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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MAGIA DA ALVORADA / S. L. Farrell
A MAGIA DA ALVORADA / S. L. Farrell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

SE UMA CIDADE TIVESSE SEXO, Nessântico seria mulher.

Ela nasceu como uma joia nas águas plácidas e resplandecentes do rio A'Sele. Foi uma cidade insular na infância, ligada ao continente por enormes pontes de pedra e conectada pelo A'Sele ao mar que a alimentava de mercado­rias. O comércio fluvial agitava o A'Sele. Ele vinha do encontro do rio Clario com sua boca larga e protegida em Nostrosei, e todas as benesses do comércio passavam por Nessântico. À medida que a influência dos primeiros líderes que se instalaram em Nessântico aumentou, a cidade também cresceu e se espalhou da ilha para as duas margens do rio.

Quando os senhores de Nessântico começaram a se chamar de kraljiki e kraljica, quando ampliaram seu domínio para além das fronteiras, a cidade cresceu e virou uma jovem moça cheia de vida, envolvida e protegida por grandes muralhas que jamais foram rompidas por nenhum invasor. Seus exér­citos tomaram os vilarejos, as cidades e as cidades-estados ao redor. Irresistivelmente forte, ela também era sedutora: a cidade onde se instalava a ilustre corte dos kralji, onde os embaixadores de centenas de lugares vinham para implorar, barganhar e se vangloriar, onde navios de terras estrangeiras dos oceanos Strettosei e Rhittosei traziam seus tesouros e mercadorias, onde uma dezena de culturas se misturavam para formar uma liga mais forte, onde as dádivas mágicas de uma dezena de deuses eram exibidas e cobiçadas.

Com o passar das décadas e dos lentos séculos, conforme o país que adotou o nome da cidade se tornou ainda mais influente; conforme os kralji vira­ram os reais senhores não só de Nessântico, mas de toda Il Trebbio, depois de Firenzcia, Magyaria e além; conforme os Domínios espalharam-se por todas as direções, até mesmo pelo Strettosei às margens das Terras Ocidentais; con­forme a fé concénziana subordinou e converteu à força a maioria das outras religiões e deuses menores dentro dos Domínios; Nessântico — a cidade, a mu­lher - permitiu-se relaxar e aproveitar sua reputação. Sempre forte à medida que as fronteiras dos Domínios avançavam e recuavam sob os efeitos de guerra e comércio; sempre magnífica, embora os gostos e estilos mudassem; sempre sedutora e desejável não importa que outros lugares e terras exóticas desfru­tassem de breve moda, ela se estendia gradativamente além das muralhas que outrora a confinaram e atraía tudo que fosse intelectual, tudo que fosse rico, tudo que fosse poderoso. O estandarte azul-escuro com dourado intenso tre­mulava das torres, e as luzes dos tênis resplandeciam como estrelas na noite.

Não havia cidade no mundo conhecido que pudesse rivalizar com ela.

Mas havia muitas que a invejavam.

 

 

 

 

ANA AJOELHOU-SE ao lado da cama e sorriu com determinação para o corpo imóvel e impassível debaixo do lençol branco de linho. Ela pegou as mãos da mulher: moles e pegajosas com a pele solta coberta por finas rugas. - Matarh - sussurrou Ana, que depois falou o nome da mulher, pois achava que ela às vezes respondia melhor a isso. - Abini, eu estou aqui.

As pálpebras tremeram, mas não se abriram, e os dedos de Abini contraíram-se uma vez na mão de Ana, mas não pegaram com força. - Está quase na hora da Primeira Chamada - continuou Ana — e eu vim rezar com a senhora, matarh. - As trompas soaram como um lamento vindo do domo do Velho Templo logo naquele instante, abafadas pela distância e misturadas aos ecos dos edifícios entre eles. Ana ergueu o olhar: atrás das cortinas, o sol batia nos telhados da cidade. — A senhora ouviu as trompas, matarh? Ouça e eu rezarei por nós duas.

Ana juntou as mãos de sua matarh logo abaixo da garganta, depois entrelaçou as próprias mãos na testa. Ela tentou rezar, mas a mente não quis se acalmar. A rotina reconfortante das preces matinais perdia força com as memórias: das críticas do uténi co'Dosteau; das lembranças que se esvaíam do tempo antes da febre do sul, que deixou sua matarh indefesa e impassível; de épocas mais felizes antes de Ana ter que viver com a culpa do que fazia quase toda manhã apenas para manter sua matarh viva. — Perdoe-me, Cénzi - disse ela, como sempre dizia, perguntando-se se Ele escutava, imaginando quando seria punida por Ele por sua impertinência, porque o castigo era o que a Divolonté, o código de regras que regia a fé concénziana, insistia que iria acontecer inevitavelmente. Cénzi era um deus severo, e Ele insistiria que Ana pagasse por sua impertinência em subverter Suas intenções. - Perdoe-me... Ela perguntou-se se estava falando com Cénzi ou com sua matarh.

Ana começou a entoar um cântico, as palavras saíram espontaneamente: sílabas guturais sem sentido que não eram as rígidas formas ensinadas pelo uténi co'Dosteau. As mãos acompanharam o cântico como se ela estivesse dançando apenas com os dedos. Mesmo antes de ter sido enviada pelo vatarh ao Velho Templo para se tornar uma acólita, mesmo antes de ela começar a aprender como dar vazão ao poder de Ilmodo, Ana era capaz de fazer isso.

E, mesmo assim, sabia que era algo que precisava esconder.

Ela tinha ouvido o suficiente das admoestações dos tênis do Alto Púlpito para se dar conta disso. O u'téni co'Dosteau, o instruttorei a'acólito, era curto e grosso: "um téni não vai colocar-se contra a vontade de Cénzi sem castigo..." ou "usar o Ilmodo para seus próprios desejos é proibido..." ou "a Divolonté é bem clara quanto a isso. Leia o código e, caso fique com medo de sua cruel­dade, é bom ficar mesmo".

Ana tentou se convencer de que não estava usando o Ilmodo em benefício próprio, mas para o de sua matarh. Tentou se convencer de que, se realmente fosse a vontade de Cénzi que Abini morresse, bem, Cénzi certamente tinha o poder de fazer com que isso acontecesse, não importavam os pequenos esforços que ela realizasse para manter a matarh viva. Ana tentou se convencer de que Cénzi não lhe teria dado o Dom tão cedo se não quisesse que ela fizesse isso.

De alguma forma, Ana nunca se convencia. Ela suspeitava que Cénzi já havia escolhido seu castigo. Ela já sabia que Ele estava descontente.

Ana moldou o Ilmodo agora, rapidamente. Ela sentiu o poder frio, que os tênis chamavam de Segundo Mundo, aumentar entre as mãos em movi­mento, e o cântico e o gestual que ela fazia mandaram tentáculos de energia em direção à matarh. Conforme o Ilmodo tocava o corpo deitado, Ana sentiu o conhecido choque da conexão. Havia um indício da consciência da matarh perdido em algum lugar bem profundo, e Ana sentiu que, caso quisesse, ela poderia, poderia ser capaz de puxá-la completamente de volta.

Mas isso seria completamente errado e óbvio demais. Portanto, como ela fazia nos últimos anos, Ana usou apenas um pouco do Ilmodo, o suficiente para garantir que sua matarh não iria se afastar ainda mais da vida, o suficiente para saber que Abini viveria por mais alguns dias.

E ela soltou o Ilmodo. Parou com o cântico, as mãos caíram ao lado do corpo. Como sempre, Ana foi tomada pela culpa como uma inundação de primavera do rio A'Sele, e com a culpa veio o preço de usar o Ilmodo: um esgotamento muscular tão intenso como se ela tivesse passado o dia inteiro se esforçando para cumprir uma tarefa física impossível. Mais uma vez ela lutaria contra uma insistente vontade de dormir enquanto ouvia os sermões do uténi co'Dosteau. Ela levou as mãos entrelaçadas à testa novamente e rezou pela compreensão e perdão de Cénzi.

Ana? Você está com sua matarh?

Ela ouviu seu vatarh abrir a porta do quarto.

Tão rápido, Cénzi?, perguntou ela. É isso que devo agüentar pelo que faço? Ana mordeu o lábio e fechou bem os olhos, recusou-se a chorar.

Eu sei que a sua presença conforta sua matarh - disse o vatarh baixinho ao surgir por trás de Ana. Tomas co'Seranta tinha uma voz que miava e rugia, e houve uma época em que ela adorava ouvi-lo falar. Ana enroscava-se em seu colo e pedia para que ele contasse uma história, qualquer coisa, apenas para que pudesse encostar a cabeça em seu largo peitoral e ouvir o retumbar da voz grossa.

Houve uma época...

Ana sentiu a mão do vatarh no ombro tocando a dobra do tecido delicado da tashta. A mão desceu pela curva da espinha, do pescoço ao meio das costas. Ela fechou os olhos e ouviu Tomas ficar meio ajoelhado ao seu lado e sussurrar:

Eu também sinto fala dela. Não sei o que eu faria se perdesse você tam­bém, meu passarinho. - Ana não olhou para ele, mas sentiu um calor ao lado, e agora a mão de Tomas entrou pelas dobras da tashta onde o tecido cobria os seios. Seus dedos tocaram a filha.

Ela ficou de pé abruptamente, e a mão dele afastou-se. Tomas olhava para o chão, não para ela ou para Abini. - Eu tenho que ir para a aula, vatarh — falou Ana. - O u'téni co'Dosteau disse que hoje deveríamos chegar cedo...

 

- DÁ PARA IMAGINAR isto aqui no verão? - sussurrou Mika ceGilan ao se aproximar de Karl. Seu longo nariz aquilino contraiu-se dramaticamen­te. - Eu sinto mais cheiro de suor do que de perfume.

Karl apenas concordou com a cabeça. A sala do trono da kraljica estava lotada de suplicantes. Era o segundo cénzidi do mês, o dia em que a kraljica recebia todos os suplicantes - pelo menos aqueles que conseguiam se apro­ximar dela nas poucas viradas da ampulheta em que a kraljica permanecia sentada no Trono do Sol. O salão comprido estava tão abarrotado quanto um caixote de frutas, cheio de pessoas vestidas com suas melhores roupas. O lugar estava um forno; Karl sentiu a testa suar e o suor descer livremente pela espinha e empapar o tecido da bashta que ele usava. "É o que todos os ca' e co' estão usando nesta estação", declarou seu alfaiate, mas Karl não conseguiu ver nada similar no corte das bashtas e tashtas mais próximas. Ele suspeitava que essa moda fosse do ano passado, na melhor das hipóteses, e que todos que o encaravam de cima a baixo escondiam risinhos por trás dos abanadores cheios de enfeites. Também notou que ele e Mika estavam em seu próprio espacinho aberto, como se aqueles com ca' ou co' na frente do nome fossem se contami­nar caso se aproximassem demais. Ele tocou o pingente em volta do pescoço com um gesto nervoso - uma concha que parecia ter sido esculpida em pedra, a rocha cinzenta polida pelo uso.

Na frente do salão, o Trono do Sol resplandecia embaixo da kraljica Mar­guerite ca'Ludovici: a regente de Nessântico e dos Domínios, a grande Généra a Pace, a Portadora do Cajado de Ferro, a Matarh Absoluta, que em poucos meses comemoraria o jubileu de seu quinquagésimo ano de reinado: o mais longo até hoje de qualquer kralji. A maioria das pessoas que vivia nos Domí­nios não conheceu outro governante. O trono do kralji era feito a partir de um único cristal imenso, encantado pelo primeiro archigos Siwel ca'Elad há mais de três séculos de uma maneira que nenhum téni conseguiu repetir desde então. Quando alguém de posse do Anel do Kralji se sentava em seu abraço duro e reluzente, o Trono do Sol brilhava em um pálido tom de amarelo. Karl sabia que havia rumores insistentes que o brilho na verdade sumira há muito tempo; agora, insistiam os céticos, a luz interior era criada quando necessário por um téni especial enviado pelo archigos sempre que a kraljica aparecia em público no Trono do Sol. Dado que os registros da época do archigos Siwel diziam que o trono "reluzia como um verdadeiro sol que cegava todos com seu esplendor", certamente era verdade que o Trono do Sol deve ter empalidecido consideravelmente nos séculos desde então. Em plena luz do dia, o brilho mal podia ser visto. Os lustres que balançavam no teto com certeza eram necessá­rios: embora fosse praticamente a hora da Segunda Chamada, as janelas altas da sala do trono eram estreitas demais para permitir a entrada de muita luz.

Também era verdade que Karl seria capaz de reproduzir o brilho sozinho, caso ousasse fazer tal coisa aqui.

Vajiki Tomas co'Seranta! - anunciou Renard, o velho e encarquilhado assistente da kraljica, em uma voz vacilante ao ler um pergaminho na mão. O burburinho de vozes no salão parou momentaneamente. Karl viu alguém se dirigindo para o Trono do Sol em resposta, um homem de meia idade que se curvou ao se aproximar e reagiu com uma cara feia e um suspiro ao mesmo tempo.

Eu disse que você deveria ter dado um siqil ou dois para Renard - mur­murou Mika. - Ele não vai nos chamar.

Eu sou o enviado a'Paeti a'Numetodo - respondeu Karl. - Como ele pode nos ignorar?

Pelas mesmas razões que a kraljica ignorou a Marca de Paeti que você enviou quando pediu por uma audiência particular. Ela está presa demais à fé concénziana e não quer se sujar ao reconhecer hereges.

Você é um pessimista, Mika.

- Sou realista. Devo lembrar que estou aqui em Nessântico há muito mais tempo que você, meu amigo, e que conheço muito bem esta gente. Acho que tivemos sorte até por permitirem nossa entrada no salão. Foi apenas o seu título bonitinho que nos fez driblar Renard. Olhe para o lado de lá. Viu aquele homem olhando na nossa direção? O de preto? Não dá para deixar de notar, ele tem um nariz de prata.

Karl ficou na ponta dos pés e vasculhou o salão na direção que Mika indicou com a cabeça. O homem estava parado contra uma parede, com uma pose casual demais. Quando ele notou o olhar de Karl, os lábios embaixo do bigode e do nariz metálico se contorceram no que poderia ser um sorriso di­vertido. Ele acenou levemente com a cabeça na direção de Karl. - Aquele é o comandante ca'Rudka da Garde Kralji - continuou Mika. - Se qualquer um de nós parecer minimamente ameaçador, nós iremos parar na Bastida mais rápido do que uma mosca voa para cima de um cavalo morto. Portanto, não faça gestos bruscos.

Acho que você está sendo paranóico.

Mika deu um muxoxo de desdém. - As coisas são diferentes no oeste, longe de Nessântico. Olha só, aposto o jantar que não falaremos com a kral­jica hoje.

Fechado - disse Karl.

Depois de três viradas da ampulheta, a kraljica se levantou e todo mundo fez uma reverência enquanto ela saía do salão. Karl ainda não tinha sido cha­mado para sua audiência.

- Estou morrendo de fome - comentou Mika enquanto todos os presentes saíam da sala do trono. - E você?

 

A RECEPÇÃO deixou Marguerite exausta e irritada, como acontecia todo mês. Renard, seu assistente, dispensou com um gesto um bando de cria­dos que os acompanharam na saída da sala do trono. Quando a porta foi fechada, ele finalmente relaxou a postura rígida e apropriada. - Aqui, Margu - falou Renard ao passar uma taça de água fresca com fatias de fruta amarela para a kraljica. Ela ficava contente que Renard usasse seu apelido aqui, neste lugar, onde ninguém podia ouvir. — Eu sei que sua garganta está seca.

E meu traseiro está dolorido também - respondeu Marguerite. Ela passou a bengala para o assistente. - A almofada não serviu para nada naquele maldito cristal.

Não podemos evitar que isso aconteça, não é? - Ele riu. - Vou mandar trocá-la por uma cobertura mais adequada. - Renard ofereceu a água nova­mente, e desta vez ela pegou a taça. Ficou grata por poder afundar em uma das cadeiras bem estofadas na sala privativa de recepção. As janelas estavam um pouco abertas, embora o ar ainda trouxesse muito do frio do inverno, e o fogo que ardia na lareira era providencial.

Marguerite suspirou. - Desculpe, Renard. E meu dever e eu não deveria reclamar.

Você é a kraljica. Pode fazer o que quiser.

Marguerite sorriu ao ouvir isso. Renard co'Bellona esteve com ela pela maior parte de suas cinco décadas como kraljica. Marguerite podia ser a kral­jica, mas era Renard que organizava sua vida e garantia que os dias corressem bem. Ele começou a servi-la como um pajem aos cinco anos de idade, quando era simplesmente Renard Bellona, sem sequer um humilde ce' antes do sobre­nome, mas demonstrou lealdade e inteligência e progrediu com o passar dos anos ao posto atual.

Naquela época, ela não era a "Généra a'Pace", mas a "Spada Terribile", a Espada Terrível, que trouxe as Terras Distantes para os Domínios por intermédio de negociação quando foi possível, e com a Garde Civile, seus exércitos e simples força bruta quando não foi possível. Naquela época, ela era jovem, cheia de ener­gia e raiva pela maneira como seu vatarh fora tratado como kraljiki. Ela jurou que os ca' e os co' jamais a chamariam de "fraca", que os chevarittai dos Domínios jamais a chamariam de "covarde". Nenhum deles jamais a chamaria de "tola"... e continuaria vivo.

... Marguerite? - dizia Renard.

Desculpe. O que você estava falando?

Perguntei se você queria saber os compromissos da tarde.

Isso importa? - perguntou ela, e os dois sorriram um para o outro.

O archigos Dhosti trará sua sobrinha Safina para lhe conhecer no jantar - disse Renard. — Eu pedi ao a'kralj para estar lá também, para que possa falar com ela.

E ele irá?

Renard deu de ombros. - O a'kralj alegou ter outros compromissos. Mas se você mandasse uma mensagem para ele...

Marguerite balançou a cabeça. - Não. Se meu filho não quer conhecer as mulheres que eu sugiro como bons partidos, então Justi vai ter que se conten­tar quando eu escolher uma esposa para ele.

Renard concordou com a cabeça e manteve cautelosamente uma expres­são neutra.

Levou uma década inteira após a morte do marido para ela finalmente levar Renard para a cama. A sedução não foi planejada, mas pareceu inteiramente natural. Eles tornaram-se mais do que criado e senhora ao longo dos anos. Secreta­mente, eles eram amigos há muito tempo, e Renard não tinha família. "Eu nunca poderei lhe oferecer mais", disse Marguerite naquela noite. "Eu sei", respondeu ele, com aquele leve arquear dos lábios que ela adorava. "A kraljica pode precisar usar o casamento como um artifício. Eu entendo. Entendo mesmo..."

... e também o comitê de planejamento da comemoração de seu jubileu gostaria de revisar os planos para ver se você os aprova - dizia Renard. - Eu disse que você talvez tivesse tempo hoje à noite, após o jantar com o archigos, mas posso remarcar para amanhã se quiser.

Marguerite fez um gesto. - Não, está bem. Deixe que venham. Vou escutar e concordar com a cabeça desde que não tenham feito algo tremenda­mente estúpido.

Renard fez que sim. Ele tocou o ombro da kraljica com delicadeza, quase um carinho. Mesmo aqui, sozinho, Renard tomava cuidado com os limites entre os dois. - Então vou avisar ao comitê para se preparar. E... - Ele parou e franziu os lábios. - Há uma carta da hirzgin Greta, trazida por mensageiro particular. Eu tomei a liberdade de decodificá-la para você.

Traga aqui. - Ela não perguntou o que sua sobrinha, casada com o impetuoso Jan ca'Vörl, o hirzg de Firenzcia, dissera; Marguerite percebeu pela expressão sombria de Renard que não eram boas notícias. Ela desdobrou o papel entregue por Renard e leu as palavras sublinhadas, depois balançou a cabeça e deixou o papel cair. - Trinta numetodos executados publicamente em Brezno... o a'téni ca'Cellibrecca foi longe demais, e o hirzg o encoraja. O archigos sabe?

Eu desconfio que ele foi informado por suas próprias fontes - disse Renard, - Vou fazer o rascunho de uma carta indignada ao hirzg ca'Vörl em seu nome. Tenho certeza que o archigos fará o mesmo pelo a'ténica Cellibrecca.

Também tenho certeza. E sei que as famílias dos numetodos assassinados ficarão muito contentes com uma carta indignada.

Ana co'Seranta

NÃO! - O fino ponteiro de carvalho do u'téni co'Dosteau cortou o ar e bateu uma vez nas mãos em movimento de Ana. - Assim não. Preste atenção, Ana. Você precisa fazer um gestual melhor. Mais amplo. Maior.

Os nós dos dedos latejaram de dor, mas ela não lhe daria o gostinho de parar. Porém, a reprimenda do instrutor fez com que Ana ficasse momentaneamente em silêncio ao olhar feio para o velho téni, sua voz falhou em meio ao cântico que elas e os outros a'cólitos recitavam. As palavras não eram na sua própria língua, mas sim na língua téni que era capaz de moldar o Ilmodo, e já eram bem difíceis de lembrar sem as broncas de co'Dosteau. Com o tropeço, ela sentiu o Ilmodo - a dádiva de Cénzi, a energia que alimentava os feitiços dos tênis — começar a fugir ao controle. Ana tentou agarrar o Ilmodo com a mente; assim que conseguiu, surgiram novas pa­lavras estranhas, palavras que ela não conhecia de modo algum, mas que de certa forma pareciam apropriadas para a tarefa, as mesmas palavras que surgiram quando ela estava com sua matarh. O som das palavras era similar à língua téni, mas o sotaque tinha uma diferença sutil. Ela sussurrou porque não queria que o u'téni co'Dosteau ouvisse como seu cântico foi mudado e retomou o gestual do feitiço.

Mais amplo. Maior. O uténi co'Dosteau tratava-os como crianças aprendendo o alfabeto. No salão dos acólitos, ele agia como se tivesse um ca na frente do nome em vez de um co', até mesmo com acólitos cujos sobrenomes realmente começavam com um ca', mesmo com Safina caMillac, a sobrinha do archigos. Co'Dosteau agia como se ele fosse o próprio archigos da Concénzia. A piada entre os acólitos era que co'Dosteau tinha encantado a cabeça para que pudesse enxergar pela nuca. Ele certamente não parecia perder coisa alguma que acontecesse, especialmente se envolvesse Ana. Co'Dosteau parecia sempre estar de olho nela, ainda mais agora que todos os acólitos estavam pró­ximos da hora em que receberiam a Marca para se tornar um téni ou a temida Nota de Dispensa.

Mais amplo. Maior. O u'téni co'Dosteau estava errado, percebeu Ana. Ela quase conseguia ver o Ilmodo serpentear em volta do corpo e sabia que, se fi­zesse o contrário, se diminuísse o gestual, se tornasse menor em vez de maior, poderia moldar o Ilmodo com mais cuidado.

A tarefa era bem simples: o u'téni co'Dosteau levou a turma para o porão do Templo do Archigos, onde vários e'ténis do templo acenderam uma enorme pilha de carvão dentro da fornalha. A turma teria que usar o Ilmodo para apagá-la. Era uma tarefa que os acólitos poderiam ter que executar caso fossem eventualmente designados para virar um dos muitos ténis-bombeiros, que mais de uma vez salvaram a cidade de ser queimada, especialmente no po­puloso Velho Distrito. A turma terminou o cântico no momento em que Ana alcançou os acólitos, o gestual final fez as chamas tremerem e diminuírem, embora o carvão ainda teimasse em brilhar. Ana terminou o feitiço imediata­mente depois, as mãos se mexeram em um gesto rápido e sutil que alterou o desenho do Ilmodo para focá-lo.

O ar fugiu das chamas azuis remanescentes, que se apagaram com um estrondo audível, um barulho tão alto que fez com que todos dessem involun­tariamente um passo para trás quando a brisa quente com cheiro de cinzas passou por eles e fez tremular os robes verdes dos e'ténis. Apenas co'Dosteau não pareceu reagir. Ele permaneceu ao lado de Ana, com a ponta do ponteiro apoiada no chão de pedra e as mãos em concha na empunhadura, seu robe de téni parecia mais marrom do que verde na súbita penumbra do porão. O u'téni co'Dosteau encarou Ana com olhos escuros e curiosos, do fundo da gruta com borda peluda formada pela testa. Ela abaixou a cabeça para fugir do olhar. O cansaço que sempre acompanhava o uso do Ilmodo fez com que Ana não quisesse mais nada além de desabar no chão, especialmente após o uso naquela manhã com sua matarh. Alguns dos acólitos já tinham desabado no chão, esgotados pelo esforço.

Usar o Ilmodo sempre tinha um custo. Cénzi fazia os tênis pagarem pela Sua dádiva. Era a primeira lição que todos aprenderam há três anos.

— É por isso que a maioria de vocês não recebe uma Marca do archigos - comentou co'Dosteau no momento em que os e'ténis começaram a entoar e as brasas reacenderam. Não seria apropriado que o archigos sentisse frio em seus aposentos. Diante das chamas novamente acesas, a sombra de co'Dosteau tremeu na parede mais próxima de Ana. — Um único téni-bombeiro expe­riente teria sido capaz de apagar aquelas chamas sozinho. E uma habilidade necessária ou, a esta altura, metade das casas na cidade poderia ter queimado até as fundações. No entanto, foi preciso o grupo inteiro de vocês, e quase não conseguiram cumprir a tarefa. Vocês tiveram bastante tempo para rever o gestual apropriado e o cântico correto, e ainda assim vários ficaram atrapalhados com eles. - Co'Dosteau bateu o longo indicador na orelha direita. - Eu escuto e vejo. E não fiquei impressionado hoje. Alguns de vocês... - Ele hesitou, e Ana ergueu o olhar e viu co'Dosteau olhando para ela antes de esquadrinhar o resto dos acólitos - ... parecem achar que o Ilmodo virá não importa como gesticulem. Garanto que isso é um erro. Vajica co'Seranta, você concorda com essa afirmação?

Ana levantou a cabeça. Ela ouviu Safina ca Millac dar um risinho abafado e depois ficar abruptamente quieta diante do olhar maligno de co'Dosteau. - Sim, u'téni - respondeu Ana rapidamente. - Tenho certeza de que o senhor está certo.

Co'Dosteau resmungou como se estivesse satisfeito. - Isso é o bastante por hoje. Já estamos atrasados para a missa do archigos. Sei que todos vocês es­tão cansados pelo uso do Ilmodo, mesmo do jeito ruim como foi, mas vejam se conseguem ficar acordados até depois da Admoestação. Depois vão para casa dormir. Amanhã espero ver provas de que vocês realmente têm cérebros dentro destes crânios, por mais improvável que isso pareça neste momento.

 

HAVIA POUCAS PESSOAS além da turma do u'téni co'Dosteau na nave principal do templo: dois ou três integrantes das famílias ca' e co' em suas elegantes bashtas e tashtas, várias dezenas de ce', ci' ou cidadãos não graduados mais ao fundo, nas sombras do interior abobadado. O archigos Dhosti ca'Millac subiu o pequeno lance de degraus sabiamente colocado atrás do Alto Púlpito que ficava na frente do coro; mesmo quando ele parava no degrau superior, a cabeça, que estava ficando calva e era decorada por uma tiara dourada com um globo partido, mal chegava ao topo da estrutura de madeira. Aqueles abaixo dele viam predominantemente o cume careca da ca­beça do archigos.

Antigamente, Dhosti era um mísero artista de rua, um anão ginasta em um circo itinerante nos desertos do sul de Namarro, com nenhuma indicação sequer de status antes do nome. Mas um jovem téni por acaso assistiu a um dos espetáculos do circo e viu que, durante a fantástica demonstração de força e agilidade do jovem deformado, Dhosti estava se conectando, de maneira inconsciente e canhestra, ao poder que os seguidores da Concénzia chamavam de "Ilmodo", a energia invisível que os tênis moldavam através de seus cânti­cos rituais e intensa fé. Dhosti Millac, como era então conhecido, foi levado ao templo mais próximo e convertido à fé, uma coisa fácil nos Domínios, onde a Concénzia era a religião nacional, e qualquer um que quisesse se tornar um co' ou ca' teria que ser um fiel. A promessa que aquele téni — ninguém menos que o u'téni co'Dosteau em pessoa, então um humilde e'téni — enxergou em Dhosti foi maior do que qualquer um esperava. Ao longo de várias décadas, o anão subiu na hierarquia, de e'téni à sua investidura como archigos há 18 anos.

Dezoito anos como archigos. Dhosti sentia cada um deles como se fossem dez. Daqui a pouco, outra pessoa teria que arrancar o globo de Cénzi das mãos do seu cadáver e usar o robe verde e branco. Aqueles ao redor de Dhosti não paravam de lembrá-lo de que ele era mortal, de que ainda não havia desig­nado alguém para ser o próximo archigos, de que muitos dos a'ténis - os tênis imediatamente subalternos a Dhosti, que controlavam as maiores cidades dos Domínios - não concordavam com suas opiniões e consideravam-no "frou­xo". Eles queriam que a fé concénziana usasse seu poder e força, achavam que as respostas adequadas às declarações hereges não eram discussão e negocia­ção, mas sim as medidas descritas nos cruéis Mandamentos da Divolonté.

Dhosti suspirou tanto pelo cansaço de subir os degraus quanto pelos pensamentos.

O archigos olhou por cima da superfície gasta e polida de carvalho do Alto Púlpito para a pequena congregação reunida abaixo dele. Deu um pe­queno aceno de cabeça para o uténi co'Dosteau e também para sua sobrinha Safina, ali no meio dos acólitos, e começou a Admoestação.

- Nós, seguidores da Concénzia, sabemos que o Toustour é a palavra de Cénzi, que nos foi dada para que pudéssemos compreendê-Lo. Para nos guiar pelo caminho certo, nossos antecessores na Fé criaram um manual comple­mentar aos pergaminhos do Toustour, a Divolonté, e por longos anos ambos nos serviram. Mas devemos sempre nos lembrar que, embora o Toustour tenha sido inspirado em Vucta através de Seu filho Cénzi, e embora a Divolonté por sua vez tenha sido inspirada no Toustour, a Divolonté saiu de nossas mentes: as mentes de pessoas frágeis, não de Vucta ou Cénzi ou mesmo dos moitidi que, por sua vez, nos criaram. Assim como os moitidis, que se originaram de Cénzi, eram imperfeitos, nós também somos. Até mesmo mais imperfeitos. Na verdade, nós fiéis devemos constantemente olhar para a Divolonté que criamos e mudá-la em resposta ao mundo em que nos encontramos...

Era uma velha Admoestação, uma que Dhosti proclamava tão constante­mente que ele nem precisava pensar, e que aqueles que vieram ao templo nem sequer ouviam mais quando Dhosti recitava, como percebeu pelas cabeças sonolentas à frente. Ele viu o u'téni co'Dosteau tapar a boca para esconder um pequeno bocejo imprudente.

Você consegue entediar até si mesmo, velhote. Dhosti perguntou-se se foi isto que Cénzi tinha reservado para ele: um longo, lento e sonolento declínio do vigor da juventude. Perguntou-se se foi para isso que batalhou tanto para se tornar archigos.

Meia virada da ampulheta depois, ele encerrou a Admoestação e deu a Bênção de Cénzi para a congregação. Os fiéis ficaram agradecidos por irem embora do templo, especialmente os acólitos, que praticamente saíram cor­rendo diante do Alto Púlpito tão logo foram dispensados. Dhosti passou de­vagar pelo coral em direção à sacristia, com a cabeça baixa por causa da espi­nha curvada. Kenne, seu secretário e um o'téni, apesar da relativa juventude, pegou Dhosti pelo braço e ajudou-o a descer do tablado. - Archigos - sussur­rou Kenne em tom de urgência. - Há notícias...

Dhosti ergueu as sobrancelhas brancas e revoltas ao olhar a expressão grave de Kenne. — Não devem ser boas notícias, portanto. A kraljica?

A kraljica está bem. As notícias vêm de Brezno.

Ah, o que o a'téni ca'Cellibrecca fez?

Dhosti notou pela expressão no rosto redondo e sem graça de Kenne que o chute passou perto. Mas as próximas palavras do secretário quase fize­ram o archigos cambalear e cair no piso acarpetado. — O aténi ca Cellibrecca e o hirzg ca'Vörl capturaram e executaram vários numetodos na Praça de Brezno.

Ele ousa... - falou Dhosti em tom nervoso. Os criados tênis na entrada da sacristia olharam esquisito para o archigos, e ele os dispensou com um gesto. Os criados dispersaram-se quando Kenne ajudou Dhosti a entrar na sacristia e depois fechou a porta. Dhosti sentou-se na cadeira mais próxima e ergueu o olhar para o secretário. O coração batia acelerado contra as costelas, e a respiração estava difícil. O cansaço havia sumido, e ele sentiu uma ardência no estômago como se tivesse acabado de beber um copo de aguardente. - Diga-me — falou com Kenne. — Diga-me o que você sabe.

Kenne fez que sim com a cabeça. - O relatório é do oténi ci'Narsa, que é o téni pessoal da hirzgin. Ele diz que o a'téni ca'Cellibrecca primeiro extraiu confissões dos prisioneiros na Bastida Brezno. Evidentemente muitos dos nu­metodos, quando foram desfilados, mal conseguiam andar. Eles foram exibi­dos para a multidão conforme as acusações eram lidas e dadas as sentenças. Pelo menos cinco dos prisioneiros foram esquartejados antes de terem as cabe­ças cortadas. A multidão divertiu-se muito, de acordo com ci'Narsa. - O téni engoliu em seco; Dhosti notou que ele estava imaginando a cena. - Os corpos foram expostos publicamente na praça como um alerta para qualquer outro numetodo na cidade, e o hirzg e o aténi ca Cellibrecca fizeram discursos para a multidão. Pelo menos trinta foram mortos, pelo relatório que chegou aqui.

Ele foi capaz de ver os corpos: nas jaulas de ferro escuro, com os rostos esqueléticos encarando-o. - Eu sou o culpado - falou Dhosti baixinho.

Archigos?

Eu sou o culpado - repetiu ele. - O aténi ca'Cellibrecca não faz segredo que se opõe ao meu ponto de vista sobre os numetodos, mas agora ele foi além das palavras e partiu para a ação. A culpa é minha: eu andei dormindo aqui. Se fosse um archigos mais forte, ele não teria ousado.

O senhor não pode se culpar pelos atos do a'téni ca'Cellibrecca, archigos. Somente ele é o responsável.

Dhosti concordou com a cabeça e quis acreditar em Kenne, mas sabia que não podia. Ele era capaz de ver os mortos na Praça de Brezno, e todos pareciam estar olhando diretamente para ele. Minha culpa...

Isso era um aviso de Cénzi. Era Cénzi dizendo que estava perdendo o rumo, que se continuasse a perdê-lo, coisas piores do que essas aconteceriam.

Minha culpa...

Dhosti prometeu a Cénzi que o sinal não seria esquecido. Ele começou a respirar novamente, mas a ardência por dentro permanecia. - Faça uma carta para ca'Cellibrecca. Deixe claro para ele que eu não fiquei satisfeito com isso. E diga que eu espero que ele venha a Nessântico para o jubileu da kraljica, e que falaremos mais na ocasião.

Farei isso - respondeu Kenne. - Aqui, deixe que eu lhe ajude com o robe. Vou mandar um dos e'ténis para lhe acompanhar aos seus aposentos. O senhor pode descansar lá até eu levar a carta.

Não. Vamos trabalhar juntos nisso. No meu escritório. Eu estou descansando há muito tempo, Kenne. É hora de acordar novamente.

 

PORQUE ERA o mês do jubileu da kraljica, o quinquagésimo aniversário de seu reinado, o azul-celeste do céu era perfeito, decorado com bom gosto por almofadas de nuvens brancas. Porque era o mês do jubileu da kraljica, a primavera dignou-se a chegar algumas semanas mais cedo: as flores floresciam em um bombardeio ostensivo de tons puros em jardineiras debaixo de qua­se todas as janelas e em dezenas de grandes e pequenos jardins públicos de Nessântico. Porque era o mês do jubileu da kraljica, o sol - que até a semana passada fora uma pálida aparição facilmente sobrepujada pelos ventos frios e a neve vindos do Strettosei - entrou em ação e irradiou calor pela cidade. Porque era o mês do jubileu da kraljica, os dias foram cheios de cerimônias e rituais, que se tornaram ocasiões para aqueles cujos sobrenomes tinham prefixos ca' ou co' comparecerem e serem vistos, para se misturarem e fofocarem e, pelo menos, fingirem que estavam contentes como um todo por esse marco no longo reinado da atual kraljica sobre os Domínios.

Porque era o mês do jubileu da kraljica, nada que arruinasse essa perfeição seria permitido.

Ana co'Seranta fez questão de vestir amarelo para o compromisso da tarde no templo, uma vez que kraljica tinha determinado que a trombeta, com suas pétalas de tom amarelado de sol, era a flor oficial da comemoração, e nunca era possível dizer quando a kraljica se dignaria a dar uma volta de carruagem pela Avi a'Parete. Além disso, amarelo destacava os tons de castanho dourado de sua pele e fazia um belo contraste com o negro do cabelo. Quando a kralji­ca declarou a trombeta como seu símbolo, houve uma imediata correria para o último estoque da colheita de sapnuts, que davam os corantes dourados mais ricos. Tecido tingido por sapnut ficou muito difícil de ser encontrado e caro para comprar, mas quando chegou o convite do próprio gabinete do archigos para que Ana encontrasse Dhosti após a bênção da tarde, seu vatarh conseguiu encontrar uma pequena peça no mercado do Velho Distrito.

— Não, vatarh, o senhor não precisa fazer isso.

Mas é o que eu quero, Ana —falou ele para a filha. - Você vai ver o archi­gos, e quero que esteja linda.

Ele tentou tocá-la naquele momento, e Ana afastou-se rapidamente. Ela manteve o rosto virado até que o vatarh abaixasse a mão. Quando ele retornou naquela tarde, entregou a peça de tecido para a criada do andar de cima, Sala, não para Ana. Saiu da casa sem dizer outra palavra.

A tonalidade do tecido era talvez mais suave do que o adequado, o corante fora diluído ou misturado com outros mais baratos, porém o tom era aceitável. Ana fez com a peça uma tashta parecida com um robe, as dobras ficaram justas debaixo do colo e caíram livremente até as sandálias, uma moda magyariana que fora adotada nos últimos anos em Nessântico.

Eles estão aqui, vajica Ana. Mandaram uma carruagem aberta para a senhorita. - Tari, uma das duas criadas remanescentes do térreo, fazia uma reverência na porta do quarto de vestir de Ana. — O condutor é um téni — acrescentou. Ana olhou uma última vez para o espelho e, com um gesto, dispensou Sala, que segurava uma escova enquanto arrumava e amarrava com fitas o cabelo de Ana.

Diga que vou descer já - falou Ana para Tari, que inclinou a cabeça mais uma vez. Elas ouviram seus passos nas escadas.

Uma carruagem aberta - falou Sala baixinho. Ela foi a babá de Ana, depois continuou trabalhando com a família e tornou-se uma criada do an­dar de cima. Sala ainda se considerava responsável por Ana e permaneceu mesmo quando a fortuna da família diminuiu e o corpo de funcionários que cuidava da casa foi reduzido. — O archigos quer que a senhorita seja vista. Como deve ser.

Ou quer que o vento embarace meu cabelo — respondeu Ana, que conseguiu rir apesar do nervosismo. - De qualquer maneira, eu não vou me encontrar com o archigos, apenas um dos tênis menos importantes.

Mas então eles vão dar a sua Marca. Não mandariam buscar a senhorita se não tivesse passado. A senhorita vai se tornar uma téni.

Ana não ousou desejar que isso fosse verdade; ela não queria pensar a respeito. Na verdade temia receber algo pior do que uma Nota de Dispensa. "Nós descobrimos que você abusou de seu dom. Sabemos o que você fez com sua matarh... " Se fosse por isso que estava sendo convocada, ela não voltaria para cá, não como uma pessoa inteira.

Ana sentiu um arrepio. - Está com frio? - perguntou Sala. - Posso pegar um xale...

- Não, estou bem. — Não pode ser isso. Por favor, Cénzi, não permita que seja isso. Eles certamente não mandariam uma carruagem para me levar à Basti­da. Talvez Sala esteja certa...

Ela tirou a imagem da mente. Ana desejava a Marca mais do que po­deria admitir - por causa do trabalho e das lágrimas; pelo custo para a sua família; pela maneira como foi tratada pelos acólitos mais ricos, ou pela maneira como os tênis que trabalhavam na escola só faziam criticá-la. Há três anos, havia mais de setenta alunos em sua turma; sobraram apenas vinte no último ano. Três dos vinte receberam as Marcas no cénzidi da semana passada, foram promovidos a e'téni e colocados a serviço da fé concénziana. A fofoca entre os acólitos era que os demais receberam Notas de Dispensa, embora nenhum deles admitisse isso — Ana temia a forma como seu vatarh reagiria se ela recebesse a Nota. Seria pior do que tudo que ele já tinha feito até então.

"Não esperem que mais do que uns poucos de vocês recebam a Marca", dis­sera o uténi co'Dosteau, o responsável pelos acólitos, quando eles começaram os estudos. "Dos setenta presentes aqui, serão no máximo cinco, e provavelmente menos. A maioria sairá mais cedo e não receberá nem a Marca, nem a Nota. Para aqueles que conseguirem ficar, praticamente todos fracassarão em progredir no estudo do Ilmodo."

Ana não ouviu nada do templo ou do uténi co'Dosteau. Ainda assim, se Sala estivesse certa, o que era impossível, Ana deixaria essa casa e começaria a própria vida.

Era o que ela queria acima de tudo. Ficar longe daqui.

Ficar longe do vatarh. Não importa como se sentisse culpada por abandonar a matarh.

Obrigada, Sala - disse Ana ao afastar a cabeça da escova da criada. - Se você escovar mais vai arrancar o cabelo da minha cabeça. Devo voltar a tempo de levar a ceia para a matarh e continuo planejando ir à cerimônia de ilumi­nação hoje à noite com ela e o vatarh, por isso deixe a liteira pronta e contrate ajudantes para a ocasião.

Ana saiu devagar de seus aposentos para a escadaria principal e fez um esforço para manter um passo sem pressa, apesar de não querer nada além de correr. Tari estava na porta da frente com um acólito que vestia um robe verde-claro com a insígnia do globo partido do archigos no ombro esquerdo. Ele abaixou a cabeça assim que Ana desceu os degraus e ergueu o olhar apenas quando ela parou diante de si, mas não havia subserviência em sua expressão, apenas um olhar penetrante. Ana já tinha visto essa atitude antes, muitas ve­zes. A conduta inconsciente do menino disse a Ana que ele provavelmente era o caçula de uma família ca' e co', novo demais na Concénzia para ser alguém que ela reconheceria de vista. Ana perguntou-se se ele notou que havia poucos criados na casa, ou que o saguão precisava ser pintado, ou que havia teias de aranhas nos cantos no alto das paredes, perguntou-se se o acólito sabia que um dia ela foi como ele. Seja lá o que o menino estivesse pensando, ele jamais deixou transparecer na expressão impassível.

Se puder me seguir, vajica... — disse ele ao gesticular para a carruagem à espera na rua.

Ana seguiu atrás dele e saiu para o ar que ainda tinha um leve toque de inverno apesar do sol. Ela sentiu um arrepio e desejou, por um breve momen­to, que tivesse trazido o xale que Sala ofereceu, embora isso tivesse arruinado o efeito da tashta. Notou alguns dos vizinhos do lado de fora, nos jardins, que evitam olhar diretamente para a carruagem decorada com um elaborado globo rachado e esmaltado a ouro, o símbolo de Cénzi e da fé concénziana. Ana ergueu a mão para eles, que responderam com acenos de cabeça como se tivessem acabado de notá-la e a carruagem pela primeira vez. - Ora, bom-dia, vajica Ana. Como está sua matarh hoje? Quando o vajiki co'Seranta volta de Prajnoli...?

- A matarh ainda está muito fraca por causa da febre e ainda não consegue falar ou andar sozinha, mas está começando a se recuperar, obrigada por perguntar. Nós esperamos que o vatarh retorne mais tarde ao longo do dia ou à noite - respondeu ela quando o acólito abriu a porta da carruagem e ajudou Ana a entrar. Depois ele fechou a porta e tomou seu lugar, parado no estribo. O condutor realmente era um téni e, ao se virar para cumprimentar Ana, ela viu as duas faixas brancas nos ombros do robe verde e encapuzado. — E'téni. - Ela dirigiu-se ao condutor pelo posto indicado pelas faixas, o mais baixo escalão dos tênis. - Estou pronta.

Ele acenou com a cabeça novamente e virou-se. Ana ouviu o condutor murmurar, o cântico sibilado que ouviu várias vezes ao longo dos anos, suas mãos gesticularam e as rodas da carruagem começaram a se mover em resposta ao encantamento. Eles avançaram pela rua.

A carruagem prosseguiu no ritmo pomposo de uma pessoa dando passos rápidos, com o acólito balançando um sininho de vez em quando para alertar os pedestres, e o veículo saiu da Rue Maitré-Albert para a larga e ajardinada Avi aParete no Portão Sul. Duas imensas cabeças de pedra de antigos kralji ladeavam os portões da cidade e viravam-se lentamente para que sempre esti­vessem encarando o sol; debaixo de cada uma das esculturas, em um espaço aberto e entalhado nos pilares da antiga muralha, havia um e'téni cuja tarefa era invocar o feitiço que permitia que as cabeças se virassem - rapidamente exaustos pelo serviço, cada um deles era substituído na virada da ampulheta por um novo e'téni.

Ana sempre se perguntou se um dia ela estaria ali, invocando o feitiço enquanto a pedra girava e rangia acima dela em sua rotação diária.

Logo após o meio-dia, a Avi estava lotada: multidões de casais e famílias passeando perto da divisória central arborizada; clientes reunidos em volta de barraquinhas montadas conta os prédios do governo no lado norte da alame­da; gente passando pelos artistas de rua no lado sul; as carruagens ocasionais, todas movidas a cavalo à exceção do veículo de Ana. A maioria ia devagar em direção do Templo do Archigos, o sexteto de domos reluzentes sob a luz do sol. Ana ficou sentada na carruagem e tentou fingir não notar a atenção que estava recebendo. O sol que brilhava no globo partido montado na porta, a ausência de cavalos, o téni que entoava um cântico no assento do condutor, o barulho agudo do sininho do a'cólito - tudo atraía olhares para a carruagem. Algumas pessoas encaravam, a maioria de classes mais baixas, mas as famílias bem vestidas apenas acenavam, como se fosse bastante comum que uma das carruagens da Concénzia conduzidas por tênis fosse enviada para buscar al­guém. Ana notou que essas pessoas encaravam com olhos franzidos mesmo enquanto abaixavam a cabeça educadamente e quase conseguiu ouvir as con­versas sussurradas ao passar.

- Aquela é uma das filhas da família ca'Faromi? Ou uma das bisnetas da kraljica? Talvez Safina caMillac, a sobrinha do archigos; eu ouvi dizer que ela é a favorita para se casar com o a'kralj. O quê? A filha de Abini co'Seranta? Sério? Ah, sim, eu nunca a vi antes. Ela não esteve no baile de inverno do a'kralj? Baile de inverno? Ora, a família dela acabou de se tornar co', pelo que sei. Meu primo trabalha na Gardes a Liste e disse que a família pode se tornar apenas ci'Seranta no ano que vem. Por que ela está sendo levada ao templo, eu me pergunto?

Ana também se perguntava, e a esperança e o medo batalhavam dentro

dela.

 

HOUVE UMA BATIDA, depois a porta foi aberta lentamente. - Kraljica? O pintor ci'Recroix está aqui...

Marguerite, a kraljica Marguerite I de Nessântico, da linhagem real ca'Ludovici de onde saíram os kralji no último século e meio, parou de olhar para o filho e acenou com a cabeça para o criado do saguão, cuja cabeça apa­receu por trás das enormes portas da sala de visita de seus aposentos. — Prepare o relógio de água - falou com o criado. - Quando ficar vazio, traga o vajiki ci'Recroix à minha presença. - Ele levou as mãos entrelaçadas à testa, olhou rapidamente para o filho da kraljica e desapareceu. A porta fez um clique ao se fechar quando o criado saiu.

Seu filho, o a'kralj Justi, que um dia poderia, com a morte da mãe, se tornar o kraljiki Justi III, não se mexera. Geralmente a sala de visitas da kralji­ca era lotada de suplicantes, cortesãos e chevarittai: os ca' e co' de Nessântico. Hoje os dois estavam sozinhos. Justi estava parado diante de um cavalete de pintura perto da parede do lado oeste, banhado pela luz do sol. A aparência do a'kralj era real: barba com fios grisalhos aparada segundo a moda atual, como se uma fosse uma fina fita presa ao queixo; cabelo liso, penteado, un- tado de óleo e arrumado de maneira a minimizar a preocupante escassez no topo do crânio; um nariz comprido, olhos escuros e fundos, e um maxilar prognato e praticamente quadrado; todas características herdadas do pai que falecera há muito tempo. A semelhança ainda assustava Marguerite quando o olhava. O corpo do filho, moldado pelos dias passados caçando sobre uma sela, era o de um guerreiro que ficava velho - na juventude, o a'kralj fez parte da Garde Civile juntamente com os outros chevarittai de Nessântico. Apesar das longas décadas de ordem sob o reinado da kraljica, apesar de seu popular título de "Généra a'Pace," a Criadora da Paz, ainda havia as ocasionais dis­putas e escaramuças de fronteira, e Justi considerava-se um militar e tanto. Marguerite, que viu os relatórios da Garde Civile, tinha uma opinião comple­tamente diferente a respeito da capacidade do filho.

A cabeça de Justi inclinou-se lentamente enquanto ele observava a pintura.

- Isso é realmente maravilhoso, matarh - falou o akralj. A voz não condizia com a aparência; era fraca e infelizmente alta. Essa era outra característi­ca que ele herdou do pai. "Ele é bonito de se olhar", disse a própria matarh de Marguerite há várias décadas ao informar a filha que um casamento havia sido arranjado para ela. "Apenas evite que ele fale muito ou vai destruir completamen­te a ilusão... " Ela perguntou-se se outras matarhs por aí diziam a mesma coisa a respeito de Justi para suas filhas.

- Eu ouvi dizer que esse ci'Recroix era o mestre dos mestres - continuou Justi mas isso... - Ele esticou o indicador e parou bem perto de tocar na superfície da tela. - Tenho a impressão de que, se eu tocasse as figuras, sentiria pele quente e não pinceladas frias. É fácil entender como algumas pessoas di­zem que ele usa feitiçaria para criar suas obras - Justi andou de um lado para o outro em frente ao quadro. - Veja, os olhos parecem me seguir. Eu quase esperei que as cabeças se mexessem.

Ela teve que concordar com o filho que a pintura era primorosa, tão viva que era impressionante. Com três passos de comprimento, metade dis­so de altura, e uma refinada moldura dourada e cheia de filigranas com dois palmos de largura, a pintura mostrava uma família de camponeses: um casal com duas filhas e um filho. A esposa e o marido, vestidos com uma roupa branca manchada e casacões simplórios, estavam sentados atrás de uma mesa rústica com um jantar modesto e uma toalha cheia de migalhas que cobria a madeira. A filha mais nova estava sentada no colo da matarh, o menino estava no colo do vatarh, enquanto a bebê brincava com um cachorrinho debaixo da mesa. Marguerite tinha visto pinturas que pareciam realistas de longe, mas o quadro de ci'Recroix... Não importava quão perto chegasse, não importava o quanto se debruçasse e encarasse a superfície, em lugar algum a kraljica notava a marca de um pincel. A única textura era a da tela onde os pigmentos estavam: era como se a pintura fosse realmente uma janela para outro mundo. Mais detalhes da cena surgiam à medida que alguém se aproximasse cada vez mais, até a pessoa ser detida pela própria superfície envernizada do quadro. Marguerite sabia (porque tinha olhado) que, se alguém examinasse a touca na cabeça da matarh, não apenas veria a textura do tecido azul e como ele foi dobrado, mas também notaria que um rasgo fora remendado com uma linha de uma tonalidade ligeiramente diferente. Era possível notar como a matarh começava a abaixar o olhar para a filha no colo - a atenção começava a se afastar de quem via o quadro quando a mão da filha pegava a barra de sua blusa. A maneira como a blusa se dobrava em volta dos dedos frágeis e gorduchos da criança, as cicatrizes de acne que marcavam as bochechas da jovem matarh...

Esse era um verdadeiro momento paralisado e registrado. Era difícil estar no mesmo aposento que o quadro e impedir que ele dominasse a atenção, não parar de olhá-lo com um fascínio desesperado e examinar a infinita riqueza de detalhes, não ser atraído por seu encanto.

Feitiçaria, de fato.

Sim, Justi - falou Marguerite com impaciência. - Eu consigo entender por que você me recomendou ci'Recroix. Com certeza ele tem talento, embora os rumores a seu respeito sejam perturbadores. - Nem o quadro, nem o pintor eram o motivo pelo qual ela chamara Justi. A kraljica queria contar o que ti­nha acabado de saber: o hirzg Jan ca Võrl de Firenzcia foi o único de todos os líderes dos Domínios a recusar o convite de Marguerite para a comemoração do jubileu. Uma clara quebra de etiqueta, certamente, e, conhecendo ca'Vörl, uma afronta proposital. Mais preocupante, ele colocou o exército firenzciano em manobras na mesma ocasião — não perto das fronteiras orientais próximas a Tennshah, mas próximo ao rio Clario e Nessântico. Ela já tinha enviado um comunicado indignado a Greta ca'Vörl, sua sobrinha e a hirzgin de Firenzcia. Marguerite sabia que Greta daria o recado ao marido sobre seu desagrado. De­pois do incidente com os numetodos em Brezno, que fazia dois meses agora, esse era um fato perturbador.

E havia outra questão urgente que parecia ser um eterno assunto entre os dois. Mas Justi, como de hábito, parecia não ter interesse nos assuntos de estado e política. Ele já estava falando antes que Marguerite terminasse.

Verdade, matarh. Mal posso esperar para ver o que ele vai fazer. Será um belo retrato oficial de seu jubileu.

Justi - interrompeu Marguerite duramente, e o belo maxilar esculpido do filho se fechou um estalo repentino dos dentes brancos e fortes, que eram outra (e mais sortuda) característica da família. - Haverá outro anúncio antes do fim do jubileu.

O que, matarh? - perguntou ele, mas Marguerite sabia que Justi adivinhara, sabia pela maneira como os lábios se contorceram debaixo da linha preta e ondulada do bigode. Seu filho podia ser mimado, indolente e talvez, de certa forma, desregrado, mas não era estúpido.

Faz sete anos agora que Hannah morreu. Está na hora. Hora de você se casar novamente - disse a kraljica. As feições de Justi se contorceram como se ele tivesse mordido uma amora-do-brejo azeda, mas Marguerite ignorou a careta. Já tinha visto essa reação muitas vezes. — O casamento é uma arma mais forte e permanente do que uma espada.

Ele deixou escapar um suspiro que quase conseguiu conter. - Eu sei, matarh. A senhora já disse isso muitas vezes. Pensei em gravar o aforismo no meu sabre. - Justi deu um muxoxo, parou de olhar para ela e voltou para o quadro.

Então mostre que você entende — Marguerite respondeu com sarcasmo e franziu os lábios, irritada com o tom do filho.

Eu tenho escolha? — perguntou sem dar chance de ela responder. — Imagino que tenha candidatas em mente? Alguém com contatos apropriados, sem dúvida. Alguém cujos filhos possam viver, na prática.

Marguerite respirou fundo. - Não foi culpa de sua esposa que seus fi­lhos morreram. Ora, o pequeno Henri tinha 5 anos e estava bem quando foi levado pela catapora vermelha, e a pobre Margu... — Seus olhos se encheram de lágrimas, como geralmente acontecia quando pensava na neta homôni­ma. Hannah podia ter sido da fértil linhagem ca'Mazzak, cujos descendentes governavam Sesemora, mas não teve a sorte de sua matarh, cujos nove filhos sobreviveram e tornaram-se adultos. Não, Marguerite tinha bastante certeza de que a culpa estava na semente ca'Ludovici. Em Justi. Corpulenta e sem gra­ça, Hannah, todavia, cumpriu com suas obrigações de esposa e deu à luz oito filhos ao longo dos dez anos de casamento com Justi, mas apenas dois deles sobreviveram além do segundo ano: Henri, o oitavo e último filho, nascido de um parto demorado e difícil ao qual Hannah sobreviveu por menos de um mês; e Marguerite, a segunda filha, que tinha 11 anos e era a favorita da kraljica até que o cavalo que puxava sua carruagem disparou inesperadamente e o veículo desgovernado bateu em uma árvore. A própria Marguerite cuidou da menina gravemente ferida e o archigos enviou — secretamente, pois tal coisa era heresia e expressamente proibida pela Divolonté — um téni treinado em cânticos que curam, mas ainda assim a pequena Margu não sobreviveu ao passar da noite.

Depois Marguerite foi aos estábulos e ela mesma matou o cavalo.

Eu sei, matarh - disse Justi. — Foi a vontade de Cénzi que eles morressem. E qual é a vontade da kraljica, que só perde para a de Cénzi? Com quem eu devo me casar, alguma desamparada de Magyaria? Alguém daquelas famílias meio bárbaras de Hellin? Quais das províncias estão causando pro­blemas? Mande que elas enviem suas filhas para a senhora inspecioná-las e de­pois subjugar as províncias por casamento. Mais uma vez, no lugar de vencer seus adversários pela guerra, a senhora irá vencê-los através de um casamento. Diga-me: quem a senhora escolheu?

Eu não gosto de seu sarcasmo, Justi.

Tenho certeza que não. E tenho certeza que me importo com os seus gostos tanto quanto a senhora se importa com o que sinto sobre essa questão. Quando a senhora vai se casar, matarh? Há quanto tempo o vatarh está morto? Vinte e três anos? Vinte e quatro? O que impediu a senhora de se casar por todos esses anos?

Por um momento, Marguerite temeu que Justi soubesse sobre Renard, mas a expressão relaxada do filho deixou claro que havia apenas irritação em sua voz. - Você sabe por que eu não me caso.

Sim, eu sei. "A espada na bainha ainda ameaça..." Eu também já ouvi esse aforismo muitas vezes. - Justi suspirou. Ele ergueu e abaixou as mãos ao lado do corpo. - Então, quem vai ser, matarh? Quando a senhora fará o grande anúncio de meu noivado, e quando eu verei pelo menos um retrato dessa pessoa?

Eu não escolhi ninguém ainda - disse Marguerite. - Pensei que você, sendo o a'kralj, talvez quisesse dar algumas sugestões. — Ela viu a nova careta do filho e praticamente conseguiu ouvir o pensamento que a acompanhou: A senhora tornou-se kraljica aos 18 anos, matarh. Eu tenho 47e ainda sou o a'kralj, ainda espero pacientemente que a senhora morra... — Mas eu tenho algumas opções que você deveria considerar. A família ca'Mulliae, por exemplo, pode ser uma boa escolha dadas as conexões nas províncias do norte, especialmente com a heresia dos numetodos se espalhando por lá. Ou até mesmo alguém muito ligada à Fé, como a sobrinha do archigos, Safina, que você já encontrou algumas vezes.

Ela estava tentando acalmá-lo, sabia como era forte a crença do filho nos dogmas da Concénzia, mas percebeu que Justi não estava mais indiferente, nem escutando. Ele estudava a pintura de ci'Recroix como se pudesse haver respostas escondidas ali. — Você pode tomar a decisão, Justi, se é o que deseja - continuou Marguerite. - Encontre alguém de seu interesse ou não, como preferir. Encontre alguém que entenda que é preciso ignorar suas... aventuras com metade das grandes horizontales de Nessântico. Tudo que eu peço é que a pessoa que você escolher também dê alguma vantagem política para nós e um herdeiro ou dois para você, e que sua decisão seja tomada ao fim do meu jubileu. Caso contrário, eu farei o anúncio por você. Estamos entendidos?

Justi torceu o nariz, que quase tocou o quadro. - Sim, matarh. Perfeito. Como sempre. - Enquanto ele falava, houve uma batida discreta nas portas. Justi empertigou-se e respirou fundo enquanto Marguerite olhava feio para ele. - E bem a tempo também. Matarh, estou saindo.

Tem mais coisas que preciso discutir com você, Justi.

Não duvido. Mas isso vai ter que esperar. Seu pintor aguarda a senhora.

Justi fez menção de ir à porta. - Justi - chamou Marguerite, e ele parou.

Eu sou sua matarh e você é meu filho, meu filho único. Eu também sou a kraljica e você é o a'kralj. Você sempre será meu filho. Quanto ao outro... alguns de seus primos adorariam me ver mudar de decisão quanto ao meu herdeiro. E eu posso mudar.

Justi não respondeu, mas foi à porta e abriu-a. Marguerite viu de relance um homem alto à espera lá fora: robe negro, cabelo escuro, barba negra, pupilas escuras. Era um pedaço da noite andando de dia. Justi acenou com a cabeça para o homem, que levou as mãos entrelaçadas à testa ao se curvar. - Vajiki ci'Recroix - falou Justi. - Tenho que dizer que admiro muito o seu talento. A kraljica está esperando lá dentro neste momento. Espero que você consiga captar todas as complexidades que ela esconde tão bem...

 

CONFORME ELES SE aproximavam do tempo, a multidão aumen­tava e o tilintar do sininho do acólito virou um barulho constante e próximo demais do ouvido de Ana para servir de consolo. Durante o mês do jubileu da kraljica, a população de Nessântico inchava com turistas e visitantes na esperança de encontrar a kraljica e misturar-se aos ca' e co'. Todo dia, o ar­chigos saía do templo para abençoar a multidão pontualmente na Segunda Chamada, depois seguia pela Avi a'Parete até o rio A'Sele pela Pontica a'Brezi Nippoli. Lá, no Velho Templo na Ilha A'Kralji, ele rezava em gratidão pela saúde da kraljica.

Perto da praça do templo, uma fda da Garde Kralji, a guarda da cidade, mantinha a multidão afastada das portas por onde o archigos apareceria. Os cajados com ponta metálica dos gardai projetavam-se sobre as cabeças do pú­blico como as grades de uma cerca, e Ana notou o azul-escuro dos uniformes através das cores menos sóbrias das pessoas que aguardavam o aparecimen­to do archigos. O acólito parado na porta da carruagem de Ana tirou um apito do robe e tocou uma nota aguda. Os gardai responderam e abriram um espaço na multidão para a carruagem passar. Eles entraram na praça, as rodas da carruagem trepidaram em cima das lajotas de mármore, o cântico do téni-condutor terminou assim que o veículo parou à esquerda das portas principais. O acólito pulou do estribo, abriu a porta e ajudou Ana a descer.

- Quem eu devo ver? - perguntou Ana para o acólito enquanto olhava em volta. Ela não viu ninguém obviamente esperando por eles. - O u'téni co'Dosteau?

- Espere aqui — respondeu o acólito. — Foi tudo que me disseram. Depois da bênção do archigos...

As grandes trompas, uma em cada um dos seis domos do templo, soaram naquele momento: notas graves e retumbantes que tremeram e gemeram como gigantes sofrendo, um lamento que arranhou as pedras dos prédios ao redor da praça e espantou revoadas de pombos dos telhados. A multidão ficou calada sob o ataque sonoro e levou as palmas entrelaçadas à testa assim que as enormes portas do templo, esculpidas como árvores entrelaçadas, foram aber­tas. Ana fez o mesmo gesto de reverência ao lado da carruagem. Uma falange de acólitos celebrantes em simples robes brancos saiu primeiro, cada um com um braseiro de incenso que fazia barulho e balançava na ponta de uma cor­rente de latão, a fumaça cheirosa subia e era levada pela brisa leve. Ao entrar no sol, o grupo de acólitos começou a cantar, as vozes jovens e melodiosas dançavam com as complexas harmonias do conhecido hino "Cénzi Eterno" de Darkmavis. Uma dúzia de a'ténis em robes verdes do conselho do archigos seguiram os acólitos — o mais alto escalão dos tênis, homens e mulheres ido­sos que pestanejaram diante da agressão da luz solar depois de saírem da pe­numbra da basílica do templo. Então, finalmente, saiu a carruagem aberta do archigos, feita na forma do globo partido de Cénzi, o azul dos mares um puro lápis-lazúli, o verde e dourado dos continentes uma mistura de esmeraldas e ouro, a rachadura que partia o mundo brilhante com minúsculos rubis ver­melhos. Um téni entoava ao lado de cada uma das quatro rodas da carruagem e elas giravam em resposta, enquanto o próprio archigos, vestindo um robe verde, ficava sentado no topo do globo com as mãos entrelaçadas encostadas na testa como se fosse uma pessoa qualquer da multidão. Quatro acólitos em robes brancos carregavam longas traves, sobre as quais foi estendida uma co­bertura de seda verde e dourada para proteger o archigos dos elementos.

O archigos Dhosti caMillac, apesar de seu posto como líder da fé concénziana, estava longe de ser uma figura impressionante. O anão era velho, quase tão velho quanto a própria kraljica. O topo da cabeça com manchas de idade tinha uma borda fina de cabelo branco logo acima das orelhas que descia e dava a volta pela nuca. Sua estatura, que já era diminuta, ficava ainda menor pela curvatura da espinha, que forçava o queixo contra o peito, e os braços que surgiam das mangas curtas e largas do majestoso robe eram finos e balançavam com a pele solta e enrugada. No entanto, os olhos eram vivos e brilhantes, e a boca sorria.

Ana devolveu o sorriso só de vê-lo; ela jamais esteve tão perto assim do archigos, nem mesmo no templo durante as cerimônias. Provavelmente era apenas coincidência, mas ele pareceu notá-la também e acenou uma vez com a cabeça na direção de Ana antes de se voltar para a multidão. O archigos ergueu as mãos e a voz, sem dúvida reforçada pelo domínio do Umodo, come­çou a entoar a bênção tradicional de Cénzi para o povo.

Ana ouviu a confusão antes de vê-la: outra voz que disputava com a do archigos. Ela desviou o olhar do archigos para a multidão e viu de relance al­guém ajoelhado no meio do povo. Os gardai perceberam o homem no mesmo instante e começaram a se mover em direção a ele, mas já era tarde demais. Ana notou que o estranho tinha uma pele avermelhada e cabelo cor de palha. Ele mexeu as mãos em um gesto como se desse um empurrão e os gardai entre ele e o archigos caíram como se tivessem sido golpeados por um punho invi­sível, assim como as pessoas em um círculo ao seu redor.

O acólito ao lado de Ana prendeu o fôlego; o téni no assento de condutor da carruagem deu um gemido de susto. A multidão estava gritando agora: "Um numetodo... ! O archigos...!" Ana não conseguiu ouvir o cântico mágico do homem, mas sua boca continuava se mexendo e um brilho lampejante azul e branco envolveu a mão direita. Ana já tinha visto efeitos similares, ela pró­pria já havia executado o feitiço de maneira malfeita, a propósito. Ana sabia as palavras capazes de invocar o calor do ar e concentrá-lo em uma bola, mas o numetodo executava o feitiço mais rápido do que qualquer téni, com apenas algumas palavras...

Os gardai que o homem derrubou estavam começando a se levantar cam­baleando, mas ela tinha noção de que nenhum deles conseguiria alcançá-lo a tempo de impedir o ataque. Ana sabia que o archigos também tinha visto a confusão, mas quando olhou para ele, Dhosti ca'Millac continuava sorrindo, as mãos ainda estavam erguidas para dar a bênção, embora ele tivesse parado de falar. A exceção disso, o archigos não reagiu.

O numetodo - ele tinha que ser um integrante daquele grupo misterioso, quem mais ousaria fazer uma coisa dessas? - moveu o braço para atirar o brilho da mão na direção do archigos.

Ana, quase sem perceber, começou a sussurrar um cântico e, conforme o brilho saiu voando e assobiando na direção do archigos, que ainda sorria, ela juntou as mãos diante do corpo. A bola de fogo azul soltou chiados e faíscas e sumiu bem antes de alcançar o archigos. O numetodo, parado estarrecido na praça quando viu o ataque falhar, foi derrubado por uma onda de homens da Garde Kralji. Ana viu o sujeito ser capturado enquanto ela cambaleava por ter lançado o feitiço e era tomada pelo inevitável esgotamento. Por um momento, a visão ficou um pouco escura, e ela pensou que iria desmaiar completamente, mas a sombra passou e deixou Ana apenas com uma imensa fadiga.

A confusão acabou quase tão rapidamente quanto começou. A Garde Kralji voltou a formar sua fileira enquanto o agressor era levado embora da praça para um dos prédios mais próximos, com as mãos atadas e a boca amor­daçada, enquanto o archigos, que parecia completamente inabalado pelo inci­dente, falou mais alto do que o barulho da multidão para terminar a bênção. Ele gesticulou para a Garde Kralji a fim de deixar claro sua intenção de conti­nuar a procissão, e os gardai abriram um espaço na multidão para o archigos passar com a carruagem.

O archigos olhou para Ana e fez um gesto.

Por um instante, ela pensou que estivesse enganada, até que o téni- -condutor falou em um sussurro ríspido e atemorizado. - Ande logo, vajica. O archigos chamou você. - Ela fez um esforço para ignorar a vontade de não fazer nada além de se deitar e fechar os olhos ao ser tomada pelo inevitável cansaço da feitiçaria. De maneira hesitante, com as pernas doendo, ela andou na direção da carruagem e olhou com certo nervosismo para os ãténis que encaravam sua aproximação.

Ela ficou apoiada em um joelho só ao lado do globo, abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi para o archigos.

Levante-se, vajica, por favor. - Ela ouviu o archigos dizer em tom alegre. - E suba aqui comigo. Eu gostaria de falar com a minha nova pro­tetora. - Ana ouviu o riso abafado de alguns dos aténis atrás dela e ficou vermelha. Mas o archigos estava estendendo um braço curto e grosso para Ana, e um dos ténis-condutores abriu a porta do globo. O gesto revelou um pequeno lance de degraus que levava à plataforma onde estava o archi­gos, debaixo de sua capota de seda. Ana subiu até ele e ficou em um joelho só assim que chegou à plataforma. Ajoelhada, ela era tão alta quanto o archigos. Ana pegou a mão dele e tocou a palma com os lábios. Ela sentiu que estava sendo erguida pelo archigos e levantou-se. - Consegue ficar em pé? - sussurou ele.

Um pouquinho.

Então deve sentar-se. - Ele abaixou um assento instalado no compar- timento da carruagem. — Dá no mesmo, afinal de contas. Caso contrário, você teria que ficar ali. - Ela notou que a plataforma à esquerda do archigos era vários centímetros mais baixa. - Aparências - falou ele com um sorriso gentil. Ela desabou de bom grado no assento de madeira dura e ficou com a cabeça da mesma altura que o archigos. — Notei que você aprendeu a reverter um encantamento tanto quanto criar um, vajica co'Seranta. Estranho, eu não achava que isso era algo geralmente ensinado aos acólitos. Nem, creio, o u'téni co'Dosteau conhece contrafeitiços que possam ser lançados tão rapidamente.

Ana sentiu o rosto ficar vermelho de novo, mas a fadiga tornou a resposta lenta. - Archigos, eu...

Ele dispensou a reclamação com uma risada gentil. - Eu nunca estive em perigo real. Os numetodos não têm fé para usar o Ilmodo de verdade. O ataque nunca teria me alcançado, mesmo que você não tivesse feito nada, não com os a'ténis aqui. E eu tenho as minhas próprias defesas caso eles falhassem. - O sorriso abrandou o que poderia ter sido uma bronca.

Desculpe pela minha presunção. Eu devia ter percebido...

Não há necessidade para se desculpar, vajica. Você apenas mostrou que o que eu ouvi dizer a seu respeito estava correto. Agora, venha comigo para que possamos conversar. Não importa o que aconteça, é fundamental que o cronograma não seja interrompido, afinal de contas. O que importa são as aparências.

O que ele quis dizer com "o que eu ouvi dizer a seu respeito..."?

Novamente, o breve sorriso sincero do archigos fez Ana relaxar e deixar de ficar vermelha. Os ténis ao lado da carruagem entoavam, a cobertura de seda acima deles tremulava na brisa enquanto os acólitos que seguravam a capota começaram a andar, e a carruagem seguiu adiante, devagar e suavemente. Os aténis fizeram fila para seguir a carruagem e atrás deles vieram os u' e o ténis, depois final­mente seguiu o coral de acólitos, enquanto os gardai com seus longos cajados entraram em formação em ambos os lados da rua. A procissão saiu da praça e virou na Avi a'Parete. O archigos acenou para a multidão ao longo da alameda enquanto continuava a falar com Ana. - Com certeza você imaginou por que eu pedi para lhe encontrar.

O senhor pediu, archigos? - Ana deixou escapar. - Eu pensei...

Eu sei o que você pensou - respondeu o archigos ca'Millac. - Você estava errada.

 

ELE FICOU À ESPREITA no limite da multidão, como sempre fazia. Ficou observando, como sempre fazia.

Mesmo no calor do sol, Mahri se metia em várias camadas de roupa, todas com grandes rasgos e as barras puídas, o tecido sujo e escurecido onde era arrastado pelo chão. O capuz estava erguido, portanto o rosto arruinado e cheio de cicatrizes só podia ser visto de relance; a órbita vazia do olho esquer­do, o nariz amassado na bochecha direita, o vão escuro entre os dentes rema­nescentes, as marcas brancas e reluzentes de queimaduras no lado esquerdo do rosto que repuxavam e retorciam a pele. Aqueles que olhavam a face de Mahri rapidamente desviavam o olhar, exceto as crianças que às vezes apontavam e encaravam.

"É apenas Mahri" diziam os pais ao afastar os filhos com uma breve olhadela para o próprio Mahri, falavam como se ele não estivesse ali, como se não pudesse vê-los ou ouvi-los. Às vezes, eles jogavam um d'folia de bron­ze na direção de Mahri para compensar a grosseria do filho ou da filha. Ele olhava para a pequena moeda no chão e não se dignava a pegá-la. Talvez por esse motivo, ou talvez por outros, ele era às vezes chamado de "Mahri Maluco".

Ele geralmente não comparecia à bênção do archigos, mas tinha ouvi­do os boatos que circulavam pelo submundo de Nessântico; tinha visto as possibilidades em sua tigela premonitória e, portanto, ele veio. O numetodo roi estúpido, tão estúpido que Mahri decidiu que a atrapalhada tentativa de assassinato devia ter ocorrido movida apenas pelo próprio impulso idiota do homem. Certamente o enviado ci'Vliomani não teria aprovado isso. Não, essa pessoa tinha que ser um dissidente dentro dos numetodos, e alguém que o enviado rapidamente iria repudiar apenas para salvar a própria pele. Aquele numetodo não era um dos que Mahri reconhecia, provavelmente era alguém novo na cidade. Ele balançou a cabeça; quem quer que fosse, estava destinado a um fim lento e doloroso.

Porém, o que interessava mais a Mahri do que o pobre aspirante a assassino era a jovem que o archigos posteriormente chamou para sua carruagem. Mahri viu o veículo conduzido por tênis perto do Portão Sul e imaginou quem o archigos mandara chamar, portanto seguiu a jovem até o templo. Ele viu que foi a defesa dela que frustrou o ataque. Mahri sabia o suficiente a respeito das técnicas de uso do Ilmodo pelos ténis, de modo que a velocidade e o poder com que a mulher reagiu fizeram com que ele arregalasse o olho remanescente e coçasse a pele arruinada do queixo.

Agora ele sabia por que a imagem de uma jovem assombrou a tigela premonitória.

Essa aí... essa aí merecia ser observada. Obviamente, o archigos acha­va a mesma coisa, visto que a mulher ficou com ele enquanto os ténis em volta da carruagem do anão continuavam os cânticos e o veículo fazia a curva na Avi, seguindo em lenta procissão para o Velho Templo em meio ao renovado clamor das trompas acima dos domos do templo e da vibra­ção da multidão - duplamente contente que seu amado líder religioso escapara intacto.

Enquanto a multidão aproximava-se do archigos, Mahri viu o povo ir embora e não ficou surpreso que o anão continuasse com sua rotina apesar do ataque. Afinal de contas, rituais eram importantes em Nessântico. A cidade era presa, restrita e sufocada por rituais tão antigos e inflexíveis quanto as muralhas que outrora a cercavam. A carruagem passou a poucas dezenas de passos de onde Mahri estava à espreita, no canto de um prédio residencial. Ele encarou não apenas o archigos, mas a mulher sentada ao lado do homem, que parecia incomodada com a atenção, com o rosto abatido.

Mahri tinha que observar essa jovem. Tinha que saber quem era ela.

Mahri recuou para as sombras entre os prédios. Em silêncio, ele mesmo como uma sombra, Mahri afastou-se da Avi e do barulho e seguiu seu próprio caminho secreto pela cidade.

 

VOCÊ ESTÁ COMEÇANDO A SE RECUPERAR? - perguntou o archigos, e Anna concordou com a cabeça. Ele não falou nada com ela por vários minutos e deixou que se recuperasse. A fadiga estava indo embora e ela não sentia mais necessidade de dormir, embora uma dor intensa ainda perma­necesse nos músculos.

Sinto-me muito melhor agora, obrigada.

Diga-me então, vajica co'Seranta, sabe por que quero falar com você? Ana balançou a cabeça energicamente diante da pergunta do archigos. - Certamente não, archigos. Na verdade, eu pensei... - Ela balançou novamente a cabeça.

O som das trompas foi sumindo à medida que se afastavam do templo, mas a multidão ainda saudava o archigos conforme a carruagem passava, com as mãos entrelaçadas contra as testas. Os acólitos continuavam cantando outra composição de Darkmavis. O archigos acenou com a cabeça para as pessoas ia longo da Avi enquanto se aproximavam da Pontica a'Brezi Nippoli. Ele ergueu a mão para cumprimentá-las enquanto falava com Ana. Mesmo sem olhar para ela, Ana tinha a impressão de que o archigos via suas expressões, sus lábios torcidos e as sobrancelhas baixas. - Prossiga — disse o archigos baixinho.

Eu pensei, na verdade, que falaria apenas com o u'téni co'Dosteau - continuou Ana. — De tantas vezes que ele me corrigia ou dizia que eu não estava me esforçando ou prestando atenção às aulas, pensei que ele fosse me dar uma Nota de Dispensa. Eu sabia que todas as Marcas já foram assinadas... - O archigos virou-se completamente para o lado e Ana imaginou se o ofen­deu. - Desculpe, archigos. Eu não paro de tagarelar e não deveria falar assim do u'téni co'Dosteau, que teve uma atitude completamente correta comigo. São fui uma boa aluna para ele, infelizmente.

Eu realmente assinei as Marcas que o Conselho dos Acólitos passou para mim - disse o archigos. Ele acenou para a multidão. Sorriu. O sol dan­çou no campo de seda acima da cabeça do archigos. Ele não olhou para Ana em momento algum. — Seu nome não estava em nenhuma delas.

Ana aceitou com um aceno de cabeça, sem conseguir falar. Apesar de ter antado coragem para o fracasso inevitável, a intensidade da decepção que : amou conta de Ana mostrou como ela foi teimosa ao ter esperanças de que estava errada. Três anos... Três anos e todas as solas que minha família pagou à Concênzia pelo privilégio, um dinheiro que o vatarh realmente não tinha, um dinheiro que ele implorou e pegou emprestado... Três anos e agora o vatarh ficaria zangado, e isso seria o pior de tudo...

Ana disse para si mesma que não choraria, embora tenha feito isso escondida tantas noites desde que ouviu falar das Marcas, mas até chegar o aviso que temia da parte do uténi co'Dosteau, ela enxugaria as lágrimas e fingiria que tinha confiança, pelo menos durante o dia. As palavras do archigos fizeram seus olhos arder e a alameda ao redor deles balançar como se estivesse debaixo das águas do A'Sele. Ana sentiu as bochechas molhadas e passou a manga nelas com fúria, odiou chorar diante do archigos, odiou que seu orgulho fosse tão arrogante que não pudesse aceitar o destino que Cénzi escolheu para ela com a devida humildade, que sua fé fosse tão frágil e o medo, tão grande.

Ana torceu que o archigos não soubesse o que ela fez com sua matarh. Se soubesse, estaria completamente perdida.

Ana percebeu que o archigos estava olhando para ela e limpou os olhos novamente. - Você tem que saber que foi o u'téni co'Dosteau que me procu­rou após eu receber as Marcas deste ano - falou o archigos baixinho. - Ele queria falar comigo em particular. Sobre você, vajica co'Seranta. Tem alguma idéia do que ele disse?

Ana fez que não com a cabeça, muda. A esperança deu as caras novamente, surrada e ensangüentada, mas o medo deu uma gravata na esperança e sufocou-a. - Não vou contar tudo - continuou o archigos. - É suficiente que você saiba que o u'téni co'Dosteau insistiu que o Conselho dos Acólitos cometeu um erro, que eles olharam muito para os sobrenomes e pouco para os estudantes em si e para as avaliações do u'téni co'Dosteau. Ele me contou que tinha uma aluna que às vezes criava os próprios feitiços com o Ilmodo em vez de usar os do instrutor. Uma aluna que usava o Ilmodo para fogo, terra, ar ou água, enquanto a maioria dos estudantes descobria que tinha talento para ape­nas um desses elementos. Uma aluna que conseguia citar o Toustour e parecia ser uma devota seguidora da Divolonté, embora circulassem rumores entre os colegas sobre tendências de um numetodo. Uma aluna com um talento natu­ral que ela não sabia muito bem como canalizar e controlar, que começou um terrível incêndio, disse o u'téni co'Dosteau, na sala de jantar dos acólitos certa noite, e que depois apagou antes que os ténis-bombeiros chegassem.

Foi um acidente - começou Ana, mas o archigos olhou para ela com a mão erguida.

Eu fiquei impressionado pela força do argumento do u'téni, especialmente depois que ele me lembrou que Cénzi às vezes se manifesta até mesmo na mais comum das formas. Como diz o Toustour...

"Até mesmo o mais humilde pode ascender, até o mais baixo pode ser exaltado." - Ela fez a citação sem pensar.

Ele riu e indicou o próprio corpo atrofiado com a mão. - Até o mais baixo - repetiu. - Vajica co'Seranta, você ainda deseja aceitar uma Marca? Está cisposta a entrar para a Ordem dos Ténis se for chamada?

Ah, sim! - respondeu Ana correndo. A afirmação irrompeu quase como um grito e uma risada que arrancou lágrimas dos olhos novamente. Ela pen­sou que a carruagem deveria estar sacudindo com a onda de alegria liberada relas palavras. - Com certeza, archigos.

Ótimo. - O archigos riu diante da alegria incontida de Ana. - Então vou preparar e assinar sua Marca. Você não será mais uma vajica, será o'téni Ana co'Seranta.

Ele falou o título devagar e com clareza. Ainda olhava para Ana, com a cabeça, que era grande demais para o pequeno corpo, inclinada para o lado como se esperasse pela pergunta que ela queria fazer. O silêncio do archigos deu coragem para Ana falar. - Eu devo ter escutado errado, archigos. Pensei... pensei que o senhor falou o'téni.

Eu falo tão mal assim? - disse ele com uma risada. - O u'téni co'Dosteau foi... bem, foi bastante persuasivo, e depois do que testemunhei... acho que já temos mais do que e'ténis suficientes. O u'téni co'Dosteau acredita que você já esteja bem além da habilidade que se espera de um e'téni, e eu concordo com ele. Na verdade, você fará parte da minha equipe pessoal. Considera aceitável?

Ela não tinha palavras. Só conseguia concordar com a cabeça e manter um sorriso no rosto, sem ação.

Considero que aceitou, então - disse o archigos. Ele suspirou e virou-se para erguer as mãos novamente na direção da multidão. — O'téni, olhe para trás da carruagem. Observe os rostos que enxergar ali.

Ana olhou para trás, lá embaixo. Os a'ténis logo atrás do veículo devolve­ram o olhar, quase todas as expressões estavam erguidas na direção da carrua­gem. Um rosto em especial chamou sua atenção. Ela conhecia aquele a'téni: Orlandi ca'Cellibrecca, o a'téni de Brezno, téne dos Guardiões, e o homem que prendeu dezenas de numetodos no último Dia de Cénzi em Brezno, julgou os prisioneiros por uso proibido do Ilmodo e depois mandou executá-los na praça do templo diante da vibração de uma multidão - o rosto dele estava voltado para Ana, e o olhar era intenso, de quem avaliava.

Está vendo? — falou o archigos baixinho. - Todos estão se perguntando por que você está aqui em cima comigo, o que eles perderam e como isso será importante para seu próprio poder. Estão se perguntando como uma acólita inexperiente conseguiu lançar um contra-feitiço tão rapidamente e permane­cer de pé depois. Estão se perguntando, honestamente, se teriam conseguido fazer a mesma coisa. Eles estão tentando descobrir como tirar proveito dessa situação e se devem se aproximar de você assim que for possível, só para garan­tir. Quando forem dispensados no Velho Templo, eles correrão até seus gabi­netes e aposentos para dar ordens sussurradas aos seus próprios subalternos a fim de tentar descobrir tudo o que for possível sobre você, na esperança de encontrar alguma coisa que possam usar. Uma coisa que você deve entender é que, no mundo que está entrando, "confiança", "lealdade" e "amizade" são conceitos fluidos e mutáveis. Por outro lado, isso é uma coisa que eu suspeito que você já saiba.

Ana sentiu um arrepio. A exceção da expressão azeda e severa do a'téni ca'Cellibrecca, a maioria dos rostos dos a'ténis sorria de maneira afável para ela, como se estivessem satisfeitos com o que viam; um ou dois até mesmo acenaram com a cabeça e deram sorrisos mais largos quando cruzaram o olhar. Alguns deles, que olhavam para o lado, estavam com a testa franzida como se estivessem perdidos nos próprios pensamentos. Ana voltou-se rapidamente para o archigos e a expressão dele também era de quem avaliava. Ela perguntou-se o quanto ele sabia. Se Sala ou Tara cochicharam com os ténis, ou se o vatarh disse alguma coisa...

Mas o archigos riu novamente. — Assim que terminarmos esta rotina chata, eu assinarei sua Marca no Velho Templo. Hoje à noite, depois da Ilu­minação da Avi, você será ungida diante de sua família, na Capela de Cénzi no Templo do Archigos. - Dedos gorduchos tocaram o ombro de Ana e ela esforçou-se para não recuar, pois o toque lembrava muito a mão de seu vatarh.

Calma, Ana... Você sabe o quanto eu amo você. Não se afaste, meu passarinho..."

Você foi abençoada pelo próprio Cénzi, Ana - falou o archigos tão baixinho que ela mal conseguia escutá-lo com o barulho da multidão. - É uma bênção rara, e às vezes o mais difícil é se dar conta de tudo o que Cénzi nos cobra em retorno pela dádiva. - Os dedos pegaram o ombro de Ana com mais força, e ela franziu a testa quando o rosto do archigos ficou mais sério. Ele se aproximou tanto que Ana conseguiu ver suas pupilas escuras. - Quanto maior a dádiva, maior o preço — sussurrou o archigos. — Você vai aprender isso, o'téni. Infelizmente vai aprender muito bem.

 

DHASPI CE'COENI é um tolo desgraçado. Agora temos que garantir que sua tolice não prejudique o resto de nós e minha missão.

Karl cortou o ar espesso do porão com os braços como se estivesse pasmando uma espada pelo pescoço do homem - um gesto, percebeu ele, que provavelmente era profético para ce'Coeni, que fora capturado. Karl falou em paeti, a língua de sua ilha natal, uma língua que ele tinha certeza que poucos conseguiriam entender mesmo que ouvissem. Mika ce'Gilan, ali com Karl, re­cuou para as sombras abundantes dos cantos. O porão era uma área decadente que fedia à pedra velha e bolor. A única luz vinha de um trio de velas que pin­gava sobre o suporte em uma mesa bamba, com filetes de fumaça subindo das chamas que oscilaram e soltaram faíscas com o vento provocado pelo gesto de Karl. Acima, eles podiam ouvir conversas abafadas e o ranger do assoalho so­bre pés pesados: o porão ficava embaixo de uma taverna nas sinuosas ruas do Velho Distrito. Mesmo no meio do dia, havia clientes bebendo e comendo ali.

Ce'Coeni não me conhece - disse Mika, seu próprio paeti misturado com o sotaque mais gutural de Graubundi. - Ele não pode trair ninguém fora da pequena célula que o recrutou. Ce'Coeni não teve contato com você enquanto enviado, então estamos isolados dele. O estrago vai ser mínimo. Ele era apenas um dissidente, Karl. Um dissidente estúpido.

Eu gostaria de estar assim tão confiante. - Karl fez uma careta e esfregou a concha do pingente entre os dedos ao andar de um lado para o outro em frente à mesinha, agitado demais para se sentar. - Os tênis pregam contra nós mesmo que o archigos seja menos veemente do que a maioria, a kraljica ainda se recusa a nos receber diretamente, e nós sabemos como eu estou sendo ob­servado de perto pelo pessoal da kraljica. Agora o assunto vai ser, novamente, como nós somos perigosos e violentos. Vai haver gente falando para a kraljica que os numetodos não podem mais ser tolerados. O a'téni ca'Cellibrecca exi­girá que o archigos faça o que ele fez em Brezno, ou coisa pior. Nós podemos contar a verdade, mas a verdade não é o que eles querem escutar. Pode apostar que o comandante ca Rudka já está na cela onde colocaram o pobre ce'Coeni e, depois que o comandante terminar com ele, ce'Coeni vai ficar contente em assinar qualquer confissão que ca'Rudka coloque na sua frente, apenas para parar a dor.

Mesmo na tênue luz de velas, Karl conseguiu notar que o rosto de Mika estava pálido. Ele parou de andar de um lado para o outro e soltou a corrente prateada do pingente em volta do pescoço para apoiar as duas mãos na mesa.

Eu não pretendo matar o mensageiro, meu amigo - disse ele para Mika, e isso provocou um pequeno sorriso. — Estou contente que você tenha vindo tão rápido assim. Não há nada que possamos fazer sobre qualquer coisa que aconteceu. Foi incrivelmente estúpido, vai causar problemas para nós, mas está feito. - As palavras, ditas para acalmar Mika, também conseguiram estancar a raiva dentro dele. Pelo menos Karl estava começando a pensar novamente em vez de apenas reagir. Respirou fundo. - Muito bem. Temos que minimizar o estrago. Eu quero que você escreva uma declaração em meu nome para ser enviada a kraljica que negue que o ataque ao archigos faça parte de uma conspiração dos numetodos ou que ce'Coeni seja algo mais do que um homem perturbado com uma birra pessoal contra a fé concénziana e o archigos. Diga que jamais o encontramos e negue que o conheçamos de forma alguma. Você sabe o que dizer. Pergunte novamente se eu posso encontrar com ela; a kraljica não vai concordar, especialmente agora, mas posso conseguir um encontro com ca'Rudka e ter alguma idéia de como ele pretende reagir. O archigos, tenho certeza, não vai levar o ataque a sério, especialmente porque ninguém sâ machucou. Ele vai usá-lo como exemplo de como os numetodos são fracos contra os fiéis de verdade, mas você sabe que todo mundo vai falar sobre esse issunto nos próximos dias. Temos que garantir que isso não aconteça novamente, então mande o recado para os outros pelos canais de sempre.

Mika concordou com a cabeça. — Eu entrego um rascunho para você hoje à noite.

Ótimo. Nós terminamos de escrever a declaração e eu assino... - Karl rechou os olhos momentaneamente e balançou a cabeça. - Fale sobre esta mulher que deteve ce'Coeni.

Eu ainda não sei quem ela é, mas vamos descobrir. Sei que ela chegou em uma das carruagens da Concénzia, mas não é uma téni e não estava vestida como uma. Depois, o archigos levou-a para a própria carruagem e ela foi com ele para o Velho Templo.

Isso pode ser gratidão ou coisa pior. Pode ter sido planejado - disse Karl. - É possível que ce'Coeni estivesse jogando dos dois lados, que o archi­gos tenha planejado essa situação para aumentar seu prestígio? Isso explicaria como essa mulher misteriosa foi capaz de reverter o feitiço tão rapidamente e também por que ce'Coeni foi tão estúpido de atacar o archigos em primeiro lugar. Temos que descobrir se existe essa possibilidade e quem é esta mulher. Ela pode ser importante para nós.

Isso já está sendo feito. — Mika afastou a cadeira da mesa e ficou de pé enquanto Karl endireitou as costas. — Embora eu não creia que ce'Coeni seja algo mais do que um idiota impulsivo. Quanto à mulher, pela descrição que me fizeram, ela usou um contrafeitiço. Ela apagou o feitiço de Dhaspi um segundo depois que ele lançou, e antes que qualquer um dos a'ténis em volta do archigos tivesse uma chance de reagir.

Karl levantou a sobrancelha direita e enrugou a testa. — Esse é um relato preciso?

Sim, eu acredito na minha fonte.

Então nós realmente temos que descobrir mais. Os feitiços dos tênis le­vam tempo. Eles não conseguem criá-los assim tão rápido. Vou trabalhar nisso eu mesmo. Espalhe a mensagem pelas células. Descubra se ce'Coeni pode ser um infiltrado da Concénzia, eu vejo o que consigo descobrir sobre essa jovem misteriosa. Encontre-se comigo aqui depois da Terceira Chamada.

Mika curvou um pouco a cabeça. Ele subiu os degraus de madeira até a porta. Karl ouviu o som de vozes enquanto uma luz passageira recaiu sobre as tábuas rústicas. A seguir, as sombras voltaram ao seu redor. Karl esperou ali por vários minutos, ficou cofiando a barba enquanto uma dúzia de pensa­mentos antagônicos brigava por espaço em sua cabeça. Finalmente, angustia­do e preocupado, ele debruçou-se para apagar as velas.

Envolto pela escuridão, Karl tateou para encontrar o caminho de volta à escada.

 

A BASTIDA A'DRAGO, a fortaleza do dragão, era um prédio antigo e sombrio instalado na margem sul do A'Sele. Antigamente a Bastida servia para proteger a cidade de um ataque do oeste: uma muralha da estrutura era formada a partir da própria antiga muralha da cidade, bem no ponto onde o A'Sele fazia uma curva para o sul; outra muralha descia de uma torre de cinco andares para dentro das águas do rio. O edifício tinha esse nome porque, uante a construção, foram encontrados os ossos de um imenso dragão, uma serpente de fogo transformada em pedra por alguma magia desconhecida. A imagem da criatura não existia mais, mas o grande esqueleto era de um mons­tro místico que viveu antigamente, sem dúvida. A cabeça lisa e feroz, cheia de dentes afiados, ainda se sobressaía em cima da entrada da Bastida como a escultura de um pesadelo, colocada ali por ordem do kraljiki Selida II, que governava a cidade na época.

A Bastida não era mais uma fortaleza, assim como as poucas seções remanescentes da muralha da cidade não mais protegiam Nessântico, mas sim foram ultrapassadas e consumidas em sua maior parte pela cidade em expansão. Pelo contrário, com suas paredes úmidas e cobertas por musgo escuro, a fortaleza há muito tempo foi transformada em uma prisão sombria onde moravam aqueles considerados inimigos de Nessântico, geralmente até o fim seus dias. Levo ca'Niomi, que reinou por três curtos e violentos dias como kraljiki, foi o primeiro prisioneiro da Bastida, quase 150 anos antes. Ele definhou lá por quase metade de sua vida, quando escreveu a poesia que lhe daria uma imortalidade que o breve golpe jamais conseguiu. Mais recentemente, Marcus ca'Gerodi, primo em primeiro grau da kraljica, foi preso por financiar a tentativa de assassinato de Marguerite antes da coroação. Para a sorte de Marcus, ele não foi abençoado com a longevidade de Marguerite, ou talvez o ambiente úmido da Bastida tenha causado uma infecção; ele morreu lá seis anos depois por causa de uma febre.

Sergei ca'Rudka, comandante da Garde Kralji, chevaritt de Nessântico, um a'offizier da Garde Civile, nunca gostou da Bastida. Ele gostava ainda menos desde que a kraljica colocou a prisão sob seu controle. Sergei tinha certeza de que o pobre idiota que tentou atacar o archigos não seria um daqueles lembra­dos por ter sido preso na Bastida. Em vez disso, ele seria um dos numerosos ini­migos de estado que entraram pelos portões e foram imediatamente esquecidos.

Os gardai em volta dos imensos portões de carvalho da Bastida ficaram em posição de sentido quando Sergei aproximou-se pela Pontica a'Brezi Veste.

O comandante respondeu com o mais curto aceno de cabeça possível e ergueu os olhos, como sempre fazia, para a cabeça do dragão de Selida preso na pedra que rosnava para ele. As silhuetas escuras das andorinhas-dos-beirais saíram voando dos ninhos debaixo das ameias das torres de ambos os lados do portão, mas, enquanto Sergei observava, um dos pássaros disparou da boca aberta da criatura. Uma porta com grades no pé da torre da esquerda foi aberta, de onde saiu o capitão da Bastida, um velho cuja pele pálida entregava que ele passava muitas horas no escuro. Antigamente, o capitão era a única autoridade na Bastida; agora, por ordem da kraljica, ele respondia a Sergei. Nenhum deles gostava disso. — Comandante ca'Rudka, estávamos esperando pelo senhor.

Sergei ainda estava olhando para a boca do dragão lá em cima. Ele apontou enquanto a andorinha voltava para a boca do dragão e outra saiu voando. - O senhor sabe o que está errado com aquilo, capitão ci'Doulor?

O homem saiu pela porta e pestanejou sob a luz do sol. Ele olhou para o dragão. O velho raramente encarava Sergei; quando olhava, como acontecia com várias pessoas, sua atenção era atraída pelo nariz de prata reluzente que Sergei perdeu em um duelo. - Comandante?

Eu adoro a liberdade das andorinhas - disse Sergei para o capitão. Ele sorriu e gesticulou para os pássaros. - Olhe para elas, a maneira como dispa­ram pelo ar, como voam com a dádiva das asas que receberam de Cénzi. Tem ocasiões em que invejo as andorinhas e gostaria de poder fazer o mesmo. Eu abriria mão de muita coisa se pudesse ver a cidade como elas veem e ir de um telhado a outro com facilidade.

Ci'Doulor concordou com a cabeça, embora a cara estivesse intrigada debaixo da barba grisalha. - Eu... eu creio que entendo o que está dizendo, comandante.

Entende? - perguntou Sergei em tom mais ríspido. O sorriso sumiu e deixou uma expressão gelada. Uma andorinha saiu da boca do dragão no­vamente e foi embora voando. - Aquela cabeça de dragão é o símbolo da Bastida, de seu poder, força e terror. Que mensagem o senhor acha que é passada quando aqueles que trazemos aqui veem pássaros aninhados na boca do dragão, capitão? O senhor acha que os prisioneiros ficam atemorizados ao passar debaixo ou vêem um sinal de esperança de que somos impotentes, um sinal de que talvez escapem das garras da Bastida com a mesma facilidade daquela andorinha?

O capitão pestanejou expressivamente. - Eu nunca pensei nisso antes, comandante.

- Realmente. Deu para notar. - Sergei deu um passo em direção ao capitão e chegou perto o suficiente de sentir o cheiro de alho que o homem comeu com ovos naquela manhã. A voz saiu alta o bastante a ponto de os gardai em volta do portão conseguirem escutá-lo. - Sinais e símbolos são coisas poderosas, capitão. Ora, se eu pendurar alguém por uma forca debaixo do dragão, que, digamos, não entenda a importância dos símbolos, creio que ver aquele corpo se contorcendo mandaria uma mensagem poderosa para aqueles que trabalham aqui. Na verdade, quanto mais importante a pessoa, mais po­derosa a mensagem, não acha?

O capitão ci'Doulor estremeceu visivelmente. A garganta pulsou debaixo da barba quando engoliu em seco. Ele encarava Sergei agora e enxergava o próprio reflexo distorcido na superfície polida do nariz de prata de ca'Rudka. - Vou mandar remover o ninho, comandante, e tenha certeza de que nenhum pássaro se aninhará lá novamente.

O sorriso aumentou. Sergei deu um tapinha na bochecha de ci'Doulor como se ele fosse uma criança sendo repreendida. - Sim, tenho certeza. Agora, eu gostaria de ver este numetodo.

Sergei seguiu ci'Doutor dentro da Bastida. A porta fechou-se pesadamente quando os dois entraram e foi trancada por um gardai. O ar bolorento envolveu o capitão e o comandante, e Sergei fez uma pausa para esperar que os olhos se ajustassem à penumbra, que ficava mais escura por causa das pequenas janelas gradeadas nas paredes da espessura de um homem com os braços abertos. Ci'Doulor conduziu o comandante por um longo corredor, depois os dois entraram na torre principal e desceram por um escada caracol de pedra. A umidade acumulava-se nos degraus gastos e cobertos por musgo onde ninguém pisava. Pelas portas gradeadas nos patamares, Sergei conseguiu ouvir os sons de outros prisioneiros: tosses, gemidos, alguém chamando ao longe. Eles chegaram a um patamar bem abaixo do nível do rio, com um dos gardai em caprichada posição de sentido. O homem abriu a porta e deu um passo para o lado.

Eles entraram em um aposento quadrado e compacto, acompanhados pelo gardai. Correntes fizeram barulho: um homem remexeu-se acorrentado a anéis na parede do fundo, as mãos estavam bem presas para que não fizesse o gestual de um feitiço numetodo, a boca estava amordaçada com uma jaula de metal que prendia a língua. Sergei notou que o aspirante a assassino tinha sido espancado. O rosto estava inchado e roxo dentro da jaula de rosto, um olho estava inchado e um filete de sangue seco descia de uma narina. Em algum momento ele tinha se sujado, as roupas de baixo estavam manchadas e molhadas, e o cheiro de urina e fezes era forte. — Capitão, esse homem foi maltratado? — disse Sergei.

- Não, comandante - respondeu ci'Doulor rapidamente. Atrás dele, o garda deu um muxoxo de desdém e pareceu se divertir. — Foram os cidadãos que fizeram isso em retaliação. Ora, nossa Garde Kralji teve tremenda dificul­dade em retirá-lo da multidão depois do ataque ao archigos.

Sergei sabia que isso era mentira; os gardai do archigos subjugaram o homem imediatamente após o ataque e levaram-no embora correndo antes de a multidão sequer ter certeza do que acontecera. — O povo ama o archigos — falou Sergei, mais para o prisioneiro do que para ci'Doulor. - E odeia aqueles que tentam fazer mal a ele. - O comandante aproximou-se do prisioneiro, tirou um lenço do bolso e limpou a poeira de um banco de três pernas todo arranhado perto do homem. O prisioneiro mexeu a cabeça dentro da jaula e observou Sergei com o olho que não estava inchado. — Se eu remover a mor­daça, você promete não lançar feitiços, vajiki? — perguntou Sergei ao se curvar na direção do prisioneiro.

O homem fez que sim. Sua atenção não estava nos olhos de Sergei, mas sim no nariz reluzente de metal. O comandante colocou as mãos ao lado da cabeça do prisioneiro e soltou as correias que prendiam a jaula no lugar. O homem engasgou quando o metal que prendia a língua foi retirado.

Qual é o seu nome? - perguntou Sergei.

Dhaspi ce'Coeni. - A voz do homem era rouca e cheia de dor, as sílabas tinham o sotaque das províncias do norte, o que não era surpresa.

Você é um numetodo? — Ele deu um aceno hesitante com a cabeça. — E quem mandou você para atacar o archigos? Foi o enviado ci'Vliomani, talvez?

Não! — A negação foi rápida. Ele arregalou o olho que não estava incha­do, e as correntes bateram contra a pedra. - Eu... eu nunca encontrei com o enviado ci'Vliomani. Jamais. O que eu fiz, fiz sozinho. Essa é a verdade.

Agora foi Sergei que concordou com a cabeça. - Eu acredito em você - Sergei falou para acalmá-lo e notou que seu tom solidário tirou a tensão do rosto do homem. O comandante ficou sentado ali por vários segundos, apenas observando a expressão do sujeito. Finalmente, ele ficou de pé e foi até um pequeno escaninho na parede, de onde tirou uma barra de latão, tão grossa quanto o punho de um homem e talvez com dois punhos de altura, com um peso e massa satisfatórios. Ambas as pontas eram lisas e ligeiramente achatadas, como se tivessem sido batidas muitas vezes. - Eu adoro história - falou Sergei para o prisioneiro. - Você sabia disso?

A atenção do homem estava na barra na mão de Sergei agora. O prisioneiro balançou a cabeça, hesitante. - Claro que não sabe - continuou Sergei. - Mas é verdade. Eu adoro. A história nos ensina muita coisa, vajiki ce'Coeni. Quando entendemos o que aconteceu no passado, nós podemos enxergar melhor os problemas do futuro. Agora, esse pedaço de metal... - Ele enfiou o indicador em um grande buraco aberto no meio da barra; apenas a ponta do dedo saiu do outro lado. - Antigamente havia um enorme sino aqui mesmo nesta torre. A cúpula ainda permanece lá no alto da torre; você deve ter visto quando foi trazido aqui, embora eu duvide que estivesse no clima de notar tais coisas. O sino devia ser batido caso houvesse alguma ameaça à cidade, para que os cidadãos pudessem ser avisados e reagir. Agora, o sino em si foi retirado há muito tempo e derretido. Creio que a estátua de Henri VI no Velho Distrito foi feita com o seu metal; você talvez a tenha visto. Mas isso... — Sergei ergueu a barra novamente. - Isso era o badalo do sino. Veja bem, uma corda passava pelo buraco aqui, era amarrada em cima e embaixo para manter o badalo na altura correta, e o restante da corda descia até o chão da torre para que alguém pudesse bater no sino quando fosse necessário. E o sino foi batido cinco vezes no total, a última quando os hellinianos mandaram uma frota de navios de guerra pelo A'Sele para atacar a cidade, na época do reinado de Maria III. - Ele tirou o dedo do buraco e empunhou o badalo. - Portanto, quando olho isso aqui, eu fico admirado com a história que tenho em mãos, vajiki, com o fato de que esse pedaço de metal fez parte de tantas coisas que aconteceram aqui. O badalo nos protegeu antes e, esta é a parte que é crucial para você, vajiki ce'Coeni, ele continua nos protegendo.

Sergei voltou ao escaninho e tirou um pequeno pedaço de carvalho com uma ponta redonda, depois enfiou no buraco do badalo. A barra de metal foi transformada na cabeça sinistra de um martelo. Sergei acenou para o garda, que veio à frente e soltou as algemas da mão esquerda do prisioneiro. - Preciso de sua mão, vajiki. Por favor, coloque sobre o banco, assim. - Ele mostrou a própria mão com a palma para cima, o mindinho estendido e o resto dos dedos recolhidos. O prisioneiro balançou a cabeça, ele soluçava agora, e o garda pegou a mão de ce'Coeni e colocou à força sobre o assento do banco. Ce'Coeni fechou os dedos e formou um punho fraco. - Eu preciso apenas do seu mindinho, vajiki — falou Sergei para ele. - Caso contrário, a dor será... bem pior. - O comandante ficou ao lado do banco e olhou para o prisioneiro. — Eu preciso saber, vajiki ce'Coeni, os nomes dos numetodos com quem você se envolveu aqui em Nessântico.

Eu não conheço mais nenhum numetodo - arfou o homem. Ele tentou puxar a mão, porém, embora as correntes tenham se agitado, o garda segurou com força.

Ah, veja bem, eu acreditei quando você disse que agiu sem auxílio de ninguém porque não creio que até mesmo os numetodos sejam tão idiotas de mandar um sujeito sozinho em uma missão tão inútil quanto a sua. Mas agora eu não acredito. Vejo a mentira em seus olhos, vajiki. Posso ouvi-la em sua voz e sentir o cheiro da mentira no medo que emana de você. E aprendi ao longo dos anos que existe verdade na dor. - Sergei tocou no nariz falso e notou que os olhos de ce'Coeni acompanharam o gesto. Ele ergueu o martelo feito com o badalo do sino e olhou para o banco onde a mão de ce'Coeni ainda permanecia fechada. - O que vai ser, vajiki? A mão inteira ou apenas o mindinho?

O homem soluçou. O cheiro de urina ficou mais forte. - Você não pode...

Pelo contrário - disse Sergei em um tom suave e solidário. — Eu farei

isso, não por vontade própria, mas porque eu preciso. Porque é meu dever proteger esta cidade, a kraljica e o archigos.

Não, não, você não precisa fazer isso — falou correndo o homem em desespero. — Eu digo os nomes. Eu encontrei uma vez com um sujeito mais velho chamado Boli e com outro da minha idade cujo nome era Grotji. Não sei os sobrenomes, comandante, eles nunca me disseram. Eu encontrei os dois em uma taverna no Velho Distrito. Posso mostrar o lugar, descrevê-los para você...

Sergei ainda estava olhando para a mão no banco. - O dedo ou a mão, vajiki?

Mas eu contei tudo o que sei, comandante. Essa é a verdade.

Sergei não falou nada. Ele levantou o martelo e dobrou o cotovelo. Com um gemido, ce'Coeni estendeu o mindinho.

Sergei gemeu ao descer bruscamente o martelo com força e rapidez. O golpe esmagou osso e carne, tendão e músculo. Sangue espirrou debaixo do latão. Um grito estridente irrompeu da garganta de ce'Coeni, um berro agudo que ecoou pelas pedras e pelos ouvidos de Sergei antes de virar um soluço lamuriento. O comandante sempre se surpreendia com o volume que a garganta humana conseguia alcançar.

Ele ergueu o martelo; o dedo do homem estava achatado e destruído, -praticamente cortado ao meio perto da segunda junta. Sergei ouviu o capitão inalar atrás dele.

Existe verdade na dor - repetiu Sergei para o homem. O garda soltou a mão de ce'Coeni, que a recolheu contra o peito e ficou balançando para a frente e para trás no chão da cela enquanto chorava. - Sinto muito, vajiki, mas infelizmente eu preciso ter certeza de que você não tem mais nada para nos contar...

Sergei continuou fazendo perguntas até sobrar apenas o polegar intacto na mão destruída de ce'Coeni. Então ele limpou a ponta suja e ensangüentada do martelo na roupa do prisioneiro e tirou o cabo do badalo com certo esfor­ço. Serguei guardou a barra de metal e o cabo de volta no escaninho. Depois de acenar com a cabeça para o garda, ele e o capitão ci'Doulor saíram da cela.

Ele não sabe nada de útil — falou Sergei ao capitão enquanto subiam a escada.

Ele falou o nome do enviado ci'Vliomani, lá no fim - disse ci'Doulor. - Não era o que o senhor queria, comandante?

Ele teria dado o nome da própria matarh. Eu queria a verdade e a verdade é que ele era um idiota agindo sozinho. Nós temos os dois primeiros nomes, quase certo que sejam falsos, e uma taverna no Velho Distrito prova­velmente escolhida aleatoriamente. Vou despachar a Garde Kralji para ver se os gardai encontram esses homens a partir das descrições dadas por ele. Mas não tenho muita esperança. Falarei com a kraljica e o archigos para informar o que descobrimos.

E o prisioneiro, comandante?

Sergei deu de ombros. - Faça com que assine uma confissão. Deixe o papel em branco para que possamos preencher com o que for necessário mais tarde. Depois, execute-o pelo crime. Uma morte rápida e indolor, capitão. Ele merece isso. Após, corte as mãos e ponha a língua para fora, como é exigido quando se trata de numetodos, e pendure o corpo na Pontica Kralji para que todo mundo no Velho Distrito veja.

Cuidarei disso.

E dos pássaros?

Os pássaros? - falou o capitão, confuso, e depois: - Ah, sim. Na boca 20 dragão. Sim, comandante. Cuidarei daquilo também.

Ótimo. - Eles chegaram ao topo da escada. Sergei virou-se e o capitão -evou as mãos à testa em reverência. - Foi um dia produtivo então. O senhor :an suas tarefas, capitão. Não precisa me acompanhar à saída.

 

AS LUZES MÁGICAS ACESAS PELOS TÊNIS EM NESSÂNTICO eram famosas em todos os Domínios. O Círculo da Noite era o que as pessoas geralmente comentavam quando se recordavam da visita à capital. Enquanto o sol sumia atrás da curva do A'Sele, conforme o céu a oeste escurecia e ficava roxo, à medida que as primeiras estrelas surgiam, uma procissão de dezenas de e'ténis vestidos em robes de bainhas amarelas saía de cada um dos vários templos da cidade. Ana viu, acompanhada pela família, por Sala (que cuidava de sua matarh) e por outros espectadores, um grupo de ténis-luminosos sair do Templo do Archigos, seguir para leste e oeste ao longo dos dois lados da Avi 'aParete e passar pelos portões. Cada um dos eténis foi em direção de um dos altos postes de ferro escuro erguidos com vários passos de distância entre si ao longo da alameda. Lá eles pararam, entoaram cânticos e fizeram gestuais elaborados com as mãos e os dedos enquanto as trompas soavam uma dissonância triste das torres. Finalmente, os e'ténis levantaram as mãos para o céu com os dedos bem abertos, e os globos de vidro amarelo no topo dos postes ficaram acesos e iluminados como se um pequenino sol tivesse nascido dentro deles. Os eténis bateram palmas uma vez e foram até os próximos postes de luz para repetir o feitiço. Ao longo do enorme circuito da Avi a'Parete e das Quatro Pontes, a cerimônia diária era repetida até que todos os postes fossem iluminados e a avenida que envolvia o centro da cidade estivesse acesa como se fosse um dia falso.

Quando estive em Montbataille, eu juro que dava para olhar para o sudoeste das grandes encostas e ver Nessântico à noite, a quilômetros e mais qui­lômetros de distância, como um colar de estrelas que caíram no chão e ficaram resplandecendo ali. - O vatarh de Ana sorriu para ela e passou os braços por seus ombros para apertá-la ao seu lado. Ana fez um esforço para devolver o sorriso e continuar abraçada, embora morresse de vontade de se afastar. Nunca mais. Não depois da noite de hoje... - Ver as luzes sempre me fez pensar em você e na sua matarh em segurança aqui. E eu imaginava se um dia não seria você na procissão toda noite, acendendo as lâmpadas. Você sempre brincou de ser uma téni, mesmo quando era apenas uma criança. Lembra-se disso? E agora... - O riso transformou-se em um largo sorriso ganancioso. Ana sabia o que ele estava pensando: uma o'téni podia render um dote para a família... - Eles não vão desperdiçar uma oténi apenas para acender a Avi, não é?

Ana balançou a cabeça e começou a se afastar, mas Tomas abraçou a filha com força novamente no momento em que os e'ténis iam para as próximas lâmpadas e a multidão que se reunira para ver a procissão começava a dimi­nuir. Ela sentiu os dedos pegarem a lateral do seio, mas antes que pudesse rea­gir, o vatarh recolheu o braço. Tomas ajoelhou-se em frente à matarh de Ana, sentada na liteira. Os olhos da mulher estavam bem abertos, mas não viam nada e não reconheciam ninguém. Tomas colocou as mãos sobre as da esposa, que estavam dobradas sobre o colo. — Nós estamos orgulhosos da nossa Ana, não estamos, Abi?

A mulher não respondeu. Ela raramente respondia e, quando fazia, ninguém conseguia entendê-la. Os olhos pareciam procurar algo atrás dos om­bros de Tomas. Ela foi tomada por outro acesso de tosse e se curvou, a tosse líquida retumbou nos pulmões. Tomas tirou um lenço do bolso da bashta e limpou o muco em volta da boca.

Preciso ajudá-la novamente amanhã. - Vatarh? Nós temos que ir para o templo - disse Ana.

Tomas levantou-se devagar e acenou com a cabeça para os quatro ajudan­tes contratados que os acompanhavam; os homens pegaram as varas da liteira mais uma vez. O grupo cruzou a rua e entrou na praça onde, exatamente naquela manhã, tudo na vida de Ana tinha mudado. Uma acólita estava esperando ali e chegou perto quando eles cruzaram a Avi. Ana reconheceu-a: Savi co'Varisi, uma das atuais terceiranistas que - ao contrário de Ana na época do seu terceiro ano - foi retirada pelos ténis da ralé dos simples acólitos e recebeu tarefas especiais no templo. Embora Ana fosse a aluna mais avançada, nas poucas vezes em que as duas se encontraram, Savi tratou-a como se ela fosse uma aprendiz de comerciante qualquer. Na noite de hoje, Savi parecia subserviente e muito impressionada com a tarefa. Ela manteve a cabeça baixa e recusou-se a cruzar o olhar com Ana.

Por aqui, o'téni co'Seranta — disse Savi. Ela atrapalhou-se com o título e ficou vermelha. - O archigos espera você e sua família.

"O'téni co'Seranta." — Tomas riu enquanto foram conduzidos pela acólita em direção a uma porta lateral do templo. - Soa muito bem, não é, Ana?

Sim, vatarh — admitiu Ana ao observar Savi se virar e começar a andae em direção do templo. Ana desejou que ele parecesse mais feliz por ela e menos por si mesmo. - Mas não sei se algum dia vou me acostumar com isso.

—Ah, vai sim. E mais. Tenho certeza. Em breve você será u'téni ca' Seranta; esta é a recompensa pelas provações que Ele nos mandou. Eu sempre soube que ela viria.

Ana fez que sim para a confiança do vatarh, embora soubesse que a certeza de Tomas era nova e frágil. Era verdade que Cénzi mandou provações suficientes para a sua família: a morte dos dois irmãos mais novos por catapora vermelha há seis anos, seguida de perto pela perda do irmão mais velho de Ana, Louis, no ano seguinte, morto enquanto servia na Garde Civile em uma disputa de fronteira com Tennshah. Depois o vatarh, um burocrata mediano do Departamento de Comércio Provinciano, foi transferido para a cidade de Montbataille apenas para ter o cargo extinto em seis meses. Desde então, ele assumiu vários cargos no governo de Nessântico, cada um com menos status e remuneração menor, e Abi e Tomas foram forçados a gastar as economias e a depender da generosidade de parentes para evitar a vergonha de se tornar ci'Seranta ou coisa pior.

Ana pensou que o fundo do poço tinha sido há quatro anos quando Abi ficou adoentada. Aquilo parecia o golpe final. Ter virado uma aprendiz da fé concénziana foi a tentativa desesperada de seu vatarh para salvar alguma coisa na queda livre da sorte da família.

Todos os curandeiros disseram que sua matarh iria morrer, e Ana viu Abi sucumbir. Quando era pequena, Ana geralmente colocava as mãos na têmpora da matarh quando ela reclamava de dores de cabeça, e sempre havia palavras na mente que podiam ser ditas, palavras que acabavam com a dor. Você sempre brincou de ser uma téni... Brincou sim, e agora Ana sabia que aqui­lo foi uma manifestação precoce de seu Dom, um uso instintivo do Ilmodo.

Aquilo também era errado. A Divolonté, as leis e os regulamentos da Concénzia, assim dizia explicitamente. "Curar com o Ilmodo é ir contra a vontade de Cénzi" trovejavam os tênis na Admoestação, do Alto Púlpito no templo. Ana, sempre devota, parou assim que percebeu o que estava fazendo.

Mas...

Ela não podia ver a matarh morrer. Depois que o último curandeiro con­tratado pelo vatarh foi embora derrotado, Ana finalmente colocou as mãos na matarh novamente e falou as palavras que vieram à mente. Com cuidado e hesitação, elas deixaram o Ilmodo aliviar a dor e permitiram que Ana puxasse a matarh da queda livre mortal em que Abini estava, mas não totalmente: isso seria muito óbvio e perigoso demais. Ana administrou o alívio aos poucos e sentiu-se culpada tanto pelo mau uso do Ilmodo quanto por não ter usado o poder tão plenamente como seria possível.

Então veio a verdadeira vergonha. O pior de tudo. Seu vatarh... Primeiro foram apenas palavras e abraços, depois Tomas veio até ela atrás dos carinhos mais íntimos que Abi um dia deu para ele. Jovem demais, muito imatura e confiante em excesso, Ana suportou sua longa e cuidadosa sedução, ciente de que, se contasse para alguém, a vergonha destruiria a família por completo, que seria a matarh que sofreria principalmente...

- O'téni? Por aqui... — Savi conduziu o grupo até um par de portas douradas de madeira. Os painéis foram entalhados com uma representação da ascensão de Cénzi ao Segundo Mundo, a figura comprida do deus subia em direção às nuvens enquanto havia uma imensa fissura no globo embaixo, onde Cénzi caiu ao lutar com os moitidis, Seus filhos. Ana passou os dedos pela madeira lustrosa quando Savi puxou as portas para abri-las. Do outro lado havia uma pequena capela simplória, que no máximo daria para cinqüenta pessoas, iluminada por velas em lustres de prata pendurados no teto alto. Ana sentiu o cheiro de incenso queimando em um braseiro e, a seguir, um movimento atraiu sua atenção perto do altar coberto por uma linda toalha adamascada, no fundo distante da capela. O archigos subiu no tablado do altar, apoiado por um jovem o'téni que era mais alto do que ele. O archigos fez um gesto para eles quando Savi fechou a porta da capela e ficou para trás no corredor. Ana olhou em volta; não havia mais ninguém na capela.

Está desapontada, o'téni? - perguntou o archigos. A voz reverberou nas superfícies de pedra em volta deles. - Eu sei que a cerimônia oficial teve um público melhor, com todas as famílias e todos os a'ténis...

Não, archigos - respondeu Ana. Ela lembrou-se da expressão severa e rancorosa do a'téni ca'Cellibrecca ao encará-la, e do jeito como foi olhada pelos demais como se fosse uma charada a ser resolvida. Ana ficou contente que nenhum deles estava aqui, agora. - Desculpe. Eu estou... muito feliz na noite de hoje.

Então, por favor, prossigam e sentem-se. Há cadeiras para todos vocês aqui na frente. Estes são seu vatarh e sua matarh?

Sim, archigos. - Ana apresentou os pais, e Tomas foi à frente para se ajoelhar diante do archigos com as mãos entrelaçadas e bancar o devoto seguidor, como sempre fazia. O archigos aproximou-se para colocar as mãos pequenas e nodosas nas do vatarh de Ana.

Eu agradeço-lhe por enviar sua filha - disse o archigos. - Vajiki co' Seranta, eu mandei que o tesouro da Concénzia transferisse cinco mil solas para a conta de sua família pelos futuros serviços de Ana para a Fé. Creio que isso seja suficiente? — Ana notou que o vatarh ergueu as sobrancelhas e ficou de queixo caído. Ela mesma perdeu o fôlego com a surpresa também, pois as famílias dos acólitos de sua turma ganharam um décimo daquele valor.

Ah, sim, archigos. Isso é bastante... - Tomas parou. Ana imaginou o que ele pretendia dizer. O vatarh fechou a boca e engoliu em seco. - ... ade­quado por enquanto - concluiu. Ana notou que ele estava fazendo contas de cabeça.

O archigos também notou a ganância interior de Tomas, percebeu Ana. Ele deu um sorriso desdenhoso para o vatarh. - Uma de minhas escreventes estará lá fora quando você sair, vajiki - falou o archigos. - Ela terá papéis em mãos para você assinar que completarão a transferência. Você perceberá que também está abrindo mão do direito da família de escolher ou aprovar um marido para Ana: ela agora pertence à Concénzia e pode fazer a própria esco­lha livremente. Você não terá voz ativa sobre isso, nem receberá mais algum dote por ela.

O vatarh franziu a testa ao ouvir isso. - Archigos, nós esperávamos promover a família através do casamento de Ana.

Então talvez mil solas sejam suficientes, se preferir manter esses direitos. Para mim, não importa. Meu secretário, o o'téni Kenne ci'Tionta, está bem aqui. - O archigos acenou com a cabeça para o téni que estava ao lado dele. - Kenne, você faria a gentileza de dizer aos escreventes para fazer a alte­ração no contrato...

O vatarh arregalou os olhos e correu a responder quando o o'téni fez uma reverência e começou a percorrer a nave da capela. - Não, archigos, acho que o acordo é suficiente do jeito que está.

Ah — falou o archigos. Kenne, com um sorrisinho, voltou para o lado dele. Para Ana, o archigos parecia estar contendo uma gargalhada. - Come­cemos então...

A cerimônia foi curta. Depois, o o'téni ci'Tionta entregou ao archigos os robes verdes que seriam a vestimenta de Ana a partir de agora. O archigos abençoou as roupas e deu um dos robes para Ana. — Se fizer a gentileza de vestir isso aqui - falou ele. — Você pode ficar atrás dos biombos ali, ao lado do altar.

O robe passou uma sensação estranha na pele; era mais macio do que Ana esperava por conta das ocasiões em que o robe do u'téni co'Dosteau encostou em seu corpo. Ela passou o dedo pelas divisas nos ombros do robe; sim, eram as divisas de um o'téni, e no ombro esquerdo estava costurado o brasão do globo partido do archigos. Ao tirar a tashta e vestir o robe, Ana percebeu que também rompia com a antiga vida e assumia uma nova. Ela não voltaria para a casa da família na noite de hoje, mas sim se recolheria em novos aposentos aqui no complexo do templo.

Eu finalmente fui embora, vatarh, e o senhor não pode mais me tocar...

Ana saiu detrás do biombo com a tashta amarela dobrada nos braços. Sala, radiante, correu até ela para pegar a roupa. Seu vatarh deu um aceno de aprovação, sem sentir vergonha das lágrimas que brilhavam nos olhos. Ana perguntou-se se ele realmente sentia orgulho ou estava apenas triste pelo que estava perdendo. Sua matarh manteve o olhar vazio fixo à frente, como se estivesse petrificada pelo brilho da vela no robe dourado do archigo.

Ah... - suspirou o archigos. - Agora você parece com uma téni de verdade. Vajiki co'Seranta, poderia me dar alguns minutos sozinho com sua filha? Minha escrevente, como falei, está aguardando lá fora para cuidar da transferência de fundos enquanto você espera. Seus criados podem lhe acompanhar, mas eu gostaria que a vajica co'Seranta ficasse.

O vatarh de Ana pareceu surpreso, mas levou as mãos à testa e fez um gesto para Sala e os outros criados. O archigos esperou em silêncio até que as portas da capela fossem fechadas quando o grupo saiu. A seguir, ele virou-se para Ana.

Eu trouxe você aqui de propósito a essa capela, sem nenhum dos a'ténis por perto. A doença de sua matarh é grave. A febre do sul, não é? Ela tem uma sorte incrível de ter sobrevivido. Raramente eu ouço falar de alguém que se recuperou depois de ter sido afetado com essa gravidade. Eu lembro-me de todos os funerais que aconteceram há anos, quando a febre atingiu o ápice aqui na cidade.

Ele estava encarando Ana, assim como o'téni ci'Fionta. - Foi a vontade de Cénzi que a matarh vivesse, archigos - disse ela. A mentira parecia com alfinetes na garganta.

Sem dúvida - falou o archigos. - E a sua também.

Archigos? - disse Ana.

O anão deu um sorriso discreto. - Não há ninguém aqui além de nós quatro, Ana. Nenhum a'téni escutando, nenhum ouvido que não deveria ou­vir o que você disser, nenhum olho curioso observando. - Ana não conseguiu deixar de olhar para o jovem o'téni. O sorriso do archigos aumentou um pou­quinho. - Kenne ci'Tionta é alguém em quem confio cegamente, portanto você deve fazer o mesmo. — Ele fez uma pausa. — Você com certeza rezou pela vida de sua matarh.

É claro, archigos. Todo dia.

E Cénzi respondeu às suas preces? Ou foi outra coisa? - instigou o archigos. O rosto de Ana ficou vermelho, sem controle. — Você mente mal, o'téni - disse o anão. Ele saiu do tablado e colocou a mão no braço da matarh. Com o toque, a mulher mexeu-se e virou um pouco a cabeça, mas continuou com o olhar vago para o nada. - Sua inocência e ingenuidade são muito encantadoras, Ana, mas vamos ter que dar um jeito nisso. Conte o resto da história e diga a verdade agora. Você usou o Dom de Cénzi para ir contra a vontade Dele por causa de sua matarh? Você fez o que sabia que era proibido aos ténis pela Divolonté? Diga a verdade para mim, aqui onde você pode.

Ana viu a noite de alegria e seu triunfo começarem a desmoronar em vol­ta. Ela imaginou como conseguiria dizer ao vatarh que a situação ficou ruim tão rapidamente. Ana visualizou o seu queixo caindo, os ombros esmorecendo e a força de vontade indo embora dentro dele... e a terrível fúria e os maus tratos que viriam a seguir. — A matarh estava morrendo, archigos - disse Ana enquanto olhava para Abi imóvel na liteira. - Aquilo também teria matado o vatarh, depois de tudo que aconteceu conosco. Então eu... eu... Apenas uma ajudinha... Apenas o suficiente para... - Ela não conseguiu terminar, a voz ficou embargada. Ela ergueu as mãos. Deixou que caíssem ao lado do corpo.

Você sabe qual é o castigo para este pecado? Conhece a Divolonté?

Ana entrelaçou as mãos atrás das costas. Mal conseguia falar. - Sim, archigos. - O próprio Cénzi deu um fardo para eu carregar pelo que fiz. Se eu tivesse deixado a matarh morrer, então o vatarh poderia ter se casado com outra pessoa e me deixado em paz.

Olhe para mim. Cite a Divolonté para mim; você com certeza ouviu bastante em seus estudos.

Ana fez um esforço para encarar o rosto do anão: era uma expressão severa agora, com as rugas ao redor dos velhos olhos franzidas na pele. A voz dela saiu um pouco acima de um sussurro. - "A pecadora abusou do Dom de Cénzi e mostrou que não confia mais no julgamento de Cénzi; portanto..." - Ela parou.

Termine — mandou o archigos.

''Portanto, arranque as mãos de seu corpo e a língua da boca para que ela jamais use o Dom novamente." — Ana tomou um longo fôlego.

Você se coloca acima de Cénzi? - perguntou archigos.

Não, archigos - protestou Ana. - Eu realmente não me coloco, mas vi minha matarh sofrer, vi meu vatarh sofrer com ela...

Seu vatarh sabe o que você fez? Alguém sabe?

Não, archigos. Pelo menos eu acho que não. Sempre estive sozinha ao com ela quando tentei. Eu me certifiquei disso.

O archigos acenou com a cabeça. A mão continuava no braço da matarh. - Você não fez tudo o que poderia por ela, não é?

Ana balançou a cabeça. - Eu tive medo. Sabia que Cénzi ficaria furioso e também tive medo de que todo mundo fosse notar...

Faça agora — interrompeu o archigos. Diante da cara de choque de Ana, a expressão severa do anão relaxou. — O dom de cura é a tendência mais rara, a mais facilmente abusada e a mais perigosa para o usuário, por isso é proibida. É também por isso que me certifiquei que a única pessoa além de nós aqui, na noite de hoje, era alguém em que eu podia confiar. Suas mãos e língua estão a salvo por enquanto, Ana. Mostre para mim. Mostre o Dom de Cénzi. Use como gostaria de usá-lo. Vamos - falou ele quando ela hesitou.

Ana tomou um longo fôlego. Ela notou que o archigos a encarava enquanto fechou os olhos e entrelaçou as mãos. Como foi ensinada, Ana mer­gulhou fundo em si mesma ao rezar para que Cénzi lhe mostrasse o caminho, e novamente a trilha até o Ilmodo abriu-se diante dela e brilhou em tons de púrpura e vermelho na mente. Suas mãos mexeram-se, não no gestual que o u'téni co'Dosteau ensinou arduamente aos acólitos, mas da forma que ela sabia que tinham que se mexer para moldar esse Dom especial. Agora Ana sentiu um calor entre as mãos ainda em movimento, um brilho que penetrou pelas pálpebras e disparou raios pulsantes e vermelhos que se perseguiram diante dela.

Antes, Ana teria parado nesse ponto, assim que começou a sentir a ener­gia, e teria aplicado na matarh. Dessa vez ela permitiu que a energia conti­nuasse a fluir em sua volta e que se acumulasse. Ela entoou palavras que não conhecia, em uma língua que não era a dela. Uma calma preencheu Ana quando as mãos pararam de se mexer, quando concentrou o Dom de Cénzi nas mãos.

Ela abriu os olhos. Sua matarh estava encarando o brilho que Ana segurava entre as duas. — Isso é para você, matarh — sussurou Ana. — Cénzi mandou para você. - Dito isso, ela curvou-se para a frente e colocou as mãos nos ombros da matarh. O brilho disparou, acertou a matarh e pareceu afundar dentro dela.  

Assim que tocou a matarh, Ana sentiu novamente o calor agitado e escuro da mulher mais velha: trechos desse calor na cabeça, em volta do co­ração, nos pulmões. Ele ficou mais fraco onde o Ilmodo tocava e, desta vez, Ana deixou o poder fluir livremente, permitiu que cobrisse a doença. Ana sentiu o calor através das mãos: como se ela mesma estivesse com a febre, como se o calor pudesse sair da matarh e entrar nela. Ana empurrou-o de volta ao redemoinho do Ilmodo, e o calor ficou tão intenso que ela pensou que as mãos fossem queimar.

Ana afastou as mãos da matarh, incapaz de segurar o poder por mais tempo.

Abini deu um solavanco na liteira, tomou fôlego subitamente como se fosse uma pessoa se afogando que tentava respirar. Ela arregalou os olhos e soltou um longo gemido baixinho e ininteligível. A matarh desabou novamente na liteira e fechou os olhos... e, quando abriu de novo, as pupilas estavam nítidas. Ela olhou para o archigos e para o'téni Kenne ao lado dele, e depois para Ana no robe verde.

Ana? Eu sinto como se tivesse me ausentado por muito tempo... Estou tão cansada e não me lembro... Por que você está vestida assim, menina, como uma téni? É tão mais velha...

Ana engasgou com um pranto. Ela sentiu-se fraca demais para ficar em pé e desabou ao lado da liteira. Ana pegou a mulher em seus braços e olhou para as próprias mãos, surpresa por não estarem queimadas até os ossos. - Mararh... - As portas da capela foram abertas subitamente e seu vatarh entrou a rassos largos, parecendo preocupado. Os criados espiaram pela abertura. Ana olhou para ele; a matarh virou-se na liteira e riu.

Tomas!

Abi? - disse ele, boquiaberto, quase cômico, surpreendido no meio de uma passada. - Abi, era você que eu ouvi?

Era mesmo - respondeu o archigos ao se mover entre Tomas e a fi­lha. Kenne levantou e apoiou Ana, que ficou cambaleando, exausta. — Cénzi manifestou-se na noite de hoje, vajiki, em homenagem à unção de sua filha. Nós testemunhamos uma bênção especial.

Ana ouviu as últimas palavras do archigos como se viessem de muito -longe. Ela pensou ter visto o vatarh correr até eles, mas as sombras da capela ricaram mais escuras, e a luz das velas não foi capaz de contê-las. A escuridão girou em sua volta, um turbilhão de noite. Ela empurrou com as mãos, mas a escuridão encheu sua boca, os olhos e levou-a embora.

 

Quando eu tiver 18 anos, vou ser kraljiki assim como a senhora tornou-se kraljica - disse Justi sorrindo nos braços da matarh. Ela riu.

É o que você quer, Justi? Isso significa que eu só tenho mais 12 anos de vida. — Ela fez um beicinho dramático, e Justi arregalou os olhos, de queixo caído. Os cortesãos reunidos ao redor riram.

Ah, não, matarh — falou Justi, e todas as palavras saíram emboladas na pressa. - Eu quero que você viva para sempre!

Kraljica?

A sala do trono cheirava a tintas. Quando surgiu a voz de Renard, Marguerite viu-se assustada - ela quase caiu em um transe quando o pintor ci'Recroix começou a fazer o esboço de seu retrato na tela e aplicou a base. Ela ficou assustada ao ver a escuridão do lado de fora da câmara de recepção da ala oeste e ao notar o aposento iluminado por uma dúzia de lustres e pelo brilho do Trono do Sol.

Vários dos cortesãos estavam bem no fundo da sala - banidos para lá porque ci'Recroix disse que não conseguia trabalhar com gente embasbacada olhando por cima do ombro - e falavam baixinho entre si enquanto criados passavam agitados. Há quanto tempo ela estava sentada aqui? Quem mandou acender as velas? Parecia que a Terceira Chamada tinha ocorrido há poucos minutos.

Sim? - perguntou Marguerite para Renard. A kraljica pestanejou para ele, parado diante dela com as mãos na testa; aqui, em público, essa era sempre a imagem apropriada para um assistente. Renard olhou para o pintor. Ci'Recroix estava diante da tela ao pé do tablado de Marguerite e mexia o pincel em um jarro de terebintina. Cores claras giravam ao redor dos finos pelos de marta. A caixa escura e esquisita do mecanismo que ele usara para fazer o primeiro esboço de Marguerite, uma engenhoca que ele chamava de "miroire a'scéne", estava embrulhada em um pano preto no chão, ali perto.

Kraljica, o comandante ca'Rudka está aqui com seu relatório.

Ah! - Marguerite pestanejou. Ela sentiu-se sonolenta e letárgica e balançou a cabeça para melhorar. Imaginou se estivera dormindo e se alguém notara. - Mande-o subir. Vajiki ci'Recroix, infelizmente nossa sessão acabou por hoje.

O pintor fez uma mesura e levou as mãos sujas de tinta à testa, que deixaram para trás uma mancha de vermelhão. - Como desejar, kraljica. Quando devo retornar? Amanhã de tarde, talvez? Eu quero captar seu rosto na luz do fim do dia, ela é tão dramática sobre ele, combinada com o Trono do Sol atrás da senhora...

Está ótimo. Renard, certifique-se que haja algumas viradas de ampulheta em meu cronograma para o vajiki ci'Recroix antes da Terceira Chamada. E, por favor, esvazie a câmara para que eu e o comandante tenhamos alguma privacidade; eu me encontrarei com a corte depois no Salão Vermelho para o jantar. - Renard fez uma mesura e foi na direção dos cortesãos enquanto o pintor começou a recolher as tintas e os pincéis. Marguerite levantou-se do assento cristalino. A luz no Trono do Sol diminuiu e apagou, o que deixou o aposento com uma aparência escura enquanto os cortesóes saíram ruido­samente. - Eu gostaria de ver o que você fez - falou a kraljica para o artista.

Ci'Recroix ficou visivelmente surpreso com o pedido. Ele soltou os pincéis que estava segurando sobre a mesinha ao lado do cavalete e rapidamente cobriu a tela com um pano branco. - A senhora não pode, kraljica.

Eu não posso? - Marguerite inclinou a cabeça um pouco para o lado ao falar e ergueu uma sobrancelha.

Bem... Eu preferiria muitíssimo que a senhora não olhasse, kraljica - consertou ci'Recroix rapidamente e outra vez levou as mãos à testa. Ele pegou os pincéis novamente e começou a colocá-los em um estojo. - Eu mal terminei o esboço e comecei a aplicar a base na tela. A senhora gostaria mais se pudesse esperar até eu ter algo mais substancial para mostrar. E a maneira como trabalho com meus modelos; quero surpreendê-los com uma imagem de si mesmos, como se estivessem olhando para um espelho, mas isso aqui... Ele gesticulou para a tela escondida. - Isso só iria desapontá-la no momento, infelizmente. Se puder fazer a gentileza, kraljica, eu imploro que não olhe. Na verdade, talvez fosse melhor eu levá-lo comigo...

O rosto do pintor ficou tão engraçado pelo nervosismo que ela quase riu. — Eu vou conseguir segurar a curiosidade por enquanto, vajiki - disse Marguerite, que realmente riu diante do alívio que diminuiu a tensão no rosto magro de ci'Recroix. - Deixe sua tela aqui; ninguém irá mexer nela.

Houve uma batida nas portas no fim do aposento. — Entre — disse Marguerite. A porta foi aberta, e o comandante ca'Rudka entrou com passos largos e rápidos em direção a eles, as botas ecoaram no chão de ladrilhos. Seus olhos aguçados notaram ci'Recroix no momento em que o pintor rapidamen­te levou as mãos à testa de novo; ele olhou descaradamente para o nariz de prata do homem.

Kraljica — falou o comandante. — Seria melhor abrir as janelas. O cheiro das tintas... - Ele foi até a janela mais próxima do tablado para abri-la. O ar fresco e frio entrou, e a kraljica sentiu um arrepio, mas a brisa realmente pareceu desanuviar a mente.

Obrigada, Sergei — disse ela. — Vajiki ci'Recroix, se estiver com tudo...

O homem quase deu um pulo, ainda observando ca'Rudka. Ele colocou

o estojo de pincéis debaixo do braço esquerdo e, com a mesma mão, pegou a valise com os jarros de tintas, depois o miroire a'scéne pela alça; parecia muito pesada, a julgar pela forma como ci'Recroix pendeu para o lado com ela na mão. - Perdão, kraljica. Eu falo com... hã... - Ele hesitou.

Renard co'Bellona. Meu assistente. - Ela lembrou ci'Recroix.

Renard co'Bellona. Sim. Esse era o nome. Lembre-se, kraljica, que a senhora não deve olhar. Hã... amanhã então. — Ele começou a levar as mãos à testa, lembrou-se de que estava segurando coisas e pousou tudo novamente para poder saudar a kraljica. Depois o pintor pegou o estojo, a valise e o miroire a'scéne e foi cambaleando para as portas enquanto gemia com o esforço. Ele bateu em uma das portas com o pé; o garda do saguão abriu e ci'Recroix saiu. O garda fez uma reverência para a kraljica e fechou as portas novamente.

Esse homem é muito estranho — disse ca'Rudka. Ele acompanhou o pintor com os olhos.

Mas talentoso, pelo que vi. — Ela deu uma olhadela para a pintura en­coberta no cavalete. - Você interrogou o assassino, Sergei?

Ca'Rudka concordou com a cabeça. Ele olhou para as mãos como se fosse ter certeza de que estavam limpas. — Sim. — O comandante contou para a kraljica, resumidamente, o que aconteceu durante o interrogatório na Basti­da e omitiu, suspeitou Marguerite, alguns dos detalhes mais brutais. Ela não insistiu para sabê-los.

Então esse tal de ce'Coeni era um dissidente - falou ela quando ca'Rudka terminou. - Nada mais. O homem pode ter feito parte da facção dos numetodos, mas você está convencido de que ele agiu por conta própria, não sob ordens dos numetodos?

Sim, essa é a minha conclusão, kraljica.

Imagino que tenha uma confissão assinada.

Ele sorriu ao ouvir isso. - Com certeza. Uma de muitas... — ca'Rudka fez uma pausa - ... para usar como a senhora desejar.

Ele denunciou o enviado ci'Vliomani como o mandante?

Sergei deu de ombros. - Apenas se a senhora quiser que ele tenha feito isso.

Marguerite deu um muxoxo. Os dedos passaram pela barra do pano sobre o quadro. - A esta altura, eu não sei se isso seria bom para o nosso lado. A confissão pode continuar em branco por enquanto, até termos mais informa­ções. O enviado ci'Vliomani mandou um pedido urgente para me ver, junta­mente com uma declaração oficial negando qualquer ligação com o atentado contra a vida do archigos.

Isso não é surpresa. Com certeza ele está se tremendo todo nas calças paetianas por saber que essa situação só vai aumentar o sentimento anti-numetodo na cidade. A senhora recusou apenas para deixá-lo um pouco mais preocupado?

Um sorriso: Sergei a conhecia muito bem. Às vezes bem demais. - Sim. Eu pensei que talvez você devesse falar com ele primeiro. Depois, se considerar que devo, eu posso me encontrar com o homem. Ele tem sido muito paciente até então.

Realmente. Vou cuidar disso. A senhora soube como o archigos foi salvo?

Sim. O feitiço de uma acólita: a menina da família co'Seranta. Também sobe que o archigos vai dar uma Marca para ela como gratidão.

Ele já deu - informou Sergei. - O archigos tornou a menina uma o'téni e colocou-a em sua equipe particular. - Marguerite olhou novamente para as janelas e contemplou a escuridão lá fora, viu as luzes intensas brilhando ao longo da Avi a'Parete. Quanto tempo ela passou sentada ali, meio adormecida? Isso não era do seu feitio. - Kraljica, meus contatos entre os ténis dizem que ela reagiu mais como uma téni experiente do que uma simples acólita; na verdade, alguns deles acham que o que ela fez pode ter ido contra a Divolonté. Também existem alguns... rumores entre os ténis de que a mãe da menina estava sofrendo de febre do sul e que, após anos em um estado onírico, ela de repente se recuperou completamente. Dizem que uma cura pode ter sido feita.

Marguerite arqueou as sobrancelhas ao ouvir isso. - Então preciso encontrar com ela e o archigos, não é? Mas isso pode esperar até amanhã, certamente.

Como a kraljica desejar. A senhora quer que eu informe o a'kralj?

Marguerite deu de ombros. - Se você conseguir encontrá-lo a essa hora da noite. Meu filho geralmente... sai. - Ela não precisou dizer mais nada; foi Sergei, afinal de contas, quem alertou a kraljica sobre os passeios noturnos de Justi e o que eles significavam. Por enquanto, as aventuras do filho podiam ser toleradas, mas Marguerite sabia que teria que fazer algo para que ele parasse, e logo.

Ela fez isso várias vezes antes, afinal de contas.

Sendo assim, então eu verei o a'kralj. Se a kraljica me der licença...?

Marguerite dispensou o comandante com um gesto, e Sergei fez uma reverência antes de ir rapidamente até a porta. Ela observou-o sair, parada ao lado do cavalete. Esperou enquanto respirava lentamente, enquanto sentia o cheiro dos pigmentos da tinta e da poeira e olhava para a mesinha posta ao lado do quadro, manchada com milhares de cores. A brisa da janela tocou o pano que cobria o retrato e fez tremular as chamas das velas. O balanço do pano e da luz parecia debochar de Marguerite.

Ela ergueu a cobertura.

 

O A'KRALJ ANDOU pela noite do Velho Distrito sem ser notado.

Ou pelo menos ele esperava não ser notado.

Era difícil esconder sua identidade. As roupas caras e elegantes que ele normalmente usava podiam ser trocadas — e foram - por uma bashta rústica e simplória que um comerciante usaria. Ele lavou bem o cheiro de perfumes e cremes e deixou que a fumaça da lareira de uma taverna o envolvesse até cheirar a fuligem e cinzas. Ele despenteou o cabelo e teve o cuidado de não usar o sotaque elegante dos ca' e co', mas sim a entonação exagerada das clas­ses mais baixas. Ainda assim, sua voz era bem aguda, o que Justi sabia que era motivo de piadas ocasionais quando as pessoas falavam a seu respeito. Não havia como esconder o queixo quadrado debaixo de uma barba bem aparada: o mesmo queixo que seu vatarh e vavatarh também possuíam, e que também eram proeminentes em seus retratos. Justi podia andar curva­do, mas era difícil disfarçar o fato de que era mais alto do que a maioria das pessoas ou esconder o corpo musculoso. Ele mantinha um capuz puxado sobre a cabeça, apoiava-se pesadamente sobre uma bengala curta e falava o mínimo possível.

Justi gostava de noites como esta. Gostava do anonimato; de escapar da restrição das obrigações da corte da kraljica; gostava de ser simplesmente "Justi" e não "o a'kralj". Como o a'kralj, ele era tolhido pelas vontades da matarh e suas regras.

Quando ele fosse o kraljiki, tudo isso mudaria. Então Nessântico dançaria conforme a sua música. O império acordaria das longas décadas de sono sob o governo de sua matarh, do atual archigos e seus antecessores, e percebe­ria o verdadeiro potencial.

Muito em breve...

O Velho Distrito, apesar do nome, não era a parte mais antiga de Nessântico. A honra cabia a Ilha A'Kralji, onde o Grande Palácio da kraljica, o Velho Templo e a própria residência do a'kralj ficavam situados. Mas as moradias originais da ilha foram demolidas há muito tempo para abrir espaço para aqueles prédios ainda mais magníficos e seus terrenos extravagantes e bem ruidados. O Velho Distrito e as ruas estreitas e tortuosas na margem norte do A'Sele foram o terreno para onde a cidade em crescimento expandiu-se há quatro séculos, e o Velho Distrito mudou pouco nas últimas centenas de anos. Muitos dos prédios são daquela época distante. O Velho Distrito abraçava com firmeza seu passado sombrio e recusava-se a largá-lo. Mistérios espreitavam nos becos claustrofóbicos, havia assassinato e intrigas nas sombras. As lojas continham qualquer coisa que o coração do homem pudesse desejar, se soubesse onde procurar e pudesse pagar; as tavernas eram ruidosas e agitadas pela alegria movida a álcool do povo comum; as ruas eram cheias de vida em toda a sua glória e repulsa.

Se você não consegue achar o que deseja no Velho Distrito, então tal coisa não existe. Era uma velha máxima em Nessântico.

Justi encontrou o amor no Velho Distrito, e era para o amor que ele corria todas as noites em que encontrava tempo para fugir das pessoas ao redor.

- Perdão, vajiki. Você teria uma d'folia para alguém comprar um pão? — A voz surgiu da boca escura de um beco, acompanhada pelo cheiro de dentes podres. Aqui nas entranhas da cidade perto do centro do Velho Distrito, bem distante das luzes mágicas da Avi a'Parete, a pouca iluminação presente vinha em grande parte das janelas abertas das tavernas e bordéis, a claridade era fraca e intermitente. As sombras mudaram de lugar, e Justi viu o homem ali. Ele também o conhecia: o mendigo conhecido como Mahri Maluco. Onde coisas ruins acontecem, você verá o Mahri Maluco. Era outro ditado da cidade. O homem parecia onipresente, perambulava por todos os lugares da cidade e geralmente estava presente nos eventos importantes, tanto que o próprio comandante ca'Rudka chegou a interrogá-lo. Os rumores diziam que Mahri tinha adquirido pelo menos algumas das cicatrizes do corpo naquela ocasião.

Justi vasculhou no bolso do manto; os dedos puxaram uma pequena moeda dentre as outras ali dentro. Ele estendeu a mão.

Aqui - falou para o mendigo. Justi manteve a voz baixa de propósito, grunhiu as palavras para esconder o tom agudo natural. - Compre pão ou bebida. Não me importo com qual dos dois.

Uma mão surgiu e pegou a moeda assim que Justi jogou na direção do homem. — Obrigado, vajiki — disse ele. - E, em troca, deixe-me lhe dar uma coisa.

Eu não quero nada de você, Mahri. — Justi deu um passo para longe do homem, e a mão direita foi para a faca que mantinha escondida debaixo do manto.

Mahri pareceu rir. - Ah, Mahri não é ameaça para você, vajiki. Não na noite de hoje. Mas você realmente quer algo de mim. Apenas não se deu conta disso. Não é assim que as coisas geralmente acontecem? Nós não sabemos o que precisamos até que alguém tire de nós ou até recebermos. — A voz mudou: virou um sussurro rouco e urgente. - Eu sei quem você é. Sei o que quer. Sei o que está procurando e o que encontrou.

Justi soltou um risinho debochado. - Por acaso eu devo dar ouvidos à sabedoria de um débil mental que não tem sequer uma d'folia para comprar pão?

Um chiado soou na escuridão. - Você espera que sua matarh morra. Você deseja que isso aconteça e tem medo ao mesmo tempo. E você deita na cama de uma mulher que pertence a outro homem e que é manipulada pelo vatarh.

Justi prendeu o fôlego e franziu os olhos. Ele esqueceu de falar em tom grave e a resposta saiu estridente. — Por que você está falando comigo? O que você quer? Tudo que preciso fazer é chamar o utilino...

O que eu quero você acabará me dando — respondeu Mahri. — Posso lhe dizer isso: sei que o rosto maquiado é também a máscara funerária. Em breve será a sua hora, como deve ser.

As palavras deixaram Justi arrepiado. - O que isso quer dizer? Você não fala nada além de charadas? - exigiu Justi. Mahri estava voltando para a boca do beco, de volta para o interior da escuridão. - Espere. — Ele deu um passo em direção ao mendigo, mas a tênue luz de velas refletiu em alguma coisa vindo em sua direção, e Justi afastou-se e desviou por reflexo. Sentiu alguma coisa bater no peito e depois cair nos paralelepípedos com um tilintar baixinho. Justi olhou para o chão. A d'folia que ele deu para o mendigo estava caída ali, com seu próprio rosto na efígie da moeda. — Mahri!

A voz de Mahri respondeu, já distante. - A Concénzia acredita que tudo foi posto no mundo para servir ao propósito de Cénzi, a'kralj. Descobrir que propósito é esse pode ser a verdadeira missão de vida. Se você abandonar o caminho que seus olhos lhe mostram, jamais saberá a verdade.

Mahri! — chamou Justi novamente.

Não veio resposta alguma da noite. O homem tinha ido embora. Justi olhou para a moeda.

Um problema, vajiki? Tem algo que possa fazer por você? — Uma luz repentina fez a d'folia de bronze reluzir nos paralelepípedos. Justi ergueu a cabeça. Onde a rua cruzava com outra, um homem com o uniforme brocado de um utilino estava segurando uma lanterna acesa por mágica com o refletor virado na direção de Justi, que protegeu o rosto do brilho. Os utilinos eram e'ténis colocados a serviço da Garde Kralji: seu trabalho era patrulhar as ruas e acabar com qualquer confusão que encontrassem, ou ajudar qualquer cidadão que precisasse de ajuda. O cassetete do utilino ainda estava preso ao cinto, mas o homem pousou a lanterna nos paralelepípedos e segurou o apito de cobre perto dos lábios. Justi pensou ter visto a mão livre do homem já começar o gestual de um feitiço.

- Não - respondeu Justi. Ele pigarreou e tentou falar em tom mais grave.

Não há problema algum, utilino. Só deixei cair algo no caminho. Encontrei agora.

O homem acenou com a cabeça. Ele deixou o apito pender pela corrente sobre o peito e pegou a lanterna novamente. - Muito bem. - O refletor fez um clique e a luz focada em Justi ficou suave e difusa, mas o utilino parou ali, ainda observando. Justi perguntou-se se foi reconhecido pelo téni. Ele ajeitou o manto sobre os ombros e puxou o capuz para que o utilino visse seu rosto encoberto por sombras. Justi pisou na d'folia ao passar pelo homem e mante­ve o olhar inquisitivo do utilino em suas costas.

Justi correu agora, virou à esquerda, depois à direita, aí novamente à esquerda, passou por aglomerações de pessoas fora da porta de tavernas ou que andavam pela rua. Ele manteve o capuz próximo ao rosto ao passar por uma lanterna reluzente de outro utilino em patrulha, depois seguiu rapidamente por uma rua deserta onde as casas pareciam se inclinar na direção uma das outras de ambos os lados da rua, como se estivessem cansadas. Ele foi até uma porta pintada de azul-claro, que parecia cinza-claro à noite, e empurrou para abri-la. Lá dentro, em um aposento decadente, porém limpo, uma jovem que atiçava uma lareira virou-se. — Ah, vajiki - falou a mulher, embora Justi sou­besse que ela tinha perfeita noção de quem ele era e de seu verdadeiro título.

Nós imaginamos... Minha senhora está no andar de cima, esperando pelo senhor...

Ela pegou o manto que Justi entregou em silêncio e pendurou em um gancho perto de outro. Ele subiu as escadas, parou no patamar e bateu na porta antes de empurrá-la. Velas brilhavam espalhadas pelo quarto e davam um tom dourado às tapeçarias na parede. Ninfas nuas e sátiros empolgados saltitavam ali nos campos bordados, entrelaçados em dezenas de abraços ima­ginativos. Os únicos móveis no quarto eram uma cama de dossel e duas mesinhas de cabeceira.

Um quarto do tipo que uma das grandes horizontales que Justi conhecia mantinha - ostensivamente sexual, ostensivamente convidativo. Ele achou graça em segredo com a semelhança. Francesca ficaria chocada se ele mencionasse a comparação para ela.

As cortinas da cama foram abertas por uma mão delicada assim que Justi entrou. Ele vislumbrou a mulher deitada ali, o cabelo solto e jogado sobre o travesseiro. - Desculpe pelo atraso, Francesca. Eu... - A memória das estra­nhas advertências de Mahri provocou um calafrio. - Eu encontrei alguém no caminho daqui.

Ela franziu a testa e ficou com uma expressão imediatamente preocupada. Francesca jogou os lençóis para o lado; através do tecido transparente de seu vestido, Justi viu o indício da escuridão na junção das pernas e as sombras dos seios. - Querido, você parece que passou por dentro de um fantasma. - Seus olhos eram grandes com pupilas da cor de solo fértil que acabou de ser revolvido.

Justi fez um esforço para sorrir. - Não é nada. Nada. Não quando estou com você aqui novamente.

Justi fechou a porta enquanto ela veio até ele fedendo a perfume. Justi abraçou Francesca, que puxou a cabeça dele para a sua e pressionou os lábios macios e delicados nos de Justi, e ele esqueceria de tudo por algumas horas...

 

O SOL ESTAVA DANÇANDO nas pálpebras de Ana.

Ela pestanejou e ergueu a mão para se proteger da claridade. Viu de relance a manga rendada e sentiu o calor de um cobertor grosso sobre o corpo. Ana levantou a cabeça: ela estava em um quarto onde nunca esteve antes, —grande e esplendidamente decorado com uma única porta. Na parede oposta ao pé da cama havia uma lareira enfeitada em cujo interior Ana podia ficar de pé com facilidade. A esquerda, cortinas brancas esvoaçavam com uma brisa que vinha de uma sacada. A camisola que ela usava não era uma das suas. A porta foi aberta e uma cabeça apareceu: uma moça com uma touca branca e folgada de criada que tentava inutilmente conter os cachos ruivos. - Ah - dis­se ela. - A senhorita está acordada, o'téni.

A porta foi fechada apenas para ser aberta novamente antes que Ana conseguisse sair da cama. Mais duas criadas entraram: uma mulher corpulenta de meia-idade e uma moça que, pelas feições semelhantes, devia ser filha da primeira. A filha trazia uma bandeja com um bule de chá de prata e pratos com frutas e pães; a matarh correu para a cama. - Fique aí, o'téni. Aqui, deixe-me colocar a bandeja em cima da senhorita. Agora, alguns travesseiros atrás da sua cabeça... — Um instante depois, a bandeja foi colocada diante de Ana enquanto ela se sentava, apoiada na cabeceira. Um café da manhã suntuoso e cheiroso soltava fumaça diante dela, e Ana notou que estava faminta.

Onde eu estou? - perguntou Ana, e as criadas riram em uníssono. Elas tinham a mesma risada também.

O archigos disse que a senhorita provavelmente estaria confusa quando acordasse - disse a mulher mais velha. - A senhorita está em seus aposentos, do outro lado da praça do templo. - A filha foi até uma cômoda do outro lado do quarto, tirou roupas de baixo e um robe verde das gavetas e colocou delicadamente no pé da cama. A mulher mais velha amaciou os travesseiros em volta de Ana, depois foi até as portas da sacada e abriu as cortinas. Ana conseguiu vislumbrar os domos do Templo do Archigos atrás da criada. - A senhorita está se sentindo melhor, o'téni? Vamos, coma a torrada antes que esfrie. Aqui, deixe-me servir um pouco desse maravilhoso chá; veio lá de Quibela, na província de Namarro. O archigos disse que Cénzi tocou na senhorita depois da unção e que foi por isso que ficou tão exausta. Ele pediu que o avisássemos assim que a senhorita acordasse. Eu já mandei Beida contar para ele.

Ana ouviu sem prestar atenção ao falatório da mulher enquanto provava o chá (que de fato era maravilhoso, com o sabor de especiarias que flertou timidamente com a língua) e comia o pão e as frutas à sua frente. Descobriu que a mulher chamava-se Sunna e a outra, que realmente era a filha dela, linha o nome de Watha, e que Watha era noiva de um modesto sargento da Garde Kralji, "mas ele é da equipe do comandante ca'Rudka, e tem destaque junto ao comandante"; que elas vinham de Sesemora e o sobrenome era Hathiga, atualmente sem nenhum prefixo de status, embora o archigos tivesse prometido que elas se tornariam ce'Hathiga na Listagem do ano que vem; elas trabalhavam para o archigos nos últimos seis anos e agora foram designadas para os aposentos de Ana.

Quando terminou de saber tudo isso, Ana já tinha tomado o café da manhã, realizado a ablução matinal e permitido que fosse ajudada a se vestir pelas criadas. Beida bateu na porta quando ela terminou tudo. - O archigos está na recepção, o'téni - disse a criada ao tocar rapidamente na testa. - Ele falou para entrar assim que estivesse pronta.

Assim como o quarto, a recepção era grande e opulenta com sua própria sacada e lareira, decorada com uma mesa, sofá de couro e elegantes cadeiras que combinavam. O archigos estava na sacada, tão pequeno que, por um momento, Ana pensou que fosse uma criança. Então ele virou-se e ela viu o rosto velho, os braços curtinhos, as pernas arqueadas e a coluna curvada. - Bom-dia para você, o'téni Ana - disse o archigos. - Por favor, venha aqui fora...

Ana foi ficar ao lado dele. A manhã estava fria, a brisa mexia as dobras do seu robe macio, da cor de grama, e trazia até os dois o cheiro de lenha das lareiras da cidade, acesas para o café da manhã. Ela olhou para o pátio do templo do alto de quatro andares; Ana estava no topo do prédio. Diretamente do lado oposto, parecendo estar praticamente ao nível dos olhos, os domos dourados do próprio templo refletiam a luz do sol de volta para o céu. Enquanto Ana observava as pessoas que passavam correndo para cuidar da vida, as trompas soaram a Primeira Chamada. Automaticamente, ela ficou em um joelho só e abaixou a cabeça; percebeu que o archigos agiu da mesma forma ao lado. Ana fez as preces da manhã silenciosamente: as trompas continuaram a tocar e o som estridente levou o fardo das preces da cidade em direção ao céu, para Cénzi e os outros deuses. Assim que as últimas notas morreram, Ana ficou de pé outra vez. O archigos ofereceu sua mãozinha para ela. - Se puder fazer a gentileza... — Ela ajudou o anão a se levantar, ele gemeu quando o joelho es­talou em protesto. - Velhas juntas. Fico imaginando se você poderia curá-las.

Com essas palavras, Ana lembrou-se dos eventos da noite anterior: a ma­tarh, o feitiço de cura, a escuridão se fechando em sua volta... - Minha matarh...

O archigos sorriu para ela com os lábios franzidos. — Ela está muito bem, pelo que eu soube. Mandei Kenne para a casa de sua família hoje de manhã para se informar sobre sua matarh, pois sabia que você iria perguntar. Disseram para ele que ela dormiu bem, que a tosse passou e que conversa com seu vatarh e os criados como se nada tivesse acontecido. Parece que um pequeno milagre aconteceu, hein? - O archigos ergueu uma sobrancelha ao olhar para Ana. - Ela também não se lembra do que aconteceu no templo ontem à noite, o que é melhor assim. Eu sugiro que você também não se lembre.

Archigos, o que eu fiz... - Ela não tinha certeza do que queria dizer.

É algo que ficará entre nós dois porque tem que ser assim - respondeu ele para Ana. - Vamos entrar, o ar ainda tem um pouco do antigo inverno na manhã de hoje. — O archigos afastou as cortinas da sacada para ela. Dentro dos aposentos, Watha acendeu um pequeno fogo na lareira. A criada sorriu para eles, saiu do quarto e fechou a porta. - Suas criadas são todas excelentes pessoas. Discretas. Prudentes. Ficam de boca fechada a respeito do que vêem e ouvem. Elas farão qualquer coisa que peça. - O archigos contorceu a boca e olhou para as chamas na lareira. — Desde que o que você peça não conflite com as minhas ordens para elas, é claro - acrescentou. Ana percebeu os vários significados por trás dessas palavras. Sentiu o estômago dar um nó.

Archigos, o que aconteceu comigo ontem à noite?

O archigos voltou a olhar para Ana e sorriu novamente. Sentou-se em um dos sofás e indicou para que ela se sentasse em frente a ele. - O que acon­teceu foi o que eu esperava que acontecesse. Ninguém pode tocar Cénzi assim tão de perto e não sofrer as conseqüências. Eu sei disso.

Eu já senti cansaço antes; todos nós sentimos quando o u'téni co'Dosteau ensinava os cânticos. Mas nada como isso. Nunca algo tão... exaustivo.

Você nunca tinha ido assim tão fundo antes — respondeu o archigos.

"Quanto maior o Dom, maior o preço." Eu já lhe disse isso uma vez. É um velho clichê, mas geralmente existe verdade por trás dos chavões. Os ténis-guerreiros conhecem esse cansaço; seus feitiços têm esse mesmo tipo de poder. Você poderia se tornar uma téni-guerreira facilmente, se quisesse.

Meu feitiço... - Ela mordeu o lábio por um momento enquanto imaginava o que dizer. - Meu feitiço foi errado. Ele violou a Divolonté. Eu fui contra a vontade de Cénzi.

Foi? Você acredita que Cénzi é tão fraco que você poderia submeter a vontade Dele aos seus caprichos? Acha que Ele não poderia detê-la se quisesse? Não há nada de errado com o que você fez. Você tem uma habilidade rara; seria ir contra a vontade de Cénzi se não a usasse.

Ana arregalou os olhos: o que o archigos disse foi uma heresia; ia contra todo o discurso dos ténis em suas Admoestações. - Archigos, os preceitos do Toustour e da Divolonté ensinam-nos que o Dom jamais pode ser usado dessa forma. - Era o que o u'téni co'Dosteau lhe ensinara, foi o que sempre lhe disseram.

Às vezes o que a Fé ensina está errado.

A declaração fechou a boca de Ana. O archigos sorriu, como se achasse graça na expressão que viu no rosto dela. - Ah, eu negaria se você dissesse que falei essas palavras, Ana. E jamais as diria em público. Nem mesmo o archigos pode declamar heresia sem conseqüências; alguns dos a'ténis estão justamente esperando por essa oportunidade. Especialmente o a'téni ca'Cellibrecca, que adoraria uma desculpa para tirar o título de mim. Nem você pode realizar tais feitos sem conseqüências; é por isso que tem que tomar muito cuidado daqui em diante com o que fizer.

O sorriso desapareceu, e havia algo no rosto do archigos que fez Ana -recuar na cadeira. - Afinal de contas - continuou ele - se eu contar a ca' Cellibrecca o que você fez na noite passada, ora, ele não teria escolha a não ser lhe mandar para a Bastida. Uma acólita promovida a o'téni pelo archigos... ora, eles imaginariam que você usou suas habilidades para me enfeitiçar e que armou a tentativa de assassinato em benefício próprio. E, acredite em mim, na Bastida você contaria o que eles quisessem escutar. - O sorriso voltou, mas falhou completamente em tranquilizá-la. - Entenda, o'téni Ana, nós temos que confiar um no outro que não revelaremos os segredos que sabemos.

O archigos empurrou o corpo para a ponta do sofá, depois deixou as perninhas escorregarem até o chão e ficou de pé. Ele foi até Ana e colocou a mão em seu joelho enquanto ela permanecia ali sentada, estarrecida. Ana sentiu o calor da pele do archigos através do tecido do robe.

Era a mesma sensação da mão de seu vatarh. Ela estremeceu e fechou bem as pernas por debaixo do robe.

Estamos nos aproximando de uma época perigosa - disse o archigos. - O populacho ainda não se deu conta. Eles só enxergam a prosperidade e as celebrações pelo jubileu da kraljica. Não notam as nuvens de tempestade que se reúnem no horizonte e não ouvem os resmungos debaixo das ovações. Época perigosa. Eu não me dei conta até quase ser tarde demais.

Ele tirou a mão do joelho de Ana. Ela recuou rapidamente e viu o archigos franzir os lábios assim que a mão voltou para o lado do corpo. A velha boca abriu um pouquinho e ele suspirou.

Ah, então foi assim. Eu imaginei quando vi seu vatarh com você. Sinto muito.

Ana sentiu o rosto ficar quente de vergonha. — Archigos...

Ele balançou a cabeça. - Não. Não diga nada. Todos nós temos que enfrentar demônios à noite. Eu tenho os meus também. Não tive a intenção de fazer com que pensasse que eu... — A mão do archigos tocou a de Ana, mas ele balançou a cabeça e recolheu a mão. Respirou fundo e afastou-se. - Você tem que confiar em mim, Ana, porque no futuro próximo terá que escolher de que lado vai ficar. - A voz do archigos era cautelosamente neutra. — Nos desafios que desconfio que enfrentaremos, aqueles com força e influência terão que tomar uma posição. Espero que você escolha com sabedoria. — Então o sorriso voltou novamente, e a voz perdeu o tom de moderação. - Como eu escolhi você. Ana, eu estive dormindo. Desde... Não sei desde quando, mas há anos. Enquanto estive dormindo, aqueles que não vêem a Concénzia da mesma forma que eu surgiram, passo a passo, bem devagar, até eu descobrir que estou cercado por eles. O a'téni ca' Cellibrecca, sim, mas ele tem vários aliados entre os a'ténis. Há alguns meses, acho que despertei novamente...

Ele tomou fôlego. Ana permaneceu calada, sentada e imóvel, sem saber o que dizer ou como reagir. Ela sentiu-se perdida, como se tivesse se afastado de tudo que era familiar em seu mundo. O archigos foi até a lareira e esticou as mãos para aquecê-las. Sem dizer uma palavra, Beida entrou com um manto e ajudou o archigos a vesti-lo; Ana se deu conta de que a criada devia ter observado e escutado o tempo todo. Enquanto ajeitava o manto sobre os ombros, o archigos virou-se e sorriu para Ana. - Você deve descansar e terminar de se recuperar, o'téni. Vou mandar alguém para lhe buscar logo antes da Segunda Chamada; você andará na procissão hoje junto com o resto da minha equi­pe. Depois da bênção no Velho Templo, eu e você iremos ver a kraljica. Ela mandou avisar que gostaria de conhecer você. Beida, se fizer a gentileza de me acompanhar até a saída...

Dito isso, ele foi embora. Quando a porta foi fechada, Ana tocou a mão que o archigos havia tocado. Os próprios dedos pareciam frios sobre a pele.

 

AS ÚLTIMAS NOTAS da Primeira Chamada foram sumindo. Karl observou ca'Rudka erguer a cabeça e ficar de pé, as mãos entrelaçadas afastaram-se da testa. - Não rezou, enviado ci'Vliomani? - perguntou ca' Rudka. Karl achou que o sorriso do homem parecia mais com uma expressão de deboche, e o nariz metálico reluzente era impossível de ignorar. - Pensei que os numetodos ainda acreditavam em alguma coisa, embora tenham abandonado a fé concénziana.

- Nós acreditamos, comandante - respondeu Karl. — Acreditamos na lógica, em provas que possamos ver, tocar e sentir. Acreditamos que, se os deuses realmente existem, então a forma para compreendê-los é através das habilida­des que eles nos deram: razão e lógica. Que maneira melhor de cultuá-los do que usar todas as habilidades que temos?

- "... se os deuses realmente existem." - Ca'Rudka inclinou a cabeça e olhou para cima como se saboreasse as palavras com a língua. - Eu não tenho dúvidas da existência de Cénzi, enviado ci'Vliomani, nem preciso de nada além de minha fé para compreendê-Lo. — O comandante sorriu para Karl. — Mas não estamos aqui para discutir teologia, estamos?

A resposta ao pedido de Karl para ter um encontro com a kraljica veio não muito depois da Iluminação da Avi: não veio da própria kraljica, mas sim do assistente Renard co'Bellona. Infelizmente a kraljica não poderia receber o enviado ci'Vliomani, mas o comandante ca'Rudka estaria disponível para ou­vir seus problemas. Era, na verdade, mais do que Karl tinha esperado. Ele che­gou ao Grande Palácio antes da Primeira Chamada, como a mensagem pediu, e foi conduzido a uma das salas de recepção inferiores na ala leste, onde chá e café da manhã fora servido em uma mesinha com dois criados que esperavam pacientemente atrás, e onde o comandante caRudka entrou depois de poucas marcas da ampulheta, assim que as trompas anunciaram a Primeira Chamada.

Ca'Rudka foi para a mesa. Um dos vários criados que rondavam pelos cantos da sala serviu o chá do comandante e misturou um pouco de mel na bebida fragrante. Ele pegou um dos doces e mordeu, pareceu saborear com os olhos fechados antes de tomar um gole do chá. — Algo para você, enviado? O doceiro da kraljica é excelente. Você realmente deveria provar uma das tortas. Aqui... - Ele apontou para as tortas, e outro criado rapidamente colocou em um prato.

Ca'Rudka passou para Karl o pratinho incrustado com o brasão da kraljica que estava escondido debaixo do doce. - Vamos comer no pátio - disse o comandante para os criados. - Tragam o chá do enviado, doces sortidos e saiam.

Enquanto os criados corriam ao redor da mesa, ca'Rudka acompanhou Karl da sala até um pátio elevado de pedra que dava nos jardins externos do palácio. Vários trabalhadores andavam por ali enquanto podavam os arbustos e as flores.— Sente-se, por favor, enviado - disse ca'Rudka ao gesticular para duas cadeiras voltadas para o jardim com uma mesinha de tampo esmaltado entre elas. Karl sentou-se, e o comandante ficou com a outra cadeira; os criados chegaram com o chá e os doces e sumiram novamente. - Eu gosto de ver os jardins nesta hora do dia - falou ca'Rudka.

Eles são bem bonitos, tenho que concordar, comandante.

Realmente. Mas eu gosto de ver os jardineiros trabalhando. Veja bem, enviado, toda a ordem e beleza que você vê diante de si tem um preço. Sabia que a kraljica tem mais de cem empregados apenas nos jardins do palácio, apenas aqui na Ilha A'Kralji? Se você considerar todo o resto das proprieda­des que ela possui, o castelo e as casas espalhados pelos Domínios, então são mais de mil. Eles mantêm a beleza que eu e você vemos e, para fazer isso, eles têa que se livrar sem piedade de tudo que é podre e doente ou que ameace o ambiente.

Karl permitiu-se um risinho e olhou para o comandante, que não contemplava o jardim, mas sim encarava Karl. Os olhos do comandante foram para a concha de pedra no colar no pescoço do enviado, depois subiram para o rosto. — Então você se vê como um simples jardineiro, comandante? E nós, numetodos, somos as ervas daninhas que ameaçam a flor de Nessântico? Eu imagino que você acredite que o a'téni ca'Cellibrecca seja meramente o Jardi­neiro de Brezno.

Ca'Rudka riu; Karl achou o som sinistro. - Eu sabia que entenderia minha analogia tosca, enviado. Sim, realmente, eu às vezes me considero como responsável pelo jardim que é essa cidade, assim como a kraljica é responsável por um jardim muito maior que são os Domínios, assim como os a'ténis e o archigos são responsáveis pela floração dos fiéis. Quanto aos numetodos... — Rudka fez barulho ao pousar a caneca de chá no pires. - Você é o enviado. Você foi a pessoa mandada aqui para falar com a kraljica em nome deles.

Comandante, o ataque ao archigos ontem não fez parte de uma conspiração qualquer dos numetodos. Foi o ato de um louco solitário, que infe­lizmente parece ter ligações com numetodos que eu jamais encontrei pessoal­mente. Minhas credenciais do governo da Ilha de Paeti...

Ca'Rudka fez um gesto para que ele se calasse. — Suas credenciais estão em ordem. Eu sei; eu mesmo verifiquei há meses. Se não estivessem, nós não estaríamos aqui conversando; bem, pelo menos não desta maneira. — Ele levantou-se da cadeira e Karl acompanhou o comandante. - Venha, enviado, vamos andar enquanto discutimos sobre isso.

Ele conduziu Karl do pátio para os jardins. Enquanto passeavam pelas trilhas cobertas de brita, o comandante apontou para alguns arranjos e flo­res. O comandante parecia ter um vasto conhecimento sobre horticultura, certamente mais do que Karl, que só sabia o nome das flores mais comuns aqui em Nessântico. A conversa, para a frustração de Karl, nunca parecia voltar ao numetodo e à tentativa de assassinato do archigos, mas ele fez um esforço para ter paciência. Ca'Rudka, como Karl tinha aprendido em seus poucos meses aqui, era uma pessoa que fazia as coisas a seu tempo, como a própria kraljica. Como um belo, porém perigoso predador, ele tinha que ser observado cuidadosamente. Eles estavam andando há algum tempo quando ca'Rudka parou. O comandante agachou-se perto da borda bem cuidada da trilha e apontou para uma plantinha ali, com folhas meio púrpuras e denteadas que mal ultrapassavam o limite do caminho. - Erva daninha ou flor? - perguntou para Karl.

Eu não sei, comandante.

É difícil dizer, não é? No momento, não há sinal de uma flor e, no entanto, ela pode surgir em cores triunfantes daqui a uma semana ou se espalhar para infestar a área inteira. - O comandante enfiou os dedos na terra fofa em volta da planta e a arrancou do solo com as raízes intactas. — Você, meu bom homem! - berrou ca'Rudka para o jardineiro mais próximo, que veio cor­rendo ao ser chamado. - Leve isso e coloque em um vasinho para mim. - O sujeito pegou a planta com as mãos em concha e foi embora correndo.

Dhaspi ce'Coeni foi executado — falou ca'Rudka sem preâmbulo ao limpar a terra das mãos. Os olhos escuros pareciam examinar o rosto de Karl.

Ele obrigou-se a não demonstrar nada. - Era o que eu esperava, comandante. Nessântico é muito conhecida nos Domínios por sua... — Karl permitiu-se a menor das hesitações - ... rápida justiça.

Músculos puxaram os cantos da boca de ca'Rudka. - Foi justiça, enviado. E mais. Ao atacar o archigos, a vida ce'Coeni estava perdida, mesmo que tivesse tentado usar uma espada ou flecha. Mas, para piorar, sua arma foi o Ilmodo, que é o Dom de Cénzi exclusivamente e é proibido a qualquer um que não seja um téni pela lei dos Domínios e pela Divolonté da Concénzia.

Não foi o Ilmodo, comandante - disse Karl. — É o que chamamos de Scáth Cumhacht.

Chame do que quiser. É apenas semântica. - Ca'Rudka continuava a encará-lo, sem pestanejar mesmo sob o sol forte. Karl achou o olhar do homem perturbador, mas não conseguiu desviar os olhos. - Devo informar que ce'Coeni assinou uma confissão plena antes de morrer.

E isso aconteceu por livre e espontânea vontade, sem dúvida.

Eu entendo seu ceticismo, enviado, mas isso acontece regularmente. Alguns criminosos desejam aliviar a alma ao admitir a culpa antes de ir ao encontro da balança de almas de Cénzi. Acho difícil acreditar que ce'Coeni estivesse agindo totalmente sozinho, enviado. Desconfio que há outros numetodos envolvidos.

Eu vou ser preso então, comandante? A confissão me apontou como cúmplice? Se for o caso, eu agradeço que tenha me trazido aqui antes de me levar para a Bastida para eu assinar minha própria confissão para você.

O jardineiro aproximou-se e o comandante virou-se por um momento para receber o vasinho de argila. - Aqui - falou ca'Rudka ao entregá-lo para Karl. O enviado aceitou a planta, e o comandante esticou a mão em sua di­reção para tocar as folhas com o indicador. - Um jardim pode aceitar muitas plantas: se elas provarem a própria beleza, se tiverem o tom certo que agrade ao gosto do jardineiro, e se puderem coexistir em segurança com todas as outras plantas. Então... erva daninha ou flor, enviado? O que ela é, eu me per­gunto? Tome conta da planta, dê água e coloque ao sol, e você vai descobrir.

Mas você já sabe a resposta, não é, comandante?

Os olhos de ca'Rudka brilharam. Ele sorriu novamente e mostrou os dentes. - Realmente eu sei, enviado. Mas você não, e isso é que precisa decidir, não é?

 

QUANDO ELES FORAM CONDUZIDOS à presença da kraljica por Renard, ela estava no Trono do Sol. Havia talvez três ou quatro dezenas de outras pessoas no longo Salão do Trono, reunidas perto das portas: chevarittai, primos, diplomatas, suplicantes, cortesãos; todos esperando por seus momentos rigorosamente agendados com a kraljica, para ser vistos em sua companhia, para pedir favores ou promover suas causas favoritas. Ana ouviu um círculo de moças que falavam sobre o que vestiriam no Gschnas, o Baile do Falso Mundo que ocorreria na semana seguinte. As conversas morreram momentaneamente enquanto ela seguia o archigos pelo salão e todos se vi­raram para olhar. A própria kraljica estava separada dos ca' e co' por vários passos, com um pintor que passava o pincel em uma tela diante dela, embora nenhum dos cortesãos estivesse perto o bastante para ver bem o quadro. Havia uma estranha caixa preta ao lado do pintor.

Isso é tudo por enquanto, vajiki ci'Recroix - disse a kraljica com uma voz que parecia sonolenta e cansada quando Renard fechou as portas após a entrada de Ana e o archigos. Todo mundo encarava os recém-chegados. Ana sentiu-se sendo examinada, pesada e medida pelos olhares. - Se fizer a gentileza de nos deixar - falou a kraljica para o salão, e os cortesãos fizeram reverências, murmuraram e saíram em uma agitação de roupas elegantes. - Archigos Dhosti — eles falaram e acenaram com educação para o anão ao passar. — Boa-noite, o'téni. E um prazer lhe conhecer, o téni - os cortesãos disseram e também sorriram para Ana. Ela notou o aborrecimento por trás de algumas expressões apesar das cuidadosas máscaras sociais, uma irritação pela interrupção da rotina e da agenda, pelos próprios compromissos serem atrasados ou talvez perdidos completamente. Mas Ana devolveu o sorriso, como era esperado, e seu sorriso tinha tanto significado quanto o dos cortesãos.

O pintor jogou um pano de linho sobre a tela para esconder o trabalho. Depois ele também se virou, olhou para o archigos e, a seguir, para Ana. Ele ficou encarando por tempo demais a ponto de incomodá-la, como se ela fosse um panorama que estivesse considerando pintar, antes de começar a arru­mar correndo as tintas e os pincéis. Enquanto o pintor fazia isso, a kraljica levantou-se do trono e gesticulou para eles ao andar até a sacada do salão. Ela andava como uma velha, Ana notou, com as costas curvadas da mesma forma que o archigos. A kraljica deu passos curtos, arrastados e cautelosos.

Você não está se sentindo bem, kraljica? - perguntou o archigos com óbvia preocupação na voz enquanto saíam para a luz. Debaixo deles, no pátio, os jardins estavam brilhantes com as cores distribuídas em quadrados e fileiras arrumados.

Minhas juntas estão me incomodando o dia inteiro, Dhosti; desconfio que vai chover amanhã, pelo jeito que estão doendo. E eu passei muito tempo sentada e falando com bajuladores demais. - Ela fez uma careta ao se sentar em uma cadeira acolchoada na sacada. No interior, eles ouviram o pintor recolher o estojo e sair, o som alto de suas botas nos ladrilhos. - Por favor, Dhosti, eu sei que suas dores facilmente são tão ruins quanto as minhas. Por favor, sente-se.

A kraljica apontou para outra cadeira e o archigos sentou-se. Ela não fez a mesma oferta para Ana, que permaneceu de pé e tentou parecer calma e controlada enquanto era encarada abertamente pela kraljica com a boca franzida em uma careta de avaliação. Ana manteve os olhos abaixados como era apropriado, mas viu o rosto da kraljica através dos cílios, um rosto que só tinha visto de uma grande distância nas ocasiões em que a kraljica apa­recia em público. Ela estava usando um vestido de seda azul-escuro abun­dantemente decorado com pérolas, com uma esmeralda no centro de um corpete; as mãos, brancas e de aparência artrítica, estavam imóveis sobre o colo. A garganta estava coberta por renda, mas por trás do tecido fino Ana notou a pele flácida debaixo do queixo. O cabelo completamente branco estava preso em um pente incrustado com madrepérolas e mais pérolas. A boca, franzida enquanto a kraljica ponderava, era uma teia de aranha de ru­gas, mas os olhos - de um tom aquoso, fraco e delicado de azul - eram mais gentis do que Ana tinha esperado e davam uma credibilidade sem palavras ao título popular da kraljica, "Généra a'Pace." Pelas últimas três décadas, a delicada teia de alianças que ela teceu impediu que as várias províncias e facções dentro dos Domínios entrassem em guerras declaradas. Houve os inevitáveis ataques e escaramuças, mas o conflito aberto foi evitado. Para Ana, a kraljica parecia inacreditavelmente majestosa, e ela manteve as mãos entrelaçadas em frente ao corpo para parar a tremedeira de nervosismo por estar em sua presença.

Como tem andado seu sono, Dhosti?

Como sempre, kraljica. Eu geralmente tenho... visitas durante a noite. Isso não mudou. As ervas do curandeiro que você me mandou ajudaram um pouco, mas ultimamente... - Ele deu de ombros.

Sinto muito saber disso. - Então o olhar da kraljica voltou-se para Ana. — Ela é tão nova, Dhosti.

Ana viu o archigos dar de ombros pelo rabo do olho. - Nós nos esquecemos, kraljica, que todos eles parecem jovens demais agora. Mas quando eu tinha a idade dela, eu já era um téni. Quando você tinha a idade dela, assumiu o trono e casou-se. Ela é adepta do Ilmodo, é isso o que importa. Um talento natural, tão forte quanto eu era na idade dela.

Eu soube que a matarh dela foi... - a kraljica hesitou e empinou o queixo, ainda encarando Ana - ... abençoada por Cénzi quando você a ungiu.

O archigos sorriu ao ouvir isso. - Suas fontes são muito boas, kraljica.

Elas também estão preocupadas.

Eu sei em quais dos aténis devo ficar de olho, kraljica.

Ela acenou com a cabeça. — Você sabe, é claro, que a vida do archigos jamais esteve em perigo real, não daquele tolo numetodo.

Ana assustou-se ao se dar conta, atrasada, que a kraljica estava se dirigindo a ela, não ao archigos. Ela pigarreou e levou as mãos à testa. - Eu não pensei a respeito, kraljica — disse Ana. - Não houve tempo para pensar.

O archigos deu-lhe uma grande honra ao fazer de você uma o'téni. - Torço que prove ser digna disso.

O archigos mudou de posição na cadeira e Ana deu uma olhadela rápida para ele. Ela ainda era capaz de sentir a maneira como o archigos tocara em seu joelho de manhã, como se Ana fosse uma obra de arte ou uma garrafa de vinho fino que ele tinha comprado - nesse sentido, foi diferente de quando foi tocada pelo vatarh. O archigos não a tocou desde então, mas a memória permaneceu e deu o tom do sorriso que ela mostrou para a kraljica. — Vou Tentar, kraljica. O que Cénzi quiser, assim será. - O aforismo do Toustour foi tudo que ela conseguiu pensar em dizer. Ana sentiu como se estivesse se afogando aqui, perdida em insinuações e intenções veladas.

Você vai ter que fazer mais do que depender de clichês — disse a kraljica em tom severo, depois fez uma careta. - Perdoe-me, o'téni; eu esqueço como você é nova em seu posto e não sabe o que se espera de você. Quando estou em particular, eu prefiro franqueza e honestidade sem rodeios dos meus conselheiros. Em particular, espero que você diga o que realmente acha e acredita. Você pode deixar as evasivas educadas para os momentos em que outros ouvidos possam ouvi-las.

A crítica fez com que Ana se lembrasse do que o'téni co'Dosteau dissera para ela, na época em que foi aceita como acólita. "Você não tem idéia de onde se meteu. Se tivesse, não estaria na minha frente com esse sorriso sem noção gruda­do nos lábios. Eu sei quem você é e o que você é, vajica co'Seranta. A não ser que seja mais do que eu acredito que é, você será derrotada e irá embora em poucos meses. Voltará choramingando para a sua família... "Mas sua determinação não foi derrotada e Ana não foi embora; agora, anos depois, ela estava aqui.

A senhora não deve pedir desculpas, kraljica - disse Ana. - Está certa em me criticar. Eu tenho noção de que sei muito pouco. Mas também sei que sou capaz de aprender o que preciso para entender e posso aprender rápido.

É isso o que eu quero, é mais do que ousei querer para mim e para a minha família. Pretendo fazer tudo que for preciso para provar que sou digna da grande honra que me foi dada.

A kraljica deu uma risadinha que terminou em uma tosse. — Bem dito, pelo menos. - Ela passou levemente um lenço de linho pela boca. - Você confia nela, Dhosti? - perguntou para o archigos.

Ela sabe onde sua lealdade tem que estar - respondeu ele. - Não sabe, o'téni co'Seranta?

Ana forçou um sorriso. A kraljica podia ter indicado que queria franque­za, mas Ana ainda não estava pronta para se tornar tão vulnerável. Ela foi le­vada pelos eventos de ontem como um turbilhão e, até colocar os pés no chão novamente, iria continuar a agir como a sociedade sempre disse que deveria. Ela sabia disso pelo vatarh, pela matarh, pelo vavatarh e pela mamatarh, por seus pares: os co' sempre viviam no precipício da sociedade, olhavam para o caminho acima que levava aos ca', mas estavam sempre cientes de que era mais fácil cair do que subir. Ela também sabia que havia um punho escondido na luva de pelica das palavras do archigos. - Sei sim, archigos - respondeu. - Eu sirvo a Cénzi e sirvo a Nessântico.

Isso, pelo menos, pareceu acalmar a kraljica. — Então, que tipo de téni você é? O archigos salvou você de ter que acender a Avi a'Parete todas as noites pelo resto da vida, ou de impedir que a cidade queime, ou de conduzir uma de suas carruagens, ou, que Cénzi me perdoe, de purificar o esgoto ou outra tarefa qualquer dos ténis? Você controla fogo, água, ar ou terra?

Ela consegue controlar qualquer um deles - disse o archigos. - Poderia facilmente ser uma téni-guerreira ou mais.

A kraljica deu um muxoxo de desdém. - Então me impressione. - Ela fez um gesto condescendente para Ana.

Ana resistiu ao impulso de fazer uma cara feia de raiva para o archigos por ter sido colocada nessa situação. Ela pensou furiosamente para tentar de­cidir o que fazer ou o que a kraljica poderia considerar "impressionante." Você vai precisar me ajudar, Cénzi... Ela fechou os olhos para rezar, e as palavras evocaram o Ilmodo. Ela sentiu o Ilmodo girar em torno de si, o caminho para o Segundo Mundo sendo escancarado, a energia emaranhada em filamentos de um laranja intenso e azul reconfortante à espera de Ana para serem mol­dados e usados...

Ela não sabe o que originou a decisão. Talvez fosse a tela coberta que foi possível vislumbrar pelas portas da sacada. Havia outros retratos espalhados pelos corredores por onde ela e o archigos passaram: a kraljica quando era menina, moça, recém-casada, mãe, mulher madura. Ana ficou mais impres­sionada pela pintura da kraljica na coroação. A expressão no rosto da nova Kraljica pareceu perfeita aos olhos de Ana: dava para ver tanto a determinação quanto a incerteza em disputa ali, como ela imaginava que se sentiria se tivesse recebido responsabilidades tão incríveis com tão pouca idade.

Ela ouviu o cântico mudar, sentiu as mãos se mexerem como se tivessem sido agarradas pelo próprio Cénzi. Ana esculpiu o Ilmodo...

A kraljica soltou um gritinho, e Ana abriu os olhos. Parada no limite da sacada, apoiada contra o peitoril de pedra polida a poucos passos de Ana como se estivesse contemplando os jardins, estava a kraljica: jovem, vestida com o robe da coroação, o anel com o sinete de kralji pesado no dedo indicador da mão direita. - Tão jovem - falou ela, e era a voz da kraljica, suave com a juventude. - Eu jamais teria imaginado. - Ela sorriu novamente...

... e os filamentos desmancharam-se na mente de Ana, difíceis demais de serem mantidos unidos em sua complexidade. A seguir, ela foi tomada pelo cansaço do Ilmodo e colocou a mão no peitoril para manter o equilíbrio.

A kraljica ainda olhava para o ponto onde esteve a imagem de sua versão mais jovem. - Eu me esqueci como eu parecia, como falava... - A voz tremeu, então ela fechou a boca momentaneamente. - Eu nunca tinha visto uma téni fazer isso. Dhosti? Você consegue?

O archigos também estava olhando, mas para Ana. Ela sentiu que estava sendo avaliada. — Não — respondeu ele. - Eu não consigo. Pelo menos não facilmente. A menina inventa feitiços em vez de usar aqueles que aprendeu.

- Não é de se estranhar que o a'téni ca'Cellibrecca esteja murmurando sobre a Divolonté e os numetodos a respeito dela - disse a kraljica.

Ana balançou a cabeça. - É o Dom de Cénzi — insistiu. — Não é contra o que Ele quer. Não pode ser.

A kraljica pareceu rir, quase em silêncio. - O que você pensa pode não importar, o'téni, se ca'Cellibrecca ganhar mais poder no Colégio Aténi. Mas é óbvio que você seria totalmente desperdiçada como uma téni-luminosa. - Ela suspirou longamente e olhou outra vez para o ponto onde a ilusão aparece­ra. - Vamos conversar porque eu estou ficando preocupada com o que tenho ouvido de ambos os lados das nossas fronteiras...

 

JAN OLHOU PARA as fileiras de soldados conforme a carruagem passava, as mãos direitas fechadas e erguidas em continência, os rostos sérios e implacáveis. A maioria era jovem, mas havia sargentos veteranos aqui e ali cujas cicatrizes nos rostos eram lembranças das campanhas orientais nas pla­nícies de Tennshah e a gloriosa vitória no lago Cresci, onde o exército firenzciano quase foi destruído antes de virar o rumo da batalha.

O quase desastre no lago Cresci foi culpa do aténi de Brezno na época, que mandou apenas um quarto dos ténis-guerreiros que o hirzg Karin, vatarh de Jan, pediu para dar apoio mágico às tropas. A campanha já estava quase perdida naquela última batalha quando Jan e os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos romperam as linhas inimigas para atacar a Escarpa das Cataratas e mandar os soldados de turbante do t'sha fugir de volta para o Grande Rio Oriental.

Jan recebeu suas primeiras cicatrizes de guerra ali, ao proteger o pobre starkkapitán ca Gradki dos Lanceiros. Com aquela batalha, Jan mostrou para o vatarh, o hirzg, que seu segundo filho - que estava longe de ser o favorito, aquele que ele invariavelmente denegria, debochava e ridicularizava - era um líder bem mais corajoso e decidido do que o primogênito Ludwig, que ele indicara como herdeiro. Jan havia tomado mais territórios de Tennshah do que seu vatarh jamais podia esperar - antes da kraljica Marguerite insistir que as fronteiras voltassem a ser como eram antes da guerra e dar outra de suas aparentemente inesgotáveis sobrinhas-netas para o t'sha a fim de selar o acor­do sujo que desperdiçou o que fora conquistado com as vidas de centenas de soldados firenzcianos.

A memória daquela traição ainda o atormentava duas décadas depois e fazia a garganta de Jan arder com bile. A kraljica roubou a vitória de Jan, seu triunfo sobre Tennshah e o irmão Ludwig. Ela jogou fora a prova que Jan era mais apto a ser o próximo hirzg do que o tolo afetado e vaidoso que seu vatarh obviamente preferia. Caso Ludwig e o hirzg Karin não tivessem sucumbido à febre do sul com uma diferença de poucos meses há cinco anos, Jan jamais teria assumido o trono de Brezno.

Sim, a lembrança ainda o atormentava. Mas Jan ignorou-a e cumprimen­tou as tropas de cima da carruagem aberta, acenou com a cabeça aqui e ali para aqueles com a estrela de Tennshah presa aos uniformes.

Várias tendas grandes foram montadas em uma ponta do campo, onde a carruagem parou. Criados chegaram correndo: para pegar as rédeas dos ca­valos, abrir a porta da carruagem, colocar um banquinho no chão, pegar sua mão ao desmontar, recolher a espada e o sobretudo militar, entregar a bengala e oferecer refrescos e bebidas alcoólicas que ele dispensou com um gesto.

Markell, seu ajudante de ordens, estava ali comandando a equipe. - Sua hírzgin e filha estão lá dentro, meu hirzg.

Jan seguiu Markell por entre duas fileiras de criados e cortesãos curvados e entrou na sombra providencial das tendas. Elas foram dispostas de forma a imitar o Palácio a Brezno, os "aposentos" eram separados por cortinas, tapetes foram postos sobre a grama e mobília colocada ao longo das "paredes" como se estivessem ali há anos. Jan permitiu-se ser conduzido pelos corredores feitos de lona até onde outro criado segurava uma aba aberta, pintada para parecer uma porta de madeira. Dentro do aposento - uma tenda separada -, ele viu a filha de 11 anos, Allesandra, que brincava com um conjunto de soldadinhos de brinquedo sobre uma mesa, enquanto a hirzgin Greta, sobrinha-neta da kraljica, levantou-se com suas damas de companhia do círculo de assentos onde estiveram entoando cânticos. Greta estava em avançada gravidez do ter­ceiro filho deles - Jan cumpria a contragosto com as obrigações de marido mês sim, mês não, mas Greta teimava em permanecer estéril desde o nasci­mento de Allesandra até essa gravidez inesperada e tardia. Mara co'Paile, uma das assistentes, ajudou Greta a ficar de pé; quando Jan respondeu às reverên­cias, ele viu o olhar de Mara e o sorriso em resposta.

Por favor, sentem-se e retomem suas conversas, hirzgin, vajica - disse ele. Greta abaixou o olhar, como se tivesse medo de ver para onde o hirzg dedicou sua verdadeira atenção. O relacionamento entre a vajica co'Paile e o hirzg era algo que qualquer observador atento da corte podia perceber que ninguém - nem Greta, nem o próprio marido de Mara, nem ninguém mais da panelinha da corte - ousaria falar em voz alta.

Mas o interesse de Jan estava concentrado agora na criança loura ali com a babá, que havia sobrevivido à epidemia de febre do sul que matou seu irmão mais velho há seis meses. Jan chorou amargamente no funeral de Toma, mas se Cénzi teve que levar um de seus filhos, foi melhor que fosse Toma. Ele tinha puxado muito à matarh, ou talvez ao irmão de Jan, Ludwig: fraco tanto física quanto mentalmente. Sua filha, no entanto, puxou à verdadeira linhagem ca'Belgradin, a linhagem dos hirzgs...

O segundo filho da linhagem ca'Belgradin era sempre o mais forte. Seu vatarh deveria ter percebido isso.

Como vai a minha Allesandra hoje? - perguntou Jan. Ele agachou-se e abriu os braços. Allesandra sorriu e correu até Jan, que levantou a menina enquanto ela ria e beijava suas bochechas com barba rente.

Eu recebi seu presente, vatarh - falou ela.

E você gostou?

Ela concordou solenemente com a cabeça. — Gostei muito. O senhor quer ver? - Ela pegou a mão de Jan e levou o vatarh até a mesa (a babá deu um passo tímido para o lado), onde pequeninas figuras douradas de soldados estavam espalhadas por um campo envernizado. - Olhe, vatarh, eu mandei Meghan amarrar besouros nos carroções de suprimentos para puxá-los, mas eles não obedecem para onde eu quero que vão. Tenho que mantê-los no lugar usando isto. — Allesandra tirou uma agulha de costura da mesa e usou para cutucar a carapaça verde e brilhante de um inseto amarrado pelas patas traseiras aos arreios de seda.

Você fez muito bem. Tenho certeza de que vai treinar bem seus besouros e que eles levarão os suprimentos a salvo para seu exército - disse Jan para ela. Ele pegou um dos bonecos da mesa: menor que a ponta do mindinho, a figura era delicadamente esculpida e moldada. — Tenho que mandar ao artesão uma pequena quantia em agradecimento uma vez que você gosta tanto dos dados, não tenho? Veja, esse é um dos Lanceiros Vermelhos, até no detalhe aos cadarços das botas. - Ele pousou o boneco novamente. - Mas você deveria colocar seus arqueiros atrás dos ténis-guerreiros, Allesandra. Eles estão perto demais das fileiras da frente, onde podem ser facilmente sobrepujados pelos chevarittai inimigos.

Allesandra franziu a testa. - Foi o que Georgi disse também, o offizier que o senhor mandou.

Então Georgi sabe o que está fazendo. Você gostou dele?

Allesandra fez que sim. - Ele é legal. E bem paciente.

Direi que você falou isso e farei com que ele dê mais lições.

Hirzg, ela é apenas uma criança - repreendeu Greta baixinho, sentada em sua cadeira. Jan olhou para ela; Mara estava logo atrás da hirzgin, com seus olhos verdes nos dele. - Não sei por que você mandou aquele o'offizier ensinar táticas de batalha. Ela não precisa saber disso.

Jan afastou o olhar de Mara para o rosto bem menos agradável de Greta. - Se ela me suceder como hirzgin, tem que saber sim - respondeu Jan com firmeza. - Firenzcia sempre precisa de líderes que também possam ser starkkapitän se necessário.

Firenzcia faz parte dos Domínios, e os Domínios estão em paz - falou Greta calmamente. - Firenzcia precisa de um líder, não de outro starkkapitän. O que nos ameaça não são soldados, mas as crenças perigosas que tiram as pessoas do caminho certo dado por Cénzi. - As mãos, dobradas sobre o barrrigão, agora fizeram o sinal de Cénzi na testa. Ela era normal e sem graça, o cabelo liso tinha um tom castanho comum, o queixo era um pouquinho quadrado demais e protuberante: aquele maldito traço de família. Jan podia ver que, dali a algumas décadas, se ela sobrevivesse às gestações, Greta ficaria muito parecida com a kraljica ou, pior, como o a'kralj. Na opinião de Jan, Greta já lembrava demais aquela velha bruxa Marguerite. — Não devíamos praticar a guerra; deveríamos estar nos preparando para o jubileu da kraljica em Nessântico.

Haverá tempo para isso após as manobras.

Sim - falou Greta, quase em tom de deboche. — Você tem que brincar com seus próprios soldadinhos de brinquedo.

Nessântico é uma velha caquética, assim como a kraljica, hirzgin, e é apenas o exército de Firenzcia que a mantém segura - disse Jan para Greta. - E apenas gente estúpida e inútil pensa diferente. - As damas de companhia, to­das à exceção de Mara, prenderam o fôlego e fingiram estar envolvidas com os próprios cochichos. Jan gesticulou para a mesa de Allesandra. - Se Firenzcia não fosse o braço forte de Nessântico, então Nessântico não seria nada. A não ser que você pense que aqueles frouxos chevarittai da Garde Civile possam lhe proteger.

A kraljica é a Généra a Pace. Ela trouxe a paz para os Domínios. Você fala como um numetodo criticando a Concénzia. - A bronca foi dada com delicadeza, quase em tom de desculpa, e ela levou as mãos à testa ao mencio­nar a Fé. Mas o tom de repreensão continuava presente e estaria ali repetidas vezes, até que seu toque constante queimasse como fogo. Era o jeito dela.

Ele odiava aquela mulher. Odiava que seu vatarh tivesse ficado tão intimidado a ponto de aceitar a "vontade" da kraljica de que os dois se casassem.

A kraljica colocou os Domínios para dormir - respondeu Jan e eu falo como um realista, hirzgin. Só isso. Um bom general, um bom líder, tem que garantir que sua espada esteja afiada e as habilidades bem treinadas para quan­do elas forem necessárias. E serão. A guerra sempre surge. Inevitavelmente.

Existe uma coisa chamada Verdade, meu querido marido, e a Verdade vem da fé. Fé na Concénzia e fé na kraljica. - Greta balançou a cabeça, uma discordância tão ínfima que foi praticamente invisível. - A Verdade não muda. Ela permanece a mesma. Eterna.

Bem semelhante à nossa discussão, querida esposa - respondeu Jan, sem nenhum afeto na voz. As mãos de Greta estavam tão apertadas uma con­tra a outra que ficaram brancas, e Jan pensou ter visto um tênue vislumbre de aborrecimento nos olhos da esposa. Ele sorriu, mas o sorriso foi para Mara, cujos olhos brilhavam enquanto se divertia em silêncio atrás de Greta.

Olhe, vatarh - interrompeu Allesandra antes que Greta se preparasse para outra réplica. - Veja, eu movi os arqueiros...

Jan olhou para a mesa. Allesandra tinha mudado as fileiras dos soldados, eles agora estavam dispostos como se ele mesmo tivesse feito isso antes de uma batalha. Jan notou especialmente os lanceiros em ambos os flancos, onde poderiam esperar pelo momento certo para entrar na batalha, e uma vanguarda que foi colocada bem à frente do contingente principal para atrair o ataque ao inimigo e forçá-lo a revelar o seu jogo. Ele sorriu e fez um carinho nos macios cachinhos de Allesandra. — Muito bem, minha queridíssima. Perfeito. Cada peça tem seu papel a cumprir no todo. Apenas lembre-se: uma boa hirzgin jamais se movimenta sem saber o que vai enfrentar. Você tem que saber quando se curvar e quando pegar em armas. Saber quais batalhas você pode vencer e quais não é o que separa o grande líder de um medíocre.

Então o senhor deve ser um grande líder, vatarh - respondeu Allesandra. Jan ouviu a risada suave e estimulante de Mara (mas não a de Greta) quando a filha falou, embora ele mantivesse a atenção nos olhos grandes e sinceros de Allesandra.

Eu tento, querida. Mas a história é que dirá, infelizmente. - Ele fez outro carinho na cabeça da filha. - Descobri que estou mais cansado da mi­nha jornada do que esperava — anunciou. — Vou me recolher ao meu quarto e jantar ali daqui a pouco.

Vou com você então - disse Greta, mas Jan já estava balançando a cabeça.

Não, minha querida esposa. Acho que hoje à noite prefiro jantar sozinho. — Atrás e acima de Greta, Mara acenou muito discretamente com a cabeça. - Depois de comer e descansar um pouco, eu volto para ver que di­vertimentos você preparou para a noite. Se me dá licença...

Greta e as damas de companhia levantaram-se mais uma vez, e os criados correram para abrir o painel de lona que servia como porta. Markell es­perava do lado de fora, e Jan passou o braço pelo ombro do homem. Markell era companheiro de Jan desde a infância, foi criado com ele para se tornar seu ajudante de ordens, guarda-costas e fiel confidente. - Uma certa dama irá aos meus aposentos dentro de uma hora - disse Jan baixinho. Se algum dos criados por perto podia ouvir, eles sabiam que era melhor não demons­trar. — Cuide para que ela seja acompanhada discretamente.

Certamente, meu hirzg. - Markell abaixou a cabeça. - Eu cuidarei pessoalmente.

Ótimo. Amanhã eu assistirei às manobras e começarei nossos outros preparativos. Faça com que a hirzgin entenda que Allesandra também deve comparecer, apesar dos protestos que sem dúvida ela fará. - Enquanto Mar­kell concordava novamente, Jan espreguiçou-se. - É bom finalmente fazer alguma coisa. Nossa mensagem foi enviada?

Foi sim, hirzg, e já deve ter sido recebida por agora.

Excelente. - Jan permitiu-se um sorriso. Então o senhor deve ser um grande líder, vatarh. Ele saberia. Muito em breve. - Markell, sinto que este será um bom ano para Firenzcia. Um bom ano realmente.

 

... A FAMÍLIA ESTÁ ENTERRADA em dívidas. O vajiki co'Seranta pediu grandes empréstimos, não apenas da família da esposa, mas também dos próprios parentes co'Barith. Tenho certeza quase absoluta de que a família seria sido nomeada ci' na próxima Listagem se não tivessem sido salvos pela Marca que a filha recebeu. Pelo menos é isso que os meus contatos na Gardes a'Liste me disseram. Agora, porém...

O archigos salvou os co'Seranta. - Orlandi riu com deboche. Aquele anão ridículo... Ele nunca deveria ter sido o archigos... — Cinco mil solas irão mantê-los a salvo como co' e também cobrirão as dívidas da família. E eu tenho certeza de que a nova o'téni tem um salário bastante adequado. Ela até pode conseguir que cheguem a ca' um dia.

As sobrancelhas de Carlo co'Belli subiram para se unir às entradas do cabelo. - É verdade que o archigos deu para eles cinco mil solas pela Marca da nova o'téni?

Sim. - Orlandi, o a'téni da cidade de Brezno, téte dos Guardiões da Fé, e praticamente eleito como archigos durante o acordo que, em vez disso, escolheu Dhosti ca'Millac, deixou as pesadas cortinas caírem e taparem a vista do vilarejo de Ile Verte do outro lado do rio. Ele estava no castelo a'Ile Verte, na ilha localizada na confluência dos rios Clario e A'Sele, a um dia de viagem rio acima de Nessântico. O castelo era propriedade da própria kraljica, mas ela cedeu seu uso para Orlandi enquanto estivesse em Nessântico para as co­memorações do jubileu.

Ele achou essa disposição bem mais satisfatória do que ocupar um aposento dentro do complexo do Velho Templo; Orlandi mantinha olhos e ouvidos dentro da enorme burocracia da Fé na cidade, e o ar era melhor aqui: perto o suficiente para ir a Nessântico se necessário, e distante o bastante a ponto de ele não ser facilmente observado, embora tivesse certeza de que tanto o archigos quanto a kraljica mantinham um espião ou dois na criadagem para informá-los. Na verdade, Orlandi tinha certeza de que foi por isso que a kraljica ofereceu o castelo, apesar de saber que ela estava descontente com seu massacre dos numetodos em Brezno. Talvez, quando se tornasse archigos, ele pegasse o castelo a'Ile Verte como uma pequena parte de seus espólios; seria uma excelente residência de verão para escapar do ar abafado da estação em Nessântico.

Mas, por enquanto, havia apenas co'Belli na sala com ele: Carlo, que há vários anos era os olhos e ouvidos de Orlandi em Nessântico, um importa­dor/exportador com uma rede própria de informantes dentro do mundo dos negócios da cidade. Cario estava sentado à mesa com um prato de cervo com batatas e um garrafão de bom vinho tinto do templo de Brezno; era a terceira vez que o prato e a taça estavam cheios.

Cinco mil solas para a família... - repetiu co'Belli com os olhos erguidos para os afrescos no teto como se estivesse contando cifras invisíveis lá em cima. Ele gesticulou com um garfo com um pedaço de carne que pingava en­fiado nos dentes de prata. Se Orlandi conhecia bem o homem, ele estava ten­tando calcular como poderia adquirir um pouco da riqueza recém-descoberta pela vajiki co'Seranta. - Ela deve ser realmente fora do comum. O que o téni responsável pelos acólitos disse? - Ele enfiou a carne na boca e mastigou alto e com satisfação.

Pouca coisa que servisse — respondeu Orlandi bruscamente. Especialmente porque o u'téni co'Dosteau é amigo do archigos e nem de longe simpatizante de nossa causa. Aquele maldito anão... Orlandi pigarreou. Um dos defeitos de co'Belli era a tendência de fazer perguntas como se ele e Orlandi fossem de alguma forma iguais, o que era impossível. - E não foi para isso que eu trouxe você aqui para discutir, de qualquer forma.

Co'Belli aceitou a bronca com um dar de ombros, engoliu a comida e tomou um gole de vinho. - Minhas desculpas, é claro, a'téni. Só me pergun­tei se talvez o vajiki co'Seranta ficará satisfeito com o pagamento do archigos. As dívidas da família, pelo que eu soube, são substanciais, e sobrará bem menos do que cinco mil solas depois de serem pagas. Juntamente com isso, os criados da família que foram dispensados nos últimos anos me contaram que o vajiki co'Seranta ia para o quarto da filha em... horários estranhos. Nós talvez possamos explorar isso e a sua ganância, e tornar o homem flexível às nossas necessidades.

Os lábios de Orlandi contraríam-se e quase formaram um rosnado diante do uso do pronome possessivo no plural por co'Belli. - Minhas necessidades - disse ele - vão muito além da família co'Seranta. Você é um sujeito tosco, Carlo, e pensa de maneira tosca. Você daria uma martelada quando uma agulh­ada serviria. Pode ser que eu visite o vajiki co'Seranta mais tarde, mas, por enquanto, estou mais interessado no que você tem a me dizer sobre sua via­gem a Firenzcia. Eu esperava um pacote...

- Ah, isso... - co'Belli pousou o garfo no prato com um barulho que fez Orlandi franzir os olhos. O homem vasculhou o interior de uma grande bolsa de couro pendurada na cadeira. - Enquanto estive em Brezno cuidando da remessa de pele de fera-das-neves... e tenho que dizer, a'téni, que são peles lin­das, maravilhosamente macias e grossas. Três peças dariam um lindo sobretudo para o senhor, e eu faria um desconto generoso naturalmente... um mensageiro me deu isto aqui para o senhor. - Ele segurou um pequeno pacote de papel par­do amarrado com barbante. - Não consegui deixar de notar que há um enorme selo no envelope embaixo. — Ele deu um sorriso conspirador para Orlandi. — enquanto estive lá, ouvi dizer que o hirzg ca'Vörl anda fazendo incursões nas províncias dos numetodos, o que vai contra os conselhos da hirzgin. Parece que o hirzg tem maiores ambições do que simplesmente ser um parente da kraljica por casamento. Talvez a Fé tenha algo mais substancial para oferecer a ele do que alguns numetodos expostos publicamente em Brezno?

Orlandi pegou o pacote de co'Belli, que abafou o riso. — Comeu bem, Carlo? Se for assim, então mandarei que meu assistente pague por três peças da remessa de pele de fera-das-neves e cuide para que você seja o intermediá­rio das vendas dos vinhos desta safra do templo de Brezno.

Co'Belli tomou um gole do vinho da mesa. - Se todas as garrafas forem excelentes como essa, eu conseguirei para o senhor os melhores preços nos Domínios. Espera uma boa colheita?

Nós rezamos por isso - respondeu Orlandi. — Como você deve rezar por uma contínua prosperidade, vajiki.

Sempre, a'téni. O senhor sabe que sou um fiel devoto da Concénzia.

Ele levou as mãos entrelaçadas à testa de maneira pomposa antes de afastar a mesa da cadeira. - Foi um prazer fazer negócios com o senhor, aténi, como sempre. Que Cénzi o mantenha bem, meu amigo.

Realmente são apenas negócios. Orlandi sorriu para co'Belli enquanto o homem saía da sala, mas foi apenas um movimento ensaiado e sem sentido dos lábios. E talvez seja hora de eu procurar por um parceiro melhor, mais agradecido e menos falante.

Assim que a porta foi fechada, Orlandi colocou o pacote na mesa. Com a faca que co'Belli usou para cortar a carne, o a'téni rompeu o barbante e abriu o embrulho de papel. Ele não duvidava que co'Belli já fizera o mesmo, mas o selo no grosso envelope branco parecia intacto, com o monograma do hirzg - um "V" composto por duas espadas iguais inclinadas e envoltas em guirlandas de hera - pressionado com força na cera vermelha. Orlandi duvidava que co'Belli teve a coragem ou a habilidade de tirar e recolocar o selo, mas isso pouco importava. A carta dentro do envelope foi escrita em uma bela letra, mas as palavras eram ininteligíveis: codificadas.

Orlandi sentou-se à mesa, afastou o prato e a taça de co'Belli e abriu o pa­pel. Ele tirou um vidrinho de tinta e um estilo de uma gaveta debaixo da mesa; de um bolso nas vestes, retirou um disco composto por dois disquinhos de placas finas, um deles um pouquinho menor do que o outro, ambos com letras do alfabeto gravadas na borda, embora a seqüência do disquinho interior esti­vesse misturada. Ele olhou novamente para a mensagem do hirzg - o número de letras da primeira palavra indicava quantos graus deveria girar o disquinho interior, assim como o número que deveria avançar para cada palavra em su­cessão na mensagem de verdade. O hirzg ca'Vörl possuía um disco idêntico.

Arduamente, Orlandi decodificou a mensagem enquanto virava o disco interno a cada palavra e anotava cada trecho decifrado. Quando terminou, estava sorrindo.

Com a carta na mão, ele levantou-se da mesa e foi para a lareira na parede oposta, onde jogou a mensagem nas chamas, uma folha por vez. Depois que a última folha se contorceu e virou cinzas, Orlandi voltou à janela e olhou atrás dos telhados de Ile Verte, na direção de onde o hirzg reunia seu exército em Firenzcia, a mais de 150 quilômetros dali.

Quando eu for o archigos...

As peças estavam todas no lugar, e Orlandi estava sentado em ambos os lados do tabuleiro movendo as peças. Não importava quem ganhasse o jogo: Justi ca'Mazzak podia se tornar kraljiki (ou talvez ele até seria Justi ca'Cellibrecca àquela altura...) ou talvez o hirzg Jan podia estar sentado no Trono do Sol na Ilha A'Kralji com o Anel de Kralji no dedo. Orlandi não se importava — de : qualquer forma, ele destituiria o anão e seria apontado como archigos pelo Colégio Aténi mesmo que o anão tivesse apontado um sucessor. Orlandi teria o título que deveria ter sido dele o tempo todo. O anão tinha pouca fé e muita simpatia por aqueles cujas crenças eram diferentes da interpretação correta do Toustour e por aqueles que deturpavam as leis da Divolonté. Orlandi estava furioso por conta da tolerância de ca'Millac com um "enviado" dos numeto­dos em sua própria cidade; Orlandi demonstrou em Brezno como deveria ser a resposta de um verdadeiro archigos àqueles que debochavam de Cénzi e da Concénzia. Ele tinha nojo dos numetodos. Eles não acreditavam em nenhum deus. Pior, acreditavam que podiam fazer o que era proibido pela Divolonté e usar o Ilmodo sem Fé, sem o treinamento dado pela Concénzia, sem a bênção do archigos. Eles acreditavam que a fé não era necessária, mas apenas a razão. Os numetodos eram os verdadeiros inimigos. Eles destruiriam a Concénzia e, ao fazer isso, também destruiriam Nessântico e os Domínios. O uso que faziam do poder do Segundo Mundo debochava de Cénzi. Suas almas já estavam condenadas; Orlandi também condenaria seus corpos.

Cénzi estava do lado de Orlandi. Ele podia sentir a força que recebia de Cénzi, a cada dia mais forte.

Ele levou as mãos entrelaçadas à testa. Rezou, pensou e imaginou.

Quando eu for o archigos...

 

É TÃO BOM ver a senhorita, vaji... digo, o'téni Ana. - Sala ficou vermelha, com a cabeça baixa. - Depois que ouvimos o que fez pelo archigos e como foi recompensada... bem, ficamos tão felizes pela senhorita. Está muito bem de verde, tenho que dizer.

Obrigada, Sala - disse Ana. Ela observou a entrada. As paredes da casa foram recém-pintadas; dava para sentir o cheiro das tintas. Um armário de madeira entalhada com vidro azul estava onde antes era um canto vazio, havia dois enormes vasos de cerâmica cheios de plantas e flores de ambos os lados da Dorta, e Ana vislumbrou uma mulher que ela não reconheceu no corredor da cozinha, vestida com a roupa sem graça de uma criada. - Como está a matarh? -Ainda está...?

Ah, ela está quase recuperada, embora ainda esteja um pouquinho fraca. Ela está no quintal. Gostaria que eu corresse para chamá-la?

Não, eu mesma irei lá atrás em um instante. Só quero pegar algumas coisas em meus aposentos. - Ela deu mais alguns passos dentro da casa. As escadas ganharam um tapete que parecia magyariano, com figuras diagonais em laranja e verde. O ar estava aromatizado com um incenso cheiroso.

Vou dizer para sua matarh aguardar a senhorita, então. Espere até ver o jardim. O vajiki co'Seranta trouxe todo tipo de trabalhador nos últimos dias, embora às vezes eles pareçam estar no meio do caminho por todos os lugares... - Sala fez uma mesura e gesticulou para as escadas. - Temos três novas criadas na casa, incluindo uma mulher que assumiu as tarefas da cozinha deTari. Mas seus aposentos estão como eram. Eu não deixei ninguém entrar lá. Disse que não deveriam ser tocados até que a senhorita estivesse aqui.

Obrigada, Sala. Agradeço muito.

Novamente, Sala ficou ruborizada e abaixou a cabeça. - Vou contar para sua matarh agora. — Ela saiu correndo. Ana subiu as escadas, maravilhada com o toque dos corrimões, que pareciam recentemente envernizados e lustrados. A casa tinha estado tão sem graça e deteriorada nos últimos anos, e agora...

Eu pensei ter ouvido a sua voz.

A mão de Ana apertou o corrimão no topo da escada. — Vatarh. Eu pen­sei que o senhor estivesse... na rua a esta hora do dia. — Ela virou-se. Tomas co'Seranta estava parado ao pé da escada, sorrindo: era o mesmo sorriso força­do que sempre mantinha perto da filha. Ele subiu correndo os degraus com o sorriso grudado no rosto e uma bela bashta esvoaçante. Ana viu-se recuando e olhando de um lado para o outro. Tudo estava diferente — o corredor antiga­mente vazio estava entulhado de mobília. Ela deu uma canelada na lateral de uma cadeira estofada. "Todos nós temos que enfrentar demônios à noite..." Ela ouviu a voz do archigos, prendeu o fôlego e empertigou-se quando o vatarh chegou ao topo da escada com as mãos estendidas como se esperasse que Ana fosse até ele.

Eu larguei meu emprego, pois espero uma oferta melhor da kraljica em breve - disse Tomas para ela. - Viu tudo o que eu já fiz aqui? Para você, Ana. Para que pudesse se orgulhar de sua família novamente. Para que eu e você...

Pagaram por mim, vatarh - interrompeu Ana. - Não sou mais sua propriedade. Não lhe devo nada.

Ana! — Ele recuou como se estivesse horrorizado. — Você faz com que eu pareça um monstro. Você sabe o quanto significa para mim. Eu... eu amo você, meu passarinho. Você sabe disso. Tudo isto... - Ele andou na direção de Ana, o sorriso retornou hesitantemente. - São apenas coisas. Eu preferia ter você aqui ainda conosco, Ana. Comigo.

Eu vim pegar meus pertences nos meus aposentos, vatarh. Apenas isso.

Então me deixe ajudar.

Eu não preciso da sua ajuda. - Ela virou-se, correu para o quarto e fechou a porta ao entrar. Ficou parada ali enquanto o coração desacelerava e o fôlego retornava aos pulmões. Finalmente Ana afastou-se da porta e saiu da antecâmara para o antigo quarto de dormir. Ela foi até um baú ao pé da cama, tirou algumas roupas e uma caixinha de madeira que guardava algumas lembranças.

Ela ouviu o clique na porta. - Sala? - chamou, mas Ana sabia quem era, sabia pelo som da respiração e pelo peso dos passos no carpete. - Saia daqui, vatarh - disse ao se levantar. Ele estava parado na porta do quarto e ocupava todo o vão. A expressão era ao mesmo tempo triste e ávida.

Ana notou que deixou as roupas e a caixa caírem e entrelaçou as mãos diante de si. Ela tinha rezado nesse quarto antes, depois das outras vezes em que foi visitada por ele, oculto pela noite e protegido pelo respeito de uma filha por seu vatarh, quando ele abraçou Ana e disse como sentia medo pela matarh, como sentia falta dela e como a situação estava difícil para a família, que eles só tinham um ao outro, que deviam se ajudar e como ela poderia ajudá-lo naquele momento. E os abraços mudaram juntamente com a respira­ção do vatarh, e aí, finalmente, em uma noite em que nem mesmo as lágrimas de Ana detiveram Tomas, as mãos dele entraram por baixo da camisola...

E mais tarde, após as lágrimas, desculpas e explicações do vatarh, depois de ter sido deixada por ele no escuro, Ana permitiu-se chorar enquanto reza­va. Ela rezou enquanto moldou o Dom de Cénzi e usou dentro de si mesma, embora soubesse que era errado - se Cénzi desejasse mais castigo para ela, então Ana teria deixado as possíveis conseqüências acontecer.

Mas ela não conseguiu, não quando tinha o poder para impedi-las.

Assim como tinha o poder agora...

Ela rezou neste momento, entoou as palavras na língua do Ilmodo e, ao dizê-las, sentiu o Segundo Mundo se abrir com sua súplica a Cénzi. Ana pa­rou o cântico por tempo suficiente para dar uma resposta. - Eu lhe devolvi a matarh, vatarh, e o archigos lhe pagou regiamente, bem mais do que qualquer dote que o senhor receberia por mim. Fique longe de mim.

- Ana... - Ele deu um passo na direção da filha, os lábios contorceram-se em um pequeno sorriso debaixo do bigode. - Você não entende. O que nós fizemos, você e eu... Foi tanto sua culpa quanto minha.

As palavras provocaram uma onda de fúria incandescente dentro dela. - Minha culpa? — gritou Ana. - Não fui eu que vim ao meu quarto à noite. Não fui eu que toquei...

O vatarh arregalou os olhos diante da veemência dela. - Ana, escute. Sinto muito. Você tem que entender...

Ana estava entoando e não escutou o vatarh de maneira alguma. O Ilmodo abriu-se para ela e Ana pegou a energia. A luz brilhou entre as mãos entrelaçadas, tão intensa que atravessou e iluminou a pele, as sombras dos os­sos fizeram um contraste escuro contra a carne em tom vermelho-alaranjado. Sombras afiadas surgiram e fluíram pelo quarto. Ana notou que o vatarh olha­va para suas mãos e viu a garganta dele pulsar enquanto isso. Ela segurou o Ilmodo completamente formado e conseguiu falar novamente. - Eu entendo, vatarh. Sou a única que consegue. E estou mandando se afastar. Pelo seu pró­prio bem, fique longe de mim.

Você é minha filha. Sempre será minha filha. O que nós fizemos... o que eu fiz... bem, não deveríamos ter feito. Eu estava errado, terrivelmente errado, e já pedi para que me perdoe. Para que esqueça. - Cada sentença foi outro passo. Tomas estava tão próximo que poderia tocá-la. Ele observava o rosto de Ana, apenas o rosto. As preces da filha já tinham sido respondidas; ela mantinha o poder de Cénzi nas mãos, que queria ser solto, que gritava tão alto em seu sangue que o ritmo pulsante quase abafou as palavras do vatarh. Se fosse tocada por ele, se as mãos do vatarh se movessem em sua direção...

Elas vieram. Os dedos do vatarh tocaram o rosto de Ana, tocaram as lágrimas que ela não percebeu que estavam ali.

Não - falou Ana bem baixinho. - O senhor não me toca. O senhor não me toca nunca mais. - Ela abriu as mãos. A pancada bateu forte em seu peito, o rugido deixou Ana surda, a rajada de luz apagou a visão. Ela achou ter ouvido o grito de seu vatarh, bem fraquinho.

A cabeça girou, e ela pensou que perderia a consciência. Lutou para ficar de pé, pestanejou para afastar os borróes roxos de imagem persistente. O va­tarh estava caído contra a parede ao lado da porta com o reboco rachado em volta. Ana perguntou-se se o matou, mas o peito dele ficou estufado e os olhos abriram enquanto a filha encarava Tomas: ela tinha lançado o feitiço para o lado no último momento.

Foi a cama, a cama em que Ana aguentou o peso sufocante do vatarh sobre si, que levou o impacto direto do feitiço; estava quebrada, enegrecida e praticamente irreconhecível com as pernas estilhaçadas. Toda a mobília do quarto estava virada e danificada, a parede onde ficava a cabeceira tinha um rombo através das pedras cimentadas que revelava a luz do sol lá fora. Cacos espelhados reluziam nos escombros no lugar da cômoda; a bochecha do vatarh tinha um filete de sangue onde foi cortada por uma lasca que saiu voando.

Sala veio correndo e parou na porta para olhar, horrorizada, a destruição do quarto e o vatarh de Ana caído tonto no chão. - O'téni Ana... o que...? — Ana fez um esforço para ficar de pé, embora a visão estivesse fican­do turva. Vá apenas para a carruagem. É tudo o que você tem a fazer, depois pode sucumbir.

- Diga para matarh que não posso ficar, Sala - disse Ana. - Avise que mandarei uma carruagem pegá-la amanhã depois da Segunda Chamada para conversarmos. Para que eu possa explicar. — Ela olhou para o vatarh, as pálpebras dele estavam agitadas enquanto ele gemia e se remexia. - Eu não voltarei enquanto o senhor estiver aqui, vatarh. Jamais lhe verei novamente por von­tade própria. Se um dia o senhor tentar, não sobreviverá.

Ana pegou as roupas e a caixa de lembranças no chão e segurou contra o corpo. Depois passou por Sala, emudecida pelo choque, e saiu da casa. Ela conseguiu chegar à carruagem que esperava lá fora antes de ser consumida pela escuridão.

 

O FEDOR REVIROU tanto o estômago de Karl que ele sentiu o gosto do alho da massa que comeu há algumas viradas da ampulheta. Aqui nas mar­gens do A'Sele, perto da Pontica Kralji, era despejado na água o esgoto a céu aberto do Velho Distrito e da Ilha A'Kralji, que ficava do outro lado do rio. Junto ao cheiro insalubre estavam os matadouros, curtumes e tintureiros que entupiam a margem até o Mercado do Rio, cada um despejando os próprios resíduos na água.

O ar era podre, e filetes de limo e imundície serpenteavam pelas rochas ao longo da margem e pelos píeres da Pontica Kralji. Karl notou a carcaça podre e esquelética de um porco na água a poucas braçadas dele e de Mika. O crânio sem olhos e lábios encarou Karl de soslaio.

Ninguém mais bebe do A'Sele, pelo menos não aqui na cidade, e em nenhum lugar próximo a Nessântico rio abaixo - disse Mika, como se tivesse lido os pensamentos de Karl. - Os antigos falam que, na época de seus vavatarh, o A'Sele era limpo e doce, e a pessoa podia meter a mão e matar a sede, porém não dá mais. É por isso que todo mundo vai aos bebedouros atrás de água ou bebe apenas vinho e cerveja, e não come peixe a não ser que seja pes­cado a leste dos Brejos.

O olhar de Karl subiu para os alicerces da Pontica Kralji, a mais comprida das pontes sobre o ASele. Os dois viram a pequena jaula de ferro escuro que fora suspensa ali por um poste e o cadáver enfiado no interior: o corpo de Dhaspi ce'Coeni. A corrente rangia e reclamava ao balançar na brisa. Os cor­vos acharam o cadáver em exibição rapidamente: havia um monte bicando os restos de Dhaspi através das barras. Eles notaram que as pessoas que pas­savam pela ponte paravam para ver o corpo pendurado. Duas placas pintadas foram presas à jaula. Assassino, dizia uma. Numetodo estava escrito na outra. As mãos de ce'Coeni foram pregadas àquela placa, e havia um prego sem nada acima das mãos onde esteve a língua, que os corvos levaram.

Pobre imbecil desgraçado - murmurou Karl.

Ambos desviaram o olhar de propósito. Mika pegou uma pedra e atirou no rio, onde provocou um espirro marrom e sumiu, depois ele olhou para mão, fez uma careta e limpou no manto. Mika estava com um lenço perfu­mado sobre o nariz e a boca; Karl desejou ter tomado a mesma precaução. — Duvido que o rio realmente estivesse limpo há séculos, não com Nessântico eternamente sentada em cima dele - disse Mika. - Ouvi dizer que a kraljica mandou trazer cisnes para o jubileu lá de Sforzia. Ela achou que ficariam bonitos nadando pela Ilha A'Kralji. Os cisnes deram uma olhada para o A'Sele, torceram o bico enojados e voltaram voando para casa.

Karl resmungou ao pensar na imagem. — Acredito. Neste exato momen­to, estou tentado a fazer o mesmo.

Eu estou aqui, ah, há quase sete anos agora, Karl. Eles conseguem fazer a cidade parecer brilhante e maravilhosa com as luzes mágicas, com as dan­ças, as roupas e os grandes prédios. Conseguem deixar a Avi a Parete limpa e varrida para que os ca' e co' possam passear e ser vistos; conseguem construir templos e palácios que furam as próprias nuvens com suas torres, mas não são capazes de esconder isso. Olhe lá... - Mika apontou para o matadouro mais próximo onde Karl viu um pano da cor da grama na primavera através da luz fraca de uma porta aberta. - Você viu o'téni? Existem dezenas e dezenas de e'téni destacados, provavelmente como castigo, creio eu, para limpar a sujeira dos esgotos e matadouros com sua habilidade com o Ilmodo, mas não são nem de longe em número suficiente. Seria preciso um exército deles trabalhando o dia inteiro, todos os dias, para acompanhar o ritmo com que essa cidade produz lixo, e o lugar cresce a cada ano. Só Cénzi sabe como seria Nes­sântico sem os tênis, e a cada ano existem mais pessoas para os ténis limparem a sujeira. Eu nem quero imaginar Nessântico daqui a uma geração. - Mika levantou o lenço e cuspiu no chão. - Até mesmo a kraljica tem que cagar e mijar, e o cheiro não é melhor do que o seu ou meu.

Karl riu apesar da imundície, apesar do lembrete cruel na Pontica acima deles. - Aí está uma imagem que quero esquecer.

Mika fungou e apertou o lenço contra o nariz. - É verdade, ainda assim. Todos aqueles grandiosos ca' e co' sentam-se e contemplam o Velho Distri­to de suas adoráveis casas na Ilha ou na margem sul e reclamam como ele é revoltante e imundo, mas eles não são diferentes. Até mesmo o castelo mais grandioso tem seus banheiros.

Se você vai começar a declamar clichês, então vamos fazer isso onde possamos beber e comer também. Onde está este tal Mahri? Achei que ele pediu para nos encontrar?

Eu estou aqui. — Ao dizer isso, um pedaço sujo da Pontica pareceu se destacar do suporte arqueado, e Mahri saiu das sombras debaixo da ponte, di­retamente embaixo da jaula de Dhaspi. Karl sentiu um arrepio ao ver o rosto destruído do homem debaixo do capuz negro e torceu que Mahri não tivesse visto a rápida repulsa.

Você honra a sua reputação - disse Karl.

E qual é minha reputação? - A voz do homem era tão arruinada quanto o rosto, um resmungo sibilante que saía de uma mandíbula desfigurada. Não dava para perceber se a expressão nos lábios contorcidos era um sorriso; a órbita exposta sem o olho esquerdo dava a impressão de encará-los. O bafo parecia tão ruim quanto a própria margem do rio.

De que você é um fantasma que aparece em qualquer lugar onde há confusão.

Mahri pareceu achar graça nisso. Ele virou a cabeça e olhou para o corpo enjaulado, cercado por corvos. Algo parecido com um cacarejo saiu da boca, e uma língua grossa passou pela borda dos poucos dentes ao voltar a olhar para frente. — Ah, os numetodos realmente estão metidos em uma confusão, não é, enviado?

- Não é a nossa intenção — disse Karl. — Por que quis me encontrar aqui, Mahri? Você disse para Mika que era importante. - Karl tinha ficado relutante em concordar com o encontro, mas Mika havia insistido. "Eles podem chamá-lo de Mahri Maluco, mas também ouvi dizer que Mahri sabe de coisas que nin­guém mais sabe, que nada acontece aqui sem que ele saiba primeiro, de alguma forma. Pode ser urna perda de tempo, mas... "

Outra vez o cacarejo. - Ah, tão impaciente. Essa não é uma boa qualidade para alguém que tenta ganhar a simpatia da kraljica. Paciência é uma virtude que ela possui em abundância e que espera dos suplicantes. Imagino que alguém que tente negociar com ela deva saber disso.

Karl conteve a irritação crescente. Mika olhou o enviado de relance e deu ombros. - Vou lembrar do conselho - disse Karl. - É bem verdade, conside­rando o longo tempo que estou aqui. - Ele esperou e trocou de pés, as botas chapinharam na lama. Mahri também esperou, até que a frustração por causa do silêncio do mendigo quase fez com que Karl desse um muxoxo de desdém e fosse embora. Antes que isso acontecesse, Mahri falou novamente.

Eu vim oferecer uma aliança.

Uma aliança? - Karl não conseguiu evitar o tom de deboche na voz. - Infelizmente eu não estava ciente de que você representava alguém.

Mahri ergueu um ombro só. — Você quer dizer que não imagina uma diança com um simples mendigo? Vejo que os numetodos não são muito diferentes dos ca' e co', enviado. Ouço o mesmo desdém e escárnio na sua voz que ouço daqueles que cultuam Cénzi.

Karl olhou de relance para Mika, que rolou os olhos. Novamente o enviado respirou fundo e conteve a irritação. - Desculpe por isso, Mahri. Você está certo e peço que não julgue todos os numetodos pelo meu péssimo exem­plo. - Ele ouviu Mika abafar o riso baixinho.

Ah, agora isso foi dito como um diplomata, mesmo que não tenha a mínima intenção. Ótimo. - O mendigo encolheu-se na roupa esfarrapada como se estivesse com frio; em uma mão, Karl vislumbrou um anel de sinete, grosso e feito de prata. A insígnia entalhada era desconhecida, e certamente não era um anel que um mendigo usaria. Ele roubou ou encontrou o anel. Vai vendê-lo por uma bebida até o cair da noite. — Aqueles que represento têm os mesmos interesses que os numetodos, vajiki. Nós também vemos o mundo mudando e queremos garantir um lugar para nós nele.

E quem são esses que você... representa? - Karl não conseguiu evitar a hesitação, nem o sorrisinho que veio junto.

Não posso revelar ainda.

Isso torna difícil avaliar se essa proposta de aliança entre nós seria vantajosa.

Estou disposto a fazer valer a pena para você. O que posso oferecer agora é informação. Além da linhagem ca'Ludovici, quais das famílias ca' são mais perigosas para você?

Karl contraiu os músculos do rosto ao fazer uma cara feia. — Não preciso nem pensar para isso. É a família ca'Cellibrecca, com o a'téni Orlandi ca Cellibrecca como o pior entre eles. Nenhum numetodo consegue esquecer o que ele fez em Brezno; os esqueletos ainda estão expostos nas muralhas da cidade.

Aqui em Nessântico, a filha do aténi Orlandi, Francesca, tem as mesmas convicções intensas de seu vatarh — falou Mahri.

Se essa é a informação que você tem a oferecer, então infelizmente tenho que lhe dizer que estamos bem cientes disso. Já encontrei a mulher na corte. Ela deixou bem clara a sua posição, assim como o marido u'téni Estraven em suas admoestações no Alto Púlpito. Estraven vem da família ca'Seurfoi, afinal de contas, e seu vatarh é o comandante da Garde Brezno. O sangue dos numetodos mortos lá está nas mãos do comandante, assim como nas mãos do aténi ca'Cellibrecca e do hirzg Jan.

Mahri concordou com a cabeça. — E isso aqui você sabe, enviado? Pelo que eu ouvi, Estraven e Francesca não se amam. O relacionamento é sim­plesmente o que era para ser: um casamento político, a recompensa do a'téni ca'Cellibrecca para a família de seu comandante por anos de serviço leal. Ape­nas isso. Mas Francesca está apaixonada, enviado. Ela é a amante do a'kralj.

A declaração provocou um choque como um raio em Karl. Se o a'kralj realmente estivesse metendo um chifre em Estraven ca'Cellibrecca, e se o a'kralj dividisse as mesmas convicções com Francesca assim como a cama dela...

Karl sentiu um arrepio. Ele era capaz de imaginar uma dezena de situações que poderiam ocorrer, e nenhuma delas era agradável. Para os numeto­dos, o casal poderia fazer Brezno parecer um baile de verão assim que Justi tomasse o Trono do Sol como kraljiki.

Pelos colhões de Cénzi - praguejou Mika baixinho, e Karl soube que o pensamento do amigo seguiu a mesma linha de raciocínio que a sua.

Você pode provar isso? — perguntou Karl, embora o coração soubesse que Mahri falou a verdade. Tinha certeza pelo nervosismo que ardia no estô­mago. Ele ouviu a verdade no rangido das correntes da jaula.

Se eu provar, você vai querer me escutar, enviado ci'Vliomani? Vai que­rer conversar mais comigo?

Uma olhadela para Mika. Um ligeiro aceno de cabeça. - Sim.

Ótimo - respondeu Mahri. A mão saiu debaixo da roupa novamente, dessa vez com um pedaço de papel sujo onde Karl conseguiu enxergar um endereço rabiscado. - Esteja aqui hoje à noite, uma virada da ampulheta após a Terceira Chamada. Vou lhe encontrar lá. Apenas você. Sozinho.

Dito isso, Mahri virou-se e começou a voltar para a Pontica. Ele parou no meio do caminho e olhou para os dois. — O cheiro que vocês sentem aqui é o verdadeiro odor da cidade. Sem os perfumes e as casas grandiosas, sem as jóias e as roupas. Isso é a cidade despida de suas pretensões. E todos nós, com o tempo, terminaremos como nosso amigo aí em cima. - Mahri apontou, e Karl e Mika acompanharam o gesto até a jaula com o corpo de Dhaspi.

Quando eles abaixaram o olhar, Mahri tinha sumido.

 

DEDOS COM GARRAS ESTALARAM no piso de ladrilhos; um bafo cruel e sibilante empesteou o ar com fedor de carniça, e o calor do corpo da criatura provocou suor. Dhosti abriu os olhos na escuridão. Ele sentiu o demônio se apro­ximando enquanto estava deitado ali, mas não conseguiu se mexer. Os músculos do corpo estavam travados. A testa porejou quando ele sentiu as mãos compridas e com garras da criatura pegarem as cobertas. Então a cama se mexeu quando a coisa começou a subir lentamente em seu corpo pequeno. Ela sibilou, balbuciou e riu. Dhosti ouviu e sentiu mais do que viu, mas havia dois pontos reluzentes de luz vermelha no quarto: os olhos da criatura. Ela subiu em cima dele até se empoleirar no peito, tão pesada quanto um baú de lingotes de chumbo. Cada vez mais pesada, a criatura fez pressão sobre Dhosti até ele não conseguir respirar, até que as costelas ameaçaram estourar e a cama perigou entrar em colapso debaixo do enorme peso do demônio. — Cénzi me enviou — disparou a criatura quando Dhosti fez um esforço para levar ar aos pulmões. — Ele me enviou para punir você...

Archigos, o a'téni ca'Cellibrecca está na ante-câmara. Archigos?

Dhosti assustou-se e pestanejou. A pressão no peito diminuiu conforme

a memória do pesadelo foi passando. As mãos pequenas e grossas estavam crispadas em cima dos papéis em sua mesa. As cores brilhantes do convite para o Gschnas reluziam entre os punhos. Ele respirou e abriu as mãos; as juntas doeram e reclamaram. — Obrigado, Kenne. Dê-me alguns minutos e depois mande o a'téni entrar. Ah, sim, Kenne... espere o bastante para irritar o sujeito, está bem?

Kenne sorriu ao ouvir isso. - Com muito prazer, archigos.

Assim que Kenne fechou a porta, Dhosti gemeu ao se espreguiçar e ficou de pé no banquinho em frente à cadeira. O corpo inteiro estava dolorido, e chamas pareciam disparar do alto da espinha curvada assim que tentou en­direitar as costas. O esforço mal levantou o queixo acima do peito. - Antiga­mente, você poderia dar um duplo salto mortal da mesa e cair de pé. - Ele balançou a cabeça por causa do pensamento que agitou as memórias de época como artista de circo: a platéia, o aplauso, o puro vigor alegre daqueles mo­mentos de vôo aparente. - E você não falava sozinho também... - Dhosti desceu do banquinho com cuidado, com uma mão apoiada na mesa, e pegou a bengala com a outra. Ele foi mancando dolorosamente até o trono enfeitado sobre um tablado na outra ponta do longo aposento. Lá embaixo no chão, ha­via algumas cadeiras duras voltadas para o trono. Dhosti ergueu os olhos para o globo partido de Cénzi entalhado no espaldar do trono de madeira, para os corpos envernizados e contorcidos dos moitidis reunidos em volta do globo. "Cénzi me enviou. Ele me enviou para punir você..."

Não precisava se incomodar - disse Dhosti para a lembrança. - Este corpo velho já é castigo suficiente. Você podia pelo menos ter me deixado dormir.

Ele subiu gemendo no tablado e depois no assento acolchoado. Como a cadeira da mesa, o espaldar do trono foi modificado por um carpinteiro iocal para acomodar a espinha curvada; Dhosti suspirou ao se recostar no abraço confortável. O trono em si servia como trono para todos os archigos dos últimos trezentos anos, desde a época do archigos Kalima III. Embora houvesse pouco do trono de Kalima sobrando, pedaços da madeira original eram sempre incorporados ao trono conforme era restaurado ou alterado para cada novo archigos. Ele sentou-se em uma longa história. Dhosti viu-se quase cochilando novamente quando Kenne finalmente bateu na porta e o a'téni ca'Cellibrecca entrou com um robe verde esvoaçante, enfeitado com comple­xos arabescos de fios dourados.

Orlandi, por favor entre e sente-se - disse Dhosti ao gesticular com o braço atrofiado para as cadeiras diante do trono. - Espero que Kenne tenha oferecido algo para comer e beber enquanto esperava? Kenne, cuide para que não sejamos perturbados...

Ca'Cellibrecca resmungou uma resposta monossilábica enquanto Kenne fez que sim com a cabeça e fechou a porta. Ele entrelaçou as mãos no cajado e levou-o à testa, mas a reverência não era dirigida a Dhosti, e sim ao globo de Cénzi acima do archigos. - Eu soube o que a sua nova oténi favorita fez hoje de manhã - disse o homem sem preâmbulos ao abaixar as mãos enquanto as portas eram fechadas. Ele sentou-se e as juntas da cadeira gemeram sob o peso. Seu queixo duplo sacudiu conforme falava. Enquanto Dhosti parecia estar encolhendo ao envelhecer, ca'Cellibrecca estava crescendo. Tudo nele parecia chamar a atenção, tanto o jeito retumbante de falar quanto a cintu­ra. - Parece que ela usou o Ilmodo para abrir um buraco um tanto grande na parede da casa de seu vatarh. Dado alguns rumores que ouvi, imagino se você não escolheu dar sua Marca para alguém que seria mais apropriada como uma téni-guerreira. Aqui em Nessântico, ela parece ser uma arma descontrolada.

Ninguém se feriu gravemente, Orlandi.

Não desta vez. Mas eu soube que o vatarh dela foi ferido e os vizinhos estão aterrorizados, o que é compreensível. E da próxima vez?

Não haverá próxima vez. Acabou.

Você pode garantir isso, Dhosti? Falemos francamente aqui, pelo menos. Quando a matarh da o'téni co'Seranta se recuperou de maneira repentina da febre do sul e ficou plenamente curada, eu sou levado a me perguntar se foi a vontade de Cénzi ou de alguém que ignorou a Divolonté.

Você está fazendo uma acusação, Orlandi? Eu estava lá, afinal de contas. Devo convocar um Conselho de Investigação para que eu possa dar meu testemunho?

Ca'Cellibrecca balançou minimamente a cabeça e franziu os olhos, já encobertos pelo peso das pálpebras. — Não por enquanto.

Então por que está me dizendo isso?

Dhosti pensou ter visto um sorrisinho nos lábios de ca'Cellibrecca. Ele abriu bem as mãos antes de voltar a apoiá-las sobre o colo vestido de verde. - Você me conhece, Dhosti. Eu sigo a Divolonté. Sempre. Rigidamente. Espero que aqueles que eu cuido façam o mesmo.

Eu sei - respondeu Dhosti baixinho. - Sua devoção sempre foi bastante... visível.

Novamente, o sorriso surgiu, e ele abriu um pouco os olhos. - Eu faço o que é necessário. O archigos deveria fazer o mesmo.

Então talvez seja uma sorte que o Colégio A'téni tenha me apontado como archigos, e não você.

O sorriso desapareceu. Ele franziu os olhos novamente. No colo, os dedos do a'téni contraíram-se na palma das mãos. - "Diga ao seu inimigo que ele lhe ofende antes de atacá-lo, pois ele pode não entender aquilo que faz" - citou ele.

Eu conheço a citação - falou Dhosti enquanto acenava com a cabeça. Ele fingiu indiferença, mas o chá que tomou de manhã queimou novamente na garganta. A coluna doía mesmo contra o espaldar acolchoado do trono, mas o archigos sabia que, caso se movesse, iria gemer de dor e não queria que ca'Cellibrecca ouvisse isso. Ele fez um esforço para se manter imóvel. Dhosti sabia que não podia cometer o erro de subestimar a influência de ca'Cellibrecca entre os outros a'ténis. Se o sujeito iria citar aquele versículo da Divolonté para ele, então Dhosti tinha que garantir que ainda tinha o apoio que acreditava ter. - Deixe-me terminá-la para você. "... mas se seu inimigo não mudar depois, então dê um golpe rápido e forte e não contenha sua riria." A situação chegou a esse ponto? Eu lhe ofendo tanto assim, Orlandi?

Não é a mim que você ofende, mas a Fé inteira, Dhosti. Não escondo de ninguém o que acho sobre isso e digo na sua cara agora. Cénzi lhe aben­çoou e levou você ao seu posto. Já vi como você costumava moldar bem o Ilmodo e sei que, pelo menos uma vez, Cénzi lhe sorriu. Até mesmo já admi­ti como admiro seu intelecto e habilidade. Mas, neste momento específico, quando a Concénzia precisa persistir com o Toustour e a Divolonté, eu vejo você se afastando ou ignorando esses princípios. Você ficou frouxo, Dhosti.

Nós acreditamos nas mesmas coisas. Simplesmente interpretamos a Divolonté de maneira diferente, Orlandi. Apenas isso. O Toustour é a palavra de Cénzi, e nós concordamos com isso; a Divolonté, no entanto, é apenas um conjunto de leis falíveis que as pessoas criaram para interpretar o caminho que o Toustor nos mostra.

A cabeça de ca'Cellibrecca estava balançando antes que Dhosti terminas­se. - Não - respondeu ele antes que a voz de Dhosti sequer sumisse. - Não há interpretações da Divolonté, da mesma forma que não há do Toustour. Só exis­te a verdade, bem ali nas palavras que Cénzi nos deu. Você convenceu a kraljica que ela deveria passar a mão na cabeça dos numetodos e até mesmo escutar as suas súplicas quando eles, na verdade, ameaçam tudo que acreditamos, o que foi bem ruim. E agora você permite que essa sua protegida também ig­nore a Divolonté. Tenho que lhe dizer, archigos, que sua arrogância é visível e que não sou o único que a vê. Enquanto você fica sentado aqui fazendo nada, existem aqueles dentro da Concénzia que são menos pacientes e mais fiéis, e nós temos mais poder do que você pensa.

Dhosti novamente fingiu indiferença. Ele suspeitava que essa atitude não enganava nenhum dos dois. - O que você quer que eu faça?

O que deveria ter feito desde o começo. A kraljica ouve você. Aconselhe que esta tolerância aos numetodos tem que parar. Diga para usar as leis que já existem e que ela ignora. Diga que pare de conceder audiências e privilégios diplomáticos aos delegados que os numetodos enviam de Paeti ou Graubundi para Nessântico. Diga para mandar esse grotesco "enviado" ci'Vliomani em­bora ou, melhor ainda, para jogá-lo na Bastida. Os numetodos ameaçam a nossa sociedade e tudo aquilo em que acreditamos, e sua presença vai destruir os Domínios e a fé concénziana. Os numetodos são uma praga. Ninguém se livra de uma infestação de ratos ao convidá-los para dentro de casa. A pessoa tem que capturá-los e eliminá-los.

As palavras do homem fizeram o corpo contorcido de Dhosti tremer. - Você parece estar tão seguro de si, Orlandi.

Eu estou. Assim como você deveria estar. Eu rezo todo dia para Cénzi por Sua orientação. E não estou sozinho, archigos. Fale com o aténi ca'Xana de Malacki, o a'téni ca'Miccord de Kishkoros, o a'téni ca'Seiffel de Karnmor. Quer que eu continue, Dhosti? Eu sei que consigo.

Isso é culpa minha. Dhosti suspirou. Eu fiquei dormindo aqui por muito tem­po e deixei este veneno infeccionar até ser talvez tarde demais para detê-lo. Cénzi, perdoe-me. Eu fui um servo medíocre para o Senhor. - Então você deve fazer o que deve fazer, Orlandi. Convoque um Conselho de Investigação contra mim se conseguir votos suficientes dos a'ténis. Isso também está na Divolonté.

Orlandi levantou-se da cadeira. Novamente entrelaçou as mãos no cajado e o ergueu em direção ao trono. - Eu fiz o que precisava, archigos. Dei meu aviso para você e espero que possa refletir sobre ele, que reze pedindo orientação a Cénzi, e mude. Eu vejo você conduzindo a Fé para o precipício, e não é apenas minha vocação, mas meu dever solene fazer tudo que for possível para mudar esse rumo.

Eu me considero devidamente avisado, a'téni.

Ótimo. - Ca'Cellibrecca começou a se virar para ir embora, então hesi­tou. - Nós nunca fomos amigos, archigos. Nenhum de nós finge isso. Mas eu quero que entenda que só quero o melhor para a Concénzia. Essa é a minha única preocupação.

Assim como é a minha - respondeu Dhosti.

Um aceno de cabeça. Com passos pesados, ca'Cellibrecca foi até a porta e bateu nela com a cabeça do cajado. Kenne abriu as portas e deu um olhar compreensivo para Dhosti enquanto o a'téni passou por ele. - Quer alguma coisa, archigos?

Dhosti fez que não, e Kenne fechou as portas novamente.

"Cénzi me enviou. Ele me enviou para punir você... "Ele sentiu o peso es­magador do demônio no peito e não conseguiu respirar. — Não me importo. Leve-me - falou em voz alta para Cénzi, para o demônio, mas o peso já estava se levantando, e ele foi capaz de respirar novamente.

Diga-me que estou certo - falou Dhosti para o vento. — Isso é pedir muito?

Mas não houve resposta.

 

MATARH! Eu estou tão contente que a senhora veio.

Com os olhos arregalados ao contemplar tudo à sua volta, Albini entrou na recepção dos aposentos da filha atrás de Watha, que acenou com a cabeça para Ana e fechou a porta novamente. Ana pegou a matarh pela mão para conduzi-la ao brocado macio do sofá e sentou-se ao lado dela. - A senhora está parecendo tão bem, do jeito que lembro. Senti tanto a sua falta, matarh. A senhora se lembra? Quando esteve doente, eu lhe visitava todas as manhãs antes de ir para as aulas no Velho Templo. Nós rezávamos juntas e eu falava com a senhora. Lembra-se de alguma coisa?

Albini estava balançando a cabeça, ou em resposta para Ana ou por causa do que via em volta. - Ana, isto tudo é seu...?

Sim. O archigos deu esses aposentos para mim. E são seus também, matarh, se um dia quiser ficar aqui comigo.

Isso fez o olhar de Albini retornar para Ana com um movimento brusco de sua cabeça. - Por quê? Por que eu iria querer ficar aqui, Ana? É por isso... - Ela fechou a boca abruptamente.

Ana suspirou e pegou a mão da matarh novamente. — O que aconteceu ontem com o vatarh foi um erro, matarh. Eu me deixei ficar com muita raiva e não deveria ter feito aquilo.

Como você pôde ficar com tanta raiva de seu vatarh a ponto de usar o Ilmodo contra ele?

Ana balançou a cabeça. Ela passou a noite inquieta, sem conseguir dormir, imaginando o que deveria dizer para a matarh. No fim, após muita re­flexão e prece, ela decidiu não dizer nada. Talvez o vatarh mude agora que a matarh está bem. Talvez ele volte a ser a pessoa que eu costumava amar. Talvez ele esteja certo e nós dois devêssemos esquecer o que aconteceu. A decisão ainda não parecia acertada; ela deixou uma ardência no estômago, mas confessar...

Ana respirou fundo. - Nós discutimos, matarh. O motivo não importa. Vamos deixar isso de lado. Vamos aproveitar nosso tempo juntas, agora que podemos novamente. - Ana levantou-se rapidamente do sofá, pois não queria que a matarh visse o que havia em seu rosto. - Vou pedir para Sunna preparar um chá, e ela faz biscoitos doces maravilhosos.

Deixar de lado? Você quase destruiu a nossa, a minha casa, Ana, e a fofocada dos vizinhos... - Ela parou novamente, colocou a mão nos lábios, e Ana sentou-se ao lado dela novamente.

Matarh, a senhora ficou doente por muito tempo. Eu fiquei com mui­to medo de lhe perder. — Tanto que fiz tudo para não perder, mesmo indo contra as regras da Fé. Mas isso era algo que ela também não podia contar. - Por fa­vor, a senhora está melhor agora, e é isso que importa. Temos tanta coisa para conversar. Já começou a sair? Tenho certeza que consigo um convite para a senhora ir ao Gschnas: no Grande Palácio, matarh. Gostaria de ir? O Gschnas no próprio palácio, em vez de um salão velho qualquer repleto de ci' e ce'.

Por que você estava discutindo com seu vatarh? - insistiu Abini. - Eu ouvi vocês lá atrás no jardim.

Matarh... — Eu não quero contar. Não sei sequer como começar.

Conte-me.

Ana olhou para o rosto da matarh e viu a expressão de suspeita. Sentiu o lábio inferior tremer e as lágrimas que ardiam nos olhos. As feições da matarh ficaram borradas diante dela, e Ana limpou com raiva a traição nos olhos. - Por favor, matarh...

Conte-me — repetiu ela.

E então ela contou. Devagar. Parando. Sentiu a vergonha, a culpa e a dor novamente. A matarh ficou ali sentada, escutando, balançando a cabeça a cada palavra até que Abini finalmente abriu os braços com raiva e levantou- -se do sofá. — Não! - gritou a matarh, e a palavra ecoou pela sala. - Você está inventando. Está mentindo. Seu vatarh não faria isso, Ana. Não Tomas. Eu não acredito e não vou dar ouvidos a isso. Não vou. É... é maldade. Tomas é um homem bom e fez o possível para nos sustentar, mesmo com todo o fardo que Cénzi deu para carregarmos. Como você pode ser tão cruel em fazer essas acusações? Você sabe os sacrifícios que Tomas fez para conseguir que você fosse aceita como uma acólita, para pagar o ensino para que você pudesse usar este robe verde e viver neste luxo? Onde está a sua gratitude, criança? Ah, por que Cénzi me trouxe de volta para isso...?

Ela começou a soluçar incontrolavelmente, e Ana, que chorava por com­paixão e pela própria dor, foi até a matarh para tentar pegá-la nos braços e fazer, com um abraço, o que não conseguia com as palavras. Mas Abini encolheu-se e afastou a filha com um grito sem sentido e um olhar treslouca- do de raiva. Ela saiu correndo da sala assim que Sunna abriu a porta. A criada olhou Abini passar em disparada por ela e descer o corredor em direção às portas externas.

O'téni?

Ana fez um esforço para falar entre as lágrimas que sufocavam a garganta. - Vá com ela - disse para Sunna. - Faça com que ela chegue em casa com segurança.

 

ELE VAI MORRER RÁPIDO, vatarh? - perguntou Allesandra.

Eu não sei, Allesandra. Provavelmente.

Ao lado de Jan, a hirzgin mudou de posição. — Isso não é uma coisa que nossa filha deva ver, meu hirzg - disse Greta. Uma mão esfregou o barrigão inchado. O hirzg e a hirzgin, acompanhados por vários integrantes da corte, estavam em um palanque de observação armado bem do lado de fora da tenda palaciana. O starkkapitän Ahren ca'Staunton, comandante do exército firenzciano, e o u'téni Semini co'Kohnle, líder dos ténis-guerreiros, estavam do lado esquerdo de Jan. Mara encontrava-se discretamente à direita do hirzg, do ou­tro lado de Greta, apenas um pouquinho atrás da hirzgin para poder olhar para Jan sem que a esposa notasse, embora Jan tivesse certeza que o resto da corte não deixava escapar a ocasional troca de sorrisos.

Abaixo deles, na campina ladeada pela cidade formada por tendas do exército, um soldado de torso nu, com as costas e o peito que exibiam marcas sangrentas de chibatadas, estava amarrado a um poste largo com as mãos atrás do corpo. Uma fileira de seis arqueiros fora disposta voltada para ele com um o'offizier ao lado; o restante das tropas estava em fileiras silenciosas pelo cam­po. Markell estava perto do poste e supervisionava os procedimentos. A babá de Allesandra, Naniaj, começou a andar para levar a menina embora, mas Jan fez que não e ergueu um dedo. A mulher parou antes de completar um passo.

Ela só tem 11 anos. É pequena demais - insistiu a hirzgin novamente, o que provocou uma cara feia de Jan. Tudo que Greta dizia provocava uma cara feia de Jan. Bastava o som de sua voz fina ou a imagem do rosto comum e comprido com a queixada ca'Ludovici ou o lembrete proeminente de sua fecundidade para Jan ranger os dentes. Ela sabia qual era seu papel como esposa e cumpria como se fosse exatamente isso, e não mais do que devia. A falta de intimidade regular entre eles estava longe de incomodar Jan, nem o impedia de procurar essa intimidade em outros lugares, como atestavam alguns filhos bastardos espalhados por Firenzcia. Talvez Mara acabasse produzindo outro, se as poções da parteira falhassem. - Por favor, meu hirzg, deixe Naniaj levá-la para dentro...

Vatarh, se um dia eu for liderar o exército como hirzgin, então terei que entender isso - implorou Allesandra. Jan riu, um rugido de alegria e diversão que se espalhou dele para Mara, para o starkkapitán e o u'téni co'Kohnle, a se­guir para os outros cortesãos como as ondas provocadas por uma pedra jogada em um lago. Jan fez um carinho no cabelo da filha, depois apertou Allesandra contra o corpo em um gesto possessivo. Apenas a hirzgin estava de cara feia. O olhar de Mara brilhou para ele por cima do ombro de Greta enquanto a hirzgin olhava com raiva para Jan.

Viu só, esposa? - disse ele. - A criança sabe do que precisa aprender. Ela fica.

Hirzg ... — começou Greta, mas Jan olhou feio para ela.

Eu disse que ela fica - repetiu as palavras em tom duro para cortar o assunto desta vez. - Se não quer testemunhar isso na condição em que se encontra, hirzgin, você nos faria um imenso favor caso se retirasse. - Greta fechou a boca ao ouvir essas palavras, os dentes bateram ao se virar e sair do palanque como uma pata-choca. Mara deu um discretíssimo aceno de cabeça para Jan e depois seguiu a hirzgin com o resto de sua comitiva, que saiu de forma hesitante e cochichando. Ele ouviu Allesandra rir baixinho uma vez.

Lá embaixo, o homem estava firmemente amarrado ao poste, e Markell e o o'offizier ao lado dele afastaram-se bastante. Markell gesticulou; os arqueiros armaram as flechas nos arcos e puxaram as cordas com um rangido de couro e madeira. O homem amarrado gemeu. — O que ele fez, vatarh? — perguntou Allesandra.

Ele é um numetodo - disse Jan para ela. — E foi estúpido ao dar voz às suas crenças. A fé em Cénzi e nas recompensas que esperam pelos corajosos quando eles morrem é o que sustenta nossos soldados, minha querida. Sem fé, eles não terão esperança, e esse tolo tentou tirar isso de nossos soldados com suas palavras. Eu quero que todos eles vejam o que acontece aos que não têm fé. - No lado esquerdo de Jan, o u'téni co'Kohnle fez uma expressão séria ao concordar com as palavras de Jan.

Por que há seis arqueiros ali, vatarh? Um só não conseguiria matá-lo?

Todos os seis vão disparar quando o starkkapitán mandar - explicou Jan pacientemente. - Dessa maneira, cada um dos arqueiros pode acreditar que não foi a sua flecha que tirou a vida de um colega soldado. Isso serve para ajudá-los. É difícil para um soldado matar um colega, mesmo quando eles e suas crenças foram traídos por aquela pessoa.

Allesandra concordou com uma expressão séria. - Eu entendo, vatarh.

Hirzg, estamos prontos - falou Markell lá debaixo.

Excelente - disse Jan. Ele deu um passo à frente com Allesandra. Ergueu a voz e falou alto para que o homem amarrado ouvisse. - Você vai rezar agora? - perguntou Jan para o homem cuja cabeça estava erguida, voltada para eles. As pupilas estavam dilatadas, assustadas e injetadas. Sangue escorria da boca e das narinas. - Você vai implorar para ser salvo por Cénzi? Vai pedir que Sua mão guie a minha?

O homem passou a língua grossa pelos lábios machucados. De repente a esperança tomou conta dos olhos desesperados. - Sim - ele conseguiu falar com uma voz praticamente inaudível. - Eu rezo, hirzg. Estou tão... arrepen­dido. Eu estava errado... renuncio tudo...

O que você acha, Allesandra? - perguntou Jan para a filha, que estava espremida contra o parapeito do palanque, na ponta dos pés para poder ver por cima. Ela olhou para o vatarh.

Eu acho que uma pessoa na posição dele diria qualquer coisa que fosse preciso para se salvar, vatarh.

Jan riu novamente. - Realmente. Uma pessoa certamente faria isso. - Ele dirigiu-se à corte e aos soldados. - Vocês ouviram isso? A sabedoria vem dos jovens. - Jan gesticulou para o starkkapitän. - Pode prosseguir, starkkapitän ca'Staunton.

O numetodo gemeu e berrou. Ele praguejou e debateu-se em vão contra as cordas que o prendiam. O starkkapitän ca'Staunton fez o sinal de Cénzi para Jan, depois para o uténi co'Kohnle e deu um passo à frente. Ele ergueu o braço, e o sexteto de arqueiros puxou as cordas até o fim, a madeira envolta em couro rangeu de maneira funesta. A mão desceu enquanto o numetodo gritava e os arcos cantaram. O grito do numetodo foi interrompido abrupta­mente pelo baque sólido das pontas de flecha batendo na carne.

Jan viu Allesandra olhar fixamente o homem desmoronar contra o poste, com seis flechas perfurando o corpo. O sangue escorria dos novos ferimentos para se juntar ao sangue seco das antigas feridas das chibatadas. Ela olhou fi­xamente para o desenho formado pelo sangue, para a bola redonda da cabeça do homem. A boca do sujeito estava escancarada.

Os offiziers vociferaram ordens para os soldados e eles começaram a sair aa formação. Vários homens correram para soltar o homem executado e levar o corpo embora. Markell falou brevemente com o grupo de arqueiros e deu tapinhas nas costas de cada um.

O u'téni co'Kohnle acenou com a cabeça em silêncio, como se tivesse ficado especialmente contente com a morte do numetodo.

- Eu acho, vatarh - disse Allesandra bem baixinho, enquanto os cortesãos conversavam animadamente em volta e atrás de Jan -, que todos, os soldados e a corte lembrarão dessa execução muito bem. Eu sei que eu vou. - O hirzg olhou para a filha, e a expressão no rosto dela era o que Jan esperava ver. Havia uma reflexão contente ali, a cabeça acenava levemente como se estivesse satisfeita com uma tarefa bem executada. — Não acho que eles darão mais ouvidos aos numetodos, vatarh. Só darão ouvidos ao senhor... e ao a'téni Orlandi também.

Ele deu um muxoxo de desdém ao ouvir isso, e o u'téni co'Kohnle olhou para eles antes de se juntar ao starkkapitän ca'Staunton. Jan não deixara a filha testemunhar as represálias do a'téni ca'Cellibrecca contra os numetodos em Brezno, mas ela soube das retaliações após encher o vatarh e os outros com perguntas insistentes. E, como os demais, Allesandra viu os corpos exibidos nas muralhas mais tarde; não houve jeito de evitar isso. - Sim, acho que essa execução terá esse efeito.

Quando o aténi Orlandi se tornar o archigos, o senhor vai se divorciar da matarh?

Você não iria querer que eu afastasse sua matarh de você, iria?

Allesandra pareceu ignorar a pergunta. Ela afastou o olhar de Jan e viu novamente os soldados cuidando da bagunça no campo. Os cortesãos afastaram-se da conversa por educação e fingiram que não estavam tentando ouvir enquanto se envolviam nas próprias conversas. - Eu gosto de Mara, vatarh. Ela é muito boazinha comigo, mais do que a matarh, mas o senhor não vai se casar com ela, não é, vatarh? Acho que o senhor deve se casar com alguém mais importante, que lhe ajude a conseguir o que quer.

E o que você sabe de Mara?

Ela fez uma expressão exagerada de desdém com a boca franzida, e a cabeça balançou tanto que sacudiu os cachos macios em volta das bochechas. — Eu tenho 11 anos e não sou estúpida, vatarh. E não tenho que fingir que não vejo as coisas, como a matarh faz.

Jan deu um abraço na filha, e os braços dela deram a volta em sua cintura. Ele abaixou-se e beijou o topo da cabeça de Allesandra. - Eu amo você, minha querida. Você dará uma bela hirzgin quando chegar a hora.

Ela empinou o rosto para sorrir para ele. — Eu sei. O senhor vai me ensi­nar, vatarh, e eu vou aprender tudo com o senhor. Vai ver só.

Jan deu outro beijo nela.

Estou ansiosa para ir a Nessântico para o jubileu da kraljica, vatarh. Eu sempre quis ver Nessântico.

Jan sorriu ao ouvir isso. - Ah, nós iremos lá, Allesandra. Em breve.

 

SEU PROBLEMA, ANA, é que suas habilidades tornam você muito visível.

Sinto muito, archigos.

O anão riu. - Não falei como bronca. Simplesmente estar comigo também torna você visível, assim como fazer o que lhe peço. Na maioria das vezes, não é possível para uma pessoa esconder seu poder. Você não deveria escondê-lo. Estou dizendo isso para que saiba: estas pessoas que estão contra mim ou contra a kraljica irão ver você sob a mesma luz que me enxergam. Você precisa estar ciente disso e se preparar para tal fato.

Eu... eu acho que compreendo, archigos.

Na verdade, ela não tinha muita certeza sobre o alerta do archigos. Eles estavam em uma carruagem fechada conduzida por ténis, indo na direção da Pontica a'Brezi Veste e do Grande Palácio na Ilha A'Kralji. As molas do veículo reclamavam com um ruído metálico conforme pulavam sobre os paralelepípedos do acesso à ponte. O archigos estava sentado em almofadas de veludo na frente de Ana; ela estava aconchegada contra a lateral da carruagem. Os últimos dias não transcorreram bem: o incidente com o vatarh, depois a visita da matarh que a deixou emocionalmente esgotada. Suas criadas Beida, Sunna e Watha foram todas solícitas e deram muito apoio moral, mas ela também suspeitava de que tudo que era dito ou feito em seus aposentos acabava rela­tado para o archigos. Como se ele tivesse lido seus pensamentos, o archigos respirou fundo e sorriu para Ana.

Sua matarh... Ela entendeu o que você contou?

Não - respondeu Ana. - Ela não quer acreditar em mim.

Dê um tempo para ela. Sua matarh ouviu o que você disse, mesmo que não queira admitir. Ela vai pensar a respeito e fazer perguntas para as pessoas ao redor; sua matarh já pode até ter entendido que é verdade. Ela vai ouvir. Vai acreditar. Com o tempo.

A figura do archigos virou um borrão nos olhos repentinamente cheios de lágrimas de Ana. Ela virou o rosto e fingiu olhar pela janela da carruagem. Ouviu o farfalhar de pano, depois sentiu a mão do anão tocar a sua. Ela re­colheu a mão com um guincho, e ele recuou. Nenhum dos dois falou mais alguma coisa pelo resto da viagem.

Renard acompanhou Ana e o archigos até os aposentos internos da kraljica em vez da Sala do Trono do Sol enquanto passavam por um emaranhado de cortesáos e suplicantes. Ana sentiu os olhares de avaliação mesmo quando eles abaixavam a cabeça e levavam as mãos entrelaçadas à testa. Mas ela e o ar­chigos deixaram os cortesãos e suplicantes rapidamente para trás, conduzidos por Renard por um salão comprido onde uma dupla de criados esperava para abrir as portas para eles.

A kraljica estava na câmara exterior e segurava um pano colocado sobre uma tela apoiada em um cavalete. Ela deixou o pano cair assim que eles entra­ram e foram anunciados por Renard. — Como ficou seu retrato por ci'Recroix, kraljica? - perguntou o archigos. - Podemos ver?

Não. - A recusa talvez tenha saído alta e depressa demais, e a kraljica franziu a testa. - Sinto muito, Dhosti. Isso pareceu rude. É só que ci'Recroix não quer que ninguém veja o quadro ainda. Não está terminado. Mas imagi­no que eu tenha alguns privilégios, uma vez que sou eu que ele está pintando.

Claro que tem, Marguerite - respondeu o archigos. Ana percebeu que o anão notou os potes de tintas, óleos e pigmentos na mesa perto da tela, o jarro de pincéis e o cheiro na sala, e depois um grande quadro de uma família de camponeses pendurado sobre a enorme lareira da sala. Ana viu-se assustada ao olhar para a pintura: era como se ela olhasse por uma janela para a casa de um lavrador. As figuras pareciam praticamente vivas, tão realistas que Ana esperou que elas respirassem e falassem. — Eu pensei que ci'Recroix estivesse pintando você na sala do trono.

Eu não ando me sentindo bem ultimamente, infelizmente, então ele tem trabalhado aqui. - A kraljica cruzou a sala em direção ao fogo que esta­lava na lareira. Ana notou a cautela nos passos lentos, o jeito como o corpo estava visivelmente curvado, e o peso com que se apoiava na bengala de ébano filigranado e com detalhes gravados em prata. Não era a forma como a kral­jica aparecera há poucos dias atrás. Ela havia encolhido, estava definhando. A kraljica tossiu uma tosse cheia de catarro. O rosto estava pálido, a pele nos braços era tão translúcida que Ana conseguiu ver o traçado das veias. A kraljica parecia ter envelhecido de repente, os anos que foram contidos tão bem por tanto tempo desabaram sobre ela. Sua voz tremeu. A kraljica olhou para o quadro acima da lareira, parada diante do fogo como se estivesse absorvendo o calor. - Eu vou ficar melhor para o Gschnas. Você vai, é claro? - disse a kralji­ca para o archigos ao se virar e parar de examinar a pintura com uma hesitação evidente. - E você, Ana? Já esteve no Baile Gschnas antes?

Nunca fui ao baile aqui no palácio, kraljica - disse Ana para ela. - Nós sempre fomos para um dos outros salões, isso quando íamos. Uma vez, po­rém, há quatro anos, o a kralj apareceu onde minha família estava comemo­rando. Eu lembro a ocasião.

Eu vou apresentar vocês dois - falou a kraljica, que inclinou a cabeça na direção de Ana. — Na verdade, faço questão que isso aconteça.

Não vá fazendo planos para ela, kraljica - disse o archigos. - Ana ainda está se acostumando a ser uma téni. Eu escolhi Ana para a Fé e não quero que você planeje roubá-la de mim para seus propósitos.

A kraljica torceu o nariz ao ouvir isso, e Ana sentiu um rubor nas bochechas. - Eu farei o que for melhor para os Domínios, não importa o que você diga. - Ela olhou outra vez para Ana. - Dhosti, vamos conversar. Ana pode esperar aqui; Renard, arrume o que ela quiser. Este assunto com o hirzg ca'Vörl está me perturbando. Eu queria ter mais certeza das intenções dele...

Com uma última olhadela para a pintura na parede, Marguerite afastou- -se da lareira arrastando os pés em direção ao conjunto de portas da parede do outro lado. Ana vislumbrou outro aposento atrás das portas, com papel de parede vermelho aveludado, candeeiros pesados e móveis mais pesados ainda. O archigos ergueu um ombro para Ana e seguiu.

O'téni? - Ana virou-se ao ouvir a voz de Renard. Ele tinha uma aparência tão velha quanto a kraljica, e os anos pareciam tê-lo deixado tão seco quanto uma peça de carne defumada. Ele pegou uma cadeira que estava ao lado da mesinha cheia de potes do pintor e colocou entre a lareira e as portas por onde o archigos e a kraljica desapareceram. - A senhorita vai ficar mais confortável caso se sente exatamente aqui - falou ele com uma estranha ên­fase na voz. A cadeira que ele pegou não parecia especialmente confortável ou bem colocada; certamente era menos atraente do que a poltrona de couro acoichoada em frente à lareira. - Por favor, sente-se aqui, o'téni co'Seranta - repetiu Renard. - Eu vou trazer chá e algo para comer. - Dito isso, ele fez o sinal de Cénzi acompanhado por uma pequena reverência e saiu da sala.

Ana hesitou. Ela tirou os olhos do quadro na parede, onde a família parecia devolver o olhar, e voltou-se para a tela encoberta. A pintura, Ana sabia, devia ser de ci'Recroix, e isso só aumentou a tentação de levantar a cobertura do retrato da kraljica para ver o que estava ali.

Ana tocou o pano e deixou as sobras manchadas de tinta passar entre os dedos, mas se lembrou da advertência da kraljica e não levantou a cobertura. Em vez disso, ela foi até a cadeira que Renard colocou encostada na parede e percebeu imediatamente por que ele fez isso. Através da parede, ela era capaz de ouvir as vozes no aposento do outro lado, fracas e abafadas, porém com­preensíveis se Ana ficasse parada e em silêncio.

Que história é essa com ca'Cellibrecca? - dizia a kraljica. - Eu espero que você tome conta do seu quintal, Dhosti. Eu já tenho problemas suficien­tes me preocupando com o maldito hirzg. Não preciso me preocupar com a Concénzia também.

Acho que ambos os problemas estão relacionados - respondeu o archigos. - Como aténi de Brezno, ca'Cellibrecca fala para Firenzcia, e eu sei que ele mantém comunicações permanentes com o hirzg. Um dos meus conta­tos na equipe de ca'Cellibrecca em Ile Verte conseguiu ver um desses comu­nicados e mandou uma cópia parcial para mim. A carta estava codificada. Eu tenho um pessoal decodificando a mensagem, mas o simples fato de que ca'Cellibrecca considera necessário tal subterfúgio diz muita coisa. Marguerite, eu acredito que o a'téni ca'Cellibrecca e o hirzg já formaram uma aliança. Eu sei o que ca'Cellibrecca quer. O que ele fez em Brezno teve a cooperação do hirzg, e ele não se arrepende daquilo. Quanto ao hirzg e por que ele se aliaria com ca'Cellibrecca, bem, você sabe o que o hirzg pode querer.

Ana quase conseguiu ouvir a kraljica franzir a testa. - Infelizmente você está certo, Dhosti. Greta... a hirzgin... disse que grande parte do exército de Firenzcia está "em manobras" ao sul de Brezno, perto do rio Clario, e o hirzg convocou a maioria das divisões que estavam estacionadas perto da fronteira de Tennshah. Ainda assim, as manobras estão marcadas para acabar em pou­cos dias. A hirzgin garante ter confiança que, apesar das declarações do hirzg, ela e o hirzg Jan estarão em Nessântico para a última semana do jubileu. Ela diz que está insistindo no assunto. É por isso que as manobras foram marcadas para perto do Clario, para que eles possam descer o rio depois.

Conveniente — disse o archigos. - Para viajar de rio ou mandar um exército para Nessântico?

Você realmente não acha...? - Houve um silêncio por alguns momentos, depois Ana ouviu a voz da kraljica novamente. - Talvez você seja simples­mente desconfiado demais, Dhosti. Os Domínios sempre dependeram das tropas de Firenzcia como um apoio necessário à Garde Civile e aos chevarittai, e nós esperamos que o hirzg mantenha os soldados em prontidão. E antes que você comece a me dar lições novamente, eu sei história. A insurreição do hirzg ralwin aconteceu há muito tempo, e apenas a divisão pessoal do hirzg tomou parte no golpe; o grosso das tropas firenzcianas permaneceu leal ao kraljiki Henri e recusou-se a lutar pelo hirzg. Não seria diferente agora; não acho que as tropas lutariam contra a Garde Civile, nem creio que os ténis-guerreiros do hirzg obedeceriam às ordens de ca'Cellibrecca em vez das suas.

Houve uma longa pausa antes que o archigos respondesse. - Espero que você esteja certa. Marguerite, eu descobri que o mesmo intermediário que ca'Cellibrecca usou com o hirzg ca'Vörl também se encontrou com seu filho. E, como você sempre me diz para falar francamente em particular, então es­pero que me perdoe: o a'kralj não esconde sua própria atitude em relação aos numetodos. E ele está ficando cada vez mais impaciente de se sentar no Trono do Sol.

Ana ouviu a kraljica tomar fôlego como uma chaleira furiosa, mas o som foi interrompido quando Renard bateu na porta da câmara exterior.

Ele e dois criados entraram para colocar chá, bolos e tortas na mesa perto da lareira. — Sua cadeira está... confortável? - perguntou Renard para Ana, com um leve sorriso.

Perfeita. E bem posicionada.

Imaginei que estivesse. - Os olhos vidrados do homem voltaram-se para o retrato encoberto da kraljica como se ele verificasse se o pano fora me­xido. Renard evidentemente notou que Ana percebeu o foco de sua atenção. - Eu fico preocupado com a kraljica. O pintor exige muito do seu tempo, e ela não tem andado bem desde que ele começou o trabalho. No entanto, a kral­jica faz a vontade do pintor... - Renard parou e tirou fios soltos imaginários das mangas. - Mas isso não lhe diz respeito, e eu não deveria ter mencionado. Tome um pouco de chá, o'téni. E os bolos estão deliciosos.

Ele bateu palmas, e os criados terminaram de colocar as bandejas antes de sumir. Renard fez outra reverência para Ana e foi atrás deles. Ana não tinha comido desde a Segunda Chamada: o estômago roncou ao ver as sobremesas e o chá tinha um cheiro delicioso. A pintura encoberta ainda a atraía, mas ela não se mexeu, pois não queria perder a conversa na sala ao lado.

... você sabe — dizia a kraljica. - Meu filho fará o que eu mando fazer.

Enquanto você estiver viva, ele obedecerá. - Os olhos de Ana ficaram arregalados com o argumento curto e grosso do archigos.

Você está indo longe demais, Dhosti. - Irritação afiou o discurso.

Pelo contrário, Marguerite. Olhe para mim. Qualquer dia desses, Cénzi pode me chamar para o Seu lado. E simplesmente a realidade. Ana... ela é o futuro, assim como o a'kralj Justi. - Ana empertigou-se na cadeira ao ouvir seu nome e pressionou a cabeça contra a parede. — Você e eu ... Nós somos o presente, prontos para virar passado logo em breve. Talvez nós dois tenhamos ficado à vontade demais em nossos cargos pelos últimos anos, e ambos temos inimigos que estão dispostos a atender o chamado de Cénzi.

Três décadas, Dhosti. Faz mais de 30 anos desde a última vez que a Garde Civile teve que encarar mais do que uma escaramuça de fronteira ou um pequeno levante.

E esse é o seu legado como a Généra a'Pace, e a alcunha é bem mereci­da. As pessoas chamarão esta época a Era de Marguerite, e as futuras gerações sempre pensarão nela com saudade. Mas o tempo é curto para a nossa idade. Nem mesmo você pode desafiar Cénzi e o tempo.

Justi poderia dar continuidade ao meu legado. - O archigos não falou nada. O silêncio surgiu como uma nuvem de tempestade. - Ele pode - disse a kraljica finalmente. - Ele irá.

Espero que sim, kraljica. Eu sinceramente rezo para que esteja certa.

E sua nova protegida? - perguntou a kraljica. - Pelo menos Justi foi criado para ser o kraljiki. Está sendo preparado para isso há décadas. Aquela lá é apenas uma menininha inexperiente que não foi testada. E potencialmente perigosa, pelo que eu soube. Você acha que ela pode dar continuidade ao seu legado, Dhosti?

Não sei. - Ana ouviu a resposta do archigos. Ela sentiu uma ardência no estômago e no rosto. — Eu esperava ter tempo para saber com certeza.

Ela vai se quebrar como uma espada mal forjada.

Pode ser. Ou não.

Ana ouviu passos na sala e levantou-se cambaleando com cara de culpada. Ela ficou em frente à lareira como se estivesse ali o tempo todo exami­nando a pintura de ci'Recroix. A porta permaneceu fechada. A matarh rústica na pintura acima do consolo da lareira deu um sorriso triste para ela. Ana conseguiu notar as imperfeições no rosto, as marcas de acne nas bochechas, as rugas que assediavam o canto da boca, a mancha de fuligem na testa. Ela fez um esforço para tirar os olhos do quadro. Viu a porta que levava ao outro apo­sento, que permanecia fechada. Andou devagar em direção à tela no cavalete. Novamente, Ana tocou o pano e desta vez deixou os dedos pegarem as dobras.

Ela ergueu o pano.

E quase o deixou cair novamente.

Ana encarou o rosto da kraljica e a mulher devolveu o olhar. A pintura estava obviamente inacabada, mas já era assustadora. O rosto, em especial, parecia perfeitamente tridimensional e redondo, um retrato tão realista que Ana se viu erguendo o indicador para tocar na superfície da tela.

Com o toque, ela soltou a cobertura e sufocou um gritinho.

No momento em que o dedo roçou na tela, ela imaginou ter sentido o calor de um rosto vivo e podia ter jurado que ouviu uma voz, um chamado distante praticamente reconhecível. Mas todas as sensações foram embora tão rápido quanto chegaram. Ana deu vários passos para trás, recolheu a mão jun­to ao robe verde e encarou o resquício revelador de pigmento no dedo.

A porta foi aberta, e surgiram o archigos e a kraljica. - ... estamos entendidos — dizia a kraljica. A tinta ainda estava secando; era por isso que estava quente. E eu ouvi a voz da kraljica enquanto eles se aproximavam da porta... Ana sorriu para os dois: como se estivesse esperando pacientemente, como se não tivesse ouvido às escondidas tudo que disseram.

Renard trouxe comida e bebida - falou Ana para eles. - O senhor e a senhora aceitam um chá?

 

PSST! Aqui, rápido!

Karl foi ao endereço no bilhete que recebeu de Mahri - uma rua que não era mais do que um beco nas profundezas sinuosas do Velho Distrito. Havia apenas umas pessoas por ali, nenhuma perto dele. A voz de Mahri surgiu de uma arcada nas sombras. Sua mão acenou da nesga da porta. Karl foi até a porta, que foi aberta o suficiente para que ele entrasse e depois se fechou novamente.

Ele sentiu o cheiro do mendigo enquanto os olhos lutavam para se ajustar à escuridão: mofo, roupas sujas, dentes podres. A seguir, Karl escutou o clique da porta sendo fechada, e luz tomou conta da sala. Mahri falou uma palavra que ele não entendeu, e luz saiu da mão do mendigo: na palma em concha, uma esfera de vidro reluzia com uma luz tão forte que Karl teve que proteger os olhos. A luz em si era intensa, mas iluminava apenas um globo ao redor deles; o restante da sala estava escuro, e a luz não provocava sombras, o que era impossível. Na claridade forte e azulada, Karl conseguiu ver o rosto de Mahri, o cenário destruído, arrasado e mutilado que o capuz geralmente escondia. Ele deu um passo para trás, para longe de Mahri e fora do globo de luz, e a noite retornou, cortada por imagens persistentes do clarão. O efeito era assustador. Karl não conseguia ver Mahri de maneira alguma, nem o globo de luz. Eles tinham... sumido. Karl deu um passo à frente outra vez para o ponto onde Mahri esteve... e a luz do sol surgiu novamente, presa na mão do mendigo.

Karl balançou a cabeça, estupefato. A rapidez do feitiço não o assustou; esse era um truque numetodo, afinal de contas, um que os ténis não conse­guiam igualar com seus cânticos lentos. Mas o feitiço em si... - Isso... Bem, isso foi realmente maravilhoso, Mahri. Você é um téni, então, ou foi um dia?

Mahri riu ao ouvir isso, uma risada seca e abafada. - Não. Não um téni.

Karl franziu a testa. — Um numetodo? Se é, então...

Mahri interrompeu Karl antes que ele pudesse terminar o argumento. - Você consegue fazer isso, enviado, você ou qualquer numetodo que conheça?

- Não - admitiu Karl. - Minhas próprias habilidades são... mais limitadas. Eu ainda tenho muito a aprender antes que possa dizer que dominei o Scáth Cumhacht. Mas conheço alguns que, lá em Paeti... - Ele parou. - Não, não acho que eles teriam conseguido fazer isso também.

Mahri concordou com a cabeça. - Eu não sou um numetodo. Mas digamos que simpatizo com sua causa. E ninguém domina o Ilmodo ou o Scáth Cumhacht ou como quiser chamar. Ele sempre, no fim das contas, domina a pessoa. - Do lado de fora, havia o som de carroças e cascos nos paralelepípedos. Mahri apertou os dedos no globo, e a luz que ele lançava diminuiu sensivelmente. — Siga-me. Fique perto de mim ou vai perder a luz. A escada é íngreme e estreita.

Karl permaneceu próximo às costas do homem e seguiu o mendigo enquanto arrastava os pés até uma arcada, depois prosseguiu por um longo corredor. O interior do prédio era decadente e destruído, com paredes quebradas e cheias de buracos de ratos. Ele ouviu criaturas que rastejavam pelas paredes ao passar. No fim do corredor havia uma escada, tão íngreme e estreita quanto Mahri anunciara; eles desceram e depois viraram em um aposento diretamen­te acima daquele que Karl entrou no térreo. Um gato selvagem passou pela parede e saiu por uma janela quando os dois entraram. Mahri apagou a luz completamente e enfiou o globo em algum lugar do robe esfarrapado. — Ve­nha aqui, enviado.

Na tênue luz da lua em quarto minguante, Karl notou Mahri chamando ao lado de uma janela com as persianas meio abertas. Havia uma cadeira ao lado, onde alguém poderia vigiar a rua sem ser visto. Karl foi até a janela e olhou para baixo. Uma carruagem coberta para quatro pessoas tinha parado na rua lá embaixo, na casa vizinha. Duas lanternas montadas nos dois lados jogavam luz na rua. O condutor saiu do assento e foi para as portas da carrua­gem. - Vajica Francesca ca'Cellibrecca. Você conhece o rosto dela? - Karl fez que sim. - Então observe. Você só tem um instante.

O condutor abriu as portas da carruagem. Karl debruçou-se para a frente e franziu os olhos ao contemplar a noite. - Aquela não é ela - falou enquanto o condutor auxiliava uma mulher a descer. Ela estava vestida de modo simpló­rio, era mais magra e com certeza mais baixa que a vajica ca'Cellibrecca, mas quando a mulher imediatamente se voltou para a carruagem, Karl percebeu que era uma criada. Outra mulher, com um chapéu decorado com plumas e uma estola de pele sobre os ombros, pegou a mão do condutor e desceu da carruagem. Quando pisou na rua e começou a correr para a porta da casa vizinha acompanhada pela criada, ela ergueu o rosto para os prédios e a tênue luz das lâmpadas da carruagem banhou suas feições.

Sim. Aquela é a vajica - disse Karl.

Eu sei — respondeu Mahri. - Agora se acomode e espere um pouco. O a'kralj virá.

Karl observou as mulheres entrarem na casa enquanto a carruagem que as trouxe foi embora novamente, depois se voltou para o mendigo. - Quanto tempo... - começou ele, mas percebeu que não estava falando com ninguém. Mahri não se encontrava no aposento. - Mahri? - Não houve resposta. Karl suspirou, sentou-se na cadeira ao lado da janela e esperou.

Havia pouca coisa para ver. A alameda, afastada das ruas principais, tinha pouco tráfego de pedestres, eram moradores que saíam de seus apartamentos para destinos e compromissos desconhecidos ou que voltavam com sacolas verduras ou uma longa bisnaga de pão. Muito raramente passava uma carruagem, mas nenhuma parava. Karl sentiu o cheiro de madeira queimando por perto, ouviu o apito de alarme de um utilino e viu um brilho suave na parte inferior das nuvens a alguns quarteirões de distância. Ele torceu que os ténis-bombeiros estivessem por perto para apagar as chamas - o Velho Distrito temia fogo mais do que qualquer coisa. Algum tempo depois, o brilho diminuiu; talvez meia virada de ampulheta depois, talvez mais. Os ténis-bombeiros chegaram e apagaram as chamas. Karl estava quase desistindo da vigília quando viu correndo pela rua um homem que vestia um manto escuro. Algo na postura e passo do sujeito chamou sua atenção; quando parou na frente da casa, ele abaixou o capuz. Não havia como confundir o queixo pontudo nem as feições delicadas - Karl tinha visto em pinturas e vislumbrado algumas vezes em cerimônias públicas na cidade: era o a'kralj. Karl debruçou-se para vê-lo se dirigir à porta da casa. Ele não bateu — a porta foi aberta assim que se aproximou e o a'kralj entrou.

Eles encontram-se três vezes por semana. — Karl assustou-se ao ouvir a voz de Mahri e virou-se para ver o homem parado a um passo dele. - Sempre nos mesmos dias, na mesma hora, sempre pelo mesmo período de tempo. O a'kralj tem o hábito da pontualidade e de ritual de sua matarh. É de suspeitar que o a'kralj também faça as mesmas coisas do mesmo jeito sempre. Nessân­tico funciona movida à rotina, afinal de contas.

Você podia avisar a pessoa antes de surgir de mansinho.

E estragar o mistério? - Karl imaginou um sorriso cruel repuxar a boca deformada e mutilada de Mahri, mas podia ter sido um truque das sombras. - Se eu fosse você, estaria imaginando como seria Nessântico se o a'téni ca'Cellibrecca virasse archigos e o a'kralj de repente se tornasse o kraljiki Justi III.

Eu não preciso imaginar. - Karl levantou-se da cadeira.

Deveria. Há opções piores.

Tais como?

E se não fosse o kraljiki Justi que governasse Nessântico, mas alguém que um dia tenha sido hirzg? Brezno é o centro do poder de ca'Cellibrecca, afinal de contas.

Então por que a filha de ca'Cellibrecca se envolveria com o ãkralj?

Um homem inteligente faz planos para todas as situações possíveis. O que quer que você pense sobre o a'téni ca'Cellibrecca, não cometa o erro de achá-lo estúpido, nem o hirzg Jan.

E os seus planos, Mahri? Quais seriam eles? — Karl olhou pela janela em direção à rua novamente, agora vazia exceto por um utilino dando uma volta para o sul, indo para o centro do Velho Distrito. - Admito que você é mais do que parece e não cometerei o erro de debochar de você novamente. Mas ainda não sei o que tem a me oferecer ou o que eu possa lhe oferecer. Estou aqui representando uma coalizão indefinida de reis sem muita importância cujas terras são menores do que algumas propriedades pessoais da kraljica, todas amontoadas fora das atuais fronteiras dos Domínios. Eu não controlo um exército; nem sequer exerço muita influência sobre aqueles a quem me relato. Sou um dignatário de pouca importância que ainda nem conseguiu ter um momento do tempo da kraljica, apesar dos insistentes esforços e, devo dizer, algumas propinas substanciais.

Você deixou de mencionar que está no topo de uma rede de numetodos aqui na cidade e espalhada pelos Domínios. Você controla Mika ce'Gilan, que por sua vez faz parte da célula mais importante aqui na cidade. Eu obser­vo Mika há algum tempo. Aquele infeliz ce'Coeni era apenas um integrante de uma das células menores, aquela que você conhece como a célula de Boli, não é? Porém eu tenho certeza que ele não agiu sob suas ordens.

O treinamento de Karl permitiu que não demonstrasse nada do que estava pensando para Mahri. Como ele sabe de tudo isso? Tenho que contar a Mika que temos um sério vazamento em nossa organização... - Você está construindo uma conspiração dos numetodos onde não há nada, Mahri. Tenho certeza de que o comandante ca'Rudka ficaria impressionado com sua análise, mas eu não. Nós numetodos sequer conseguimos concordar no que nós mesmos acreditamos, muito menos cooperar a ponto de nos organizarmos. Nós temos pessoas que ainda mantêm alguma crença em Cénzi, por mais que essa fé seja diferente da Concénzia; temos aqueles que cultuam alguns dos moitidis de várias formas; temos outros que acreditam que não existem deuses de forma alguma, que tudo no mundo pode ser explicado sem a necessidade de uma intervenção divina. Nós gostaríamos de ter a liberdade de buscar as nossas próprias verdades sem sermos perseguidos pela fé concénziana ou pelos asseclas da kraljica. Não somos uma ameaça aos Domínios ou à Concénzia desde que eles não sejam uma ameaça para nós. Fora isso, não me importo com quem governe os Domínios. Isso é tudo que estou aqui para pedir, e sou apenas o que aparento ser. Nada mais.

Assim como eu - respondeu Mahri delicadamente. - Tanto quanto você.

Karl decidiu ignorar isso. - Se o a'kralj lhe preocupa, então por que não o mata? Você sabe onde ele está e, pelo que eu vi, você não teria problema em chegar a ele. Livre-se do homem.

A morte não mata crenças, apenas dá mais força a essas crenças. Uma filosofia não é uma pessoa. Se ela realmente for uma maneira vital de pen­sar, a morte do fundador apenas aumenta seu crescimento. Esse é o erro que ca'Cellibrecca e o hirzg Jan cometeriam. Seria uma pena que os numetodos fizessem o mesmo.

Então o que mata uma crença, se não a morte daqueles que acreditam? - perguntou Karl.

Mahri não respondeu. Debaixo da sombra do capuz, o único olho do homem devolveu o olhar de Karl. - Ah, essa é a questão, não é?


 

- VOCÊ JÁ TEM UMA ROUPA para o Gschnas, Ana? - perguntou Kenne.

Anna deu de ombros. Ela olhou atrás de Kenne, sentado na mesa lotada de papéis, para a porta aberta da recepção do archigos, onde podia ver o archi­gos Dhosti e três dos áténis: Joca ca'Sevini de Chivasso, Alain ca'Tountaine de Belcanto e Colin ca'Cille de An Uaimth. Também na sala havia um homem ilto e bem bonito que ela não reconheceu. Todos os cinco estavam no meio do que parecia ser uma animada discussão. - Beida e Watha disseram que elas prepararam uma coisa para mim, mas que ainda não irão me mostrar. E quanto a você?

Kenne balançou a cabeça. - Eu não vou. O archigos me mandou trabalhar aqui na noite de amanhã. - Ele apontou para a pilha de papel mais próxima. - Examinar os relatórios de Firenzcia.

Ana sentiu um rubor de culpa sair da gola alta do robe verde e subir pelo pescoço. — Sinto muito. Se eu soubesse, teria pedido ao archigos para você acompanhá-lo no meu lugar.

Kenne riu ao ouvir isso. - Você realmente acha que não irá trabalhar? Acredite, você irá trabalhar, e de maneira bem mais visível do que eu. Não, estou bem contente com minha sina, Ana. Além disso, você é a nova celebri­dade e ele tem que exibir você.

Ela ficou mais ruborizada e Kenne riu novamente. — E antes que vá se desculpando por isso também, deixe-me dizer que não sinto nem um pouco de ciúmes. Estou feliz onde estou, onde sou capaz de passar adiante qualquer problema difícil para o archigos ou para os a'ténis. - Kenne deve ter notado Ana desviar o olhar, porque se virou para a porta aberta atrás dele. - O envia­do Karl ci'Vliomani está com eles.

Isso fez Ana levantar as sobrancelhas. - O numetodo?

Kenne fez que sim. - Para um herege, ele até que é atraente, não acha? Ele fala bem também. Eu sempre achei o sotaque paeti encantador. - Ana arqueou ainda mais as sobrancelhas, e Kenne sorriu para ela. - Só digo o que estou pensando. Aposto que você acha a mesma coisa.

Ana decidiu não responder, mas continuou a olhar fixamente para o homem. - Por que ele está aqui?

O archigos pediu para vê-lo. Acho que ele queria tranqüilizar qualquer temor de que o que aconteceu em Brezno seria repetido aqui. O archigos que­ria que o enviado soubesse que nem todos os a'ténis têm a mesma opinião que o aténi ca'Cellibrecca. Ah, aqui vêm eles.

O grupo estava vindo em direção à porta. Ana ouviu um trecho do discurso do enviado, caracterizado, como Kenne insinuou, por um sotaque forte e um barítono agradável e melodioso. O homem tinha uma voz que qualquer téni no Alto Púlpito invejaria. - ... prazer ter tido a oportunidade de falar com os senhores, archigos, aténis. Eu também agradeceria, archi­gos, se pudesse falar com a kraljica em meu nome. Ficaria muitíssimo grato pela chance de encontrá-la e tratar diretamente de quaisquer receios que ela possa ter.

Talvez depois de o jubileu acabar, enviado - respondeu o archigos.

O enviado sorriu; ele tinha um sorriso agradável, que parecia genuíno e sem malícia. Rugas marcavam o canto dos olhos e da boca. Elas indicavam para Ana que o enviado ficava à vontade sorrindo, que estava acostumado com isso. Ana viu-se olhando fixamente suas feições, imaginou o que o en­viado poderia estar pensando, tentou visualizá-lo praticando a proibida magia dos numetodos ou negando a existência de Cénzi. Esse era o inimigo, no en­tanto era bem mais fácil imaginar pensamentos hereges por trás de um rosto feio e distorcido, não como esse. Não como esse. - Ah, sim - falou o enviado, e seus olhos verdes reluziram na luz mágica da lâmpada da mesinha de Ken­ne. - A kraljica deve ter sua bem merecida comemoração primeiro. Depois do jubileu, então. E ficarei em dívida com o senhor, archigos. Não precisa me acompanhar à saída...

Dito isso, ele virou-se para ir embora. Seu olhar passou momentaneamente por Ana com o movimento, e o enviado sorriu e acenou levemente com a cabeça para ela antes de começar a ir embora.

Ah, Ana - disse o archigos Dhosti. — Fico contente que esteja aqui. Gostaria de lhe apresentar formalmente ao a'ténis ca'Sevini, ca'Fountaine e ca'Cille.

Ana tirou os olhos do enviado, que se afastava rapidamente da mesa de Kenne pelo corredor. O secretário estava sorrindo para ela, que o ignorou.

Certamente, archigos.

Olhe! - Ana apontou e riu com alegria.

Fora do Grande Palácio, os arbustos foram colocados de cabeça para baixo, a parte verde meio enterrada na terra e as raízes expostas e enroscadas como dedos retorcidos na direção da noite sem nuvens. Globos acesos por mágica foram colocados dentro das raízes e cercados por vidro colorido para que as sombras multicoloridas das raízes entrecortassem o jardim. A grama foi pintada com um tom de branco que reluzia de maneira sinistra, como se o .uar que iluminava a cidade tivesse sido derramado sobre a terra, enquanto os chafarizes entre as alas do Grande Palácio jorravam uma água que era negra e opaca. Com as asas cortadas e presas, aves ornamentais de cores intensas das florestas de Namarro e Hellin do Sul desfilavam e cutucavam as penas com os bicos sobre a grama branca, enquanto vários cachorros bem cuidados e com coleiras cravejadas, que pareciam muito assustados e desconfiados com o que iria acontecer, estavam suspensos por fios negros ligados a cabos esticados entre os telhados do palácio, para que parecessem andar no ar.

Era o festival de Gschnas, onde a realidade era virada de pernas para o ar e nada parecia ser o que era.

O archigos sorriu e acenou com a cabeça diante da empolgação de Ana.

Esta é a comemoração favorita da kraljica. - Ele estava sentado à frente de Ana, mas em vez do costumeiro robe verde de um téni, Dhosti vestia a morta­lha de um cadáver e o rosto estava escondido atrás de uma máscara de caveira feita de porcelana. Os olhos do archigos atrás das órbitas vazias assustavam Ana toda vez que ela via de relance na penumbra da carruagem.

Ana, com a ajuda de Beida e Watha, estava vestida como um jovem chevaritt. Os seios foram presos firmemente (e de uma forma muito desconfor­tável, ela tinha que admitir) debaixo de uma bashta franjada decorada com medalhas. Ela estava com uma espada de madeira presa a um largo cinturão de couro e botas de couro que iam até os joelhos. O cabelo foi repuxado com força e preso a uma trança como um chevaritt da Garde Civile. Uma boina com uma longa pena equilibrava-se de maneira garbosa na cabeça. "A senhorita está bem bonita", dissera Beida ao dar um passo para trás após as cria­das terminarem de vestir Ana. "Ora, talvez a senhorita tenha que se defender de algumas mulheres ca' e co' que estejam procurando por um marido." Ela dera um risinho ao pensar nisso.

A carruagem parou, e um criado abriu a porta para eles. O homem estava vestido, como Ana reconheceu assustada, com a mesma roupa que o a'kralj Justi usou no retrato oficial e mais uma coroa de ouro na cabeça. Ana deu uma olhada no cenário de fantasia, nos chafarizes de água escura e na grama brilhante, na teia de rachaduras e fissuras pintada nas paredes do palácio para que o prédio parecesse ter sido abalado e quebrado em um terremoto e que o Grande Palácio fosse uma ruína em uma terra perdida.

Ao se afastar da carruagem, Ana ouviu de repente uma estranha música dissonante e viu um trio perto das portas principais. A moça que tocava saltério usava a baqueta nos pés descalços enquanto se reclinava no chão; o tamborileiro pousou o instrumento em uma banqueta diante de si e estava quicando três bolas de metal no couro de cabra do tambor enquanto fazia malabarismos com elas - e mantinha um ritmo surpreendentemente bom, Ana teve que admitir. O homem com o trombone parecia estar tocando com o bocal enfiado nas partes baixas; Ana decidiu que não queria saber como ele estava produzindo um som. Ela fez uma careta diante do balido perturbador do instrumento.

- Eles não são muito bons - disse Ana para o archigos, que a encarou com o rosto de caveira.

O surpreendente é que eles sequer consigam tocar, não é? - falou o chigos. Ana ouviu a risada abafada atrás da máscara.

Eles entregaram o convite ao recepcionista, que usava uma cabeça de rode e luvas que imitavam a pata do animal. O sujeito imediatamente anun­ciou os dois lendo os nomes ao contrário — Callim'ac Itsohd Sogih-cra Ana Atnares'oc Ana Inét'o - e impressionou Ana com sua facilidade. Dentro do salão de bailes, os ca' e co' andavam de um lado para o outro em núcleos re conversa que se misturavam. Por um momento, Ana ficou estupefata pela visão da alta sociedade de Nessântico em todo o seu esplendor de jóias e rou­pas elegantes. No fim do salão, havia uma orquestra tocando - corretamente desta vez, embora eles estivessem sentados bem acima do público, sobre uma estrutura de uma figura cristalina gigantesca. As mãos imensas serviam como assentos para os músicos, a carne era uma carapaça de vidros coloridos, e os ossos, pedra branca. Havia mil velas acesas por todos os cantos da estrutura da estátua, e duas fogueiras ardiam nas órbitas do crânio. Líquido vermelho :orrava na boca aberta e caía em uma poça onde o gigante estava ajoelhado, como se estivesse rezando.

Diante da estranha figura, a multidão movimentava-se, brilhava e pavoneava, as conversas misturadas quase superavam os músicos. Eles dançavam em pares, rodinhas e filas; reuniam-se à margem da pista de dança para con­versar; e muitos estavam olhando fixamente para Ana e o archigos parados na porta. Ana começou a se sentir intimidada e um pouco assustada, a testa porejava por baixo do pó que ela usava, mas o archigos pegou seu braço e dis­se - Lembre-se, a maioria está tão insegura quanto você, talvez até mais. Eles apenas têm mais prática em esconder. Você é a o'téni co'Seranta e chegou com o archigos. Isso coloca você acima de quase todo mundo que vê.

Eu não estou acostumada a isso. - A voz cedeu, era praticamente um sussurro quando Ana se inclinou na direção dele. A cabeça do archigos ficou na mesma altura de seus ombros.

Acostume-se - murmurou ele. — E aprenda a tirar vantagem disso. Vamos descer...

Ana deu o braço ao archigos. Eles desceram as escadas juntos e entraram no mar de rostos sussurantes e fantasias.

O'téni... - Ana ouviu de uma dezena de direções quando chegou ao salão e educadamente respondeu aos cumprimentos com acenos de cabeça. Um garçom vestido de macaco ofereceu uma taça; ela pegou e provou um gole do vinho doce e gelado. Ana permaneceu perto do archigos e seguiu o anão conforme ele avançava pela multidão, para longe de quem dançava e dentro do relativo sossego de uma das alcovas.

Archigos - ela ouviu uma voz chamar. - Devo dizer que é preciso certa coragem para usar uma mortalha. Eu teria muito medo de me vestir assim, acho que estaria provocando a sorte.

Um trio de sombras saiu de perto de uma lareira na parede, onde chamas verdes e frias saltavam de uma poça de água dentro da lareira - pro­vavelmente criada por outro feitiço de um téni. Ana arregalou os olhos: na luz difusa das chamas de água, uma das pessoas parecia ser uma mulher musculosa e de seios de fora andando sobre as mãos, mas, assim que o grupo chegou perto, ela notou que o que pensou ser pele era tecido colado a uma estrutura e pintado para parecer realista, que a cabeça da "mulher" era feita de cera e tinha uma peruca, e que havia o rosto de um homem espreitando logo acima da saia. Suas mãos estavam dentro dos sapatos e os pés calçavam meias que pareciam com mãos. Ana sentiu um arrepio: a imagem não era agradável.

Havia uma mulher de verdade ao lado do homem, vestida dos pés à cabeça com plumas que destacavam seu rosto atraente e valorizavam a silhueta, com asas igualmente exuberantes saindo das costas. A terceira pessoa era um homem mais velho, pesado e com queixo duplo, que usava a roupa simplória de um camponês, com o rosto engenhosamente pintado com tinta preta, pro­vavelmente com a intenção de representar sujeira.

O homem sorria para eles, e Ana subitamente o reconheceu: o a'téni Orlandi ca'Cellibrecca. — E imagino que esta seja a o'téni co'Seranta — disse ca'Cellibrecca. Ana percebeu que foi a voz dele que falou há um instante.

A'téni ca'Cellibrecca - disse o archigos. - Eu agradeço a preocupação co­migo, e espero que seus farrapos não sejam um presságio de sua própria falên­cia. A morte, pelo menos, acaba logo. A pobreza permanece. - Ca'Cellibrecca torceu o nariz quando o archigos gesticulou para Ana. - Creio que eu deva apresentar todo mundo formalmente. A'téni ca'Cellibrecca, essa é realmente a o'téni Ana co'Seranta.

Ca'Cellibrecca abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi; Ana repetiu o gesto e abaixou-se um pouco mais como mandava a etiqueta. - Eu estava lá quando você interferiu com o assasino, o'téni - falou ca'Cellibrecca. - Muito impressionante, devo dizer. Você recebeu um grande Dom de Cénzi, se to­dos os rumores forem verdade. - O sorriso parecia tão frio e falso quanto as chamas na lareira. Havia uma expressão predatória no olhar, como se ele fosse uma cobra vendo um rato diante de si. Ana viu-se querendo afastar o olhar e fez um esforço para empinar o queixo e devolver o sorriso.

Os rumores tendem a ser exagerados a cada vez que são espalhados — disse Ana. - Eu não acreditaria neles, a'téni.

Ah, e é modesta também — falou ca'Cellibrecca. - Prazer em finalmente conhecê-la pessoalmente; o archigos infelizmente tem mantido você longe de mim, embora eu saiba que ele deve ter boas razões para tanto. E estou me esquecendo: o'téni co'Seranta, gostaria de apresentar minha filha, Francesca, e seu marido, Estraven, que serve aqui em Nessântico como u'téni do Velho Tempo na Ilha A'Kralji. Com certeza você ouviu algumas das Admoestações dele, pois sei que sua família geralmente vai à missa lá. - Os dois curvaram-se e fizeram o sinal; o de Estraven saiu esquisito por causa dos sapatos nas mãos. Ana percebeu que Francesca deu um olhar estranho para o marido, que misturava diversão e aversão.

Uma massa de gente entrou na alcova e parou perto da lareira. Eles ficaram olhando o fogo na água e colocaram as mãos nas chamas intensas e vivas. A risada do grupo atraiu o olhar de Ana; um deles, um homem magro com o robe de um téni e uma simples máscara preta, acenou com a cabeça e ela afastou o olhar novamente.

A kraljica superou-se este ano - dizia ca'Cellibrecca. — Este é um Gschnas muito impressionante, um que nós recordaremos com certeza. Ela e o akralj devem entrar em breve, e eu soube que o novo retrato da kraljica será mostrado à meia-noite. Vocês já viram?

Ainda não tive o prazer - falou o archigos. - O pintor ci'Recroix insistiu que o quadro permanecesse encoberto até a noite de hoje. Mas eu já vi outras obras dele e são muito impressionantes. As figuras parecem capazes de sair andando da própria tela.

Então eu realmente estou ansioso para ver o que ele fez com a nossa kraljica. Imagino se ela irá se vestir novamente como o Espírito de Nessântico para o baile? Aquela foi uma fantasia impressionante que ela usou no ano passado.

Ela me disse que vem de Vucta, a Grande Noite Encarnada - respon­deu o archigos. - A kraljica contou com vários de nossos e'ténis mais criativos que trabalharam para ela.

Tenho certeza de que ela irá se superar mais uma vez — disse ca'Cellibrecca. Ele voltou a olhar para Ana de cima a baixo, devagar e de maneira óbvia, como se a avaliasse, enquanto falava com o archigos. - Você pensou um pouco mais sobre a nossa última conversa, archigos?

Eu dediquei toda a reflexão que ela merecia, a'téni - respondeu o archigos, o que trouxe de volta o olhar de ca'Cellibrecca para o anão.

É mesmo? Então eu adoraria conversar mais com você. Podem nos dar licença? O'téni co'Seranta, Francesca ...

O archigos acenou com a cabeça para Ana enquanto era levado embora por ca'Cellibrecca. O u'téni Estraven obviamente ficou furioso por ter sido desprezado por ca'Cellibrecca, o rosto apareceu vermelho acima da bainha do vestido. - Francesca, eu realmente acho... - ele começou a dizer, mas parou assim que a mulher ergueu a mão.

Não aqui, Estraven. Por favor. — O tom era autoritário e duro; o uténi fechou a boca imediatamente em resposta. Francesca deu um sorriso para Ana. - Sinto muito, o'téni. Se puder fazer a gentileza de desculpar meu mari­do. Foi um prazer lhe conhecer, e espero que aprecie o Gschnas hoje à noite. Talvez possamos conversar mais tarde; eu adoraria ter a chance de lhe conhe­cer melhor. O vatarh falou tanto de você.

Sim - disse Ana. - É claro, vajica, u'téni. Até mais tarde.

Francesca sorriu, fez uma mesura e o sinal de Cénzi, o que foi repetido pelo marido um momento depois. Ana devolveu o gesto. Antes de o casal ter dado quatro passos, ela ouviu Estraven começar novamente. - Eu não aceito ser tratado desta maneira, Francesca. Seu vatarh...

Eles fazem um belo casal, não acha?

 

KARL JUNTOU-SE a um grupo que estava indo na direção da alcova onde o archigos desapareceu com sua acompanhante. Enquanto Karl ria e brincava com eles em volta do fogo de água, ele observou o archigos, que estava conversando com o a'téni ca'Cellibrecca, sua filha e o marido dela. Karl ficou abismado ao perceber que a pessoa com o archigos não era um jovem em uma roupa um pouco espalhafatosa, mas sim uma mulher de rosto comum vestida como homem - e, ao perceber isso, achou que sabia quem ela poderia ser. Se não fosse a tal co'Seranta, a mulher parecia estranhamente familiar, embora Karl não conseguisse se lembrar de onde poderia tê-la visto antes. Ela olhou para ele uma vez, os olhares cruzaram-se, e Karl respondeu com um aceno de cabeça. A mulher rapidamente virou o rosto, como se estivesse envergonhada de ter sido flagrada olhando para ele.

Karl começou a se aproximar: assim que o archigos e ca'Cellibrecca deixaram o grupo, no momento em que Francesca ca'Cellibrecca e o marido também foram embora, obviamente discutindo entre si.

Eles fazem um belo casal, não acha? — disse ele. - Um argumento contra casamentos puramente políticos. E aquela fantasia que o u'téni ca'Cellibrecca está usando... - Ele estalou alto a língua em reprovação enquanto balançava a cabeça.

Ela virou-se assustada. Karl inclinou a cabeça em sua direção. Ele no­tou sua expressão confusa diante do cumprimento sem o costumeiro sinal de Cénzi, então a boca da mulher soltou um leve suspiro e os olhos ficaram um pouco arregalados. Ela olhou para a fantasia e franziu os olhos. - Enviado ci'Vliomani?

Ele riu. — Fui descoberto. Vejo que tenho mais reputação do que gostaria. E você tem uma vantagem sobre mim.

Karl pensou ter vislumbrado um aceno, mas ela não disse o nome. A mulher parecia estranhamente quieta, diferente da grande parte dos ca' e co' que ele conheceu, cuja maioria parecia ansiosa em dominar todas as conver­sas. - Você escolheu uma fantasia estranha, enviado - disse ela com um leve tom de reprovação por trás das palavras.

Ele passou a mão sobre o tecido verde do robe de téni. - Eu quis ser irônico. Mas suspeito que só consegui demonstrar mau gosto.

Karl notou que ela fez um esforço para não sorrir, depois que deixou demonstrar que achou graça. Ele viu-se devolvendo o sorriso. - Ah, você podia ter feito uma escolha pior, como creio que o u'téni Estraven possa lhe dizer - respondeu a mulher. Havia uma risada alegre na voz, e o comentário indicou que a opinião dela sobre a família ca'Cellibrecca não era melhor do que a sua própria. Karl achou que ela não fosse falar mais nada, que não iria dizer o nome ou confirmaria sua suspeita. Ela olhou para além de Karl, na direção do salão, quando a orquesta começou a tocar uma gavota e a pista ficou cheia de gente dançando. A mulher parecia fascinada e ao mesmo tempo terrivel­mente sem jeito. Ele achou a combinação intrigante.

- Eu sou a o'téni Ana co'Seranta - ela falou e voltou a olhar para Karl. Ana tinha olhos da cor de chá há muito tempo em infusão. A cabeça inclinou-se levemente, como se tentasse decidir que opinião deveria ter a respeito dele. - Só para sermos devidamente apresentados. Eu vi você outro dia, enviado, quando esteve no Templo do Archigos.

Ele percebeu então por que ela tinha parecido familiar. - Ah, a téni que estava do lado de fora da sala quando nós saímos, aquela com o secretário do archigos. Então você é a nova protegida do archigos, e não apenas outro belo vajiki e chevaritt. - Karl deu um sorriso maior e a seguir balançou a cabeça. Comparada à maioria das mulheres no Gschnas, ela tinha uma aparência co­mum que não chamava a atenção, mas, no entanto, Karl descobriu uma sin­ceridade cativante em Ana que fez com que ele quisesse permanecer ali. Você está há muito tempo longe de casa. O que Kaitlin acharia de você estar pensando a esse respeito sobre ela? — Eu devo-lhe um pedido de desculpas e também minha gratidão, o'téni.

Desculpas? Gratidão? Não compreendo, enviado. Nós realmente nun­ca nos encontramos. Como assim você precisa se desculpar ou me agradecer? - Ela ficou com uma expressão confusa debaixo daquela boina idiota.

Foi você que salvou a vida do archigos na semana passada. E foi, infelizmente, um numetodo o pretenso assassino. Eu pedi desculpas em nome de todos os numetodos por aquela ação; nós não somos assassinos ou insur­gentes, não importa qual seja a opinião popular. E devo-lhe a minha gratidão por ter interferido: porque, se não tivesse feito isso, infelizmente eu estaria em uma cela da Bastida ou coisa pior, e não estaria aqui falando com você.

Ela cerrou os lábios e as bochechas ganharam um toque de vermelho. - Devo ficar lisonjeada com isso?

Você ficou?

Não. - A resposta saiu rápida e sem rodeios. Sim, ela era excessivamente sincera. Nisso Ana era bem parecida com Kaitlin. Ela inclinou a cabeça ainda mais, cruzou os braços e apoiou o peso do corpo sobre uma perna. - Eu também suspeito que não estejamos conversando agora por acidente e que eu realmente não precisava me apresentar. Estou errada?

Ele pensou em uma mentira agradável, em inventar dezenas de desculpas possíveis para ter puxado conversa com ela, mas decidiu responder com a mesma honestidade. - Eu estava observando o a'téni ca'Cellibrecca e o archi­gos. Você pode imaginar como devo achar a conversa deles interessante, ou que eu queira saber com quem o a'téni ca'Cellibrecca esteja conversando, dado o que aconteceu em Brezno há poucos meses. E você também pode imaginar que eu presto atenção ao que ocorre dentro da Concénzia, e que eu saberia sobre você como conseqüência. Quanto a por que eu me apresentei a você... - Karl passou a mão no cabelo e deu de ombros debaixo do tecido verde. - Bem, não tenho muita certeza se sei a resposta. Deu vontade, sinceramente. Eu vi seu rosto enquanto falava com a vajica ca'Cellibrecca e pensei que talvez...

Ela ergueu uma sobrancelha quando ele hesitou. - Pensou que talvez pudesse me usar como uma maneira de se aproximar do archigos?

E ela sabe morder quando quer... Karl abriu bem os braços. - Se eu admitir isso, você ao menos irá admirar minha honestidade e continuará a falar comigo?

Falar com um numetodo, mesmo que ele seja o enviado de Paeti? - A resposta foi menos ríspida do que poderia ter sido.

Nós não somos todos monstros que fazem o leite azedar, comem crianças e jogam veneno nos poços da cidade. Poucos de nós na verdade fazem isso.

O mínimo sinal de um sorriso apareceu nos lábios de Ana. - E o que o resto de vocês faz?

Agora foi a vez de ele inclinar a cabeça e encará-la. - Nós procuramos explicações. - Ela não disse nada. Esperou em silêncio enquanto a gavota acabava e uma nova dança começava. Karl meteu a mão no bolso. - Você já esteve nos morros a leste da sua cidade? Segundo me disseram, lá, incrustado no alto dos penhascos e a dias do mar até mesmo via o mais rápido dos bar­cos, é possível encontrar conchas feitas de rocha. Aqui, veja... - Ele tirou a mão do bolso. Na palma estava uma concha fechada de marisco feita de pedra cinza-claro. - Nós temos dessas em Paeti também. Eu trouxe algumas comigo quando fui embora para me lembrar de casa. - Karl puxou o colar que usava debaixo do robe verde para que ela visse. — Nossas conchas de pedra têm um formato diferente das daqui, mas também são encontradas nas montanhas, longe do oceano, e elas são diferentes das conchas do nosso mar. Mas, olhe para ela... - Ele ofereceu a concha. - Ande. Pegue. Olhe para ela. Tem uma formação perfeita, tem pouca diferença daquela que poderia dar na praia. E, no entanto, não há mares nas montanhas, e rochas não vivem, não respiram e nem se reproduzem como fazem os mariscos.

Ana pegou a concha de pedra com os dedos, virou de frente para ela e passou a ponta dos dedos nos sulcos grossos da concha antes de devolvê-la. — Eu já vi essas conchas antes. O Toustour diz que a terra está viva e pulsa com energias. Essas energias são as mesmas que Cénzi usou para criar o mundo. A Última Admoestação do Toustour diz que o interior do mundo é cheio de "su­mos petrificantes, emanações úmidas, vapores subterrâneos". Todas as formas na rocha que imitam a vida são formadas por isso.

Por quê? - perguntou Karl. - Por que essas energias geram formas que parecem naturais?

Ela pestanejou ao ouvir a pergunta, abismada. - Por quê? Não existe a necessidade de um "por que", vajiki. Está escrito no Toustour. As razões de Cénzi não são para ser questionadas; elas são para ser aceitas.

Eu conheço um sábio, Stenonis é o nome dele, que mora em Wolhusen, Graubundi. Ele alega que essas conchas são incrivelmente antigas, que se formam quando as conchas são enterradas na areia e nos sedimentos do fundo do mar, e aí mais e mais camadas caem em cima delas até estarem enterradas bem fundo. Ele diz que as conchas são na verdade dissolvidas e o que você está segurando é uma impressão deixada para trás por elas: como o molde de um escultor, cheio de minerais dissolvidos na água, que são comprimidos com tanta pressão pelo solo e areia que viram pedra.

E aí as fadas da água que vivem no fundo do mar escavam a rocha e levam para o alto da montanha à noite quando ninguém está vendo?

Karl sorriu e riu. - Devo dizer que essa foi uma reação mais gentil do que geralmente recebo. Não, de acordo com a teoria de Stenonis, o topo das montanhas onde as rochas são encontradas foi um dia o fundo do mar. Eleva­ções no mundo levantaram a terra em alguns lugares e abaixaram em outros. E eu conheço a sua próxima objeção também: por que esse grande cataclismo não aparece em nenhuma de nossas histórias? Stenonis diz que o mundo tem incontáveis milhares de anos de idade e que essas elevações e depressões ocor­reram muito antes de qualquer pessoa estar lá para testemunhá-las.

Ela já estava balançando a cabeça, - Isso não é possível. Archigos Pellin I estudou o Toustour e determinou que Vucta criou o mundo entre 10 e 12 mil anos atrás. Você está dizendo que acredita nesse Stenonis e não no Toustour, que é a mensagem sagrada de Cénzi?

Karl deu de ombros. — Eu acho que existe uma elegância na teoria de Stenonis. Creio que muito do que atribuímos a Cénzi, Vucta e os moitidis tem mais... causas naturais.

Como o Ilmodo? - perguntou ela. - Ou seja lá como você chama.

Ele concordou com a cabeça. - O Scáth Cumhacht. Eu posso mostrar

para você, se a sua mente não estiver vedada com o que aprendeu com os ténis.

Acho que vou declinar do convite, enviado. Eu não sou facilmente enganada pelos truques de mágicos de rua. Minha fé é mais forte do que isso. — Ela afastou-se do enviado com um olhar de relance para trás, foi para o corrimão de mármore que separava a alcova do salão principal. Ana olhou para a fila de gente dançando que se formava e desfazia em nós na coreografia complicada da quadrilha. Quando retornou o olhar, Ana viu que o enviado estava apoiado no corrimão ao seu lado e que prestava mais atenção nela do que nas pessoas que dançavam. Os cantos dos lábios de Ana subiram in­conscientemente, os olhos ficaram arregalados e ela inclinou-se para a frente enquanto encarava.

Você quer dançar, o'téni? - perguntou Karl.

Com um numetodo? - Ela olhou para o enviado, mas o sorriso cresceu. - O que as pessoas diriam?

Elas diriam que você escolheu um parceiro acima de tudo desajeitado, mas que pelo menos encara os passos de dança com energia e entusiasmo. As pessoas diriam "ela deve estar com pena dele..."

Agora ela riu. - Com certeza não é tão ruim assim?

Ah, é muito, muito pior — ele falou e estendeu o braço para ela. — Posso demonstrar?

Karl pensou que ela aceitaria o braço, mas, em vez disso, Ana deu um passo para trás. - Eu ainda não tenho certeza de suas intenções, enviado.

Ele notou a incerteza que ainda permanecia na expressão de Ana e suspeitou que a preocupação ia além de suas intenções. Ela olhou em volta, como se procurasse pelo archigos.

No meu país, dizem que há verdade na música, que ninguém pode mentir enquanto dança. Faça suas perguntas na pista de dança, e eu responde­rei com a verdade. Pense na informação que você poderia levar para o archigos como resultado.

Isso trouxe um leve sorriso aos lábios de Ana. — Não acho que o archigos gostaria de ver uma de suas o'ténis dançando com o enviado numetodo.

Mas a própria kraljica me mandou um convite para esse Gschnas. Você está dizendo que ela cometeu um erro? - A jovem começou a balançar a ca­beça. Quando ela começou a falar, Karl levou um dedo aos lábios. — Não, não vou ouvir mais argumentos. Aqui está o acordo. Eu direi ao archigos que você estava tentando me converter, e como resultado eu agora me encontro muito tentado em abandonar meus costumes hereges. Isso deve lhe garantir a gratidão do archigos.

Tenho certeza de que conseguir sua conversão não seria tão fácil.

Como você vai saber se não tentar, o'téni? Ou essa resposta também está no Toustour?

Ela olhou em volta novamente, mas não viu o archigos em lugar algum. Ana riu, ainda que um pouco nervosa, e deu o braço ao enviado. Eles desce­ram a escada em direção aos dançarinos.

 

EM UM LADO do salão, uma macieira imensa parecia crescer saindo da parede, com suco espumante fluindo livremente das maçãs maduras nos ga­lhos para um pequeno laguinho pedregoso embaixo. Recepcionistas vestidos como esquilos distribuíam canecas para os convidados encherem na árvore. Sergei fez que não quando ofereceram uma caneca e passou as mãos nas folhas - a seda rígida era de um realismo maravilhoso, e ele perguntou-se quanto tempo foi preciso para costurar as milhares de folhas na árvore falsa. Sergei ergueu o olhar para um nó na raiz da árvore e acenou com a cabeça: ali, ele sabia, atrás da tela de tecido preto, um par de olhos observava o Gschnas com atenção a qualquer sinal de problema. Até agora a noite transcorria sem incidentes, mas com a kraljica e o a kralj prestes a fazer sua entrada, Sergei preferiu fazer uma varredura do salão por conta própria.

Ele usava uma máscara de falcão que escondia o nariz de prata, mas fora isso sua figura atlética estava apenas com um traje preto simples, e embora todas as armas de verdade fossem proibidas no salão, ele portava a própria espada na cintura.

Sergei andava com facilidade pela multidão, que costumava abrir caminho para o comandante de qualquer forma quando via o bico afiado do falcão e os olhos reluzentes por trás dele. Sergei cumprimentava com a cabeça os ca' e co' que adivinhavam sua identidade com um sorriso curto atrás da máscara, mas não parava para conversar. Ele viu o archigos e o aténi caCellibrecca conversando em uma das alcovas privativas e prosseguiu. Viu outros encon­tros mais íntimos nas sombras do salão e também passou por eles. Tinha feito quase o circuito completo do baile quando parou.

Havia algo de errado a respeito do sujeito: o jeito como ele olhava para a multidão; as pontas puídas da fantasia de bobo da corte que usava; o fato de sua capa não estar tão solta quanto deveria; o gesto predatório de esfregar as pontas dos dedos quando começou a ir na direção de um grupo de pessoas que conversavam perto da estátua ajoelhada de vidro que segurava os músicos. Sergei viu o homem parecer dar um encontrão acidental em um dos homens ali e pedir muitas desculpas antes de ir embora novamente.

Sergei aproximou-se por trás do bobo e falou - Estou impressionado.

O homem virou-se assustado. Ele parecia que ia correr, mas Sergei fez que não com um dedo na cara do homem. O bobo da corte olhou para o dedo como se estivesse paralisado. — Você tem um toque muito suave - disse Sergei para o homem. — O chevaritt ca'Nephri nunca notou, mas eu notei.

Espere... - O homem parou e lambeu os lábios. O corpo ficou tenso como se fosse disparar. - Do que está falando, vajiki?

Estou falando da carteira do chevaritt ca'Nephri que agora está aí - disse Sergei ao apontar para a capa do sujeito. - E eu não tentaria correr. Olhe em volta. Viu os três homens em máscaras de falcão que se aproximam de nós? - O homem olhou para a multidão, boquiaberto. — Sim, notei que viu. Se vier quietinho, vai ser melhor para você. Se fizer uma cena e perturbar a festança, bem, eu ficaria muito... irritado. E faria questão de diminuir a minha irritação lá na Bastida.

O homem deixou cair os ombros. - Vajiki, por favor... Tudo o que eu queria era um pouco de dinheiro para a minha família. Para comprar comida. As crianças...

Tenho certeza de que seus motivos são puros - falou Sergei baixinho, quase com compaixão. — Mas a lei também é clara. Levem-no — disse para os guardas que chegaram. - A carteira do chevaritt ca'Nephri está no forro da capa. Por favor, garantam a devolução imediata para ele. O chevaritt é um bom amigo do a'kralj, afinal de contas. Vocês encontrarão outras carteiras também; guardem até que consigam localizar os donos.

Dito isso, Sergei virou-se enquanto o homem era conduzido discretamente pelo salão. Ele permitiu-se um sorrisinho ao olhar novamente para o ambiente. A orquestra estava tocando a Dança dos Toneleiros, uma de suas músicas prediletas de Darkmavis, e ele olhou um pouco para as pessoas que dançavam. Um casal, que chegou depois à pista, chamou sua atenção. Um dos dois estava vestido como um jovem elegante, mas era ob­viamente uma mulher; o outro, vestido como um téni... o modo de andar, a postura eram familiares. Sergei foi devagar pela lateral da pista de dança na direção do casal, observando. A atenção que os dois estavam dando um para o outro era uma dança mais sutil e sensual do que aquela que estavam dançando. Ele riu baixinho pelo nariz de prata ao perceber quem estava usando o robe de téni.

O sujeito com certeza era atrevido. Ele admirava isso em um inimigo.

Quando a dança terminou e os dois pararam no limite da pista, Sergei foi até eles.

Está cuidando da sua planta, enviado? - perguntou para o téni. - Já floresceu?

Ele esperava uma reação maior, mas o homem apenas sorriu. — Comandante. Como você pode ver, eu descobri uma flor por conta própria. - O enviado indicou a mulher ao lado dele. - O'téni Ana co'Seranta, esse é o co­mandante Sergei ca'Rudka, cujo nome tenho certeza de que já ouviu.

Você me deixa lisonjeado, enviado ci'Vliomani - falou Sergei sorrindo com educação. Ele fez uma mesura e o sinal de Cénzi para a mulher, que não parava de olhar de um sujeito para o outro. - O'téni, eu não creio que tenha­mos nos conhecido formalmente, mas eu certamente sei quem é. Parece que você é a protetora do archigos tanto quanto eu sou o protetor da kraljica.

O archigos não precisa da minha proteção, infelizmente - respondeu a o'téni. - Ele é bem capaz de se proteger sozinho.

Sergei fez que sim. - Espero que a casa de sua família tenha sido consertada de maneira satisfatória, o'téni. Um infeliz acidente. Foi uma sorte que ninguém tenha se ferido gravemente.

O sorriso educado ficou congelado nos lábios de Ana. Sergei viu o olhar estranho que ci'Vliomani deu para ela. - Sim, tenho certeza de que meu vatarh concordaria com você, comandante.

Eu não me preocuparia tanto com isso, o'téni - disse Sergei. — Erros acontecem; o importante é aprender com eles e não os repetir. - O coman­dante desviou o olhar dela para ci'Vliomani. - Enviado, espero que não esteja aqui para cometer um erro também.

Estou aqui para me divertir, comandante, como todo mundo. E para ter uma chance de ver a kraljica, que me convidou.

Ah, a kraljica. Tenho certeza de que você sabe que o tempo dela é extremamente limitado e que sua agenda para a noite de hoje já está fechada. Eu odiaria ter que... retirar alguém que tentasse se aproximar dela sem sua permissão expressa.

Você se preocupa demais, comandante. Tenho certeza de que a o'téni co'Seranta me impediria se eu tentasse fazer qualquer coisa que me expusesse ao ridículo.

Sergei deu um pequeno sorriso. - No entanto ela não lhe impediu de dançar, vajiki.

O numetodo fez uma expressão exagerada de ofensa e colocou a mão sobre o peito. - Comandante, você me magoa profundamente. Ora, nós da Ilha de Paeti somos conhecidos por nossa graça e forma, como tenho certeza que sabe. Se eu errei um passo ou dois, foi porque os músicos não sabiam tocar direito.

Tenho certeza de que foi por isso — respondeu Sergei. Ele fez uma mesura e o sinal de Cénzi mais uma vez. — O'téni, foi um prazer lhe conhecer. Agora entendo por que o archigos e a kraljica ficaram impressionados com você. Mas, se me dão licença, tenho deveres a cumprir.

Ele fez uma mesura novamente e foi embora. Após três passos, levou a mão ao queixo para coçá-lo debaixo da máscara de falcão. Essa situação mere­cia ser observada. Co'Seranta já demonstrara ser tão poderosa quanto instável, e se o archigos confiava nela, Sergei não diria o mesmo, especialmente se, como ele suspeitava, ela fosse vulnerável a um romance. O numetodo não consideraria indigno tirar vantagem disso.

Sim. Sergei observaria. E esperaria.

Aí, na hora certa, ele arremeteria como um falcão e atacaria.

Comandante? - Um dos jovens assistentes de Renard veio correndo até ele. - A kraljica está perguntando se está tudo pronto.

O quadro está no lugar para a apresentação? - O rapaz concordou com a cabeça. - Então, sim - disse Sergei para o pajem. - Você pode dizer a Renard que estamos prontos.

O rapaz foi embora correndo enquanto Sergei andou sem pressa até seu posto perto da escadaria dos aposentos internos. Quando chegou lá, as trombetas tocaram uma fanfarra.

 

DHOSTI LEVOU MUITO TEMPO para se livrar de caCellibrecca. Eles duelaram verbalmente e usaram os mesmos argumentos antigos e as mesmas respostas cansadas. Dhosti suspeitava que ambos podiam ter escri­to a discussão com antecedência e não teriam perdido nada de importan­te. Ca'Cellibrecca não parou de tagarelar sobre o Toustour e a Divolonté, e como a Fé não deveria tolerar dissidências, e como a "leniência" do archigos estava destruindo as bases da fé concénziana. Dhosti parou de ouvir depois das primeiras frases, as costas doíam por ficar de pé durante tanto tempo, e caCellibrecca foi embora com as imprecações e ameaças pouco veladas de sempre.

E agora ele voltou para descobrir Ana dançando com ci'Vliomani. O archigos torceu que ca'Cellibrecca não tivesse visto, mas estava certo de que mesmo que o aténi tivesse deixado de ver, a notícia chegaria a ele muito rapi­damente. Dhosti franziu a testa e apertou o corrimão da alcova com os dedos: o comandante parou para falar com Ana e o numetodo. Você não pode estar com ela o tempo todo, e ela precisa fazer as próprias escolhas. No fim das contas, é tudo a vontade de Cénzi. Ele teria que casá-la em breve, decidiu. Isso curaria Ana de qualquer idealismo romântico. Assim como a kraljica, o archigos sabia que o casamento podia ser uma arma tão poderosa quanto qualquer espada, caso fosse cuidadosamente arranjado, e suspeitava que Ana podia ser uma espada extremamente poderosa.

Todo apoiado na bengala, Dhosti foi até a escadaria, cumprimentou os ca' e co' ao passar, trocou algumas palavras com aqueles que conheciam de nome e rosto. Levou vários minutos para chegar ao salão principal. Ele viu

Ana e ci'Vliomani tendo uma animada discussão. - Venha - ele disse para Ana e deu um olhar ríspido para ci'Vliomani. - Temos que estar na escadaria para a entrada da kraljica. Enviado, se nos dá licença...

Ana olhou de relance para ci'Vliomani quando Dhosti pegou seu braço, mas seguiu o archigos. Eles mal chegaram à escadaria - o comandante acenou com a cabeça para eles do lado oposto - quando uma fanfarra estremeceu as paredes do salão. Uma revoada de pombas brancas saiu subitamente dos balcões em uma agitação de asas delicadas enquanto pedaços picados de papel brilhante caíram como uma chuva lenta. Todas as velas do Homem Ajoelha­do foram apagadas ao mesmo tempo, seguidas por todas as luzes mágicas em todo o salão. O único ponto de iluminação estava no topo da escada princi­pal. Ali havia uma aparição.

Ela parecia estar vestida completamente de luz: vermelhos e laranjas intensos e um azul-marinho reluzente giravam em sua volta como um redemoi­nho de cores que tapava todo o corpo, a não ser o rosto. E o rosto... Era a kraljica, sim, Dhosti sabia, mas era a kraljica transformada. Cada fio do cabelo branco era um sol, e a luz parecia irradiar de dentro dela. Os olhos ardiam.

A kraljica ergueu as mãos e raios do mais puro amarelo dispararam das pontas dos dedos. A multidão murmurou em aprovação e irrompeu em aplausos.

Dhosti ouviu os sussurros delicados dos tênis escondidos no topo das escadas enquanto eles entoavam e soltavam o espetáculo de luzes, mas isso não foi ouvido pela multidão mais afastada.

Então as luzes voltaram, os músicos recomeçaram a tocar e a kraljica desceu a escada. A roupa brilhava, mais suave agora, porém difícil de olhar diretamente - era como se ela estivesse vestida como um rápido vislumbre: quando Dhosti tentou capturar uma imagem, ela ficou borrada e sumiu. O cabelo ainda reluzia, porém mais suavemente agora, como as estrelas na noite. Os olhos brilhavam como os de um gato ao refletir a luz de uma lareira.

Dhosti pegou as mãos dela, que eram simplesmente as velhas mãos da kraljica. Ele olhou para o rosto de Marguerite e viu o cansaço e as rugas pro­fundas. — Kraljica, você está magnífica. Sua entrada será o assunto da noite. Nessântico nunca viu nada igual. Foi como se Vucta andasse novamente na terra, da mesma maneira como eu A imaginei.

Seus tênis fizeram todo o trabalho — falou a kraljica. - Obrigada por mandá-los para mim. - A voz tremeu, tão suave que Dhosti teve que se in­clinar para a frente a fim de ouvir. - Dhosti, estou tão cansada. Diga para a o'téni Ana que eu gostaria de pegar seu braço e apoiar-me nela, se a o'téni não se importar. - Então, por um momento, a antiga voz voltou. - Além disso, ter Ana como acompanhante mandaria uma mensagem para o a'téni ca'Cellibrecca, não é?

Dhosti sorriu ao ouvir isso. — Certamente, kraljica. Ana... - O archigos gesticulou para que ela viesse à frente. - A kraljica não está se sentindo bem - ele sussurrou para Ana. - Ela precisa do seu braço.

Ana olhou de relance para a kraljica com preocupação, curvou a cabeça para dar o sinal e depois foi para o lado dela. - Eu ficaria honrada, kraljica. - O braço da jovem reluziu ao entrar em contato com os redemoinhos de luz em volta da kraljica, e Ana fez uma careta. - O Ilmodo está um pouco frio — disse ela alto.

Está gelado demais - respondeu a kraljica. - Meu sangue virou gelo. Mas, ande, vamos fazer o que é preciso para eu poder voltar aos meus apo­sentos. Temos que prosseguir para que Justi possa ser anunciado. - Dito isso, a kraljica deu um sorriso ensaiado aos presentes mais próximos e entrou na multidão, com o comandante à esquerda e Dhosti à direita, logo atrás dela.

Kraljica, que Gschnas magnífico...

... o melhor que eu vi na vida...

... que tributo maravilhoso para o seu jubileu...

Enquanto a kraljica acenava com a mão, cumprimentava com a cabeça e sorria para os bajuladores os entre os ca' e co' reunidos à sua volta, Dhosti aproximou-se do comandante. — A kraljica não me parece bem, Sergei. Ape­nas nestes últimos dias...

Eu compartilho de sua preocupação, archigos. Renard tem falado com os assistentes e enfermeiros da kraljica; todos dizem a mesma coisa. - O co­mandante franziu a testa acima da máscara de falcão. Ele não olhou para o archigos, mas sim para a multidão da elite espremida em volta da kraljica e Ana. - Na idade dela, nunca se sabe, mas este declínio repentino... Eu consi­derei a possibilidade de veneno.

É possível?

Sergei deu de ombros. - Não sei ainda. Mas saberei. - O comandante quase sorriu ao dizer isso, uma expressão que provocou um arrepio em Dhos­ti como se tivesse soprado neve na espinha. - Renard tentou convencê-la a não descer hoje à noite, para que deixasse o a'kralj representá-la, mas ela se recusou.

Isso, pelo menos, não mudou — disse Dhosti. Ele viu o aténi ca'Cellibrecca ir na direção da kraljica com sua filha e o genro a tiracolo. Atrás deles, as trombetas tocaram a fanfarra novamente, e todos voltaram-se para a escadaria a fim de ver o a'kralj fazer sua entrada. Ele seguiu o exemplo da kraljica e estava vestido como uma figura mitológica do Toustour: Misfal, o primeiro dos moitidis a quem Cénzi deu vida com um sopro. A fantasia do a'kralj foi escolhida perfeitamente para sua figura atlética: um colete e calças de couro justo e escuro; uma camisa pintada com veias de mármore; uma reluzente máscara espelhada e cravejada com pedraria; e uma capa que ia até o chão que, assim como a roupa da kraljica, estava viva com uma cor azul pra­teada, como se caísse uma cascata das costas. Ao chegar ali, o a'kralj começou a se erguer lentamente no ar enquanto nuvens brancas saíam do chão embaixo dele, que depois desceram em grande quantidade pelos degraus. O a'kralj per­maneceu suspenso, as mãos ergueram-se como se desse uma bênção antes de ele descer lentamente para o chão outra vez.

Sua exibição foi recebida por um aplauso entusiasmado, ainda que mais curto que aquele dado à kraljica.

Assim que o a'kralj desceu a escada, a kraljica, como era de costume, foi cumprimentá-lo, ainda apoiada no braço de Ana. O a'kralj, ao pé da escada, fez uma mesura e o sinal de Cénzi para Dhosti, que devolveu o gesto. Depois o archigos viu a kraljica pegar a mão do filho e colocar a outra mão dele sobre a de Ana. A voz de Marguerite saiu fraca demais, e o archigos não conseguiu escutá-la quando se inclinou na direção do filho, mas ele presumiu que a kraljica estivesse apresentando Ana para o a'kralj, e isso fez com que Dhosti suspeitasse que a insistência em ser auxiliada por Ana não fosse totalmente acidental. Ele não tinha certeza do que achava a respeito dessa situação; sabia que isso certamente não agradaria sua sobrinha Safina, que geralmente era mencionada como uma possível esposa para Justi. Safina, porém, já demons­trou que não herdou a habilidade de Dhosti com o Ilmodo; ele duvidava que a sobrinha um dia iria além de seu status atual como e'téni, e isso tornava Safina um par menos que adequado para o a'kralj.

Justi acenou com a cabeça para a matarh, deu seu sorriso radiante e perfeito e afastou-se. Passou pela multidão e foi diretamente para o aténi ca'Cellibrecca, sua filha e o genro, e ali começou uma animada conversa.

O a'kralj não revela seus planos - disse Sergei ao lado de Dhosti. - Nem seus romances. — Sergei apontou com o queixo para Francesca, cuja mão passou delicadamente pelo braço do a'kralj. Foi a intimidade do gesto que chamou a atenção de Dhosti; o archigos percebeu que isso também atraiu a atenção de Estraven, que fechou a cara acima da borda da saia.

É sério? - sussurrou Dhosti para Sergei.

O comandante fez que sim.

A kraljica sabe?

Acho que ela suspeita. Mas não por minha causa.

Achei que fazia parte de seu trabalho passar informações à kraljica que ela precisa saber.

O comandante sorriu. - O meu trabalho é saber o máximo possível sobre tudo que acontece aqui na cidade, archigos. E é meu trabalho passar infor­mações à kraljica que exigem ação da parte dela ou que a prejudicariam. Eu sei bem mais do que conto para a kraljica. - Ele encarou o olhar de Dhosti. - Bem mais. Mas mantenho em segredo até a hora apropriada. Ou informo outros que possam saber, melhor do que eu, qual seria a hora apropriada. Creio que me entendeu.

Dhosti concordou com a cabeça. — Levarei isso em consideração.

-Tenho certeza que sim - respondeu Sergei. - Especialmente se a kraljica ou você têm a intenção de casar a igreja com o Estado.

 

FOI O APLAUSO que pareceu erguê-lo em vez dos cânticos dos tênis escondidos atrás dele. A aclamação dos ca' e co' abafou o cântico, e Justi fe­chou os olhos ao abrir bem os braços. Ele ficou parado no ar morno, suspenso pelas palmas. Rápido demais, porém, Justi estava de volta ao patamar da esca­daria e desceu os degraus devagar na direção da mutidão.

Em breve, quando ele fosse ao encontro dos ca' e co', Justi seria o kraljiki, e o aplauso e a atenção seriam só seus. Não teria que dividi-los com sua matarh. Mas, por enquanto, ele tinha que sorrir, tinha que se curvar para o anão que, sem perceber, estava provavelmente vivendo seus últimos dias como archigos; tinha que dar a mão à matarh em súplica: sorrindo, sempre sorrindo, mesmo quando olhou intrigado para o jovem - não, era uma moça, ele perce­beu subitamente - que estava de braço dado com a kraljica.

A mulher estava apoiando sua matarh, ele notou de repente. Justi quase sorriu.

A matarh agarrou sua mão. A dela estava fria e tremendo, a pele tinha manchas e rugas. Ela pegou a outra mão de Justi e colocou sobre a da moça. - Justi - falou sua matarh. — Essa é a o'téni Ana co'Seranta... você sabe, quem salvou o archigos do assassino numetodo. - A voz tremeu e estava tão fraca que Justi mal conseguiu escutar. Ela parecia realmente velha hoje. Parecia doente.

- Então essa é a o'téni que eu ouvi falar tanto — disse Justi. - É um prazer lhe conhecer.

Ela não conseguiu dar a reverência completa que a etiqueta mandava por estar no braço da kraljica, mas abaixou a cabeça e murmurou, mais para o chão do que para ele - Obrigada, akralj. Sua fantasia... foi bem impressionante.

Ele acenou rapidamente com a cabeça e ignorou o elogio. - Matarh, a senhora deveria estar aqui fora? Se quiser se recolher, eu terei o maior prazer em...

Não. — Por um momento, a voz retomou o tom ríspido e autoritário de sempre. — Eu estou bem. Estava pensando, Justi, que você e a o'téni Ana deveriam dançar mais tarde.

Tenho certeza de que podemos arrumar tempo para isso, matarh - respondeu ele. Então é essa que você escolheu, matarh?, ele queria perguntar. A senhora pelo menos podia ter escolhido alguém menos comum. — Mas, se me der licença por um instante...

A matarh arregalou os olhos diante da brusquidão do filho, mas ele foi embora rapidamente antes que ela se recuperasse e fizesse um comentário. Justi tinha visto Francesca de relance na multidão, parada ao lado do vatarh, e foi em sua direção. - A'téni ca'Cellibrecca - falou ele ao receber a reverência do homem mais velho. — É bom ver você novamente, e tenho que dizer que a simplicidade de sua fantasia é animadora. - Justi fez um gesto de tristeza para a própria fantasia. — Sinto-me um pouco... chamativo.

O akralj sempre chama a atenção, como deve ser - respondeu ca' Cellibrecca. - Ele fez uma pausa e olhou enfaticamente na direção da kral­jica e do archigos. - O senhor já conhece minha filha e seu marido...

Sim, é claro. Vajica, u'téni, como vocês dois estão na noite de hoje? - Ele mal conseguiu esconder que estava se divertindo ao ver o marido de Francesca, cujas bochechas, que já estavam vermelhas de ruge, ficaram ainda mais rubras na barra daquela ridícula fantasia. Justi sabia que a roupa tinha sido escolhida por Francesca para Estraven; ela riu a respeito disso na última vez em que esteve com ele. O a'kralj imaginou o quanto o homem sabia ou suspeitava; não que isso importasse. Ca'Cellibrecca já tinha prometido que o casamento seria anulado assim que ele se tornasse archigos e que o u'téni Estraven seria acalmado com outra esposa: Allesandra, a filha do hirzg de Firenzcia, foi mencionada. Justi pegou a mão de Francesca. - Você deixa as outras mulheres aqui envergonhadas, vajica. Elas não têm chance de competir. - Francesca manteve o olhar nele enquanto sorria.

O senhor me honra, a kralj - murmurou ela.

A'kralj - disse o a'téni ca'Cellibrecca —, nós precisamos conversar depois. Eu tenho algumas novidades que queria contar para o senhor. Talvez depois da revelação do quadro da kraljica?

Justi sorriu ao ouvir isso. Após a revelação, pode não haver necessidade de conversa. - Seria um prazer, a'téni. - Ele olhou para cima, onde uma estrela parecia descer do teto, em meio a uma nova fanfarra de cromornos e trombetas. Um espaço foi aberto debaixo da claridade que descia e criados correram adiante com cadeiras. Justi notou que o archigos e sua matarh estavam se sen­tando, e um dos assistentes de Renard veio decidido em sua direção. - Se me dá licença, a'téni. É dever do a'kralj estar submisso ao lado da kraljica nestes momentos, infelizmente.

Ca'Cellibrecca fez uma mesura levemente, e Justi soltou a mão de Francesca após apertar gentilmente para que ela sorrisse. O a'kralj foi rapidamente para o centro do saguão, onde a estrela pulsava e irradiava tão intensamen­te que ele teve que proteger os olhos. Renard, que estava ao lado da oténi co'Seranta, logo atrás do espaldar alto da cadeira da kraljica, gesticulou para o assento vago à direita, com o espaldar apenas ligeiramente menor que o da kraljica ou do archigos. A estrela lançou sombras frenéticas atrás dos espec­tadores. Assim que Justi sentou-se, ela brilhou com as cores do estandarte de Nessântico e alternou tons de azul e dourado. Depois a estrela foi apagada, a multidão perdeu o fôlego e pestanejou para tentar ajustar a visão diante do que parecia o cair repentino da noite. Justi fechou os próprios olhos, e ima­gens persistentes roxas e amarelas correram umas atrás das outras por dentro das pálpebras. Quando o a kralj abriu os olhos novamente, havia um retângulo alto coberto por um pano negro diante da platéia, iluminado pelo brilho branco de lâmpadas mágicas perto dele.

Onde está aquele maldito pintor? - Justi escutou Renard sussurrar rispidamente atrás de seu assento. - Ele deveria estar aqui... - Ele ouviu um assistente ir embora. Justi sorriu por dentro. A multidão começava a murmu­rar, inquieta, enquanto a pintura coberta permanecia sem ser revelada.

Matarh... - falou Justi ao se inclinar na direção dela. - Acho que o vajiki ci'Recroix sofre de uma modéstia súbita em relação à sua habilidade como pintor. Talvez a o'téni co'Seranta pudesse assumir a tarefa... - Justi olhou de relance para a jovem e sorriu.

Sim. Ana, se pudesse...

A o'téni fez uma mesura. Justi ouviu a jovem tomar um longo e nervoso fôlego ao passar por entre as cadeiras e entrar na claridade. Ela foi até o quadro coberto, fez uma mesura e o sinal de Cénzi para o trio sentado e depois puxou o pano de seda da pintura.

A multidão respirou fundo em massa. Até mesmo Justi viu-se tomando fôlego. O quadro...

Era magnífico. Não havia outra palavra para ele. O pincel de ci'Recroix registrou a kraljica como se ela estivesse se virando na direção do observador. A figura sentada no Trono do Sol foi retratada em escala maior do que a real. O contraste era claro-escuro, as feições da kraljica eram iluminadas pelo lado, cada fio de cabelo e cada dobra no rosto estavam visíveis. A boca estava ligei­ramente aberta e uma mão erguia-se do colo como se ela estivesse chamando alguém ou prestes a falar com a pessoa.

A pintura quase parecia se mexer, tão natural e realista que Justi por pou­co não acreditou que sua matarh sairia da moldura do quadro para o chão de ladrilhos do salão.

O aplauso começou tímido, então rapidamente virou uma onda gigantesca de apreciação que varreu o salão, ensurdecedor e estupendo. As pessoas chegaram à frente e espremeram-se a fim de ver melhor...

E a kraljica, ao lado de Justi, soltou um grito abafado.

 

MATARH, acho que o vajiki ci'Recroix sofre de uma modéstia súbita em relação à sua habilidade como pintor. Talvez a o'téni co'Seranta pudesse assumir a tarefa... - O akralj olhou para trás da cadeira em direção a ela e sor­riu. Foi um sorriso radiante e artificial, sem calor humano algum. Ana viu-se recuando ao vê-lo.

Sim. Ana, se pudesse - ela ouviu a kraljica dizer e queria recusar, mas aí o archigos fez que sim com um olhar solene. Ana obrigou-se a fazer uma mesura ao concordar. Ela percebeu os olhares da multidão enquanto entrava no foco de luz brilhante em volta do quadro. A respiração ficou presa na gar­ganta; ela pensou que iria desmaiar, mas fez um esforço para respirar fundo. Viu o enviado ci'Vliomani bem atrás da kraljica, do archigos e do a'kralj, no corrimão do patamar no fundo do salão. Ele ergueu uma mão para ela e sa­cudiu a cabeça. Ana ficou pensando nisso enquanto fazia a reverência que a etiqueta exigia. Ela colocou a mão no pano macio que cobria a tela.

Ana deu um puxão, e o pano caiu como uma sombra negra. Ela prendeu um gritinho. Podia ter jurado que viu a figura debaixo do pano se mexer na­quele momento, como se a figura tivesse ficado assustada com o movimento súbito, como se os olhos tivessem encarado os seus por um instante antes de se voltarem para as três pessoas sentadas diante do quadro.

Ana ouviu a multidão prender um grito ao mesmo tempo... e sentiu... sentiu...

Ana não tinha certeza do que era. A sensação era como se um rio no inverno corresse por ela enquanto permanecia parada ao lado do quadro, um rio que fluía da kraljica em sua cadeira para a direção do próprio quadro, um frio tão intenso que ardia, e as águas invisíveis soltavam um lamento tão alto que era a voz da própria kraljica.

Ana viu a kraljica começar a se levantar da cadeira com o rosto atormentado e aterrorizado, e aí subitamente desmoronou e caiu para a frente. A cabeça fez um terrível som oco ao bater nos ladrilhos. O vestido, ainda vivo com a iluminação dos tênis, esparramou-se em volta dela.

Por um momento, tudo ficou paralisado em uma cena. Ana conseguiu ver todo mundo: o a'kralj, imóvel exceto pela cabeça voltada para a sua ma­tarh; o archigos se projetando da cadeira com os pés pequeninos balançando; Renard, atrás da cadeira da kraljica, com a mão esticada para ela, impotente e atrasado demais; o rosto severo e assustador do comandante, que olhava a multidão como se procurasse por alguém; o enviado ci'Vliomani, perto do fundo da multidão, que virou o rosto. Então tudo voltou a se mexer. Renard empurrou o trono para o lado e correu na direção da kraljica, enquanto o a'kralj ficava de joelhos ao lado dela; o archigos saiu da cadeira com um cân­tico nos lábios; o comandante sacou a espada enquanto a multidão avançava; Karl ci'Vliomani sumiu no mar de movimento.

Ana afastou-se correndo do quadro e aninhou-se perto da kraljica.

Para trás! - Ela ouviu o comandante gritar. - Todo mundo para trás! - Mas eles continuavam vindo para a frente, atraídos pela comoção, e o archigos ergueu a mão, ainda entoando. Ana sentiu a onda de poder emanar do anão, uma tremulação de ar que passou por ela sem tocá-la, mas que se solidificou em uma parede que empurrou e conteve a multidão.

O a'kralj ergueu sua matarh nos braços; Ana notou que ela respirava, que arfou ao ser levantada e sentiu um alívio. Ela não está morta. - Renard! - ber­rou o a'kralj. - Chame o curandeiro. Leve-o aos aposentos da kraljica. Agora! — Renard fez uma mesura e foi embora correndo. - Archigos...

Eu abrirei caminho - falou o archigos, e Ana sentiu a parede invisível se mexer. Um caminho começou a ser aberto diante deles. Ela ouviu o coman­dante gritar ordens para sua equipe, e o barulho da multidão foi ensurdece­dor. - Ana, venha conosco.

Ana seguiu o archigos, que ia na frente do a'kralj. Eles saíram rapidamente do salão por uma porta lateral e um corredor que levava a outra porta. Os criados corriam na frente deles. A porta foi aberta para uma escada, e eles subiram rapidamente dois lances. Ana viu-se finalmente nos corredores dos aposentos particulares da kraljica. Mais criados apareceram para abrir portas e conduzi-los ao quarto da kraljica, que foi pousada na cama pelo a'kralj. — Matarh - disse ele -, pode me ouvir?

Um leve aceno de cabeça. Os olhos da kraljica abriram-se e mostraram mais a parte branca cheia de veias vermelhas. - Eu senti... meu coração sendo arrancado... a cabeça explodindo... - A voz era um sussurro, praticamente inaudível. - Tão cansada...

Onde está aquele curandeiro? - falou o akralj em voz alta e com o rosto vermelho. Ele foi até a porta. - Renard! — berrou.

Akralj - disse o archigos com uma voz cansada e trêmula. Justi deu meia-volta com os olhos brilhando. — O comandante precisa de você lá em­baixo para acalmar os convidados.

O akralj olhou para a cama. - Se minha matarh estiver em perigo...

Ela está descansando agora — falou o archigos em tom confortador. — Você tem um dever a cumprir. Os ca' e co' estão alvoroçados e precisam de sua liderança neste momento. Sua matarh precisa disso.

Ana viu o akralj cerrar os lábios. O rubor no rosto diminuiu, embora o olhar se mantivesse na cama. — Sim - disse ele. — Mas...

Deixe-me cuidar dela - falou o archigos. - Nós cuidaremos disso. Não há nada que você possa fazer aqui, mas lá embaixo, sim. O comandante pre­cisará de ordens suas como o a'kralj e como o kraljiki em exercício enquanto a kraljica permanecer incapacitada. Eu mandarei lhe chamar imediatamente se houver alguma mudança aqui.

O a'kralj concordou com a cabeça. Ele correu para a porta. O archi­gos olhou para os criados presentes no quarto que pegavam roupas de cama, serviam água e reacendiam o fogo na lareira. Um e'téni da equipe palaciana entoou um cântico para acender uma lâmpada, outro fez circular as pás de um ventilador para afastar o ar viciado. — Deixem-nos - disse o archigos para todos eles. - Agora. - Eles fizeram uma mesura, saíram correndo do quarto e fecharam a porta.

O archigos olhava fixamente para a figura imóvel na cama, para o peito frágil que subia e descia devagar.

Archigos - falou Ana. O homem olhou para ela com uma expressão se­vera que a assustou. - Quando o quadro foi descoberto, eu senti uma coisa...

Não temos tempo para isso - disse o archigos. - Renard pode vir aqui ou o a kralj pode voltar. Venha aqui, Ana. Fique ao lado da cama.

Ana sabia o que ele queria dela. - Archigos, eu não deveria... A Divolonté...

Eu comando a Concénzia, criança, e sei o que a Divolonté diz e sei que foi escrita pelos a'ténis e não pelo próprio Cénzi. Eu também acredito que Cénzi não distribui dons para as pessoas sem necessidade. Agora, faça o possível por ela e faça rápido. Vamos, estamos sozinhos aqui.

Ana aproximou-se da cama. Ela olhou para kraljica, tão pálida na fantasia resplandescente. Ela parecia praticamente morta agora, a respiração tão fraca que mal movia o peito, o rosto encovado. - Você sabe o que fazer - falou o archigos. - Reze para Cénzi, Ana.

Ela rezou. Ana tomou um longo e trêmulo fôlego. Fechou os olhos e pegou uma das mãos da kraljica. O cântico veio até ela espontaneamente, surgiu de um lugar que Ana imaginou como o centro de sua fé, bem dentro de si. Os lábios moveram-se com as palavras que moldavam o poder que emergia com elas, o Ilmodo. Suas mãos levantaram a da kraljica e moldaram o poder crescente. Ela formou o Ilmodo de maneira que saísse do coração e se acumulasse nas mãos, e dali fosse transferido para a kraljica. Era quente esse poder, como um sol líquido, e quando tocou a velha na cama, Ana tam­bém viu-se presa na mente da kraljica. Ela conseguiu ouvi-la gritar e chorar na escuridão interior. Ana deixou que mais Ilmodo saísse dela para entrar na kraljica...

... mas não foi como antes. Naquela ocasião, o Ilmodo preencheu a matarh de Ana como se ela fosse um recipiente vazio, se moveu pelo corpo como se fosse sangue. O corpo dela conteve o Ilmodo como uma taça e ficou fortalecido.

Mas não foi o que aconteceu com a kraljica. O Ilmodo entrou e saiu da mulher como se fosse uma tigela furada, e Ana sentiu a força vital da kraljica escorrer pelo mesmo buraco e ser drenada. O fluxo era irresistível; Ana viu-se caindo com ele, sem ter sido convidada, levada pela onda de espumas brancas que entrava e saía da kraljica - e ela sabia para onde estava sendo levada en­quanto lutava para se segurar. O Ilmodo estava sendo arrancado de Ana até o salão lá embaixo, onde estava o quadro. O feitiço dentro da pintura sugava vorazmente, arranhava Ana, arrancava a energia do Ilmodo. Ela lutou contra o encantamento, recuou e concentrou-se na kraljica, na conexão que a prendia ao quadro. Ana lutou para controlar o Ilmodo, para usá-lo para fechar e selar o rasgo no espírito da kraljica. A resistência foi terrível, era como se ela estivesse lutando fisicamente com alguém, alguém que era facilmente tão forte quanto ela e determinado a vencê-la.

Ana arfou. Sentiu como se estivesse berrando seu cântico dentro de um vendaval, mas, por um momento, achou que estava vencendo. Seu Ilmodo brilhou, e ela conseguiu ouvir a voz da kraljica — Estou aqui, Ana... Sinto você... - Mas aí ela foi atirada para o lado antes que pudesse alcançar aquela voz. Atirada para o lado e para fora.

Ela estava de volta à sala, segurando a mão da kraljica. O cabelo estava molhado de suor; ela ofegava como se tivesse corrido do Templo do Archigos até aqui. Sentia o cansaço aumentar, o preço do feitiço.

Archigos...

Eu sei. Eu senti. O Ilmodo se mexendo.

Ana fez que sim. - A kraljica... E o quadro que está matando a kraljica. Acho que esse tal de ci'Recroix de alguma forma... - Ela não conseguiu com­pletar o raciocínio enquanto o archigos concordava com a cabeça.

Suspeito que descobriremos que o vajiki ci'Recroix deixou a cidade com pressa - disse ele.

Eu já deveria saber, archigos - falou Ana. Ela fez um esforço para ficar acordada contra a compulsão de ceder à exaustão. - Quando estivemos aqui pela última vez, eu olhei o quadro. Pensei ter sentido algo parecido com um feitiço téni dentro dele, mas achei que fosse a maneira como o pintor retratava tão fielmente as figuras. Pensei que fosse uma coisa que ele fazia inconsciente­mente, sem sequer saber que estava fazendo, como eu curava dores de cabeça quando era criança. Eu devia ter lhe contado. Se tivesse, talvez... - Ela parou com a mão sobre a boca. - Eu diminuí o processo, mas não acho que consiga curá-la. Deve haver outra pessoa, outra maneira qualquer...

Duvido — respondeu o archigos, que se remexeu e começou a ir até a porta com a mortalha esvoaçante. - Vou chamar o comandante e mandar que pegue o quadro para trazê-lo aqui. Se o queimarmos, talvez...

Não! - interrompeu Ana. Ela ficou ofegante com o esforço do grito, o cansaço dizia para sucumbir. - Ela está presa ao quadro. Se o senhor destruir a pintura, vai destruir a kraljica também.

Tem certeza disso, Ana?

Ana fez que não. O fôlego saiu assobiando dos pulmões. - Não posso ter certeza, mas senti a conexão. Já existe muito da kraljica preso ao quadro. Se cortar a ligação entre ela e a pintura, a kraljica não terá mais nada.

O quarto estava escurecendo em volta do archigos. Ana enxergou o anão como se ele estivesse no fim de um longo túnel, delineado por uma claridade dolorosa. — Tudo que consegui fazer foi amenizar o escoamento da kraljica para o feitiço no quadro, mas não consegui fechá-lo completamente. Mesmo que pudesse, acho que temos que manter a conexão aberta para possivelmente trazê-la de volta. — A explicação consumiu todo o seu fôlego. — É como se ela estivesse sangrando de um ferimento, archigos, só que por dentro.

Ana desviou o olhar do archigos para a kraljica; virar a cabeça provocou náusea e desorientação, como uma criança que ficou rodopiando e parou de repente. O quarto oscilou e ela cambaleou. - Ana! - Ela ouviu o archigos gritar quando agarrou uma coluna da cama da kraljica, mas a voz do anão pareceu vir de um lugar muito longe. Agora o quarto estava girando como em um terremoto e o fogo saltou da lareira, ela foi derrubada e levada pela onda de calor, pelas chamas e pelo som.

 

VOCÊ SEMPRE TEM que estar ciente do terreno. Ter que atacar morro acima é uma tremenda desvantagem.

Porém nós tivemos que fazer exatamente isso no lago Cresci, nas Escarpas. - Jan meteu-se na conversa. - Foi uma tremenda dureza, mas a tática funcionou porque eles não esperavam aquilo de nós.

O o'offizier ci'Arndt pareceu levitar ao prestar continência quando o hirzg apareceu, acompanhado pela vajica Mara. Allesandra pulou da cadei­ra que ficava à mesa onde os soldadinhos de brinquedo estavam dispostos e correu para Jan. - Vatarh! Georgi estava me ensinando! Ele disse que eu daria uma excelente starkkapitán. - O jovem offizier ficou vermelho ao ouvir isso, ainda prestando continência.

Descansar, o'offizier - disse Jan. - Eu agradeço o tempo que está dedicando a Allesandra, e ela gosta da sua companhia.

Obrigado, hirzg. Ela realmente aprende rápido.

Jan sorriu para ele. O jovem — ele não devia ter mais do que 20 anos - era bonito o suficiente, e o hirzg notou o jeito possessivo como a filha olhava para ele. Jan perguntou-se se não seria apropriado despachar o o'offizier em breve; às vezes Allesandra agia de maneira preocupante, como se fosse mais velha do que era, e um ci' jamais seria uma paixonite adequada para a filha do hirzg, mesmo que fosse um bom offizier.

Mara também estava olhando para ele, e Jan achou graça nisso. - Você pode ir, o'offizier - disse o hirzg para ci'Arndt. - Eu assumo seu posto aqui.

O homem prestou continência outra vez e saiu da tenda. Jan sentou-se ao lado de Allesandra e ergueu o olhar para Mara. - Você deve voltar para a hirzgin, Mara. Há normas do decoro que ainda temos que seguir. - Jan pegou e beijou a mão de Mara.

Mara sorriu para ele e para Allesandra. - Eu entendo, meu hirzg — falou ela ao fazer uma mesura. Mara saiu da tenda em uma onda de perfume e te­cido de cores claras.

Mara é mais legal do que a matarh - Allesandra arriscou dizer enquan­to Jan via Mara ir embora sem querer desviar o olhar.

Eu entendo por que pensa assim, Allesandra - falou Jan quando voltou sua atenção para ela. Ele olhou para os soldados dispostos sobre a mesa e me­xeu lentamente no cabelo da filha. - Allesandra, quero conversar com você.

O senhor está tão sério, vatarh.

Estou sim. - Ele foi até a abertura da tenda e olhou para fora. Markell postou os guardas a uma distância suficiente para que não pudessem ouvir, e Jan sorriu. A luz do sol revelaria qualquer um que tentasse chegar de mansinho por trás para escutar. Ele voltou para o interior e sentou-se. — Allesandra, você estava certa quando disse que eu não deveria casar com Mara, mesmo que pudesse. Ela é... - Jan parou para escolher as palavras com cuidado — ... uma pessoa cuja companhia eu aprecio, mas não é do meu nível, nem do seu, nem mesmo da sua matarh. Mara me dá o que pode, e por minha vez eu faço alguns favores para ela de vez em quando. Sei que você entende. Ela e eu somos... - Jan fez uma pausa, e Allesandra aproveitou a deixa com um sorriso.

Como eu e Georgi, vatarh?

Jan riu alto ao ouvir isso. - Você é muito observadora, meu passarinho. Allesandra, mesmo que seu irmão Toma tivesse sobrevivido à febre do sul, acho que você seria quem eu nomearia como meu herdeiro.

Allesandra riu, embora houvesse tristeza por trás da expressão. Ela afastou os cachos da testa. — Eu sinto mesmo saudade do Toma, vatarh.

Eu também. Muito. Mas eu olho para você - ele reparou novamente nos exércitos em miniatura espalhados sobre a mesa, na colocação dos arquei­ros e dos ténis-guerreiros, da infantaria e dos chevarittai - e sei que pensa como eu, mais do que Toma jamais pensou. E você está crescendo mais rápido do que eu posso acreditar, minha querida. Então... preciso conversar com você de hirzg para a'hirzg porque vão acontecer coisas muito em breve.

Que coisas? — O rosto redondo fez uma careta como se ela não tivesse certeza se deveria ficar contente ou chateada.

Nada que eu possa lhe contar ainda, embora você vá saber quando elas acontecerem. - Jan tirou um dos soldados da mesa: um integrante da infan­taria com a espada erguida no meio de um golpe. - Se seu inimigo estivesse procurando por uma ameaça que viesse de outra direção, e você fosse o stark­kapitän com seu exército a postos para se deslocar, o que acha que Georgi lhe diria para fazer?

Ele diria para atacar rápido, antes que o inimigo pudesse reagir - respondeu Allesandra, e Jan riu outra vez.

Ele estaria certo. Isso é exatamente o que eu faria. - Jan colocou o soldado de volta sobre a mesa. - Exatamente.

 

ANA ESFREGOU O PAPEL entre os dedos. Um pequeno pacote chegou a seus aposentos na manhã seguinte aos terríveis acontecimentos do Gschnas. O selo no papel duro ainda estava presente com a insígnia de uma concha na cera vermelha. Dentro da caixinha havia uma concha de pedra igual a que o vajiki ci'Vliomani mostrou para ela na noite anterior, só que essa estava suspensa por um cordão fino de prata.

Dentro também veio a mensagem dobrada que ela segurava agora. Apesar da tristeza, ela sorriu momentaneamente ao se lembrar do baile e do en­viado ci'Vliomani, a conversa e a dança dos dois, mas o prazer da memória foi obliterado no momento seguinte pela culpa. Como ela podia sentir qualquer coisa que não fosse tristeza do Gschnas depois do que aconteceu com a kral­jica? Ainda assim...

Ana perguntou-se se alguém abriu o pacote: ela mesma podia ter feito isso facilmente com um toque de magia do Ilmodo. Ela imaginou se o archi­gos leu a pequena mensagem:

Você precisa saber que eu não tive nada a ver com o que aconteceu ontem ã noite. Essa é a verdade. Se quiser saber mais, encontre-me no centro do Velho Dis­trito após o acender das lâmpadas. Use a concha sobre a roupa. A melhor maneira de descobrir a verdade é vê-la com os próprios olhos. Depois do que aconteceu no Gschnas, talvez haja pouco tempo.

Não havia assinatura.

Ana não sabia como se sentir ou o que fazer. Uma mensagem do enviado numetodo oferecendo um encontro... Será que o archigos esperaria que ela contasse para ele? Aliás, se o archigos já soubesse e ela ficasse em silêncio, o que ele pensaria então?

Ela amassou a mensagem e a caixinha e atirou os dois na lareira. Viu as bordas ficarem marrons e depois entrarem em chamas. Ana pegou a concha pela corrente e girou diante de si. Pensou em colocá-la em uma das gavetas da mesa ou talvez esconder entre as roupas. Ela examinou a concha, os sulcos tão bem definidos na pedra como se tivessem sido esculpidos. Ergueu o cordão e colocou no pescoço. Ana olhou-se no espelho enquanto tocava a concha e depois a colocou debaixo do robe. Não, não ficava evidente ali. - Watha, o archigos já chegou? - chamou ela.

Watha entrou, fez uma mesura e o sinal de Cénzi para Ana. - Ele deve chegar a qualquer momento, o'téni. - Ana viu o olhar da criada se voltar para a mesa e vasculhar o quarto. Estava procurando a caixa, sem dúvida. A mulher umedeceu os lábios como se fosse falar, mas evidentemente pensou melhor. - Vou mandar Tari ficar de olho na carruagem - disse ela finalmente.

— Obrigada, Watha. - A mulher fez uma mesura novamente e saiu do quarto. Ana tocou novamente a concha debaixo das dobras do robe ao se olhar no espelho. Um rosto comum e cansado encarou Ana de volta, com olheiras. Ela não se lembrava de nada da noite passada além da tentativa de curar a kraljica. Todos os eventos do Gschnas foram cobertos por uma sen­sação de irrealidade, como se fossem coisas que aconteceram com outra Ana. O preço por ter usado o Ilmodo foi grande; o corpo ainda doía e o cansaço afetava os braços e as pernas apesar do longo sono; já era quase meio-dia, e ela sentia-se como se tivesse dormido apenas alguns momentos.

—A kraljica... — perguntou Ana através dos lábios secos e rachados assim que acordou. Watha estava ali, sentada em uma cadeira ao pé de sua cama. — ... Ela está...

O archigos mandou um mensageiro mais cedo, o'téni — respondeu a criada. — Ele disse que a situação da kraljica permanece a mesma e avisou que a senhorita irá vê-la ao meio-dia. O archigos vai mandar uma carruagem. Nós todas ficamos muito preocupadas quando soubemos o que aconteceu, o'téni, especialmente após o que quase aconteceu com o archigos.

Ana suspirou ao se olhar no espelho. Sabia que o archigos pretendia que ela usasse o Ilmodo novamente na kraljica, e não tinha certeza se seria capaz, não esgotada como estava. E se ela conseguisse, então como se sentiria quando as lâmpadas fossem acesas pela cidade? Será que sequer estaria acordada?

Ela tocou a concha debaixo do robe mais uma vez. Ana já havia sentido atração antes, com certeza, embora raramente fosse correspondida - o amor parecia reservado a mulheres mais bonitas do que ela.

Mas o vajiki ci'Vliomani... Karl...

Pode ser tudo fingimento, parecia dizer o reflexo no espelho com a testa franzida. Ele é um numetodo; você é uma o'téni. O que ele sentiu pode ser pretexto, tudo unilateral mais uma vez, para ele ter uma porta aberta na Fé. Ele pode ter a intenção de corromper você. Tenha cuidado. Tenha muito cuidado.

Eu terei — falou Ana para o espelho.

O'téni? — perguntou uma voz vinda da porta. Ana assustou-se e virou o rosto para ver Sunna ali. — O que a senhorita disse?

Nada. A carruagem está aqui?

Sim - falou Sunna. - Eu disse para o téni avisar o archigos que a senhorita já está descendo.

O archigos falou pouco além do cumprimento obrigatório até que o con­dutor téni fechasse a porta da carruagem e começasse o cântico para colocar o veículo em movimento pelas ruas. A carruagem foi se sacudindo sobre os paralelepípedos ao dobrar na Avi a'Parete, as pessoas na rua fizeram reverências e o sinal de Cénzi com expressões solenes enquanto eles passavam. O archigos suspirou profundamente e falou - Consegui descobrir uma coisa ontem à noite. Você se lembra do quadro de ci'Recroix na sala de visitas de kraljica? Aquele da família?

Sim, archigos. É uma pintura muito encantadora que me dá vontade de não parar de olhar para ela. A mulher com o bebê... Eu quase espero ouvir o bebê mamando.

-A família que ele retratou está morta. Todos eles - contou o archigos. - Eles morreram, segundo me disseram, um dia após o quadro ter sido comple­tado, de uma doença trágica e desconhecida. Estranhamente, esse parece ser o caso com vários dos modelos das pinturas de ci'Recroix nos últimos quatro ou cinco anos, embora não antes: a pessoa pintada por ele morre de maneira repentina e inesperada. Uma série de coincidências trágicas que nunca veio à tona uma vez que ci'Recroix jamais aceitou a encomenda de um quadro na mesma cidade duas vezes.

Ana sentiu um aperto no peito como se alguém estivesse sentado nele. - Eu não acho que seja coincidência, archigos.

O anão torceu o nariz. — Nem eu, Ana. Nem eu. Eu acho que ci'Recroix andou praticando.

Mas por quê? E por motivos próprios ou de outra pessoa?

Isso eu não sei, mas descobrirei. Tenho minhas suspeitas, no entanto.

Os numetodos? - perguntou Ana hesitante ao pensar na mensagem que recebeu. Ela estava com medo de sequer olhar de relance para o archigos, com medo de que ele visse o que ela escondia.

Ana sentiu, mais do que viu, o archigos dar de ombros. - Possivelmente, mas duvido. A kraljica é mais propensa a ser favorável aos numetodos do que o a kralj, afinal de contas. Por quê? Você sabe alguma coisa a respeito dos nu­metodos que a levaria a supeitar deles? Eu vi você com o enviado ci'Vliomani ontem à noite.

O archigos olhava para ela. Ana sentiu o olhar do anão e preferiu se virar para a janela da carruagem a encará-lo. Se ele sabe a respeito da mensagem, se o archigos leu o bilhete, então eu devo contar para que saiba que não escondo segredos dele...

Ela sabia que devia se abrir com o archigos, mas mesmo quando começou a falar, outra voz interna foi contra. Se você contar e o archigos não souber de nada, ele não vai lhe deixar ir. O archigos vai garantir que o enviado ci'Vliomani seja mantido afastado, e você jamais saberá se o que ele disse ou que você talvez tenha sentido seja verdade... — Não — falou Ana para a janela. - Só estava especulando, apenas isso. O senhor está certo, é claro, archigos. O en­viado ci'Vliomani disse que estava ansioso para se encontrar com a kraljica, e creio que foi sincero. - Ela fez um esforço para se voltar para o archigos. Não havia nada no rosto encarquilhado do anão que sugerisse que ele pudesse estar desapontado com ela ou que Ana falhara em um teste. - Se não forem os numetodos, então quem?

O archigos apenas balançou a cabeça. — Não vou dizer. Não sem mais provas; provas que eu tenho plena confiança de que estão por vir. Contei ao comandante ca'Rudka o que eu descobri, e ele começou a sua própria inves­tigação. O comandante tem... - o archigos franziu a boca momentaneamente — ... fontes e maneiras de conseguir informações que eu não possuo.

Ana sentiu um arrepio ao se lembrar do homem e da sensação de perigo velado que ele passava. Ela conseguiu imaginar as maneiras de conseguir in­formações que o archigos se referiu. - E a kraljica? - perguntou Ana.

O archigos balançou a cabeça. - Não melhorou. Talvez esteja um pouco pior. Renard não está otimista. Ela permanece inconsciente desde o incidente, e ninguém consegue despertá-la.

Archigos, eu não sei se consigo. A noite de ontem me esgotou profundamente.

O anão estendeu a mão pequena e deformada e bateu de leve na dela. — Eu não pedirei nada que você ache que não possa fazer, Ana. A escolha é sua... sua e de Cénzi.

E se ela morrer?

O archigos olhou intensamente para ela e depois franziu a testa. - Se ela morrer, Ana, eu temo por Nessântico, sinceramente.

 

SE ELA MORRER, estamos perdidos. Completamente perdidos.

Não é tão ruim assim, Mika — respondeu Karl. A taverna estava fria a despeito do fogo intenso na grande lareira de pedra perto da mesa. As paredes estavam cobertas por sombras e fumaça, e a estalagem cheirava a fuligem e cinzas por causa da má ventilação da chaminé. Apesar do sol do meio-dia lá fora, as janelas cerradas mantinham a taverna em uma penumbra permanente. A cerveja na caneca diante dele era azeda e com lúpulo demais para o gosto de Karl. Ele sentia falta das cervejas escuras, tipo stout e porter, espessas e com muito malte de sua terra natal. Atrás da caneca, Mika parecia assustado e preocupado ao se desbruçar para sussurrar do outro lado da mesa.

Não? A dança com o novo brinquedo do archigos rendeu tanto assim? Você quer dizer que não prevê corpos pendurados para exibição pública aqui em Nessântico quando o a'kralj se tornar o kraljiki? Eu consigo vê-los bem claramente e vejo o seu rosto e o meu em dois dos corpos.

Aquilo não foi culpa nossa. Ambos sabemos disso.

Certo. Isso vai ser um grande alívio para os parentes que eu deixar, tenho certeza. Vou fazer questão que esteja gravado na minha lápide: Não foi culpa dele. — Com um resmungo de revolta, Mika recostou-se na cadeira e bebeu a cerveja em um longo gole só. — E você convidou seu brinquedo para a reunião hoje à noite?

Mika. — Karl agora se debruçou sobre o tampo sujo e arranhado da mesa. - Eu vou pedir para você apenas uma vez, com educação, para não se referir assim à o'téni co'Seranta. Não pedirei uma segunda vez.

Mika começou a responder, depois engoliu seja lá o que queria dizer. O olhar afastou-se de Karl. — Desculpe. Estou assustado com o que aconteceu,

Karl. Eu tenho família aqui na cidade; você, não. Não é apenas o que eles fariam comigo; é o que aconteceria com eles.

É por isso que é ainda mais importante que encontremos com a o'téni co'Seranta. O archigos não é o aténi ca'Cellibrecca, e talvez ela consiga fazer com que ele nos escute. Eu vim aqui defender a causa da tolerância com a kraljica; se ela morrer, então eu irei à Concénzia novamente e...

Karl parou. A porta da taverna foi aberta e encheu o recinto de luz. Houve resmungos e xingamentos dos clientes até que a silhueta de uma figura fechou a porta novamente. Karl protegeu os olhos, embora não tenha ajudado muito: manchas coloridas corriam pelo campo de visão, e ele pensou ter visto, embora fosse impossível, um brilho de metal no meio do rosto do homem. Através da confusão de imagens persistentes, a figura olhou em volta, depois se concentrou neles e foi até a mesa dos dois a passos largos.

Pelos colhões de Cénzi - praguejou Mika. Sua cadeira arrastou e caiu para trás quando ele se levantou com a mão indo à faca no cinto. Houve o som de aço como resposta quando a figura sacou uma espada da bainha. Antes mesmo que Karl pudesse reagir, Mika foi pressionado contra a parede com a ponta da lâmina na garganta. Na outra mão do agressor, brilhou uma faca apontada para Karl.

O nariz do intruso era de prata.

Ca'Rudka estalou a língua duas vezes como repreensão para Karl, que começou a falar enquanto erguia a mão. - Eu realmente não faria isso - disse o comandante. A ponta da espada fez mais pressão contra a garganta de Mika e furou a pele. Mika ergueu o queixo, com a boca aberta e os olhos arregalados e assustados. - Ele vai morrer antes que você termine, enviado. Sou mais rápido do que o seu feitiço, prometo.

Comandante - falou Karl ao engolir o gatilho do feitiço que estava na garganta e se obrigar a permanecer imóvel. A ponta da faca de ca'Rudka reluziu a poucos centímetros do seu peito; a espada do comandante continua­va na garganta de Mika. A pressão do feitiço contido fez Karl contorcer o rosto. A cabeça latejava. - Eu peço desculpas pelo meu amigo. Aqui no Velho Distrito, um pouco de paranóia é uma tática de sobrevivência, como tenho certeza de que sabe. — Houve uma comoção na porta; ele ouviu várias pessoas entrando e o som de armas sendo desembainhadas, mas não ousou tirar o olhar de ca'Rudka. Pensou ter visto de rabo de olho tons de azul e dourado.

Comandante?

A ponta da espada de caRudka recuou um pouquinho e deixou uma marca para trás que pingou sangue. Mika tocou a pequena ferida com o dedo e olhou para a mancha vermelha, com os olhos ainda esbugalhados.

Mika. — Karl chamou a atenção do olhar do amigo e apontou com a cabeça na direção da cadeira que ele virou. - Sente-se e não mexa com as mãos, nem até a faca ou para fazer um feitiço. Comandante, faria a gentileza de se sentar conosco? Posso pedir um copo de cerveja? A bebida local não é exatamente do nível da cerveja da ilha, mas... - Devagar, com cuidado, Karl sentou-se novamente na própria cadeira. Ele colocou as mãos sobre a mesa onde ca'Rudka pudesse vê-las.

O enviado notou que ca'Rudka sorria de boca fechada através da visão que se recuperava. O comandante continuava vigiando Mika, embora agora tivesse abaixado a faca que ameaçava Karl. Após um breve instante, o coman­dante abaixou a ponta do sabre fino e embainhou as duas armas. Ele gesti­culou para os homens na porta - todos da Garde Kralji - e eles fizeram uma reverência e recuaram, embora tenham deixado a porta aberta. Ninguém na taverna reclamou desta vez.

Ca'Rudka pegou uma cadeira da mesa mais próxima e virou-a de costas antes de se sentar; Karl percebeu na hora de que aquilo era a manobra de um guerreiro: não havia espaldar para bloqueá-lo caso decidisse ficar de pé e recuar ou sacar a espada novamente, e a própria cadeira seria fácil de ser erguida como um escudo. Do outro lado da mesa, Mika sentou-se cautelosamente e esfregou a ferida no pescoço. - É cedo demais para beber cerveja - respondeu ca'Rudka cal­mamente, como se conversasse com velhos amigos. - Não é bom para a digestão.

Nem se sentar em uma cela na Bastida, eu suspeito — respondeu Karl.

É para onde estou indo, comandante?

Você fez alguma coisa que mereça tal castigo, enviado? - Ca'Rudka dobrou os braços sobre as costas da cadeira e debruçou-se para a frente com um sorriso ainda nos lábios. - Ou talvez contratou alguém para fazer o serviço por você?

Eu não tenho nada a ver com o colapso da kraljica, comandante. Nada. Nem nenhum numetodo. Isso não é o que qualquer um de nós queria. Muito pelo contrário.

Ca'Rudka encarou Karl por um breve instante, em silêncio. Finalmente, ele acenou levemente com a cabeça. - E, no entanto, o archigos disse que a kraljica foi atacada por um feitiço, enviado, e não foi um feitiço como aqueles que os tênis usam. Os rumores que ouço sobre os numetodos...

... são muito exagerados - disse Karl para ele. - Você viu a prova disso a um momento atrás, comandante. Se fôssemos tão poderosos quanto as pes­soas parecem acreditar, nós teríamos transformado seu corpo em cinzas ou em uma galinha cacarejante no momento em que sacou a espada. Ou teríamos escondido a nossa presença tão bem que você não saberia onde estávamos sentados bebendo. Dado que eu não consegui fazer nada disso, então duvido que eu tenha a capacidade para prejudicar a kraljica.

Esta é a minha cidade, enviado. É da minha conta conhecer certas pessoas dentro dela e onde eu possa encontrá-las. Mas não sejamos falsos. Ambos sabemos que os numetodos usam o Ilmodo, apesar da proibição de tal interferência na Divolonté. Ou você alega que o ataque numetodo ao archigos foi apenas um truque de salão?

Todo mundo também viu como foi fácil para uma mera acólita reverter o feitiço daquele tolo, comandante. Se eu tivesse usado o Scáth Cumhacht no Gschnas, eu teria sido visto e ouvido, e o archigos ou o a'téni ca'Cellibrecca ou qualquer um das dezenas de tênis presentes teria notado, não acha? E se nós tivéssemos a capacidade de plantar um feitiço engatilhado tão poderoso assim, eu garanto-lhe que não teria ficado tão visível na multidão.

Não, eu duvido que teria - respondeu ca'Rudka. - É por isso que você ainda não está a caminho da Bastida. Mas acho que entende por que eu preci­sava perguntar e ver seu rosto enquanto respondia. - O sorriso diminuiu e su­miu. Karl conseguiu ver seu reflexo distorcido nas narinas reluzentes do nariz do comandante. - Acho que sou bom em julgar as pessoas, enviado. Descobri que gosto de você. Gosto mesmo. Você escolhe mal suas companhias - disse isso com uma olhadela para Mika — e suas lealdades são suspeitas, mas eu gosto de você. Não gostaria de vê-lo, bem, sofrer por causa de suas escolhas.

Eu diria que concordamos com essa última opinião, comandante. Então como eu poderia evitar isso?

Ca'Rudka fechou e ergueu a mão. Desceu novamente. - Pode ser que você não consiga, enviado. Há tanta coisa em movimento agora. Eu sou ape­nas uma ferramenta na mão da kraljica, afinal de contas, ou do kraljiki, caso o a'kralj assuma o trono, e eu faço o que eles me pedem.

Mesmo que inocentes sejam prejudicados.

O sorriso voltou. — Acho que, assim como aqueles que me dão ordens, eu realmente não me importo se alguns inocentes sofram desde que Nessântico fique protegida.

Da maneira como os inocentes foram massacrados em Brezno? — Mika intrometeu-se. - O sangue e o sofrimento deles protegeram Nessânti­co? Os Domínios e a Concénzia melhoraram com a exibição de seus corpos torturados?

Ca'Rudka não respondeu, apenas olhou de relance para Mika por um momento antes de voltar a atenção para Karl. - Eu sugeriria, enviado, que você fosse embora de Nessântico agora. Sua missão diplomática acabou nesse momento. Vá embora o quanto antes. Hoje. - Com um movimento ágil e repentino, ca'Rudka levantou-se com uma mão no punho da espada.

Eu não posso - disse Karl. - Eu tenho minhas próprias ordens a cumprir. Você é capaz de entender isso, comandante.

Ca'Rudka acenou com a cabeça. - Sou. Então eu fiz tudo o que foi possível por você, enviado. Não posso lhe proteger. O resto está nas mãos de Cénzi.

Isso é outra coisa que teremos que discordar - respondeu Karl.

Desta vez, o sorriso de ca'Rudka pareceu quase sincero. Ele acenou novamente com a cabeça, um gesto mais acentuado agora, e deu meia-volta. O comandante fechou a porta da taverna ao sair. Devagar, assim que a falsa escuridão envolveu os clientes novamente, o som das conversas atravessou o ar cheio de fumaça. - Então o homem com nariz de prata gosta muito de você - disse Mika. - Que interessante.

Karl ainda continuava olhando para a porta. Ainda sentia a tensão no corpo, uma vibração tão forte que ele imaginou se não era audível. Mika es­fregou a garganta ferida.

- Cale a boca, Mika. Ou da próxima vez eu deixo que ele perfure você.

 

EDOUARD SENTOU-SE aboletado em uma rocha nas margens do A'Sele, não muito longe de Pré a'Fleuve rio abaixo. Saia de Nessântico pela Avi a'Firenzcia, dissera seu contato. Mas depois siga o fluxo do A'Sele. Eu encontro com você no dia seguinte ao Gschnas onde nos conhecemos pela primeira vez, no rio debaixo do castelo, assim que soubermos que você fez a sua parte.

Edouard seguiu as instruções, abandonou o cavalo em um pequeno vilarejo, depois roubou um bote para descer o rio Vaghian até o A'Sele, onde ele novamente atravessou Nessântico e passou por debaixo da Pontica Mordei e da Pontica Kralji à noite, antes de deixar as muralhas para trás pela última vez.

Agora ele estava sentado na margem com o caderno de desenhos aberto no colo e um bastão de carvão na mão. Uma pomba estava empoleirada no galho de um salgueiro dobrado na direção da água perto dele, e Edouard rapi­damente esboçou o contorno da ave e da árvore. O desenho saiu facilmente - e conforme o bastão fluía pelas sombras do pássaro, Edouard fechou os olhos e sussurrou as palavras que abriam aquele lugar bem em seu interior, o lugar que o velho téni mostrou para ele...

Os numetodos... - falou o velho para ele, com uma voz indistinta provo­cada pelos poucos dentes que sobraram nas gengivas e pelo catarro na garganta. Mas aquele rosto: Edouard cruzou com o sujeito em uma estalagem decrépita longe de qualquer cidade e ficou fascinado pelas rugas, pelo grande nariz adunco e pela complexidade dos canais que saíam dos cantos da boca e dos olhos, pelos fios de cabelo branco e ralo da calva cheia de manchas. Havia uma grande beleza na feiúra do homem, e Edouard estava tentando registrá-la em sua pintura. — Eles quase acertaram. Eu mesmo descobri. Não é a fé em Cénzi que controla o Ilmodo. Não... — O homem balançou a cabeça. — Eu era um téni antigamente. Você sabia disso? Eu estava a serviço do templo em Chivasso e descobri a verdade sobre as coisas antes mesmo de ouvir falar dos numetodos. — O homem cuspiu no chão e formou uma enorme mancha de muco que escureceu a serragem sobre as tábuas do assoalho. Ele então ficou em silêncio por tanto tempo que Edouard perguntou-se se o homem estava dormindo de olhos abertos.

O que é essa verdade? — finalmente ele perguntou ao velho. - O que aconteceu?

Havia uma garota lá. Arial era o nome dela. Apenas uma ce' uma das criadas lá no templo. Mas ela tinha um rosto bonito e era cheinha, e nós viramos amantes. Era errado, mas nós não nos importávamos. Eu descobri que a família dela era de Boail e, assim como eles, ela não acreditava em Cénzi de forma al­guma. Eles cultuavam um moitidi de menor importância e estavam convencidos de que ele era o único deus. Ela me via usar o Ilmodo para acender as luzes do templo todas as noites e pedia para mostrar como eu fazia. Eu disse o que sempre me disseram: que era impossível, que o uso do Ilmodo exigia muito treinamento e uma fé profunda, que não era uma coisa que aqueles que não foram abençoados por Cénzi pudessem fazer, que os feiticeiros e as bruxas que diziam ser capazes de usar a magia eram mentirosos e aberrações que foram seduzidos pelos moitidis que sobreviveram ao expurgo de Cénzi. Ela fez que sim e disse que entendia, mas ficou me ouvindo e observando, e uma noite eu a vi. Arial estava usando o Cântico da Luz, e havia fogo frio entre as mãos enquanto falava. Então eu soube, mesmo quando chamei o aténi, mesmo quando a traí, que o que me ensinaram era errado. Havia aqueles que podiam moldar o Ilmodo sem acreditar em Cénzi, e aquilo... aquilo abalou e destruiu as bases da minha fé.

Ele ficou em silêncio por algum tempo, depois umedeceu os lábios e reco­meçou. — Eles cortaram as mãos dela e arrancaram sua língua como manda a Divolonté, para que nunca mais usasse o Ilmodo novamente. Eu vi Arial ser torturada por eles, tentei me convencer que fiz o que Cénzi queria que eu fizesse, porém a minha fé... minha fé já estava abalada, já estava falhando. Mas todas as noites eu ainda conseguia acender o templo, embora as palavras para Cénzi não significassem nada para mim, embora eu duvidasse da minha fé e das minhas crenças. Eu tentei me convencer de que Cénzi estava mostrando Sua misericór­dia, que Cénzi queria que eu voltasse para Ele e que era por isso que eu ainda podia moldar o Ilmodo, mas minha fé continuou a falhar até que descobri que não acreditava de maneira alguma. Eu parti, finalmente, porque não conseguia suportar a hipocrisia e as mentiras que falava todos os dias. Eu parti, e Cénzi tem me punido desde então.

A voz do homem era um mero sussurro quando ele falou isso. O velho olhou para a tela diante de Edouard e falou — Você tem o Dom. — Ele tocou a cabeça de Edouard, depois as mãos. — Você está usando o Ilmodo embora não saiba. Ele flui de você para a tela. Não são muitos os que podem fazer isso.

- Mostre para mim o que você mostrou para Arial — disse Edouard repenti­namente. — Mostre a verdade para mim.

O velho protestou e argumentou, mas, no fim das contas, concordou. Ele ensinou Edouard como abrir o espaço interior para que sentisse o Ilmodo, e, por sua vez, Edouard aprendeu que seu Dom era mesmo especial. O velho téni morreu quando Edouard foi embora, mas o quadro, o quadro do velho... Foi a melhor pintura que ele já tinha feito. O rosto que olhava para fora da tela era tão genuí­no, tão irresistível...

O velho estava morto, mas não foi a última vez que Edouard o viu ou escu­tou. Ah, não, não foi mesmo a última vez.

Edouard deixou o Ilmodo fluir sem interrupção: saiu dos dedos, passou pelo bastão de carvão até o papel, e dali se irradiou para o pássaro. Ele viu a ave na mente, presa no esplendor do Ilmodo. Conseguiu sentir o coração que batia e o corpo que tremia e deixou que a sensação passasse dele para o papel.

Edouard ouviu a queda suave do pássaro sobre a grama e abriu os olhos para ver a forma perfeita registrada no papel.

Está lindo, como eu esperava. - Edouard ouviu a voz atrás dele, a aproximação do homem foi mascarada pelo som da brisa nos salgueiros e pela correnteza do A'Sele.

Vajiki — falou Edouard ao colocar o caderno de desenhos na grama ao lado da ave. — Estava começando a me perguntar se você viria.

Exatamente como prometido - disse o sujeito. Edouard não sabia o nome do homem, que o abordou pela primeira vez quando ele pintava um quadro encomendado em um castelo perto de Prajnoli. Até mesmo o rosto do sujeito era comum e desinteressante, tinha um cabelo castanho genérico, embora os olhos apresentassem íris de um tom muito saturado de verde cor de grama. Mas o dinheiro que ele ofereceu abalou Edouard - era tanto que ele jamais precisaria tocar em um pincel novamente, a não ser que quisesse.

Talvez assim elas deixem-me em paz: as vozes de quem eu matei...

Edouard torceu que fosse verdade. As vozes atormentavam-no à noite - os rostos que ele pintou, aqueles que Edouard matou. Eles surgiam em seus pesadelos para atormentá-lo. Estavam vivos, todos eles, vivos em sua cabeça.

Edouard não sabia para quem o homem trabalhava, nem como essa pes­soa descobriu o "dom" que ele possuía - embora se perguntasse se o mandante não era o chevaritt ca'Nephri, pois era o seu castelo que dava vista para o rio ali perto. Quem quer que fosse o mandante, Edouard não sabia como a pessoa conseguiu que ele pintasse a kraljica. Edouard sabia muito pouco além do fato de que sua bolsa estava bem mais pesada quando o homem de olhos verdes foi embora e que hoje ficaria mais pesada novamente.

Isso era o bastante.

Você está com o meu pagamento final? — perguntou Edouard para o homem.

A kraljica não está morta - respondeu o sujeito.

Edouard balançou a cabeça. - Isso é impossível. Eu terminei o quadro. Prendi o espírito da kraljica a ele.

- Ela está doente, mas permanece viva. Não foi isso que você prometeu, vajiki. Não é o que o meu patrão queria.

Edouard continuou balançando a cabeça. Não havia explicação para isso, e ele estava assustado. Edouard foi tomado por uma onda de pânico enquanto tentava arrumar uma desculpa. — As vezes... às vezes isso leva alguns dias, vaji­ki. Talvez até mesmo uma semana. Mas ela vai morrer; todos sempre morrem. - Edouard umedeceu os lábios e encarou, esperançoso, os olhos verdes do homem para ver se ele acreditava. Isso não importaria assim que fosse pago. Edouard então poderia desaparecer para sempre, e mesmo que a kraljica so­brevivesse de alguma forma... Ele forçou uma voz que soasse irritada. — Você ainda me deve as solas que prometeu. Onde estão eles?

Estão comigo. Você tem certeza de que ela vai morrer?

Edouard cutucou o corpo do pássaro com a ponta da bota. - Sim, tenho certeza.

O homem concordou com a cabeça e olhou para a ave e o esboço. - Então é hora de dar sua recompensa. Eu tenho um cavalo bem ali. - Ele gesti­culou para uma trilha que levava a um arvoredo margem acima, e Edouard abaixou-se para pegar o caderno de desenhos. O sujeito gesticulou novamen­te, e Edouard ficou diante dele.

Edouard ouviu o som, mas demorou a entender o significado até que foi tarde demais. Ele teve um momento para considerar a estranha sensação quando a lâmina entrou em seu corpo por trás e atravessou completamente seu corpo. Estranhamente, houve pouquíssima dor. Edouard ficou ali parado, empalado, olhando para o sangue que manchava o aço da longa lâmina que saía logo abaixo das costelas. Ele tentou respirar, mas tossiu e cuspiu sangue. A lâmina foi arrancada com um movimento repentino e rascante, e Edouard caiu de joelhos.

O mundo parecia andar debaixo d'água. Edouard viu as páginas do caderno esvoaçando enquanto ele caía de suas mãos. Ouviu os pássaros nas árvo­res e a água cristalina e até mesmo o som das nuvens que deslizavam pelo céu. As cores eram intensas e surreais de uma maneira impossível, como se fossem pintadas com pigmentos misturados pelo próprio Cénzi.

A arma atacou Edouard de novo, um golpe cortante na lateral do pescoço dessa vez, e ele desmoronou. Caiu no chão de olhos abertos. A grama era de um tom esmeralda como os olhos do homem, e um rubro fluía entre as folhas. Ele viu o corpo da pomba a um passo de distância e esticou a mão para tocá-la, mas o braço recusou-se a se mexer.

Uma coisa dourada — uma concha? - brilhou diante dele, e Edouard sen­tiu a cabeça ser levantada e uma corrente fria passar por seu pescoço dilacerado.

- Aqui está sua recompensa, pintor - disse a voz do homem, e hou­ve uma risada na escuridão que aumentava, a risada de todos aqueles que Edouard havia pintado, e os rostos surgiram e levaram-no para bem longe enquanto ele tentava gritar em vão.

 

A KRALJICA era uma carcaça envolta em linho branco. Por um instante, Ana não teve certeza se ela sequer estava respirando, mas aí o fôlego titubeou e as dobras do linho ficaram estufadas com a respiração. Um cheiro azedo tomou conta do ar apesar das velas perfumadas que eram a única fonte de luz no quarto, que estava com as janelas e cortinas cerradas. Renard acom­panhou os dois ao interior do quarto, obviamente cansado por ter ficado de vigília durante a noite. Um curandeiro estava ali com sua coleção de medica­mentos e instrumentos, e um trio de criados esvaziava comadres, mantinha o fogo aceso na lareira ou trocava as sanguessugas colocadas no corpo da kraljica sob as ordens do curandeiro.

O archigos mandou que todos saíssem do quarto, à exceção de Renard. Enquanto os criados iam embora fazendo reverências e o curandeiro pegava os instrumentos, obviamente irritado, o archigos colocou a mão no braço de Renard em um gesto de conforto. - Você passou a noite acordado? - Renard fez que sim. - Como ela está?

Nada melhor. Depois que o senhor e a o'téni co'Seranta visitaram a kraljica - Renard disse isso com um olhar rápido de consideração para Ana; ela devolveu com um sorriso apesar do cansaço ela pareceu se reanimar, mas depois aos poucos piorou. Eu temo que... - O lábio inferior tremeu. Ele fechou a boca e limpou o olho com a manga. - Eu sirvo a kraljica por quase trinta anos, desde que eu era um jovem rapaz.

E serve bem - falou o archigos. - Você tem sido sua muleta e seu apoio, Renard. Não abandone as esperanças ainda. Cénzi ainda pode ouvir nossas preces.

Renard fez que sim, mas Ana notou o desespero marcado nas rugas. - Deixe-nos a sós com a kraljica novamente - disse o archigos para ele - para que nós possamos rezar com ela. Nesse meio tempo, durma um pouco. Você não vai servir de nada para ela se estiver exausto.

Vou tentar - falou Renard. Ele olhou novamente para a cama e soltou um longo suspiro antes de ir para a porta. Ao se aproximar de Ana, parou por um momento. - Obrigado pelo seus esforços, o'téni - disse baixinho. - Que Cénzi lhe abençoe.

Renard fez uma mesura e levou as mãos entrelaçadas à testa. Saiu do quarto e deixou os dois sozinhos com a kraljica e sua respiração irregular.

Ele sabe — falou Ana.

Ele está longe de ser um idiota. E ama a kraljica. - O archigos estava ao lado dela e seus dedos roçaram a mão de Ana. Ela recolheu a mão. O archigos deu um olhar que Ana pensou ser de pena, mas ele não a tocou novamente. - Renard suspeita, mas não sabe, Ana. E não contará nada para ninguém, não importa o que diga a Divolonté. Eu também não.

Ana não tinha certeza se acreditava nisso. Não tinha certeza se confiava em algum deles. Ana era capaz de se imaginar sendo traída pelo archigos para que ele salvasse a própria pele e esfregou as mãos. Elas seriam cortadas e a lín­gua seria arrancada também... Ana estremeceu.

- Ana? Você está bem?

Ana pestanejou. O archigos estava olhando para ela. - Eu sei que você está cansada, mas esta pode ser a nossa última chance de salvá-la. - A voz saiu urgente e baixa, e Ana percebeu que o archigos também estava assustado, com medo do que poderia acontecer com ele se a kraljica morresse e o a'kralj virasse kraljiki. Naquele momento, ela vislumbrou como era frágil o controle do archigos sobre sua posição na igreja, e, portanto, como era precária a sua própria situação, ligada por sua vez ao status do archigos. A compreensão deu um nó em seu estômago.

Ana fez que sim para o archigos e foi para o lado da cama, olhou para o rosto contraído e branco da kraljica: bochechas chupadas, pele solta sobre o crânio. Ela já estava meio parecida com um cadáver. A kraljica não merece isso. Se Cénzi lhe deu esta habilidade, então Sua intenção não era que você a ignorasse.

Ana entrelaçou as mãos na testa por um momento e respirou fundo várias vezes. Depois abriu bem as mãos, deixou que fizessem um gestual que ela sentia na cabeça e falou as palavras enviadas por Cénzi.

Com os olhos ainda fechados, Ana moldou o poder do Ilmodo e deixou que entrasse correndo na kraljica. Ela ouviu um sussurro fraco da velha na cama. - Ana... - Ela escutou a mulher dizer alto, e a palavra ecoou na mente também. Ana... A pintura está me chamando e não consigo resistir. O fluxo do Ilmodo caiu como uma cascata ao sair de Ana para a kraljica e escorreu através daquele terrível furo na própria existência da velha, aquela ferida horrível que estava tão grande agora quanto na noite de ontem. Ana viu-se dentro da kral­jica e do quadro ao mesmo tempo, a pintura onde a maior parte da consciên­cia da kraljica parecia morar agora. O corpo na cama era predominantemente uma casca vazia.

Ana novamente admirou o feitiço que causara essa situação: nenhum téni conseguia encantar um objeto dessa forma. Um téni era capaz de inserir dentro de uma lâmpada um brilho que não ardia e durava por várias viradas da ampulheta, mas para fazer isso eram necessários os cânticos e gestuais ade­quados, que deveriam ser executados na hora do encantamento. Mas ninguém entoou para enfeitiçar a pintura — o feitiço foi lançado quando Ana puxou a coberta: instantaneamente, sem rezas ou gestos.

Ana não fazia idéia de como isso tinha sido feito e perguntou-se novamente se ci'Recroix era um numetodo. Os rumores que ela ouviu sobre como eles distorciam o Ilmodo...

Mas ela não podia pensar nisso agora. Não podia perder tempo com distrações.

Ana moldou novamente o Ilmodo, envolveu a kraljica com ele e tentou puxar a mulher de volta para o próprio corpo e tirá-la do quadro, mas o fei­tiço dentro da pintura resistiu, atacou o Ilmodo e dilacerou-o para que não conseguisse segurar a kraljica. Onde o feitiço de Ana tocava o interior da pin­tura, era como se garras atacassem seu corpo e abrissem fendas profundas que rompiam músculos e ligamentos dos ossos. Ana gritou de dor, sem saber se gritou em voz alta. Ela podia sentir o feitiço, vislumbrou como fora moldado e construído... e não havia nada de Cénzi nele. Ela não O sentiu de maneira alguma no encantamento.

A concha na corrente debaixo do robe parecia estar incandescente e quei­mar a pele.

Ana puxou a kraljica desesperadamente, arrastou a consciência da velha de volta para o corpo o quanto foi possível e tentou fechar aquele horrível buraco dentro dela mais uma vez. Devagar, a brecha começou a se curar, mas o esforço custou caro para Ana. Ela gritou novamente, o corpo e a mente doeram pelo empenho...

... e ela não conseguiu segurar mais o Ilmodo. Ele fugiu de suas mãos, e Ana voltou ao quarto da kraljica, de joelhos no chão acarpetado, com o corpo molhado de suor e a frente do robe manchada de vômito, as mãos crispadas e tão duras como se tivesse passado horas lá fora no inverno, sem luvas.

— Eu tentei... - Ela conseguiu sussurrar para o archigos, que estava ajoe­lhado ao lado. Ana olhou para ele, abatida. — Eu fiz tudo o que pude, e qua­se... quase...

E foi apenas isso que ela se lembrou por certo tempo.

 

O QUARTO ESTAVA FRIO mesmo no sol do fim de tarde, mas Mahri praticamente não notou. Ele olhava para uma panela rasa e surrada posta em uma mesa bamba diante de si, onde podia ver o reflexo distorcido do próprio rosto desfigurado. Ele ouviu a chaleira começar a apitar em cima do fogo na lareira e foi até ela. Passou a manga da roupa em frangalhos pela alça da cha­leira, tirou-a do suporte e serviu a água fervendo na vasilha, depois jogou na água folhas que tirou de uma bolsa de couro presa ao cinto. Mahri sentou-se novamente.

Mostre-me - disse ele baixinho, e o vapor sobre a vasilha contorceu-se e tomou forma. Ali, na bruma, surgiu uma imagem trêmula: a figura do a'kralj, com seu inconfundível queixo protuberante mesmo que ele não estivesse em seus trajes elegantes de sempre, e a vajica Francesca caCellibrecca sentada diante dele à uma mesinha. - A'kralj - falou a mulher, um pouco alto e for­çado demais, obviamente para alguém que estava ouvindo. — É uma grande honra para nós lhe receber, e sei que meu marido ficará chateado por ter se desencontrado do senhor. Nós dois ficamos tão chocados pelo colapso de sua matarh no Gschnas. Como ela está?

Infelizmente não melhorou, vajica. - Mahri ouviu a resposta do a'kralj. A mão dele moveu-se sobre a mesa por alguns centímetros e foi na direção da mão da mulher. Ele desviou a atenção para a direita, como se olhasse para Mahri, e ergueu ligeiramente as sobrancelhas. A vajica também olhou para aquela direção.

Cassie, você faria a gentileza de ir à cozinha e ver se Falia ainda tem aqueles bolos que foram servidos de manhã? A'kralj, que tal um pouco de chá? Cassie, mande Falia preparar também chá fresco, e traga aqui.

Sim, vajica. - Mahri ouviu uma voz fraca responder. Da cena envolta em fumaça diante dele vieram sons de passos e de uma porta que se fechou. Ao ouvir o barulho, o a'kralj esticou o braço sobre a mesa para pegar a mão da mulher. Ele começou a se levantar, como se fosse abraçá-la e beijá-la, mas a mulher balançou a cabeça ligeiramente.

Aqui não - sussurrou ela. - Olhos demais. Mas podemos falar abertamente, pelo menos. A kraljica?

Ela está morrendo. Se eu pudesse manter aquele archigos anão e aquela téni feia que nem uma vaca longe da kraljica, ela já estaria morta. Acho que o archigos está usando o Ilmodo nela, ou então é co'Seranta que está.

Farei questão que meu vatarh saiba disso. Tenho certeza de que ele ficaria interessado. - A mulher balançou a cabeça. - Uma coisa tão estranha e repentina. O vatarh acha que isso tem a mão dos numetodos.

Não, não foram eles, embora eu não me importe que eles paguem o preço por isso. - O a'kralj sorriu, o que deixou o queixo ainda mais proemi­nente. Mahri ouviu a lenta tomada de fôlego pelas narinas da vajica e viu o levantar de suas sobrancelhas.

- Justi...

O sorriso cresceu. - A matarh sempre insistiu que era hora de eu pensar em herdeiros e casamento. Eu serei kraljiki em breve e agora me vejo pensan­do exatamente nessas duas coisas. E você, Francesca, meu amor?

A mulher parecia procurar por uma saída, primeiro para a esquerda, depois para a direita. - Claro, Justi. É claro. Mas isso foi tão rápido. Todos os planos cuidadosos que nós estávamos fazendo com meu vatarh...

... não foram necessários. Eu fiz meus próprios planos e fui em frente com eles. Acho que o quadro da matarh deve ficar na ala oeste, onde ela possa enxergar o trono do kralji e me ver sentado nele com você ao meu lado, não acha?

Houve uma batida suave na porta e o clique do ferrolho. O a'kralj recostou-se e soltou a mão de Francesca. O sorriso dela era um rasgo fixo no rosto. - Mas, é claro, eu vim para perguntar ao u'téni Estraven se ele faria uma cerimônia especial para minha matarh - disse o a'kralj suavemente, como se continuasse uma conversa interrompida, assim que Mahri viu a criada se aproximar da mesa e colocar uma bandeja de prata com chá e bolos entre os dois, antes de fazer uma mesura e recuar rapidamente. - Isso significaria tanto para ela.

Certamente - respondeu Francesca. Ela pestanejou e moveu-se por reflexo para servir chá para o a'kralj. - Eu falarei com Estraven. — A água na vasilha estava esfriando, a cena acima dela começou a sumir, as figuras ficaram transparentes, as vozes falharam. — Eu sei que ele faria de bom grado...

Eles sumiram de repente, e a vasilha virou simplesmente uma tigela de água morna. Mahri suspirou. O mendigo levantou-se e colocou a chaleira de volta no suporte. Pegou respeitosamente a tigela, foi até a janela e jogou a água lá embaixo, no beco do Velho Distrito. Depois disso, colocou mais água fervente na tigela e outra vez jogou a infusão da bolsa.

Mostre-me - repetiu Mahri, e desta vez a cena que se formou foi de um lugar diferente, e novas figuras surgiram...

 

A SENHORITA NÃO PODE SAIR, o'téni - insistiu Watha. - Não está forte o suficiente. O archigos disse que precisa descansar. Ele foi muito enfático quanto a isso.

O archigos não sou eu e não sabe como me sinto - insistiu Ana. Ela livrou-se das mãos que tentaram mantê-la na cama e colocou os pés no chão. Levantou-se. O quarto ameaçou inclinar debaixo dela, mas Ana tomou fôlego para parar o movimento. - Preciso de roupas. Não meus robes de téni. Uma tashta, talvez, ou qualquer outra coisa.

Os olhos de Watha pareceram prestes a irromper do crânio. — Eu não posso...

Você vai obedecer - insistiu Ana. - E vai obedecer agora. E eu também preciso de uma carruagem.

A jovem parecia aterrorizada. Sua matarh, Sunna, chegou um momento depois, e Ana repetiu o pedido. Sunna confabulou com Watha, que saiu da sala com uma olhadela assustada para Ana. Sunna ficou murmurando sozinha enquanto vasculhava - bem devagar - os baús e armários para encontrar rou­pas para a o'téni. Ana ouviu a porta de fora de seus aposentos abrir e fechar antes que Watha voltasse para ajudar a matarh; ela concluiu que Beida fora mandada para informar o archigos. Quando Ana terminou de se vestir, a por­ta de fora foi aberta novamente, e Beida entrou no quarto para anunciar que a carruagem estava à disposição na porta.

Ana saiu dos aposentos após recusar o rápido jantar oferecido por Watha e a insistência de Sunna que alguém da criadagem deveria acompanhá-la. Ela perguntou-se se estava sendo completamente tola, pois ficou exausta ao descer até a carruagem e praticamente desmoronou no assento quando o'téni-condutor abriu a porta para ela.

Seu destino, o'téni? - perguntou o jovem. Era o mesmo condutor que a pegara em sua casa naquele dia que parecia tão distante agora; ela sabia que o rapaz contaria tudo ao archigos. Ele olhava para Ana, para a ausência do robe verde.

Cooper Street, a um quarteirão do centro do Velho Distrito - disse Ana para ele. O condutor fez que sim com a cabeça e fechou a porta. Ela sentiu a carruagem balançar quando o rapaz se sentou e ouviu o começo de seu cânti­co assim que as rodas giraram. Ela recostou-se contra as almofadas e tocou a concha debaixo da tashta.

Você não deveria fazer isso. Já está exausta e precisa descansar. O archigos vai ficar chateado, e, portanto, não apenas você corre risco, mas o bem-estar de sua 'amília também. Pior, você coloca em perigo a própria alma...

Ela ignorou a voz insistente e fechou os olhos, sentiu o balanço da carrua­gem e ouviu o som das rodas passando pela Avi a'Parete.

Chegamos, o'téni - disse a voz do e'téni através da aba de couro entre a carruagem e o assento de Ana, aparentemente apenas alguns momentos depois, e ela percebeu que pegou no sono durante a viagem. Ana levantou a cortina na lateral da carruagem. Eles estacionaram em uma rua cheia de lojas, com o tumulto de gente andando em volta. Ana colocou a cabeça para fora da janela e olhou em volta. Era o anoitecer, o sol já tinha sumido, embora o céu continuasse bem azul e as estrelas ainda não tivessem aparecido. Rua acima, ela viu a grande extensão do centro do Velho Distrito, onde lâmpadas em postes elaborados ao redor da circunferência do centro esperavam pelos feitiços dos tênis para ser acesas.

O centro do Velho Distrito foi, há alguns séculos, o ponto de convergên­cia social de Nessântico, uma função agora dada à praça perto do Templo do Archigos e dos prédios mais novos e maiores da margem sul do ASele. A me­mória do passado do centro do Velho Distrito estava preservada nos edifícios altos e antigos que o ladeavam e no chafariz no meio, onde ficava a estátua de bronze de Selida II, feita em escala maior do que a real, com sua lança de guerra e escudo e o corpo contorcido de um líder tribal magyariano aos seus pés, subjugado e com as mãos erguidas em uma súplica silenciosa: no apogeu, o centro do Velho Distrito era conhecido como Praça da Vitória.

Agora, os prédios que um dia abrigaram os escritórios do governo do kralji e os grandes apartamentos dos ricos estavam velhos, cansados e dilapi­dados. Os escritórios agora viraram comércio de rua, as grandes residências foram divididas em uma série de minúsculos apartamentos sobre as lojas, cheios de famílias ci' e ce' e até mesmo sem status. Ainda havia uma vitalidade no centro, mas era nua e crua, tão forte quanto antes, porém mais sinistra e potencialmente mais perigosa.

O'téni - perguntou o condutor pela aba com uma voz nitidamente cansada pelo esforço da viagem -, aonde a senhorita quer ir?

Aqui está bom. — Ana olhou para fora novamente e viu as placas sobre as portas. - Bem ali: Finson, o ervanário. Ele tem uma infusão para chá que minha matarh sempre faz, e pensei que pudesse ajudar a kraljica. - Ela abriu a porta e saiu antes que o condutor conseguisse desmontar. - Espere aqui por mim - disse Ana para o rapaz. Ele era apenas uma silhueta negra contra o céu azul-marinho. — Não devo demorar. Espere aqui.

Ela afastou-se depressa ao mesmo tempo em que ouviu o condutor recla­mar; Ana tinha certeza de que as ordens do archigos eram para que o jovem permanecesse com ela. Ana entrou correndo na loja, e um sino tocou assim que abriu a porta. O ervanário, um velho com sobrancelhas grisalhas e revol­tas sobre olhos fundos, ergueu o olhar de uma mesa perto do fundo do esta­belecimento. A loja tinha cheiro de ervas e das várias velas acesas para conter a escuridão. - O que posso fazer por você, vajica? — perguntou ele enquanto se dirigia a um balcão decorado com jarras de vidro cheias de folhas secas.

Ana pousou um siqil no balcão, e a efígie de prata da kraljica na moeda reluziu na luz de velas. — Você tem uma porta dos fundos? — perguntou ela com os dedos ainda na moeda.

Ele ficou olhando para o siqil; mais dinheiro do que veria em uma semana de vendas. - Sim, vajica. É atrás daquilo ali. - O velho apontou para a escuridão do fundo da loja sem tirar os olhos da moeda. - Aqui, eu mostro para você...

Ana fez que não. - Eu descubro. Obrigada. - Ela tirou os dedos da moeda e deu a volta correndo pelo balcão. O cheiro das ervas era quase avassalador, mas Ana encontrou a porta e viu-se em uma viela estreita onde o fedor era mais humano e bem menos agradável. A direita, uma passagem, que levava a outra via do aglomerado de ruas em volta do centro. Ela pensou ter ouvido o som baixinho do sino da porta do ervanário, deu uma corridinha pela viela e saiu na rua, onde se deixou ser levada pela onda da multidão. Ana ficou dando voltas por um tempo ao redor do centro, longe do ponto onde deixou a car­ruagem, sempre olhando para ver se via o condutor e evitando os utilinos da vizinhança com seus cajados, lanternas e apitos caso tivessem recebido ordens para procurá-la, até que ouviu o cântico dos tênis que acendiam as lâmpadas.

Aí ela entrou no centro propriamente dito do Velho Distrito.

O espaço aberto estava cheio, porém, após uma rápida olhada em vol­ta, Ana viu que ninguém procurava por ela. Ninguém parecia notá-la. Ela perguntou-se o que o condutor estava fazendo; se procurava freneticamente por ela ou se retornou ao archigos para admitir que perdeu sua passageira. No céu, as primeiras estrelas brilhavam, e um grupo de seis e'ténis movia-se lentamente de lâmpada em lâmpada, e uma de cada vez irrompia em chamas frias e brilhantes. A multidão, com muitas pessoas em roupas estrangeiras, vibrava a cada lâmpada acesa. Elas faziam o sinal de Cénzi e seguiram os ténis-luminosos pelo perímetro, depois foram até o quarteto de lâmpadas em volta do chafariz.

Enquanto Ana espreitava no limite da multidão, bem longe dos ténis, ela sentiu alguém tocá-la levemente pelo lado. - O'téni co'Seranta?

Ana assustou-se e deu um passo rápido para longe do sujeito, que ergueu as mãos como se mostrasse que não tinha armas. Ele não era ninguém que ela conhecesse, estava vestido com roupas comuns, genéricas. - Quem é você?

Meu nome é Mika. Você não precisa saber do resto. O enviado ci'Vliomani pediu que eu lhe acompanhasse aonde ele está esperando. Man­dou dizer que a concha veio da Ilha de Paeti e que torce que você tenha achado interessante. Faria a gentileza de me seguir?

Ele começou a se afastar do chafariz e da multidão, indo para oeste. Não olhou para trás. Ana observou-o por vários passos, até haver várias pessoas entre eles. Ela mordeu os lábios e finalmente seguiu o homem, apertou o pas­so e costurou entre os pedestres até chegar ao lado dele. O sujeito não falou, apenas saiu do centro para as ruas estreitas que entravam no Velho Distrito em si. - Para onde você está me levando? - perguntou Ana finalmente.

O homem balançou a cabeça sem olhar para ela. - Para um lugar que você não conheceria. - Ele então parou e voltou-se para Ana. - Se isso lhe assusta, então fique à vontade para voltar ao centro do Velho Distrito. Tenho certeza de que o téni ficaria contente em lhe acompanhar de volta a um dos templos. Eu disse a Karl que você não viria.

Então você se enganou.

Ele pareceu achar graça ao ouvir isso. Deu de ombros e recomeçou a andar.

Os dois andaram por algum tempo, seguiram por ruas que davam voltas até que Ana ficou completamente perdida. Duas vezes o homem conduziu a o'téni para boca de um beco ou para as sombras entre duas casas quando um utilino passou. Eles evitaram um quarteirão onde um téni-bombeiro apaga­va um incêndio em uma casa. Na maioria das vezes, as pessoas por quem os dois passaram estavam preocupadas com os próprios compromissos, o que na maior parte dos casos envolvia numerosas tavernas.

O Velho Distrito não era uma área que Ana conhecia bem; como a maio­ria das famílias da margem sul, a dela raramente aventurava-se a cruzar as ponticas para a margem norte, a não ser para visitar o centro do Velho Distrito ou os Mercados do Rio. Mesmo quando sua família veio aqui, eles limitaram-se às ruas principais naquelas excursões, jamais se aventuraram muito longe da Avi a'Parete. Quando Mika parou diante de uma porta com lascas de tinta azul que insistiam em se manter grudadas à madeira, Ana não tinha mais cer­teza de onde ficava o rio, e a noite havia caído completamente sobre as ruas claustrofóbicas. Aqui não havia luzes mágicas brilhantes, apenas tênues velas nas janelas pontuando a escuridão - isso parecia outra cidade completamente. Mika bateu de leve duas vezes na porta, depois deu uma única batida forte. Um pequeno orifício foi aberto e Ana viu um olho espiando. A porta abriu apenas o suficiente para que eles passassem. Mika entrou e Ana seguiu, mais hesitante e com as primeiras palavras de um cântico de defesa na ponta da língua e as mãos prontas para o gestual apropriado.

Ela viu-se em um vestíbulo na penumbra. Diretamente em frente, uma escada levava ao segundo andar e um corredor conduzia para o interior do prédio; uma arcada com cortina escondia um aposento à direita. Ana conse­guiu ouvir vozes de algum lugar próximo. - Onde está o enviado ci'Vliomani? - Ela exigiu saber de Mika, mas a resposta veio do aposento à direita.

- Aqui. - Karl ci'Vliomani afastou as cortinas e entrou no vestíbulo. Ele sorriu e fez uma mesura para ela com as mãos ao lado do corpo. - Obrigado, Mika. Nós nos veremos lá em cima - disse o enviado, que gesticulou para o aposento atrás dele. - Gostaria de entrar, o'téni? Está longe de ser tão gran­dioso quanto o Palácio da Kraljica, mas vai ter que servir. - Ele sorriu para Ana. - Estou feliz em lhe ver novamente. De verdade. Aquela concha fica bem melhor em você do que em mim. - O enviado sorriu novamente; sem querer, Ana viu-se devolvendo o sorriso. A tensão interior diminuiu; Ana sentiu os ombros relaxarem enquanto passava pelas cortinas que o enviado manteve abertas para ela.

Água? Vinho? Um pouco de bolo? - Ele gesticulou para uma mesinha no centro da sala com travessa de comidas e bebidas.

O estômago de Ana roncou, mas ela fez que não. Havia duas janelas, ambas fechadas com cortinas pesadas, e fogo na lareira, mas a maior parte da iluminação na sala vinha de uma grande bola de vidro que brilhava com uma estranha luz branca azulada. Ana esticou as mãos na direção do globo: muito mais frio que o aposento. Tão frio quanto fogo do Ilmodo. - Eu não quero nada agora, vajiki - respondeu ela.

Aqui, pelo menos, você pode me chamar de Karl. - Ele sorriu novamente. - Se quiser.

Ana imaginou se sentiria aquela estranha atração novamente. Agora sabia que sentiu. Você não pode confiar nisso. Você não o conhece. - Karl - disse ela ao tirar os olhos do brilho frígido -, então aqui, pelo menos, você pode me chamar de Ana.

Ele fez uma mesura novamente. - Quero pedir desculpas pelo subterfúgio - disse o enviado enquanto ela olhava novamente para a luz. — Eu presumi que você não iria querer que o archigos soubesse onde estaria na noite de hoje e sei que eu certamente não quero, especialmente depois do que aconteceu com a kraljica. Garanto que você não foi seguida. - Ana ouviu a voz do enviado mudar o tom, ao mesmo tempo sério e compreensivo. - Como está a kraljica, Ana? Nós não ouvimos nada desde o Gschnas, a não ser o que os pregoeiros disseram.

Estou surpresa que você se importe. - Ana colocou a mão no globo; a sombra cobriu a parede atrás dela. - Até onde sei, os numetodos foram responsáveis,

Se você realmente acha que nós tivemos alguma coisa a ver com aquilo, não estaria aqui. - A repreensão foi gentil. - Nós podemos não concordar com a kraljica e a Concénzia, mas preferimos muito mais ter a kraljica no trono do que o filho dela.

É por isso que estou aqui, então? Você acha que posso ser uma voz soli­dária dentro da Fé? Infelizmente você superestima minha influência, enviado.

Karl - corrigiu ele. - Acho que você está aqui porque ficou curiosa, e eu lhe chamei porque... — O enviado parou. Foi até o globo, colocou a mão sobre ele e as sombras pularam. Ana removeu a mão rapidamente - ... porque eu acho que temos um interesse em comum.

E qual seria?

Você quer entender como o mundo funciona, assim como eu. - A mão do enviado fez um carinho na curva do globo. - Tipo como alguém pode usar o Scáth Cumhacht, o Ilmodo, mesmo de maneira que sua Divolonté diz que não deveria ou mesmo não pode ser usado. Você compreende isso, não é?

Ana sentiu o estômago revirar. Ela tentou se convencer de que era o atraso, o esforço com a kraljica, e o fato de que não comeu nada por horas. O enviado também deve ter notado, pois a mão não estava mais no globo, e sim no cotovelo de Ana, e seu rosto ficou preocupado. - O'téni? Você precisa se sentar?

Eu estou bem. - Ela forçou um sorriso. - Apenas cansada. Eu... dormi muito pouco nos últimos dias.

Entendo. A kraljica. — A mão do enviado não saiu do cotovelo de Ana, e ela não queria se afastar do toque. - Eu fiquei duplamente sentido que aqui­lo tenha acontecido daquela maneira. Eu... eu gostei de falar com você e de nossa dança. E não queria mal para a kraljica. - A mão então saiu, e ele franziu a testa. - Eu peço desculpas, Ana. Eu me atrevi.

Você não precisa se desculpar. Eu estimo sua preocupação, mais do que de­veria. Mas ela não deu voz aos pensamentos. — O que você queria me mostrar, Karl? Não temos muito tempo. O archigos...

Vai procurar freneticamente por você, sem dúvida. - Ele concordou com a cabeça. - Você está certa. Venha comigo então. Vamos subir para o salão. As coisas já devem ter começado agora.

O vestíbulo estava vazio quando ele afastou as cortinas, e Ana seguiu Karl escada acima. O som de conversa ficou mais alto até que ela conseguiu identificar vozes individuais na confusão. A escada levava a um mezanino que dava a volta no andar debaixo, iluminado intensamente pela mesma luz fria do globo do primeiro andar. - Aqui, Ana - disse Karl. Ele estava parado no parapeito do mezanino, atrás de um pano fino e escuro. - As pessoas lá embaixo não podem lhe ver se ficar atrás disso, mas você poderá vê-las per­feitamente. - No momento em que Ana começou a ir em frente, o enviado ergueu a mão. - Compreende a confiança que estou depositando em você, Ana? Você verá os rostos dos numetodos que moram em Nessântico, e isso é um conhecimento que o archigos, o a'téni ca'Cellibrecca e o comandante ca Rudka achariam extremamente interessante. Você literalmente terá a vida dessas pessoas em suas mãos. Tem que me prometer agora que não vai reve­lar quem você vir aqui.

E como você sabe que vou manter a promessa?

Um sorriso momentâneo. - Essa foi a mesma objeção que Mika fez. Vou lhe dizer o que falei para ele: eu olho para você e sei. Prometa. Jure em nome de Cénzi.

Eu pensei que os numetodos não acreditavam em Cénzi.

Eu não - respondeu o enviado. - Mas você, sim.

Você veio aqui porque queria saber. O conhecimento está aqui, à espera. — Eu não direi nada do que vir aqui. Em nome de Cénzi, eu lhe dou minha palavra.

Ele acenou com a cabeça e chamou Ana para a frente.

O salão embaixo era grande e aberto. Havia talvez trinta pessoas ali, a maioria sentada diante de um pequeno tablado onde estava Mika. Ela não reconheceu ninguém. — Tão poucos? - sussurrou Ana.

Você imaginaria que, pela ameaça que o aténi ca Cellibrecca diz que somos, haveria centenas de nós, não é? Eu gostaria que fosse o caso. Há outros que não puderam vir hoje à noite, mas não muitos. Não na cidade de Nessân­tico em si. Observe, porém, e verá o que os numetodos podem fazer.

... a noite de hoje será a sua primeira vez - dizia Mika. - O nome dela dentro do grupo é Varina. Por favor, façam com que ela sinta-se bem-vinda. - Houve aplausos tímidos quando uma jovem subiu ao palco. - Sejam gentis agora - falou Mika para os demais enquanto a garota ficou parada ali. - Vá em frente, Varina. Demonstre o que você aprendeu a fazer.

Varina acenou com a cabeça. Ela respirou profundamente e fechou os olhos. Começou a entoar: uma frase que não era na língua do Ilmodo que en­sinaram para Ana, embora tivesse afinidades como as mesmas cadências e vogais guturais, ela pensou ter reconhecido uma palavra ou duas pronunciadas de maneira estranha. Ainda assim, esses não eram os chamados direcionados a Cénzi que faziam parte de todos os cânticos que Ana aprendeu. As mãos de Varina mexiam-se com o cântico, e Ana viu princípios de luz se formarem ao redor delas. Enquanto continuava a entoar, o brilho aumentou até virar uma pequena bola de luz intermitente na palma da mão esquerda, agora virada para cima. Ela encerrou o cântico com um suspiro profundo. A bola de luz piscou e morreu.

Houve novos aplausos dos espectadores. Varina acenou com a cabeça, a seguir os olhos rolaram para dentro e ela desmoronou no piso do tablado. Tentou ficar de pé novamente e não conseguiu. Mika gesticulou e dois dos numetodos foram à frente; eles ajudaram Varina a se sentar em uma cadeira. Outro trouxe água. Alguém colocou um pano úmido na testa dela.

Você não me parece impressionada, Ana - disse Karl quando Mika subiu ao palco novamente.

Quanto tempo ela levou para aprender aquilo? - perguntou Ana.

Mika começou a trabalhar com ela na ocasião da primeira neve de inverno — respondeu Karl. - Leva tempo.

Eu podia fazer aquilo, e melhor, no primeiro dia em que o u'téni Dosteau começou a nos ensinar. Assim como quase todo mundo na minha turma. Até mesmo no Toustour há histórias de bruxas e feiticeiros que podiam usar o Ilmodo, por mais que não o manipulassem bem. Os moitidis estão sempre tentando provocar Cénzi, tentando desafiá-Lo, e permitem que o Ilmodo seja maculado apesar dos desejos de Cénzi.

Karl estava balançando a cabeça. - Varina não chamou Cénzi, nem um dos moitidis. Não há deuses ou semi-deuses envolvidos, de forma alguma.

Apenas um conjunto de palavras e gestos: uma coisa que qualquer um pode aprender. Mas você está certa: vocês tênis realmente aprendem a moldar o Ilmodo mais rápido do que nós, e Varina ainda tem pouca habilidade. Mas observe. Observe.

Mika estava falado novamente. - É importante que nós entendamos o Scáth Cumhacht e saibamos como contê-lo e moldá-lo. Mas, como venho dizendo para vocês, também é vital aprender como guardar o poder do Scáth Cumhacht para que possa ser usado rapidamente. Essa é a deficiência dos crentes da Concénzia. - Ele deu uma olhadela ligeira para o pano no meza­nino, depois se voltou para a platéia. - Olhem ali. — Mika apontou para uma lâmpada apagada sobre uma mesa no fundo do salão.

Ele falou uma única palavra e atirou a mão na direção da lâmpada. A palavra foi uma onda de choque, como se alguém tivesse batido em um grande tambor invisível. Ana quase pulou para trás com o som. Nenhuma voz humana conseguiria produzir aquele som sozinha. Ao mesmo tempo, a lâmpada acendeu - tão intensamente quanto as lâmpadas dos tênis, embora a cor fosse esverdeada. Os espectadores aplaudiram, mas Mika ergueu a mão para silenciá-los. Ele falou outra palavra retumbante e gesticulou novamen­te. A lâmpada acendeu novamente, mas desta vez não com luz, e sim com um calor enorme, como se houvesse uma fornalha aberta ali. O calor foi tão intenso que Ana ergueu o braço para proteger o rosto. Ela pensou que, a qualquer momento, as paredes e cortinas do salão pegariam fogo. Mika falou uma última palavra, e o fogo e calor desapareceram como se nunca tivessem estado ali.

Não houve aplausos desta vez. Houve apenas um silêncio de alívio. - Isso - disse Mika - é o que vocês precisam aprender. É isso que vamos ensinar quando estiverem prontos.

Os nós dos dedos de Ana estavam brancos sobre o parapeito do mezanino. - Ele não entoou cântico algum, não fez gestual, apenas uma única palavra e um gesto... - Ela olhou novamente para Mika. Ele estava sorrindo e andando pelo tablado; não parecia ter sido afetado de modo algum pela moldagem do que chamava de Scáth Cumhacht. Ana olhou novamente para Karl. — Ele não está cansado por ter lançado o feitiço?

Mika realizou os encantamentos horas antes e depois descansou por causa do cansaço. Não estamos fazendo nada diferente de vocês ténis, Ana. Manipular o Ilmodo é um grande esforço e cobra um preço de quem o faz. Mas Mika pagou há várias viradas da ampulheta. Ele só precisou dizer o gati­lho para a energia que estava contendo. Eles não ensinam isso em suas aulas, não é?

Você pode fazer aquilo?

Karl concordou com a cabeça. — Fui eu quem ensinou Mika. — Ele fez uma pausa e inclinou a cabeça. — E posso ensinar você. Ou sua Fé insiste que tal coisa não pode ser feita?

Ana olhou para a assembleia, onde Mika falava para vários numetodos. Os feitiços que Mika lançou não eram nada que ela não tivesse visto o u'téni Dosteau mostrar aos acólitos, nada que ela não pudesse fazer por conta pró­pria. Na verdade, Ana era capaz de fazer mais - como sabia pelo confronto com o vatarh ou pela ilusão que criou para a kraljica e os ténis-guerreiros concebiam feitiços altamente destrutivos. Mas todos exigiam tempo e esforço; todos exigiam os cânticos e gestuais; todos tinham que ser lançados na hora e custavam cansaço e dor para o conjurador. O u'téni Dosteau ficou impres­sionado com a rapidez de Ana em moldar o Ilmodo, o rápido lançamento do feitiço que protegeu o archigos.

Mas isso... uma única palavra, um único gesto...

Nem mesmo os dténis conseguiam fazer aquilo, nem os ténis-guerreiros. E se eu fizesse, eles diriam que era obra dos moitidis. Eles arrancariam minhas mãos e língua...

Vocês tênis moldam o Ilmodo com sua Fé — dizia Karl, mas Ana teve dificuldade em se concentrar no que ele falava. - Não nego isso. Não nego que vocês, crentes da Concénzia, especialmente os ténis-guerreiros, podem criar feitiços mais poderosos do que qualquer numetodo, mas vocês tiveram longos séculos para aprender os caminhos do Ilmodo. Nós aprendemos mais a cada ano que passa. Mas quero que você pense além de simplesmente moldar o Ilmodo, quero que pense nas conseqüências, Ana.

O enviado olhou para a concha no pescoço de Ana, e ela passou a mão pela forma cheia de sulcos. — Você explica as formas de conchas e peixes nas pedras segundo os termos do Toustour - continuou Karl -, mas nós procura­mos por outras explicações, que possam ser provadas ou refutadas através de análise. Eu ainda não sei ao certo, mas desconfio que iremos descobrir que as conchas nas montanhas realmente foram antigamente conchas no fundo do mar. A explicação pelo menos faz tanto sentido quanto a história de criação do Toustour e não precisa de deuses, apenas de forças naturais presentes na terra. E se o Scáth Cumhacht, o seu Ilmodo, pode ser alcançado e moldado por aqueles sem fé, se os numetodos podem até aprender a fazer coisas que os tênis não conseguem, então talvez o Scáth Cumhacht não tenha nada a ver com fé ou crença. Você pelo menos tem que considerar a possibilidade, Ana. Você viu com seus próprios olhos aqui, na noite de hoje.

A mão de Ana apertou a concha até sentir as bordas penetrarem na pele. Ela balançou a cabeça em uma negação muda, mas as palavras do enviado retumbaram por dentro. Não é verdade, não é verdade... A negação foi partida e consertada.

-Ana?

Ela mal conseguia respirar. A atmosfera parecia pesada e carregada. - Eu tenho que ir embora. Tenho que ir agora.

Karl franziu os lábios. A expressão era séria. - Sua promessa, Ana?

- Eu dei a minha palavra, enviado. Não a quebrarei. Agora, por favor, eu quero ir embora.

Ele fez que sim. - Eu lhe acompanharei de volta ao centro do Velho Distrito.

 

ALLESANDRA - CHAMOU JAN - Venha aqui com seu vatarh.

A menina afastou-se da criada que segurava sua mão e da aglomeração de mulheres em volta da hirzgin quando elas saíram da tenda palaciana do hirzg. Ela levantou poeira do solo rachado ao correr para Jan. O starkkapitán ca'Staunton, o uténi co'Kohnle e o ajudante de ordens de Jan, Markell, esta­vam ao lado do hirzg sob os raios de sol do início da manhã enevoada. Todos sorriram com educação quando a menina abraçou Jan pela cintura. — Bom-dia, vatarh - disse ela. — É um bom dia para deslocar o exército, eu acho.

Jan sorriu e abraçou a filha com força, permitiu-se um gostinho a mais de satisfação ao ver a expressão azeda no rosto da esposa. Ele falou com Greta na noite anterior que eles não iriam a Nessântico para o jubileu, e os urros de revolta da mulher mantiveram muitos dos cortesãos acordados. Markell e co'Kohnle deram acenos de satisfação com a cabeça ao verem o abraço entre filha e vatarh, mas a expressão do starkkapitán ca'Staunton era a mesma da hirzgin. - Viu só - falou Jan para ca'Staunton minha filha tem uma bela mente militar. Tudo o que você me dá, starkkapitán, são desculpas. Ela, pelo menos, não tem medo de avançar.

Meu hirzg, não é medo — disse ca'Staunton com um traço cauteloso de arrogância na voz. - Qualquer um dos chevarittai, dos offiziers e de nossos soldados daria a vida pelo senhor. E muitos deram, pelo senhor e pelo hirzg Karin anteriormente. Mas se deslocar na direção das fronteiras de Nessântico durante o jubileu da kraljica, mesmo como um exercício... - Ele ergueu os ombros debaixo da faixa da patente. Medalhas tilintaram. - Nós arriscamos um mal-entendido. Como eu disse, se nós ao contrário marchássemos na dire­ção de Tennshah, a kraljica não poderia protestar, e a marcha mais longa daria amplas oportunidades para exercícios de formações, especialmente assim que chegássemos às planícies orientais.

Jan olhou para a hirzgin novamente, que havia parado com sua comitiva cautelosamente fora do alcance de ouvir a conversa. Ele observou o rosto da esposa enquanto conversava com os convidados dela, embora sua atenção agora se voltasse para Mara, parada ao lado da hirzgin. Jan ficou a maior parte da noite com ela depois que o ataque de Greta finalmente passou. O rosto de Mara estava ligeiramente virado para o hirzg em vez de para a hirzgin, e ela acenou com a cabeça para Jan.

Nós não fomos sempre a poderosa espada na mão de Nessântico, a lança que os kralji atiravam contra os inimigos? - perguntou Markell para o starkkapitän ca'Staunton. - Não temos a necessidade, mais ainda, a obrigação, de exercitar esse braço para que não fique fraco e lento? U'téni co'Kohnle - Markell apontou para o téni-guerreiro - foi fundamental para o sucesso do a'téni ca Cellibrecca contra os numetodos em Brezno. Ele entende o que está em jogo. Começo a me perguntar a quem você serve primeiro, starkkapitän: à kraljica ou ao nosso hirzg.

O starkkapitän ca'Staunton olhou feio para Markell. - Eu sirvo ao hirzg, é claro - disparou. - Mas continuo afirmando que deslocar o exército tão próximo da borda de Nessântico é uma provocação desnecessária quando po­díamos facilmente virar para o leste.

Starkkapitän - falou Allesandra -, você não é o braço direito forte do hirzg?

Ca'Staunton pareceu assustado, mas Jan não conseguiu dizer se o starkkapitän ficou assim pela pergunta em si ou por uma adolescente dirigir-se a ele de maneira tão arrogante. - De fato, creio que é isso que eu e nosso exér­cito representamos, a'hirzg Allesandra - respondeu o starkkapitän, em um tom um pouco formal e com uma olhadela para Jan, como se buscasse sua aprovação.

Se meu braço direito se recusasse a me obedecer, eu mesma o deceparia - falou Allesandra para ca Staunton e sorriu inocentemente. - Para que serve um braço que pensa que manda no corpo?

Jan caiu na gargalhada ao ouvir isso, e Markell e co'Kohnle acompanharam o hirzg um instante depois. O starkkapitän ficou vermelho e abriu a boca em silêncio. - Pronto, viu só, starkkapitän? - disse Jan. - Nós contamos com a sabedoria da jovem a'hirzg. Talvez eu a promova a starkkapitän. O que você acha?

As bochechas do homem ficaram tão vermelhas como se o vento do inverno tivesse deixado o rosto em carne viva. Ca Staunton franziu a boca e abaixou a cabeça para Jan. — O hirzg certamente pode agir como quiser. - As mãos estavam crispadas ao lado do corpo, e as medalhas tilintaram com o movimento. - Eu venho servindo ao senhor, ao finado a'hirzg Ludwig, e ao seu vatarh toda a minha vida. Se isso não significa mais nada para o senhor, meu hirzg...

Olhe para mim, starkkapitän — interrompeu Jan, e ca'Staunton ergueu o olhar. - Sou grato pelo seu longo tempo de serviço, e você provou seu valor uma dezena de vezes ao longo da carreira. É por isso que lhe dei ouvidos a manhã inteira e é por isso que lhe digo agora que levaremos o exército para oeste.

Então eu informarei os a'offiziers — disse ca'Staunton. Ainda havia fúria no olhar, mas estava contida agora. Ele fez uma reverência novamente, para Jan, Markell e Allesandra, e depois deu meia-volta para ir embora.

Starkkapitän. - Jan chamou-o e cãStaunton virou-se de volta. - Prepare-os como se realmente fôssemos entrar em guerra. Quero que estejam tão prontos quanto estiveram quando lutamos em Tennshah.

O homem arregalou os olhos, e Jan notou que ele compreendeu. - Sim, meu hirzg. Eles estarão prontos.

Ótimo. Então vá e faça os preparativos. Eu espero estar em movimento na hora da Segunda Chamada.

Após outra reverência, ca'Staunton foi embora a passos rápidos. - E eu informarei os ténis-guerreiros - disse co'Kohnle, que franziu os olhos. — Se me permite dizer, meu hirzg, estou ansioso por isso. Que Cénzi lhe abençoe. - O úténi fez uma mesura e seguiu cãStaunton.

Posso cavalgar com o senhor também, vatarh? - pediu Allesandra ao cutucar a bashta de Jan. - Eu sei cavalgar muito bem agora.

Infelizmente, não. Você vai voltar para Brezno com a hirzgin.

Vatarh! - Allesandra bateu o pé, embora a grama tenha silenciado o protesto. - Se eu vou liderar o exército um dia, eu preciso aprender.

E você irá — disse Jan para ela enquanto mexia em seu cabelo com cari­nho. - Mas não hoje. Não ainda. Eu quero você em Brezno e que me escreva todo e qualquer dia. Diga-me o que a hirzgin faz e com quem fala. Essa é a sua tarefa.

Não é isso que Mara faz pelo senhor? - perguntou Allesandra, e Jan gargalhou de novo enquanto Markell sorriu.

Eu preciso de seus olhos lá - falou Jan sem responder à pergunta. - Lembre-se, eu quero saber de você todo dia. Markell vai ensinar como me mandar mensagens privadas antes de você ir embora hoje. Agora, eu preciso que você volte para sua matarh. Não diga nada para ela do que conversamos. Não ainda; eu mesmo vou contar em alguns minutos, depois de terminar de falar com Markell. Vá agora.

Eu não quero. Quero ficar aqui com o senhor. Quero escutar.

Allesandra, você é o meu coração - falou Jan para a filha. - Assim como o starkkapitán ca'Staunton é o meu braço direito. E não quero ter que arran­car meu próprio coração porque ele não me obedece.

Isso não é justo, vatarh. — Ela fez um beicinho dramático.

Não, não é - disse Jan sorrindo. - Mas continua sendo necessário. Vá agora. Seja a a'hirzg, não a minha filha.

Allesandra suspirou alto, depois finalmente ficou na ponta dos dedos quando Jan se abaixou para beijá-la. - Vou escrever todos os dias — sussurrou ela ao dar um abraço no pescoço do vatarh. - E vou contar tudo. - Dito isso, Allesandra soltou o hirzg e correu de volta para a aglomeração de mulheres perto das tendas.

Meu hirzg? - falou Markell. - Devo mandar uma mensagem para o a'téni ca'Cellibrecca, para deixá-lo ciente de suas intenções?

Jan viu Mara abaixar-se para pegar Allesandra nos braços; ela sorriu para Jan sobre o ombro da garotinha. A hirzgin franziu tanto a boca que, mesmo a esta distância, Jan foi capaz de ver as linhas de expressão no rosto comum e achatado. - Sim - respondeu o hirzg para Markell. - Diga ao a'téni que é a hora de ele fazer sua escolha: ou está comigo ou com o a'kralj. Diga que ele não pode mais jogar dos dois lados. Tem que fazer sua escolha agora. Diga que eu soube que a filha dele irá procurar por um marido em breve e que eu estarei à procura de uma esposa. - Jan deu um tapa no ombro de Markell. — Quando chegarmos à fronteira, Markell, a kraljica vai se dar conta de que a torça dos Domínios é Firenzcia. Ela vai negociar, como sempre faz, em vez de irriscar uma guerra, e os termos farão de mim o a'kralj, não o filho dela. Pelo que ouvi dizer, essa situação pode até agradar a kraljica. E, senão... - Jan deu de ombros. - Então que Cénzi tenha piedade dela no além.

 

ANA IMAGINOU que o archigos estaria esperando por ela em seus aposentos quando voltou do Velho Distrito. Ele não estava. Houve, na ver­dade, apenas silêncio da parte do archigos no dia seguinte, um dia em que Ana realizou suas tarefas no Templo do Archigos sem vê-lo, um dia em que a kraljica continuava - de acordo com todos os rumores — à beira da morte, um dia em que ela descobriu que não conseguia parar de pensar no que vira. Os numetodos atormentavam seus sonhos à noite e espreitavam como sombras os pensamentos de dia.

Ana voltou mudada e sabia disso. Ela perguntou-se por que ninguém mais compreendia a questão também. Na manhã do dia seguinte, veio uma mensagem do archigos: ele queria encontrá-la no Grande Palácio da kraljica imediatamente. A carruagem já estava à espera de Ana; o archigos não estava no veículo, mas o condutor era o mesmo e'téni que a levara ao Velho Distrito. Ele deu um olhar acusador para Ana ao abrir a porta da carruagem.

No palácio, Renard esperava para acompanhá-la aos aposentos da kraljica. - Como ela está? - sussurrou Ana enquanto andavam. O clima no palácio era lúgubre; os criados que Ana viu de relance corriam com seus afazeres, em silêncio e de testas franzidas. Renard balançou a cabeça.

Eu rezo, o'téni, assim como o archigos, mas infelizmente o chamado de Cénzi é muito forte.

Os criados do salão abriram a porta para os aposentos da kraljica quando eles se aproximaram. - O archigos mandou a senhorita ir diretamente para o quarto dela. Eu espero aqui - falou Renard. Ana fez que sim, e o velho pegou suas mãos antes que ela pudesse ir embora. - Se puder ajudar, os curandeiros com suas poções e sanguessugas não foram capazes de fazer nada, mas a se­nhorita... a senhorita conseguiu mantê-la viva. Eu sei que é o que ela gostaria, e Cénzi vai lhe perdoar.

Renard soltou as mãos de Ana, deu meia-volta antes que ela pudesse responder e deixou-a sozinha. A voz do archigos chamou a o'téni de dentro do quarto. — Ana? Venha aqui...

Todo o aposento parecia igual desde a última vez em que foi visto por ela, tudo menos a kraljica. O rosto era um crânio pálido envolto em pergaminho sobre as cobertas, com fios de cabelo branco que teimavam em não cair. A kraljica parecia já morta, com os olhos e as bochechas fundos.

Ela está quase morta — falou o archigos. Ele estava sentado ao lado da cama e parecia uma criança encarquilhada na cadeira alta com as pernas balançando abaixo do robe de archigos, de meias brancas e chinelos. Ana procurou por uma expressão de acusação no rosto do anão e só viu tristeza.

Sinto muito, archigos. — Ela foi para o outro lado da cama e olhou para a kraljica. - Não posso ajudá-la. Não dá mais.

Tente. - A única palavra foi uma ordem. A tristeza profunda no rosto do archigos tinha sido apagada. Ele olhou por cima da cama para Ana com as sobrancelhas erguidas em uma expressão de raiva.

Archigos, eu tentei. O senhor sabe disso. E a Divolonté...

Ele interrompeu Ana e quase se levantou completamente da cadeira com as mãos. — Você vai tentar de novo. Eu lhe trouxe da obscuridade para a Fé; promovi e protegi você. Dei para você e para sua família tudo que eles pos­suem. Sei aonde foi na outra noite e não disse nada. Protegi você de inimigos que não sabe que tem, Ana. Você vai tentar. - Ela começou a reclamar, mas o archigos abrandou a voz. — A kraljica tem sido meu apoio e minha melhor amiga há décadas, e o fato de ela estar doente não é o plano de Cénzi, mas de outra pessoa. Eu sei o que estou pedindo de você e sei o que diz a Divolonté. Tente. Mais uma vez.

A boca da kraljica abriu-se ligeiramente com um hálito podre. Ana fez que sim. - Vou tentar. - Ela fechou os olhos, respirou fundo para se acalmar, tentou não pensar no cansaço e na dor que viriam a seguir.

As palavras do cântico soaram falsas aos seus ouvidos. Ela não parava de pensar no que viu com os numetodos. "Talvez o Ilmodo não tenha nada a ver com fé e crença afinal de contas... "Ela chamou Cénzi... mas não houve respos­ta. Não desta vez. As palavras eram vazias, as mãos apenas gesticularam no ar, não na corrente fria e invisível do Ilmodo. Assustada, ela abriu os olhos e viu que estava sendo observada pelo archigos. Ele parecia não notar que o feitiço estava vazio, o rosto era ansioso e esperançoso.

Cénzi, o que foi que eu fiz? O Senhor me abandonou?

Ana parou de entoar. Deixou os braços caírem. - Archigos, sinto muito. Não consigo fazer nada por ela.

O archigos acenou com a cabeça como se isso fosse o que ele esperava ouvir. Ana percebeu que o archigos não a compreendeu, mas sim que o anão acreditava que ela já havia tentado e falhado. Ana começou a contar a verda­de, mas não conseguiu pensar em um jeito de fazer isso sem trair a promessa feita a Karl. Eu vi outro lado do Ilmodo, e Cénzi levou embora meu Dom porque duvidei. O archigos retiraria sua Marca e a mandaria embora. Exigiria que o vatarh devolvesse as solas dadas em pagamento por seus serviços. Sua família cairia em desgraça, e ela seria a causa de tudo.

A kraljica iria morrer, e ela levaria a culpa.

- Obrigado pelo esforço, Ana - dizia o archigos. — Sei que era a hora dela, mas eu não queria... — Ele parou. Ana viu o rosto do anão ser tomado por tristeza ao olhar a kraljica. - Fique aqui comigo. Reze comigo.

Ana concordou com a cabeça, levou uma cadeira para o outro lado da cama e sentou-se diante do archigos. Os olhos dele estavam fechados e os lábios moviam-se. Um brilho tênue emanava das mãos; ele estava evocan­do o Ilmodo por reflexo, inconscientemente. Ana ficou muda. Ela observou o archigos, mas não conseguia rezar. Seus pensamentos eram caóticos: uma mistura assustadora de medo do que aconteceria com ela; de imagens do uso herege do Ilmodo por parte dos numetodos; do que ensinaram a ela sobre tênis que perderam a fé e foram punidos por Cénzi, jamais capazes de usar o Ilmodo novamente.

— Archigos — falou Ana quase em um sussurro. - Deixe-me tentar nova­mente, mais uma vez... - Os olhos do anão abriram-se, o brilho sumiu das mãos. Ele fez que sim em silêncio.

Por favor, Cénzi. Eu não deveria ter duvidado do Senhor... Ela recomeçou a entoar, tentou abrir um caminho para Cénzi e o Segundo Mundo. Não houve resposta imediata, nenhuma sensação do poder frio do Ilmodo, e Ana pensou que tinha falhado mais uma vez. Ela continuou a entoar as palavras, a fazer os gestos, como se pudesse abrir um caminho à força por pura determinação... e começou a sentir o Ilmodo próximo mais uma vez, agarrou o poder e moldou-o, moveu as ondas frígidas na direção da kraljica em estado de coma.

Novamente Ana sentiu o vazio ali, percebeu como o desgastado fio de vida do corpo da kraljica conduzia irrevogavelmente ao quadro em algum lugar do palácio. Ela passou o Ilmodo por aquele fio e começou a puxá-lo de­licadamente. Devagar, bem devagar, Ana começou a puxar a kraljica de volta mais uma vez. Ela quase soluçou de alívio e pelo esforço. Obrigada, Cénzi. Obrigada...

Ana conseguiria trazer a kraljica de volta, mesmo que não fosse capaz de curá-la completamente. Ela conseguiria...

... mas Ana foi tomada por uma estranha náusea, uma súbita desorientação. Como se alguém tivesse balançado o mundo. Por um instante, ela pensou que fosse o tremor de um terremoto... e percebeu que o fio que prendia a kraljica ao corpo estava rompido, o que era impossível.

- Não! - gritou Ana. O feitiço foi dissolvido, o Segundo Mundo sumiu, o Ilmodo fugiu de suas mãos.

A boca da kraljica estava aberta, mas o peito estava imóvel. O cabelo, há apenas alguns segundos escovado e arrumado, estava bagunçado, como se no último momento ela tivesse se debatido e reagido. O archigos ficou de pé, e Renard, de seu posto na parede, chamou o curandeiro pela porta, com uma voz embargada. O curandeiro entrou, viu o corpo e levou um espelho às narinas da kraljica.

Ele balançou a cabeça.

O archigos começou a prece dos mortos enquanto Renard soluçava, e os criados saíram correndo do quarto. Ana chorou com ele e perguntou-se se estava chorando pela kraljica ou porque Cénzi tirou-a de suas mãos, como se fosse um castigo.

Antes que o archigos terminasse a prece, as trompas dos templos começaram a soar pela cidade.

 

ORLANDI SENTIU-SE COMO SE ESTIVESSE DOENTE, como acontecia desde que decifrou a mensagem do hirzg. O chão treme sob os pés de soldados, o hirzg terá uma nova esposa e a kraljica irá se submeter. A hora chegou. Escolha.

Tudo deu totalmente errado desde o Gschnas. Orlandi tinha previsto íogar o hirzg contra o a'kralj por alguns meses ainda, tempo em que avaliaria quem daria o melhor aliado no fim das contas. Mas agora... o hirzg, sempre impetuoso e perigoso, estava forçando Orlandi a agir. Ca'Cellibrecca subes­timou os dois e a vontade de ambos de seguir um caminho mais longo e cauteloso. O hirzg avançava com o exército como uma ameaça descarada e, se a suspeita de Francesca fosse verdade, então o a'kralj foi o responsável pela morte da kraljica.

O a'kralj, um matricida: infelizmente, tais pessoas abomináveis quase não eram raras na linhagem dos kralji.

Mas a kraljica estava morta e o a'kralj seria coroado kraljiki, e Justi já havia informado Orlandi que queria Francesca como sua noiva. Jan ainda não sabia da morte da kraljica, e Orlandi tinha que ser a pessoa a contar para ele antes que a notícia chegasse ao hirzg por outros meios, ou então Jan pensaria que Orlandi já tinha feito sua escolha. Quando o hirzg recebesse aquela confirma­ção, Orlandi tinha certeza de que ele não hesitaria em nada.

O hirzg mandaria o exército cruzar a fronteira na esperança de tomar o Trono do Sol para si.

Esse era o pensamento mais perigoso de todos. Orlandi sempre se considerou um mestre que mexia nas peças do jogo, mas agora as peças impuseram as próprias vontades.

Escolha. Você tem que escolher.

O archigos dera a Orlandi um gabinete no Templo para que ele não precisasse voltar a lie Verte com o advento da súbita doença da kraljica. Orlandi ficou de joelhos no carpete, gemeu pelo esforço quando as juntas reclamaram, e dobrou o corpo até ficar encolhido ali, com as costas curvadas e a testa encostada no pelo. Ele rezou como se fosse um simples e'téni na missa do templo. Cénzi, eu Lhe imploro que me ajude agora. Mostre-me a Sua vontade. Diga-me como posso realizar Seu trabalho... Orlandi rezou, sem saber quanto tempo passou ali, recitou os poemas de louvor que ele gostava tanto no Tous­tour. E o Seu trabalho que realizo aqui. Não o meu. Guie-me, pois sou cego e confuso demais para enxergar o caminho...

Depois de um tempo, ele levantou-se lentamente, todo dolorido. Esfregou os olhos. Orlandi não ouviu uma resposta clara às preces, mas sabia de uma coisa: quer fosse o a'kralj ou o hirzg que finalmente se sentasse no trono, aquela pessoa precisaria de uma esposa adequada que lhe desse o laço político que fosse útil. E Orlandi podia - teria que — providenciar isso.

Ele foi até a porta e falou com a e'téni postada ali. - Encontre alguém para chamar o mensageiro de Firenzcia para mim; eu tenho uma mensagem para ele entregar ao hirzg. Depois procure pelo u'téni Estraven ca'Cellibrecca no Velho Templo e diga para ele vir aqui imediatamente. Entendeu? — A e'téni, uma moça que parecia não ter mais do que 16 anos e recém-saída dos estudos como acólita, fez que sim com olhos arregalados. Ela hesitou e Orlandi fez um gesto impaciente para a jovem. — Vá - disse ele, e a e'téni saiu correndo sem sequer fazer o sinal de Cénzi.

Orlandi voltou à mesa e tirou o disco de cifra do bolso da vestimenta. Ele pegou um pedaço de velino da gaveta e abriu o potinho de nanquim. Escre­veu devagar e com cuidado, passou areia no manuscrito e assoprou antes de dobrá-lo. Pegou uma vela e uma barra de cera vermelha e selou a carta ao pres­sionar o anel na gota de cera do tamanho de uma folia de bronze que esfriava. Ele colocou a carta em um envelope, endereçou ao hirzg e também o selou.

Quando terminou, o mensageiro chegou. Orlandi entregou o envelope ao homem. — O hirzg tem que estar com isso em mãos em dois dias. A carta é vital, e não importa quantos cavalos você tenha que matar para entregá-la para ele. Entendeu? - O mensageiro fez que sim. Estraven estava do lado de fora quando Orlandi abriu a porta para despachar o homem.

A'téni - disse Estraven ao fazer a mesura e o sinal de Cénzi enquanto o mensageiro saía correndo. — O senhor me chamou?

Sim. Entre. Sente-se, Estraven. Há vinho e água na mesa; por favor, refresque-se.

Ele observou Estraven se servir de uma taça de vinho. - Desculpe ter demorado tanto para chegar aqui, a'téni; quando sua e'téni apareceu para me chamar, eu estava terminando as passagens da Segunda Chamada para os ce­lebrantes e tive que falar com o maestro do coral sobre a missa da noite e a cerimônia da kraljica. Vim assim que pude.

Orlandi fez um gesto com a mão. - As necessidades da Fé vêm primeiro. De certa forma, foi por isso que mandei lhe chamar. Preciso de você porque sei que posso confiar que irá manter os assuntos da Fé em segredo.

O rosto de seu genro ficou levemente ruborizado de orgulho. — Com certeza o senhor pode confiar, aténi. O que precisa de mim?

Preciso que você vá a Brezno, Estraven. Rápido. Quero que parta ama­nhã de manhã.

O sorriso de Estraven desmanchou-se. O vinho tremeu na taça. - Para Brezno? Com o funeral da kraljica daqui a uma semana? Pensei que o senhor tivesse deixado o úténi co'Kohnle como responsável por Brezno e Firenzcia. A'téni, e quanto à minha responsabilidade aqui? Todas as missões, minhas obrigações... eu não poderia...

Você pode e vai - disse Orlandi com firmeza, e isso fechou a boca de Estraven. - Eu cuidarei para que cubram suas obrigações. O uténi co'Kohnle está com o hirzg e fora de Brezno, e eu preciso de alguém naquela cidade pelo próximo mês ou dois. Preciso de você lá rápido, especialmente com a perda da kraljica. Eu não posso sair de Nessântico, não com o funeral.

O quê... - Estraven parou e umedeceu os lábios. Ele tomou um gole de vinho. Parecia estar se recuperando. — Isso tudo é tão repentino. Desculpe, a'téni, se eu pareci estar confuso, mas essa situação é tão inesperada. Certa­mente eu farei o que o senhor me pedir, como sempre fiz. O que precisa de mim em Brezno?

Eu mandarei instruções escritas hoje à tarde, Estraven, para que você abra assim que chegar ao templo em Brezno. Também avisarei ao u'téni co'Kohnle sobre sua atribuição temporária. Enquanto isso quero que se pre­pare para partir ao romper do dia.

Estraven pousou o vinho e levantou-se. - Vou começar então. - Ele bateu no queixo bem barbeado com um dedo. - Avisarei Francesca que nós partiremos... ou o senhor já fez isso, a'téni? Ela vai precisar reunir a criadagem.

Francesca ficará aqui. - Orlandi gostou de ver Estraven piscar como resposta. - Você viajará com o vajiki Cario co'Belli e quem trabalha com ele. Co'Belli é um comerciante que viaja freqüentemente pelos Domínios e também tem me servido nos últimos anos. Eu mandarei dois tênis da minha própria equipe para agir como seus assistentes e coordenar as coisas assim que você chegar a Brezno; a sua equipe pessoal deve permanecer aqui, uma vez que eles sabem os costumes do Velho Templo. O vajiki co'Belli é um aliado meu há algum tempo e tenho toda a confiança nele, apesar das opiniões que você tiver a respeito de seu jeito meio grosseiro. A lealdade dele é inquestionável.

Claro, a'téni. Tem mais alguma coisa que eu precise saber?

Não agora — falou Orlandi. Ele foi até o homem, pegou suas mãos e deu tapinhas. - Estraven, eu lhe dei essa tarefa porque sei como você é dedi­cado à Fé e sei que sempre me serviu bem. Eu lhe recompensei com a mão de Francesca por causa da sua fé. Agora peço que confie em mim novamente.

É claro, a'téni. - A bravata voltou à voz de Estraven, agora que o ego foi devidamente afagado. - Eu não lhe decepcionarei.

Eu sei que não - respondeu Orlandi. Ele soltou as mãos de Estraven, foi até uma das janelas e afastou as cortinas para contemplar a praça do tem­plo. - Agora você deve ir. Não tem muito tempo.

Orlandi não perdeu tempo em olhar para a reverência de Estraven. Ele teria que mandar uma mensagem imediatamente para co'Belli e avisá-lo do que precisava ser feito. E teria que jantar mais tarde com Francesca, sozinho, para que pudessem conversar.

Escolha. Ele escolheria. Precisava escolher. Mas Orlandi adiaria a escolha até poder ter certeza de qual das duas grandes peças no tabuleiro era a mais forte: o a'kralj ou o hirzg.

Ele imaginou como Francesca reagiria às novidades.

 

COMANDANTE, o corpo está aqui.

Sergei foi até onde o homem apontou.

Seu acompanhante, o'offizier ce'Falla, ofereceu um lenço de seda encharcado de perfume, mas Sergei dispensou com um gesto. Ele atravessou o gramado alto até a margem do A'Sele e viu o corpo, que parecia um morro escuro na grama, a poucos passos da corrente verde e lenta do rio. O cadáver já apresentava um cheiro de decomposição, e moscas negras voaram agitadas e irritadas quando Sergei aproximou-se. Quatro camponeses estavam próximos e pareciam nervosos, meio assustados. Sergei sorriu para eles, embora notasse que olhavam para o seu rosto. Para o brilho do seu nariz.

Vocês agiram como deveriam agir, e estou aqui para agradecer em nome da kraljica - disse Sergei para os camponeses. Eles abaixaram as cabe­ças ao ouvir isso e fizeram o sinal de Cénzi. — Cada um receberá meio siqil de recompensa. O o'offizier tomará conta disso... - Ele indicou ce'Falia, que rapidamente afastou os agora sorridentes camponeses enquanto Sergei se agachava ao lado do corpo.

O cadáver estava deitado de barriga para cima no chão. Ele tinha sido ata­cado por carniceiros, mas embora o rosto tivesse praticamente sumido, Sergei reconheceu pelas roupas pretas e corpo magricelo que aquele era ci'Recroix, mesmo que o caderno de desenho arruinado pela umidade a poucos passos já não fosse uma testemunha muda. — Os camponeses roubaram alguma coi­sa, vajiki? - perguntou Sergei ao homem que tinha ficado para trás: Remy ce'Nimoni, um administrador que trabalhava para o chevaritt Bella ca'Nephri, proprietário do castelo e da terra onde ele se encontrava e que também era, conforme o comandante sabia, um dos bons companheiros do a'kralj.

Sergei descobriu que instintivamente não estava nem aí para ce'Nimoni. Ele tinha um ar arrogante, e o comandante flagrou-o rindo de maneira estra­nha enquanto os dois conversavam ao sair do castelo para o local onde o corpo fora encontrado. Nem os olhos surpreendentemente verdes do administrador foram parar no rosto de Sergei. Suas respostas às perguntas do comandante fo­ram muito rápidas e muito convenientes, como se ele tivesse pensado demais em todas as possibilidades ou tivesse sido bem orientado por alguém.

Essa suspeita não era um caminho que Sergei queria tomar. O chevaritt ca'Nephri era próximo demais do a'kralj para que Sergei ficasse à vontade ao suspeitar disso.

Roubaram alguma coisa? Acho que não, comandante — respondeu ce'Nimoni agora. - Eles viram o corpo e o sangue, e pela roupa preta ficaram com medo de que fosse um feiticeiro ou coisa pior e voltaram correndo para o castelo. Revistei todos eles depois e não encontrei nada. Aí postei guardas aqui até que o senhor pudesse ser chamado. Eles mantiveram afastada a maioria dos animais, porém... - O administrador gesticulou para o cadáver, e nova­mente houve aquele brilho de um sorriso, e o olhar para o corpo era quase possessivo. - Não todos, como pode ver. Os cachorros e lobos têm menos medo de um cadáver do que nós e são muito insistentes.

- Animais selvagens reconhecem uma oportunidade quando ela apare­ce - respondeu Sergei. - Se me dá licença, vajiki, eu gostaria de examinar o corpo. Sozinho.

Ce'Nimoni fez uma mesura. - Como quiser, comandante. Eu estarei na trilha com os cavalos.

Sergei debruçou-se mais sobre o corpo enquanto o sujeito ia embora. A pele ficou contraída acima da ponte do falso nariz ao sentir o cheiro, mas o fedor não era pior do que as celas dos níveis inferiores da Bastida, onde o esgoto e podridão misturavam-se ao odor de homens acorrentados e desesperados. Sergei notou o sangue seco na blusa do homem, embora os animais tenham roído a maior parte do tecido e aberto o estômago para chegar às entranhas do homem - seria difícil determinar se ci'Recroix fora ferido primeiro ali. O corte no pescoço, porém... mesmo com as mordidas dos animais e os vermes que entravam fundo no ferimento, era visível que uma lâmina fez o corte.

Então o homem foi assassinado. Sergei imaginou que esse seria o caso assim que chegou a informação do corpo encontrado perto de Pré a Fleuve. Decep­cionante: ele teria gostado da oportunidade de descobrir o que ci'Recroix sa­bia, através dos interrogatórios lentos, cuidadosos e dolorosos de que a Bastida era capaz. Sergei tinha certeza de que a pessoa que contratou ci'Recroix teve medo exatamente disso.

Ele ainda não havia tocado no corpo. Um cordão emitia um brilho rosco em volta do pescoço dilacerado; Sergei aproximou-se mais. Os dedos enluvados afastaram o manto rasgado. Havia um pingente pendurado sobre o peito do homem: uma concha escura, esculpida em pedra.

Sergei perguntou-se por apenas um segundo antes que lhe ocorresse a resposta de onde tinha visto um pingente similar. Ele meteu a mão e arrancou a concha, cujo cordão fino foi rompido contra o peso do crânio. Sergei fez uma careta e guardou a concha no bolso.

Que trapalhada, vajiki ci'Recroix - falou o comandante para o cadáver. - Será que um homem com seu grande talento poderia realmente ser tão estúpido?

Como se fosse uma resposta, um besouro saiu da boca aberta do corpo. Sergei deu um sorriso cruel.

Ao se afastar do corpo, ele parou para pegar o caderno de desenho, viu rapidamente algumas páginas e parou no último esboço antes de fechá-lo: um pássaro desenhado em carvão que parecia sólido o suficiente para sair voando da página. Ele colocou o caderno debaixo do braço. Ao ficar de pé, Sergei olhou novamente para o corpo por vários instantes. Finalmente, fez o sinal de Cénzi sobre os restos mortais, depois subiu a margem para a estreita alameda que levava ao castelo. Ce'Nimoni estava esperando ali com ce'Falla, junta­mente com seus próprios cavalos e também com o garanhão cinza de Sergei; os camponeses tinham ido embora.

Nós terminamos aqui, o'offizier - falou para ce'Falla. Ele guardou o caderno de desenhos em uma bolsa na sela. — Vamos cavalgar agora. Eu tenho trabalho a fazer em Nessântico.

Ce'Nimoni franziu a testa, as sobrancelhas encobriram os olhos da cor da campina. - Comandante, o corpo...?

Enterre, queime, deixa apodrecer, o que quer que o chevaritt ca' Nephri mande você fazer com ele. Eu não me importo. Descobri tudo que era possível saber com o corpo. - Dito isso, Sergei montou no cavalo cinza, que relinchou de maneira nervosa e franziu as narinas como se estivesse incomodado com o cheiro nas roupas de Sergei. O comandante puxou as rédeas e inclinou-se para a frente a fim de fazer carinho no pescoço para acalmar o cavalo. - Você fez bem - falou para ce'Nimoni. - Da próxima vez que a Gardes a Liste examinar a Listagem, sei que vão considerar seu serviço aqui. Eu vou comunicar sua cooperação e rápida intervenção aqui para o chevaritt ca'Nephri e a kraljiki.

O administrador fez uma reverência e levou as mãos entrelaçadas à testa. Novamente, Sergei notou um relance daquele sorriso presunçoso no rosto do homem. E que eu ainda arrume uma desculpa para lhe mostrar a Bastida, acrescentou em silêncio.

Sergei então gesticulou para o o'ofizier ceFalla, e ambos cavalgaram rumo a noroeste para Nessântico.

 

- CO'BELLI! Onde está você?

Não houve resposta. Estraven olhou para os três menires cinzentos e sujos de limo que estavam apoiados uns nos outros bem perto da Avi a'Firenzcia, a estrada que acompanhava o rio Clario. Na garoa, eles pareciam especial­mente sombrios e sinistros, como se tivessem sido erigidos pelos filhos dos moitidis na Primeira Era. - Pelo mijo de Cénzi - murmurou Estraven. Ele es­talou as rédeas do cavalo, depois rapidamente fez o sinal de Cénzi e sussurrou uma breve prece para pedir perdão pela blasfêmia. O cavalo sacudiu a crina molhada, relinchou e mexeu as orelhas como se tivesse ouvido algo. Estraven mudou de posição, ansioso na sela. - Co'Belli! — chamou novamente.

A pequena trupe - Estraven, o comerciante co'Belli, dois e'ténis da equi­pe do a'téni ca'Cellibrecca e quatro homens cuja tarefa era cuidar das bestas de carga que co'Belli trouxe com ele - cruzou a fronteira de Firenzcia ontem e passou pelo posto de guarda montado do outro lado da Avi, na cidade fron­teiriça de Ville Colhelm. Eles estavam a três dias de Nessântico, e Estraven ficou arrependido de ter aceitado o pedido de seu vatarh-por-casamento. Pelo menos, o a'téni ca'Cellibrecca poderia ter deixado que ele trouxesse sua pró­pria equipe, mas o a'téni insistiu que eles ficassem para trás no templo na Ilha A'Kralji para que pudessem cuidar das cerimônias do funeral da kraljica.

- Quando você chegar a Brezno, meu pessoal estará à sua espera — dissera ca'Cellibrecca. - Como falei, co'Belli é um homem grosseiro sob vários aspec­tos, mas também é leal. Ele vai garantir que você tenha conforto, nem que seja porque isso é o que ele vai querer para si mesmo.

Estraven tinha que concordar com a afirmação de seu vatarh-por- casamento de que o homem era "grosseiro". Isso certamente ele era. O con­ceito de "conforto" de co'Belli parecia consistir basicamente em garantir que os barris da estalagem estivessem cheios de boa cerveja e que as garçonetes fossem graciosas e seduzíveis. Co'Belli bebeu e fornicou a noite inteira em cada vilarejo em que eles se hospedaram. Estraven permaneceu enojado no quarto e obrigou os e'ténis a fazer o mesmo. Passou o tempo escrevendo cartas para Francesca e para seus assistentes o'ténis no Velho Templo em Nessântico.

Tudo isso valeria a pena um dia. Um dia ele seria o próprio a'téni ca'Cellibrecca, postado em uma das grandes cidades dos Domínios. Ele traba­lharia com seu vatarh-por-casamento, que seria o archigos Orlandi, e juntos criariam uma fé concénziana mais forte do que jamais foi, inexpugnável e mais poderosa do que o kralji e os governantes das outras terras dos Domí­nios. Seriam os fundadores de uma nova ordem firmemente enraizada nas palavras do Toustour e na lei da Divolonté.

Um mundo melhor do que este aqui. O que no momento não era nada difícil de acreditar para Estraven. Praticamente qualquer mundo seria melhor do que esse. Suas roupas estavam ensopadas, e ele tinha bastante certeza de que pegou uma horrível infestação de piolhos em uma daquelas camas solitárias.

Eles passaram a noite anterior em uma das muitas estalagens de Ville Colhelm, onde co'Belli falou arrogantemente para o estalajadeiro que "o a'téni ca'Cellibrecca de Brezno vai pagar por seus melhores quartos". De manhã, uma das camareiras entregou uma mensagem do comerciante. Negócios a tra­tar. Vou encontrar você nos menires fora do vilarejo no meio da manhã. Estraven perguntou-se que tipo de negócio co'Belli estaria tratando e qual seria o nome dela, mas a camareira não sabia nada além do fato de que "o vajiki gordo e seus companheiros saíram não muito depois da aurora, juntamente com os dois tênis. Sem dormir nada, vajiki. Eles passaram a noite acordados, na taverna e...". Ela então ruborizou, sorriu e não contou o resto da história. — Manda­ram falar para o senhor esperar por eles nas pedras. O cavalariço pode dizer onde eles estão.

Agora parecia que os "negócios" de co'Belli ocuparam o comerciante por mais tempo do que o esperado. O sol estava escondido atrás das nuvens pas­sageiras e a chuva fina molhava o manto de lã de Estraven, mas era o meio da manhã. Só podia ser. Estraven olhou irritado para o alto do céu e piscou no meio das gotas de chuva. Espirrou e falou - Maldito seja esse homem.

Estraven fez o sinal de Cénzi, depois começou a sussurrar um pequeno cântico enquanto as mãos se mexiam no ar úmido: um feitiço de aquecimen­to. Sentiu a onda de calor abençoado passar por ele ao terminar o feitiço e suspirou satisfeito: era um dos pequenos cânticos mais rápidos e úteis que qualquer téni aprendia a fazer, um que a maioria dos tênis tentava entoar secretamente quando se via preso em longas cerimônias nas frias manhãs de inverno nos templos, especialmente porque o feitiço cobrava muito pouco do conjurador. Pelo menos Estraven não iria morrer doente neste tempo maldito. Ele pensou ter ouvido o estalo de um galho no arvoredo atrás dos menires, endireitou-se na sela e virou o rosto. - Co'Belli? Vamos, homem. Já perdemos meio dia. Ainda estamos a dois bons dias de cavalgada de Brezno.

Desta vez a resposta veio na forma do som sinistro de cordas de arco e flecha.

Estraven gemeu de surpresa e susto quando uma flecha passou assobiando pela orelha esquerda; um momento depois, ele caiu de costas da sela quando um trio de hastes com penas irrompeu do seu manto: duas no peito, a outra no ombro direito. A força do impacto mandou Estraven para o chão. Sujo de lama, ele pestanejou na chuva e olhou surpreso para as flechas, con­fuso pela aparição impossível. Tocou as penas negras da ponta da haste, ao mesmo tempo em que notou o sangue começar a sair das feridas. Ele tentou se levantar e conseguiu ficar de joelhos, com esforço. Estranhamente, sentiu pouca dor, apenas uma grande contração no peito.

Isso era um sonho. Era um sinal de Cénzi. Não era real. Não podia ser real.

Estou aqui como prometido, uténi. - Estraven ouviu a voz de co'Belli chamar, e o homem corpulento saiu detrás de uma das pedras cheias de musgo. Seu quarteto de companheiros estava com ele, e os qua­tro tinham arcos nas mãos com novas flechas encaixadas nas cordas. Havia outro homem com ele também, vestido com o uniforme do exército de Firenzcia.

Traição! - Estraven tentou gritar, mas a voz saiu confusa e ele cuspiu sangue. - Socorro! - Estraven começou a entoar, tentou mexer as mãos para lançar um novo feitiço, um que pudesse destruir co'Belli e lhe desse tempo de voltar para o cavalo e fugir, mas co'Belli fez um gesto rápido, os arcos foram erguidos e as cordas cantaram sua nota mortal. Estraven foi derrubado de costas novamente, na chuva e na lama de Firenzcia, e foi parar em sabe-se lá que além que o esperava.

 

ELA TENTOU SE RECUSAR a vê-lo. Fingiu estar doente naquela manhã para que não tivesse que estar presente na abertura do Templo do Archigos durante a Primeira Chamada e para que não precisasse entoar os cânticos com os demais e acender as lâmpadas do templo. Quando o archigos foi aos seus aposentos, Ana mandou Watha dizer que não poderia recebê-lo no momento, mas a criada voltou com um sorriso satisfeito e cruel. - O ar­chigos lhe espera na sala de recepção, o'téni - falou Watha. - Ele disse que a senhorita tem que se vestir e encontrá-lo para tomar café da manhã. Beida já está servindo chá para o archigos.

Ana vestiu-se e foi até ele. Não houve escolha. Agora, depois dos cumprimentos formais e vazios, depois de ficar sentada ali vendo o archigos tomar chá e comer biscoitos, cujo cheiro fez o próprio estômago de Ana roncar e reclamar, o archigos afastou a bandeja com o café da manhã, inclinou-se para a frente e colocou os cotovelos na mesa.

Vou sugerir ao nosso novo kraljiki que você seria uma esposa excelente para ele.

Foi uma declaração que chocou Ana profundamente, e agora o archigos a encarava enquanto ficava com o rosto vermelho pelo incômodo. Ela não conseguiu respirar por um momento; as mãos faziam pressão contra o coração enquanto se recostou na cadeira diante do archigos. Debaixo do robe, Ana sentiu a concha de pedra dada por Karl. A concha não a confortou.

Isso não é o que eu quero, archigos — falou Ana. - O senhor não tem o direito de me usar dessa maneira, não importa o quanto pagou para a minha família. - Um fogo líquido ardeu na garganta e as têmporas latejaram no rit­mo do coração. Ela sentiu as mãos tremerem ao colocá-las na mesa. - Mesmo que o a'kralj concorde, eu não concordarei.

O archigos fez que sim com a cabeça, como se a resposta de Ana fosse a que ele esperasse. - Eu compreendo sua hesitação, Ana. Compreendo mesmo. Mas você irá aprender, mais cedo do que eu, talvez, que quanto mais a pessoa sobe na vida, maiores são os pagamentos que se esperam dela. Certamente a kraljica esperava isso de seus sobrinhos e sobrinhas, e do próprio a'kralj. Ela sabia que um casamento certo podia ser uma grande arma. A kraljica já havia abordado essa possibilidade comigo, no dia seguinte ao lhe conhecer. Na oca­sião, você deve saber, minha própria sobrinha Safina foi considerada para o mesmo cargo. Portanto, eu não faço essa sugestão levianamente; essa aliança pode ser mais importante agora que a kraljica se foi. O a'kralj será o kraljiki, e ele é excessivamente influenciado pelo áténi câCellibrecca. Sem alguma influência contrária, a ascensão de Justi ao Trono do Sol poderia causar mu­danças na Concénzia, mudanças que anulariam tudo aquilo que eu e a kraljica Marguerite tentamos realizar.

Ele suspirou, ergueu uma mão e deixou que caísse novamente. O chá tremeu na xícara; os biscoitos deram um pulo no prato. - Também há outra questão. O exército de Firenzcia está se aproximando demais da fronteira a ponto de incomodar. Justi não é quem eu gostaria que fosse o kraljiki, mas ainda é uma opção melhor que Jan ca'Vörl. Seria tão ruim assim, Ana, ser a esposa do kraljiki? Você tem outros e melhores pretendentes? Seu numetodo do Gschnas, talvez? Eu sei que você foi ver o enviado ci'Vliomani outro dia, Ana - o archigos ergueu a mão contra a objeção prestes a ser feita por ela -, e quero que saiba que não me importo desde que sua curiosidade não atrapalhe sua fé ou seu dever.

Ela já se tornou um obstáculo para minha fé. Ela matou a kraljica... Mas Ana não diria isso. O archigos pareceu considerar seu silêncio como consen­timento e continuou a falar. - Cénzi lhe deu um Dom extraordinário, Ana. Cénzi espera que você também use esse Dom, Ana, e tudo aquilo que o Dom lhe deu. Certamente você entende isso.

Ele falou sem uma interrogação, como se fosse uma conclusão óbvia e, ao mesmo tempo, Ana se deu conta de uma coisa. - O senhor tinha a intenção de me juntar ao a'kralj o tempo todo. - A acusação fez o archigos sorrir.

Sim - disse ele simplesmente. - Chegou perto.

A kraljica...?

Ela concordou assim que lhe conheceu e assim que contei sobre você. Nós esperávamos apresentar vocês dois formalmente no Gschnas, mas... - O archigos torceu a boca. — Isso ainda é o que ela gostaria que acontecesse - continuou ele. — Ainda mais agora. Sem a kraljica, temos que amarrar o novo kraljiki e a fé concénziana, não com ca Cellibrecca e seu movimento, mas com a nossa própria facção.

Nossa própria facção... O archigos falou casualmente, e Ana balançou a cabeça sem dizer nada. Não é nossa. Não agora...

Depois da morte da kraljica, ela não conseguiu encontrar o Ilmodo nova­mente. Cénzi abandonou Ana pela falta de fé, pela traição com os numetodos. Ela tentou. Tentou os feitiços mais simples, aqueles que era capaz de fazer desde criança, e eles desfizeram-se em suas mãos. Ela não conseguiria manter os fracassos em segredo por muito tempo: como evitava usar o Ilmodo, como seus feitiços eram fracos, como ela mal conseguia conjurar luz ou calor a partir da energia com que Cénzi encheu o ar. Ana não conseguiria esconder a de­cadência de suas habilidades por muito tempo; nenhum téni seria capaz, não quando os rituais e cerimônias da Fé exigiam seu uso diário. Alguém mencio­naria suas suspeitas ao archigos, e ele iria até Ana e exigiria que mostrasse para ele se os rumores eram verdade.

Isso era tudo o que eu fui para o senhor desde o início, archigos? — Ela exigiu saber e tentou esconder o medo com bravata. - Uma maneira de se aproximar do a'kralj? O senhor não é diferente do vatarh; me usaria da mesma forma, apenas com outro homem.

O archigos conseguiu parecer ofendido. - Minha intenção, e a da kraljica, era manter a Fé forte em um mundo que está mudando. Precisamos olhar para frente, Ana. Ca'Cellibrecca nos levaria de volta às trevas. O mundo muda, Ana, quer gostemos ou não, e a Fé precisa aprender a mudar com ele. E isso não é uma coisa que ca'Cellibrecca esteja disposto a fazer. Nossos navios vão cada vez mais longe no mundo. Um dia, talvez até mesmo enquanto você for viva, eles terão chegado a todas as terras. Conforme os Domínios alcançam novos territórios e encontram novos povos, também descobrimos a exuberante beleza da criação de Vucta e Cénzi, uma exuberância que jamais suspeitamos antes.

E os numetodos, archigos? Eles fazem parte dessa exuberância?

Ele inclinou a cabeça para o lado ao encarar Ana. - Pode ser, desde que apenas reconheçam que o seu Scáth Cumhacht é na verdade o Ilmodo e que vem de Cénzi. Há outras formas de mostrar a verdade para as pessoas do que através da violência, tortura e aprisionamento. Certamente isso era o que a kral­jica acreditava e por que foi capaz de governar tão bem por tanto tempo. Quan­to mais Nessântico absorve o conhecimento daqueles que ela governa, mais forte Nessântico se torna. Eu não pretendo excluir os numetodos ou ignorar o que eles possam ter a nos ensinar, desde que eles possam ser levados a entender a verdade do Toustour. Eu pensei, Ana, que nós pudéssemos dividir esse ponto de vista da mesma forma que compartilhamos uma fé profunda em Cénzi.

Eu compartilho essa fé — respondeu Ana. Então por que você duvidou Dele? Ela balançou a cabeça. Os medos e a confusão embolavam-se na mente, e Ana não conseguia segurá-los por muito tempo para examiná-los. - É ape­nas... Archigos, eu não posso...

Você pode. Você irá. Se for o que Cénzi determinar. - Ele fez um gesto com a mão diminuta para Ana. Quando a mão caiu novamente sobre a mesa, a porcelana e a prataria fizeram barulho novamente. - Pode ser, Ana, que o novo kraljiki já esteja bem preso na rede de ca'Cellibrecca. Posso ter cometido um gra­ve erro ao deixar que eles se tornassem tão próximos. Eu vi essa situação nos úl­timos anos e não fiz nada. Os rumores que ouvi sobre a filha de ca'Cellibrecca... - Ele deu de ombros. - Se for o caso, teremos que achar uma nova tática. Mas se Justi estiver disposto a escutar, se notar como sua matarh governou os Domí­nios tão bem, então perceberá como ficaria bem servido ao se aliar conosco. O casamento pode juntar até mesmo dois inimigos, que então descobrem que têm que trabalhar juntos. E nós não somos os inimigos do kraljiki, Ana; no fim das contas, estamos do mesmo lado. Quanto ao amor... - Ele fez um gesto como se fosse tocar a mão de Ana; ela recuou. O archigos deu de ombros. - Bem, isso nunca foi uma necessidade em um casamento político, não é?

Ele fez uma pausa, e Ana permaneceu em silêncio, ainda sentada do outro lado da mesa, com o olhar além do archigos para as janelas dos aposentos sem ver nada do dia lá fora. O archigos saiu da cadeira e fez o sinal de Cénzi para ela. - Você sabe que estou certo. E sabe o seu lugar, espero.

Eu sei em que lugar o senhor me colocou, archigos. - Ela não conse­guia se mexer. Sentiu-se presa à cadeira onde se sentava, presa por cordas que não conseguia enxergar.

O archigos deu um sorriso estranho de boca torta para Ana e acenou com a cabeça.

 

NÓS A ENCONTRAMOS no comboio de bagagens, meu hirzg, atacando as provisões. - O offizier parado diante de Jan parecia envergonhado pela história. Ele estava bem afastado, obviamente sem saber como Jan reagiria. Markell, sentado na mesinha de viagem com uma pilha de relatórios diante de si, prendeu um risinho enquanto Jan franzia a testa.

Allesandra estava tremendo diante de Jan, com as mãos entrelaçadas atrás das costas e a cabeça baixa. — O que você tem a dizer em sua defesa? - vocife­rou ele para a filha. - Você me desobedeceu. O que sua matarh está pensando agora? Ela deve estar louca.

Eu deixei uma mensagem para a matarh - falou Allesandra para o chão. - E disse para Naniaj que ela deveria fingir o máximo que pudesse. Talvez a matarh ainda pense que estou com elas. Ela nunca vem à minha carruagem a não ser que precise.

Markell deu um muxoxo de desdém. Jan olhou para ele e balançou a cabeça. - Há quanto tempo você fugiu?

Dois dias, vatarh. Eu fugi na primeira noite para que pudesse encontrar o exército novamente.

Você cavalgou à noite, desprotegida? Passou por nossa retaguarda?

Allesandra fez que sim com um aceno microscópico. — Eu subi em um dos carroções. Havia muita comida ali, vatarh.

Aquelas são provisões do exército, comida para nossos soldados. Você sabe qual é o castigo para quem rouba desses carroções?

Ela fez que não. Jan notou que os ombros da filha começaram a tremer com as lágrimas contidas. - Nós cortamos as mãos dos ladrões - falou ele duramente — porque não são diferentes dos nossos inimigos.

Allesandra apertou as mãos com força contra o estômago, mas não chorou. Ela ergueu o rosto para Jan, que teve que se esforçar para não pegá-la e abraçá-la. - Eu queria ficar com o senhor, vatarh. Queria aprender a coman­dar um exército. Queria aprender a ser uma hirzgin de quem o senhor teria orgulho. Eu não... não comi muito.

A expressão de Allesandra era tão arrependida e triste que ele não conse­guiu manter o fingimento por muito tempo. Jan ajoelhou-se e abriu os braços, e a filha correu para ele. Ela começou a soluçar contra o ombro do vatarh. - É uma boa coisa que você seja a a'hirzg - sussurrou Jan para Allesandra - porque isso significa que tudo aqui pertence a você.

O senhor não pode me mandar de volta, vatarh - disse ela com firmeza enquanto fungava - Eu não irei. Não irei.

Jan olhou para Markell sobre o ombro da filha. O ajudante de ordens balançou a cabeça. - Aqui não é lugar para uma criança, Allesandra.

Eu não sou uma criança. Sou a a hírzg. Aqui é onde eu devo estar, com meu vatarh, o hirzg. E, além disso, a matarh está a dias de distância e o senhor me protegerá, vou aprender tanto com o senhor, e Georgi continuará a me ensinar...

Atrás dela, Markell meteu a cara nos relatórios.

Será perigoso - disse Jan. - Pode haver combate, Allesandra.

Então me ensine a usar a espada como o senhor faz, vatarh, ou mande Georgi me ensinar. Eu aprendo rápido. Aprendo sim.

Jan abraçou a menina novamente e suspirou. — Markell, leve uma men­sagem para enviar a hirzgin pelo nosso mensageiro mais rápido. Diga que Al­lesandra está a salvo com seu vatarh e que permanecerá comigo por enquanto.

Allesandra soltou um guincho de felicidade. - Obrigada, vatarh. Vou ser boazinha, prometo. Onde está minha espada? O senhor prometeu.

Nada de espada. - Jan soltou o cinto da cintura e tirou uma bainha suja de couro com uma faca de dois gumes e punho cravejado. - Essa é a faca que o hirzg Karin, seu vavatarh, me deu quando eu tinha mais ou menos a sua idade. - Ele não contou que a faca foi uma das poucas coisas que o hirzg deu para Jan, ou que naquele mesmo dia ele deu para Ludwig, pouco mais do que um ano mais velho, um conjunto completo de armadura e uma espada. - Eu dou para você agora e vou mostrar como usá-la. Por enquanto, porém, guarde a faca em um bolso de sua tashta.

Allesandra pegou a faca e segurou firme como se fosse o presente mais precioso que poderia ganhar de Jan. - Obrigada, vatarh. Muito obrigada. Eu vou aprender. Vou aprender tudo que tiver para me ensinar.

Vai sim — falou Jan quase com tristeza caso seja o que você queira aprender ou não. Markell, convoque o o'offizier ci'Arndt. Temos uma tarefa extra para ele.

 

EU NÃO ESPERAVA VER VOCÊ tão cedo, Ana - disse ele. - Na verdade, imaginei... bem, não importa. Estou realmente contente pela chan­ce de falar com você novamente. - Karl sorriu para ela e pegou suas mãos. Pensou que Ana fosse recolhê-las imediatamente; como ela não fez isso, ele continuou segurando. Karl gostou do toque, gostou de encarar os olhos que devolviam o seu olhar. Você não pode, Karl. Kaitlin está esperando por você em Paeti... Ele soltou a mão de Ana com um sorriso rápido e inseguro e foi até a janela olhar para a carruagem conduzida por um téni que esperava na rua lá embaixo. — Estou surpreso que você tenha sido tão receptiva a me encontrar, Ana, preciso admitir. Mas estou contente que tenha vindo.

Karl viu o rosto de Ana relaxar um pouco ao ouvir isso, mas a expressão permaneceu determinada. - Estou cansada de tudo ser às escondidas. Não quero esconder nada — disse ela, e havia uma raiva e empolgação na voz que parecia emanar de outro lugar. - Mas você tem que saber que mantive minha promessa da outra noite e continuarei a mantê-la.

Eu sei que manterá a promessa ou não teria feito o convite em primeiro lugar. Eu soube quando vi você... - Ele parou e balançou a cabeça. Apontou para uma cadeira sem dizer mais nada. - Gostaria de se sentar? Eu posso man­dar alguém trazer aperitivos... - Ana fez que não, e Karl notou sua agitação: na maneira como andava de um lado para o outro na sala, no brilho nos olhos, na respiração acelerada. Ela foi até a lareira e esticou as mãos para as chamas. Karl notou que ela estava tremendo. Ele foi até Ana e tocou delicadamente em seu ombro. - Ana, o que está perturbando você? O que aconteceu?

Ana soltou uma gargalhada estranha e aguda que virou um soluço contido e virou-se para Karl. - Tudo. - Ela abriu bem os braços, o robe de téni esvoaçou com o movimento como se fosse dar a Bênção de Cénzi. Uma única lágrima desceu pela bochecha e ela limpou o rosto. - Eu perdi minha habili­dade. O Dom que possuía. Desde que você me mostrou o que os numetodos fazem... eu não consigo...

Ela começou a chorar abertamente então. Karl observou Ana, quis ir até ela, mas não ousou, até que a dor e a tristeza da o'téni fizeram o enviado dar um passo, depois outro. Ela não resistiu quando Karl a recolheu nos braços. Ana apoiou-se no abraço e enfiou o rosto em seu ombro. Ele segurou-a em silêncio enquanto uma mão afagava o cabelo. Karl colocou os lábios na fragrância do cabelo de Ana, tocou os fios com a boca. Ela sentiu...

Ela sentiu como se aquele fosse seu lugar. Sentiu-se culpada pelo pensamento.

Após alguns momentos, Ana fungou e afastou-se; Karl soltou-a enquanto ela limpava os olhos com a manga do robe, - Sinto muito - disse Ana. - Eu... nós... eu não devia. Não foi isso que me trouxe aqui.

Karl quis abraçá-la de novo. Foi atraído pela tristeza e a aflição de Ana. Tolo. Você não pode se permitir isso. Pense no seu objetivo aqui. E quanto a Kaitlin, que disse que sempre esperaria por você, que sempre seria fiel, e você disse o mesmo para ela... Ele fez um esforço para permanecer onde estava. Tentou pensar em Kaitlin, mas descobriu que não conseguia lembrar o rosto dela; era vago na memória, um fantasma que pertencia ao passado de outra pessoa. Você já está longe de casa há mais de um ano; não tem notícias de Kaitlin em vários meses. Ela pode ter encontrado outra pessoa...

Ana estava aqui, porém. Ela é o seu inimigo. É um joguete que você pre­tende usar. Mas o lembrete não convenceu, nem Karl enxergava Ana dessa maneira. Não quando ela o atraía daquela forma.

— O que você quer dizer com perder o dom? — perguntou ele.

A duras penas, ela contou. - Eu notei quando... - Ana parou e franziu os lábios. Karl notou que ela estava escondendo algo dele. - Eu notei da próxima vez que tentei usar o Ilmodo. Não consegui. Chamei por Cénzi, mas Ele não veio, não me deixou moldar o Ilmodo como eu costumava fazer. Eu me senti como uma aprendiz novamente, tendo dificuldade no mais simples dos feiti­ços. - Ana olhou para Karl, que pensou ter visto ao mesmo tempo acusação e esperança em seu olhar. - Foi você que fez isso, enviado? Um encantamento, um feitiço numetodo...?

Ele balançou a cabeça. — Não - falou Karl com delicadeza. - Eu não faria isso com você, Ana. Não espero que acredite, mas é a verdade. Mesmo que eu fosse capaz, e não sou, não teria feito isso com você. Não, infelizmente, foi você que fez isso consigo mesma.

A frase soou cruel até mesmo para os ouvidos de Karl, e ele ergueu a mão tanto para calar a objeção de Ana quanto como um desculpa. - Ana, deixe-me explicar. Entre os numetodos, cada um encontra o próprio caminho indivi­dual para o Scáth Cumhacht. Cada um de nós usa uma técnica ligeiramente diferente, nossas próprias palavras e gestos. É nisso que somos diferentes. Seus tênis usam a fé para abrir o Segundo Mundo; nós usamos um procedimento padrão que precisamos descobrir por nós mesmos, não é diferente de um erva­nário que mistura ingredientes em suas poções nas mesmas quantidades todas as vezes para que os efeitos sejam sempre os mesmos. Sua fé... — Ele balançou a cabeça. - Eu acho que é apenas outra fórmula. Um procedimento. O que você viu, bem, abalou essa fé, e aí...

Não! — gritou Ana. - Pare. Eu sei o que você está dizendo e não acredito nisso. Eu ainda creio. Creio sim. Cénzi está me castigando.

Eu disse para você naquela noite que poderia mostrar o seu caminho - falou Karl. - Ainda posso. Seu dom não foi embora, Ana. Ainda está aí... e não importa se você acredita em Cénzi ou não. Ainda está aí. - Karl deu um passo na direção dela e pegou suas mãos. Ana não resistiu, não as recolheu. Karl viu que ela queria acreditar nele. Karl puxou Ana para si. Os rostos ficaram próxi­mos. Tão próximos. Kaitlin... - Eu posso mostrar para você, Ana. Vou mostrar.

Ao dizer as palavras, Karl ouviu a porta ranger atrás deles. Ana arregalou os olhos e desviou o olhar. - Que comovente - disse uma voz jocosamente.

Quando Karl começou a se virar e soltou as mãos de Ana para que as suas ficassem livres, a voz estalou a língua em tom de advertência. — Ora, enviado ci'Vliomani, o que eu lhe disse da última vez em que nos encontramos? Não há necessidade para violência aqui.

O comandante ca'Rudka estava na porta, com a espada ainda na bainha e um sorriso sarcástico no rosto. No corredor atrás dele, Karl viu a proprietária do prédio encolhida de medo na parede dos fundos com as chaves na mão e dois gardai com o uniforme da Bastida, ambos segurando bestas com setas armadas. Ca'Rudka fez um sinal para os dois, que abaixaram ligeiramente as bestas. — O'téni co'Seranta - disse o comandante ao se curvar levemente e fazer o sinal de Cénzi para ela. - Seu condutor disse que estaria aqui. Evi­dentemente a dança do enviado no Gschnas lhe impressionou mais do que o archigos pensou.

O rosto de Ana, quando Karl olhou para ela, estava pálido, toda a cor sumiu das bochechas. - Comandante - disse Ana. Ela respirou fundo e empertigou-se. - O vajiki e eu estávamos discutindo religião. Eu tinha espe­ranças de convencê-lo do erro dos numetodos.

Realmente, essa é uma tarefa nobre - falou ca'Rudka. Ele entrou no quarto, seguido pelos dois gardai, e fechou a porta na cara da senhoria curiosa.

Mas, de certo modo, eu duvido que o vajiki esteja convencido da grandeza de Cénzi e da Fé. - Ele foi ao peitoril da janela, onde Karl havia posto a plan­ta que recebera do comandante. Ca'Rudka meteu a ponta do dedo no solo e depois olhou para a terra negra que ficou ali. - Úmida. Estou impressionado, vajiki. - Ele olhou para a planta. - Mas infelizmente é apenas uma erva dani­nha comum, afinal de contas. Você está perdendo seu tempo.

Por que está aqui, comandante? - perguntou Karl. Ele sentiu a tensão corroendo o estômago. Era isso que Mika temia. Começou... Ele sabia, sabia pelo olhar cauteloso dos gardai cujas armas nunca chegaram a se afastar dele.

Se esta é uma visita social, como pode ver, eu estou ocupado.

Infelizmente, estou aqui na minha qualidade oficial - respondeu ca'Rudka. - Vajiki ci'Vliomani, sinto lhe informar que está preso. Agora, ofe­reça as mãos ao o'offizier ce'Falla... Infelizmente, não podemos arriscar que use o Ilmodo. Por favor, não se mexa, vajiki, nem você, o'téni, até que o o'offizier termine. - O garda veio à frente rapidamente enquanto o outro manteve a besta cuidadosamente apontada para o peito de Karl. Karl esticou as mãos, que foram algemadas por ce'Falla. Ele viu outro apetrecho no cinto do homem: um dispositivo com correias e uma mordaça. Karl estremeceu ao saber o que aconteceria a seguir.

O que eu supostamente fiz, comandante? Posso saber disso?

Certamente - respondeu ca'Rudka. Ele meteu a mão em uma bolsa no cinto e retirou um cordão. Na ponta pendia uma concha de pedra. - Isso foi encontrado no pescoço do pintor ci'Recroix quando seu corpo foi descoberto. Parece familiar para você, vajiki? - Ca'Rudka olhou para o peito de Karl, onde havia um símbolo similar. - Não precisa responder; eu sei que sim.

Karl olhou para Ana, que estava parada com a mão no seio. O enviado desconfiou que sabia o que ela escondia debaixo do robe e balançou a cabeça para Ana como um alerta enquanto ca'Rudka acompanhava o olhar.

Desculpe, o'téni - falou ca'Rudka para Ana mas infelizmente o vajiki ci'Vliomani está preso por tramar o assassinato da kraljica.

 

ELA CONTINUOU OUVINDO o que Karl disse enquanto o coman­dante o levava embora. Ela apegou-se às palavras em desespero. — Confie em si mesma, Ana. Não importa o que digam para você, não importa o que façam, con­fie em si mesma e no que sente no coração. Isso vai lhe devolver tudo que perdeu.

Então a porta da carruagem foi fechada e o veículo disparou para a Basti­da. O comandante acompanhou Ana de volta aos seus aposentos, uma viagem silenciosa na carruagem particular de caRudka. - Sinto muito, o'téni - falou ele finalmente ao acompanhá-la até a entrada dos fundos do prédio, longe de olhos curiosos. - Todos temos deveres a cumprir, como tenho certeza que entende.

Ana entrou correndo, fechou a porta do quarto e não deixou que qualquer criada cuidasse dela. Não chorou; sentiu-se além das lágrimas. Lá fora, o mundo florescia com a primavera, mas, por dentro, tudo estava tomado pela desolação do inverno. Ana ficou sentada em silêncio enquanto via a dança das chamas na lareira. Não sabia dizer se estava pensando em nada ou em tanta coisa que não conseguia ouvir os pensamentos pela barulheira que eles faziam.

Naquela noite, o archigos convocou Ana para uma exibição privada do corpo da kraljica para os a tênis. Watha entregou o robe que o archigos en­viara: não na cor verde tradicional, mas branco-sujo, a cor dos ossos, a cor da morte. Ela vestiu devagar, sem sentir o robe. No templo, Kenne, também vestido com aquele tom triste de branco, levou-a até o archigos. O anão não perguntou nada; apenas olhou para Ana com tristeza, como se estivesse desa­pontado e falou - Venha, vamos nos despedir de Marguerite.

Ana andou ao lado dele. Um rio de branco-sujo fluiu pelas portas até a pedra de granito liso e lustroso que era o altar de Cénzi. O corpo da kraljica estava ali, deitado sobre almofadas de amarelo intenso com trombetas ao re­dor. O rosto já estava coberto por uma máscara mortuária banhada a ouro e esculpida com a fisionomia da kraljica. A mão esquerda segurava o cetro de ferro de Henri VI; na direita, com a palma para cima, estava o anel com o sinete do kralji. Em volta da Pedra de Cénzi foram postas coroas de flores, e daquele monte de plantas e fitas saíam sete candelabros de cristal das monta­nhas de Sesemora, cada um com globos de luzes mágicas tão intensas que a kraljica parecia estar deitada sob o esplendor do sol.

Ao ver a kraljica mascarada, tão imóvel e serena, Ana finalmente chorou. Sem sentir vergonha, ela deixou rolar as lágrimas ao se ajoelhar diante do esquife, com a cabeça baixa. Não se importou com o archigos, com os a'ténis reunidos, ca'Cellibrecca e todos os demais que observavam e faziam os pró­prios julgamentos.

Foi culpa minha. Eu devia ter sido capaz de salvar a senhora, kraljica, mas eu traí Cénzi...

Mas ela não rezou. Não achou que Cénzi fosse escutar.

O archigos tocou no ombro de Ana em solidariedade, embora não tivesse dito nada além do necessário: nenhuma repreensão, nenhuma acusação. Ana tinha certeza de que o archigos sabia que ela esteve com Karl no momento de sua prisão. O comandante teria contado para ele, e Watha ou Sunna ou Beida devem ter cochichado sobre seu estado de nervos quando ela voltou.

- Amanhã - disse o archigos para ela e o resto da equipe ao saírem do templo -, as portas do Templo do Archigos na margem sul serão abertas ao amanhecer para que o a'kralj e todos os sobrinhos e sobrinhas da kraljica te­nham sua primeira exibição oficial. Você me acompanhará lá, Ana; o restante ficará no turno da noite de hoje, de plantão com a kraljica no templo. Depois que o a'kralj prestar homenagem à sua matarh, haverá uma procissão dos ca' e co' pelo resto do dia; novamente vocês farão turnos de plantão enquanto a fila dos ca' e co' anda. Kenne, você ficará a cargo dos horários. Ana, sua presença será necessária novamente na procissão da carruagem do funeral, que dará a volta na Avi a'Parete à meia-noite; você me acompanhará na minha carrua­gem. Estamos entendidos?

Ela e os outros ténis da equipe do archigos fizeram que sim.

Ana olhou para as lâmpadas da cidade ao voltar aos seus aposentos e contemplou a vista das janelas voltadas para o oeste. Tentou localizar a Bastida entre o amontoado de telhados, mas não conseguiu. Naquela manhã, depois de uma noite sem dormir, "Watha trouxe a notícia de que todos os numetodos em Nessântico foram presos, que esquadrões da Garde Kralji, sob ordens do a'kralj, entraram no Velho Distrito enquanto ela e o archigos estiveram no templo e levaram sob custódia todos aqueles suspeitos de serem numetodos. A Bastida, segundo o rumor, estava cheia deles.

Isso foi para a segurança de Nessântico durante o funeral da kraljica, declarou o a'kralj de acordo com Watha. Não permitiriam que nenhum numetodo estragasse a exibição elaborada e ritualística de tristeza e carinho pela governante morta. Eles ficariam na Bastida durante os três dias de luto oficial, depois dos quais o novo kraljiki tomaria uma decisão a respeito dos numetodos.

Enquanto Ana aguardava na sala de espera do archigos com Kenne e os outros ténis de sua equipe, ela ouviu as fofocas e os rumores sussurrados, cada um mais exagerado e mais improvável do que o outro:

... contaram para mim, em segredo, que foi um criado numetodo que envenenou a kraljica. Sim, eu tenho certeza. A irmã do meu marido trabalha no palácio e lá todo mundo sabe disso...

... meu vatarh disse que os numetodos planejavam roubar o corpo da kraljica e pedir resgate. É por isso que o comandante está tão furioso ...

... não, os numetodos queriam o corpo da kraljica para ser profanado em um ritual bizarro. Ouvi isso de quatro pessoas que sabem...

... o que aconteceu foi que os numetodos foram flagrados usando feitiçaria para envenenar todo o sistema de água potável da cidade. Várias pessoas já morreram disso no Velho Distrito. É por isso que eles foram presos...

... ouvi dizer que os numetodos estão se levantando em todas as cidades dos Domínios em comemoração à morte da kraljica, aqueles desgraçados. Ora, em Belcanto, eles correram pelas ruas cantando...

Ana não conseguiu ouvir a tagarelice dos tênis; ela enxergou o rosto de Karl em cada um dos rumores.

O archigos finalmente saiu, muito apoiado no cajado do cargo, e enquanto ela e os demais ténis desciam as escadas de seus aposentos, Ana não notou nada nos olhares do anão direcionados a ela. Ana ficou com isso na cabeça. Queria perguntar o que ele estava pensando; queria dizer que prefe­ria que o archigos berrasse de raiva em vez de manter este silêncio entre eles, mas não havia tempo. Eles saíram para a praça fora do templo no momento em que o a'kralj recebia ajuda para subir na carruagem, acompanhado pelo comandante e vários dos guardas da cidade. O sol do início da manhã ilumi­nava um caos ordenado: todos os a'ténis posicionavam suas próprias equipes para a procissão formal; a massa de espectadores atrás do anel dos guardas; as famílias ca' e co' à espera pelo momento de ver o corpo da kraljica.

Ah, a'kralj ca'Mazzak — falou o archigos assim que o a'kralj aproximou-se com um quarteto da Garde Kralji que empurrava os cidadãos e ténis entre ele e o archigos. O a'kralj vestia uma bashta de seda branca com um manto pesado e brocado com filigranas de ouro. Contra o branco, a barba negra e o cabelo escuro faziam um grande contraste, o queixo ficava projetado, como era sua característica. No pescoço havia uma corrente dourada com um pingente de âmbar-gris e um diamante amarelo. Não havia anéis nos dedos, mas Ana sabia que, mais tarde à noite, antes da procissão pública, ele pegaria o anel do sinete da mão de sua matarh e colocaria no próprio dedo. Renard andava ao lado dele com a máscara dourada de luto do a'kralj nas mãos caso fosse necessária. A máscara daria privacidade à dor do a'kralj, mas, na opinião de Ana, o a'kralj parecia mais exuberante do que triste.

O comandante, ao lado do a'kralj, deu um leve aceno de cabeça para Ana. Ela tremeu e não deu sinal que notou. O archigos fez um gesto e sua comitiva fez uma mesura em uníssono e o sinal de Cénzi para o a'kralj.

A'kralj, sinto pela sua perda, mas sei que seguirá o exemplo da kraljica e conduzirá Nessântico a alturas que até mesmo ela não sonharia - disse o ar­chigos enquanto a comitiva se erguia das reverências. Ele parecia uma criança encarquilhada contra o corpanzil atlético do a'kralj.

Obrigado, archigos — respondeu o a'kralj com sua voz alta e anasalada. Parecia com a voz de um adolescente. — Eu sei que a matarh gostava de seu longo serviço e sua devoção a ela, e espero ansiosamente pelo mesmo serviço de sua parte.

O archigos fez uma mesura novamente ao escutar isso, embora Ana sou­besse que ele ouviu a mesma ausência de convicção nas palavras do a'kralj; ritualísticas, educadas demais e vazias, no fim das contas. Os olhos fundos do homem passaram pelo rosto de Ana, que imaginou vê-lo franzir os lábios com o olhar. O archigos também pareceu notar, pois fez um gesto para Ana ir à frente. - Você se lembra da o'téni Ana co'Seranta? - disse o anão. - Falei a respeito dela com você no outro dia, quando discutíamos os preparativos para o funeral.

A matarh apresentou-nos no Gschnas, archigos - falou ele. O a'kralj estendeu a mão e ela cumprimentou-o. Seu olhar era de avaliação; ela quase foi capaz de ouvir a mente do a'kralj enquanto calculava. - Sim, lembro-me dela e de nossa conversa, archigos. Bom ver você novamente, o'téni. Apenas gostaria que as circunstâncias fossem melhores.

Ana caiu em si que ambos estavam esperando que ela falasse. — Eu tam­bém - respondeu com atraso. - Todos sentimos sua perda, a kralj. E uma tragédia para todos os Domínios.

Palavras vazias de sentimentos reais, Ana sabia. Como ela mesma.

Ele fez que sim. - Realmente. - O a'kralj fungou o nariz, um gesto mais provocado por congestão nasal do que tristeza, pensou Ana, e olhou para ela de cima a baixo novamente. - O archigos fala muito bem de você, o'téni, e minha matarh também, quando era viva. Ambos pareciam achar que você foi especialmente abençoada por Cénzi e que para mim seria... - ele fez uma pausa, como se considerasse as palavras - ... vantajoso lhe conhecer melhor. Eu sempre considerei uma boa tática ouvir os conselhos de quem eu confio, portanto pretendo fazer exatamente isso. Muito em breve. Espero que queira também? Um almoço no palácio talvez, depois de amanhã... gostidi?

Ana abaixou a cabeça. Não viu jeito de recusar educadamente. - Certamente, a'kralj — respondeu ela. — Será um prazer, desde que meus deveres com o archigos não interfiram.

Tenho certeza de que o archigos vai garantir que eles não interfiram - respondeu o a'kralj, e Ana ouviu o archigos concordar com um resmungo, embora ela não tenha olhado para o anão. - Vou mandar Renard providenciar tudo, então.

Providenciar o quê? - interrompeu uma voz, e Ana ergueu a cabeça para ver o a'téni ca'Cellibrecca e sua filha bem atrás do a'kralj. O a'téni estava sorrindo, mas a expressão no rosto da filha era bem menos amigável.

Um almoço com a o'téni co'Seranta no gostidi — respondeu o a'kralj para ca'Cellibrecca.

No gostidi? - perguntou ca'Cellibrecca. Ele franziu os lábios sobre o queixo duplo e bateu com o indicador na bochecha. — Devo lembrar ao a'kralj, assim como o archigos também deve saber, que ele tem a Cerimônia do Kralj, naquela manhã, e que ele e eu planejávamos discutir a solução para os nume­todos na Bastida depois, e que ambos os compromissos levam algum tempo.

Eu imagino que ainda terei tempo suficiente para comer, a'téni - comentou o a'kralj. — Ou você negaria alimento ao novo kraljiki?

Claro que não - respondeu ca'Cellibrecca rapidamente. - Na verdade, eu poderia me juntar ao senhor e tenho certeza de que Francesca também estaria disposta. Espero ter alguma notícia sobre o marido dela até mizzkdi ou gostidi, e...

Melhor não - interrompeu o a'kralj. - Embora a sua companhia e a da vajica ca'Cellibrecca sejam bastante agradáveis, eu gostaria de falar com a o'téni em particular. - A boca de ca'Cellibrecca permaneceu aberta por um instante como se ele fosse falar mais. O a'kralj ergueu as sobrancelhas, e ca'Cellibrecca abaixou a cabeça. Os olhos negros da filha encararam o a'kralj com reprova­ção, mas ele devolveu a expressão com um olhar vazio.

Por um instante, a cena ficou estática. Ana pensou em ca'Cellibrecca e no que ele fez aos numetodos em Brezno e imaginou Karl nas mãos do a'téni.

Da agitação dentro dela, uma chama de fúria emanou um calor abrasador. Ela empinou o queixo e falou - Eu também gostaria de conversar com o novo kraljiki sobre os numetodos. Acho que o kraljiki tem que tomar sua decisão o mais bem informado possível.

O archigos tossiu como se tivesse levado um susto. Com aquele comentário, tanto o a'téni ca'Cellibrecca quanto sua filha viraram o rosto para enca­rar Ana. Ela sentiu o calor dos olhares e não se arriscou a encará-los. Em vez disso, não tirou os olhos do a'kralj, que riu de maneira repentina e surpreen­dente. - Aí está, viu só, a'téni? A o'téni co'Seranta não é o ratinho quieto e obediente que você pensa que ela é, e a julgar pela expressão no rosto do archigos, ele também foi surpreendido por ela. Começo a ficar ansioso para o nosso almoço, o'téni, para ver que outras surpresas você pode ter para mim.

Dito isso, o a'kralj respirou fundo e olhou para o templo. — E agora pre­ciso prestar minha homenagem. Archigos, está pronto para me levar à minha matarh? Vajica ca'Cellibrecca, faria o favor de me acompanhar? Renard, mi­nha máscara, por obséquio...

Enquanto Renard amarrava a máscara, Francesca passou o braço pelo cotovelo que o a'kralj ofereceu e deu um olhar venenoso para Ana. O archigos também olhou para ela antes de fazer um gesto para o a'téni ca'Cellibrecca. A procissão dos ténis começou a andar aos poucos, atrás do lento avanço do archigos. Os passos de sua equipe fizeram barulho nos lustrosos ladrilhos do pátio, e Ana andou cautelosamente ao lado dele, ciente dos olhares penetran­tes nas costas.

 

 

                                                     CONTINUA

 

 

FRANCESCA VIROU O ROSTO e olhou para ele ao entrarem no templo. Orlandi notou pela expressão que ela estava nervosa e aborrecida, mas não havia nada que pudesse fazer pela filha a não ser franzir a testa em solida­riedade e indicar o a'kralj com a cabeça, em cujo braço ela estava pendurada.

Preste atenção nele. Fique com ele, disse Orlandi com aquele olhar. E o que você precisa fazer agora. Ele pediu que o acompanhasse, e essa é uma grande honra pública. Não perdemos coisa alguma ainda...

 

 

 

 

Ele acreditava que tinha o a'kralj sob firme controle através de Francesca. A manhã de hoje mostrou que estava errado. A lição disparou uma dúvida que dava voltas dentro da cabeça de Orlandi. Ele parecia com um daqueles malabaristas de rua ao longo da Avi, com bolas demais no ar em volta, cada uma com uma trajetória própria. Havia o hirzg, já em marcha na direção da fronteira de Nessântico, tão perigoso de manipular quanto carvões em brasa. Orlandi ainda não ouvira de co'Belli a respeito de Estraven, embora tivesse ordenado ao homem que mandasse um mensageiro imediatamente. E agora o archigos parecia ter posto o próprio peão bem no caminho de Francesca, e o a'kralj não deixou que Orlandi varresse a mulher para o lado.

Ele tinha que continuar equilibrando as bolas. Não podia considerar nada garantido ainda.

Orlandi rezou ao andar, mas a prece não era para a kraljica, de cujo corpo eles chegavam perto lentamente. A procissão era longa: o archigos, seguido pelo a'kralj, depois mais ou menos meia dúzia de aténis que, como Orlandi, vieram à cidade pelo jubileu, a seguir os muitos parentes da kraljica - todos andando entre os ténis de robes brancos que ficaram de plantão diante do corpo da kraljica desde que ele chegou aqui, todos andando sob o esplendor das luzes mágicas do templo...

 

                                                                               

 

 

                                         

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