentemente.

Louis e Mademoiselle Marguerite de Tremblant prosseguiram no seu passeio mudo por entre o arvoredo. Por fim, chegaram a uma formação de pedras aquecidas pelo sol, a certa distância do caminho. Louis ajudou a moça a subir até a pedra mais alta e depois sentou-se aos pés dela, numa pedra mais baixa. Sempre sem falar, Marguerite tirou o chapéu e sacudiu a cabeça, fazendo com que o cabelo, solto, lhe caísse sobre as faces, a testa e o alvo pescoço. Parecia ter uma vida e uma vitalidade próprias, exageradas para a sua fragilidade, para a sua força. Mas, quando ela sorriu, uma luz radiante brotou-lhe dos lábios e dos olhos. Na base da sua garganta, branca de neve, uma veia pulsava como se o coração lhe tivesse subido até ali.

Continuaram calados. Louis parecia tomado de êxtase, como num sonho. Sorriu palidamente para tudo o que o cercava. Viu o pé da jovem perto do seu cotovelo, e uma mãozinha branca. Ela descalçara as luvas, e a mão tremia-lhe exageradamente.

Louis encontrara Marguerite à cabeceira da sua bonita e petulante irmã, quando das suas visitas à noiva do irmão, e impressionara-se com a devoção e o desprendimento da moça. Pouco dada a falar, ela quase não conversara com ele. Louis achara, inocentemente, ser seu dever visitar frequentemente a desesperada Clarisse, a fim de consolá-la e atendê-la nas suas necessidades espirituais. Mas nunca se dera conta de que os seus olhos tinham pousado longamente na sua irmã mais velha, nem de que ela lhe devolvera intensamente esse olhar.

Contudo, numa ocasião ela lhe confessara, timidamente, achar que tinha vocação religiosa. Ele mostrara-se eloquente. Enquanto Louis falava, os olhos azuis pálidos de Clarisse tinham oscilado, cinicamente, entre o jovem padre e Marguerite, e uma ou duas vezes ela levara os longos dedos brancos aos lábios, como que a conter um sorriso. Nenhum dos dois inocentes havia notado nada. Tinham conversado animadamente um com o outro, os rostos cada vez mais afogueados.

Agora, sentados lado a lado, na paz verde do Bois, Louis perguntou:

— Mademoiselle, já chegou a alguma conclusão sobre o seu desejo de entrar para uma ordem?

Marguerite enrolou um cacho entre os dedos e respondeu, em voz baixa:

— Falei com minha mãe. Ela ficou horrorizada. Quer que eu dê atenção ao Conde de Ramboud. — Hesitou e prosseguiu: — Falou com o meu tio, o Conde de Tremblant, irmão de meu pai. . .

— Mas ele é huguenote! — exclamou Louis.

O coração dele afundou, à menção do Conde de Ramboud, e o seu rosto empalideceu. Sentiu-se de repente invadido por uma raiva cega, por um desejo enorme.

Marguerite sorriu e encolheu os belos ombros.

— Eu sei. Mas ele me ouviu e aconselhou minha mãe a ser paciente e tolerante.

Mas Louis mal escutou o que ela dizia. Seu olhar fixou-se no rosto da moça, fazendo com que o coração dela pulasse, num êxtase de alegria.

— É um pecado interferir na vocação de alguém — disse Louis. Seus lábios estavam secos e brancos. — Mademoiselle, a vocação é sua, não deve desobedecer ao chamado de Deus.

Ela calou-se, possuída por uma súbita e inexplicável tristeza. Olhou para ele com uma sinceridade e um desejo mudos e apaixonados.

Nenhum deles falou, mas uma força irresistível fez com que se dessem as mãos, e os seus dedos se entrelaçassem como se estivessem se afogando em mares escuros e profundos.

Um esquilo atravessou correndo as folhas mortas, aos pés deles. Um pássaro grande bicava o chão. A brisa aumentou, separou as árvores, fa2endo com que os raios de sol caíssem sobre eles, e morreu, deixando atrás de si uma luminosidade verde. A jovem olhou para o rosto parado e marmóreo junto do seu joelho e deu um suspiro longo e trêmulo, semelhante a um soluço.

Disse, num murmúrio desconsolado:

— Não há nada no mundo para mim. Estou tão triste, Monsenhor de Richepin!

Ele não perguntou a razão daquela tristeza, pois de repente a tristeza o invadira também, e eles ficaram ali, sentados, as mãos dadas. Mas, acompanhando a tristeza, havia uma sensação de êxtase, apaixonado e indefinido, como uma luz difusa sobre vagas escuras e turbulentas. Ambos o sentiram. As suas almas se uniram e choraram mudamente, ao mesmo tempo em que se davam conta da presença física e do calor um do outro, num desejo mútuo e desesperado.

Seus olhos ficaram velados, capazes de distinguir apenas a luz ofuscante da terra e do céu. A respiração deles tornou-se irregular e anelante. O calor das suas mãos se misturou, e pareceu-lhes que a sua carne se dissolvia e se confundia. O cantar dos pássaros e o silêncio luminoso como que se tornaram parte deles, parte da emoção silenciosa que sentiam e da crescente angústia da sua alegria.

De repente, as asas invisíveis, mas possantes, da agonia que Louis até ali sentira desapareceram, voando, no espaço. Uma estranha sensação de realização lhe inundou a alma, trazendo consigo uma impressão de poder, de êxtase e de libertação, como se lhe sacudisse os bastiões cinzentos do seu ódio. Louis foi transportado para um reino de chamas, insuportavelmente brilhante, e o seu espírito pareceu tornar-se incandescente. Estremeceu. O coração dele deu um pulo. Gritos indefinidos ecoaram nos seus ouvidos. A sua solidão desapareceu, como uma paiha numa fogueira. Pensou: Não estou só! E, como se aquelas palavras fossem mágicas, a coluna de sal que era a sua mente foi abalada, destruída, e desmoronou.

Agora, ele podia acreditar na presença de Deus. Sentia essa presença à sua volta, como uma radiância. Tudo era bom, tudo se explicava, tudo era cheio de paz infinita. As lágrimas subiram-lhe aos olhos. Pensou, com humildade e alegria: Compreendo a revelação que Deus representa.

Mas continuava tão inocente que não entendia o que lhe acontecera. Murmurou:

— Mademoiselle, o Conde de Rambaud. . .

Ela curvou-se sobre ele, e os seus cachos escuros roçaram-lhe a face.

— Não existe ninguém para mim, senão... — sussurrou ela, em resposta.

Seus olhos se aproximaram. Contiveram a respiração. Os seus lábios se encontraram, lançando os dois numa verdadeira agonia, ofuscante, desintegradora, tocada por ventos de selvagem harmonia. Não sentiam nada, não viam nada, a não ser ura ao outro. O universo girava a volta deles, cheio de estrelas que explodiam, e nebulosas em chamas. Ouviram um rugido e não se aperceberam de que era o pulsar dos seus próprios corações.

Separaram-se, Quais chamas gêmeas, os seus olhos continuaram presos uns nos outros. As mãos pequenas e brancas de Marguerite envolveram o rosto de Louis. Lágrimas escorreram-lhe pelas faces. O rosto dele libertou-se das mãos dela, e os seus lábios comprimiram se contra uma palma trêmula, como se ele fosse presa de um desejo mortal. Marguerite fechou os olhos e sorriu através das lágrimas que ainda lhe caíam por entre as espessas pestanas cor de bronze.

Permaneceram por muito tempo assim, incapazes de se mexer. O sol ficou mais forte, manchando as árvores.

Por fim, estremecendo violentamente, Louis pôs-se de pé. Uma horrível sensação de frio tomou conta dele, fazendo-o gritar. A jovem levantou-se, tremendo visivelmente, e estendeu as mãos para ele.

— Não me deixe! — gemeu ela, curvando-se na direção dele.

Mas Louis recuou, e olhou para ela com um misto de horror e angústia, excessivamente pálido. Deu meia-volta e fugiu.

Ouviu-a chamar o seu nome e abanou a cabeça, com violência ofegante. Cambaleou, como se tivesse ficado cego. Foi de encontro a uma árvore, e o impacto estonteou-o. Um arbusto rasgou-lhe a batina.

— Amanhã! — gritou a voz da jovem, como um eco.

— Nunca, nunca! — gemeu ele, apertando os olhos com as mãos.

— Amanhã! — repetiu o vento, e o sol sorriu através das árvores.


Capítulo XIV

Embora tivesse apenas quarenta e um anos, Armand-Jean du Piessis, Duque de Richelieu, estava começando a sentir, cada vez mais, o mal-estar físico, as dores vagas, mas pungentes, próprias de uma constituição nervosa e delicada, as horríveis dores de cabeça que, em toda a sua vida, lhe haviam ofuscado os momentos de alegria mais intensa, de satisfação e triunfo.

Muitas vezes, lembrando-lhe de ouvir a mãe falar de sua infância doentia, ele sinceramente desejava que os médicos não tivessem sido tão hábeis e dedicados e o tivessem deixado, enquanto ainda não se dava conta de nada, descer à sepultura. Outras vezes, meditando sobre si mesmo (uma de suas ocupações prediletas), ficava pensando se a ambição não brotaria sempre, como uma planta silvestre, forte e florescente, em chão venenoso, onde flores mais delicadas não conseguissem vingar nem tirar sustento. Mesmo os desertos tinham as suas flores e as suas plantas, fatais e espinhosas, embora neles não se desse a violeta e nem a frágil rosa. Parecia que os mais fortes vícios e as maiores virtudes, que tanto marcavam os destinos de homens e nações, surgiram apenas em solo árido ou pedregoso, em lugares selvagens e perigosos, em pântanos mortais ou nas fendas das montanhas.

Não tinha ilusões a seu respeito, e dessa falta de ilusões lhe tinham advindo a força e o poder. Só ele sabia que a confusão e a desordem da sua mente é que tinham gerado a sua paixão pela ordem em tudo o que o cercava. As complexidades do seu espírito tortuoso faziam com que ele cultuasse a simplicidade e usasse de uma implacável franqueza para com o mundo. As fraquezas e a instabilidade da sua constituição exigiam força e inexorabiiidade na política e nos negócios. Detestando, no fundo do seu coração, a hipocrisia, servia-se dela no seu trato com os homens. Desprezando os ingratos, sabia bem como usar da ingratidão. Secretamente, tinha aversão aos homens exigentes mas, sabendo que a exigência era um dos cetros do poder, cultivava-a. Tinha pavor da fraqueza e da gentileza, por sentir em si ambas as coisas, e demonstrava um cinismo e uma falta de misericórdia que faziam dele um dos homens mais odiados da Europa e da França. Amava a paz e ansiava por ela. Consequentemente, masoquista que era, criava à sua volta uma atmosfera de intriga, lutas e mal-estar. Achava que ser ele mesmo era morrer. No meio de todos os seus sofrimentos, tinha um amor quase monstruoso pela vida. A vida era poder. Temendo a morte, nunca se saciava do poder. Mas a sua alma e o seu corpo so- friam de um eterno cansaço, de uma náusea e de um desespero constantes. Só a sua força de vontade o forçava a procurar o poder; só o seu amor intelectual pela vida mantinha a distância a dissolução que lhe ameaçava a carne.

Sabia que era odiado e sentia que merecia esse ódio. Mas isso o divertia enormemente. Sabia que os seus inimigos o chamavam de Morte Vermelha, de Cardeal dos Huguenotes, de Peste Negra. Achava esses nomes divertidos, pois detestava mortalmente todos os homens. Às vezes, quase acreditava que era esse ódio que o mantinha vivo. Sentindo um prazer mórbido em se auto-analisar, espantava-se, cinicamente, de que a sua principal motivação fosse a unidade e a força da França. Porque ele sabia que essa motivação era uma forma de fuga, que não lhe dava tempo de pensar e de sentir dor.

A ambição, ele sabia, era a grande ilusão, que crescia com mais força naqueles em cujo corpo ou em cuja mente as sementes da morte estavam mais profundamente plantadas. Era a convulsão de membros desesperados, tentando fugir. Contudo, ninguém conhecia melhor do que ele aquele cansaço, aquele desgosto, aquele anseio de morte, que habitavam, como espectros, na casa da ambição.

Apesar disso, ele achava tudo aquilo divertido. Num homem comum, isso teria inibido o desejo de lutar e a vontade de conquistar. Nele, porém, era um estímulo. Sabia que o desejo de viver é mais poderoso nos que èstão morrendo, e que o senso de humor é mais forte naqueles que sabem que na consciência não há nada de divertido.

— Os únicos inimigos que eu tenho são os inimigos do Estado — costumava dizer. Mas sabia que o seu maior inimigo era ele mesmo. Gostava de meditar sobre a sua própria pessoa, mas cada vez menos o fazia, porque, quando se dava a esse passatempo, ficava, depois, durante vários dias, como se fosse um vício secreto e fatal, tão exausto, tão prostrado, que mais parecia um fantasma, imitando os gestos e os sons dos vivos. Mas nunca era afetado por algo tão plebeu quanto um ataque de consciência, essa policiadora da alma burguesa, esse exercício pueril dos fracos. Antes descobria em si mesmo, nos momentos em que se entregava ao seu vício, toda a futilidade e todo o horror, todo o desespero e toda a doença espiritual do universo e, talvez, de Deus.

Os genuinamente entusiastas e devotados são limitados pelas próprias paixões. Isso ele bem sabia. São prejudicados pela veemência e pelo fervor nascidos desse entusiasmo. São ofuscados pelos próprios êxtases. O homem que alcança um poder real é o intelectual, desprovido de entusiasmo e que só pode agir pela vontade.

Rodeava-se de luxo, como se para esmagar o seu secreto amor da austeridade. Sua conhecida avareza era, na verdade, o terror febril do homem que ergue barricadas contra a aproximação do inimigo. Como não tivesse um desejo real de opulência e de riqueza e soubesse que, se permitisse que essas verdadeiras características regessem a sua vida, ficaria arruinado e acabaria morrendo, nada parecia saciá-lo.

Às vezes, nos momentos mais negros do seu imenso desencanto com a vida, deixava-se levar pela saudade dos seus tempos na Academia de Pluvinal, onde estudara artes militares. A economia, pensava, exercia a maior das influências na vida dos homens. Fora a necessidade de manter a dotação de Henrique IV na sua família que fizera dele padre. Ao pensar na carreira militar, que havia abandonado a pedido de sua mãe, tendo em vista a necessidade de conservar aquela dotação, sentia-se cheio de pena e frustração. Esquecia que abandonara a vida de soldado, sem remorsos, pensando nas possibilidades maiores que o sacerdócio oferecia. Esquecia-se de que o instinto de conservação e o calculismo o haviam levado a aquiescer. Nesses momentos de fraqueza, ficava sentimental e gostava de acreditar que fora uma vítima das circunstâncias. Depois, regozijava-se de que a sua decisão lhe tivesse proporcionado um escopo bem maior para as suas realizações no campo militar. Sua paixão pelo militarismo, seu conhecimento da estratégia, seu amor da disciplina, levavam ordem à sua mente desordenada, prolongando- lhe, assim, a vida. Temendo a morte, ele cultivava constantemente a sua inclinação para o militarismo.

Em resumo, estimulava todas as coisas que pudessem mantê-lo vivo. Às vezes, dava-se conta das suas manobras e sentia na boca o gosto da morte. Mas não costumava se permitir momentos desses. Contudo, a sua alma atormentada, quase que desde o nascimento, por um desejo de extinção, vingava-se no seu corpo.

Por vezes, ele pensava: apoio tiranos porque desespero do povo. Mas na desumanidade e na falta de escrúpulos dos tiranos ele ia buscar força para si mesmo. Ternura e compaixão pelo povo só fariam apressar a sua desintegração. A compaixão, meditava ele, é boa, mas não deve ser posta em prática indiscriminadamente por aqueles que desejam governar. (Ou viver, sussurrava a sua alma, em resposta.) E, assim, do terror de um homem originava-se a sua detestável reputação de indiferença ao sofrimento, à injustiça, à crueldade e à misericórdia. Era um homem condicionado pela morte.

O medo dera à sua natural reserva um caráter de basilisco; ao seu temperamento naturalmente calmo, um quê de inescrutabilida- de; à sua lucidez gaulesa, um desprezo pela justiça abstrata; à sua imensa curiosidade, um talento para a intriga; à sua inerente firmeza, uma indomável imutabilidade. Havia uma certa frieza, no seu temperamento, que degenerara numa ferocidade glacial. O seu natural egocentrismo transformara-se num exagerado orgulho familiar, no qual nem mesmo a sua capacidade de auto-análise encontrava nada de ridículo. Até mesmo o senso de humor, com o qual fora generosamente dotado, se transformara em malévola ironia e em sutileza obscena. A sua tendência à melancolia transformara-se num constante e negro desespero, que o penetrava até os ossos. Até o seu intelecto se tornara diabólico.

Dizia-se que havia no seu sangue uma tara que em certos membros da sua família se traduzira em idiotia ou loucura. De qualquer maneira, ele era dado, principalmente quando a sós, a acessos de exaltação epilética e inexplicáveis êxtases, que o deixavam enfraquecido de corpo, ao mesmo tempo em que exageravam os vícios e as virtudes do seu temperamento e lhe aumentavam o medo.

Só exteriormente se sentia seguro. O seu gênio como organizador provinha da sua incapacidade de organizar os pensamentos que lhe sitiavam o espírito. Tinha uma agudeza e uma rapidez que se originavam do desespero constante em que vivia e que ameaçava acabar por destruí-lo.

Certa vez, dissera: “A paixão da justiça pode confundir um homem, a ponto de ele se tornar pouco mais do que um trapo, ondulando ao sabor de uma dezena de ventos diferentes. Põe em perigo a força do Estado e propicia a desunidade”.

Na realidade, ele queria dizer que ele próprio podia transformar-se num farrapo ao vento.

Tinha sempre pavor de descobrir que a montanha sobre a qual construíra a sua casa não passava de um formigueiro de térmitas, e que o deus que ele adorava não habitava um céu distante, e sim uma caverna. Desde muito jovem sofrerá de acessos de inexplicável depressão. Agora, à medida que envelhecia, padecia cada vez mais dessa terrível paralização do espírito, de uma ausência de qualquer sensação emocional, de uma suspensão da vontade, semelhante à suspensão das batidas do coração. Nessas ocasiões, apavorado, erguia-se da cama e mergulhava nos negócios públicos e estrangeiros com uma concentração inumana, uma ambição desmedida e uma intuição sobrenatural, tornadas mais fortes pelo fato de, atrás delas, não haver senão a vontade de viver.

Seu maior medo era perder, um dia, esse desejo de viver. Dele provinham a sua ilimitada ambição para a França, o seu sonho de conseguir para ela unidade interna, a sua determinação de lhe conferir poder e esplendor, de a revitalizar e de torná-la imune à desintegração e à ruína. Para ele, a França tornara-se um símbolo de si mesmo, da sua vontade de viver, da sua própria resistência. Acreditava que, na existência, na força e no triunfo da França, residiam a continuação da sua existência, a sua força e o seu triunfo. A França tinha que viver, para que ele não morresse.

A morte vivia na sua alma. Isso lhe dava uma espécie de fosforescência extraterrena, como se ele já estivesse morto. A sua mente operava através e acima do seu corpo torturado e moribundo, com um desafio desesperado, que brilhava, incandescente, através dos seus olhos, por vezes turvos e carregados de melancolia. Havia neles uma fixidez semelhante ao olhar do gato e uma lentidão de movimento que intimidava, pois tinham a encimá-los sobrancelhas realmente extraordinárias. Dominavam todo o seu rosto, tornavam- no insignificante e ainda mais pálido, com o seu nariz fino e arqueado, os lábios apertados entre os bigodes militares e o pequeno cavanhaque. Em volta da boca viam-se rugas de sofrimento e auto- disciplina e, entre os olhos, sulcos profundos, que resultavam de um pensamento intenso e de terríveis dores de cabeça. Havia nele um ar de segurança inumana e uma quietude que lhe davam o aspecto de pessoa que sofria em silêncio. Mas isso não era verdade. Ele próprio espalhava histórias sobre as suas dores de cabeça. Apesar da sua ironia, sutil e adulta, de ridicularizar secretamente a superstição, de rir dos simples, que se utilizavam da magia, ele condescendia, levado pela dor, a oferecer uma Novena das Massas, se se fizessem orações públicas para aliviá-lo da sua agonia. Chegava a encomendar-se a Nossa Senhora de Ardilles nesses momentos de fervor cego, em que os homens mais sábios e céticos se vêem confrontados com uma calamidade da Natureza inexorável. Da mesma forma que o aristocrático Petrônio, que não acreditava em nada e oferecia sacrifícios aos deuses, baseado na premissa de que não fazia mal e podia, misticamente, fazer algum bem, ele frequentemente implorava ao povo que orasse em sua intenção. Posteriormente envergonhava-se, mas não revelava isso nem aos seus familiares.

Era um ator nato. O seu amor pela arte dramática levava-o a estudar as atitudes e os gestos mais indicados para impressionar o seu povo, amante da graça e do colorido. Cultivava uma presença, realçada pela dignidade natural, embora fosse miúdo, e não alto. Irradiava autoridade, parcialmente assumida e, em parte, real. Caminhava lenta e majestosamente, com o seu cabelo ralo e escuro rente ao crânio delicado, sua batina púrpura caindo em pesadas pregas, à maneira das togas usadas pelos antigos patrícios romanos. Admirava secretamente a finura e a brancura das suas mãos e, mesmo quando imerso em pensamento, e durante as audiências, tinha o hábito de alisá-las e erguê-las alto, de modo a fazer com que o sangue descesse, dando-lhes um aspecto mais delicado. Nada, nos seus movimentos lentos e lânguidos, na sua atitude meditativa, na sua voz calma mas ressonante, sugeria o vigor febril e a paixão da sua mente. Era, até para si mesmo, um personagem de ópera, contido, silencioso e reservado, mas, apesar disso, terrível e dominador, semelhante a uma tempestade violenta que se aproxima, através de céus serenos, ameaçando trazer devastação e morte. Esse aspecto de violência em potencial enervava tanto os seus amigos como os seus inimigos e era, em parte, o segredo do seu poder.

Como todos os grandes homens que dominam outros homens, ele tinha um quê de charlatão. Mas, ao contrário da maioria, não se deixava convencer pela própria charlatanice, nem acreditava que se tratasse de uma-característica natural nele, e não mera charlatanice. Nunca, exceto em raríssimas ocasiões, se deixava enganar. Isso, estranhamente, o tornava ainda mais poderoso, e lhe dava flexibilidade, pois ele sabia que a charlatanice era uma necessidade essencial para os que desejam impressionar e dominar as massas, mesmo que inteligentes. Mas nunca era indelicado ou grosseiro. Isso resultava, em parte, de uma delicadeza natural, mas também por saber que os melhores charlatães cultivam a elegância. Cultivava, assim, uma elegância que era inata nele, pois o povo lhe causava repulsa e o nauseava com o seu suor e os seus cheiros. Servia, portanto, a dois propósitos: preservava a sua delicadeza e impressionava o povo.

Mesmo os seus inimigos admitiam que Richelieu parecia inspirado apenas por um ardor, por uma paixão: a unidade da França. Até os seus maiores adversários concediam que ele amava a sua pátria, que todas as suas maquinações se originavam na sua determinação de lhe conferir força e glória.

Mas Richelieu sabia que o nacionalismo é o pretexto do homem que descobre homens que não lhe são odiosos — os seus patrícios. O nacionalismo deriva sempre de ódio às pessoas. Mas o egocentrismo exige que as pessoas da nossa terra sejam, pelo menos, consideradas toleráveis. Richelieu, bom conhecedor de si mesmo, sabia que o nacionalismo é a necessária ilusão do soldado, mas que o filósofo que o esposa perde a lógica; o estadista, a perspectiva; o artista, a sensibilidade criadora; o sábio, o senso de humor; o padre, o seu Deus. Ao servir à França, Richelieu via-se pelo menos privado da lógica, da perspectiva, da sensibilidade, do sentido de humor e, inevitavelmente, de Deus. O homem que não prescindisse disso ficaria presa da hesitação e da dúvida e, por conseguinte, perdido.

Quando estava a sós, como naquela bela manhã do início do verão, era assaltado pela sua própria pessoa, pelo terror da morte, pela doença, pelo desespero e pela melancolia. Acreditando que todo homem deve, antes de mais nada, lutar contra si mesmo, ele muitas vezes se forçava a ficar só e lutava consigo mesmo dentro do espírito dualístico com que Jacó lutou com o anjo. Só que ele era um anjo negro e não um anjo de luz. Nessas autoflagelações havia o instinto do masoquista que se desprezava a si mesmo.

Todas as manhãs, rezava missa, ou a ouvia. Depois, porém, retirava-se para os seus aposentos e caía na cama, exausto. Passava sempre do meio-dia quando ele voltava a se levantar. Mais ou menos às onze horas, despertava e ficava estendido na cama, sentindo que tinha acabado de sair do túmulo. Ficava deitado, imóvel, olhando em frente, os olhos seguindo um raio de sol, um átomo de poeira, uma sombra. Mas, por trás daquele rosto imóvel, um autêntico exército de pensamentos marchava e contramarchava, por mais que ele tentasse contê-lo e discipliná-lo. Nessas ocasiões, ele-, era vulnerável, não tinha defesa. E nem, secretamente, desejava tê-la.

Seu quarto era grande, alto e silencioso, embora, por trás das portas maciças, houvesse sempre uma multidão impaciente, esperando conseguir audiência. O teto de gesso branco, que ele tantas vezes fitava cegamente, era simples e severo. As paredes, de lambris, brilhavam ao sol, que penetrava pelas janelas altas, cujas vidraças eram emolduradas em pequenos caixilhos de metal. Sua cama, com cortinados escarlate e dossel de veludo vermelho, franjado de dourado, subindo quase até o teto, era coberta de uma colcha de seda vermelha, bordada com as armas da família e uma imensa cruz dourada. À sua direita ficava a grande lareira esculpida, onde sempre, mesmo no verão, o fogo crepitava, pois Richelieu era sujeito a calafrios e resfriados. A parede acima da lareira era também esculpida; à direita, havia um cadeirão dourado, forrado de veludo escarlate, no qual ele costumava sentar-se nas suas meditações noturnas. Do outro lado da lareira, perto da parede onde estavam as janelas, havia uma cômoda de madeira preta, toda trabalhada, sobre a qual se viam três vasilhas de ouro. Diante de uma das janelas estendia-se uma mesa comprida, também de madeira preta, coberta de objetos de arte que ele colecionava. Deitado na cama, podia ver-lhes os tons vermelhos, azuis, verdes e amarelos.

Deitado, a tremer, na cama, o corpo frágil mal se destacando das cobertas de seda vermelha, ele podia ouvir, abafados, os murmúrios e os passos das multidões, embaixo. Esses sons apenas enfatizavam o silêncio do seu quarto. Olhava à sua frente e não via senão a própria vida, tudo o que tinha feito e todas as coisas que precisava fazer. Não sabia o que mais o fatigava; se o passado ou se o futuro. O cansaço que sentia era como que uma pedra pesada sobre o seu corpo, esmagando-o.

Sentia os olhos arderem, doerem de não dormir. Cerrava as pálpebras: a luz que passava através das janelas formava manchas vermelhas diante dos seus olhos fechados. Embora não cochilasse, fragmentos vagos e torturados pairavam-lhe diante dos olhos, como os que a gente percebe quando mergulha no sono — uma mão, um olho, uma sombra pálida, um rosto desconhecido, lábios exangues, abertos num grito silencioso.

De repente, sem qualquer aviso, sem qualquer premonição, o rosto de Ana da Áustria, Rainha da França, ergueu-se diante dele, não vagamente, mas em toda a força da sua beleza jovem' e do seu encanto. Um calor intolerável percorreu-lhe o corpo, e ele estremeceu violentamente, como se atacado de epilepsia.

— A vil espanhola! — murmurou, involuntariamente.

Mas o calor do seu corpo aumentou, transformando-se numa febre devastadora. Viu os grandes olhos verdes, sob as sobrancelhas e as pestanas douradas, o rosa e o pérola das faces macias e jovens, a suave cabeleira castanha erguendo-se sobre a testa nevada, a umidade daquela boca polpuda e vermelha, com o lábio inferior dos Habsburgo, saliente e sensual. Viu a inclinação dos famosos e níveos ombros, e a curva dos belos braços, como se fossem de mármore que houvesse criado vida.

Contorceu-se na cama, tomado de agonia. Sentia dentro dele um doloroso vazio e um terrível desejo. Todas as mulheres que conhecera anteriormente se haviam diluído em sombras anônimas; o seu vinho, esvaziado; os vasos dos seus corpos, quebrados e esquecidos. Mas aquela mulher, que ele nunca conhecera, que a s.ua mão jamais acariciara, era como que uma doença na sua carne. Aqueles olhos de esmeralda só o tinham fitado com medo, ódio e aversão. Mesmo quando os seus dedos tinham tocado os dela, ele sentira apenas repulsa e vira-a desviar o olhar como se temesse ser corrompida. No exato momento em que os seus lábios lhe iam tocar a mão, ela recolhera-a com um arrepio quase imperceptível. A rainha ocultara o seu ódio debaixo de uma aparência calma e indiferente, mas a aversão luzira-lhe nos olhos, tremera como o brilho de uma espada nos seus lábios entreabertos. Embora fosse jovem, tinha a altanaria, o orgulho imperioso dos Habsburgo. Mas não fora capaz de esconder o que sentia, ao ver o Cardeal.

— Eu podia ser seu amigo — murmurara-lhe certa vez.

Mas ela olhara-o com uma terrível frieza e um ódio inamovível.

Ele não acrescentara:

— Ou o seu maior inimigo.

Tornara-se inimigo mortal dela. Não havia nada demasiado mesquinho, demasiado baixo, que ele não fizesse para causar infelicidade àquela princesa estrangeira. Do fato de atormentá-la, ele derivava alívio para a sua dor. Conspurcara-a aos olhos do marido dela, homem frio, caprichoso e violento. Envenenara o espírito da mãe dele — Maria de Médicis, mulher estúpida e repulsiva — contra a nora. Intrigara contra ele, em coisas importantes e pequenas. Transformara a vida dela — já bastante triste, naquela cidade de estranhos e inimigos — num inferno. Quando não encontrava nada para dizer dela, inventava. Era um mistério, mesmo para os seus familiares, como um homem daqueles, estadista e soldado, político e príncipe da Igreja, podia reunir todas as forças da sua natureza, do seu gênio, da sua inteligência e da sua sutileza, para irritar, frustrar, amargurar e torturar uma jovem mulher indefesa, pouco mais do que uma menina. Era como se o próprio Lúcifer tivesse tido a ideia de atormentar uma frágil e pobre borboleta, ou deixasse de lado as seduções do mundo para despetalar uma rosa.

Pôs espiões atrás dela, para lhe informar de tudo o que ela dizia, para vigiar-lhe todos os movimentos. Espalhou, por toda Paris, boatos sobre os deboches da rainha, que só existiam na sua imaginação. Enquanto isso, fraca, trêmula e sem defesas, ela via-o tecer uma teia negra à sua volta. Lutava, pagava espiões também, mas eles não passavam de pobres criaturas, comparados com os diabólicos espiões do Cardeal. Ela sentia as tramas das mentiras dele envolverem-na, e nada podia fazer. Não tinha amigos. Aprendera a mais amarga das lições: que todos se voltam contra os indefesos, contra os perseguidos, contra os inocentes. Não era de admirar que bebesse fel e comesse pão envenenado.

Chegou, então, a grande oportunidade de Richelieu.

Conseguira uma paz precária com a Inglaterra. Carlos I enviara, como seu embaixador à Erança, o belo e ilustre George Villiers, Duque de Buckingham, que logo se tornara um favorito da corte francesa, pois era alegre e sutil, sincero e brilhante, espirituoso e encantador. Desde o início, não escondeu a sua compaixão pela bela e jovem rainha, isolada e miserável no meio dos seus implacáveis inimigos. Da piedade, nascera o amor. Ele sentira-se ainda mais inclinado a fixar a sua atenção nela, quando reparara na terrível inimizade de Kichelíeu. A princípio, achara divertido e dissera, para si mesmo:

— Os esbirros dessa negra e monstruosa hierarquia não acham nenhuma presa demasiado indefesa, demasiado obscura, jovem ou suave para cravar as garras demoníacas.

Mas depois percebera que havia um elemento pessoal em tudo aquilo e descobrira o desejo e a paixão do Cardeal.

George Villiers achava todos os homens divertidos, mas não havia nisso rancor, pois era um homem jovem e apaixonado pela vida. A obsessão madura do Cardeal pela rainha lhe era particularmente divertida, embora acabasse impressionado com o seu poder e a sua violência satânica. Era algo grotesco, como a obsessão de um gigante por uma fada delicada. Posteriormente, o jovem duque começara a franzir a testa, preocupado.

Antes de mais nada, ele era inglês. A paz entre a França e a Inglaterra, conseguida graças à sutileza de Richelieu, que não queria aliados para os protestantes alemães, era tênue e precária. Um gesto mais brusco poderia deitá-la a perder. Buckingham não queria precipitar a tempestade. Por isso, quando Richelieu começara a espalhar por Paris boatos de um suposto e sórdido caso entre a rainha e o jovem duque, Buckingham ficara muito preocupado. Regressara a Londres com uma precipitação que nada tinha a ver com a sua bravura pessoal, mas que bem refletia a sua preocupação de que a paz entre os dois países fosse destruída. A tempestade era inevitável, mas a cautela inglesa, como sempre, aconselhava a adiá-la até onde fosse possível. Essa cautela baseava-se na máxima inglesa segundo a qual todos os homens, com o tempo, acabam morrendo. Uma guerra adiada poderia acabar sendo uma guerra indefinidamente adiada.

Mas a ausência de Buckingham nada fez para acabar com os boatos. A rainha foi acusada de se corresponder com o amante e de ter com ele rendez-vous secretos em solo francês.

Agora, uma coisa incrível estava acontecendo, no espírito e na alma daquele homem estranho e terrível, Armand-Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu. O ódio por Buckingham despertara a sua animosidade latente por tudo o que era inglês. Sua prudência ameaçava ir por água abaixo. Não há nada como uma guerra para unir um povo, dizia ele, com frequência cada vez maior. Apesar de bem versado em História, recusava-se a recordar que as guerras destroem tanto o vencedor quanto o vencido. A loucura tomara conta da sua mente.

Pensava em todas essas coisas, ali, deitado na sua cama, naquela manhã de verão. Deixava que a maré destruidora dos seus pensamentos o arrebatasse. Passava em revista tudo, e tudo coloria, com a sua febre, com a sua paixão, com a sua frustração e o seu desespero.

À medida que pensava, a sua aversão por todos os homens crescia dentro dele como uma bile negra e maligna, a aversão por si próprio. Na sua desonraj sentia a desonra de todos os outros homens; no nojo que tinha de si mesmo, havia nojo de todo o mundo. Sentia dentro de si toda a malevolência, toda a perversidade, toda a estupidez, toda a vergonha, toda a degradação, toda a crueldade, toda a bestialidade e a mesquinharia dos seus semelhantes. Não existe um só animal — pensou, com a brutal lucidez com que se olhava a si próprio — que não se sinta envergonhado de ter parentesco conosco.

Recordou a sua juventude, a sua sinceridade, a sua simplicidade de soldado, a firmeza do seu olhar e a sua fé indomável. Mal podia acreditar. Parecia-lhe estar vendo um estranho, e isso divertia-o. Mas, mesmo nesses dias, ele fora instintivamente insincero, ou nunca teria abandonado a carreira militar pela batina. Lembrava-se de uma conversa que tinha tido com um jesuíta, amigo do seu pai. O jesuíta sustentara que o único objetivo da Igreja era espalhar o cristianismo e que todos os seus métodos deviam servir a esse fim; que a Igreja deveria opor-se a todos aqueles que pensavam primeiro nas coisas temporais, fossem eles sacerdotes, soldados ou reis. O jesuíta, homem singularmente simples e nobre para quem pertencia a uma ordem tão sinistra, achara que a Igreja devia servir ao bem-estar dos homens e procurar atraí-los para o seu aprisco com bondade, misericórdia e santidade, desprezando os métodos da força e opondo-se sempre aos tiranos e aos opressores.

Mas Richelieu, às vésperas de renunciar à carreira militar, dissera:

— Para sobreviver e ficar cada vez mais forte, a Igreja deverá sempre servir aos poderosos e apoiá-los. Desposar a causa dos que sofrem e dos oprimidos é o primeiro passo para o esquecimento, para a fome, para a morte e a impotência. Nenhuma pessoa sensata, nenhuma hierarquia que tenha alguma ambição pode se dar ao luxo de ser sentimental ou humanitária.

Desde o princípio, ele vira a Igreja, não como servidora de Deus e protetora dos indefesos, mas como uma organização mundial, desejosa de poder temporal e servidora de príncipes poderosos. Via-a, também, como sua criada, e da França. Recordando o doce e solitário jesuíta, sorriu com desdém. Fora um só a gritar no deserto, desprezado pelos colegas, irmãos de sangue de Armand-Jean du Plessis, príncipe da Igreja de Roma.

Servia-o bem aquela Igreja que herdara todos os tabus, as superstições e os paganismos de séculos e séculos, e cujo cristianismo era a neblina atrás da qual se tramavam complôs contra o esclarecimento e a liberdade dos homens, contra a alma humana. Ele usava-a com sucesso e enorme sabedoria.

Mas sentia-se nauseado. Herdara, de algum obscuro ancestral, o dom fatal de não ser capaz de se iludir. A Igreja enojava-o, fazia-o sentir nojo da própria alma.

Por que falsidade, hipocrisia, astúcia, engenho, crueldade e indiferença ele conseguira elevar-se literalmente à posição de Rei da França e dono da Europa? Graças a quanta degradação e falta de vergonha ele se promovera! Pensou na Rainha-Mãe, Maria de Mé- dicis, que para ele era um símbolo da corrupção da sua própria alma. Aquela mulher grande e grosseira, cujo contato fora uma poluição, que jazera sobre o seu peito em repulsivas horas noturnas! Sentia a sua carne corrompida, prostituída. Mas, por mais estranho que pudesse parecer, era a recordação de si mesmo, sentado numa almofada aos pés dela, olhando-a com langor amoroso, enquanto tocava o alaúde, instrumento que aprendera para lhe agradar, o que mais lhe repugnava. Esse ato resumia toda a sua degradação. Tocar alaúde fora algo mais vergonhoso do que poluir o seu corpo, na sua implacável busca do poder.

Tinha apenas quarenta e um anos, mas já se sentia meio morto, maculado e desonrado. Conseguira o poder que ambicionara. Ali, deitado na cama, sentia a náusea do espírito passar para o seu corpo.

Nada o detinha. Maquinava como uma serpente na selva. Sofria de insônia. A fonte da luxúria e da ambição nunca parecia secar nele. Não ousava parar, com medo de morrer. Traía a torto e a direito, para perpetuar a vida.

Encorajava os nobres protestantes em nome da unidade da França e, secretamente, para conseguir ainda mais poder. Mas se divertia, também, com esse encorajamento.

Enquanto pensava, deitado, ouviu as portas se abrirem de mansinho. Ergueu as pálpebras pesadas, e os seus olhos de tigre fixaram-se no jovem padre que entrava.

— Ah, Louis — murmurou ele.

Soergueu-se nas almofadas e sorriu. Gostava de Louis, pelo divertimento que ele sempre lhe proporcionava. Ergueu a mão fina e branca, numa lânguida bênção. Louis inclinou-se, silencioso. O Cardeal ficou a olhar para o seu jovem secretário, vendo-o avançar, com passo majestoso, para o cadeirão dourado, junto à cabeceira da cama, é sentar-se com a habitual elegância de maneiras.

O Cardeal estudou-o atentamente. Percebeu que Louis de Richepin estava mais pálido do que de costume, seu rosto mais rígido, mais marmóreo, e que olheiras roxas lhe sombreavam os grandes olhos azuis. Mas o Cardeal não tinha por norma ir diretamente ao assunto, ao tratar com as pessoas, de modo que resolveu aguardar. Não demoraria a saber, por meios sutis, a causa da evidente perturbação do sacerdote.

Seu modo de tratar com Louis era ao mesmo tempo amistoso e irônico, por vezes levemente brincalhão.

— A ralé, lá fora, está firme como sempre, não? — perguntou.

— Há muita gente esperando para falar com Vossa Eminência — retrucou Louis, secamente.

— Ah, sim — murmurou o Cardeal, sorrindo. — Por favor, Louis, traga-me esses papéis que estão em cima da mesa.

Louis levantou-se e atravessou o carpete e o soalho encerado como se fosse um fantasma aristocrático. Trouxe os papéis e colocou-os sobre a colcha escarlate. Depois, voltou a sentar-se, num silêncio pétreo.

Em voz lânguida, mas firme, o Cardeal começou a ditar para o seu secretário. Usava quase que exclusivamente o latim, pois tinha uma extraordinária facilidade para redigir nessa língua. Louis tomava rapidamente o ditado. As manchas do sol aumentavam, no teto e nas paredes do quarto. O zumbido por trás das portas crescia. Enquanto ditava, os olhos do Cardeal parmaneciam fixos no rosto de Louis, brilhantes e vividos. Seu coração batia de prazer antecipado, debaixo do camisolão de seda branca. De vez em quando, estremecia involuntariamente, pois sempre sentia frio, mesmo na cama quente.

Houve uma pausa inesperada. Louis ficou à espera, a cabeça inclinada, os lábios severos e frios.

— Sim — murmurou o Cardeal, distraído. — Louis, por favor, peça a seu irmão, Monsieur de Richepin du Vaubon, que venha me visitar amanhã de manhã, a esta hora. Ouvi dizer que ele voltou de uma aventura.

Sorriu e murmurou:

— Coisas de jovem.

Louis estremeceu violentamente. Levantou a cabeça, e o seu rosto, belo e pálido, enrubesceu, como se acometido de febre. O medo transpareceu nos seus olhos.

— Arsène — disse, apertando os joelhos com as mãos.

— Sim, Arsène. — O sorriso do Cardeal era amistoso. — Gosto da conversa dele. É espirituoso, tem charme e é muito inteligente. Além disso, preciso consultá-lo sobre um certo assunto. — Fez uma pausa e acrescentou, negligentemente: — Ele é amigo íntimo de Paul de Vitry, não?

— Realmente — afirmou Louis. — Mas não compactua com ele! Posso assegurar a Vossa Eminência que. . .

O Cardeal levantou as pesadas sobrancelhas.

— Eu disse algo a esse respeito? Mas talvez ele possa me prestar algumas informações úteis.

— Na nossa família não há traidores — retrucou Louis, levado pelo medo e pela agitação.

— E eu disse isso? Mas parece que Arsène nunca se reconciliou com a fé dos seus antepassados, não é?

O Cardeal estava se divertindo com o pavor do seu secretário.

— Não acuso Arsène de nada, a não ser de frivolidade. Sempre gostei dele. É minha intenção oferecer-lhe o comando dos meus guardas, embora pelo que saiba ele continue sendo huguenote.

— É uma grande honra — disse Louis, numa voz abafada. Mas, como Vossa Eminência bem disse, meu irmão é frívolo e imprudente.

Lembrou-se das palavras do Cardeal, e o ódio e a inveja o invadiram, agora que o medo diminuíra.

— Disciplina não é com ele. Parece uma criança, embora já não seja assim tão jovem. Detesta responsabilidade. Embora meu pai seja homem de saúde delicada, Arsène não quer saber de visitar as nossas propriedades e supervisioná-las. É descuidado, despreocupado e imaturo. Devo confessar que o oferecimento de Vossa Eminência não vai impressioná-lo. Será pura perda de tempo.

— Não obstante, pretendo oferecer-lhe o cargo.

Sabendo do ódio que Louis sentia pelo irmão, o Cardeal estava encantado de vê-lo mostrar ciúmes.

— Acho que você subestima muito Arsène, Louis — disse ele. — Só por ser mais frívolo do que você e gostar de aventuras amorosas e de duelos a espada, não quer dizer que ele não tenha valor. Acho-o divertido. É intrépido e destemido e sabe lidar com os homens. Não há quem não goste dele. Daria um excelente comandante. Monsieur de Cavois está ficando demasiado rígido. Já não é jovem, e estou pensando em pô-lo na reforma, pois está sempre contra os mosqueteiros. Falta-lhe o instinto de aventura, só pensa na disciplina. Arsène seria aclamado, com entusiasmo, pelos homens.

Louis ficou calado. Estava assustado. Sua imaginação voava. Era muito possível que Arsène aceitasse, para ter acesso aos segredos do Cardeal e mais facilmente traí-lo. O dever lutava contra o amor que Louis tinha pelo pai. Dizer a verdade ao Cardeal seria trair Arsène e, através dele, seu pai. O rubor aumentou nas faces de Louis. O suor brotou na testa de mármore. Suas mãos começaram a tremer.

Numa voz sumida, disse:

— Peço a Vòssa Eminência que reconsidere. Conheço muito bem o meu irmão.

O Cardeal deu de ombros.

— Arsène ainda não aceitou — retrucou, com indiferença. — Que tal continuarmos com a nossa correspondência?

Apesar de estar quase desmaiando de agitação e terror, Louis conseguiu controlar-se e dar atenção aos seus deveres.

Não houve qualquer hesitação na voz calma do Cardeal. Enquanto falava, os seus dedos cofiavam o pequeno cavanhaque. Seus olhos melancólicos, agora, meditativos e opacos, encaravam Louis, sem o ver. Tinha uma voz que denotava poder; ao mesmo tempo era cortês mas latentemente violenta, fria e polida. Sorriu uma ou duas vezes para si mesmo, como quem reflete.

Ditou uma carta para o Rei, e o seu sorriso aumentou.

— “Foi com enorme tristeza, Sire, que este seu criado se viu incapacitado de estar presente às mesas de jogo durante a semana que passou. Devo pedir a sua indulgência para com a doença que afligiu o meu corpo, com fortes dores reumáticas. Só mesmo um sofrimento muito grande poderia roubar-me o prazer da companhia de Vossa Majestade. Mas, durante esse período, a minha mente não permaneceu inativa, e, embora aparentemente eu me tenha descurado de responder à sua carta, recebida há dois dias, isso se deveu ao fato de eu querer dar mais atenção ao assunto em pauta e pôr em ordem os meus pensamentos.”

Fez uma pausa. Louis, que escrevia rapidamente, ficou à espera, ansioso, a pena entre os dedos.

“Devo pedir a Vossa Majestade que reflita nas enormes dificuldades inerentes a qualquer ação contra os grão-senhores protestantes e La Rochelle, a esta altura dos acontecimentos. A França continua dividida, enfraquecida pela guerra, tumultuada e em desordem. É preciso agir com muito cuidado, conforme Vossa Majestade, Sire, na sua enorme sabedoria, decerto sabe. Recordo, com humildade, todos os seus preciosos conselhos a respeito.”

Fez nova pausa. Soergueu-se nos travesseiros, sorrindo largamente, os olhos brilhando de satisfação perversa.

“Não falta quem, como Vossa Majestade bem sabe, gostasse de ver a França açoitada por dissensões religiosas. Não preciso dar os nomes, por medo a provocar uma situação muito delicada no próprio âmbito familiar de Vossa Majestade. Conforme sabe, Sire, sempre me esforcei por reconciliar Vossa Majestade com os que lhe são mais chegados, acreditando que a felicidade doméstica não deve ser negada aos reis. Em pagamento dos meus esforços, recebi apenas desdém, calúnia e ódio, conforme Vossa Majestade pode atestar. Não obstante, como devotado servo de Vossa Majestade, nunca desistirei de levar paz ao seu coração e felicidade à sua família.”

O cavanhaque do Cardeal fora transformado numa espécie de trança fina e macia, que ele acariciava distraidamente. Seus olhos de tigre brilhavam. Louis não olhou para ele, mas havia linhas azuis em volta dos seus lábios, e a sua mão tremia visivelmente.

“Contudo, implorando antecipadamente a indulgência de Vossa Majestade, e levado da minha devoção pela sua pessoa, devo ser franco, ainda que o conteúdo desta carta lhe possa provocar indignação.

“Embora o irmão católico de Vossa Majestade, Felipe de Espanha, esteja Jigado a Vossa Majestade pelos laços mais íntimos, através da irmã, Sua Majestade, a sua e a minha Rainha, a consciência me obriga a falar francamente. As investigações provaram, sem qualquer sombra de dúvidas, embora com grande angústia para mim, que a Espanha tem negociado secretamente com a Inglaterra no sentido de uma aliança contra a França. No seu ódio contra a França, Felipe foi levado a se aliar com a nossa maior e mais herética inimiga. Ao me recusar a ser arrastado a um conflito prematuro a esta altura dos acontecimentos, creio humildemente que possamos devolver a força e a tranquilidade à França, tornando-a forte e invulnerável, mais capacitada a suportar a luta lá fora e a confusão aqui dentro. Que os nossos inimigos se precavenham!”

A pena escorregou dos dedos de Louis. Ergueu a cabeça e olhou para o Cardeal com raiva contida e desapontamento. Apercebendo-se disso, Richelieu riu com os seus botões, arqueando as sobrancelhas.

— Bem, Louis — disse ele, indulgente. — Fale, ou você acaba estourando.

Louis levantou-se, agitado, segurando os papéis em que estivera escrevendo.

— Vossa Eminência — começou, numa voz estrangulada — é, como sempre, muito bom, muito indulgente, em me permitir falar. Nunca me silenciou, alegando que por vezes eu tenho vislumbres de sensatez. Peço-lhe antecipadamente perdão, mas acho que devo falar o que tenho para dizer.

O rubor tingia o mármore branco do seu rosto. Seus olhos azuis brilhavam de raiva e de ódio. O Cardeal inclinou a cabeça e ficou à espera, sorrindo.

— Sua Majestade — continuou Louis, apertando as palmas das mãos uma contra a outra — frequentemente nos incentivou a destruir o mais depressa possível La Rochelle, esse bastião de hereges. Enquanto esse bastião existir, um Estado dentro de outro Estado, estaremos à mercê da Espanha e da Inglaterra, do Império Germânico. É o calcanhar-de-aquiles da nossa política doméstica e externa, a brecha no muro, através da qual os nossos inimigos podem entrar. Destrua La Rochelle, Monsenhor, e os ingleses ficarão sem porto por onde penetrar no coração da França. Como as coisas estão, os ingleses podem enviar suprimentos para os huguenotes de La Rochelle, encorajá-los na sua traição, fortificá-los com navios; além dos descontentes alemães, espanhóis e italianos, que amam ainda menos a Igreja do que odeiam a França.

Foi obrigado a parar, suas feições, grandes e pálidas, contorcidas pela paixão. O Cardeal estendeu a cabeça para ele, a fim de melhor observar essas manifestações, que só podiam onginar-se num ódio pessoal e não numa indignação abstrata.

Louis continuou, com voz trêmula:

— Enquanto o Edito de Nantes continuar a vigir, e La Rochelle permanecer sem ser molestada, estaremos enfraquecidos, sem defesa, abertos ao ataque dos nossos odiados inimigos. Suplico a Vossa Eminência que medite nisso.

— Já meditei — murmurou o Cardeal.

Passou a mão pelo rosto, num dos seus súbitos e frequentes ataques de exaustão.

— Você se deixa levar pela paixão, Louis. Seria capaz de se lançar ao combate contra La Rochelle sem estar devidamente preparado. Revogaria o Edito de Nantes sem meditar no perigo que isso representaria para a dinastia, na França. Por mais bravura que haja no coração, mãos nuas não podem lutar contra espadas ou contra balas de canhão. Cada momento de paz ganho representa uma hora de força e preparação para a França. Mas não pense, nem por um minuto, que eu não tenho os meus planos! — Fixou os olhos em Louis. — Provavelmente não passa de uma calúnia, mas ouvi dizer que seu irmão Arsène tem muitos amigos em La Rochelle, e que tem ido visitá-los.

Louis não respondeu. Empalideceu e sentou-se abruptamente. O Cardeal, sorrindo, indicou, por um aceno de cabeça, que deviam continuar com a correspondência. Os dedos de Louis pareciam não ter forças para segurar a pena. De repente, gritou, numa voz estranha, vibrando de veemência:

— Vossa Eminência precisa destruir a serpente que se aninha no coração da França, os huguenotes, os conspiradores, os hereges! Como deixar que esse veneno nos penetre na alma?

O Cardeal continuou a ditar, como se Louis não tivesse dito nada:

— “Vossa Majestade, na sua carta, cita, com impaciência, o falecido e chorado de Luynes, que concebeu a política, míope e prematura, de reestabelecer a nossa Santa Fé em Béarn, destruindo os calvinistas lá estabelecidos. Lamento ter de recordar-lhe os acontecimentos de Montauban, onde de Luynes foi tão ignominiosamente derrotado, a ponto de morrer de desgosto. A militância e a fidelidade dos nossos filhos são dignas de admiração, mas não se pode deixar de deplorá-las, à luz fria dos fatos. Ainda não estamos prontos para combater os nossos inimigos internos e externos.

“Contudo — prosseguiu, numa voz mais firme — prometo-lhe, como sempre, devotar toda a minha energia e toda a autoridade que quiser colocar nas minhas mãos à destruição dos huguenotes, submetendo os grão-senhores, devolvendo aos seus deveres todos os seus súditos e erguendo o nome de Vossa Majestade entre as nações estrangeiras. Peço-lhe apenas fé na minha prudência e na minha dedicação.”

Fez uma pausa e disse:

— Louis, quero lhe pedir que leve essa carta, pessoalmente, a Sua Majestade. Não confio em mais ninguém.

Louis mordeu o lábio. O peito arfava-lhe debaixo da batina. Inclinou a cabeça. O Cardeal recostou-se nas almofadas e olhou para o secretário com um prazer malévolo.

— Fale, Louis — disse, num tom amigo,

Louis respirou fundo, apertou as mãos e disse:

— Vossa Eminência fala em unidade nacional. A unidade da cristandade não será mais importante? Parece-me que a unidade da cristandade resultará, automaticamente, na unidade nacional. — E continuou: — Tolerar a existência de um Estado dentro de outro Estado só pode acarretar a ruína.

O Cardeal sorriu com ironia, mas retrucou, num tom de voz suave:

— Se quisermos subjugar os huguenotes, fazer com que a França volte a ser católica, teremos de dar o exemplo e conseguir isso através da virtude, da oração e da humildade. Por acaso você duvida da eficácia da oração, Louis? Então, reze!

Louis empalideceu ainda mais. Olhou para o Cardeal com expressão séria e indignada.

— Primeiro, precisamos provar a Deus que somos sinceros na nossa determinação de que Ele não seja objeto das blasfêmias dos hereges.

O Cardeal ficou um momento calado, mas logo disse, em tom despreocupado:

— Ah, vocês, fanáticos! Tenho a impressão, Louis, de que você aprovaria a volta da roda, da forca e do machado contra os huguenotes. Essencialmente, o fanático é uma pessoa que não é civilizada. E nós não nos orgulhamos de ser o povo mais civilizado do mundo, comparados com os grosseiros ingleses, os simplórios alemães, os debochados espanhóis?

— Não podemos pensar em civilização ao lidar com hereges! — exclamou Louis, o rosto novamente tomado por uma convulsão.

— O Santo Ofício devia estar ainda em plena força, para admiti-lo nos seus quadros — observou o Cardeal, abanando a cabeça.

Pensou, consigo mesmo e com satisfação: Como o irmão o atormenta e aflige!

Fixou em Louis o seu olhar comprido e melancólico.

— Meu caro Louis, não sou seu confessor, mas acho que, esta manhã, você não está normal. Espero que me considere seu amigo e me permita ajudá-lo, se estiver precisando de assistência.

Louis estremeceu visivelmente e levantou-se a meio da cadeira. Depois, ficou imóvel. A sua natureza era tão pouco complexa, tão simples, que não se apercebeu do sentido oculto por trás das palavras do Cardeal. Ainda não aprendera que Richelieu não gastava saliva e que cada palavra que ele dizia tinha um propósito, geralmente malévolo.

Levou a mão aos olhos por um momento e ficou calado.

Certo agora de que não se havia enganado, o Cardeal olhou para o jovem padre com crescente curiosidade.

— Mon cher — murmurou ele —, não há dúvida de que você está preocupado. Repito-lhe que sou seu amigo.

Louis começou a falar, numa voz baixa e contida:

— Nunca tive dificuldade de ler dentro de mim. Agora, acho impossível.

— Você quer dizer — corrigiu Richelieu, brandamente — que não ousa ler dentro de si.

No fundo, estava excitado. O que poderia ter perturbado aquela geleira? O Cardeal sabia que os movimentos das geleiras nunca são insignificantes, que contêm em si as potencialidades da morte e da destruição, que o seu movimento é irresistível e devastador. Sentou-se na cama e olhou para Louis com interesse.

— O que o senhor diz, pode ser verdade, Monsenhor — murmurou Louis.

Deixou cair a mão e olhou para o Cardeal com ar angustiado.

— Pode ser que eu não ouse olhar para dentro de mim.

Estacou, e sobre ele caiu uma avalanche de emoções, confusas, caóticas e desesperadas. A palidez do seu rosto tingiu-se de um rubor febril.

— Tudo começou esta manhã, com o livro que pedi emprestado a Vossa Eminência.

— Ah! — disse o Cardeal, cofiando o cavanhaque com lentidão sensual.

— Encontrei um trecho nesse livro que parecia ecoar alguns pensamentos que por vezes me assaltam. Já lhe falei, Monsenhor, sobre esses pensamentos. Durante algum tempo, pensei que os tinha conquistado, que os tinha expulso da minha mente como se fossem demônios. Mas, quando, esta manhã, li aquele livro, eles voltaram, quais exércitos conquistadores.

— É mesmo? — disse o Cardeal, cada vez mais satisfeito.

Seus olhos brilharam estranhamente, e ele apoiou-se no cotovelo a fim de melhor olhar para Louis.

O jovem apertou as mãos uma contra a outra, e os seus lábios pálidos deram a impressão de estar sublinhados por uma linha azulada.

— Desejei fugir — disse Louis, com majestade simples e desesperada. — Mas onde me refugiar, senão na morte? Senti vontade de morrer. Uma sensação de frio tomou conta de mim. Parecia que o meu espírito estava morrendo, que o meu coração estava expirando. Passado um momento, senti-me paralisado, dormente, sem dor ou sofrimento, como se tivesse deixado de ser um homem. E essa sensação continua — acrescentou, numa voz mais baixa. — Tenho a impressão de ter morrido.

O Cardeal murmurou algo. Depois, numa voz suave, disse:

— Mas esse não é o símbolo da morte do coração, meu pobre e jovem amigo. É a agonia de uma alma ferida, que perdeu temporariamente todo o interesse nos homens e toda a comunicação com Deus, devido a uma exaustão resultante de uma sensibilidade muito forte. Você é por demais intenso. Debaixo desse exterior frio, há um vulcão de emoções fortes, Louis! Aqueles que sofrem e se alegram demasiado são vulneráveis a todas as tormentas que se abatem sobre o universo. São como folhas ao vento. Mas não desanime. Os homens como você são amados por Deus, pois têm maior consciência dele. Podem tornar-se santos ou demônios com mais facilidade do que os outros.

Louis olhou para ele apaixonadamente, como se lhe bebesse as palavras.

— Como é possível Vossa Eminência compreender, se decerto nunca sentiu isso?

O Cardeal sorriu de maneira especial e desviou o olhar.

O desespero de Louis aumentou.

— Hoje — exclamou — senti que não desejo nem o amor dos homens, nem o de Deus! E nem sequer a morte!

O Cardeal ficou espantado. Nunca suspeitara de que Louis fosse capaz de tais emoções e sofrimentos. Julgara-o inspirado apenas pelo ódio. Por um momento, o seu olhar indecifrável tornou-se involuntariamente mais brando. Sentiu um misterioso pulsar do coração, como quando um homem descobre um irmão por trás das feições de um estranho. A piedade tomou conta dele. Um homem desses, pensou, teria vantagem em estar morto, pois lhe falta a inexorabilidade necessária. É por demais sincero e, paradoxalmente, por demais forte.

Começou a falar, com uma hesitação desacostumada, sem tirar os olhos do jovem secretário.

— Várias vezes pensei, Louis, que existia uma carência em você, tanto no espírito quanto no corpo. Falta-lhe alegria, embora você seja ainda jovem. Mas não é apenas a idade que traz consigo uma sensação de cansaço e vazio. Tenho visto homens velhos rirem de alegria diante de uma bela manhã, e jovens enforcarem-se sem razão aparente, apenas por sentirem um vazio no coração. E é isso o que o aflige: um coração vazio!

Louis escutava com uma intensidade que bem mostrava a justeza do diagnóstico do Cardeal. Seus lábios finos tremeram, um brilho desesperado fulgurou-lhe o olhar.

O Cardeal já não olhava mais para ele, e sim na direção das janelas, como se refletisse.

— Somos padres, Louis, dedicados a Deus. Mas também somos homens. Em benefício da saúde da nossa alma, não devemos nos privar da companhia das mulheres.

Louis pôs-se de pé, o rosto em chamas, os dentes cerrados. Tentou falar, mas não conseguiu. Com o canto dos olhos, o Cardeal observava-o, meio espantado, meio divertido.

Richelieu juntou delicadamente as pontas dos dedos e deixou que uma expressão de suave melancolia lhe inundasse o rosto.

— A companhia feminina acalma e refresca como uma chuva de abril. Purgado dos elementos sensuais que, por assim dizer, queimam o homem comum, um padre pode se deleitar espiritualmente no convívio com mulheres, principalmente se elas possuírem inteligência e sensibilidade. Quando surge a tentação, o padre tem uma fortaleza espiritual que lhe permite resistir em silêncio. E esse conflito interior só lhe dá mais força.

Volveu os olhos para Louis. O jovem parecia estar escutando as palavras de um arcanjo. Seus lábios tremiam.

Ha-ha!, pensou o Cardeal. Não me enganei!

— Reflita — continuou tranquilamente e com olhar firme. — Não se prive de alegrias puras e perfeitamente permissíveis. Não foi essa a intenção de Deus, a não ser para os que têm vocação para uma vida de clausura. Eu e você, Louis, vivemos num mundo de homens. E de mulheres.

Louis replicou, numa voz trêmula, que teria provocado compaixão num homem menos terrível:

— Vossa Eminência salvou-me! Deu-me esperança, afastou do meu coração o peso da culpa!

O Cardeal levou a mão à boca, para esconder um sorriso in- controlável. Mas o seu olhar permaneceu sério e compreensivo.

— Que culpa, Louis? Que imaginação a sua! Como vocês, os jovens, se torturam, quando uma conversa com uma pessoa experiente pode aliviá-los!

Louis deixou-se cair na cadeira, pois as suas pernas tremiam de tal maneira que não conseguiam sustentar-lhe o corpo. Inclinou-se para o Cardeal, e o seu rosto já não era de mármore, e sim de carne e osso.

— Quer dizer que eu tenho sido culpado de maus pensamentos, Monsenhor! Conspurquei a minha inocência com -a força da minha imaginação! Então, o que eu julguei ser mau era puro e natural. Meu Deus, estou-vendo que a minha mente é suja. . .

Estacou, incapaz de continuar.

O Cardeal ergueu a mão num gesto de afeto.

— O seu mal, Louis, é ser extremado. Nunca se esqueça de que, embora padre, você é também um homem. Não se prive de alegrias inocentes e de suaves companhias. Elas não o aviltarão.

Louis ficou calado, dando grandes suspiros. A alegria brilhou na sua testa alta e branca. Havia muito que o Cardeal não se divertia tanto.

Perto da lareira havia outra porta, menor do que a que dava para a antecâmara, onde aguardavam os que desejavam uma audiência com o Cardeal. Ouviu-se uma batida seca e peremptória.

— Ah! — disse Richelieu. — Aí temos o nosso querido Padre Joseph! Voltou esta manhã. Faça-o entrar, Louis.

Como num sonho, o jovem sacerdote ergueu-se e dirigiu-se para a porta. O Cardeal acompanhou-o com um olhar no qual luzia uma luz estranha.


Capítulo XV

Diziam os irreverentes de Paris que o Padre Joseph sempre era precedido por uma onda de mau cheiro.

Para os grandes potentados huguenotes, esse mau cheiro era mais do que físico, pois continha a mais perigosa das qualidades, o misticismo espiritual. Era fácil entender um homem como Sua Eminência, o Duque de Richelieu. Havia nele o elemento humano e, por mais colossais que fossem os seus crimes, por mais maquiavélicas e impiedosas que fossem as suas maquinações, havia nele uma qualidade humana, embora exacerbada e inflamada. Podia-se rir dele, às vezes achá-lo grotesco. Mas não se podia rir de François le Clerc du Tremblay, capuchinho místico e epilético, o famoso Padre Joseph.

Até mesmo a loucura do Cardeal era uma loucura humana, causada por uma tara de sangue, por um excesso de ambição e por uma sensibilidade exagerada. Podiam compreendê-la, desprezá-la, temê-la ou meditar nela. Mas a loucura do Padre Joseph transcendia a humanidade, tornava-se um desses horríveis mistérios que se escondem por trás da escura floresta da realidade. Tinha parentesco com demônios, com anjos negros, com monstros subterrâneos, com aparições sobrenaturais. Os devotos, embora o temessem, acreditavam que a loucura do capuchinho fosse proveniente de um êxtase divino. Mas os outros sentiam um verdadeiro terror diante da sua pessoa, como se ele não fosse de carne e osso, e sim uma estranha criatura, vinda de um lugar estranho, para além deste mundo. Todo mundo conhecia a força compulsória do Cardeal. Era a mesma força dos grandes conquistadores e opressores e, embora odiada, era compreensível. Mas no Padre Joseph havia uma força inexplicável, como se por detrás dele estivesse uma coorte invisível e temível, proveniente de lugares desconhecidos.

Não podia ser tocado por mão humana. Havia quem acreditasse que ele não fosse realmente uma pessoa, e sim um espectro, o alter ego do Cardeal Richelieu, o seu amigo mais chegado.

Era oito anos mais velho do que o Cardeal, tendo, portanto, quase cinquenta anos. Baixo, atarracado, semelhante a um gorila, com mãos longas e dedos dos pés igualmente compridos, parecidos com os de um primata, visíveis através das sandálias, inspirava medo ou repulsa à primeira vista. Sob o seu hábito de capuchinho, grosseiro e sujo, percebia-se o contorno dos seus membros fortes e retorcidos e de um tórax que lembrava o tronco de uma árvore.

Parecia que nunca na sua vida tomara banho, pois estava sempre rodeado por uma aura de cheiros fortes e repelentes, que davam mais a impressão de emanar da sua colossal vitalidade, do que da sua pessoa física.

Tudo isso bastava para repelir as pessoas, mas era o seu rosto, a sua cabeça, o que mais hipnotizava e o tornava mais temível. Tinha uma testa enorme, sempre enrugada como a testa de um macaco, escura, quase cor de vinho, como toda a pele do seu rosto exagerado. Seus olhos eram salientes, enormes, ardentes e terríveis, de um azul febril, brilhante de paixão e misticismo inumano. O nariz era grande, encavalitado, como o bico de uma águia ou de uma ave de rapina. A barba era comprida, vermelho-escura, maltratada e suja. Aqui e ali grisalha, cobria a parte inferior do seu desmedido rosto e caía sobre o seu peito largo de primata. Através desse emaranhado de pelos, via-se uma boca larga e retorcida, sagaz e expressiva.

Não obstante, ele não era um criminoso, como o Cardeal. Se fosse, teria inspirado menos medo. Não havia mácula alguma na sua vida particular, e até mesmo os seus inimigos concordavam em que ele não alimentava nenhuma ambição pessoal de poder. Se alimentasse, talvez o compreendessem, sentissem nele a fraqueza do homem. Era incapaz de tecer as intrigas sutis do Cardeal, não tinha a sua venalidade, nem a sua perversidade. E era essa falta de defeitos humanos que o tornava assustador.

Viera de Roma e chegara ao palácio do Cardeal havia apenas' alguns minutos. Fora diretamente falar com Richelieu, que confiava nele como em nenhum outro homem. Acaso iludia ele o Padre Joseph? Ninguém, nem mesmo o Cardeal, saberia dizer.

Era difícil para Richelieu, cuja maior fraqueza era o orgulho do sangue, ser amigo de gente de origens modestas, por mais que lhes respeitasse o intelecto ou lhes admirasse as conquistas (e era generoso na sua admiração). Mas o Padre Joseph agradava-lhe porque, apesar da sua aparência horrível, o capuchinho tinha sangue nobre. Era o filho mais velho de um certo Jean le Clerc, Lorde Chanceler do Duque d’Alençon e Premier Présidente des Requêtes du Palais. Seus ancestrais tinham sido administradores e advogados sumamente brilhantes, e sua mãe pertencia à alta aristocracia rural. Além disso, o Padre Joseph herdara do avô materno, Monsieur Claude de La Fayette, um dentre quatro baronatos e fora conhecido na Corte, quando jovem, como o Barão de Muffliers. Tanto o seu pai como a sua mãe haviam sido calvinistas.

Por conseguinte, nas suas relações com o Padre Joseph, o Cardeal não experimentava qualquer sensação de degradação. Era seu igual no sangue, e Richelieu acreditava no sangue como não acreditava em Deus. (Tinha um ódio intenso e inflexível pelos plebeus e dizia, frequentemente: “Onde o povo entra, sempre suja, não deliberadamente ou com má intenção, mas inocentemente, como um bicho, levado pelo instinto”. Acreditava que a poluição deliberada provinha de uma compreensão superior da enormidade dessa poluição e podia, portanto, ser perdoada. Mas a inocente poluição do povo não podia ser perdoada, pois advinha da sua própria natureza e, sendo intrínseca, não podia ser curada. Quando o Cardeal sentia essa verdade mais agudamente, ficava cheio de uma raiva insana e, da mesma forma que Nero, sentia desejos de incendiar Paris, como Roma fora incendiada, a fim de curá-la do seu mau cheiro. Às vezes, sentia vontade de incendiar o mundo inteiro.)

Quando o Padre Joseph entrou, o Cardeal endireitou-se na cama e estendeu as mãos trêmulas. Seus olhos brilhantes tornaram- se menos duros, e ele sorriu, com afeto e deleite.

— Meu caro amigo! — exclamou. — Meu querido e bom amigo!

Havia muito tempo que não via o capuchinho, mas tinham-se correspondido regularmente, O Padre Joseph sorriu também, o seu sorriso escuro e torto, mas que, não obstante, tinha algo de singularmente belo. Beijou a mão branca do Cardeal com sincera humildade e, depois, apertou-a entre as suas mãos morenas e calosas. Ficaram alguns minutos sem falar, mas os seus olhos diziam tudo, A palidez mortal do Cardeal transformou-se num rosado saudável. Seu rosto comprido e pontudo, sombrio e melancólico, adquiriu vivacidade. Suspirou profundamente. O Padre Joseph também estava muito emocionado. Seus olhos azuis, austeros mas apaixonados, tornaram-se suaves como céus de verão. Sua enorme barba ruiva tremeu.

Sentou-se no cadeirão dourado e escarlate, à cabeceira do Cardeal. Louis afastara-se, cheio de ciúmes, daqueles ciúmes crônicos que lhe afetavam toda a existência. Ficou de pé, junto da janela, mas na sombra, alto, vagamente sinistro na sua batina preta. Dentre as sombras, os seus olhos luziam com desdém altaneiro, enquanto no seu coração nascia um novo ódio que se ia juntar aos outros.

Vira o Padre Joseph apenas uma vez, e a distância, antes que ele, Louis, tivesse sido ordenado. Era então muito jovem e seu pai o levara, com Arsène, a visitar o seu velho amigo calvinista, o governador da cidade huguenote de Saumur, Monsieur du Plessis- Mornay. O governador era, além de amigo, parente afastado, e Ar- mand gostava dele sinceramente, o que nele era raro. A visita fora mais ou menos secreta, e Armand, recém-convertido à Santa Madre Igreja, rodeara-se de cuidados.

Nesse tempo, os católicos, uma minoria intolerante, tinham liberdade de culto em Saumur, e ninguém se metia com eles. Du- Plessis-Mornay era um verdadeiro liberal, cheio de tolerância e bom humor. Seus amigos tinham protestado contra a presença dos católicos, alegando serem eles o núcleo de uma doença que acabaria se alastrando pela cidade como uma peste. Mas du Plessis- Mornay era um homem de boa vontade e não podia acreditar na malevolência dos outros. Defendia os católicos contra opressões reais e imaginárias e sempre dava ouvidos às suas queixas intermináveis contra os seus concidadãos huguenotes. Avesso a qualquçf espécie de opressão, era muito sensível à mais leve das suas manifestações, tornando-se severo com os seus amigos huguenotes e recusando-se a escutar os seus indignados e justificados avisos contra os católicos.

— Esses católicos aproveitam-se da confiança e da piedade dos seus inimigos — dissera-lhe certa vez um amigo. — Só são mansos e humildes enquanto impotentes. Invocam a tolerância e a indignação dos homens de bem em seu benefício, ao mesmo tempo em que planejam destruir esses mesmos homens.

Mas du Plessis-Mornay recusara-se a acreditar nisso, incapaz que era de agir com má intenção.

Não confiava, porém, nas ordens religiosas e, durante muito tempo, embora permitisse livre culto aos católicos, não deixara entrar frades na cidade. Sempre determinado, o Padre Joseph resolvera pôr um ponto final nisso. Conseguira cair nas boas graças da abadessa de Fontevrault, Madame de Bourbon, uma velha tia do rei, e pedira-lhe que intercedesse junto de Sua Majestade para que os capuchinhos pudessem instalar-se em Saumur. Apesar de homem intrépido e de caráter, du Plessis-Mornay não ousara ofender a tia do rei, e o primeiro convento dos capuchinhos fora fundado na cidade.

Entusiasmado com o seu sucesso, Padre Joseph conclamara um encontro aberto dos católicos, numa das ruas da muralhada Saumur. Armand, que viajava na sua carruagem, acompanhado dos filhos, fora obrigado a parar devido à multidão. Ele e os filhos tinham sido forçados a ouvir a triunfante eloquência de Padre Joseph, de pé numa pequena elevação, gesticulando, na sua batina preta, tendo ao fundo o céu azul e quente, inspirando a assistência com o seu fervor e a sua descabelada oratória. Arsène fizera o pai rir com comentários jocosos e imitações exageradas, mas Louis, muito moço ainda, decidira ali mesmo dedicar a sua vida a Deus.

Fora essa a primeira e a última vez, até aquele dia, que Louis vira a Eminência Cinza, o amigo íntimo do Cardeal. Mas nunca esquecera aquela 'figura tremenda e veemente, nem o som da sua voz arrebatadora. Padre Joseph tornara-se, aos seus olhos, uma figura semidivina, um sonho ilimitado. Mas, naquele momento, o sonho foi esquecido, e ele viu no Padre Joseph, embora permanecesse sensível à sua personalidade e ao seu poder, o homem que era o único amigo verdadeiro do Cardeal. E o seu egocentrismo era tão grande que ele não podia suportar o espetáculo de ver alguém a quem servia, ou de quem gostava, dar tanta atenção a outra pessoa, a ponto de se esquecer da sua presença. Estava acostumado a ser a figura central, nos seus poucos relacionamentos, e o fato de ser rebaixado à categoria de mero secretário do Cardeal envenenava-lhe o sangue. Seu belo e pálido rosto tornou-se esverdeado. Pôs-se literalmente a tremer. Ali estava alguém diante de quem ele não era ninguém, absolutamente ninguém. Viu a expressão do Cardeal, profunda, afetuosa e terna, e lembrou-se de que nunca olhara para si daquela maneira. A sua velha ânsia de amor e completa dedicação (aquela doença crônica da sua alma solitária) tomaram mais uma vez conta dele, tornando-o fisicamente doente. O olhar que os dois trocaram carregava em si a lembrança de anos e anos de confiança, afeição e luta, mais uma infinidade de coisas que ele não conhecia. Tinha mais ciúmes das implicações desses olhares do que do próprio Padre Joseph.

Tinham-se esquecido dele. Esse era o supremo insulto. Não passava de um lacaio, sem voz e sem ouvidos, naquele quarto imponente, com o seu teto branco e dourado, os seus cortinados vermelhos e o seu macio tapete verde. Agarrou uma prega da cortina da janela e torceu-a com força, como se fosse um pedaço de carne.

O Cardeal e o capuchinho tinham mergulhado numa conversa ávida e loquaz. As palavras precipitavam-se. De vez em quando, eles riam e, logo, parando de falar, trocavam aqueles olhares compridos que tanto enfureciam e torturavam Louis. O Cardeal voltara a ser jovem, apaixonado, alegre e cheio de vida. Seu corpo vibrava de vida. Seus olhos, grandes e reservados, brilhavam sem reticências. Continuava a segurar a mão do capuchinho e a apertá-la.

Falaram de assuntos pessoais, por vezes caindo na gargalhada e olhando-se significativamente, como que recordando coisas passadas, o que tornava a conversa ainda mais sem sentido para o jovem padre. Pela primeira vez, Louis apercebeu-se da riqueza da memória, que coloria o presente com nuances e tintas diferentes, e do tesouro que representava uma velha amizade. Aquilo só fez aumentar a amargura e o ciúme que sentia. Entre ele e o Cardeal não havia recordações.

Após nova pausa, os dois amigos entraram a conversar de coisas mais graves. O capuchinho começou a falar da sua missão em Roma. Cobrira aquela grande distância, ida e volta, a pé. Metidos em sandálias grosseiras, seus pés eram morenos, tisnados, enormes e deformados. Atravessara a pé as grandes e sombrias florestas da França, ameaçado pelos lobos e até por ursos, sozinho e desamparado, “salvo por Deus”, dizia ele, gravemente. Percorrera estradas lamacentas e pedregosas, infestadas de bandidos e assaltantes, dormira em campos abertos e em montes de feno, sempre carregando a mochila às costas. Mendigara pão, leite e água em casebres de camponeses. Não se vangloriava, mas a sua coragem sobre-humana e a sua força interior manifestavam-se em cada palavra. Enquanto falava, a sua mão brincava com a cruz de madeira que lhe pendia da corda em volta da cintura, e ele não parava de olhar para ela com devoção apaixonada, enquanto uma luz mística se espalhava pelo seu rosto barbudo e lhe iluminava os olhos, fazendo-o como que perder consciência de onde se encontrava, numa espécie de catalepsia. Estava quase cego, e o esforço que fazia para ver dava à sua expressão uma imobilidade extasiada e penetrante.

E, à medida que Louis escutava a conversa, o gelo negro do seu antigo sentimento de frustração invadia-lhe, lenta e inexoravelmente, o coração. Sabia que era como uma sombra esquecida, uma imagem de vidro, oca e sem substância.

— O Santo Padre — disse o Padre Joseph, com uma inclinação de cabeça — está muito preocupado com o que se está preparando nas Alemanhas. Ah, as Alemanhas! Que verdadeira caixa de Pandora, cheia de pestilências aladas para lançar sobre a Europa! Mas quem, senão os alemães, podia ter gerado um Lutero? São como um caldeirão, constantemente borbulhando. Isso porque são bárbaros. Sua Santidade confessou-me que não consegue dormir. Passa os dias preocupado, as noites orando. Está entre a espada e a parede, os protestantes, que ameaçam a Igreja com a sua simples existência, e os católicos Habsburgo. Dehtre os dois, qual o nosso pior inimigo? Eu não sei. Mas sei que os Habsburgo são os nossos mais perigosos aliados, ainda mais sinistros por usarem os mesmos hábitos que nós. Felipe da Espanha e os Habsburgo, todos bons católicos, estão cheios de veneno contra a França e, se para destruir a França fosse necessário destruir a Igreja, eles não hesitariam em fazê-lo.

— Eu sei — disse o Cardeal, sombriamente.

O pálido fantasma junto da janela deu um passo, mas os dois velhos amigos não se aperceberam.

Padre Joseph suspirou, juntou as mãos grandes e morenas e examinou-as com atenção.

— Acho — disse, em voz baixa — que, para a Igreja sobreviver, a França precisa ser fortificada. E como podemos fazer isso, Monsenhor? Já fez muito. Aplacou os huguenotes, persuadiu-os a se aliarem a Vossa Eminência no esforço desesperado de criar e preservar uma unidade, uma integridade na França. Disse tudo isto ao Santo Padre. A princípio, ele achou tudo muito confuso, muito sofisticado. Mas acabei por tornar claro que, se a Igreja quiser sobreviver, a França terá primeiro que resistir. De vez em quando, ele abanava a cabeça, suspirando, pensando como era possível que o apoio dos protestantes franceses fosse essencial à salvaguarda da Igreja.

— Disse-lhe, meu amigo, que os huguenotes e os católicos da França eram, antes de mais nada, franceses?

O capuchinho sorriu o seu sorriso escuro e torcido. Ergueu as sobrancelhas ruivas e olhou, bem-humorado, para o Cardeal.

— Ele tinha acabado de saber que os huguenotes de La Rochelle estavam conspirando com Buckingham e que o duque lhes tinha prometido ajuda inglesa, caso nós investíssemos contra eles.

— Ah! — exclamou o Cardeal, alisando delicadamente a barba fina e pontuda.

— Informei-lhe — continuou o capuchinho, fixando os olhos em Richelieu — de que não tardaríamos a “reconciliar” os cidadãos de La Rochelle.

— Confio em que não lhe disse que essa reconciliação se processaria por meio da forca, da espada, da roda e da masmorra — observou o Cardeal, com ironia.

De repente, os dois caíram na risada. Louis respirou fundo, o coração ardendo de raiva contra aquele riso inexplicável.

— Claro que não — retrucou o capuchinho. — Disse-lhe que isso seria conseguido pelos meios preconizados pela Cúria Romana: orações, amor, persuasão e evangelização.

Sorriu apenas, mas o Cardeal riu de novo, com deleite.

— Não obstante — disse Richelieu — são esses os meios que eu gostaria de empregar. Os rochelenses são franceses, e o sangue francês deve ser preservado.

Acrescentou:

— Sua Santidade é um homem vigoroso. Quem sabe não preferiria métodos mais drásticos?

Mas o Padre Joseph limitou-se a desviar o olhar, como se o cheiro do ridículo lhe tivesse subido às narinas. Disse:

— Sua Santidade ficou levemente aborrecido de saber que está tão preocupado com os franceses.

— Preferiria que eu me preocupasse com os Habsburgo? Ele que reflita bem. Se esses bárbaros triunfassem, ele e a Igreja es- tariam perdidos. Espero que o tenha feito compreender, de uma vez por todas, que a França é a única espada desembainhada em defesa da Igreja.

— O Santo Padre não é insensível à ameaça dos Habsburgo. Mas, conforme já disse a Vossa Eminência, está confuso. E os homens vigorosos não gostam de se sentir confusos.

Pôs-se de pé. Embora fosse baixo, parecia encher o vasto aposento com a sua força e a sua vitalidade. Fixou o olhar no espaço, enquanto o Cardeal o estudava atentamente.

— O Santo Padre não é francês — disse o capuchinho, pensativo, e o seu rosto assumiu uma expressão reservada e absorta. — Não pode sentir a mesma devoção que nós sentimos pela França. Contudo, devo confessar que simpatizei em parte com as queixas dele.

— Ah! — murmurou o Cardeal.

Louis avançou mais um passo, as narinas dilatadas1, a respiração ofegante.

O capuchinho suspirou, comprimiu os lábios e depois disse, na sua voz calma e impressionante, que sempre transmitia a ideia de poder contido:

— Tenho concordado com muitas coisas propostas por Vossa Eminência. No entanto, também creio ser necessário pensar numa colaboração entre os católicos Habsburgo e os católicos franceses para a supressão dos hereges. Isso ensejaria uma união da cristandade.

O Cardeal empalideceu subitamente. Endireitou-se, e um brilho infernal luziu-lhe nos olhos de tigre.

— Pensa então, meu caro amigo, que os franceses, embora católicos, suportariam ver estrangeiros, embora católicos, assassinar outros franceses embora huguenotes? Pensei que compreendesse os franceses!

O capuchinho voltou para junto da cama, e o seu olhar parecia, também, dardejar fogo.

— Sou francês — replicou, lenta e firmemente. — Mas sou também capuchinho. Aos olhos de Deus Todo-Poderoso e da Santa Madre Igreja, os homens são ou filhos da luz, ou filhos das trevas. As distinções raciais e nacionais derretem-se ao sol dessa verdade. Quando na nossa casa se alojam as forças do mal, elas têm que ser destruídas, para que as pessoas que nela habitam não sejam vítimas da peste. — E acrescentou, num tom ao mesmo tempo digno e suplicante: — A integridade, a segurança da Igreja devem ser sempre o principal objeto da nossa consideração.

O Cardeal cerrou com tanta força a mão que as unhas se lhe fincaram na palma.

— E pensa que os Habsburgo preservariam essa segurança, essa integridade? Ah, não responde, meu caro Padre Joseph! Seu olhar hesita, você suspira.

Soergueu-se nos travesseiros, e um leve rubor coloriu-lhe as faces magras.

— Escute o que lhe digo! Os Habsburgo são diabólicos e extremamente inteligentes. Apresentam esse argumento a Sua Santidade, sabendo que o Santo Padre lhes vai dar ouvidos. Mas é um argumento ditado pelo próprio diabo. Essa preocupação hipócrita com a integridade da Igreja tem como base o ódio à França. Madri e Viena de há muito vêm conspirando para a destruição do nosso país e do nosso rei. Nenhuma piedade os move. Os Habsburgo desejam apenas a hegemonia da Europa, para poderem reinar sobre ela. Se conseguirem a bênção de Sua Santidade, será meio caminho andado. Mas consentirá Roma em ser usada como trampolim para os políticos e os conquistadores sequiosos de poder? O truque é velho. Já foi usado antes e será usado ainda inúmeras vezes. Mas, enquanto eu viver, não permitirei que ele seja usado contra a França!

O capuchinho ficou calado. O tom apaixonado do Cardeal fazia o ar vibrar. Ele já não era um padre, e sim um soldado, um francês.

Nos momentos de tensão, o soldado voltava, com fúria. Gritou:

— Sang de Dieu! Não será usado contra a França! Dediquei a minha vida, a minha força, a minha paixão e todo o meu ser a ela! Não ficarei parado, vendo derramar-se o sangue do meu coração em vão, e na areia. Não, nem que tenha que me opor ao mundo com as mãos nuas e enfrentar sozinho o próprio fogo do inferno!

Mas o capuchinho olhou para ele gravemente, e a sua boca, apenas entrevista por causa da barba, era severa e apertada.

O Cardeal continuava fora de si. Tinha desses momentos de frenesi, quando, pondo de lado a velha cautela e o sentimento de autopreservação, desfraldava a bandeira vermelha da sua coragem, da sua fúria, do seu ódio e do seu orgulho contra céus escuros e ameaçadores. Esquecia-se então de tudo, menos de que era Armand- Jean du Plessis, ardente de paixão, onisciente e poderoso, manipulador de homens, reis e sacerdotes, louco de raiva de que alguém ousasse se opor a ele por um instante que fosse, ou dizer-lhe o que ele devia fazer.

Sentou-se na beira da cama, mas logo se pôs de pé e ficou diante do Padre Joseph no seu longo camisolão de seda branca, o rosto fino e pálido transtornado pela maldade, pelo orgulho e pelo desejo. Seus olhos de felino eram translúcidos, dando a impressão de que o fogo selvagem da sua alma espreitava através deles. Ergueu as mãos fechadas, como que para pronunciar imprecações. Seu corpo doentio parecia açoitado por ventos extra terrenos. Seu aspecto era tão terrível que o Padre Joseph caiu para trás, como que diante de uma aparição infernal e sobrenatural.

E o Cardeal falou, numa voz baixa, mas impressionante:

— Esta é a minha França. O que ela é, o que ela será, deve-o a mim. Tracei as suas fronteiras com o meu sangue. Uni a sua carne à minha. Emprestei ao seu corpo morto a minha alma. Erigi as suas fortalezas com as minhas mãos. Soprei ar nos seus pulmões. O cadáver que apodrecia na Europa ressuscitou, igual ao de Lázaro. Foi a minha voz que a fez erguer do sepulcro, e os meus dedos que lhe rasgaram a mortalha. Foi a minha espada que afugentou as aves de rapina que queriam devorá-la. Agora, ela é minha. Só minha e de nenhum outro homem. Nem reis, nem a Igreja podem reclamá-la. Nem mesmo Deus!

O Padre Joseph ouvia, incrédulo, aquelas palavras, que pareciam saídas dos lábios de um Lúcifer inflamado e enlouquecido. Persignou-se. Seu rosto moreno ficou azulado de horror e medo. Era um homem estranho e terrível, mas tinha diante de si uma criatura ainda mais estranha e terrível. Esperou que o Cardeal terminasse e voltasse para a cama, e depois falou, com voz calma, mas em tom ameaçador:

— Foi isso o que Sua Santidade me disse, mas eu pensei que estivesse mal informado. Disse-me que não era à França que Vossa Eminência amava, que não era a Deus que servia; que amava e servia apenas a Vossa Majestade mesmo. Que Vossa Eminência desejava apenas poderio, igual a Satã.

O Cardeal, que se deixara cair nas suas almofadas, tomado de uma completa exaustão, sorria, e um espírito inexorável brilhava-lhe nos olhos, que fitavam o capuchinho. A nenhuma outra pessoa, em todo o mundo, ele se teria desnudado assim.

— Esta é a minha França — repetiu.

— É a França de Deus! — exclamou o capuchinho.

O Padre Joseph pôs-se a andar de um lado para o outro como se fosse um urso ruivo, preocupado, a cabeça inclinada, as sandálias manchando de lama o tapete delicado. A luz do sol iluminava-o quando ele passava diante das janelas, para logo depois mergulhá-lo na sombra do quarto.

Começou a falar, numa voz trêmula, como se consigo mesmo:

— Amar a terra onde nascemos é bom, como é bom amar a nossa casa e a nossa família. Sem esse amor, nenhum homem é completamente homem, um ser humano dotado de dignidade. Defender a nossa pátria é bom. Mas encarar a pátria como uma conquista, amá-la excluindo tudo o mais, não é amor e sim ódio por todas as outras terras construídas por outros homens. Sua Santidade está a par disso.

O Cardeal ergueu a mão, e tão profundo era o efeito do seu poder espiritual que o capuchinho fez uma pausa, como se houvesse ficado petrificado, embora não lhe tivesse visto o gesto.

— Que o Santo Padre se lembre de que é italiano e de que eu sou francês — disse ele, tão baixo que a sua voz parecia um sussurro.

Padre Joseph voltou os olhos lentamente para o amigo e ficou mudo de horror, assustado com a sua terrível arrogância, o seu orgulho diabólico. Não conseguiu dizer uma palavra. O pálido fantasma perto das janelas, ainda inobservado, sentiu como se estivesse vivendo um sonho infernal, alheio à realidade.

O Padre Joseph não sabia que nenhum homem pode se aproximar de Deus, a não ser através da própria humanidade. Mas sabia que os homens se aproximavam do inferno através do orgulho, da vaidade, da fome de poder. E pareceu-lhe, enquanto olhava firme e apavorado para o Cardeal, que o amigo assumira o aspecto de Lúcifer. Sentiu uma imensa tristeza e um medo enorme. Nunca conhecera homens assim, embora as lendas estivessem cheias deles. Cada vez mais assustado, disse, para si mesmo, que não ouvira as palavras que tinha ouvido.

— Vossa Eminência é, antes de mais nada, um servo da Igreja — lembrou.

Q Cardeal sorriu de novo. O fogo abandonou-lhe o olhar. Sua respiração tornou-se menos ofegante. A palidez da exaustão tomou-lhe conta do rosto, novamente.

— Eu nunca me esqueço disso — respondeu, suavemente.

Padre Joseph passou as mãos sobre o rosto, num gesto que parecia querer afastar uma horrível visão. Depois, deixando cair as mãos, mostrou um semblante calmo e rígido. Aproximou-se da cama do Cardeal, sentou-se de novo e, apoiando as mãos nos joelhos, suspirou.

O Cardeal tinha por ele uma afeição profunda e ficou compungido por ter preocupado e horrorizado o amigo. Estendeu a mão e colocou os dedos magros e frios na mão rígida do capuchinho. Sentiu-a tremer.

— Tem uma sensibilidade por demais delicada — disse, bem- humorado. — Empresta um significado impossível às palavras. Peço-lhe que me perdoe a extravagância.

Ansioso por acreditar, o Padre Joseph sorriu fracamente.

— Vossa Eminência é famoso pela extravagância — disse ele.

Só então o Cardeal reparou em Louis, e franziu o sobrolho.

Levantou um dedo e chamou o jovem padre. Padre Joseph viu-o aproximar-se, distraído e sem qualquer curiosidade.

O Cardeal tinha um sorriso fascinante. Olhou para Louis com afeto bem-humorado.

— Padre Joseph, apresento-lhe o meu secretário, um irmão em Deus. Creio que conhece a família dele. É o Marquês du Vaubon.

O Padre Joseph ergueu-se pesadamente, como se estivesse prostrado, e os dois sacerdotes fizeram uma reverência silenciosa.

— É um jovem que tem muitos pontos em comum com você, Padre Joseph — disse o Cardeal alegremente. — A conversa dele é muito edificante.

Fez uma pausa e lançou a Louis um olhar inescrutável.

— Pensei que só tivesse um amigo em quem podia confiar. Mas, em Louis, encontrei outro.

O tom do Cardeal encerrava alguma ameaça, Louis não tinha dúvida. O seu rosto de mármore corou de orgulho, mas ele nada disse.

— Da mesma forma que Sua Santidade, Louis acha que eu devia conseguir a revogação do Edito de Nantes — continuou o Cardeal, no mesmo tom de bom humor.

Mas o Padre Joseph não sorriu. Voltou a sentar-se e fitou o Cardeal com expressão grave.

— Ainda não lhe disse, mas Sua Santidade exige que ele seja revogado.

O Cardeal deu de ombros e cerrou os dentes.

Padre Joseph prosseguiu:

— Sua Majestade, a Rainha da França, concedeu-me uma audiência antes de eu partir para Roma. Pediu a Sua Santidade que exigisse a revogação.

Ficou espantado com a fúria súbita e desumana que se apossou do Cardeal, ao ouvir falar em Ana da Áustria. As suas feições ficaram congestionadas. Pulou da cama, e, por entre a barba fina, os dentes assumiram uma expressão de lobo.

— Ela ousou fazer isso! — exclamou ele. — Aquela espanhola fraca e debochada, aquela rameira petulante! Ousou passar por cima da minha cabeça, sabendo que eu era contra. . .

O Padre Joseph ficou escandalizado ao ouvir aquelas palavras. Diante dos seus olhos perpassou uma rápida visão da jovem e bela rainha e sentiu, pela primeira vez em muitos anos, a indignação de um homem de bem ao ouvir falar mal de uma mulher que, embora fraca, era virtuosa, gentil e simples, piedosa e indefesa. Tinha horror e aversão às mulheres, exceto àquelas que usavam hábito e se escondiam por trás dos claustros de um convento,

e às que, como Ana da Áustria, brilhavam com o fulgor divino dos reis.

— Vossa Eminência ousa falar assim de Madame. . .?! — exclamou, engasgando-se.

Mas o Cardeal estava furioso com a audácia de uma criatura tão frágil, que lhe torturava os sentidos, mesmo quando dormia.

— Quer dizer — murmurou — que ela conspira nas minhas costas, essa espanhola, essa inimiga da França, essa meretriz! É o fim. Preciso destruí-la.

— Que está dizendo? — perguntou o Padre Joseph.

O Cardeal cravou nele um olhar em fogo.

— Tenho sido paciente — disse, por entre dentes. — Tenho aguentado calado. Tenho mostrado compreensão e misericórdia para com essa perigosa inimiga. Mas tudo isso acabou. Ela está intrigando contra a França, a serviço do irmão, esse temível espanhol, que só quer a ruína da França! Então esses canalhas querem que eu revogue o Edito de Nantes? Mesmo sabendo que isso resultaria no recrudescimento da guerra civil dentro da França? Assim com a França enfraquecida e indefesa, poderiam mais facilmente espoliá-la e conquistá-la.

Parou, ofegante, olhando em frente, sem nada ver, a não ser o seu ódio.

— O Edito de Nantes é o Edito de Satã — disse o Padre Joseph, severamente. — É um insulto a Deus Todo-Poderoso esse edito que dá aos hereges os mesmos direitos que os católicos franceses.

— Refleti! — disse o Cardeal, com aparência ameaçadora. — Esse Edito foi promulgado pelo pai de Sua Majestade, Henrique de Navarra, para proteger os seus amigos huguenotes. — Fez uma pausa. — Henrique declarou que Paris valia uma missa, e regressou ao seio da Igreja. — A voz dele abaixou de tom, mas tornou-se mais intensa. — E eu acho que Paris, que a França bem valem o Edito de Nantes.

— Sua Santidade exige. . . — disse Padre Joseph, indignado.

— Sua Santidade — repetiu o Cardeal — não é francês. — Ergueu um dedo e deitou um olhar formidável ao amigo. — A roda, o machado, a forca, por mais queridos que sejam de Sua Santidade, não voltarão à França. Tenho dito.

O Padre Joseph afastou os olhos, horrorizado, e deparou com o olhar de Louis. Ficou surpreso com o fanatismo refletido no rosto do jovem sacerdote. Franziu o sobrolho, pensativo. Suas palavras dirigiam-se ao Cardeal, mas ele olhava apenas para Louis.

— Deus é maior do que a França. Medite nisso, Monsenhor. Deus pode acabar com a França a qualquer hora.

O Cardeal sorriu sombriamente, e depois disse:

— Por acaso Sua Santidade se preocupa apenas com o Edito de Nantes? E a guerra que se trava fora da França e que ameaça a própria Igreja? Não causa a maior das ansiedades ao Santo Padre?

Por um momento, o Padre Joseph esqueceu-se do Edito de Nantes e mergulhou numa discussão sobre a guerra, 'passando a falar na prolongada crise. Depois, lembrando-se de algo, fixou os olhos azuis no Cardeal.

— Dizem que Vossa Eminência apoia secretamente os protestantes que Sua Majestade Católica, o Imperador dos Habsburgo, está procurando derrubar. Mas isso é impossível!'-

— Não falta quem me difame — disse o Cardeal tranquilamente e com um olhar suave.

Apenas parcialmente tranquilizado, o Padre Joseph continuou, excitado:

— As Alemanhas! Deixe que o Imperador, do alto do seu trono, em Viena, as esmague! Deixe-o destruí-las completamente, acabar com esses redutos de protestantes! Estão cheios de ambição, desejosos de segurar, com unhas e dentes, as terras da Santa Madre Igreja, de que tão desavergonhadamente se apoderaram, e os proventos que delas obtêm. Peça a Deus e a todos os santos que o Imperador os aniquile e faça com que as Alemanhas se unam, uma vez mais, aos seus irmãos católicos! Só então a cristandade será restabelecida, a cultura católica ressuscitada e a França salva!

— Só então — disse o Cardeal, em voz branda mas inexorável — a França será destruída.

Mas o Padre Joseph estava por demais transportado para ouvir aquelas palavras. Só Louis as ouviu, e os seus gélidos olhos azuis se tornaram ainda mais frios.

O Padre Joseph prosseguiu na sua veemente denúncia dos protestantes e na sua extasiada adoração do imperador dos Habsburgo, esse expoente dos monarcas católicos.

Cansado de ouvir, o Cardeal disse, irônico:

— Felipe da Espanha, sem dúvida, está muito interessado nessa santa cruzada. Naturalmente, vai expulsar os mouros infiéis do seu Império, quando terminar a guerra contra os protestantes. . .

— Com toda a certeza! — exclamou o Padre Joseph. — E também os judeus. Estão conspirando, há muito, contra a Espanha.

— Pensei que as câmaras de tortura da Inquisição, a forca, a roda e o pelourinho tivessem sido piedosamente utilizados contra os judeus, e que eles agora estivessem a salvo no seio da Santa Madre Igreja.

O Padre Joseph calou-se, de repente.

O Cardeal examinou as próprias unhas, pálidas e ovaladas.

— Foi um gesto infeliz, esse de converter os judeus por meios “piedosos”. Eliminou uma eterna vítima, uma eterna maneira de evitar a revolta interna e a insatisfação com o governo. Um monarca sábio permite sempre a existência de uma vítima entre o seu povo, chegando a cultivá-la ou a inventá-la, quando ela não existe. Só assim se protege da indignação do seu povo.

— Sua Majestade espanhola ainda tem os mouros — disse Padre Joseph, impulsivamente: : :

Ao ouvir isso, o Cardeal soltou uma sonora gargalhada.

— O protestante pretendente ao trono da Hungria aliou-se vergonhosamente aos turcos. Os mouros são seus irmãos. Devem ser expulsos da Espanha — disse o Padre Joseph.

Mas as risadas do Cardeal aumentaram ainda mais.

Enquanto o Padre Joseph continuava a falar da guerra sangrenta entre os católicos e os protestantes alemães pelo destino da Europa, o Cardeal se perdia numa contemplação virulenta e deliciosa da humanidade. Que monstro horrível era o homem, cheio de vícios, estupidez e maldade, deixando-se arrastar por qualquer vento, voraz e sedento de sangue como só uma besta louca podia ser, mas sem a ferocidade inocente das bestas, uma criatura justificadamente odiada pelos animais mais simples e sinceros, odiando, por sua vez, todas as coisas, inclusive a si mesmo! Séculos e séculos de gerações e de luzes, uma centena de Cristos não seria suficiente para elevar esse demônio nem sequer às formas mais elementares de decência, que até os mais inferiores animais entendiam instintivamente. Onde, no universo, havia uma tal astúcia, uma tal perversidade, uma tal crueldade, tanta sujeira e estupidez? A degradação dos homens era tal que nem sequer poderia aspirar a uma certa grandeza. Quem poderia medir a vileza do homem, quando essa baixeza era tal que, comparada com ela, o estrume dos animais parecia perfumado?

O Cardeal estava de novo imbuído daquele seu ódio implacável contra a própria espécie, que nunca deixava de inspirá-lo e revitalizá-lo. Da mesma forma que alguns homens são transportados a uma força sobre-humana pelo amor e o êxtase religioso, ele era transportado pelo ódio. Sentia o sangue correr-lhe nas veias, como um rio irresistível.

Sou o que os homens me fizeram, pensava. E compreendia, então, que os tiranos, os opressores, os genocidas, os Gêngis Khans e os Césares, os monstros eram criados pela humanidade a partir da sua própria substância, do seu próprio- desejo e do seu espírito infernal. O tirano não era culpado. O assassino tinha as mãos limpas. Eram as emanações inocentes e impalpáveis das mentes dos homens. No fim, os gênios invocados dos abismos das almas dos homens acabavam por destruí-los. Era uma justiça irônica. O Cardeal perdeu-se na contemplação prazerosa dessa justiça.

Quando mais jovem, e ainda agora, de vez em quando, suportara terríveis angústias de sofrimento espiritual, tão intensas que o seu espírito parecia torturado pelo fogo, ao contemplar a humanidade. Mas agora, passado o primeiro êxtase do ódio, tudo ficara de repente escuro e informe diante dos seus olhos. Tudo ficara mudo como um sino silencioso; e a realidade tornou-se para ele um som sem significado.

É duro suportar a vida, pensou, mas mais duro ainda é já não discernir o que precisa ser suportado.

A exaustão profunda e desintegradora tomara, de novo, conta dele. Fechou os olhos. Ouviu, vinda não sabia de onde, uma voz veemente e interminável; prosseguindo numa diatribe sem sentido. Mas já não conseguia perturbá-lo. Não sentia nada, nem mesmo desespero. Nesses momentos, cada vez mais frequentes à medida que a sua carne ia enfraquecendo, ele não mais desejava nem sequer o que não podia ser alcançado. Nem mesmo se lembrava do que desejara.

Abriu os olhos, opacos de cansaço e dissolução, e viu a figura cinzenta do Padre Joseph, gesticulando, andando de um lado para o outro, e o pálido fantasma do seu secretário.

Ergueu a voz do fundo da sua dor e da exaustão.

— Discutiremos isso outra vez — disse, numa voz que perdera a ressonância. — Meu querido amigo, sentai-vos aqui comigo. Tenho mais gente a receber e creio que vos divertireis.

Ergueu a mão como um sinal para que Louis fizesse entrar outro visitante.

Enquanto esperava, em silêncio, ficou pensando, como sempre fazia, se Padre Joseph entenderia os seus pensamentos, se o compreenderia, se não o enganaria. Não podia saber. Sabia apenas que o Padre Joseph o contemplava gravemente, com um desligamento que nada tinha de humano. Mas não sabia que naquele olhar havia também tristeza e compaixão.


Capítulo XVI

Um lacaio, vestido de preto, entrou com uma taça de prata, cheia de leite quente e vinho branco, que o Cardeal bebeu, com ar grato e lentamente. O quarto estava em silêncio. As sombras douradas do sol aumentaram e atingiram o rosto pálido e sutil sobre os travesseiros de seda. Agora, ele estava imbuído de grandeza e delicadeza, e via-se que o Cardeal tinha as qualidades da nobreza e da melancolia aristocrática. O soldado, o diplomata, o intriguista, o mentiroso e o hipócrita, o cortesão, o político e o assassino, tudo era obscurecido por um frágil invólucro de carne transparente e luminosa: o rosto do jesuíta, do padre, do sonhador e do poeta.

Quando a luz do sol lhe subiu até os olhos, lembrou-se de que os visitantes continuavam à espera, na antecâmara. Imediatamente, a velha expressão de intolerante malevolência tomou conta das suas feições.

Os três cavalheiros foram admitidos ao mesmo tempo; ao vê-los, a cara do Cardeal fechou-se, tornou-se ainda mais sutil. Mas continuou a sorrir-lhes e açolheu-os da maneira mais afetuosa possível.

O primeiro era Raoul, Duque de Tremblant, cunhado de Madame de Tremblant, que por sua vez era mãe de Mademoiselle Clarisse, a noiva de Arsène de Richepin. Q duque era huguenote. Ao vê-lo, Louis empalideceu ainda mais, e um ar vingativo se espalhou pelas suas feições de mármore. Odiava quase todos os homens, mas de Tremblant principalmente.

O aspecto do Duque de Tremblant não era de quem pudesse inspirar animosidade a ninguém. É verdade que ele tinha muito pouco da tradicional elegância, do cinismo e da graça dos franceses. Era um homem dos seus cinquenta anos, alto, anguloso, de andar meio desajeitado, o que fazia com que os seus trajes, ricos mas sóbrios, pendessem, como de um cabide, do seu corpo magro e muito direito, Calção, meias e gibão eram de lã púrpura escura. A gola e os punhos, de linho branco e simples, os sapatos, lisos e guarnecidos apenas de uma fivela de prata. A espada que usava tinha um cabo de prata sem enfeites e batia-lhe na coxa e no joelho, como se ele não estivesse acostumado a portá-la. Não obstante, tinha a reputação de ser um temível espadachim, reputação essa recebida com incredulidade por aqueles que julgavam apenas através das aparências. Parecia mais um obscuro proprietário rural, um burguês cujos ancestrais não tivessem qualquer distinção, do que um nobre de nome antigo e ilustre, ao lado do qual a própria família do rei parecia plebeia e vulgar.

Tinha um rosto comprido, chupado e muito enrugado, pois não gostava de usar os unguentos perfumados, tão utilizados por outros gentis-homens. Além disso, a sua pele era morena e ressequida pelo vento e pelo sol. Passava muito tempo nas suas propriedades, por vezes, para horror dos seus pares, trabalhando com camponeses nos campos e empunhando, inclusive, um arado. Consequentemente, as suas mãos eram calosas; as unhas, partidas; o rosto, tão enrugado que, quando ele sorria o seu sorriso bondoso mas desiludido, toda uma rede de profundas rugas se estendia da sua boca grande e fina para o grande nariz e os pequenos e contemplativos olhos castanhos. Tinha sobrancelhas peludas, que lhe davam uma expressão interrogativa, aumentada ainda mais pelo repuxar para um lado dos seus lábios sensíveis. Da mesma forma que muitos huguenotes, protestantes não só na política como no fundo- da sua alma, ele não usava adornos pessoais, e os cabelos grisalhos eram cortados rentes ao crânio longo e estreito. Alguns dos seus amigos diziam, afetuosamente, que ele parecia um cavalo velho, mas puro-sangue e bem- conservado.

Nem mesmo os seus inimigos conseguiam encontrar o que fosse de venal ou escandaloso em qualquer setor da sua vida, pois possuía austeridade, uma grande simplicidade e uma enorme compreensão e bondade. Quando sorria, o seu ar era tão suave, tão franco, tão sincero que a maldade se recolhia, impotente. No entanto, ele não era nenhum inocente — nunca se iludia. Mas não se tornara amargo no seu relacionamento com os homens, apenas triste. Em consequência, preferia a companhia dos campônios ignorantes e o ar puro do campo.

— Não é possível amar os homens, nem sentir pena deles, quando não se vive no seu meio — costumava dizer.

Era um dos mais poderosos magnatas da França, e a sua fortuna pessoal era enorme. Contudo, nunca abusava do poder, nunca se utilizava dele, a não ser para corrigir alguma injustiça, e vivia na maior simplicidade. Não precisava se rodear de luxo, à maneira do Cardeal, para ter a certeza de estar adequadamente protegido contra os outros. Tinha demasiada força interior para sentir um medo constante dos seus semelhantes. Reticente, dotado de um grande senso de humor, prudente e bondoso, incapaz de odiar quem quer que fosse; desprezando apenas os timoratos e os ambiciosos, era muito amado pelos poucos, amigos e odiado pelos inimigos.

O Cardeal gostava muito dele, apesar do seu cinismo. Na sua presença, bem como na do Padre Joseph, ele ficava à vontade, sabendo que estava diante de um homem que não era hipócrita, que não tinha duas caras e que não procurava bajulá-lo. Gostaria de vê-lo com mais frequência, mas o Duque de Tremblant raramente aparecia no Louvre ou no Palácio Cardinalício, exceto quando encarregado de graves missões relacionadas com os seus amigos ou com a sua religião. Isso explicava a preocupação do Cardeal e o erguer de sobrancelhas, ao ver o duque. O Duque de Bouillon, o Duque de Rohan e o Duque de Tremblant eram os três mais formidáveis huguenotes da França. Quando apareciam juntos, como nesse dia, Richelieu sentia reunirem-se dentro dele a expectativa, a cautela e a prevenção.

Açolheu-os com expressões de prazer e amizade. Odiava o Duque de Rohan e o Duque de Bouillon tanto quanto estimava de Tremblant. Sabia que este último encararia até mesmo as soas venalidades e duplicidades com bem-humorada compreensão. Mas os outros nobres não teriam tanta tolerância. Sabia, também, que de Tremblant era protestante, não porque desejasse reter o seu poder pessoal e as ricas propriedades, mas por convicção profunda. Os outros dois eram protestantes menos por convicção do que por ódio ao Rei e ao Cardeal.

O Duque de Rohan era pouco mais velho do que de Tremblant, mas, graças à sua enorme vitalidade animal, parecia mais jovem. Não era à toa que se parecia com a mãe, uma nobre da Casa de Parthenay, originária, como Richelieu, de Poitou. Indomável, arrogante, corajosa e intrépida, legara esses qualidades aos filhos, principalmente ao Duque de Rohan, embora não fosse responsável pelo seu velhaco bom humor nem pelo seu modo de rir, alto e conta- giante. A família dela era um ramo dos famosos Lusignan, que nunca tinham desistido do seu sonho de unir a França e a Inglaterra sob um único governo.

Henri, Duque de Rohan, era alto, mas tão forte que parecia mais baixo. Seu físico transmitia poder. Embora trajasse roupas mais sóbrias do que as usadas pelos seus pares, não obstante gostava da elegância, e os tons escuros das suas roupas eram aliviadas por golas de renda, botões de ouro e uma espada ornamentada. Apesar disso, sua aparência era descuidada e não muito limpa. Tinha uma cara larga e grosseira, com as narinas dilatadas dos que amam a vida e vivem pelos sentidos, cabelos e bigodes ruivos. A pele correspondia à cor dos cabelos, e os olhos também. Embora pequenos, estes pareciam refletir um fogo ardente. Apesar de rir muito e gostar de contar piadas obscenas, ouvidas nos bordéis e nas sarjetas, o Cardeal sabia que ele era um homem perigoso e incapaz de sentir remorsos, obstinado, astuto, corajoso e sem escrúpulos. Tinha o gênio impulsivo e irascível dos ruivos, e a sua mão estava quase sempre no cabo da sua espada.

O duque era um líder, a quem seus seguidores votavam completa devoção. Os protestantes do sul e do oeste da França adoravam-no, confiavam nele como em nenhum outro. Sabiam que ele nunca os trairia, nem que fosse para obter favores ou lucros. Era o protótipo do protestante por política e, por conseguinte, nunca tinha as vacilações e a tolerância que faziam com que o-Duque de Tremblant fosse por demais hesitante, meditativo e temeroso de excessos. Além do mais, ele era casado com a filha de Sully, mulher dedicadíssima.

Homens como o Duque de Rohan encontram no ódio que sentem, e no ódio que os outros sentem por eles, o seu maior estímulo. Sabia que, se os católicos o odiavam, os poderosos nobres das cidades huguenotes também lhe votavam ódio, temerosos de perder o poder, pois os próprios seguidores não confiavam muito neles. Sabiam que eles adoravam de Rohan, principalmente as massas presbiterianas, que não confiavam nos calvinistas e nos luteranos. De Rohan tinha a habilidade de conciliar todas, essas seitas, de soldá- las num único e poderoso bloco protestante.

A política de Richelieu fora de conciliar os huguenotes, para manter a França unida contra os inimigos estrangeiros. Conciliara principalmente de Rohan. Mas sabia que essa conciliação era armada, que estava agarrando um tigre pelo rabo, ou segurando um touro pelos chifres. Nenhuma explicação podia confundir de Rohan como poderia confundir de Tremblant. De Rohan não era complicado e percebia todas as manobras do Cardeal.

O Duque de Bouillon era um nobre huguenote, por quem o Cardeal tinha o máximo respeito e a maior inimizade. Gostava de de Tremblant, desconfiava de de Rohan e temia de Bouillon. Esse decano da poderosa Casa de La Tour d’Auvergne era respeitado até pelo rei e encarado com admiração pelos franceses. Brilhante, lúcido, frio e forte, era demasiado intelectual para ser nacionalista e demasiado sensato para se deixar levar pelos preconceitos. Uma energia gélida, astuta e cética emanava dele. Era francês, mas tinha uma grande simpatia pelas Alemanhas, e havia algo de teutônico na sua calma, no seu amor ao método, na sua inflexibilidade. O seu caráter tinha um equilíbrio que nenhum transporte dos outros era capaz de abalar. Era amoral em vez de imoral, pois não amava a ninguém senão a si mesmo, não trabalhava senão para ele mesmo. Amava o poder, não como o. Cardeal, como um meio de vida, e sim por si próprio. Sua primeira esposa deixara-lhe o principado de Sedan, e o Cardeal sabia muito bem que esse principado, situado na fronteira nordeste, era a cabeça vulnerável da França, assim como La Rochelle era o seu calcanhar-de-aquiles. Verdadeira cidadela huguenote, tinha em de Bouillon uma espécie de rei independente. O próprio Henrique IV tinha medo de de Bouillon, cônscio de que não era inspirado por um verdadeiro protestantismo, mas o servia só por ver nele uma barricada contra o Rei e um meio de ampliar o seu próprio poderio.

Fora criado na fé católica e abandonara-a por ver no protestantismo uma oportunidade de subir, uma brecha entre as Alemanhas, a Holanda e o Rei. Era calvinista e não hesitava em lançar calvinistas e luteranos uns contra os outros, para melhor garantir a sua posição.

Até então, de Bouillon aliara-se a Richelieu para evitar que a Casa de Áustria conseguisse levar a cabo o seu plano de recuperar as Alemanhas para a Igreja Romana. Era loquaz e aparentemente aberto, más sob essas aparências ocultava-se um temperamento matreiro, de que o Cardeal desconfiava.

— Um homem que conta tudo nunca conta nada — costumava dizer, pensando em de Bouillon.

Era muito convincente o Duque de Bouillon, Conde de Tufen- ne e Príncipe de Sedan. Inspirava confiança nos outros, pois falava num tom desprendido e lógico. Só que essa confiança não era merecida, conforme muitos haviam descoberto, demasiado tarde e com amargura. Servia apenas a si mesmo e, quando os desejos e os planos dos outros coincidiam com os seus, ele não parava enquanto não os realizava.

Esbelto, alto, de atitudes elegantes, embora de aparência compacta, de meia-idade mas transmitindo vigor, com cabelos curtos e encaracolados cobrindo um crânio redondo, olhos de um azul-pálido, cheios de força e astúcia, uma barba pontuda, que não lhe escondia a boca forte e rígida, eloquente de olhar e de gestos, tinha uma presença impressionante. O Cardeal temia-o e com boa razão. De há muito suspeitava de que ele não fosse um verdadeiro francês, devotado ao seu país e ao seu povo, e sim uma dessas criaturas que não têm raça, patriotismo ou amor. Suspeitava também de que a maior ambição do Duque de Bouillon fosse a restauração do velho sonho da Borgonha, no qual um forte principado renano estabelecesse a sua cidadela entre a França e a Alemanha.

Eles chegaram, os três, à presença de Richelieu: o primeiro, protestante por convicção; o segundo, protestante por motivos puramente políticos; e o terceiro, protestante por ambição. E Richelieu, olhando cortesmente para eles e sorrindo-lhes, sabia que nas mãos deles, e nas próprias mãos, estava o destino da França.

— Messieurs! — exclamou, estendendo as mãos brancas e finas para eles, com um olhar franco e um ar de satisfação.

Reservou o seu maior sorriso para de Bouillon, sabendo que ele era o chefe dos huguenotes franceses, o maior inimigo do Rei e de si próprio e um dos maiores intelectuais da França.

Os três lhe devolveram o sorriso, com uma reverência. Padre Joseph olhou para eles com um misto de suspeita e aversão. Louis, com o mais inflamado dos ódios.

Os três aperceberam-se da presença do Padre Joseph. Por um instante, entreolharam-se. Mas isso foi tudo. De Tremblant, que desconfiava de todos os grandes ardores religiosos, sentindo neles o poço do qual emanavam a superstição, a crueldade, a opressão e o ódio, sentia aversão pelo capuchinho. De Rohan estava certo de que o Padre Joseph era, acima de tudo, um político; conhecendo demasiado bem os políticos, olhou para o Padre Joseph com maldisfarçada suspeita. De Bouillon, o ex-católico, lembrando-se das tremendas maquinações místicas da sua antiga Igreja, sentiu que ali estava um seu inimigo pessoal. Cada um deles, por motivos próprios, fingiu ignorar o Padre Joseph, que estava sentado no extremo do quarto, perto da lareira.

O Cardeal deitou uma olhadela rápida a Louis, que enrubesceu, sabendo que ia ser chamado a atuar como lacaio. Contudo, o jovem sacerdote puxou, em silêncio, três cadeiras para junto da cabeceira do Cardeal, e os nobres sentaram-se: de Tremblant com um bater desajeitado da espada, de Rohan espalhando as grossas coxas e exalando um forte cheiro animal, e de Bouillon, com a graça fria e mecânica que era uma das suas características. Sempre sorrindo, ar cândido e língua cortês, o Cardeal relanceou um olhar verrumoso pelos três.

Finalmente, apiós uma longa troca de amenidades, de Bouillon disse, friamente:

— Sem dúvida Vossa Eminência está surpreso com esta nossa visita!

E fez um gesto elegante para indicar os outros dois.

O Cardeal arqueou as sobrancelhas e sorriu.

— Deveria estar surpreso, Monsieur le Duc? Serei demasiado egoísta se pensar que estou recebendo a visita de amigos que vieram inquirir da minha saúde?

De Rohan soltou uma sonora gargalhada. Seus olhos avermelhados piscaram para de Bouillon, que o fitou com ar frio.

— Eu, por mim — disse Rohan, piscando para o Cardeal —, não sou hipócrita. É verdade que a saúde de Vossa Eminência é de grande importância para todos nós e para a França. Mas não ouvimos dizer que ela corresse perigo. Por conseguinte, esta visita, embora relacionada com um assunto bem menos importante do que o estado de saúde de Vossa Eminência, nem por issa deixa de ter importância. Além do mais, se Monsenhor estivesse seriamente enfermo, eu teria sabido através de Madame d’Aiguillon.

E o duque piscou de novo, desta vez com uma conotação obscena.

Richelieu não se perturbou. Reclinou-se nas suas almofadas e ergueu as mãos, massageando os dedos finos. Inclinou a cabeça e voltou a sorrir.

Uma ruga apareceu por um momento entre os olhos frios e azuis de de Bouillon. Concentrou o seu formidável olhar no Cardeal, fazendo com que este sentisse um vazio na boca do estômago. Sempre que estava metido em atividades traiçoeiras, ou cogitando delas, a sua expressão tornava-se simples e aberta, de modo que devolveu o olhar penetrante de de Bouillon com um ar de candura, que não iludiu o outro.

— Não preciso lembrar-lhe a longa e árdua campanha que nós três travamos com Vossa Eminência, em prol do bem-estar, da glória e da segurança da França — disse de Bouillon, na sua voz despida de emoção. — Nem os nossos esforços concentrados para frustrar e tornar impotentes os Habsburgo, que ameaçam a França. Acho que não minto, quando digo que temos sido bem-sucedidos. Enquanto a França permanecer unida e houver paz interna, nada lhe acontecerá.

— Não foi o que eu sempre disse? — perguntou o Cardeal, ostentando surpresa. — Alguma vez me mostrei ingrato com vocês, ou não levei em conta os serviços que vocês prestaram à França?

— É verdade — disse de Tremblant. — Nenhum de nós jamais duvidou da devoção que Vossa Eminência tem pela França.

E deitou um olhar aos dois companheiros.

De Rohan apertou os lábios grossos e vermelhos e estreitou os olhos amarelados. Estendeu as pernas fortes e grossas e olhou audaciosamente para o Cardeal. De Bouillon não revelou nenhuma emoção. Ficou imóvel como se fosse uma aparição.

— Não obstante — continuou de Bouillon, imperturbável — temos ouvido boatos. Achamos mais leal repeti-los diante de Vossa Eminência e pedir-lhe que nos tranquilize.

— É uma questão de justiça — disse o Cardeal, franzindo levemente a testa. — Contudo, não posso acreditar que dêem atenção a simples boatos. Confesso que estou espantado.

Padre Joseph, no seu canto, inclinou-se para a frente e aguçou os ouvidos. Seus olhos fogosos brilhavam nas sombras do quarto.

— Os boatos — disse de Bouillon, como quem medita — são muitas vezes iguais aos relâmpagos antes da tempestade. Não costumo dar-lhes crédito. Não obstante, o ar entre nós não deve ficar nublado.

— Se ficar, deverá ser imediatamente clareado — concordou o Gardeal, aparentando cada vez mais surpresa e assumindo um ar de paciente dignidade.

De Rohan riu de novo, a sua risada alta e rouca. De Tremblant franziu as sobrancelhas, num gesto de reprovação. Mas de Rohan não ligou. Apontou para o Cardeal.

— Vossa Eminência é conhecido pela capacidade de esclarecer tudo — disse ele, desafiante. — Foi por isso que insisti nesta visita.

De Bouillon fingiu não o ter ouvido. Fitou no Cardeal os seus olhos desapaixonados.

— Dizem que Vossa Eminência está sofrendo pressão para que o Edito de Nantes seja revogado — disse ele.

O Cardeal empalideceu. Seus olhos de tigre faiscaram, e ele endireitou-se na cama.

— E corre o boato, Monsieur le Duc, de que está conspirando com a Inglaterra para a realização do seu sonho de uma nova Borgonha, em detrimento da França — disse Richelieu, quase num sussurro.

Fez-se um silêncio eloquente, enquanto os dois homens olhavam fixo um para o outro. De Rohan virou-se ruidosamente na sua cadeira e olhou para de Bouillon com espanto e suspeita. De Tremblant pareceu incrédulo, e a rede de rugas alargou-se no seu rosto.

— Qual deles — perguntou o Cardeal, numa voz suave — contém mais verdade?

Mas, se o seu desejo era impressionar de Bouillon, não o conseguiu. O duque permaneceu impassível, embora os seus lábios finos se comprimissem espasmodicamente.

— O boato — disse o Cardeal, como quem reflete, contemplando o teto — é uma bruxa velha, que fica sentada a um canto, tecendo mentiras. Nunca dei a essa teia o menor crédito. Sem dúvida Monsieur le Duc tampouco tem dado crédito aos boatos que me dizem respeito.

— Espero — disse de Bouillon, formalmente — que o boato relativo ao Edito de Nantes seja tão sem fundamento quanto a acusação contra mim.

— Asseguro-lhe de que é — replicou o Cardeal, em tom igualmente formal.

De novo os seus olhares se cruzaram.

O rosto de de Bouillon tornou-se mais comprido, mais intenso. O Cardeal, divertido, sabia que o seu antagonista passava, rapidamente, em revista a lista dos seus poucos confidentes, procurando descobrir quem seria o traidor. Richelieu esperou, bem-humorado, que o duque chegasse a uma conclusão.

De Rohan dirigira um olhar preocupado desde o Cardeal até de Bouillon.

— Esta troca de amenidades é muito edificante — disse, num tom belicoso. — Mais edificante ainda é observar a restauração da confiança entre Vossa Eminência e Monsieur le Duc. Contudo, lamento dizer que também tenho uma pergunta a fazer e que ela não é nada edificante.

Após ter momentaneamente calado o seu mais perigoso antagonista, o Cardeal voltou-se, sorridente, para de Rohan. Parecia um urso vermelho, que nem o próprio rei conseguira ensinar a dançar, e cuja aparente falta de jeito encobria um temperamento explosivo.

— Dizem — falou de Rohan — que Vossa Eminência está pensando atacar La Rochelle, por insistência da Rainha.

O Cardeal empalideceu de novo e os seus olhos dardejaram. Mas respondeu, numa voz calma e controlada:

— Pois fique sabendo, Monsieur le Duc, que, segundo os boatos, Vossa Eminência está em constante comunicação com Buckin- gham e neste mesmo momento tem dele promessas quanto ao número de navios e soldados ingleses que ajudarão numa nova rebelião de La Rochelle. Uma rebelião não provocada contra o Rei.

De Rohan, menos capaz de esconder as suas emoções que de Bouillon, olhou, atônito, para Richelieu, a boca descaída e aberta. Seu rosto ficou um pouco menos vermelho.

O Cardeal prosseguiu, tranquilamente:

— Conforme eu disse, o boato é um tecelão de mentiras. É também um instilador de ideias onde elas nunca existiram. Não recomendo dar-lhe ouvidos. Por exemplo, achei, apenas divertido quando me disseram que seu irmão, Soubise, o-comandante dos huguenotes de La Rochelle, está incitando os seus subordinados contra o Rei.

Sorriu gentilmente.

— Por aí pode comprovar como os boatos são ridículos. Murmura-se inclusive que vós mesmo mantivestes consultas secretas com o Príncipe Gastão, irmão do Rei, e até com a Rainha-Mãe, quando se discutiu se uma rebelião a partir de La Rochelle não resultaria na minha destruição.

— Mentiras! — gritou de Rohan, o rosto escarlate.

Olhou para o Cardeal, ofegante, como se estivesse vendo o diabo em pessoa...

Richelieu inclinou a cabeça.

— Foi o que eu disse — retrucou, tranquilizador.

De Bouillon e de Tremblant voltaram-se para de Rohan, cujo rosto estava cada vez mais congestionado à medida que ficava mais furioso. O olhar de de Bouillon era pensativo. Nos seus lábios pai

rava um íeve sorriso de surpresa, pois nunca imaginara que aquele homem grosseiro pudesse ter a sutileza de inteligência necessária para conspirar de maneira tão astuta. Ao mesmo tempo, estava aborrecido. A Inglaterra não podia se dispersar assim para ajudar, ao mesmo tempo, a ele próprio e a de Rohan. Aparentemente, a Inglaterra continuava matreiramente a prometer tudo, com grande generosidade, a tudo quanto era aliado, a todos os possíveis Inimi- mos do Rei da França. De Bouillon queria toda a força da Inglaterra para si, para apoiá-lo nas suas ambições. Se de fato ela pretendia ajudar também a de Rohan, sobraria menos para ele. Tenho de pedir imediatamente explicações a Buckingham, pensou, com fúria contida. Os malditos rochelenses! Não os deixaria tirar forças das suas fortalezas, nem que ele tivesse que conspirar com o próprio Cardeal para acabar com eles!

Quanto a de Tremblant, ficou horrorizado. Sentiu como se à sua volta crescessem as plantas venenosas da traição ê da duplicidade, nascidas das almas perversas daqueles homens. Tinha a mais profunda convicção de que o Cardeal dissera a verdade, assim como estava certo de que, se Richelieu ainda não se decidira a atacar os huguenotes, pelo menos pensava fazê-lo.

Desiludido, embora estivesse muito acostumado às maquinações dos homens, cada nova confirmação o entristecia, enchia-o de desespero. Ele só queria que a França fosse forte e não sofresse ameaças, a sua amada França, da qual cada torrão, cada árvore, cada brisa, cada flor e cada folha lhe eram mais caros do que a sua própria pessoa. Apoiara o Cardeal por saber que ele tinha uma verdadeira devoção pela França, por mais estranha que essa devoção fosse. Seu grande sonho fora ver uma França onde reinassem a tolerância, a amizade, a unidade, a paz, a cultura e a tranquilidade. Aiém disso, como fiei protestante, a causa do protestantismo morava no fundo do seu coração, não um protestantismo beligerante, e sim uma fé que coexistia com o catolicismo, cada qual aprendendo com a outra, como duas irmãs, diferindo de opinião mas subsistindo sob o mesmo teto, num clima de tolerância, amor e compreensão.

Agora ele via que de Bouillon, levado pela ambição, colocaria a Inglaterra e a França uma contra a outra, e que a França ficaria para sempre arruinada. Via que de Rohan, o intolerante político protestante, que odiava o catolicismo político, estava conspirando contra a unidade da França em razão do seu ódio pelo Rei. E via que c Cardeal, aquele homem estranho e vacilante, cheio de frustrações e desejos, podia facilmente ser impelido, contra as suas próprias convicções e raciocínio, a atacar os huguenotes, atirando de novo a França numa guerra civil. Qual dos dois triunfaria? A paixão e a devoção do Cardeal pela França ou o seu desejo por uma mulher sem importância? Com que fios frágeis e humanos era tecido o destino!

No entanto, pensou ele, talvez o Cardeal estivesse menos obcecado por uma mulher do que determinado a que nenhuma potência estrangeira interferisse nos assuntos internos da França. Se o objetivo da Inglaterra era acabar com a unidade da França, conspirando com os huguenotes, o Cardeal não teria outra escolha senão atacar e submeter os huguenotes. A capacidade que de Tremblant tinha, de ver todos os lados de uma controvérsia, voltou a torturá-lo, a deixá-lo exausto, confuso e deprimido. Sua amada França bem poderia encontrar-se de novo coberta do sangue de uma guerra civil, graças a de Bouillon, de Rohan e ao Cardeal. Não saberia dizer qual deles era o mais venal. Sabia apenas que sentia pelos três uma grande indignação e que os detestava. Não confiava no protestantismo de de Bouillon, sabendo que ele emanava das suas ambições. Não confiava no protestantismo de de Rohan, sabendo que provinha menos da fé do que da infidelidade política, do ódio pelo Rei e de uma aversão pessoal ao catolicismo. (Embora ele desse um excelente frade!, pensou de Tremblant com. amargura.) E agora não sabia se podia confiar no amor do Cardeal pela França!

Deixou-se arrastar por esses pensamentos sombrios, suspirando profundamente. De repente, percebeu que Richelieu lhe dirigira a palavra e ergueu os olhos cansados.

Falou lentamente, mas com tal intensidade, que de Rohan, de Bouillon, o Cardeal, o Padre Joseph e até mesmo o austero Louis o ouviram com atenção:

— Não tenho ambições pessoais — disse ele, lançando um olhar amargurado a de Bouillon, um olhar de desprezo a de Rohan e um olhar triste ao Cardeal. — Não desejo mais poder do que Deus achou por bem me dar. Só desejo a força e a segurança da França, para que ela possa renovar-se, inspirar-se e viver numa paz frutuosa.

Fez uma pausa. Seu rosto comprido e feio, tão pensativo, tão sábio, tão bom, contorceu-se num espasmo de dor. Levou as mãos morenas e calosas às têmporas, como que para mitigar a dor, e suspirou de novo.

— É só isso o que eu desejo, isso e a paz e a tolerância prometidas aos meus irmãos de fé pelo Edito de Nantes, Por isso apenas tenho lutado, esse é o meu único sonho.

Deixou cair as mãos e olhou para os outros com um misto de Indignação, raiva e desespero. . .

— Por que não deixam a França viver? Não haverá dentro de vocês amor pela terra que lhes serviu de berço? Terão que ser homens primeiro e franceses por último? Será que não há luz nas suas almas, nem dedicação, nem a solene determinação de que nenhum inimigo, interno ou externo, consiga destruir o nosso país? Quem dentre vocês é maior, mais importante do que a França?

Levantou-se e, de tanto que tremia, agarrou-se às costas da cadeira. A janela por trás dele transformou a sua figura alta e magra numa silhueta heróica. Ninguém se mexeu. Todos olhavam fixamente para ele.

Umedeceu os lábios trêmulos.

— Há alguns dias atrás, ao examinar os livros do meu pai, deparei com uma velha profecia:

“Quando os franceses forem traídos pelos franceses

e, irmãos se odiando, sorrirem aos invasores,

quando as mãos dos franceses se cobrirem de sangue francês,

a França estará para sempre perdida, e sua fama arrasada”.

Fez nova pausa. Aquelas palavras, solenes e lentas, tinham ecoado como um toque a dobrados naquele quarto grande e cheio de sol, fazendo com que o coração de cada homem ali presente batesse mais depressa. De Tremblant ergueu a mão, e o seu aspecto era tão severo, tão terrível, que todos ficaram como que fascinados, olhando para ele.

— Reflitam! — exclamou ele. — Sinto que esta profecia é válida; que, no dia em que os franceses sorrirem para o invasor, estarão conspirando com o invasor e o inimigo. Quando se dobrarem ao invasor, quando aceitarem as suas proclamações, movidos pelo ódio contra os próprios irmãos ou pela ambição, quando o seu amor pela França for menor do que o ódio pelos irmãos, quando toda a coragem, toda a honra, toda a dignidade e todo o orgulho tiverem abandonado a França, quando ela estiver cheia de homenzinhos venais, que amam mais as suas mesquinhas almas do que a própria pátria, a França se desmoronará, ruirá por terra para nunca mais se erguer, para nunca mais aspirar, para nunca mais acender a tocha da cultura e da fé nos seus templos. E nunca mais terá paz, a não ser a paz da sepultura!

Cobriu o rosto com as mãos, como que preso de uma angústia intolerável.

O Cardeal tentou sorrir, levando a mão à boca. Um leve sorriso irônico aflorou aos lábios frios e barbados de de Bouillon. O rosto vermelho de de Rohan enrubesceu ainda mais, e os seus olhos amarelos piscaram nervosamente. O Padre Joseph inclinou-se para a frente e olhou para de Tremblant como se ele fosse uma sibila. Mas Louis sorriu com desdém, pensando nos Habsburgo e nos espanhóis que, se realmente quisessem ser “invasores”, poderiam salvar a França de inimigos piores: os protestantes franceses. A integridade da França valia menos para ele do que a integridade da cristandade.

O Cardeal sorriu, porque para ele o sorriso era uma defesa. Mas o seu espírito sutil, sempre intrinsecamente místico apesar do frio raciocínio, ficou perturbado, como se rodeado de nuvens escuras. Teria respondido, mas de Tremblant, num súbito gesto de desespero, atirou as mãos para o ar, olhou em volta, transtornado, e saiu do quarto, como se o ar estivesse empestado.

Mal a porta se fechara atrás dele, de Rohan soltou uma longa gargalhada. A sua grande barriga sacudia. Jogou para trás a cabeça ruiva, e os seus dentes reluziram à luz clara do quarto. Suas mãos grosseiras, cheias de cabelos vermelhos, batiam nas coxas enormes. De Bouillon ficou sentado, imóvel; o rosto, clássico e aristocrático, inescrutável. O Cardeal, embora sorrisse mecanicamente, estava mergulhado em visões caóticas. Mas o Padre Joseph puxava a barba vermelha, e os seus olhos azuis e salientes brilhavam com um fogo interior.

Por fim, de Bouillon falou, na sua voz fria e monótona:

— É uma pena o nosso caro de Tremblant ser tão apaixonado. Confesso que nunca desconfiei de que pudesse haver nele tanta violência. Nunca se pode confiar em homens violentos.

Mas o Cardeal, sem deixar de sorrir, olhou para de Bouillon com a maior candura.

— Pois eu só acredito nos homens violentos. Só eles não são hipócritas, traidores, conspiradores e mentirosos.

De Bouillon fitou nele os seus olhos gélidos e formidáveis. De Rohan, que nada ouvira dessa troca de palavras, riu com renovado vigor.

De Bouillon ergueu as sobrancelhas pálidas.

— Dizem que Vossa Eminência nunca se mostra violento — observou, suavemente.

Depois que de Rohan e de Bouillon haviam partido, com as expressões de amizade do Cardeal, que de Rohan recebera com truculência e de Bouillon num silêncio polido, Richelieu voltou-se para o Padre Joseph.

— Então, meu caro amigo — disse, com um movimento lânguido das mãos —, que opinião tem desses três?

O capuchinho aproximou-se lentamente da cama e olhou demo- radamente para o Cardeal.

Por fim, respondeu:

— O Duque de Bouillon é um homem perigoso e virulento, porque foi capaz de sacrificar-se à ambição. O Duque de Rohan também é perigoso, porque o odeia, ao catolicismo e ao Rei. Mas não constitui uma ameaça tão grande quanto de Bouillon, por não ser ambicioso.

Fez uma pausa e prosseguiu, em tom solene:

— Mas o Duque de Tremblant é o mais perigoso dos três. Não é ambicioso, não odeia, mas tem convicções, por mais hereges que sejam. E um homem com convicções é a coisa mais perigosa que existe. Nada o detém. Nada o desencoraja. Tem a inspirá-lo a sua verdade particular. E um homem inspirado, por considerar a verdade, não pode ser silenciado nem posto de lado.

Continuou:

— De Bouillon pode ser comprado. De Rohan pode ser persuadido a parar, levado pela prudência. Mas não se pode comprar de Tremblant. Nada pode fazê-lo parar. Ele é do estofo dos primeiros protestantes. É do estofo de Lutero. Para ele, Roma só merece um veredicto. . .

— A morte — disse o cardeal.

Os dois amigos olharam intensamente um para o outro. Por fim, foi o Cardeal quem teve de desviar os olhos, e a tristeza e a melancolia passaram pelo seu rosto, qual nuvem escura.


Capítulo XVII

O Palácio Cardinalício jazia em silêncio, adormecido ao luar. Mas nos aposentos do Cardeal, uma luz ardia junto da grande cama vermelha. Sua Eminência era dos que gostavam da calada da noite, quando as mentes mesquinhas e as almas pequenas se tinham recolhido à escuridão, da qual emergiam brevemente durante o dia, quais vermes subindo à superfície da terra aos primeiros clarões da manhã. À noite, ele podia esquecer o que sabia da humanidade, podia esquecer até o ódio, que parecia um vírus do seu espírito, tão poderoso que lhe infectava a carne. Durante o dia, nas suas relações forçadas com os seus semelhantes, sentia-se afligido por um tremor crônico e interno, sentia-se nauseado pelo ódio. À noite, o corpo e a alma como que se libertavam, ele deixava-se cair sobre as almofadas e respirava sem aquela terrível constrição nos pulmões. Apagava todas as luzes, menos a que ardia à sua cabeceira, e, deitado na cama, lia, meditava, cochilava e sonhava, sentindo a saúde precariamente restaurada durante algumas poucas horas benditas, antes do raiar do dia. Ficava ouvindo o silêncio e imaginando, consolado, que todos, menos ele, tinham morrido, que a horrível presença do homem fora, por meio de um gesto compassivo de Deus, para sempre removida da face da Terra. Ninguém ousava entrar nos seus aposentos. Um novo lacaio atrevera-se a isso, uma noite, e fora recebido com tal violência, com tantas maldições e tanta histeria, que o pobre-diabo fugira, não só do palácio, mas da cidade de Paris. Depois disso, durante dias, o Cardeal fora proibido, por seu médico particular, de ver alguém, pois ficara gravemente doente.

Uma profunda quietude, uma escuridão aveludada, abatia-se então sobre Richelieu. O seu espírito ficava livre dos rigores que a si mesmo impunha, e por todo o seu corpo fluía uma paz abençoada. Esquecendo-se de tudo, até de Ana da Áustria, ficava olhando para o teto, para as janelas encortinadas, um livro na mão, um sorriso nos lábios. Às vezes, olhava para as portas trancadas, e uma expressão de calma se espalhava pelo seu rosto pálido e escaveira- do. Nesses momentos, toda a astúcia, toda a malícia lhe abandonavas os olhos, toda a amargura sumia da sua boca pequena e frágil, toda a dor desaparecia da sua testa alta e inclinada. Pensava, então, que talvez fosse assim na sepultura, um sono pacífico numa estreita câmara de pedra, para sempre a salvo da intrusão de uma espécie que ele odiava justificadamente e com conhecimento de causa.

Podia, então, compreender o Deus que abandonara, ou do qual a sua condição humana o tinha afastado. Teria alguma vez crido de verdade, com simplicidade, ardor e profundidade? Se crera, já se tinha esquecido. Agora, ele era empurrado para o mistério de Deus, suavemente, como um pedaço de madeira é levado pelas ondas, sem saber para onde, sem oferecer resistência. Mas não podia compreender Jesus. Nunca, em nenhuma altura da sua vida, compreendera o Cristo. Como era possível a alguém que conhecia a humanidade amá-la, desejar morrer por ela, sofrer por ela? Chegara a ter uma fugaz suspeita de que fora justamente a estupidez, a maldade, a crueldade e a violência da humanidade o que tinha inspirado a piedade de Jesus. Mas fora uma suspeita mesclada de espanto e desprezo. Ele, o Cardeal, tinha uma cura muito mais eficaz-: um novo dilúvio, um novo incêndio universal, um cometa em chamas vindo do espaço. Achava isso muito mais sensato: destruir a obscenidade, em vez de se apiedar dela.

Pensava que só ele estava acordado no Palácio Cardinalício. Mas Louis de Richepin tampouco dormia. Enquanto Richelieu procurava a insônia para curar o corpo, Louis não podia fugir a ela. Sofria constantemente de insônia. Durante a noite, todos os demônios da solidão, da tristeza, da amargura e da desesperança o assaltavam, na fria austeridade do seu quarto, no fim do comprido corredor. Ficava ouvindo os passos monótonos dos guardas, os seus estúpidos desafios, até quase o amanhecer. Sentava-se à sua mesa de trabalho, cheia de livros, a cabeça apoiada nas mãos, os olhos fixos, mas sem ver, no candelabro que ardia diante dele. Na nua parede de pedra, à sua frente, havia um enorme crucifixo de madeira, toscamente esculpido e encimado pelo prie-dieu, a vela baixa tremulando como se fosse morrer. Atrás de Louis, ficava o catre duro e severo. A janela, alta e estreita, estava aberta, deixando entrar o fresco ar da noite. O chão era de pedra, completamente descoberto, e os dois bancos não tinham almofadas. Era a cela de um monge, o quarto de um asceta, um quarto solitário e despido, cheio apenas da luz bruxuleante das velas, do cheiro úmido das pedras. Mesmo nos dias mais frios, não havia um braseiro ali, um fogo reconfortante. Era um quarto subterrâneo. Entretanto nele, um dia, o Cardeal estremecera e sorrira, erguendo as sobrancelhas. Mas as suas ofertas de móveis luxuosos, de tapetes, haviam sido polidamente recusadas pelo jovem padre.

Durante o dia, os constantes deveres impediam Louis de pensar. Mas, à noite, ele não tinha defesa contra a melancolia e a solidão. Quando meditava, era uma meditação sem qualquer esperança, cheia de desespero. Se orava, era como se seus lábios estivessem cobertos de gelo. Um grande vazio se abatia sobre ele. Todos os contornos de um mundo vivo se dissolviam no nada. Às vezes, pensava: O meu corpo, que antes era um caldeirão, agora parece um vaso velho e rachado, manchado de lágrimas secas, cuja origem eu esqueci.

Por tanto tempo fora forçado a esmagar a esperança, o desejo e a paixão no seu coração, que esses sentimentos eram como crianças mortas no ventre da sua mãe — uma recordação de vida, uma promessa assassinada de realização e alegria, um peso na sua alma.

Certa vez em que o amanhecer não conseguira libertá-lo das inexplicáveis agonias da noite anterior, ele não resistira e se confessara incoerentemente ao Cardeal, chorando como um homem que houvesse perdido as últimas defesas. E Richelieu escutara-o, como se algo ecoasse dentro dele. Mas os ecos não lhe haviam inspirado compaixão, embora o compreendesse. Por alguma estranha razão, tinham-no enchido de raiva, embora dissesse, com bastante suavidade:

— Louis, um sofrimento agudo, a capacidade de sofrer são sinais de que o espírito continua vibrante. Quando a capacidade de sentir dor, raiva, medo e inquietação termina, o idiota diz: “Finalmente, consegui a paz”; e o sábio exclama: “Estou morrendo!” Portanto, dê graças por ainda estar vivo. Você sofre, por conseguinte, está vivo.

Mas agora a noite só trazia sensação de vazio e morte a Louis, e a dor no seu coração, embora menos forte, impedia-o de pensar. Podia apenas suportar. Não conseguia desejar nada, nem sequer a morte que o libertaria.

Quis amor, dizia para si mesmo. Mas as palavras não passavam agora de ecos mecânicos. Sentia-se na fogueira, mas numa fogueira com chamas de gelo, que lhe congelavam o coração, ao invés de incendiá-lo.

As fúrias dos poços gelados do inferno caíam sobre ele com força inusitada, essa noite. Tinham uma voz, uma voz nova, mas ele recusava-se a escutá-la. Ficou sentado horas, sem se mover, os olhos quase ofuscados de tanto fitar as velas. Por isso, quando ouviu bater de leve à sua porta, passaram-se alguns minutos antes que se apercebesse de que estavam batendo. E, quando se apercebeu, ficou espantado.

Ouviu os sinos de Notre Dame baterem meia-noite, enquanto forçava o corpo, entorpecido pelo frio, a se erguer do banco duro. Arrastou-se através do chão de pedra como se fosse um velho, os ombros inclinados, a cabeça jogada para a frente. Destrancou o fer- rolho, e a porta abriu-se com um sonoro rangido, revelando o Padre Joseph, cujos olhos histéricos e azuis pareciam refletir a luz das velas.

Tomado de espanto, Louis recuou e o Padre Joseph entrou rapidamente, fechando a porta atrás de si. O capuchinho olhou em volta do desconfortável quarto e sentou-se num dos bancos. Sem dizer palavra, Louis sentou-se no banco do outro lado da mesa, e os dois sê entreolharam num silêncio profundo.

Embaraço, respeito, medo e desconfiança sucederam-se no espírito de Louis. Ficou à espera, enquanto o Padre Joseph, com o olhar, inspecionava todas as peças da cela, e depois voltava, inescru- tável, a fixar-se no jovem sacerdote. Evidentemente, a inspeção satisfizera ao capuchinho, pois sorriu ligeiramente.

— Aqui não há luxos, corrupção, vaidade — disse ele, na sua voz ressonante. — Não me enganei com você, Louis.

Louis inclinou a cabeça. Seu egocentrismo, sempre à flor da pele, fez com que um rubor se espalhasse pelo seu rosto gélido, enquanto o coração lhe batia mais forte.

Os sinos de Notre Dame continuavam a vibrar no ar de meia- noite. Padre Joseph examinou rapidamente os livros em cima da mesa. Aparentemente, gostou do que viu, pois as suas feições se suavizaram. Pousou a mão de leve sobre a capa de um livro. Mas logo a sua expressão mudou, tornou-se severa e inexorável. Seus olhos eram dois poços azuis, terríveis e hipnóticos.

Começou a falar, tão depressa, e numa voz tão baixa que Louis teve que aguçar bem os ouvidos para poder entender o que ele dizia. Os olhos do capuchinho imobilizavam-no como olhos de serpente, fazendo com que ele não pudesse apartar o olhar nem por um instante. ,

— Quando hoje o vi, Louis, percebi imediatamente que Deus nos aproximara. Nunca me iludi com esses vislumbres de intuição divina. Vi logo que você era o instrumento que Deus colocara na minha mão. Quando Deus chama, eu obedeço logo. Foi por isso que vim a estas horas. Todos dormem no palácio, mas eu sabia que você estava acordado.

Fez uma pausa. Curvou-se por cima da mesa para Louis, e o jovem sacerdote não viu senão os dois poços de fogo azul que eram os olhos do capuchinho.

— Também sabia que Deus o faria entender e que eu só tinha que falar.

— Não preciso lhe lembrar as terríveis forças soltas no mundo, hoje em dia, e a horrível ameaça que paira sobre a Igreja. Você sabe disso. Sabe que só a devoção dos fiéis será capaz de salvar a Igreja. E eu sei que você é um desses fiéis.

— A Igreja precisa, a todo custo, reconquistar a onipotência espiritual no mundo, como prelúdio para a onipotência temporal, que deve ser sempre o seu sonho, o seu objetivo, o propósito de Deus. Só quando a Igreja controlar os assuntos políticos dos homens, quando ela puder comandar reis, imperadores, príncipes, a maquinaria de todos os governos, e ser implicitamente obedecida, é que os planos de Deus poderão ser realizados. É dever de todos nós dedicarmos as nossas vidas, os nossos pensamentos, as nossas orações e os nossos desejos ao triunfo da cristandade, a fim de extirpar os hereges e os infiéis a ferro e fogo, por meio da força implacável. As forças da heresia têm que ser destruídas. Enquanto permanecer um só herege no mundo, a Igreja estará ameaçada. Enquanto houver um só governo independente desafiando a Igreja, ela não estará segura. Enquanto um governante detíver o poder sem a autorização e a bênção de Roma, a sua presença será uma ameaça ao catolicismo. Onde quer que os homens façam leis sem consultar Roma e obedecer às suas ordens, as forças da dissensão, da heresia e da blasfêmia triunfarão. A Igreja deve governar o mundo inteiro, deve fazer as leis, nomear todos os governantes, ter a primeira e a última palavra, para que os propósitos de Deus sejam levados a cabo.

— O Santo Padre sabe disso. Todos os Papas, desde o momento em que recebem a coroa e as chaves de São Pedro, se devotam a isso. No coração de todos os verdadeiros servos da Igreja está a promessa de que a heresia protestante, judia, maometana e budista deve morrer, e, com ela, os seus defensores. Essa é a ordem de Deus. Temos apenas que obedecer, com alegria, dor, serviço, devoção e martírio.

Lentamente, à medida que o capuchinho falava, numa voz baixa mas veemente, cheia de paixão e fanatismo, uma chama corno que um fogo interior se acendia em Louis. Os seus olhos já não pareciam opacos. A exaltação, a fúria, a loucura, a histeria e o transporte tomavam conta da sua alma, quais chamas de uma fogueira. Erguiam-se, com estrondo, das cavernas escuras e insondáveis do ódio que morava eternamente dentro dele.

O capuchinho viu crescerem essas chamas por trás do rosto do jovem sacerdote, pálido, mas quente. Os seus olhos glaciais brilhavam como o gelo banhado pelo luar, no cume de uma montanha. E o Padre Joseph dizia para si mesmo; Não me iludi quanto à qualidade desta alma selvagem e virgem, dedicada e incapaz de sentir remorsos.

A voz dele lembrava mãos urgentes, procurando agarrar Louis. O jovem padre pôs-se de pé num transporte, tremendo qual uma árvore atingida por um raio. Gritou:

— Que devo fazer? Porque tenha que fazer algo!

O capuchinho era por demais astuto e intuitivo para achar que os transportes de Louis se deviam à devoção e ao êxtase religioso. O verdadeiro devoto parece divinamente inspirado, radiante; tem uma aparência quase angelical. Mas o Padre Joseph via que havia algo de mau, de perigoso e de descontrolado por trás do rosto, das palavras e dos gestos do jovem sacerdote, algo que fazia com que a sua carne brilhasse como que iluminada pelas chamas do inferno.

Fixando os raios azuis, que dardejavam dos seus olhos, no rosto de Louis, dominando-o pelo seu poder hipnótico, o Padre Joseph disse:

— Sim, meu filho, existe algo que você pode fazer, algo que você deve fazer. Mas precisa me ouvir com toda a atenção, pois o destino da cristandade pode depender da sua integridade, da sua força e da sua sabedoria.

Lentamente, tremendo violentamente, Louis voltou a sentar-se, inclinando-se por cima da mesa, segurando-a como se fosse pular, os olhos reluzentes, os dentes cerrados.

O Padre Joseph ergueu a mão num gesto solene e falou, numa voz ainda mais baixa:

— Sou amigo e confessor da Rainha. Não obstante, ela parece não confiar em mim. Não posso, portanto, fazer com que ela me ouça sem suspeita.

Fez uma pausa.

— E você, goza do favor da Rainha?

Louis hesitou. Havia gotas de suor na sua testa alta e branca. Tocou-as com mão trêmula.

— Sou o secretário de Sua Eminência, padre, como o senhor é seu amigo. Por conseguinte, Madame estendeu a mim a sua desconfiança. Contudo, acho que esse sentimento diminuiu bastante, pois tenho tido ocasião de conversar com ela, e Sua Majestade se convenceu da minha sinceridade e do meu desejo de que os huguenotes sejam destruídos. Embora às vezes me tenha acusado a mim mesmo de deslealdade, discordei, na presença dela, da política de Sua Eminência. Mas talvez isso não constitua segredo para o senhor!

O capuchinho inclinou-se mais para Louis.

— Tudo isso é extremamente significativo, muito melhor do que eu esperava! Pode me repetir algumas das suas conversas com a Rainha?

Lisonjeado com a atenção do capuchinho, Louis obedeceu. O Padre Joseph ouviu atentamente, mal respirando. Os seus olhos extraordinários brilhavam, dardejavam. Sorria, agarrando a beirada da mesa. Pesava cada palavra. De vez em quando, assentia com a cabeça, com um prazer intenso. Ou passava a mão.pela barba emaranhada, como se estivesse excitado.

— Que coisa excelente! — exclamou, assim que Louis terminou. — Excelente mesmo! Tenho a certeza de que você convenceu a Rainha da sua sinceridade. — Fez uma pausa, e os seus olhos se fixaram, penetrantes e astutos, em Louis. — Sempre foi um motivo de tristeza para mim o fato de Sua Majestade não confiar e não gostar de Sua Eminência. Sem dúvida, sem qualquer razão.

Ficou à espera, conjecturando até onde Louis sabia do desejo que o Cardeal sentia por Ana da Áustria. Mas logo se apercebeu de que Louis nunca acreditaria em nada obsceno a respeito do Cardeal, pois não havia obscenidade naquela alma egocêntrica e glacial.

Louis abanou a cabeça, franzindo a testa e suspirando.

— Sinto dizer que exisfe uma razão, padre. Madame sempre desejou que o Edito de Nantes fosse revogado, que os huguenotes fossem exilados e destruídos, para o bem da Santa Madre Igreja. Suplicou isso ao Rei. Mas Madame tem muito pouca influência junto de Sua Majestade, que só dá ouvidos a Sua Eminência. E Sua Eminência sempre acreditou que a força da França depende da sua integridade e, por causa dessa integridade, aplacou e conciliou os rebeldes huguenotes.

Hesitou de novo e olhou para o capuchinho, como que implorando.

— Nunca concordei com Sua Eminência, mas sempre com a Rainha.

O capuchinho fez que sim e sorriu por entre a barba.

— Madame não tem recebido Sua Eminência ultimamente?

— Não. Sai, assim que ele entra nos aposentos do Rei. Sei que ele procurou ser recebido por ela em audiência, mas não conseguiu.

— Ah! — murmurou o capuchinho, que bem sabia das razões da aversão que a jovem Rainha tinha pelo Cardeal.

Fez-se um súbito silêncio, durante o qual o capuchinho não tirou os olhos do rosto de Louis, que suava frio, à espera.

Por fim, o Padre Joseph disse, como se meditasse em voz alta:

— Estive pensando que, se Sua Majestade pudesse ser induzida a receber Sua Eminência, muitas coisas poderiam ser esclarecidas. Cheguei a lhe sugerir isso, antes de partir para Roma. Ela recusou, muito agitada, suspeitando de mim. Portanto, não adianta eu insistir. Mas, se alguém em quem ela confia, como você, pedisse uma entrevista, talvez Madame a concedesse.

Fez uma pausa. Louis arregalou os olhos, mas logo franziu a testa. Não podia deixar de se sentir excitado.

— Acredita que um pedido meu possa ser bem-sucedido, padre?

O capuchinho ficou aliviado. Sorriu afetuosamente.

— Sei que sim! E foi por isso que lhe consegui uma entrevista, a sós com a Rainha, para dentro de uma hora!

Louis ficou atônito. Quase se ergueu da cadeira.

— Agora? — exclamou. — A esta hora, quando Paris inteira está dormindo e o Louvre também?

Padre Joseph sorriu tristemente.

— Sua Majestade tem poucos amigos, e esses amigos são suspeitos. Os espiões do Rei- e. . . e de Sua Eminência estão sempre alertas. Por conseguinte, ela recebe os amigos em segredo, depois da meia-noite.

Louis, cada vez mais espantado, abanou a cabeça, sem saber o que dizer. O capuchinho estendeu o braço por cima da mesa, num gesto súbito e violento, e agarrou a mão fria e rígida do jovem sacerdote, ao mesmo tempo em que o seu olhar se fixava no dele.

— Você tem que ir imediatamente, sozinho e em segredo, meu filho! Embrulhado na sua capa, o rosto escondido. Madame o receberá! Mandei um mensageiro em seu nome, pedindo audiência, e ela foi concedida!

Ele esperava que essa revelação provocasse alguma exclamação por parte de Louis. Mas este continuou olhando, apenas, incrédulo.

— Agora, imediatamente! — repetiu o Padre Joseph. — Sem mais demora. Dessa entrevista, meu filho, depende o destino da Igreja na Europa!

— Mas que razão apresentarei a Sua Majestade, para lhe pedir que receba Sua Eminência? — perguntou Louis, em voz rouca.

O capuchinho ficou um momento calado, as chamas dos seus olhos mais acesas. Por fim, disse:

— Diga-lhe que está certo de que Sua Eminência pode ser persuadido a abandonar a sua atual política com respeito aos huguenotes, se ela lho pedir.

Fez uma pausa e prosseguiu, lenta e ponderadamente:

— E diga a Madame que o sacrifício da delicadeza, das aversões, da modéstia e das hesitações de uma simples mulher nada representa, quando se deseja salvar a Igreja. Diga-lhe que Deus ordena que ela se sacrifique.

Ficou pensando se não teria ido demasiado longe, se Louis teria ouvido falar no desejo que o Cardeal sentia pela Rainha, pois o rosto do jovem padre ficou muito pálido, e, apesar da transpiração que lhe brilhava na testa, uma expressão de frieza se espalhou pelas suas feições.

Mas ficou mais tranquilo quando Louis disse:

— Acho isso uma impertinência, padre.

Aliviado, o capuchinho bateu com’o punho fechado na mesa.

— Um padre nunca é impertinente, quando a serviço da sua Igreja e do seu Deus! Suas palavras são absurdas, mundanas, meu filho! Em nome de Deus, um padre pode falar çom toda a franqueza. Não tenha medo. Sua Majestade vai ouvi-lo com toda a consideração, como verdadeira filha que é da Igreja.

Sem dizer mais nada, Louis levantou-se, embrulhou-se numa capa preta e puxou o capuz para o rosto. Depois, olhou para a parede de onde pendia a sua espada, despendurou-a e afivelou-a à cinta. Finalmente, voltou-se para o capuchinho.

— Estou pronto — disse, simplesmente.

O Padre Joseph abraçou-o e abençoou-o solenemente. Saíram do Palácio Cardinalício, atravessando compridos corredores. Passaram pelos guardas, que lhes fizeram continência, e emergiram nas ruas escuras e sombrias. Padre Joseph seguiu Louis com os olhos até ele ser engolido pelas trevas da meia-noite.

Abanou a cabeça. Mas não era a primeira vez, refletiu, que um padre atuava como alcoviteiro.


Capítulo XVIII

Louis seguiu as últimas instruções do capuchinho. O Louvre dormia, imerso no mais completo silêncio, quando Louis se aproximou pelos fundos e avistou o Comandante da Guarda, de pé, imóvel, envolto na sua capa, perto do portão, o chapéu emplumado tapando-lhe o rosto, a espada na mão. Não se via nenhum outro guarda, embora, a distância, se ouvissem as suas passadas monótonas. Por sobre o Louvre, uma lua muito branca navegava por entre •nuvens pretas, mergulhando a cidade alternadamente na luz e na escuridão.

O coração batendo-lhe violentamente, Louis avançou para o Comandante, que o conhecia bem. Tirou o capuz e revelou a face pálida. Seus grandes olhos ozuis brilhavam febrilmente, ao luar.

— Que noite tão sossegada! — comentou, dando a senha.

O comandante ficou um momento em silêncio, examinando as feições de Louis. Depois, fez-lhe continência, sem dizer palavra. Entraram no pátio. A lua voltara a se esconder; atravessaram o pátio em meio às trevas. Louis ouviu uma porta se abrir com um rangido, e logo se viu num corredor às escuras. O comandante tomou-lhe do braço, e seguiram por vários corredores estreitos, que Louis sabia pertencerem à ala dos criados. Portas se abriam e fechavam atrás dele. O único ruído era o dos passos deles, amortecidos. Louis sentiu um corrimão debaixo da mão. Subiram vários degraus. Mais um lance, um outro ainda. Por fim, o comandante parou diante de uma porta estreita e bateu três vezes. Esperou, bateu outras duas vezes e, depois, mais três. A porta abriu-se e Louis viu-se numa pequena câmara, iluminada apenas por uma fraca lamparina, sobre uma pequena mesa. As janelas estavam cobertas de ricas tapeçarias. O teto, estreito e pontudo, perdia-se na sombra. A um canto da câmara havia um sofá de veludo púrpura.

Louis voltou-se para o comandante, que lhe deitou um olhar penetrante. Estava tão pálido quanto o jovem sacerdote, e a sua expressão era severa. Disse, num murmúrio:

— Monsenhor, existe apenas um castigo para a traição.

Louis ficou ainda mais pálido. Assumiu uma expressão altaneira e não respondeu. O comandante pareceu satisfeito, mas, dirigindo-se a uma porta, parou e lançou ao padre um olhar comprido e feroz. Por fim, abriu a porta e desapareceu.

Vendo-se sozinho, Louis sentiu uma grande inquietação. Começou a andar lentamente de um lado para o outro, os passos abafados pelo espesso carpete dourado. Não era dado a intrigas, senhas, visitas furtivas. A dúvida e a apreensão assaltavam-no. Estaria traindo o Cardeal? Violando a sua confiança? Mas decerto o Padre Joseph, o melhor amigo do Cardeal, não o levaria a cometer traição contra Richelieu. Não obstante, a aversão de Louis pela tarefa que aceitara, num momento de exaltação, não diminuía. Não era um aventureiro. Não se sentia excitado pelo segredo, pela tensão ou pelo perigo. Toda a sua vida fugira de situações dúbias, e achara as intrigas ridículas e infantis. Havia algo na natureza dos homens, pensava ele, que os impelia a riscos idiotas, a preocupações elaboradas e a senhas risíveis, quando a melhor coisa era uma aproximação simples e direta. Mas nisso não havia aventura, alegria ou risco, de modo que os caminhos enviesados eram os preferidos.

Suspirando impacientemente e franzindo a testa, tirou a capa e jogou-a, irritado, sobre o sofá. Ficou de pé, nas suas vestes pretas, a espada à cinta. Toda a beleza singular do seu rosto largo e branco aparecia à luz da lamparina. O cabelo louro e encaracolado, os belos olhos azuis, as feições perfeitas davam-lhe o aspecto de um anjo militante, tal a sua dignidade, tão esculturais as suas proporções. Já não era um padre, e sim um jovem oficial. Apenas a cruz de prata que lhe pendia do pescoço, enfiada num cordão preto, revelava o que ele era.

Embora não ouvisse nenhum ruído, a porta se abriu e o Comandante da Guarda apareceu. Olhou rapidamente para Louis, que recuara. Um vulto de mulher surgiu, pequeno, delicado e gracioso, e Louis reconheceu nele a jovem Rainha.

Trajava um simples vestido de veludo azul. Pérolas adornavam- lhe o famoso colo branco e as minúsculas orelhas. Num dos dedos da mão direita, alva e perfeita, brilhava um único diamante. Tinha o cabelo solto, rodeando-lhe a testa, as faces e o pescoço numa profusão de cachos castanhos. Seus olhos, verdes e brilhantes, expressavam ao mesmo tempo reserva e doçura, e apenas o lábio inferior saliente, típico dos Habsburgo, quebrava um pouco a perfeição daquele rosto encantador. Todos os seus movimentos eram belos e nobres, e ela mais parecia flutuar do que andar. Atrás dela vinha a sua única amiga. Dona Estefânia, dama da nobreza espanhola, a única que o Rei ainda não afastara da jovem Rainha. Por fim, o comandante entrou na sala.

Louis olhou para a linda 'Rainha', e uma estranha agitação tomou conta dele. Na luz e na forma dos seus olhos, no brilho dos seus cabelos, nas suas maneiras doces e reservadas, ela parecia-se com Marguerite de Tremblant. A Rainha, para Louis, fora sempre uma personagem remota, a ser tratada com reverência distante e não como um ser humano. Mas agora ela surgia-lhe como mulher, feita da mesma carne Iustrosa que aquela em quem ele mal ousava pensar. Era a sua feminilidade, a sua semelhança com a outra, o que lhe fazia o coração bater de maneira sufocanté, e um calor invadir- lhe todo o corpo, uma névoa ofuscar-lhe a vista. Sentiu por ela um amor profundo, uma adoração cega. Curvou-se, em reverência. Quando ela lhe estendeu graciosamente a mão, Louis mal pôde segurá-la, e, quando a levou aos lábios frios, sentiu que um fogo irrompera dentro dele.

Quando levantou a cabeça, a nobre espanhola e o comandante tinham saído da sala. Ele estava a sós com a Rainha. Sua Majestade sentou-se no sofá de veludo. Estava pálida e agitada, e apertava convulsivamente as mãos. Olhou para Louis com dignidade e distância, mas havia medo e urgência nos seus olhos de esmeralda.

— Monsenhor — murmurou ela —, foi contra todos os princípios da discrição que lhe concedi uma entrevista a esta hora.

Embora fascinado, Louis sentiu um começo de indignação. Altaneiro e egocêntrico, insurgia-se contra a mão sutil que o manipulara, lançando-o naquela perigosa situação, para a qual não estava preparado. Não podia falar. A raiva inflamou-lhe o rosto, e os seus olhos brilharam. A Rainha não podia entender aquilo e imaginou que Louis estivesse inspirado. Além disso, ela não era imune à beleza masculina e sempre admirara secretamente o jovem sacerdote. Por uma razão que ela não podia explicar, mas que tinha origem na intuição, sempre confiara nele. Confiava nele agora, embora estivesse visivelmente apavorada.

Louis respirou fundo, aproximou-se da Rainha e parou diante dela. O encanto fora quebrado. Lembrou-se do que o capuchinho lhe dissera, e a cautela natural assistiu-o nos seus esforços.

— Serei breve — disse, em voz baixa — e não deterei Vossa Majestade um momento além do que for necessário.

A rainha suspirou e pareceu mais à vontade. Mas estudou-o com um olhar ansioso e penetrante.

— Vossa Majestade e eu temos por diversas vezes conversado sobre os huguenotes, o Edito de Nantes e as infames promessas feitas pelos hereges ingleses aos rebeldes de La Rochelle. Discutimos o perigo que essa situação representa para a França, para a Igreja e para toda a cristandade. Perdoe o meu atrevimento, Madame, em lhe recordar essas conversas.

Os olhos da Rainha iluminaram-se de paixão. Inclinou-se para o padre e apertou as delicadas mãos contra os joelhos.

— Não precisa recordá-las, Monsenhor — exclamou, veementemente. — Não penso senão nessa terrível situação e passo todas as minhas horas orando, em desespero! Não posso pensar senão no insulto que representa, para o Santo Padre, para o meu irmão, o Rei da Espanha, para os Habsburgo e para todos os fiéis, a atual política da França, que concilia os nossos mortais inimigos, os hereges!

Pôs-se de pé, cheia de indignação, e lançou a Louis um olhar arrebatado.

Exclamou, amargamente:

— Mas que adiantam as minhas preces, as minhas lágrimas, quando quem manda na França é o meu maior inimigo, o inimigo da Igreja. . . Richelieu?

Louis replicou, friamente:

— Madame, peço-lhe perdão, mas o Cardeal não é inimigo da Igreja. Isso é um insulto, um absurdo.

Levado pela indignação, esqueceu-se de que estava diante da Rainha e não de uma mulher histérica e presunçosa. Deitou-lhe um olhar reprovador e desdenhoso. Ela não estava ^costumada a um tal olhar e a uma tal atitude, e, ao mesmo tempo que lhe despertavam a indignação e o espanto, convenciam-na da integridade e da sinceridade do jovem sacerdote. Não obstante, olhou-o como que ultrajada, ofegando.

Louis continuou:

— Sua Eminência foi sempre movido por uma profunda devoção à França. Não se deve duvidar dessa devoção, que se origina do mais fundo do seu coração. No máximo, pode-se questionar a sua prudência. Várias vezes discuti com ele sobre o assunto.

Fez uma pausa e prosseguiu, num tom mais firme:

— Não estou traindo Sua Eminência quando lhe falo disto. Ele conhece bem os meus sentimentos. Estou convencido, porém, de que está errado na sua política de conciliar e aplacar os huguenotes. Por várias vezes disse-lhe que essa política está dando força a esses vis hereges e que, se quisermos salvar a Igreja e a França, eles terão que ser, de uma vez por todas, destruídos, e restauradas a autoridade e a cultura católicas como o poder supremo da Europa. Ele me perguntou se eu gostaria de outra noite de São Barto- lomeu, e eu lhe respondi que sim.

Ao recordar essas palavras, o fogo da fúria e do ódio subiu-lhe aos olhos, e ele ficou como que possuído. Comuniçou essa emoção à Rainha, cujos dentes pequenos e brancos adquiriram uma expressão sedenta.

— Sim! — gritou ela, batendo com as mãos. — Que o sangue dos protestantes inunde todas as sarjetas da Europa!

Olharam um para o outro num transporte de histeria. A mão de Louis procurou a espada. Todo ele tremia visivelmente. A Rainha estava tão agitada, que levou as mãos convulsivamente à garganta e se deixou cair no sofá. Fez-se um terrível silêncio na câmara, enquanto olhavam um para o outro, ofegantes.

Por fim, Louis murmurou:

— Há uma maneira, Madame, de realizarmos a vontade de Deus e destruirmos os hereges: receber Sua Eminência em audiência secreta e tentar convencê-lo.

Ficou espantado com o efeito das suas palavras. A Rainha levantou-se de um pulo, como se impelida por uma mola. Seu rosto ficou branco como uma máscara de gesso, na qual se incrustassem dois inflamados olhos verdes. Até os seus lábios empalideceram. Apertou a garganta com a mão, e o cabelo pareceu eriçar-se. Olhou para Louis com expressão furiosa.

— Como você se atreve? — perguntou, numa voz sufocada. — Como ousa vir à minha presença com essa proposta, seu lacaio de um canalha infame?

Louis recuou. Ergueu a meio a mão, controlandt), a custo, a vontade de esbofetear aquele rosto miúdo e terrível. O esforço para se controlar fez com que começasse a tremer. Forçou-se a mover os lábios, que pareciam de pedra.

— Madame — disse. — Embora Vossa Majestade seja a Rainha, não posso perdoar-lhe essas palavras!

Ela olhou para Louis, incrédula, mais enfurecida ainda.

— Como? Ousa dizer que não me pode perdoar? Sabendo como esse homem me tem perseguido, me tem espionado, me tem difamado, como ousa me dizer isso? ‘Vá, antes que eu chame os guardas e lhe mande encerrar na Bastilha!

Ao ouvir aquele insulto, Louis sentiu o autocontrole ir por água abaixo. Se não lhe tivessem falhado as forças, teria batido nela. Mas não conseguiu fazer nada além de olhá-la com uma expressão tal que ela recuou involuntariamente, agarrando-se à beira da mesa, para não cair. Levou os dedos aos lábios e olhou para ele com visível terror, o colo branco arfando.

Louis ouviu a própria voz dizer, estranha e abafada:

— Esse é um insulto que eu não posso perdoar, Madame, embora venha de Vossa Majestade. Vim até aqui, movido pela fé e pela sinceridade, para pedir-lhe que recebesse o Cardeal e lhe suplicasse que restaurasse a cristandade, acreditando que tivesse alguma influência junto dele. Em troca, recebi o maior dos insultos e ameaças grosseiras. Não posso continuar por mais tempo na presença de Vossa Majestade. Peço-lhe que me deixe partir.

O espanto tomou conta- da Rainha. A mão descaiu-lhe dos lábios. Olhou para ele, incrédula, percebendo que oi jovem sacerdote ignorava totalmente os lascivos desígnios do Cardeal com relação a ela. Como era possível que ele servisse a um tal homem, vivesse em Paris e não tivesse ouvido falar de nada? Mas, aparentemente, era essa a verdade. Não havia duplicidade naquele rosto de mármore, naquele olhar enfurecido e indignado. Umedeceu os lábios. Endireitou-se e contemplou-o com profunda tristeza. Tentou falar, esclarecê-lo, mas, só de pensar em repetir os detalhes da perseguição que o Cardeal lhe movia, as suas faces ficaram em chamas.

— Um momento, Monsenhor — disse, suspirando.

A expressão do seu rosto era agora quase compassiva. Levou as mãos às faces, e o diamante brilhou como uma lágrima. Procurou recuperar a compostura. Louis contemplava-a, espantado, mas ainda cheio de raiva. Por fim, ela deixou cair as mãos e olhou para ele com tristeza.

— Monsenhor, fale-me francamente. Quem o mandou à minha presença? Foi esse... homem?

A fúria de Louis recrudesceu.

— Madame! — exclamou. — Reflita! A simples ideia é absurda, Vossa Majestade há de convir.

Não pôde entender o olhar comprido que a Rainha lhe deitou. Os dentes dela mordiscaram o canto do seu lábio vermelho e saliente. Seus olhos tremeluziram, pensativos. Deixou-se cair no sofá, a cabeça pendente sobre o peito.

— Um momento — murmurou de novo. — Deixe-me pensar, Monsenhor.

Ele esperou, ainda trêmulo da violência das emoções por que acabava de passar. Por fim, após um longo silêncio, Louis disse, numa voz mais controlada, mas ainda urgente:

— Bem sei que Madame tem aversão por Sua Eminência devido à sua política externa. Compreendo isso e acredito que o Cardeal tenha manhas que o levem a seguir uma política que repugna à Madame precisamente por esse fato. Ouvi dizer que Sua Eminência não gosta de Madame, no que é plenamente correspondido. Sei que receber Sua Eminência será para Vossa Majestade um sacrifício. Não obstante, peço-lhe que o receba, esquecendo todas as considerações de ordem pessoal e recordando apenas que o sacrifício das nossas aversões, dos nossos instintos e das nossas reservas é um preço pequeno a pagar pela realização dos nossos mais profundos desejos.

A Rainha ergueu a mão, e de novo os seus olhos brilharam de fúria. Mas, vendo a gravidade, a solenidade de Louis, mordeu o lábio e nada disse. Pôs-se lentamente de pé, foi até à janela coberta por tapeçarias e parou, sempre sem falar. Louis viu que toda ela tremia e que escondera o rosto nas mãos. Algo de inexplicável estava acontecendo, e ele sentiu piedade e perplexidade ao mesmo tempo.

Disse, suavemente:

— Vossa Majestade deve refletir nos graves problemas envolvidos na sua decisão. E compreender que não deve obstar à solução desses problemas.

Ela voltou-se devagar para ele. Louis viu-lhe os olhos marejados de lágrimas, que lhe escorriam pelas faces. Parecia uma vítima à espera de ser imolada. Louis pensou: Quanta emoção, quanto desespero, para uma simples concessão de audiência! E sentiu desprezo pela jovem Rainha.

Ela disse, numa voz trêmula de lágrimas:

— Já refleti. Vejo claramente o que tenho de fazer. Mas só Deus sabe com que sacrifício tomei a minha decisão, com que aversão, com que horror e com que nojo! Como poderei suportar... ?

Estacou, e de novo as suas faces ficaram vermelhas de vergonha. Mas logo ergueu a pequena cabeça e disse, com terrível coragem:

— Direi a Sua Eminência que compareça à minha presença amanhã.

Ao voltar ao Palácio Cardinalício, Louis encontrou o capuchi- nha à sua espera, em seu quarto. Relatou o que acontecera, e a sua voz e a sua atitude expressavam o espanto e o desprezo que sentia pelas extremas emoções demonstradas pela Rainha. O capuchinho ouviu tudo com a maior atenção e, quando Louis terminou, deixou- se cair no banco de madeira e tapou os olhos com a mão calosa.

Por fim, deixou cair a mão e olhou em silêncio para Louis. A expressão dos seus olhos era sombria, e havia neles uma misteriosa névoa vermelha-, como que formada por lágrimas de sangue.


Capítulo XIX

Ana da Áustria escolhera a hora em que o Rei, seu marido, estava caçando, para receber o Cardeal.

Despediu as aias e dirigiu-se, trêmula, para a pequena sala onde recebera Louis de Richepin. Com um volumoso vestido azul de peitilho prateado, as pérolas ressaltando-lhe a garganta juvenil, a luz dourando-lhe a bela cabeleira, a sua aparência era a de uma menina indefesa. Seu rosto estava muito branco, e nele a boca vermelha e carnuda, típica dos Habsburgo, se destacava como uma flor. De vez em quando, toda ela era tomada por uma incontrolável agitação e, erguendo-se do sofá, apertava convulsivamente as mãos e andava de um lado para o outro, gemendo baixinho e mordendo histericamente o lábio inferior. Estremecia só de pensar em Richelieu, que não só lhe inspirava ódio com a sua política externa, como lhe causava uma forte aversão física. Sabia das histórias galantes que se contavam a respeito dele, e ouvira falar, em voz murmurada, de detalhes escandalosos da sua associação com a mãe do Rei, Maria de Médici. Desprezando a sogra e influenciada pelas horríveis histórias que seu marido contava a respeito da mãe, a Rainha não podia deixar de sentir repulsa pelo Cardeal.

Enquanto esperava, sentia-se tomada por um tal horror e por uma tal repugnância que de vez em quando se dirigia para a porta que levava aos seus aposentos, numa involuntária tentativa de fuga. Mas, como que obedecendo a uma ordem, estacava, a mão já na maçaneta e tremendo de maneira tão violenta, que quase caía. Mais de uma vez ajoelhara-se, pedindo desesperadamente a Deus que a ajudasse a vencer a prova que a esperava, rezando para que o Cardeal não pudesse comparecer à entrevista. Depois, um pouco mais confortada, forçava-se a ficar de pé e enxugava as lágrimas amargas.

Quando ouviu bater de manso à porta, ficou um longo momento sem poder falar. Seus lábios se abriram, pálidos de morte, mas nenhum som saiu deles. O coração parecia estourar-lhe no peito. Estava certa de que iria desmaiar. Não percebèu que tinha falado, mas, como num horrível pesadelo, viu a porta abrir-se silenciosamente e o Cardeal aparecer na soleira. Os olhos dela dilataram-se, como os de uma corça, ao ver o caçador impiedoso, e sentiu um arrepio perpassá-la.

O Cardeal enfrentara um delicado dilema, essa manhã. Perplexo, mal acreditando no chamado da Rainha, hesitara em como se deveria vestir para a entrevista. Se comparecesse nos seus majestosos trajes eclesiásticos, ela ficaria impressionada e horrorizada com qualquer gesto ou dito amoroso da sua parte. Se se vestisse como soldado, sua indumentária preferida, ela o receberia como um homem particularmente detestado. Mas, se fosse vestido como um padre, ela se submeteria, embora relutantemente, à sua autoridade. Ele teria mais poder sobre ela, mas não como homem. Percebeu que devia ir investido de autoridade, mas de uma autoridade que não a inibisse.

Como grande parte dos seus sofrimentos físicos se devia à vitalidade anormal da sua mente, os acontecimentos tinham o poder de prostrá-lo ou dar-lhe forças. Acordara, nessa manhã, com uma profunda sensação de doença e exaustão, a tal ponto, que temia que a morte estivesse iminente. Ficara deitado, olhando para a janela, mal respirando. Quando Louis de Richepin entrara, o Cardeal fechara os olhos, e erguera fracamente a mão e falara, numa voz débil:

— Nada de audiências hoje, Louis. Diga isso a quem estiver esperando.

Louis hesitara. Na sua mão havia uma carta pequena, escrita em papel azul-pálido e perfumado, e lacrada com o sinete da família real.

— Direi — retrucara. — Mas tenho aqui uma carta dirigida a Vossa Eminência e selada com as armas do Rei.

As pálpebras do Cardeal tinham-se fechado com tal força que a sua pele delicada se enrugara à volta dos olhos.

— Mais um convite para aquela abominável matança a que o Rei dá o nome de caçada! — gemera ele. — Abra-a, Louis, não estou em condições de ler.

— Não acho que a carta seja do Rei — retrucara Louis.

— O quê?

Os olhos do Cardeal abriram-se, revelando toda a sua força inexaurível. Soerguera-se, o rubor subindo-lhe ao rosto magro, e estendera a mão para a carta.

Seus dedos tremiam tão violentamente que ele quase não podia abri-la. Seus olhos devoraram as poucas palavras que ela continha, com uma fome voraz e incrédula. De repente, pusera-se a rir estrepitosamente.

Imediatamente, uma incrível metamorfose tomara conta dele. A exaustão desaparecera num arroubo de vitalidade e alegria. A palidez fora substituída por uma cor viva, e as rugas em volta da sua boca frágil e da testa alta tinham desaparecido. Uma enorme aura de vida e força irradiava dele. Parecia muitos anos mais moço. Pulara da cama, rindo incontrolavelmente, com um brilho mau no olhar.

— Até que enfim! — exclamara e olhara para Louis com tal exuberância, que o jovem sacerdote ficara espantado.

— Que horas são, Louis? — perguntara o Cardeal, impaciente.

— Quase dez, Eminência.

— O quê? A audiência é às onze! Chame logo o meu valet e os lacaios! Não tenho um minuto a perder.

Louis estava cada vez mais espantado. Não podia entender a excitação, a vitalidade, o riso descontrolado de Richelieu, ao receber a carta da Rainha. Procurou perceber triunfo, malícia ou gravidade na atitude do Cardeal, ou qualquer outra reação que um diplomata desprezado pudesse revelar, ao ser chamado por um monarca desdenhoso. Mas o Cardeal não mostrava nenhum desses sintomas. Havia algo de pessoal, de violentamente incontrolável e perverso, algo de particular na sua reação. Qual a razão, se todo mundo sabia que ele desprezava “a espanhola” e a difamava indecentemente? Louis temera, algumas horas antes, que o Cardeal se negasse a comparecer à audiência, sabendo que a jovem Rainha não tinha forças para obrigá-lo a ir.

Esquecendo-se por completo de Louis, o Cardeal meditava sobre que roupa vestir. Amaldiçoava o valet e as sugestões que ele lhe dava. Não era mais o maquiavélico homem da Igreja, o homem que mandava na França, e sim um simples homem nervoso e excitado. Louis, mais intrigado do que nunca, não podia entender aquelas dúvidas, hesitações e discussões com os criados a propósito de roupa. Mas algo obscuro e indescritível crescia dentro dele, sentado junto da janela, contemplando o que se passava no quarto. Pela primeira vez, não sentia respeito, medo ou reverência pelo Cardeal, e sim algo parecido com um sentimento de impaciência e superioridade. O Cardeal revelava-se em toda a sua fraqueza humana, sem se preocupar com isso, mergulhado apenas nas suas fúteis preocupações.

Finalmente, após exaustivas discussões, chegara-se a uma conclusão quanto à indumentária. Seria ao mesmo tempo severa e elegante, de veludo negro, própria tanto do homem de Igreja quanto do aristocrata. A gola e os punhos eram da mais fina renda, delicada como uma teia de prata. O Cardeal escolheu uma espada recamada de pedrarias. Resplandecente no seu manto, no chapéu emplumado, nas suas botas reluzentes, com os dedos cheios de anéis, possuídos de vitalidade febril, os olhos dardejando triunfo e poder, a sua aparência era realmente impressionante. Ninguém, ao vê-lo assim, poderia ter acreditado que ali estava um homem doente e que, há uma hora antes, se sentira à beira da morte.

Uma última nuvem de perfume em volta dos ombros, um toque de pomada perfumada no seu nobre cavanhaque, o detalhe de um lenço circundado de renda, e o Cardeal estava pronto para a sua audiência com a Rainha. Nunca parecera tão elegante, tão viril e tão jovem. A força quase sobre-humana que emanava dele era espantosa. Olhou-se minuciosamente no espelho e sorriu, satisfeito.

Quando ele saiu, o quarto ficou por muito tempo como que impregnado das vibrações magnéticas da sua pessoa — vibrações essas que afetaram Louis extraordinariamente. Sentia-se estranhamente exausto. De repente, estremeceu. Esqueceu o Cardeal. Olhou, peja janela, para a manhã dourada, e um calor subiu-lhe às faces frias. Levantou-se, trêmulo. Caminhou até à porta, hesitou, respirou fundo e saiu.

Entrementes, o Cardeal chegava ao Louvre na sua luxuosa carruagem e era conduzido aos aposentos da Rainha. Não se permitira conjeturar, durante o breve trajeto. Bastava-lhe pensar na jovem mulher que o chamara à sua presença.

A Rainha estava tão paralisada pelo medo, pelo ódio e pela aversão que, ao ver diante de si o inexorável inimigo, ficou sentada no sofá, encarando-o com o olhar fixo de unia bela imagem. Nunca ele lhe parecera tão alto, tão assustador, diabólico e terrível, quanto naquele momento. Ali estava um homem e não um sacerdote, e essa constatação ainda mais a apavorou. Precisou recordar a si própria que o tinha chamado para discutir um assunto de suma gravidade, ou ter-se-ia levantado e fugido dali.

Uma olhadela rápida certificou-o de que a Rainha estava só. Poucas vezes a vira, e sempre à luz artificial, em salões de baile ou em recepções. Agora, à luz da manhã, sem a ajuda de pós ou de ruges, ela parecia ainda mais encantadora, mais jovem e mais doce. Sabia que ela era uma boba, histérica, supersticiosa, fútil e imprevisível. Richelieu não era desses homens que preferem mulheres tontas, pois tinha um profundo respeito pela raridade da inteligência humana; se a Rainha fosse menos bela, menos jovem e menos desejável, ele a teria desprezado e se declarado seu inimigo por causa do seu intelecto inferior. Mesmo nos momentos em que mais a desejava, ele a destestava pela sua cabeça-de-vento e pela sua falta de inteligência. Mas, naquela manhã, ela estava tão fresca, tão jovem, tão encantadora que ele se esquecer de que a detestava intelectualmente e sentiu em si aquela fome que lhe advinha com crescente raridade, à medida que o tempo ia passando. Sentiu-se grato a ela por ter o poder de despertá-lo, de reafirmar nele a esperança de que ainda não estava próximo do fim.

O Cardeal tinha a notável capacidade de encher um ambiente com a aura da sua presença. A apavorada Rainha teve a impressão de ver, diante de si, uma enorme ave de rapina, cujas asas escuras faziam vibrar as paredes e o teto, cujos olhos a devoravam, cujo vulto tapava o próprio sol.

Fez uma profunda reverência e avançou para ela. Só quando já estava diante da Rainha é que ele lhe estendeu a mão fria e pequena. Ao sentir os lábios dele roçar-lhe a pele alva e macia, ela estremeceu e fechou os olhos, repugnada. Ele tirara o manto e o chapéu e, sem a batina de cardeal, parecia mais perigoso do que nunca.

Falou em voz baixa, mas os seus olhos de gato ardiam.

— Madame, mal pude acreditar, esta manhã, que me houvesse mandado chamar. Há muito tempo ansiava por esta oportunidade.

Lembrando-se da sua missão, Ana da Áustria forçou um sorriso, que lhe saiu como uma careta dolorosa. Obrigou-se a olhar para ele, e o brilho verde dos seus olhos era febril.

— Ninguém manda chamar alguém de quem se está convencido de que é seu inimigo — murmurou ela por entre os lábios ressequidos, rezando para que o bater descompassado do seu coração diminuísse.

— Inimigo, Madame! — exclamou Richelieu, simulando incredulidade. — Eu, Madame, eu, que sempre lutei para tornar a vida de Vossa Majestade tranquila e segura, para defender Vossa Majestade contra os seus inimigos?

Diante daquela hipocrisia, daquela mentira deslavada, a jovem Rainha não pôde mais se controlar. Pôs-se de pé e levou as mãos ao peito, o rosto em chamas, ofegante.

— Monsieur le Duc, peço-lhe que me poupe essa dissimulação! Não passo de uma mulher jovem e ignorante, mas nem a mim passaram despercebidas a perseguição que me faz, a sua inimizade, as suas infâmias e chacotas contra a minha pessoa! Quando se mostrou meu amigo? Influenciou o meu marido contra mim, induziu-o a me olhar com vergonhosa desconfiança. Afastou os meus amigos de mim e promoveu o assassinato dos Concinis, criados da mãe de Sua Majestade! Tornou-me uma mulher sem amigos numa terra inimiga, a tal ponto que mal ouso murmurar as minhas orações, com medo de que um dos seus espiões lhe faça chegar as minhas lágrimas e as minhas súplicas! Tremo diante das sombras, fujo ao roçagar de uma cortina. Colocou agentes por todos os lados, fazendo com que eu suspeite de todos os sorrisos, de todos os gestos de amizade, de todos os suspiros de compaixão. Por que fez tudo isso? — perguntou ela, rompendo em lágrimas. — Que há em mim que inspire um tal ódio e um tal desejo de vingança num sacerdote da Igreja à qual ambos servimos? De que maneira o ofendi?

O Cardeal não se deixou mover por essas manifestações de dor, histeria e indignação. Nunca se sentia mais seguro de si do que quando os outros perdiam o autocontrole. Assumiu uma expressão de surpresa e fria dignidade.

— Madame, é mais do que evidente que os meus inimigos me difamam junto à sua pessoa. Estou sempre a serviço do trono e da França. Nem os meus inimigos podem negar isso.

Estava encantado com a paixão que inflamava a jovem Rainha, aumentando-lhe a beleza. Fixou os olhos, por um momento, no seu colo alvo e macio, que arfava a ponto de ameaçar pular do generoso decote. Nunca ela lhe parecera tão desejável, tão voluptuosa, e as veias das suas têmporas magras e delicadas incharam de concupiscência.

Ela exclamou, batendo com as mãos uma na outra:

— Sim, Monsenhor, sempre serviu à França! Mas o que representa a França para mim?

Mal tinha pronunciado essas palavras impetuosas e perigosas, deu-se conta do que dissera e levou os dedos à boca, num gesto de terror. Por sobre os dedos, os olhos verdes contemplavam-no com uma expressão apavorada.

Mas, aparentemente, ele não lhes atribuíra importância. Olhou para a Rainha gravemente, inclinando a cabeça como se pensasse. Por fim, disse:

— Vossa Majestade está transtornada por alguma razão misteriosa e não é responsável pelo que diz, tenho a certeza. Por isso, já esqueci o que ouvi. É com o mesmo espírito de perdão que recebo as acusações de Vossa Majestade.

Mas a jovem Rainha estava completamente transtornada pelo terror. Deixou-se cair no sofá, tremendo, mais pálida do que as pérolas que lhe adornavam a garganta. O Cardeal contemplou-a com satisfação. Era assim que ele a queria, temendo-o, sabendo que estava irremediavelmente em seu poder. Só assim ela se lhe entregaria totalmente.

Foi com um supremo esforço que Ana conseguiu controlar os seus tremores, o seu terror mortal. Rezando desesperadamente, forçou-se a olhar para o Cardeal com um simulacro do seu orgulho habitual, embora tivesse os lábios entorpecidos.

— As suas perseguições contra mim, Monsenhor, estão esquecidas, perdoadas, porque sou uma pobre mulher indefesa. Deixo à sua consciência o encargo de se punir. Mas o pouco caso que vota aos desejos do Santo Padre não pode ser perdoado. A sua conciliação com vis huguenotes, a sua amizade com os inimigos da nossa Igreja são ofensas a Deus. O dever me compeliu a lhe dar esta audiência, para lhe pedir que considere, que reflita, antes que tudo esteja perdido.

Ah!, pensou o Cardeal, com raiva e desprezo, agora entendo!

As palavras da jovem Rainha tinham-lhe dado coragem. Perdeu o medo e olhou para ele com desdém e indignação.

Richelieu sentou-se calmamente, sem pedir licença e, naquela postura lânguida, a mão fina e branca pousada negligentemente sobre o joelho, parecia ainda mais formidável do que de pé. Disse, como se falasse com uma criança:

— Madame deve compreender que tudo o que eu faço é pelo bem da França. Os huguenotes não me repugnam menos do que a Vossa Majestade. Não obstante, a segurança, a unidade e a paz da França dependem de uma política de conciliação temporária.

Fez uma pausa e acrescentou, com indulgência:

— Vossa Majestade tem alguma sugestão a fazer?

Quando ele falara da França, uma careta de desdém, até mesmo de ódio, passara pelo rosto da rainha, e ela erguera a cabeça num gesto de desprezo. Exclamou:

— De que lhe servirão as minhas sugestões? Que dirá quando lhe pedir que se alie aos Habsburgo, a fim de destruir, aniquilar, exilar e queimar todos os protestantes, conforme o desejo de um verdadeiro católico? Sem dúvida — acrescentou ela, com um sorriso desdenhoso — Vossa Eminência não ignora que a política de Roma deve ser sempre a completa destruição da heresia protestante, até o último dia do mundo e onde quer que essa heresia se manifeste.

— Sei muito bem disso, Madame — retrucou gravemente Richelieu.

Ela foi ficando cada vez mais excitada.

— Como pode, então, persistir na sua política? — Sorriu de novo, com desdém. — Sem dúvida sabe que a segurança da sua querida França corre perigo devido à existência, dentro dela, desses hereges, não?

O Cardeal não respondeu. A sua atitude, ao olhar para a Rainha, era lânguida e negligente. Mas, nos seus olhos de tigre, havia um brilho calculista, que a Rainha, entregue às suas visões de vingança e de rancor, não percebeu.

Ele pensou, consigo mesmo: É nas mãos de idiotas perigosos, como ela, de criaturas fracas e consumidas pelo ódio, que muitas vezes está o destino do mundo.

Mas logo sentiu desprezo por si próprio. Ele, o verdadeiro senhor da França, o homem mais temido e odiado da Europa, atraído para os aposentos perfumados de uma mulher estúpida, ouvindo as suas imbecilidades, os seus planos de traição! Contudo, apesar do desprezo que por si mesmo sentia, observava o brilho de fúria e crueldade nos olhos verdes da Rainha e experimentava a mescla de dor e aversão que sempre sentia, quando descobria as mesquinharias, a maldade e o ódio inerentes a humanidade.

De repente, disse para si mesmo: Preciso esquecer que ela é uma conspiradora, um instrumento dos Habsburgo. Estou aqui porque ela é mulher e eu a desejo, e sonho com ela nua nos meus braços.

Sorriu.

— A preocupação de Vossa Majestade com a França toca um coração que sempre se dedicou, acima de tudo, à pátria.

O olhar dela hesitou, desviou-se. Umedeceu os lábios subitamente ressequidos. Lembrou-se de uma carta que ele interceptara, uma carta que ela escrevera ao irmão, Felipe da Espanha, e na qual lhe pedira, de acordo com os Habsburgo, que atacasse a França a fim de exterminar os protestantes. E ele percebeu que ela se lembrara disso.

Falou, suavemente:

— Ainda não estou convencido de que a extirpação dos protestantes na França seja necessária à consolidação da Europa e à segurança da Santa Madre Igreja. Penso, pelo contrário, que um ataque contra os huguenotes, a esta altura dos acontecimentos, precipitaria um ataque da Inglaterra à França, o que deve ser evitado a todo custo. Pense no que aconteceria se atacássemos La Rochelle: Buckingham enviaria a prometida ajuda aos rebeldes e precipitaria um recrudescimento da guerra civil.

Enquanto ele dizia isso, na mais mansa das vozes, observava-a com olhos de lince. Ela encarou-o, os olhos brilhantes de triunfo malévolo. Riu alto e inclinou-se para ele.

— Mas Monsieur le Duc de Buckingham prometeu-me que não enviaria qualquer ajuda aos rochelenses, caso os hereges fossem atacados!

O sangue subiu à cabeça do Cardeal. Então era verdade que a sem-vergonha estava em contato com o seu amante inglês, conforme ele, Richelieu, suspeitara! Transtornado pelo fogo do ciúme, sentiu ímpetos de estrangulá-la. Mas logo a sua fúria se transformou numa vontade enorme de rir, de rir bem alto. Aquela miserável mulher, com as armas dos seus ombros, dos seus braços, das suas mãos, do seu colo branco e dos seus lábios vermelhos, podia seduzir com tanta facilidade um nobre protestante inglês a ponto de fazê-lo esquecer as suas lealdades raciais e religiosas! Mais mundos se perderam num corpo de mulher do que sonham os historiadores, pensou o Cardeal, e voltou a sentir o mesmo desprezo e ódio que sempre se seguiam a cada nova descoberta da venalidade e da pequenez humanas.

Não obstante, a sua mente fria de político não podia deixar de exultar. Não precisava mais temer Buckingham e os seus soldados ingleses. A devassa espanhola prestara, sem o saber, um grande serviço à França, um serviço que a teria enchido de raiva e arrependimento. Ele sempre se movera cautelosamente, por causa de Buckingham, temendo os gélidos olhos ingleses do outro lado do Canal. Agora, a Rainha tornara os ingleses impotentes, imobilizara-lhes a esquadra. E tudo isso porque a sua carne era quente e nívea; e os seus lábios, frescos como uma rosa matutina.

Agora, ele, o Cardeal, agiria sem medo, sabendo que a Inglaterra não interferiria, como de costume, nos negócios da Europa. Seus olhos brilharam de exaltação.

Mas a Rainha, em troca, sentia-se outra vez tomada de pavor. De novo atraiçoara a si própria. Sabia que o Cardeal a acusara, por toda a França, de ser amante de Buckingham. Durante meses, defendera-se valentemente, mantendo que nunca se comunicara com Buckingham desde que ele fugira da França, que as relações entre eles eram apenas as de um embaixador e uma Rainha. Agora, imprudentemente, confessara o seu contato com o inglês. Levantou-se com um grito abafado e uma expressão de quem está morrendo de medo.

O Cardeal percebeu isso. Ergueu-se, aproximou-se da Rainha e tomou-lhe a mão fria e trêmula, que ela recolheu instintivamente, num movimento de repulsa.

— Madame — murmurou ele, os olhos fixos na brancura do seu colo —, não tenho palavras para lhe expressar a minha gratidão. Graças à fé e à sua dedicação à causa da França e da Igreja, conseguiu paralisar o nosso maior inimigo. Confesso-lhe que não sou capaz de exprimir a minha alegria. Só posso curvar-me diante de tamanho sacrifício, de tanta sabedoria, de tão nobre imolação.

Ela ouviu aquelas palavras extraordinárias, os cílios dourados erguendo-se e abaixando-se rapidamente, os sentidos como que flutuando. O coração batia-lhe de medo. Mal podia entender o que ouvia. Mas, pouco a pouco, foi-se apercebendo de que o Cardeal não a estava ameaçando e nem exultando com o seu pavor, e sim expressando gratidão, alegria e triunfo, atraindo-a, com ele, para uma conspiração. E, na sua falta de inteligência, ela não duvidou de que a conspiração fosse contra todos os protestantes.

Um leve sorriso de vaidade, de incerteza, de orgulho, transpareceu-lhe nos lábios pálidos, que aos poucos foram retomando a cor normal. Inclinou a cabeça para o lado, apertou a boca, deitou ao Cardeal um olhar conspirador. Richelieu assistia a tudo isso com desprezo interior.

Seu desejo por ela aumentou. Sabia que, no prazer que teria com ela, haveria também um elemento de satisfação mental. Seria o seu triunfo sobre uma manobradora idiota. Conquistando-a, ele conquistaria, simbolicamente, todas as miseráveis criaturas que odiava e desprezava, todos os seus inimigos e os intrigantes, todos os pobres-diabos impotentes que ele tanto desdenhava e que ameaçavam a França.

Chegou-se mais perto dela, e os sentidos falaram mais alto. Esqueceu tudo, na proximidade daquele corpo jovem, na fragrância do seu hálito, no calor da sua boca. Ainda cheia de piedoso orgulho, ela não recuou. Seus olhos estavam ofuscados por uma névoa triunfante e pensativa.

— O menor desejo de Madame é sagrado para mim — murmurou o Cardeal.

Vislumbrou, entre os seios dela, uma pequena área de cetim quente e níveo. A sua garganta tinha uma delicada translucidez, como se fosse de madrepérola. Suas bocas estavam tão próximas, que o hálito de ambos se confundia.

Por fim, a pobre mulher notou algo: o olhar dele, o suor que lhe porejava a testa alta, a sua proximidade. Procurou recuar, de novo empalidecendo. Mas ele deteve-a com a mão e com o olhar.

— Madame não tem mais que ordenar — murmurou.

Ela exclamou, por entre lábios trêmulos, os olhos se dilatando:

— Vossa Eminência bem sabe dos meus desejos!

Mas o grito era mecânico. Retorceu a mão, num esforço dè- sesperado para fugir.

— Os desejos de Madame serão realizados — prometeu ele, com a maior solenidade.

— Deus o recompensará, Monsenhor — murmurou ela.

Ele suspirou profundamente, sem tirar os olhos dos dela.

— E Madame? — sussurrou.

Fez-se silêncio na sala. A mão que ele segurava ficou outra vez gelada. As belas faces empalideceram, e linhas azuladas contornaram-lhe os lábios.

Pela primeira vez, a pobre criatura apercebeu-se da enormidade das circunstâncias em que se via enredada, para a qual fora levada pelos seus ódios, pela sua infelicidade, pelas suas frustrações, pelo seu desespero e pelas maquinações de padres que ignoravam a frágil sensibilidade de uma mulher, tendo em vista apenas o fim sangrento para o qual viviam e pelo qual trabalhavam infatigavelmente.

Mas ela fora por muito tempo a débil escrava de uma organização implacável, que sacrificava o coração e o sangue das suas vítimas com fria precisão, sempre que essas vítimas ameaçavam os seus sinistros desígnios. Não se podia revoltar. Nesse simples pensamento já residia o pecado mortal e, embora tremesse diante do Cardeal, procurasse lhe escapar, estava cônscia da sua culpa.

Não obstante, fez um último esforço para se libertar.

— A recompensa de Deus não é o suficiente para Monsieur le Duc? — perguntou, numa voz sumida.

Ele suspirou de novo, profundamente.

— Ah, Madame! — limitou-se a dizer.

Assistia à luta da Rainha consigo mesma com ar grave, mas divertindo-se intimamente. Via como ela tremia, como as suas pálpebras brancas tremulavam sobre os olhos apavorados.

A voz dela quase não se ouvia.

— Monsieur verá que não sou ingrata.

Ele tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios. Parecia a mão de uma morta, fria e rígida. Sem largá-la, murmurou:

— Madame não daria ao mais humilde dos seus servidores alguma lembrança?

— Que deseja? — sussurrou ela.

No decote prateado do vestido, entre os seios havia uma laçada de fita azul, costurada com pequenas pérolas. Ao ver ò olhar dele cravado nela, Ana da Áustria desatou a fita com dedos entorpecidos e deu-lha. Richelieu apertou-a ardentemente contra os lábios, enquanto o seu olhar a penetrava, sorridente e malévolo.

— Esta noite? — murmurou.

Quando, por fim, ele se foi, ela ficou de pé, no centro da sala, demasiado horrorizada para se poder mover. Finalmente, com um grito, atirou-se sobre o sofá e rompeu a soluçar.

Passado algum tempo, o rosto exangue e descolorido, pôs-se de joelhos e começou a rezar, os lábios movendo-se numa prece muda e desesperada. Mas, à medida que orava, a sua agonia diminuía. Começou a sorrir. Diante dos seus olhos, passou uma visão: as ruas de Paris, de todas as cidades do mundo, vermelhas do sangue dos protestantes e, pairando sobre elas, a figura de um arcanjo vingador, empunhando um cruz reluzente e gigantesca.


Capítulo XX

Louis de Richepin teve a impressão, ao entrar no Bois de Boulogne, de que mergulhara num mundo luminoso, que flutuava, silencioso, debaixo de mares verdes e serenos. Nele a luz do sol penetrava apenas como um clarão esmeralda, e as aleias formadas pelas árvores pareciam cavernas cheias de água translúcida. Era um mundo irreal, imóvel, de onde se podia esperar que estranhas criaturas saíssem, nadando com movimentos graciosos, de grutas escondidas, parando por um momento e depois deslizando com um cintilar de escamas reluzentes, ou apenas um breve movimento, que se diluía no silêncio verde. A espessa vegetação lembrava o fundo do mar, tal a sua imobilidade e frescura. Até os pássaros pareciam quietos. Nenhum sopro quente vinha da terra e, quando um som perturbava a quietude geral, era como se um nadador se movesse num sonho.

À medida que Louis entrava cada vez mais fundo nos caminhos do bosque, ia perdendo completamente o sentido de identidade. A pesada umidade, a luz radiante e esverdeada, a misteriosa calma engolfavam-no. Não sentia a terra úmida e esponjosa debaixo dos pés. Como que perdia o peso da sua carne, a pressão do seu cansaço, o sentimento de solidão que lhe imbuía todos os pensamentos. O atalho que ele atravessava, cada vez mais fundo, na neblina verde, e as sombras se mesclavam num santuário de paz. Os pensamentos dele tornaram-se difusos, informes, dando a sensação de flutuarem sobre um lago, e ele sentia como que um alívio, como se estivesse se afogando e tivesse resolvido soltar a última palha, não lutar mais.

De repente, em meio à neblina verde, viu o vulto de uma sereia, cuja volumosa indumentária era da mesma cor da luz que tudo invadia, pousada levemente num monte de rochas pretas. Os seus cabelos pareciam dourados, à verde translucidez, e caíam-lhe sobre os ombros delicados, e o rosto, o pescoço e os braços eram de mármore branco, bruxuleando na água, roçados pelas penas da luz do sol.

Mais de cem vezes, desde que deixara o ruído e a turbulência do Palácio Cardinalício, ele antecipara aquele momento, em que voltaria a ver Marguerite de Tremblant, e a dor, o êxtase, o medo o tinham detido, como se houvesse recebido um golpe no peito. Mais de dez vezes pensara recuar, a meio-caminho, Quando resolvera prosseguir, fora como um homem drogado, levado a mover-se por uma força superior. Chegara a pedir a Deus que ela não estivesse lá, que se tivesse cansado de esperar por ele, que ele encontrasse apenas um espaço vazio, ao chegar às grandes rochas. A tal ponto que, no fundo, fora apenas a esperança de que ela não tivesse ido quê o levara a entrar no bosque.

Mas, quando a viu em cima daquelas pedras, imóvel, brilhando à luz verde e aquática de um mundo submarino, não sentiu choque, alegria ou medo. Avançou para ela como se arrastado por uma corrente irresistível e não sentiu senão a mais doce paz e o êxtase mais completo. Algo lhe murmurava ao ouvido, algo quente e urgente, mas ele resolveu não lhe dar atenção.

Ela não sorriu, quando o viu na base das rochas, contemplan- do-a. Inclinou-se para ele, curvando o pescoço, pelo qual deslizavam os cachos cor de cobre, e deu-lhe a mão. Estava fresca e macia, mas, ao seu toque, uma corrente de fogo perpassou-lhe a pele. Os olhos dela fixaram-se nos dele, pontilhados de luz, a sua cor castanha invadida por centelhas de ouro vivo. Seus lábios rosados se abriram e ela suspirou.

Tão frágil se tornara que a sua carne parecia transparente e iluminada pelo clarão febril do seu espírito. Com a aguda percepção do amor, Louis sentiu como que um pressentimento que o encheu de angústia e terror. Levou a mão dela aos lábios, beijando-lhe delirantemente a palma, cada dedo e, finalmente, o pulso branco e delicado, no qual as veias pulsavam com uma vida desesperada. Sentiu o leve toque da sua outra mão, 'sbbre a própria cabeça inclinada. E, de repente, ela puxou-lhe a cabeça convulsivamente para o seio, segurando-a num supremo e puro gesto de amor.

Ficaram ali, abraçados como se formassem um só ser, e Louis ouviu o tremor do coração dela. Uma a uma, lágrimas quentes rolavam-lhe dos olhos para as faces' dele. Louis sentiu nela uma infinita piedade, a mais delicada das paixões, a mais terna compreensão. O terror mantinha-o imóvel mas, nos braços dela, como que fazia parte do êxtase do seu amor.

Não disseram nada. Ficaram ali, sentados, abraçados, a cabeça dela apoiada no ombro dele. Olharam para as distâncias verdes, agora mais escuras, pois o sol se escondera atrás de uma nuvem. A sombra estava mais sombria, mais profunda, mais recolhida sob a terra, mais imóvel. O espírito dele fazia parte dela, ainda pulsando de sofrimento, mas tão cheio de encantamento, que era como uma dor adormecida por sedativos. Não havia mais nada em toda a eternidade, senão aqueles estranhos silêncios e aquelas sombras imóveis, quais barreiras impenetráveis entre eles e o mundo, isolando-os para sempre da solidão e do cansaço.

Louis pegou-lhe num cacho e pôs-se a brincar amorosamente com ele. Beijou-lhe toda a perfumada extensão, até chegar aos lábios dela. Suas bocas se encontraram simples e inevitavelmente, com pureza e doçura.

Por fim, ele tentou falar, mas ela levou-lhe os dedos trêmulos aos lábios e sorriu, através das lágrimas que lhe marejavam os olhos.

— Não — murmurou —, não vamos dizer nada.

Passou-se uma hora, e depois outra, e eles continuaram ali, sem se mover, acariciando-se apenas. Tudo o mais não era nada, deixara de existir.

 

Capítulo XXI

Monsieur le Marques du Vaubon afundou mais e mais debaixo das cobertas de seda, até aparecerem apenas os seus olhos, pequenos e maliciosos, por sobre as dobras. Sentia-se muito desconfortável. Uma profunda ruga dividia-lhe as sobrancelhas tingidas. Mas havia um brilho malévolo nos olhares que ele dardejava a Louis, seu filho, sentado junto das janelas, cujos cortinados de seda impediam a entrada do sol quente da tarde. U

Uma das crenças mais arraigadas do marquês era a de que as horas matutinas, para ele, eram invioláveis, sacrossantas, e de que nenhuma pessoa dotada de delicadeza e discrição pensaria sequer em invadi-las. Era nessas horas que o organismo exausto podia repousar, oculto sob as cortinas do leito, com um pano molhado èm água fria sobre a testa febril e dolorida. Necessitava-se ãpenas de um lacaio com passos silenciosos, que atendesse sem erguer os olhos e sem falar. Mais tarde, talvez uma massagem, um caldo quente, um borrifar de colônia refrescante, outro período de repouso, e um homem estava outra yez pronto para enfrentar o mundo.

A indignação do marquês aumentou. Como se não bastasse sentir-se nauseado e ter um gosto horrível na boca, ainda tivera esse período invadido por alguém que, na melhor das hipóteses, nada fazia para levantar o ânimo de um homem. Louis sabia muito bem que seu pai não recebia ninguém antes que o sol estivesse para se pôr. Mas, naquela manhã, insistira, imperturbável, em ver o pai. Agora, estava sentado perto das janelas, calado, as mãos calmas e castas enfiadas nas pregas da batina, os olhos grandes e sossegados fitando os do marquês sem qualquer sombra de expressão!

Contudo, a curiosidade cresceu no espírito do marquês. Havia algo de estranho, essa manhã, naquele abominável Louis. Algo de menos rígido, de menos marmóreo, de menos implacável. De vez em quando, havia uma certa suavidade, um quase implorar no seu olhar, uma tímida interrogação. Parecia querer falar, impulsivamente, mas essa inclinação era silenciada pelos olhares irados e irritados do marquês. O mais espantoso, porém, era que aquele rosto pálido e imóvel parecia quase humano, a ponto de um leve e indeciso sorriso lhe aflorar aos lábios, que pela primeira vez mostravam ser de carne.

— Não havia necessidade de invadir os meus aposentos a esta hora do dia! — exclamou o marquês, pela segunda vez. — Você não tem nenhuma compreensão, Louis, nenhuma sutileza. Arsène ainda não voltou da caçada, mas você podia muito bem ter esperado nos aposentos dele, sem me incomodar.

— São quase três horas — replicou Louis, naquela voz suave que sempre reservava para o pai.

O marquês ficou espantado de ouvi-lo como que pedir desculpas, coisa rara em Louis.

— O senhor geralmente se levanta bem antes.

— Mas hoje não — disse o marquês, fazendo uma careta, ao ver o braço do filho mover um pouco os cortinados, deixando entrar uma quente réstia de sol.

— Não estou bem — continuou, com irritação crescente. — Devem-lhe ter dito isso.

Uma sombra de alarme perpassou o rosto de Louis. Levan- tou-se e aproximou-se da cama, a batina caindo, em pregas pesadas, à sua volta. Armand afundou-se ainda mais sob as cobertas e deitou um olhar de censura ao filho. Sentia-se encabulado. Sua vaidade era tão grande que não podia suportar que o filho visse como ele era ao natural, mesmo àquela luz coada. Ficou ainda mais indignado e espantado quando Louis ousou colocar a mão fresca na sua testa, para ver se estava febril.

O marquês, aborrecido, fez com que ele retirasse a mão. Mas Louis não ficou ofendido. Estava por demais preocupado. Disse, numa voz medida e apreensiva:

— Um homem da sua idade, meu pai, devia usar de mais discrição. Não peço que se transforme num monge, mas recolher-se mais cedo algumas noites, dançar um pouco menos. . .

Mas aquilo foi demais para Armand. Endireitou-se na cama, a camisola de seda branca deixando ver, claramente demais, a sua pele murcha e escurecida e o tom cadavérico do seu rosto, apesar dos pós e dos ruges da noite anterior. Embora estivesse escuro dentro do quarto, Louis ficou horrorizado com o que viu.

— Um homem da minha idade! — gritou o marquês, dando a impressão de que ia pular da cama e atirar-se a Louis com fúria assassina. Seus olhos pretos pareciam escaravelhos. — Como ousa você dizer isso, seu eunuco, seu padreco, seu jesuíta sem sangue nas veias?

Louis estava acostumado aos insultos do pai mas, nesse dia, eles o afetaram visivelmente. Recuou para a sua cadeira e sentou-se. Mas não tirou os olhos do pai, que gritava como louco na cama, e neles havia uma estranha melancolia. Ouviu em silêncio as palavras de ódio, os gritos obscenos que saíam, como jatos de vitríolo, daqueles lábios retorcidos, sobre os quais os restos de pintura lembravam pústulas sangrentas. Pela primeira vez, as palavras calaram fundo dentro dele e pareceram queimar-lhe o coração, pois acabou deixando a cabeça pender-lhe sobre o peito.

Apesar dos seus transportes de fúria, Armand, passados alguns momentos, apercebeu-se da inexplicável atitude do filho. Mas nem a curiosidade foi o bastante para esquecer a raiva que sentia dele. Antes de afundar de vez debaixo das cobertas, gritou:

— Fora daqui! Morbleu, você me pôs mais doente do que eu já estava!

Louis levantou-se majestoso e digno. Estava ainda mais pálido que dantes.

— Vou esperar por Arsène nos seus aposentos — disse, calmamente. — Era o que eu devia tef feito, sem vir até aqui pertur- bá-lo.

Atravessou o quarto seguido do olhar de Armand, exasperado e ofegante. Por fim, a curiosidade e a apreensão fizeram com que o marquês perguntasse:

— Então, por que é que você fez questão de me atrapalhar o descanso, idiota?

Louis, a mão na maçaneta, respondeu, sem voltar:

— Tenho um recado importante para Arsène. Pensei que talvez lhe interessasse. Além disso, por estranho que pareça, queria conversar um momento com o senhor, a sós.

Mas Armand ouvira apenas as primeiras palavras, e o medo crônico irrompeu dentro dele. Havia muito acreditava que Louis constituía um perigo implícito para o seu amado Arsène. Ergueu-se novamente da cama.

— Fique — ordenou, com voz seca.

Louis voltou-se lentamente, mas não se aproximou da cama. A máscara fria da dignidade cobria-lhe de novo o rosto.

Armand olhou para ele com embaraço, a cabeça inclinada para a frente, para melhor poder ver através da penumbra perfumada do quarto. Umédeceu os lábios ressequidos e pintados.

— Dê-me o recado, que eu o entregarei a Arsène. — Sorriu malevolamente, enrugando o rosto. — Depois você pode voltar para as misteriosas ocupações que absorvem a atenção dos padres.

— O recado é para Arsène — retrucou Louis, com aparente calma. — Sua Eminência quer recebê-lo em audiência amanhã de manhã.

Um medo histérico tomou conta de Armand, mas ele forçou-se a sorrir desdenhosamente.

— É assunto importante? Uma carta teria sido suficiente. Mas vocês, padres, têm a mania de fazer com que tudo pareça muito importante.

Apesar do desprezo aparente, o medo estampado no seu olhar não diminuiu.

— O recado é inofensivo e bastante cortês — assentiu Louis.

— Mas eu queria Jlalar com Arsène a respeito. Sua Eminência deixou-me entrever o propósito da audiência, e eu desejava comunicar as minhas conclusões ao meu irmão, para seu próprio bem.

— Não fique aí, de pé, como um espectro! — gritou Armand.

— Meu Deus, já não basta o frio que sinto?

Louis voltou para a sua cadeira. Um sorriso frio e amargo curvou-lhe os lábios, que mais uma vez pareciam feitos de mármore.

Armand umedeceu os beiços, e os seus olhos fixaram-se em Louis.

— Qual o propósito dessa audiência? — perguntou, desdenhoso.

Louis deu imperceptivelmente de ombros.

— Seria demasiado cansativo ter de lhe dizer e depois a Arsène. Mas talvez, depois que eu tiver falado com ele e me tiver ido embora, Arsène lhe diga do que se trata.

Sorriu de novo, sutilmente.

A resposta nada fez para aliviar a preocupação de Armand. Tinha a certeza de que havia algo sinistro nas observações de Louis. Levou a mão venosa às pregas da garganta e tentou penetrar a camada de gelo que cobria o rosto do filho.

Sabendo que Louis detestava Arsène, Armand concluiu que a segurança deste último estava em aplacar o jovem e terrível sacerdote. Lembrou-se das palavras de Louis, antes de se dispor a sair do quarto. Fez com que o seu rosto assumisse uma expressão exausta, recostou-se de novo nas almofadas e gemeu e suspirou, fechando os olhos.

— Você é irritante, Louis — murmurou ele. — Não obstante, peço desculpas pelos meus comentários precipitados. Estou transtornado. Há alguns dias que sofro de um mal-estar misterioso. O meu médico não achou nada de alarmante no meu estado — acrescentou, mais que depressa, ao ver que Louis tentava aproximar-se da cama. — Mas eu achei que alguns dias de repouso, talvez um mês ou dois nas nossas propriedades, poderiam ter um efeito salutar sobre a minha saúde. Tem sido uma temporada demasiado cansativa, na Corte, para quem, como eu, tem um constituição frágil.

— Seria muito bom que o senhor fizesse uma visita às nossas propriedades — concordou Louis, gravemente. — Arsène nunca mostrou interesse por elas, embora vá herdá-las.

À nota de desprezo nas palavras de Louis, Armand abriu os

olhos, mas engoliu depressa as palavras virulentas que ia dizer. Retrucou, hipocritamente:

— Realmente, você tem razão, Louis! Arsène é um pouco frívolo. Vou ter uma conversa com ele e insistir para que ele me acompanhe.

Louis ficou surpreso. Não se lembrava de jamais o pai lhe ter demonstrado tanta consideração e o ter escutado com tamanho interesse. Aproximou mais a cadeira e lançou a Armand um olhar comprido e esperançoso. O marquês sorriu-lhe amigavelmente, dentre as almofadas, embora as suas pálpebras se contraíssem com a dor de cabeça que sentia.

— Se não me engano, você disse que queria falar comigo, Louis — disse ele, em tom hesitante.

Ao ouvir aquilo, a expressão de Louis mudou de novo, tornou-se agitada. Não corou, mas a opacidade do seu rosto iluminou-se, suavizou-se. Ergueu-se abruptamente e olhou em volta, confuso. Depois, como se não tivesse consciência do que fazia, desabotoou a batina e despiu-a, ficando apenas com o gibão preto e a camisa branca. Assim vestido, não parecia um sacerdote, e sim um daqueles puritanos ingleses, a quem a sobriedade dos trajes dava um ar de dignidade e austeridade. Essa impressão era enfatizada pela pele e os cabelos claros, e pelos impassíveis contornos das suas feições e o azul montanhês dos seus olhos.

Mas não havia qualquer rigidez em Louis, de pé à beira da cama do pai, olhando para ele com ansiedade encabulada, incapaz de encontrar palavras para expressar a emoção que sentia. Enervado com a atitude do filho, o velho pôs-se a procurar a caixa de rapé em cima da mesinha-de-cabeceira. Tomou uma pitada e, a fim de escapar ao olhar de expectativa do filho, fingiu examinar com interesse a tampa da caixa, como se nunca a tivesse visto. Sorriu maliciosamente, pois na caixa estava esculpido, em ouro e esmalte brilhante, o mais debochado dos duos. As figuras do homem e da mulher eram minuciosamente representadas na sua beleza desnuda; as cores eram verdadeiras, e as atitudes, embora íntimas, eram cheias de graça. Arsène dera a caixinha de presente ao pai, no seu aniversário, e Armand recebera-a com deleite. Por um momento, o marquês esqueceu-se de Louis, de pé diante dele, mudo e suplicante. Achava a figura da mulher especialmente fascinante, e recordou que o Cardeal, sempre amante do fora do comum e do belo, admirara-a com uma risada. Ao lembrar-se do Cardeal, lembrou-se de Louis e recolocou furtivamente a caixa sobre a mesa.

Mas Louis, o inocente, percebera o gesto do pai. Havia algo de infinitamente patético no seu olhar, ao se abeirar da mesa e pegar na caixa, num ato puramente instintivo. Vira o pai sorrir e tinha

querido saber o motivo, pensando que ele os aproximaria ainda mais. Ao ver a intenção de Louis, Armand estendeu a mão para esconder a caixa, mas depois, rindo perversamentè, deixou que o filho pegasse nela.

Louis segurou a caixa na mão e contemplou, em silêncio, a figura esculpida na tampa. Armand ficou à espera, olhando para o filho com um sorriso venenoso. Estava crente que ele ia estremecer ou fazer alguma exclamação de vergonha ou desgosto. Mas Louis, embora corasse, não recuou e nem fez qualquer gesto perceptível de repulsa.

— Foi presente de Arsène — murmurou o marquês, perversamente.

Louis virou-a de um lado e do outro. Durante um momento, ficou calado, mas depois disse, com um sorriso:

— Meu irmão tem um estranho sentido de humor.

Estava agora muito vermelho. Parecia ter-se esquecido da presença do pai. Ficou a olhar para a pequena e brilhante imagem na tampa da caixa e sentindo um calor subir-lhe às faces e à testa. Quando voltou a pousar a caixa na mesa, a sua mão tremia. Procurou falar, mas não conseguiu. Armand olhava para ele, espantado e boquiaberto.

Por fim, Louis disse, numa voz baixa e trêmula, os olhos fixos no rosto do pai, como que implorando:

— Em toda a minha vida fui incapaz de me aproximar de qualquer outro ser humano. Talvez a culpa tenha sido do meu temperamento. Talvez houvesse em mim uma certa inclinação a me afastar dos outros homens. Não sei. Mas agora me dou conta do que faltava na minha vida. Não desejei ficar de lado, fugir, me apartar dos outros. Não! — exclamou, com veemência. — Sempre ansiei por uma aproximação, sempre quis ser compreendido, participar da vida e das suas alegrias. Entendo agora que sempre tive medo, que era esse meu medo que me mantinha isolado. Não sei por quê. Só sei que é assim. Mas agora percebo que esse meu medo foi o causador da minha tristeza, da minha solidão.

Fez uma pausa. Armand olhava para ele, incrédulo. Louis ergueu as mãos, mas logo as deixou cair.

— Nunca quis ficar isolado — disse ele, numa voz quase inaudível, mas com um olhar implorativo e desesperado.

Se uma das estátuas de pedra do seu jardim tivesse aberto a boca e lhe falado aquelas estranhas palavras, Armand não teria ficado mais espantado. Dotado de uma certa sutileza perversa, compreendeu logo o que se passava com o filho. Aos poucos, enquanto olhava para ele, a crueldade despertou de novo no seu íntimo, e ele riu, num silêncio diabólico.

Ah, se Arsène estivesse presente!, pensou, deliciado. Como ele riria comigo deste idiota beato e pretensioso! Imaginou as palavras que usaria para contar a Arsène aquele cena incrível, e os seus lábios secos e pintados se contorceram, antegozando a cena.

— Morbleu! Você está ficando sentimental, hein, Louis? — murmurou, com um olhar malévolo para o filho.

— Sentimental? — repetiu Louis.

A luz nos seus olhos empalideceu, e ele deu a impressão de se encolher.

Armand ergueu um fino indicador e brandiu-o na direção do filho.

— A sua alma está dolorida, meu caro Louis, e eu conheço bem essas dores! Ou se originam do desejo de ir para a cama com uma bela mulher, ou de uma má digestão. Se você não fosse padre, eu lhe aconselharia uma nova amante, ou um novo chef. Mas — prosseguiu ele, cada vez mais divertido — como você é um casto sacerdote, não lhe posso aconselhar uma nova amante, e, como você não tem paladar, seria inútil o segundo conselho. Você está mesmo malparado, Louis!

Continuou cada vez mais divertido:

— O fígado ou os órgãos genitais, Louis! Aconselho-o a examinar consigo mesmo, ou com o seu egrégio patrão, quais serão as causas do seu mal. Decerto Sua Eminência lhe dará toda a assistência.

Louis ficou calado. Seu vulto parecia diluir-se na penumbra do quarto, e só os seus olhos permaneciam quietos, fixos e luminosos na semi-escuridão, sem se arredarem de Armand. Era como que o derradeiro olhar de um moribundo.

Armand fez uma pausa. Viu o olhar do filho, e uma estranha sensação de frio tomou conta dele, um medo inexplicável. Enco- Iheu-se todo na cama. Deitou uma olhadela rápida ao quarto, pois lhe parecia que algo terrível se ocultava nele.

Exclamou, irritado:

— Por que é que você me aborrece com os seus queixumes, criatura desprezível? Foi para isso que você invadiu os meus aposentos a uma hora tão inconveniente? Para se queixar da sua má digestão?

Puxou as cobertas até o queixo e olhou, por cima delas, para o filho. O seu triunfo desaparecera. Sentia apenas medo, provocado pela vaga compreensão de que acabava de cometer um crime.

Ouviu um profundo e trêmulo suspiro. A cabeça de Louis tombou-lhe sobre o peito. Recuou, deixou-se cair na cadeira e cobriu o rosto com as mãos. O medo desapareceu do coração de Armand, substituído por uma sensação de frio intenso.

Ouviu-se bater de leve na porta. Ela abriu-se sem fazer barulho, e o rosto moreno de Arsène surgiu, sorridente. Armand sentiu um súbito alívio, seguido de uma raiva histérica e de ressentimento contra Arsène, por ter demorado tanto a aparecer. Soergueu-se na cama.

— Ah, até que enfim, meu frívolo sucessor, meu amigo dos falcões e dos cavalos, meu perseguidor de saias! Que lhe importa que o seu pai jaza, prostrado, na cama, atendido por imundos lacaios, que se escondem pelos cantos com as camareiras? Eu podia morrer sozinho e abandonado, pelo que lhe diz respeito!

Arsène arqueou as sobrancelhas, bem-humorado, e entrou no quarto. Não viu Louis imediatamente, embora o padre se tivesse logo posto de pé, ao ver entrar o irmão.

— Que extravagância! — exclamou Arsène, risonho. — Todos sabem, meu pai, que o senhor costuma dormir até quase o pôr-do- sol. Além do mais, eu não estava fazendo nada disso de que me acusa, e sim lendo nos meus aposentos.

— Lendo? — gritou Armand, fora de si. — Que filhos eu tenho! Um padre e um rato de biblioteca! Que degenerescência tomou conta de você, Arsène? Logo você, que nunca tocava num livro, a não ser para admirar a encadernação? — Estava incrédulo, roído de suspeitas. — Será que você perdeu a virilidade? Estará pensando em entrar para um mosteiro?

— Eu estava lendo — repetiu Arsène, com um sorriso ainda maior. — Erasmo, Sócrates, Platão, Aristóteles, Lutero. Tenha calma, meu pai. Seus olhos parecem querer pular-lhe das órbitas e já estão bastante injetados.

Armand abriu a boca, perplexo. Mas Arsène apercebera-se da presença de Louis e, embora mal pudesse distinguir o rosto do irmão, na penumbra do quarto, sentiu o ódio que emanava dele. Nunca se sentira alarmado ou perturbado por qualquer manifestação anterior de aversão por parte de Louis, mas nesse dia, ou ela era mais forte do que de costume, ou a sua sensibilidade estava exacerbada. Ficou calado, o sobrolho franzido, invadido por uma tristeza desconhecida.

Disse, na mais suave das vozes:

— Louis.

O irmão não se mexeu, mas Arsène teve a impressão de que avançara para ele com ar ameaçador, e ficou espantadíssimo. Daquele vulto imponente saiu uma voz baixa e carregada de ódio.

— Vim até aqui para preveni-lo, pensando no nosso pai. Sua Eminência pediu que você vá vê-lo amanhã de manhã, às onze horas. Quer lhe fazer uma oferta magnânima. Aconselho-o a não recusá-la e a ter cuidado com o que vai dizer. As piores consequên

cias poderão advir de qualquer leviandade ou imprudência da sua parte. Monsenhor está a par das suas atividades, da sua traição. Não obstante, levado pela sua generosidade e pelo seu espírito de misericórdia, está disposto a perdoá-lo. Cuidado para não abusar da sua paciência!

— Que oferta é essa, seu jesuíta sinistro? — gritou Armand, apavorado.

Mas Arsène estava mais surpreso e indignado com a atitude do irmão do que com as suas palavras.

— Não sou nenhum lacaio, Louis. Não recebo ordens de nenhum padre, seja de você, seja de Monsieur le Duc. Não gosto da sua maneira de me falar, que não é cortês, nem muito menos fraternal. •. de

— Qual é a oferta? — insistiu Armand, fazendo menção de pular da cama.

Agarrou o braço de Arsène com mão trêmula, como que a defendê-lo.

Mas Arsène e Louis ficaram calados, olhando um para o outro, dizendo-se mentalmente coisas horríveis. Por fim, Louis jogou a capa sobre os ombros e, sem olhar para o pai ou para o irmão, saiu do quarto, não rapidamente, mas no seu andar habitual e majestoso.

Com um gesto impaciente mas distraído, Arsène aproximou-se da janela e abriu as cortinas. O sol entrou, enchendo o quarto de uma luz ofuscante. Armand cobriu os olhos com o braço e praguejou.

— Por que fui ter filhos como vocês? — choramingou. — Um monstro e um idiota metido a estudioso! Meu Deus, que destino o meu!

Arsène voltou para junto da cama e olhou para o pai com ar severo.

— Que foi que o senhor fez ao Louis? — perguntou.

Armand deixou cair o braço e olhou, indignado, para o filho.

— Eu? Que modo de falar é esse? Como é que você ousa me falar assim?

Mas Arsène não se deixou intimidar. Não pôde conter um sorriso.

— Você ainda o defende? Atreve-se a censurar o seu pai? — gritou Armand. — Insulta-o com a sua imprudência, seu atrevido sem-vergonha?

Sempre sorrindo, Arsène consertou as almofadas do pai. Encheu um cálice de vinho cor de âmbar e colocou-o na mão do marquês, que, furioso, bebeu-o mecanicamente, os olhos brilhantes e fixos no filho. Arsène encontrou o lenço de renda do pai e tocou com ele os lábios do velho. Diante daquele gesto de ternura e afeto, as lágrimas afloraram aos olhos de Armand. Segurou a mão do filho e choramingou:

— Arsène, que será que aquele diabo branco está maquinando? Ele é perigoso.

Esfregou a boca com as costas da outra mão, e o “terror aumentou no seu rosto avermelhado.

— Que oferta será essa? Pode ter a certeza de que ele não está tramando coisa boa. É um diabo.

— Louis não é nenhum diabo — retrucou Arsène, gravemente. — O senhor é que às vezes parece um. Que foi que fez com ele?

Armand disse um nome feio e sorriu maliciosamente.

— Ah, esse Louis! — exclamou.

Riu, deliciado, um riso incontrolável, que o fazia rolar sobre os travesseiros. Contou a conversa que tivera com Louis, sem esconder nada. Tinha o dom da narrativa, ágil e viva. Arsène sentou- se e ouviu atentamente. Aos poucos, o seu rosto foi ficando sombrio, os seus olhos começaram a brilhar de piedade e indignação.

— Ah, a cara dele! — gritou Armand, entre risadas. — Uma revelação! Uma cara igualzinha à de um carneiro, você nem faz ideia! Quem poderia imaginar que ele fosse capaz de balir de maneira tão patética? Tenho que contar isso, esta noite. Madame Dou- merque, a mulher mais espirituosa de Paris, vai achar divertidíssimo. Amanhã, toda a cidade estará rindo. Há muito que Louis é o bufão da Corte.

Arsène pôs-se de pé. Olhou para o pai com uma expressão tão séria e tão estranha que Armand ficou boquiaberto.

— O senhor não vai contar nada — disse Arsène, numa voz penetrante. — Nada. O que fez foi cruel e vergonhoso, embora o senhor não se dê conta disso. Previno-o, desde já: se essa história se transformar na piada do dia em Paris, eu deixarei esta casa e nunca mais voltarei. — O seu rosto tinha uma expressão nova. — Que coisa cruel e vergonhosa! Nom de Dieu! O senhor não tem coração, não tem compaixão.

Parou, compreendendo que de nada adiantava falar, tentar inspirar no pai sentimentos estranhos à sua natureza. Fez um gesto de impotência.

Armand estava sem fala, deitado nas suas almofadas, arquejan- do e pestanejando, sem poder acreditar no que ouvira. Viu Arsène atravessar o quarto, abrir a porta e fechá-la atrás de si.

Começou, então, a gritar como louco. Agarrou em tudo o que estava na mesinha-de-cabeceira e pôs-se a atirar os objetos ao chão. Primeiro foi a garrafa de vinho, depois o cálice, seguido de várias caixas e garrafas de cristal e de um novelo de lençóis. Finalmente, pegou na caixinha de rapé que Arsène lhe dera e preparou-se para atirá-la também. Mas a mão estacou no ar, e ele caiu, suando, em cima da cama, segurando a caixa, irrompendo em soluços dolorosos.

                                                                                           

                                                                               CONTINUA

 

                      

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