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Series & Trilogias Literarias
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.
CONTINUA
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.
CONTINUA
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.
CONTINUA
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.
CONTINUA
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.
CONTINUA
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.
CONTINUA
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.
CONTINUA
ESCLARECIMENTOS
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Niente
Niente
Citlali não era do tipo que escondia sua raiva e descontentamento. Niente suspeitava que isso valia para todos os tecuhtli — quando todos são inferiores a você, não há a necessidade de esconder seus sentimentos.
O rosto de Citlali estava quase tão vermelho quanto a águia tatuada em sua careca. E até mesmo as linhas geométricas negras de guerreiro espalhadas por seu corpo estavam esmaecidas. Atrás dele, a forma musculosa do guerreiro supremo Tototl se agigantava. Citlali ergueu o dedo em riste na direção de Niente quando ele entrou na tenda.
— Você mentiu para mim — disse o tecuhtli, sem preâmbulos.
Niente segurou seu cajado mágico firmemente, sentindo o poder do X’in Ka contido dentro dele, e se perguntando se precisaria usá-lo hoje. Ele tentou endireitar as costas curvadas o máximo possível. Ignorou a reclamação dos músculos e a vontade de se sentar. Ergueu o rosto para Citlali e Tototl, deixou que os dois vissem o horror de cicatrizes e definhamento causado pelos anos de uso da tigela premonitória e pelos encantamentos complexos feitos em nome do tecuhtli, e vissem como ele tinha envelhecido para além de seus anos no serviço aos tehuantinos. Seu olho esquerdo, cego e branco, encarou Citlali.
— Tecuhtli, eu nunca...
— Foi seu próprio filho que me contou — interrompeu Citlali.
Isso, percebeu Niente, explicava por que Atl o evitou a manhã toda, permanecendo bem longe da escolta do tecuhtli e do nahual na coluna no exército.
— Ele diz que também possui o dom da visão premonitória — continuou Citlali — e insiste que seu caminho em Villembouchure quase nos levou ao desastre. Não, fique calado! — ele rugiu quando Niente tentou protestar. — Atl disse que, se tivéssemos seguido o caminho que Axat lhe mostrara, não precisaríamos deixar a nossa frota bloqueando o A’Sele, e não teríamos tido as perdas que tivemos no rio ou em Villembouchure. Ele diz que poderíamos ter obtido uma vitória fácil lá e subido o A’Sele com a frota até Nessântico.
— E depois disso? — questionou Niente, quase com medo de dar voz à pergunta. — O que ele viu além desse ponto?
Se Atl conseguisse ver os caminhos tortuosos do futuro tão adiante assim, não havia nada que ele pudesse fazer. A tarefa de Niente fracassaria agora, e o futuro que ele viu escaparia completamente.
O rosto de Tototl estava impassível, Citlali deu de ombros.
— Atl disse que Axat não lhe concedeu nenhuma visão do futuro além desse ponto. Mesmo assim, uma vitória fácil em Villembouchure, sem ter que abandonar o rio pela estrada...
O exército dos tehuantinos retirou tudo que foi possível dos navios, o profundo canal que eles precisavam estava desesperadamente bloqueado pelas embarcações da vanguarda da frota; o A’Sele ficou efetivamente barricado com os destroços semiafundados de seus próprios navios. Agora era o exército que carregava tudo nas costas ou em carroças improvisadas que rangiam, puxadas por cavalos e burros roubados. Quando o vento podia tê-los levado dentro dos navios, sem esforço, agora os tehuantinos eram obrigados a andar longos quilômetros até Nessântico, chegando tarde, sofrendo os constantes ataques de defensores que avançam de mansinho contra as fileiras, que disparavam flechas, atacavam com areia negra e desapareciam novamente.
Niente compreendia o mau humor de Citlali.
— Se Atl não conseguiu ver nada além de Villembouchure, essa é a questão — disse ele para Citlali e Tototl, cuja expressão de desdém se intensificou com a declaração. — Atl realmente possui o dom de Axat. E eu o perdoo por procurar o senhor; era o dever de Atl contar o que viu, tecuhtli, e fico feliz que ele compreenda sua responsabilidade. Mas sua visão premonitória não é tão aguçada quanto a minha, e é aí que Atl se engana. Como ele admite, Atl não consegue ver longe na bruma. Sim, havia outro caminho que levaria à vitória, um que parecia mais fácil e melhor. Mas se eu o tivesse aconselhado a tomar esse caminho e se o senhor tivesse seguido esse conselho, ele teria nos levado à total destruição mais tarde. Nós jamais teríamos tomado Nessântico.
Citlali estreitou os olhos, e as asas da águia se mexeram de acordo. Niente se apressou em continuar com a explicação, para contar a Citlali a mentira que ele tinha preparado para essa situação. Sua voz tremia, o que parecia dar mais veracidade à história: o taat preocupado que explicava os erros do filho inexperiente.
— Em poucos dias, o restante da própria frota dos orientais teria nos alcançado, tanto pela retaguarda quanto pela vanguarda. Nós teríamos caído em sua armadilha, e nosso exército teria se afogado no A’Sele sem poder lutar. Este era o destino que nos aguardava, tecuhtli Citlali. Agora... — Niente ergueu as mãos. — Agora nossos navios obstruem o caminho daqueles que nos perseguem através do A’Sele e o resto da frota pode cuidar deles; com o nosso próprio exército na estrada, o restante dos navios dos orientais não pode fazer nada contra nós. Esse é o caminho para a vitória, tecuhtli, como eu lhe disse. Eu nunca prometi que seria um caminho fácil, ou por acaso os Guerreiros Supremos estão com medo dos orientais?
A última frase era um risco calculado — o nahual devia estar ultrajado por ter sua habilidade questionada. Devia haver raiva em resposta à raiva, e se ele conseguisse cegar Citlali com a acusação, então talvez a mentira fosse aceita facilmente
— Com medo?
O rugido era a resposta que Niente esperava; o rubor se aprofundou no rosto de Citlali, assim como no rosto de Tototl. A mão de Tototl segurava o cabo da espada, pronta para arrancar a cabeça de Niente dos ombros, caso o tecuhtli ordenasse sua morte. Niente segurou o cajado mágico com mais força.
Este era um dos futuros que ele tinha vislumbrado, e nele, sua vida era extremamente curta a partir desse ponto...
Mas Citlali riu, repentina e abruptamente, e os dedos de Tototl afrouxaram no cabo da espada.
— Com medo? — ele rugiu novamente, mas dessa vez não havia fúria em suas palavras, apenas uma diversão profunda. — Depois dos orientais mortos que eu já deixei para trás?
O tecuhtli riu novamente, e Tototl riu com ele, embora Niente tenha notado o guerreiro supremo observar Citlali com atenção — Tototl seria o próximo tecuhtli, sem dúvida, se todos eles sobreviessem por tempo suficiente.
— Você promete que me vê na grande cidade dos orientais, nahual Niente? — perguntou Citlali. — Promete que vê nosso estandarte tremulando sobre seus portões?
— Eu prometo, tecuhtli Citlali — respondeu Niente.
Sua mão afrouxou em seu cajado, e ele deixou a cabeça cair e a espinha se curvar.
— Você precisa falar com seu filho, nahual — falou Citlali. — Um filho deve acreditar em seu taat, e um nahualli deveria acreditar no nahual.
— Eu farei isso, tecuhtli. — Eu o farei porque isso foi perigoso demais, mais um instante e... Niente fez uma mesura para o tecuhtli e o guerreiro supremo. — Eu farei isso, com certeza.
Quando retornou à própria tenda, Niente retirou a tigela premonitória da bolsa. Encheu de água doce, tirou os pós premonitórios do bolso do cinto e os polvilhou sobre a superfície assim que ela ficou estática. Ele entoou um cântico sobre a tigela, as antigas palavras do X’in Ka pronunciadas espontaneamente enquanto ele invocava Axat, rezando para que Ela lhe mostrasse novamente os caminhos possíveis. A água sibilou, e a luz esmeralda irrompeu de algum lugar nas profundezas, a bruma surgiu sobre a água. Niente se inclinou sobre a tigela e abriu os olhos...
Ali estava a grande cidade, com suas torres e domos estranhos, e ali estava o fogo dos feitiços e a fumaça da areia negra em um céu sombrio. Niente estava do lado de fora das muralhas com o resto dos nahualli, e, como todos eles, o nahual estava exausto. Eles não conseguiam conter o ataque. Uma bola de fogo caiu rugindo sobre eles, e embora Niente tivesse erguido o cajado mágico para bloqueá-la, não havia nada ali. O fogo caiu como uma ave carniceira guinchando e batendo em Niente; nesse futuro, mesmo com os tehuantinos arruinando Nessântico, nas brumas além do tempo, ele também viu as pirâmides de Tlaxcala serem derrubadas em meio à fumaça e às ruínas e os estandartes da águia caídos, com orientais andando entre os escombros...
... Ele procurou o caminho que tinha visto antes nas brumas, mas o cenário tinha mudado e os futuros estavam todos emaranhados e arredios. As brumas se erguiam contra todas as visões, exceto na primeira imagem terrível. Ele ainda podia vê-la, vagamente: os dois exércitos duelando em fogo e sangue, a maré da batalha mudando repentina e inesperadamente quando Niente — aquele era ele? A bruma tornava difícil de ver — ergueu o cajado mágico pela última vez... E além, no futuro desse caminho, uma cidade se erguia mais alto do que antes no leste, e as pirâmides de Tlaxi eram novamente fortes contra o cenário de fundo da montanha fumegante...
... mas havia uma figura parada no caminho, bloqueando-o, Niente tentou afastar a bruma em volta do homem. Seu próprio rosto lhe devolvia o olhar... Não, era uma versão mais jovem de si mesmo, as feições mudando... Atl! Era Atl, com o cajado mágico erguido em um gesto de rebeldia, raios estalavam em volta dele, quentes e intensos, e na direção de Niente...
Ele ergueu a cabeça da tigela arquejando. A bruma verde foi varrida, sumindo sob o sol e deixando Niente cambaleando em meio à bruma da realidade, que parecia efêmera e irreal. O nahual balançou a cabeça para clareá-la e se permitiu retornar à visão. Suas pernas ameaçaram parar de apoiá-lo, e Niente desmoronou no chão, a mesa bamba que segurava a tigela premonitória virou. A água foi derramada, a tigela de latão retiniu ao bater no chão de pedra, e um dos nahualli meteu a cabeça entre as abas da tenda.
— Nahual?
Niente fez um gesto para dispensá-lo.
— Estou bem. Vá embora.
O nahualli o encarou por um instante, depois se retirou.
Niente permaneceu ali, sentado, abraçando os joelhos junto ao corpo. Atl... Era Atl que agora dificultava o encontro do caminho que ele vislumbrara. Era Atl que bloqueava sua passagem.
Atl.
— Você não pode me dar esse fardo — disse Niente, chorando... de cansaço, de medo, por amor ao filho. — Não pode esperar que eu pague este preço.
Axat, se escutou, permaneceu calada. Niente olhou fixamente para a tigela, virada de cabeça para baixo na grama, e estremeceu.
Rochelle Botelli
Antes de sair do acampamento, ela tinha voltado a sua própria tenda e pegado as moedas que escondera ali — o dinheiro recebido pelo assassinato de Rance e dos outros durante sua curta carreira. Rochelle amarrou as cordas sob sua roupa para que não fizessem barulho; a adaga de Jan estava embainhada logo acima das botas, embaixo da tashta.
Ela observou o acampamento por alguns dias, de um grupamento de árvores perto das tendas reais. Ela teve que fugir duas vezes dos caçadores que varreram a floresta atrás dela. Rochelle viu a hïrzgin Brie, viu o tolo do Paulus, viu o starkkapitän. Viu o archigos e Sergei chegarem. E, finalmente, viu seu vatarh. Ela olhou fixamente para Jan até a figura ficar borrada nas lágrimas que se formaram em seus olhos.
Então, finalmente, ela fugiu.
Foi muito fácil evitar as patrulhas que procuravam por ela — os grupos eram ruidosos e grandes, o que lhe dava bastante tempo para se esconder. Rochelle era boa nisso, em se camuflar. Ela encontrou uma árvore chorona, arrancou lascas compridas da casca e as ferveu em uma pequena panela que roubou em uma fazenda por onde passou. Depois lavou o cabelo com o extrato branco e cáustico até que o cabelo negro ficou um castanho mais claro. O extrato de árvore chorona deixou seu cabelo quebradiço, áspero e selvagem, matando seus cachos naturais, mas isso só realçou o efeito. Rochelle parecia com uma jovem maltrapilha, sem status, filha de um fazendeiro. Imitou o sotaque da região; roubou uma galinha e um cesto de outra fazenda e andou pela estrada como se estivesse a caminho de um mercado ou de casa. Uma vez, como teste, ela até permaneceu na estrada enquanto um quarteto de chevarittai com uniformes firenzcianos passou em cavalos de guerra, saudando os homens como se não fizesse ideia de que estavam procurando por ela. Eles olharam para Rochelle, falaram entre si por um instante, e perguntaram se ela tinha visto uma mulher de cabelo escuro, mais ou menos da mesma idade que ela. Rochelle balançou a cabeça adequadamente, baixa e timidamente, e após um momento, eles foram embora a galope.
Ela conteve a risada colérica até os homens sumirem.
Rochelle se dirigiu para o sul e o oeste, cruzando a fronteira de Nessântico em Ville Colhelm. Lá, se hospedou no quarto de uma das estalagens, chamando-se “Remy.” Ela permaneceu lá, inquieta, ainda sem saber o que deveria fazer.
As noites eram piores. Rochelle ouvia a farra no andar debaixo da taverna e isso lhe dava repulsa. As pessoas não deveriam estar tão felizes ali, não quando sua própria mente estava tão tumultuada. Seus sonhos eram atormentados pelas memórias do confronto final com seu vatarh. Às vezes, sua matarh estava com ela.
— Eu te disse — falou sua matarh, com uma expressão de tristeza ao olhar de Jan para Rochelle. — Eu disse para não ir lá...
— Mas ele é meu vatarh, eu sei que a senhora o amava — respondeu Rochelle, e as duas já não estavam nas tendas palacianas, mas na casa da qual ela se lembrava melhor, uma cabana na região serrana de Il Trebbio, onde se criava ovelhas. — A senhora deveria saber que eu seria atraída por ele.
— Eu sei e eles sabem — respondeu a matarh.
Ela tocou a pedra que mantinha em volta do pescoço, a pedra branca que continha todas as vozes que a atormentaram, que a enlouqueceram, e Rochelle tocou o próprio pescoço, onde a mesma pedra estava pendurada, como uma presença reconfortante.
— Eles me disseram que você será quem finalmente pagará pelos meus pecados, e eu sinto muito, sinto muito por isso.
Sua matarh chorou, e as lágrimas dissolveram a lateral da casa de pau a pique. O cheiro de turfa queimando entrou fortemente em suas narinas, e a cena tinha mudado novamente, agora ela e sua matarh estavam em uma campina sob um céu estrelado, sem lua, com nuvens prateadas que corriam pelo horizonte enquanto raios lambiam as colinas distantes como línguas brancas de cobra. O trovão rugia imprecações e maldições a sua volta.
— Mas você não fez o que eu pedi — disse sua matarh, já sem chorar.
A fúria da loucura estava expressa em rosto novamente, e seus dedos agarravam com força os ombros de Rochelle. Ela tinha 13 anos novamente, ainda alguns dedos mais baixa que a sua matarh, mas mais musculosa, com suas primeiras mortes já em seu histórico. Sua matarh estava na cama, e elas já não estavam na região serrana, mas na última casa que dividiram, em Jablunkov, Sesemora. As grandes tábuas de madeira pintada pairavam sobre elas. Sua matarh ofegava em seu leito de morte. Ela tinha pegado a doença do pulmão vermelho e tinha começado a tossir sangue há uma semana. Todos os curandeiros balançaram suas cabeças diante dos sintomas e disseram para Rochelle se preparar para o pior.
— Preste atenção agora — falou sua matarh, ainda agarrando os ombros de Rochelle enquanto se curvava sobre o trapo encharcado que mantinha sobre a boca e o nariz. — Preste atenção, Rochelle. Há uma responsabilidade que coloco sobre você, uma coisa que... não, calem a boca! Vocês não podem me impedir de contar para ela...
A última frase tinha sido dita para as vozes em sua cabeça. Ela balançou a cabeça como se tentasse tirar do lugar uma mosca insistente. Virou a cabeça para tossir e espirrou gotículas de sangue no travesseiro.
— ... algo que eu mesma pretendia fazer, mas agora... Não, não será com vocês, seus desgraçados. Eu matei todos vocês e irei para um lugar onde suas vozes se calarão para sempre. Estão me ouvindo?
Então seus olhos ficaram sãos outra vez e seus dedos apertaram o tecido nos ombros de Rochelle.
— Eu quis matá-la pelo que ela fez comigo — sussurrou a matarh. — Se não fosse por ela, eu podia ter sido feliz, podia ter ficado com seu vatarh. Eu queria ouvir o grito de agonia na minha cabeça quando ela se desse conta do que eu fiz; não porque alguém me pagou para fazê-lo, não, mas porque eu queria. Eu podia ter sido feliz com ele, Rochelle. Seu vatarh... As vozes sumiam quando eu estava com ele, mas ela... Ela arruinou tudo, para mim, para Jan, e para você também, Rochelle. Ela arruinou...
Sua matarh afrouxou as mãos e caiu de costas na cama. Por um momento, Rochelle pensou que ela estivesse morta, mas sua respiração estremeceu novamente e seu olhar ficou focado. Sua mão trêmula se estendeu para tocar a bochecha de Rochelle.
— Prometa para mim — disse ela. — Prometa para mim que você fará o que eu não consegui fazer. Prometa para mim. Você vai matá-la e, enquanto ela morre, você vai contar o porquê, para que ela vá para Cénzi sabendo...
— Eu prometo, matarh — sussurrou Rochelle, chorando.
O cheiro de turfa superou o odor de doença. Rochelle se sentou, assustada, na cama da estalagem. Ouviu o vento soprando lá fora quando a tempestade chegou. A chaminé da lareira no quarto perdendo a pressão e a fumaça dos pedaços de turfa que queimavam ali flutuaram de volta para o quarto. Então o vento mudou e a fumaça foi sugada para cima novamente. O vento uivou, e Rochelle pensou ter ouvido um sussurro tênue nele. Prometa para mim...
Ela ainda não tinha cumprido essa promessa. Ela tinha dito para si mesma que cumpriria, que um dia ela iria a Nessântico como Pedra Branca, e lá encontraria a mulher que acabou o caso de amor de sua matarh com seu vatarh.
Allesandra. A kraljica.
Por que não agora? Jan iria para lá também, disso Rochelle tinha certeza. Ele levaria o exército para Nessântico.
Ela podia chegar lá primeiro. Ela podia manter a promessa a sua matarh, e Jan saberia quem o teria feito, e entenderia o porquê.
A chuva bateu nas persianas do quarto. O trovão retumbou uma vez. Rochelle se cobriu, subitamente desperta.
— Eu irei a Nessântico, matarh — sussurrou ela. — Eu prometo.
A turfa sibilou em resposta.
Varina ca’Pallo
A chispeira fazia peso no cinto sob seu manto, um lembrete constante, sua mente ardia com os feitiços que ela tinha lançado no dia anterior, guardados para esta tarde. Do outro lado da praça, com uma aparência ameaçadoramente abandonada e vazia, o domo dourado do Velho Templo reluzia mesmo na chuva, conforme a água era derramada das calhas de cobre para o bocal das gárgulas, que cuspiam jorros brancos e ruidosos na praça bem abaixo.
As luzes no Velho Templo e nos prédios anexos estavam acesas: tanto luzes de fogo usuais quanto de ténis-luminosos. Todos tinham visto os rostos olhando para fora; olhos que não podiam deixar de notar a concentração de gardai da Garde Kralji em volta da praça e a chegada dos numetodos. Não haveria surpresa ali. Este seria um ataque frontal, na cara de um inimigo bem preparado.
Talbot, Johannes, Leovic, Mason, Niels e outros numetodos estavam reunidos ao lado dela, todos carrancudos. O a’offizier ci’Santiago se aproximou deles enquanto esperavam.
— Todos os meus gardai e utilinos estão em posição. A kraljica também está aqui para observar. — Ele apontou para uma janela acima deles, em um dos prédios governamentais no limite da praça. — A senhora tem certeza de que quer tentar falar primeiro com Morel, a’morce?
— Eu tenho que tentar — respondeu Varina.
Talbot balançou a cabeça.
— Não, a senhora não tem que fazer isso, a’morce. Nós podemos mandar outra pessoa com a mensagem. Eu mesmo posso ir, de bom grado...
Varina sorriu para Talbot.
— Não — ela disse para ele, para todos eles. — Eu conheço Nico. Ele vai me reconhecer e vai falar comigo. Estarei a salvo. Nico é o líder do grupo dele, e eu sou a líder do meu. Ele nos verá como iguais. É assim que tem que ser.
— E se a senhora estiver errada? — perguntou ci’Santiago.
— Não estou — ela respondeu com firmeza, embora ela mesma considerasse sobre essa possibilidade. — Esperem aqui. Todos vocês. Se isso correr bem, nós podemos dar fim ao cerco sem derramamento de sangue.
Varina viu a descrença no rosto de todos. Nenhum deles compartilhava de seu otimismo. Na verdade, ela mesma tinha pouca esperança.
A a’morce acenou com a cabeça para todos eles e, em seguida, começou a cruzar a praça. Enquanto caminhava, com seus passos chapinhando nas poças, ela pronunciou um gatilho de feitiço, fazendo surgir uma luz sobre sua cabeça que a iluminou à medida que ela avançava pelas lajotas escuras e úmidas sob a falsa noite da tempestade. Apesar da chuva, Varina manteve o capuz do manto abaixado, para que seu cabelo branco brilhasse na luz e seu rosto pudesse ser reconhecido. Ela olhou para trás uma vez, a meio do caminho, em campo aberto: seus amigos pareciam ser pouco mais que pequenos pontos na escuridão. Em volta da praça, Varina viu as tochas acesas: os gardai à espera. Ela se voltou para frente e caminhou devagar em direção às portas principais do Velho Templo.
— Eu sou Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos — gritou Varina ao se aproximar. — Preciso falar com Nico Morel.
Sob a escuridão da tempestade, sua voz ecoou pelos prédios da praça e soou fraca, solitária e fina. Uma cabeça espiou Varina do alto de uma janela no templo e sumiu novamente. Ela quase podia sentir as flechas apontadas para ela ou os feitiços sendo evocados. Sentiu-se velha, frágil. Isto foi um erro...
Mas Varina ouviu uma pequena porta ser aberta ao lado das portas principais, uma passagem sem luz, havia uma figura ali: uma sombra em uma escuridão mais intensa.
— Varina — soou uma voz familiar e gentil. — Estou aqui. A pergunta é: por que você está?
— Eu preciso falar com você, Nico.
Ela pensou ter visto o brilho de dentes na escuridão. A sombra se mexeu ligeiramente, e uma mão gesticulou.
— Então venha para dentro, saia de baixo da chuva.
Olhando para trás uma última vez, Varina passou por ele e entrou na penumbra perfumada por incenso. Ela estava em uma das capelas laterais, do lado de fora da nave principal do templo. No fundo do amplo corredor, Varina pôde ver o cenário à luz de velas da capela principal, sob o grande domo. Havia pessoas lá, muitas em robes de ténis, algumas olhavam em sua direção. Ela pôde notar que as portas principais do templo tinham sido bloqueadas e barricadas.
Varina ouviu Nico fechar e trancar a porta novamente ao passar por uma viga grossa de madeira atrás dela. Havia outra pessoa ali com ele: uma jovem com uma enorme barriga de grávida, bem notável sob o robe apertado de téni quando ela ficou ao lado de Nico. Ele devia ter notado a atenção de Varina sobre a mulher e sorriu de novo.
— Varina, esta é Liana. Ela e eu... — Ele sorriu. — Nós somos casados, mesmo que Liana insista que eu deva evitar o ritual real.
— Liana — disse ela.
Varina se perguntou se um dia ela tinha parecido tão jovem e tão obviamente apaixonada. Tocou a própria barriga: se eu tivesse conhecido Karl quando era jovem o suficiente.
— É um belo nome — falou Varina, e olhou novamente para Nico, que havia passado o braço pela cintura de Liana. — Nico, você não pode vencer aqui. A kraljica Allesandra decidiu que o Velho Templo precisa ser retomado. Ela não se importa com o custo em vidas ou danos. A kraljica reuniu a Garde Kralji e os chevarittai que ainda estão na cidade, e eles estão prontos para atacar.
— E os numetodos? — perguntou Nico. — Estão lá fora também?
Varina assentiu.
— Estamos. Você não vai conseguir nos enfrentar, Nico. Nem mesmo com os ténis-guerreiros que você tem aqui. Nós temos a nossa própria magia e temos areia negra em grande quantidade. Será um massacre, Nico. Eu não quero isso. No mínimo, eu pediria para você soltar o comandante co’Ingres como um sinal de que está disposto a negociar um fim para esta situação. Vamos conversar. Vamos ver se podemos chegar a alguma espécie de acordo.
— Você quer que eu solte co’Ingres para que a Garde Civile possa ter alguma liderança competente. — Nico sorriu para ela e estreitou o abraço em Liana. — Você se esquece que Cénzi está do meu lado. Sei que não acredita, Varina, mas você não faz ideia do que realmente está enfrentando aqui. Ele me disse que lançará fogo do céu para nos proteger. Você acha que é uma coincidência que haja uma tempestade na noite de hoje? Não é.
Como uma deixa, um raio disparou uma luz multicolorida sobre rosácea acima deles, e o trovão rugiu. Liana riu.
— Olhe para você, Varina — disse ela. — Quase morreu de susto agora mesmo. Você quer acreditar, apenas não se permite. Não consegue sentir a alma de seu marido lhe chamando do além?
— Não — respondeu Varina para a jovem. — Vocês acreditam em uma quimera. Vocês dizem “eu não entendo isso” e inventam um mito para explicá-lo. Nós, numetodos, procuramos por explicações; nós não precisamos evocar Cénzi para criar magia. Nós evocamos a lógica e a razão.
Nico franzia a testa agora.
— Você bate na cara de Cénzi com sua heresia — disparou ele. — Você não faz ideia de como Cénzi me fez poderoso.
— Você teria sido poderoso assim independentemente de Cénzi — argumentou Varina. — O poder está dentro de você, Nico. Não tem nada a ver com Cénzi. O poder é seu. Você sempre o teve, e eu sempre soube disso.
Nico se empertigou, soltando Liana. Sob a escuridão do templo, ele parecia maior, e sua voz — percebeu Varina — estalava com o poder do Scáth Cumhacht. Ela se perguntou se Nico sequer se dava conta do que estava fazendo, sem um feitiço, sem sequer evocar Cénzi. Varina ficou surpresa: isto não era algo que ela pudesse fazer, que nenhum numetodo podia fazer. Ele se conectava ao Segundo Mundo instintiva e naturalmente, como se fizesse parte dele. Ela se perguntou, ao saber disso, o que mais Nico era capaz de fazer. Karl, sua ajuda viria a calhar agora. Juntos, talvez pudéssemos compreender esta situação...
— É isso o que você veio fazer, Varina? — continuou ele. — Veio me insultar aqui, na própria casa de Cénzi? Se for assim, você está desperdiçando seu fôlego e a conversa está encerrada.
Varina ia dar uma resposta irritada, mas se deteve. Ela deu um suspiro longo e profundo.
— Olhe para mim, Nico. Eu sou uma velha. Não quero isso. Estou aqui porque me importava com você quando era criança e ainda me importo. Não quero que se machuque. Não quero a morte e a destruição que ocorrerão se a kraljica retirar você e sua gente daqui à força. E ela o fará, Nico. Ela determinou que deve fazê-lo, e a menos que você se renda, é isso o que vai acontecer. É isso o que você quer? Quer que seus seguidores morram aqui?
Nico riu novamente, vigorosa e sonoramente, tão alto que os demais na parte principal do templo olharam para eles. Liana riu com o marido.
— Isso é tudo que você tem, Varina? Um apelo ao medo, à minha compaixão? Você me considera tão inocente assim? Eu fui incumbido por Cénzi a fazer isso; talvez você não consiga entender o que isso significa, mas, por causa dessa incumbência, eu não tenho escolha. Nenhuma escolha. Eu cumpro a vontade Dele; sou Seu veículo. Esta não é minha ação, nem a minha batalha. Se a kraljica e o archigos desejam desafiar Cénzi, então eles arriscam suas próprias almas e sua salvação eterna, e o mesmo se aplica àqueles que os apoiam. Cada um de vocês lá fora está condenado, Varina. Condenado. Quer que eu me entregue? Isso não vai acontecer. Ao contrário, deixe-me lhe passar a seguinte tarefa: vá até a sua kraljica, que passa a mão na sua cabeça e na sua heresia. Diga-lhe que, ao contrário, eu exijo a rendição dela. Diga-lhe que ela verá o fogo e as chamas que Cénzi lançará para atacá-la, que seus comandados tremerão de medo, que fugirão aterrorizados com o que os aguarda. Diga isso a ela.
Enquanto falava, sua voz crescia em poder e volume. Varina teve que se forçar a não dar um passo para trás, como se as próprias palavras pudessem ser incendiadas, queimando-a. O poder de Nico era inegável; Varina podia sentir a fúria gelada do Scáth Cumhacht em volta dela — o que ele chamaria de Ilmodo — e se deu conta de que perdeu ali, de que Nico estava além da pouca capacidade que ela tinha de convencê-lo. A chispeira pendida pesadamente no cinto sob seu manto, Varina percebeu que não tinha escolha. Nenhuma escolha. Sua própria vida não importava. Mas Nico era o coração e a força de vontade da seita morelli, se ele morresse, o grupo entraria em colapso.
Varina sacou a chispeira. Apontou para o peito de Nico, com a mão trêmula. Nico olhou para a arma com desprezo.
— O que é isso? — Alguma besteira dos numetodos?
Varina não podia hesitar — se hesitasse, ele invocaria um feitiço e a oportunidade seria perdida. Soluçando pelo que ela estava fazendo, chorando porque estava prestes a matar alguém que tanto ela quanto Karl amaram, Varina apertou o gatilho. A roda girou, as faíscas espocaram.
Mas houve apenas um silvo e um estalo da areia negra no tambor, e ela viu, em desespero, a umidade acumulada no metal. Varina soltou a chispeira, que caiu tilintando sobre as lajotas de mármore do piso.
Liana riu, mas Varina percebeu que Nico examinava seu resto.
— Sinto muito — disse ele. — Isso nunca deveria ter chegado a este ponto entre nós. Sinto muito — repetiu Nico, e sua voz soou como a do menino de quem Varina se lembrava.
Nico se virou, tirou a viga da porta e a abriu; lá fora, o vento jogava chuva na praça e as nuvens negras rolavam no céu.
— Vá embora, Varina — falou ele. — Vá embora pelo bem de nossa amizade. Vá e diga para a kraljica que, se ela quiser batalha, ela a terá; e a culpa recairá sobre sua cabeça.
Varina estava olhando fixamente para sua mão, para a chispeira no chão. Com dificuldade, ela se abaixou e pegou a arma novamente, recolocando-a no cinto. Varina deu um passo em direção à Nico e o abraçou.
— Pelo menos deixe Liana vir comigo, pelo bem da criança que ela carrega. Vou mantê-la a salvo.
— Não. — A resposta veio de Liana. — Eu fico aqui, com Nico.
Nico sorriu para ela e envolveu Liana novamente.
— Sinto muito, Varina. Você tem sua resposta.
— Eu também sinto muito — respondeu Varina para ele, para os dois.
Ela acenou uma vez com a cabeça para Liana e saiu em direção à tempestade, cobrindo o rosto com o capuz.
Jan ca’Ostheim
A tempestade sacudiu as tendas como um cachorro balançando um osso teimoso. A lona estalava e crepitava com tanta intensidade sobre Jan que todos olharam para cima.
— Não se preocupe — ele disse para Brie. — Eu já estive fora em tempo pior.
— Eu sei que é bobagem, mas tenho medo de que essa tempestade seja um presságio — respondeu Brie.
Jan riu, puxando a esposa para si e abraçando-a.
— O clima é só o clima. Isso significa que as colheitas crescerão e os rios correrão velozes e limpos. Significa que os homens resmungarão e xingarão e as estradas ficarão arruinadas pela lama. Mas é só isso. Eu prometo. — Ele beijou a testa de Brie. — Paulus e a equipe a levarão de volta à Encosta do Cervo.
— Eu não vou para a Encosta do Cervo e Brezno. Vou ficar com você.
Jan balançava a cabeça antes que ela terminasse.
— Não. Não temos ideia da seriedade da ameaça que vamos enfrentar em Nessântico. Não quero deixar meus filhos órfãos. Você ficará com eles.
— São meus filhos também — insistiu Brie. — E terei que contar a eles quando forem mais velhos. Se você vier a morrer, eles vão querer saber por que eu fui tão covarde e fiquei para trás.
— Você não me acompanhou quando acabamos com a rebelião na Magyaria Ocidental — rebateu Jan, embora soubesse de imediato a resposta, que veio tão rapidamente quanto ele esperava.
— Eu tinha acabado de dar à luz Eria, ou teria ido. Além disso, Jan, você precisa de mim para ficar entre você e sua matarh. Vocês dois... — Ela balançou a cabeça. — A coisa vai ficar feia, e você vai precisar de uma mediadora.
— Eu sei lidar com a minha matarh. — Jan segurou os ombros de Brie e sustentou seu olhar. — Brie, eu te amo. É por isso que não quero que você vá. Se estiver lá, ficarei preocupado demais com você.
Ele a viu amolecer, embora ainda estivesse balançando a cabeça. Brie queria acreditar em Jan. E era verdade, ao menos em parte. Ele realmente a amava: um amor sereno, não o amor intenso e ardente que Jan uma vez sentiu por Elissa, nem com o mesmo desejo sexual que ele sentiu pelas amantes que teve. Jan correu para a saída da tenda.
— Mande beijos meus para Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria e diga que o vatarh deles voltará em breve, que não se preocupem.
— Kriege vai querer ir atrás de você — falou Brie — e Elissa também.
Ele sabia que tinha vencido a discussão. Jan riu e puxou a esposa para si.
— Haverá tempo suficiente para isso, e do jeito que as coisas vão, haverá muitas oportunidades. Diga a eles para serem pacientes e estudarem bastante com o armeiro-mor.
— Eu farei isso, e estarei esperando por você também — respondeu Brie.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou o marido repentinamente. Desde a partida súbita de Rhianna, uma vez que tinha ficado claro a improbabilidade da jovem ser encontrada, Brie ficou bem mais carinhosa com o marido. Jan não tinha dito nada a respeito do que a garota tinha roubado — embora suspeitasse que Brie soubesse. Jan não contou especialmente as últimas palavras de Rhianna, chocantes e inacreditáveis. “Eu sou sua filha. Sou a filha de Elissa. A filha da Pedra Branca.”
Ele queria gritar em negação para o mundo ouvir, mas descobriu que as palavras ficavam presas em sua garganta como um espinho na barra de sua bashta. Você achou Rhianna atraente porque ela lembrava Elissa — a Elissa que você se lembrava... Seria possível? Seria possível que ela fosse sua filha? Será que ela, ou Elissa, era a responsável pela morte de Rance?
Sim... A palavra não parava de surgir em sua mente.
Quando essa guerra acabasse, Jan prometeu a si mesmo, ele encontraria Rhianna novamente. Ele colocaria mil homens em seu encalço, a localizaria, mandaria que a trouxessem para ele e descobriria a verdade.
E se ela for sua filha com Elissa? Não havia resposta para essa pergunta.
Jan sorriu para Brie e fingiu que não havia nada entre eles, e Brie fez o mesmo, como ele sabia que tinha feito antes, com suas outras amantes. Eles se beijaram mais uma vez, e Brie ajeitou o casaco de chuva em volta de Jan como teria feito com um dos filhos.
— Você deve ter cuidado — disse ela. — Volte para mim como um vitorioso.
— Eu voltarei — respondeu Jan. — Firenzcia sempre faz isso.
Ele abraçou a esposa mais uma vez por um instante, sentindo o cheiro do seu cabelo e se lembrando do cheiro de Elissa. Então ele a soltou, Paulus ergueu a aba pintada da tenda, e o hïrzg saiu para a chuva, puxando o capuz sobre sua cabeça.
O starkkapitän ca’Damont e os outros a’offiziers se empertigaram em posição de sentido e prestaram continência assim que ele surgiu, Jan devolveu a saudação. Sergei ca’Rudka estava lá também, seco em sua carruagem.
— Está na hora — disse Jan.
Ca’Damont e os offiziers o saudaram novamente, e o starkkapitän gritou ordens enquanto eles se agrupavam em suas divisões. Jan caminhou pelo lamaçal até a carruagem de Sergei, notando o brilho de seu nariz sob a sombra da carruagem.
— Embaixador? — chamou Jan. — Você tem o que precisa?
Sob a penumbra, a mão de Sergei tocou a bolsa diplomática.
— Sim, hïrzg. Sua matarh ficará feliz ao ver isso.
— Eu suspeito que ela ficará mais feliz ao ver o exército de Firenzcia — falou Jan. — Tem certeza de que não quer viajar com o exército?
Sergei balançou a cabeça.
— Eu preciso voltar para Nessântico o mais rápido possível, nem que seja para avisá-la que o socorro está a caminho. Posso viajar mais rápido dessa forma. Eu vejo o senhor lá.
Jan concordou com a cabeça e gesticulou para o condutor.
— Que Cénzi acelere sua jornada. E que essa chuva pare antes que o rios subam.
Sergei ia responder, mas ambos ouviram uma voz saudando o hïrzg. Jan se virou — a carruagem do archigos Karrol havia chegado. Dois assistentes ténis o ajudaram a descer, segurando um guarda-chuva sobre ele. Apesar disso, Jan notou que a barra dourada de seu robe de archigos estava suja de lama, e Karrol parecia ofegante.
— Meu hïrzg — chamou o archigos, acenando para Jan.
— O archigos parece chateado — disse Sergei.
O embaixador colocou a cabeça para fora da janela da carruagem. A chuva colou as poucas mechas de seu cabelo grisalho ao crânio e espirrou no nariz.
— Eu imagino...
— Você imagina o quê? — perguntou Jan, mas o archigos o alcançou antes que Sergei pudesse dizer alguma coisa.
— Meu hïrzg — repetiu o archigos Karrol ao fazer o sinal de Cénzi. — Estou feliz em encontrá-lo. Eu...
Ele parou ao ver a carruagem e ver Sergei fazendo uma careta.
— Prossiga, archigos — disse Jan. — Se você tem algo a dizer, tenho certeza de que o embaixador também deve ouvir.
— Hïrzg... eu... — O homem fez uma pausa, como se para recuperar o fôlego. Sua cabeça eternamente abaixada fez um esforço para encarar Jan nos olhos. — Eu mandei que os ténis-guerreiros me encontrassem esta manhã, para dar a minha bênção final e as ordens, mas...
Ele se deteve e pendeu a cabeça novamente. A chuva caía em um ritmo acelerado sobre guarda-chuva que o protegia.
— Mas... — incentivou Jan, apesar de já saber o que Karrol diria.
O hïrzg olhou para Sergei, que tinha se recolhido de volta ao abrigo da carruagem.
— A maioria dos ténis-guerreiros... Eles foram embora, meu hïrzg. Aqueles que ficaram disseram que chegou uma mensagem à noite e que a maioria abandonou o acampamento em seguida. A mensagem...
— Era de Nico Morel — Jan concluiu por ele, e disparou — Pelos colhões de Cénzi.
A blasfêmia fez Karrol erguer a cabeça novamente. Seus olhos remelentos o encararam de forma acusatória.
— Sim, meu hïrzg — concordou o archigos. — A mensagem era de Morel. O homem teve a audácia de ordenar que os ténis-guerreiros não entrassem em combate, como se ele fosse o archigos. Eu lhe prometo, hïrzg, assim que acharmos esses traidores, eu os punirei até os limites da Divolonté. Eles jamais darão ouvidos a um herege novamente.
— E enquanto isso? — perguntou Jan. — Como meu exército vai arrumar ténis-guerreiros?
— Ainda há dois punhados, hïrzg.
— Vinte ténis-guerreiros. Impressionante. Dois punhados obedecem a você, e oito punhados obedecem a Morel. Talvez Morel devesse ser o archigos. Ele parece ter mais influência do que você.
O archigos Karrol piscou.
— Estou certo de que os demais perceberão sua conduta errada em breve. Cénzi os punirá, os tornará incapazes de lançar feitiços, assombrará seus sonhos. Eles voltarão, arrependidos. Tenho certeza disso.
— Fico feliz em saber da sua confiança — respondeu Jan secamente, ouvindo Sergei rir na carruagem.
— O que trará os ténis-guerreiros de volta é a morte de Morel — comentou o embaixador. — Se matarmos Morel, acabamos com qualquer autoridade que ele tenha.
— Ou o transformamos em um mártir — retrucou o archigos Karrol, mas Sergei respondeu rapidamente.
— Não. Nico Morel diz que é guiado por Cénzi, que é protegido por Cénzi, que é a voz de Cénzi. Se Cénzi permitir que ele morra, tudo o que Morel alega ser será tido como mentira. Os morellis desaparecerão como uma tempestade de neve na primavera.
— Ao que parece, embaixador, o senhor e a kraljica só têm uma resposta para qualquer problema que Nessântico enfrente — murmurou Karrol.
— E ao que parece, archigos — retrucou Sergei —, o senhor não tem nenhuma.
— Chega! — rosnou Jan.
Ele gesticulou sob a chuva. Um raio caiu perto deles, e o hïrzg esperou até que o ruído do trovão passasse.
— Eu espero que você, archigos, esteja disposto a me acompanhar, para que eu não perca mais ténis-guerreiros do que já perdi.
A expressão mal-humorada de Karrol foi suficiente para indicar a Jan o que passava pela cabeça do archigos, mas o homem ergueu as mãos, fazendo o sinal de Cénzi, sem dizer nada. Seus assistentes se entreolharam.
— Embaixador — falou Jan —, estamos atrasando sua partida. Diga para minha matarh mandar o comandante ca’Talin ou um de seus a’offiziers a cavalo em nossa direção o quanto antes, para podermos coordenar com a Garde Civile dos Domínios.
— Certamente, hïrzg. E eu lhe dou meus próprios agradecimentos; o senhor será um belo kraljiki. — Dito isso, Sergei bateu no teto da carruagem com a bengala e gritou — Condutor!
O homem estalou as rédeas e a carruagem seguiu em frente, dando um solavanco. As rodas abriram sulcos fundos e compridos na lama. Jan se voltou para o archigos, ainda seco sob o guarda-chuva enquanto a chuva fria pingava do tecido impermeável do capuz de Jan.
— Vamos partir antes da Segunda Chamada, archigos — falou ele. — Eu sugiro que você se apronte.
— Hïrzg Jan, eu peço que o senhor reconsidere. Sou um velho e tenho tarefas a cumprir em Brezno. Talvez, se a minha equipe ficar com o senhor...
O guarda-chuva se agitou enquanto os assistentes arregalavam os olhos.
— Eu reconheço a sua fragilidade, archigos, mas talvez seja hora de você examinar seus templos em Nessântico, uma vez que você precisa substituir a a’téni ca’Paim, e quando eu for o kraljiki, o trono da fé concénziana voltará para lá.
O archigos Karrol não respondeu, suas costas eternamente curvadas davam a impressão de que ele estava examinando a barra enlameada de seu robe.
— Você está perdendo tempo, archigos — falou Jan. — Espero ver sua carruagem se unir ao comboio do exército em meia virada da ampulheta, sem mais reclamações ou sugestões.
Dito isso, Jan deu meia-volta. Ele pediu seu cavalo e suas armas e seguiu em direção ao lugar em que o starkkapitän ca’Damont o aguardava.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra tinha requisitado uma sacada com vista para a praça. O Velho Templo se agigantava do outro lado, embora fosse difícil ver muita coisa com a chuva torrencial e a escuridão da tempestade. Erik estava atrás dela, olhando sobre seu ombro, sua solicitude a incomodava.
— É sério, Allesandra, você deveria sair da janela. Há ténis-guerreiros dentro do Velho Templo, e você não tem ideia do que eles podem fazer, especialmente se souberem que a kraljica está observando.
— Eu sei exatamente do que ténis-guerreiros são capazes — ela respondeu rispidamente. — Provavelmente melhor do que você, Erik. E eu não gosto que você fale comigo como se eu fosse uma criança.
— Desculpe — ele disse, mas não parecia haver nenhum pedido de desculpa em sua voz. — Eu só estou preocupado com sua segurança, meu amor.
— E eu estou preocupada com a segurança do meu povo. A Garde Kralji não é a Garde Civile. Seu trabalho é policiar Nessântico; eles nunca enfrentaram ténis-guerreiros antes, não encaram uma insurreição armada há um século e meio, e o comandante é um prisioneiro no lugar que eles estão prestes a atacar.
— É por isso que eu sugeri que você me colocasse no comando da Garde Kralji — disse Erik. — Eles precisam ser conduzidos por uma mão firme.
Então eu não sou uma mão firme, na sua opinião?
— Você nunca comandou uma força organizada antes — Allesandra o lembrou.
De fato, o homem estava se tornando cansativo. Ela começava a se perguntar o que tinha visto nele.
— Eu sou o símbolo de Nessântico. Eu governo os Domínios. Eles merecem ver que estou aqui, com eles. Eu agradeceria se... — Allesandra parou e espiou na chuva. — Ah, Varina está voltando... E lá está o sinal do a’offizier ci’Santiago; Morel se recusou a negociar.
Allesandra suspirou. Ela teve esperanças de que a situação não chegasse a este ponto, de que, de alguma forma, Varina fosse capaz de negociar a remoção dos morellis do templo — ela podia ver que isso não acabaria bem, independentemente do resultado. Mas Allesandra não tinha escolha. Especialmente se Jan estivesse trazendo o exército firenzciano para cá — ela tinha que dar um fim nisso agora ou daria a impressão de ser extraordinariamente fraca.
Talbot tinha içado duas bandeiras na sacada onde ela estava: uma tinha um tom vermelho-sangue intenso, a outra, era verde-claro. Ambas pingavam chuva de suas dobras ensopadas. Allesandra arrancou a bandeira verde do suporte e a deixou cair sobre as pedras da sacada. Como uma resposta, uma estrela vermelha surgiu lá debaixo, desenhando um arco bem acima da praça. A luz permaneceu ali por um instante, dando um toque sangrento à tarde escura e sibilando de forma audível na chuva.
Um momento depois, três arcos de chamas foram disparados quase que diretamente sob a sacada do templo — pelos numetodos. As chamas pingaram e estalaram, deixando um rastro de fumaça nociva, e disparando para bater no pórtico em frente ao Velho Templo. Quando as chamas atingiram o alvo, houve uma explosão terrível, e clarões brancos sacudiram a praça inteira. Allesandra sentiu a sacada estremecer sob ela. Um momento depois, uma onda de ar aquecido passou por ela, erguendo seu cabelo. Sob a chuva e a fumaça, era difícil dizer o que tinha acontecido, mas agora os gardai da Garde Kralji corriam em direção ao Velho Templo de todas as direções da praça, aos berros. Ela notou ci’Santiago no comando dos gardai — independentemente do que Allesandra pensasse de sua competência, o homem ao menos era corajoso.
Os gardai estavam a apenas um quarto do caminho na praça quando a resposta do Velho Templo foi dada. Uma dezena de bolas de fogo foram disparadas contra a fumaça que cercava a entrada principal através das janelas dos prédios anexos ao templo. Allesandra ouviu os numetodos gritarem os gatilhos de seus feitiços, e todas as bolas de fogo dos ténis-guerreiros, exceto duas, estalarem e se apagarem. Mas essas duas caíram sobre a massa de gardai em avanço. Gritos agudos rasgaram a tempestade quando as bolas de fogo explodiram. Por um momento, houve caos na praça e os gardai pararam. Ela ouviu ci’Santiago berrar ordens enquanto os numetodos disparavam seus feitiços em direção ao Velho Templo. Os gardai avançaram novamente, mas uma fumaça irritante e sufocante agora obscurecia a praça do templo, dificultando a visão. Allesandra se inclinou para frente, com as mãos agarradas ao gradil da sacada.
Quase tarde demais, ela viu um globo de fogo surgir voando da fumaça em sua direção. Allesandra recuou e se jogou de costas no interior do aposento. A bola de fogo colidiu contra a lateral do prédio, provocando uma grande onda de chamas um pouco abaixo e à direita da sacada onde ela estava. O prédio balançou, derrubando Erik no chão. O lustre do cômodo balançou freneticamente, os enfeites de vidro lapidado se quebraram e caíram. Pedaços de gesso e sanca caíam como cascatas do teto, e duas rachaduras longas e escancaradas serpenteavam do piso para o teto da parede externa. Um pedaço da sacada onde Allesandra estava desabou.
Ela sentiu o cheiro de enxofre e fumaça ondulando lá fora.
— Allesandra! — berrou Erik.
Ele tentava levantá-la enquanto ela tossia o ar fétido e sufocante, os gardai que estavam no corredor do lado de fora entraram correndo e a cercaram desembainhando suas espadas.
— Temos que sair daqui!
— Espere!
Allesandra cambaleou até a abertura da sacada e olhou através das portas destruídas. Na praça agora se estabelecera o caos; ela não conseguia ver nada, embora houvesse chamas e explosões em volta do Velho Templo. No chão lá embaixo, as chamas subiam pelas laterais do edifício.
— Desgraçados imundos! — berrou Erik enquanto gesticulava para o Velho Templo. — Matem todos! Matem todos eles!
A kraljica o encarou. Ele fez uma careta e, em seguida, se acalmou.
— Muito bem — disse Allesandra para Erik e os gardai. — Eu fiz tudo que era possível aqui. Vamos.
Sergei ca’Rudka
A chuva martelava o teto da carruagem e pingava através de todas as frestas imagináveis no teto e nas laterais do veículo. Sergei só podia imaginar como o pobre condutor devia estar sofrendo, encolhido no banco à medida que eles avançavam diante do exército na estrada.
Sergei parou por meia virada para um breve almoço em uma das estalagens de Ville Colhelm, do outro lado da fronteira dos Domínios, e para permitir que o condutor atual se sentasse em frente à lareira ruidosa da taverna para tentar tirar um pouco da umidade de suas roupas ensopadas. O novo condutor que Sergei tinha contratado não parecia estar muito animado com a ideia de passar longas viradas da ampulheta exposto à chuva.
Ele não se demorou. Comeu rápido e voltou à carruagem com seu novo condutor, balançando e chapinhando pelas estradas quase intransitáveis devido ao mau tempo. À tarde, a chuva tinha diminuído para uma garoa persistente e taciturna, e a chuva mais intensa e as trovoadas tinham sido levadas para o leste e o norte.
Sergei tentou dormir na carruagem baloiçando, mas não conseguiu. O teto vazava no canto onde ele tentou se encolher, e os sulcos na estrada não pareciam se encaixar nas rodas da carruagem, de maneira que toda vez que o veículo encontrava com eles, as molas da carruagem ameaçavam jogá-lo para fora do assento. Ele se perguntou se o condutor estava fazendo isso deliberadamente para fazê-lo sofrer tanto quanto ele estava sofrendo.
Eles encontraram poucas pessoas na estrada, em sua maioria agricultores sentados em seus cavalos de tração pesados e lentos ou com seus animais seguindo carroças igualmente lentas e pesadas, carregando mercadorias destinadas aos mercados da cidade mais próxima. Sergei fechou os olhos. Queria estar de volta a Nessântico, de volta aos seus belos aposentos lá. Ora, quem sabe ele até visitasse a Bastida novamente — certamente, a esta altura, Allesandra teria uma braçada de morellis abrigados na escuridão de lá, e ele poderia se entregar à deliciosa dor...
— Saia da estrada, garota! — Sergei ouviu o condutor gritar. — Você é cega e surda?
Sergei afastou as cortinas da porta a tempo de ver a carruagem passar por uma moça caminhando na estrada. Ela estava ensopada, com apenas um pequeno embrulho na mão e lama até os joelhos e respingos causados pelas rodas da carruagem espalhados por sua tashta. Ele viu a moça fazer um gesto obsceno pelas costas do condutor.
O rosto dela lhe pareceu estranhamente familiar. Sergei deixou a cortina cair e a carruagem seguir em frente aos solavancos por alguns instantes até ter a ideia.
— Condutor! — ele chamou, usando a ponta da bengala para levantar a janela entre os dois. — Pare por um momento.
— Vajiki?
— Aquela garota. Pare.
Sergei pensou ter ouvido um suspiro do condutor.
— Ela sequer parece ser bonita o suficiente para o senhor se dar ao trabalho, vajiki, e, além disso, está ensopada. Mas, como queira...
O condutor puxou as rédeas. Sergei abriu as cortinas novamente, colocando a mão para fora e gesticulando para a garota.
— Venha — disse ele. — Saia debaixo da chuva.
Ela hesitou, mas caminhou devagar até a carruagem. Ela parou na porta e ergueu os olhos para ele.
— Perdão, vajiki, mas como posso saber se posso confiar no senhor? — perguntou a jovem.
Se ela ficou surpresa com o nariz falso, não pareceu reagir. E esse rosto... O cabelo era diferente. Mais claro e curto — e mal cortado. Mas esses olhos, e essa presença...
— Não pode — respondeu Sergei. — Eu poderia lhe dar a minha palavra, mas o que isso significaria? Se eu quisesse lhe fazer mal, eu simplesmente mentiria a respeito disso também. A escolha é sua, mocinha; você pode entrar e pegar carona comigo, ou pode ficar aí fora. Se escolher a segunda opção, ao menos não pode ficar mais molhada do que você já está.
Ela riu.
— Verdade. Ah, bem...
A moça ergueu a mão e abriu a porta da carruagem, pisando no estribo e fazendo a carruagem ceder com seu peso. Ela desmoronou no assento estreito em frente a Sergei. A água gotejava de seu cabelo e roupas encharcadas.
A jovem olhou para ele fixamente quando Sergei fechou a porta e bateu no teto da carruagem com o punho da bengala.
— Vamos, condutor.
O condutor estalou as rédeas e gritou para o cavalo, e a carruagem seguiu novamente, dando um solavanco. A jovem continuou olhando para ele fixamente. Em meio à penumbra da carruagem e com seus velhos olhos, era difícil perceber bem as feições dela, mas Sergei sabia que a moça podia ver o nariz grudado em seu semblante enrugado. Se ela era quem ele pensava que era, não disse nada, não reconheceu seu nome.
— O senhor tem o hábito de dar caronas para camponeses sem status, vajiki? — perguntou ela.
— Não — respondeu Sergei. — Apenas para aqueles que parecem interessantes.
Ela não reagiu a isso, a não ser com um gesto para tirar da testa o cabelo grudado pela chuva.
— Se vamos compartilhar esta carruagem desconfortável, é melhor nos apresentarmos — ele disse, finalmente. — Você é...?
— Remy. Remy Bantara.
Houve uma pequena hesitação quando ela pronunciou seu sobrenome. Ela está mentindo... Sergei conteve um tique de satisfação. A jovem mentia melhor que a maioria, extremamente habilidosa, o que indicou para Sergei que ela também estava acostumada a mentir. A hesitação foi praticamente imperceptível, mas ele tinha ouvido muitas mentiras e evasivas na vida. A moça também mantinha a mão direita sob as dobras do sobretudo, perto do topo da bota. Ele suspeitou que ela tivesse uma arma ali — uma faca, provavelmente. Isso o deixou curioso — o que mais ela estaria escondendo?
— E o senhor é o embaixador Sergei ca’Rudka. O Nariz de Prata — acrescentou a moça.
— Ah, já nos conhecemos antes?
Ela balançou a cabeça, jogando gotículas de chuva do cabelo arrepiado.
— Não, mas ouvi falar do senhor. Todo mundo ouviu.
E todo mundo que me vê pela primeira vez não faz nada além de olhar fixamente para o meu nariz; e você não o fez... Sergei sorriu para ela.
— Para onde você vai, vajica Bantara?
— Nessântico — respondeu a jovem. — E o senhor pode me chamar de Remy, se preferir.
— É uma longa caminhada, Remy.
— Eu não preciso cumprir uma agenda. Quando eu chegar, cheguei, embaixador.
— Você pode me chamar de Sergei, se quiser. Nessântico, hein? Estou indo para lá também.
Ele soube agora. Pelo timbre na voz, pela forma como olhava atentamente para ele quando pensava que não estava sendo observada, pela ausência de subserviência genuína no tom. Ela tinha pintado o cabelo em um tom mais claro e provavelmente o tinha cortado sozinha. Esta era Rhianna — a garota que Paulus tinha dito que o pessoal do hïrzg procurava. Conhecendo Jan como ele conhecia, e tendo ouvido o diálogo entre o hïrzg e Brie, Sergei suspeitava do motivo.
— Eu vou parar em Passe a’Fiume esta noite para dormir e trocar de condutor e de cavalo, em seguida prossigo para Nessântico de manhã. — Ele hesitou. — Fique à vontade para me acompanhar. É um trajeto bem mais curto que uma caminhada.
— E o que o senhor espera receber em troca, embai... Sergei?
— Apenas o prazer da sua conversa — respondeu ele. — Como eu disse, é um longo caminho até Nessântico, e solitário.
— Como eu disse há pouco, eu ouvi falar de você. E algumas dessas histórias... — Ela deixou a frase esvanecer em silêncio e continuou a encará-lo.
— Eu não acredito em histórias e fofocas — disse Sergei. — Eu prefiro descobrir a verdade por minha própria conta. Alguém forte o suficiente para ir até Nessântico a pé certamente é forte o suficiente para se defender de um velho que mal consegue andar, caso ele ultrapasse os limites da educação. No mínimo, você deve correr mais do que eu.
Ela riu novamente, uma risada genuína e rouca que fez Sergei responder com um sorriso. Sua mão saiu debaixo da tashta: novamente, um movimento natural e calculado, não o gesto de uma jovem assustada em uma situação incerta, mas de alguém acostumado a essas condições. Ele começou a se perguntar se não havia mais a respeito da história de Jan e Rhianna do que ele pensava.
Você poderia obrigá-la a falar. Poderia obrigá-la a contar tudo.
A ideia era agradável e tentadora, mas ele a dispensou. Em vez disso, continuou sorrindo.
— Eu posso arranjar um quarto para você nos aposentos da kraljica em Passe a’Fiume. Também posso garantir que as trancas funcionem perfeitamente bem. Em troca, você me conta a sua história. Estamos combinados?
— Só se você me contar a sua também. Garanto que a sua seria bem mais interessante.
— A história do outro é sempre mais interessante — disse Sergei. — Honestamente, a minha é um tanto ou quanto enfadonha, mas... estamos combinados, então. Então, comecemos. Diga-me, por que uma jovem está indo até Nessântico a pé na chuva?
A jovem afastou o rosto. Ele quase conseguiu ouvi-la pensar. Imaginou o que ela diria, mas sabia que o que quer que dissesse não seria a verdade.
— É por causa do meu vavatarh — falou Remy. — Nós moramos perto de Ville Colhelm, e ele decidiu que eu tinha que casar com um rapaz de uma fazenda próxima da nossa...
— Você está mentindo — interrompeu Sergei, mantendo sua voz calma, tranquila. — Tenho certeza de que você contaria uma mentira convincente e divertida, mas, ainda assim, uma mentira.
A mão da jovem voltou a deslizar para debaixo de sua tashta — calmamente, um movimento que teria passado despercebido pela maioria dos olhos, pois, ao mesmo tempo, ela mudou de posição no assento e abaixou as duas pernas como se estivesse se preparando para levantar.
— Desculpe — falou a moça. — Você está certo. Eu não sou de Ville Colhelm, nem mesmo dos Domínios. Sou de Sesemora, de uma cidade no Lungosei, mas a maior parte da minha família é de Il Trebbio, e portanto eles estavam sob suspeita constante. Os soldados do pjathi vieram um dia, e...
Sergei balançou a cabeça e ela parou.
— Por que você não me diz o seu verdadeiro nome? Rhianna, talvez? Ou isso também é uma mentira? — Ele notou o olhar da jovem disparar para a porta da carruagem. — Não faça isso. Não há motivo para você se alarmar. Como você mesma disse, você me conhece. Eu fiz coisas terríveis na vida, e não há nada que você possa me contar, eu imagino, que vá me chocar. O que quer que você tenha feito, o que quer que tenha acontecido com você, eu não pretendo prendê-la. Especialmente porque você está empunhando uma faca no momento, e minha única arma é esta bengala.
Sergei ergueu a bengala com um movimento propositalmente lento, fazendo uma careta como se lhe doesse levantar o ombro — ele também se escusou de mencionar a lâmina que poderia sacar da bainha da bengala caso precisasse, ou o fato de que Varina tinha encantado o objeto: com o gatilho do feitiço que ela o tinha ensinado, o embaixador poderia matar um agressor instantaneamente, segundo Varina. Ele nunca tinha usado o gatilho, uma vez que Varina dissera que o custo do feitiço era incrivelmente alto e que ela não podia (ou não queria) repeti-lo. “Use apenas em uma emergência”, dissera Varina. “Apenas quando você não tiver outra opção...”
— A porta está destrancada, eu vou me sentar aqui, longe dela — disse Sergei, soltando um gemido e se arrastando no assento até o lado oposto à porta. — Você pode alcançá-la bem antes de eu tentar detê-la. Pronto, agora você pode fugir para esse tempo horrível quando quiser. Mas se escolher ficar, eu gostaria de ouvir a sua história. A verdadeira.
Ela o encarou, e ele devolveu o olhar placidamente. Sergei notou que ela começou a relaxar lentamente, embora sua mão nunca tivesse se afastado da arma escondida.
— Eu poderia matá-lo, Sergei, facilmente — ela disse.
— Não tenho nenhuma dúvida disso. E se acontecer, bem, eu vivi uma vida longa e acredito que você seja habilidosa o suficiente para fazer com que meu fim seja rápido e simples.
— Eu não estou brincando.
— Nem eu — ele respondeu. — Então, o seu nome ao menos é Rhianna?
O silêncio se arrastou tanto que Sergei pensou que ela não fosse responder. Apenas o rangido da carruagem e o balanço dos sulcos na Avi podiam ser ouvidos. A jovem se aproximou da porta, e ele pensou que ela fugiria para a chuva novamente e sumiria para sempre. Então a jovem exalou todo o ar de seu corpo em um grande suspiro. Desviou o rosto e ergueu a cortina da porta para olhar para a chuva.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu — falou ela.
Nico Morel
O fogo rastejava pelas paredes, lambendo os rostos pintados dos moitidis e dos archigi mortos há muito tempo. A fumaça escondeu o cume do domo, subindo em direção às aberturas da grande lanterna no topo. O cântico dos ténis-guerreiros e o som estridente dos feitiços eram o pano de fundo para os gritos dos feridos e as chamadas dos morellis enquanto Nico corria cambaleante em direção aos portões principais, com Liana o acompanhando com dificuldade.
— Absoluto! — berrou Ancel, e ele viu a figura magra do homem através da bruma. — Os gardai estão avançando contra o templo!
— Diga aos ténis-guerreiros para reagirem — gritou Nico. — Eles vão ceder. Vão fugir.
Ele disse com uma confiança que já não sentia e se desculpou com Cénzi por sua dúvida. Perdão, Cénzi. Eu acredito. Eu acredito...
A ferocidade do ataque inicial o surpreendeu. Nada que ele tivesse visto nos sonhos concedidos por Cénzi o tinha preparado para a realidade dessa batalha. Os ténis-guerreiros não conseguiram reverter o ataque inicial — aconteceu tudo rápido demais, e eles se enganaram ao pensar que as bolas de fogo tinham sido criadas pelo Ilmodo, quando eram puramente físicas: projéteis de areia negra que explodiram ao contato. Os disparos arrancaram as portas que eles haviam barricado com tanto cuidado: as vigas quebradas e pedras dispararam projéteis terríveis dentro do templo principal, jogando bancos para longe e provocando uma chuva de poeira e destroços. Pelo menos dois punhados de morellis morreram nesse primeiro ataque, e muitos mais ficaram feridos. Os gritos dos feridos ainda ecoavam em sua cabeça. Nico tinha se dirigido até eles, tentando consolá-los como pôde e rezando para Cénzi agir através de suas mãos e curá-los — e, para alguns, Ele respondeu, embora isso tivesse deixado Nico tão cansado como se ele mesmo tivesse usado o Ilmodo contra os princípios da Divolonté, que proibia o uso do Dom de Cénzi para a cura.
Ancel tinha assumido o comando da defesa do Velho Templo enquanto Nico e Liana cuidavam dos feridos e rezavam pelos mortos. Os ténis-guerreiros que tinham respondido ao chamado de Nico agora retaliavam e disparavam feitiços de guerra contra os gardai, que avançavam. Seus cânticos baixos preencheram a nave, e eles gesticularam furiosamente ao lançarem rajadas atrás de rajadas lá fora, na tempestade. Nico podia ouvir os berros e o choro dos hereges lá fora, podia ver os incêndios que começavam a consumir os prédios em volta da praça.
A destruição era terrível de ver. O que fez Nico sentir vontade de chorar.
— Era isso que o Senhor queria de mim, Cénzi — rezou ele. — Deixe-me continuar a fazer Sua vontade.
Nico abraçou Liana e falou.
— Eu tenho que ir. E tenho que ajudar. Cuide dos feridos. E tome cuidado.
— Nico...
Ele notou o medo no rosto sujo de fuligem de Liana e lhe deu um abraço e um beijo rápidos. Ela não o soltou, Nico se permitiu afundar no abraço de Liana apenas por um momento, tentando gravá-lo em sua mente e mantê-lo para sempre. Ficou curioso com esse impulso. Depois se afastou e a beijou novamente.
— Fique segura no amor de Cénzi e no meu — falou Nico.
— Eu te amo, Nico — respondeu Liana. — Tenha cuidado.
Ele sorriu.
— Eu tenho a proteção de Cénzi. Eles não podem me ferir...
Dito isso, Nico a deixou.
Ele avançou pelos destroços, em direção ao local em que Ancel estava. Ele espiou das ruínas das portas principais para a praça.
— Onde eles estão? — perguntou Nico, então ele os viu.
Uma fileira de gardai saiu correndo da chuva torrencial, com suas espadas erguidas e suas bocas abertas, gritando todos juntos, de maneira que ele não conseguia distinguir o que eles diziam, se é que diziam alguma coisa. Nico ergueu os próprios braços à medida que o cântico dos ténis-guerreiros se intensificava. Ele pôde sentir o frio do Ilmodo envolvê-lo, abraçá-lo por completo, Nico reuniu esse poder falando a língua e os gestos de Cénzi e os lançou para longe. Ele não conhecia o feitiço que tinha criado; a magia tinha vindo a ele de maneira espontânea — um dom tão natural quanto o ato de respirar.
Uma onda pulsou para fora de Nico, se tornando visível nas portas quebradas e nos pilares do templo que saíram voando e desviando a chuva para trás como se o vento da tempestade a tivesse soprado e acertando com força os gardai, fazendo com que caíssem e rolassem para trás, golpeados e dilacerados por seu poder. Quando a onda se extinguiu, eles tinham sumido, e a praça diante das portas tinha sido varrida até a chuva voltar.
— Absoluto... — sussurrou Ancel. — Eu nunca vi algo parecido...
Os ténis-guerreiros também tinham interrompido seu cântico, olhando com espanto no rosto para Nico.
Mas agora havia sons de batalha atrás dele, dentro do próprio templo; Ancel e Nico se viraram ao mesmo tempo e viram gardai entrando em debandada pelos corredores das capelas laterais e pelos fundos do coro, dando lugar a um combate corpo a corpo em meio aos bancos, com feitiços esporádicos sendo lançados pelos morellis que também eram ténis. Nico sentiu outros feitiços sendo lançados, rápidos demais para serem feitos por ténis — então havia numetodos dentro do templo também. Os feitiços dos ténis-guerreiros, no entanto — indicados para destruição em massa em batalhas em campo aberto —, eram inúteis ali, em um espaço confinado; eles matariam tanto morellis como gardai e numetodos. Portanto, os ténis-guerreiros, treinados também como espadachins, sacaram suas armas.
A batalha violenta estava por toda parte e, sob o grande domo, em si, Nico viu Liana, com o rosto pálido, entoando e gesticulando para preparar um feitiço. Varina também estava lá, ela tinha entrado no templo pela mesma porta por onde saíra há pouco, ela também estava lançando feitiços.
Cénzi, eu preciso do Senhor. Por favor, me ajude... A prece cresceu em Nico, e ele sentiu o frio aumentar em volta de si. Ele começou a reunir seu poder, mas um numetodo — seria Talbot, o assistente da kraljica — tinha visto Nico e, com um gesto e uma palavra, o homem lançou fogo em sua direção. Nico teve que usar o Ilmodo para aparar o feitiço.
— Lá está Morel! — Nico ouviu Talbot gritar ao apontar pra ele.
Nico podia sentir o Ilmodo se contorcer e o envolver quando os numetodos voltaram sua atenção para ele. Eles não lhe deram descanso. Por mais rápido que reunisse o Ilmodo, Nico tinha que usá-lo para se defender dos ataques, e agora estava ficando cansado, o esgotamento por usar o Ilmodo de maneira tão forte e com tanta frequência deixou sua mente, braços e pernas pesados. Em um momento, ele tinha conseguido lançar Varina, Talbot e outro herege para trás, sobre as paredes do Velho Templo, mas havia muitos deles, e os gardai também fechavam o cerco a sua volta...
Cénzi, eu preciso do Senhor...
Ele ignorou seu cansaço. Fechou os olhos, reunindo o poder e se revestindo com ele de modo que os feitiços dos inimigos refletiram em Nico como o sol em um espelho. Ele mal podia ver o templo através da bruma agitada em torno de si. Eu vou derrubar todos eles, Cénzi. Vou destruí-los como o Senhor quer que eu faça...
Os ténis-guerreiros começaram a preparar feitiços menores. Nico viu que eles estavam preparados para lançá-los nos numetodos e gardai que entravam em debandada no Velho Templo. Os numetodos empunhavam dispositivos como aquele que Varina portara, apontando para os ténis-guerreiros. Ouviram-se estampidos altos, nuvens de fumaça foram levantadas, e os ténis-guerreiros berraram, interrompendo seus cânticos e caindo no chão. Seu sangue ensopava seus robes verdes. Essa era uma magia que Nico nunca tinha visto antes, uma magia terrível.
Cénzi, por favor...
Ele viu Liana preparando seu próprio feitiço, viu Talbot cambaleando até ela com a cabeça ensanguentada. O homem sacou um estranho mecanismo, bem parecido com o que Varina tinha, e — ainda de joelhos — apontou para Liana. Brilharam faíscas, ouviu-se um estrondo alto, e uma fumaça saiu da ponta comprida da arma.
E Liana... Liana cambaleou para trás, agarrando-se ao próprio corpo, e uma mancha escura surgiu em sua tashta, crescendo entre os seios.
— Não! — rugiu Nico, mas sua voz se perdeu em meio ao caos frenético a sua volta. — Não!
Ele lançou o Ilmodo desenfreadamente, sua energia foi liberada sem controle, derrubando gardai, morellis e numetodos da mesma maneira. Um vento correu pelo Velho Templo, apagando incêndios e derrubando mais paredes. Nenhum grito e gemido era tão alto como aquele que saiu de sua própria garganta.
— Não!
Nico correu na direção de Liana, que estava caída no chão, mas havia gardai por todas as partes e mãos tentando agarrá-lo. Eles avançaram contra Nico, jogando-o no chão enquanto ele lutava, chutava e arranhava. Alguma coisa dura colidiu contra sua cabeça, e a sala girou freneticamente ao redor, e ele não pôde mais ver Liana, seu mundo entrou em trevas...
Brie ca’Ostheim
A carruagem dava solavancos, pulava e balançava. A viagem da Encosta do Cervo ao Palácio de Brezno foi tão incômoda quanto qualquer outra que Brie tivesse feito, e a chuva e as crianças tristes não a melhoraram. Elissa e Kriege estavam com ela; Caelor e Eria vinham na carruagem seguinte com as babás. Uma carruagem à frente levava Paulus e suas camareiras; os veículos seguintes traziam o resto da equipe. Os gardai da Garde Brezno cavalgavam ao lado do comboio, sofrendo com o mau tempo.
— Matarh, já chegamos? — resmungou Elissa.
Ela meteu a cabeça para fora da janela mais próxima, mas a recolheu rapidamente. A água molhou seu rosto e cabelo. Um trovão chiou diante da intrusão.
— Eu quero chegar lá.
— Eu também, querida — respondeu Brie, cansada. — Por que você não descansa, se quiser? Olhe, seu irmão dormiu. Veja se consegue dormir como ele; é isso o que um bom soldado faz; ele dorme sempre que tem uma chance, porque nunca sabe por quanto tempo vai precisar ficar acordado.
Elissa olhou para o adormecido Kriege, e Brie sabia que ela tinha ficado tentada — como Elissa sempre ficava quando pensava que estava competindo com o irmão. Mas a menina fez uma careta de desdém.
— Eu não estou com sono. Só quero chegar em casa. Quando o vatarh vai voltar? Por que não posso ir com ele assim como a mamatarh Allesandra foi com o vavatarh Jan?
— Porque seu vatarh lhe mandaria de volta, e eu estava aqui para garantir que você não se escondesse no comboio de suprimentos como sua mamatarh fez, é por isso. Olhe, eu trouxe um baralho; nós podemos jogar lansquenete; eu dou as cartas, e nós podemos apostar pinos...
Elas jogaram por algum tempo e, apesar dos solavancos da carruagem, Brie notou que as pálpebras de Elissa ficavam pesadas, até, finalmente, as cartas caírem de seus dedos e se espalharem em seu colo. Brie recolheu a cartas, guardou o baralho dentro da caixa e o colocou debaixo do assento. Ela recostou sua cabeça nas almofadas e fechou os olhos.
Ela adormeceu mais rápido do que esperava, mas foi um sono atormentado por sonhos.
Sob a luz do luar, Jan estava de braços cruzados. Ele estava em Nessântico, ou pelo menos ela acreditava, em meio ao delírio do sonho, que a cidade com a arquitetura estranha era Nessântico. Atrás de Jan, havia a fachada de um imenso palácio, com vitrais rachados e quebrados, e paredes escurecidas por fumaça. O sonho mudou, Brie percebeu que havia uma mulher com Jan. Por um instante, ela pensou que fosse Allesandra, mas seu cabelo era escuro, e quando a mulher se virou um pouco, Brie viu o rosto de Rhianna. Os dois estavam próximos, mas não se tocavam, ainda assim, Brie sentiu uma onda quente de ciúmes. Ambos olhavam fixamente para o palácio. Havia uma faca na mão de Rhianna, e ela recuou como se fosse atacar...
...Mas o sonho mudou novamente e Brie viu os próprios filhos, mas havia outra criança entre eles. Brie teve a estranha sensação de que todas as crianças eram irmãs. A mais nova era uma moça talvez quatro ou cinco anos mais velha que Elissa, mas Brie não pôde ver o rosto dela, por mais que tentasse. Jan entrou no quarto e se aproximou da mulher, abraçando e beijando primeiro ela, depois Elissa.
— Vatarh! — disse a mulher...
...Agora Brie estava segurando um bebê, embalando e olhando para seu rosto.
— Querida garotinha — sussurrou ela. — Pobrezinha...
O bebê enroscou os dedinhos em volta dos dedos de Brie, e ela sorriu, mas havia sombras no quarto, fumaça negra e fogo. Brie apertou a menina contra o corpo e tentou fugir. Ela pensou ter visto Jan e começou a seguir na direção dele, mas o fogo o envolveu e Brie ouviu Jan gritar...
— Matarh?
Brie acordou e percebeu onde estava, a carruagem tremia e dava solavancos na estrada. Ela esfregou os olhos, afastando o pânico do pesadelo. Ela notou que seu coração estava disparado, podia ouvi-lo pulsando em suas têmporas. Elissa olhava para ela; Kriege continuava dormindo.
— O que foi, Elissa? — perguntou Brie.
— Por que a senhora não foi com o vatarh?
— Porque ele me pediu pata tomar conta de você, dos seus irmãos e da sua irmã.
Elissa franziu a testa.
— Eu teria ido com ele. Teria ajudado a protegê-lo. Não teria me importado com o que ele disse.
— Sua presença lá, querida, só teria feito seu vatarh se preocupar mais.
— A senhora queria ter ido com ele?
Brie se lembrou da discussão que os dois tinham tido. O eco do pesadelo a assombrou.
— Quis — ela respondeu sinceramente. — Pelo menos parte de mim ainda deseja que eu tivesse ido, sim.
— Então por que a senhora não foi?
Eu teria ido com ele. Não teria me importado com o que ele disse. Brie teve a incômoda sensação de que Elissa estava certa. Ela cometeu um grave erro; devia ter insistido. Jan, no mínimo, precisaria dela com Allesandra — os dois eram bem parecidos, e Brie quase podia ver as faíscas que sairiam do encontro. Ela devia estar lá.
Sua presença podia ser essencial. Essa premonição ardeu tão intensamente quanto se ela tivesse colocado a mão no fogo.
Elissa olhava fixamente para ela.
— Condutor, pare!
Brie bateu no teto da carruagem, acordando Kriege, que olhou em volta, atordoado. O condutor puxou as rédeas; Brie ouviu gritos preocupados e intrigados lá fora, Paulus veio correndo até sua carruagem.
— Hïrzgin, algum problema?
— Não, e sim — respondeu Brie. — Eu preciso que coloque Elissa e Kriege em uma das outras carruagens. Leve os baús das crianças com elas; deixe o meu nesta carruagem. Eu vou me juntar novamente ao hïrzg e ao exército. As crianças e o resto da equipe devem voltar para Brezno.
Paulus balançava a cabeça na metade do diálogo e as crianças protestavam.
— Chega! — disse Brie para todos.
Ela beijou e abraçou Elissa e Kriege e os empurrou na direção de Paulus.
— Vão, agora! — disse Brie para os filhos. — Eu voltarei quando puder. Mas vão agora!
Elissa estava sorrindo.
— Hïrzgin, a senhora tem certeza...? — começou Paulus, mas Brie não lhe deu chance de falar.
— Eu já dei as minhas ordens. Agora, pegue meus filhos e vá, ou nomeio um novo assistente aqui e agora.
Paulus engoliu em seco e abaixou a cabeça.
— Sim, hïrzgin.
Ele pegou as mãos de Elissa e Kriege e começou a berrar ordens. Brie reclinou sua cabeça no assento e pensou no que diria para Jan quando chegasse.
Varina ca’Pallo
Ela olhou fixamente para ele, e as palavras lhe fugiam.
— Eu lamento, Nico. Lamento muito...
Ele só devolveu o olhar. Suas mãos estavam acorrentadas e sua cabeça presa na gaiola de metal do silenciador. Seu cabelo estava empapado de sangue, o rosto e os braços um retalho de cortes e arranhões. No frio da cela da Bastida, Nico estava encolhido contra a parede como uma boneca quebrada.
Eu o alertei, Nico. Eu tentei lhe dizer que isso terminaria assim... Ela quis dizer, mas as palavras não saíram. Elas só feririam o homem ainda mais do que já estava terrivelmente ferido. Varina se ajoelhou diante dele, sobre a palha úmida e suja da Bastida, sem se importar em sujar a tashta ou que as juntas doessem com o esforço. Ela estendeu a mão para tocar em seu rosto, como fizera há anos, quando ele era apenas uma criança. Nico virou o rosto e fechou os olhos, Varina segurou o gesto perto dele.
— Não tenho nada a dizer que possa lhe confortar — ela disse. — Eu não acredito na vida após a morte ou na piedade do seu Cénzi, mas eu também perdi pessoas a quem amava. Perdi Karl e, portanto, eu posso ao menos compreender uma parte da dor que você está sentindo.
Os olhos de Nico se abriram novamente, embora ele não estivesse olhando para ela, mas para o chão imundo da cela. O lugar fedia a fezes e urina antigas, a imundice estava contida nas próprias pedras da cela. Varina tinha falado apenas para quebrar o terrível silêncio, porque, se não falasse, não achava que aguentaria ficar ali. Sua respiração formava uma nuvem branca a sua frente devido ao frio da masmorra.
— O bebê — sussurrou Liana ao morrer nos braços de Varina, com o sangue jorrando do ferimento mortal em seu peito. — Leve o bebê, agora. Ela deve ser batizada...
Liana fez uma pausa, seus olhos se fecharam, e Varina pensou que ela tivesse morrido, mas a jovem tomou fôlego, gorgolejou e abriu os olhos novamente.
— ...Serafina. — As mãos ensanguentadas de Liana agarraram as mangas da tashta de Varina. Leve-a. Você precisa...
Varina o fez. Esta tinha sido a coisa mais horrível que ela tinha feito na vida, abrir uma mulher enquanto ela morria, retirando de seu corpo uma criança que berrava e se agitava com vida.
— Você tem uma filha, Nico. Liana... Não havia nada que pudéssemos ter feito por ela, mas nós conseguimos tirar a criança de Liana antes dela morrer. Sua filha, Nico. Liana disse que queria que ela se chamasse Serafina. A criança está na minha casa, ela está a salvo. É saudável e linda.
As lágrimas desciam pelas bochechas de Nico, deixando trilhas claras sobre sua pele imunda, e ele fez um terrível som estrangulado ao chorar.
— Eu perdi um amor, mas levou um tempo para acontecer, e eu tinha a memória do longo período que passei com Karl. Tive tempo para me preparar, para esperar o fim — disse Varina. — Mesmo assim, só posso imaginar o que você deve estar sentindo.
Nico encarou Varina, sufocando as lágrimas e a tristeza, endurecendo o olhar.
— E filhos... eu nunca tive, embora às vezes pensasse em você como um filho. Eu teria adotado você, Nico, depois daquela guerra terrível contra os tehuantinos que nos atacaram e mataram sua matarh, mas você desapareceu, e quando eu finalmente ouvi seu nome novamente, você já era um homem crescido. Eu não sei o que você passou ou sofreu... Mal posso imaginar o que aconteceu para você ter se tornado o que se tornou.
Nico tentou falar, mas suas palavras saíram distorcidas e ininteligíveis por causa do silenciador. O som. O som partiu o coração de Varina.
— Eu cuidei para que o corpo de Liana fosse tratado com respeito. A kraljica...
Ela fez uma pausa. Suas pernas doíam, e ela se levantou, com medo de que, se não o fizesse, tivesse que chamar o garda para ajudá-la a se levantar.
— A kraljica mandou que muitos corpos fossem pendurados em gaiolas e exibidos. — Ela viu Nico se contrair visivelmente ao ouvir isso. — Eu sei, mas isso é o que sempre é feito, e não posso culpá-la completamente; a raiva do povo contra os morellis é forte. Mas eu quero que você saiba que eu não permiti que isso acontecesse com Liana. Mandei seu corpo ser limpo e vestido e paguei para os o’ténis do Templo do Archigos realizarem a cerimônia adequada, embora eles não quisessem fazê-lo. Eu estava lá quando os o’ténis cremaram Liana no fogo do Ilmodo. Farei o mesmo por você quando chegar a hora, se puder. Mas não sei...
Varina se deteve mais uma vez. Ela ouviu o garda do lado de fora da porta da cela: o rangido da armadura de couro, o tilintar das chaves em seu cinto, o som da sua respiração. Ela sabia que o homem estava escutando e se perguntou se ele achava graça da sua compaixão por Nico.
— No seu caso... Eu não sei se terei permissão de ter seu corpo. Você é famoso demais, Nico. Eles precisam torná-lo um exemplo, para que outras pessoas não façam o que você fez. Mas se houver algo que eu possa fazer, eu farei. Uma coisa eu lhe digo, Nico: vou garantir que Serafina esteja segura também. Enquanto eu viver, ela terá uma casa, e tomarei providências para ela ficar bem quando eu morrer. Isso eu lhe prometo. Ela estará em segurança e será amada.
Varina abaixou os olhos para ele, encolhido aos seus pés, com a cabeça ainda virada.
— Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Eu odeio a morte e os ferimentos que foram infligidos em seu nome. Eu desprezo o que você representa. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei. Não consigo. Eu quero que você entenda isso, que saiba antes... antes...
Ela se interrompeu. Nico tinha virado a cabeça e olhado para Varina uma vez mais antes de afastar o rosto novamente. Ela não sabia ao certo o que tinha visto ali, sua expressão estava muito distorcida pelo silenciador em volta da cabeça e pela escuridão da cela. Este não era o Nico que Varina vira antes, não era o Absoluto seguro de si e confiante no apoio de seu deus. Não, essa era uma alma despedaçada, ferida tanto por dentro quanto por fora.
Varina se perguntou se sua ferida interna não seria tão mortal quanto aquela que o mataria eventualmente. Nico não teria um julgamento — ele já tinha sido julgado e condenado. A fé concénziana insistira em arrancar sua língua e mãos primeiro, como castigo por sua desobediência ao archigos; o estado exigiria o que sobrou pela morte e destruição que Nico causara. Era quase certo que tudo seria feito publicamente, para que os cidadãos assistissem e comemorassem seu tormento e morte. Seu corpo penderia em uma gaiola na Pontica Kralji até que não sobrasse nada, a não ser os ossos soltos.
Nico já estava morto, embora ainda devesse passar por algum sofrimento.
Varina estava chorando. O soluço pulsou uma vez em sua garganta, um som que as paredes da Bastida pareciam absorver com vontade, como se isso alimentasse o frio da prisão. Ela limpou o rosto, quase com raiva.
— Eu queria lhe contar sobre Liana e Serafina. Esperava que isso ao menos lhe desse um pouco de paz.
Varina queria que Nico erguesse a cabeça novamente, que olhasse para ela e talvez assentisse, para dar pelo menos um pequeno sinal de que tinha ouvido e compreendido.
Ele não fez nada disso. As correntes de ferro tilintaram pesadamente quando Nico recolheu as mãos ao peito.
Ela chamou o garda pela pequena janela barrada da porta da cela.
— Tire-me daqui — disse Varina.
Niente
A aba da tenda de Niente estava jogada para trás, e Atl entrou de mansinho. Ele trazia uma tigela premonitória de latão — uma nova, de metal ainda reluzente —, pingando água na grama pisoteada.
— O senhor mentiu, taat — ele disse tanto com surpresa quanto raiva em sua voz. — Axat me permitiu ver o caminho no qual o senhor nos colocou. Eu vi uma, duas, três, várias vezes, e não há vitória para nós no fim. Nenhuma.
— Então você viu errado — disse Niente, embora sentisse um arrepio de medo. — Não foi isso o que Axat me mostrou.
— Então pegue sua tigela agora — insistiu Atl. — Pegue e vamos olhar juntos. Prove para mim que o senhor está conduzindo o tecuhtli para onde ele deseja ir. Prove e eu me calarei.
Niente podia ouvir o desespero na voz do filho e se levantou dos lençóis, usando seu cajado mágico para se apoiar. Ele caminhou até Atl, que estava parado na entrada da tenda como uma estátua de bronze. Lá fora, ele podia ouvir o exército se agitando no amanhecer, desfazendo as tendas para se preparar para o dia de marcha. A chuva do dia anterior tinha cessado; o ar estava límpido e agradável.
Atl baixou o olhar quando Niente se aproximou. Ele pegou o braço do filho com a mão livre, trazendo Atl para perto de si. Ele pôde senti-lo resistir e, em seguida, ceder ao abraço.
— Atl — ele disse em um tom baixo, após finalmente tê-lo soltado e recuado um passo. — Eu peço que confie em mim: como seu taat, como seu nahual. Acredite que eu não conduziria os tehuantinos à morte. Acredite que eu quero o que você quer: quero que nosso povo prospere e esteja seguro. Eu te amo; eu amo seus irmãos e irmã, sua mãe. Eu amo Tlaxcala e as terras do nosso lar. Eu não quero ver o sofrimento daqueles que amo ou a terra que conheço tão bem destruída. Por que eu quereria tal coisa? Por que eu faria isso com você e com os tehuantinos?
Atl balançou a cabeça.
— Eu não sei, taat. Também não faz sentido para mim. — Ele ergueu a tigela em sua mão, sua voz estava cheia de angústia e confusão. — Mas sei o que eu vi. E tão claro quanto se estivesse acontecendo diante de mim. Eu tive que contar ao tecuhtli o que vi. Eu tive que contar porque o senhor não dava ouvidos a mim, e Axat me mostrava aquilo que o senhor insistia que não era verdade.
— Eu sei — disse Niente, assentindo. — Você só fez o que eu teria feito no seu lugar. Não estou zangado com você.
— Não me importa que o senhor esteja zangado ou não, taat. O senhor não para de dizer que estou vendo errado, mas eu sei que tenho a visão premonitória. Eu sei.
— Você tem. Embora isso me deixe mais triste do que feliz. Esse é um dom terrível de se ter, Atl. Você não acredita nisso agora, mas com o tempo, vai acreditar.
— Sim, sim. — Atl sacudiu a tigela entre os dois. — Olhe o que a visão premonitória fez comigo. O senhor não para de me dizer, mas foram muitos anos até que ela o desfigurasse tanto. Eu me lembro, taat. Eu me lembro da sua aparência quando era mais novo. Eu sei como é essa dor; já senti e posso suportá-la. Se o senhor insiste que não estou vendo corretamente, então me mostre!
Suas últimas palavras soaram quase como um grito entredentes. Ele fechou os olhos, os abriu novamente, e sua voz agora soou como um apelo delicado.
— Maldição, taat, me mostre. Por favor...
Niente tinha visto este momento na tigela premonitória. Tinha visto a fúria do filho, sua descrença. Tinha ouvido as acusações feitas contra ele, e Atl se precipitando em contar tudo para o tecuhtli Citlali — e tinha visto para onde esse caminho levava. Mas o outro caminho, a outra escolha que eles poderiam fazer, era menos nítido, e era obscurecido por sangue e pela bruma da visão premonitória, e Niente só podia torcer que, em algum ponto da névoa, estivesse o Longo Caminho que ele queria.
Não há certeza no futuro. Só há possibilidades. Foi o que o velho Mahri tinha dito para Niente quando ele começou a usar o dom de Axat, antes de o tecuhtli Necalli mandar Mahri para Nessântico. Na época, Niente era bem parecido com Atl, desdenhando dos alertas de Mahri, sem acreditar muito no velho. Ele era jovem, era invencível, sabia mais do que aqueles que tinham vindo antes dele, muito tímidos e frágeis.
Afinal, o tecuhtli Necalli tinha elevado Niente a nahual logo depois de despachar Mahri — mas só depois de forçá-lo a confrontar o nahualli que detinha o título na ocasião: Ohtli, que Niente matou.
O tecuhtli Citlali, que por sua vez tinha matado o tecuhtli Zolin em desafio, provavelmente faria a mesma coisa com o próximo nahual: forçaria um desafio contra Niente. Ele também tinha visto isso em suas visões e receava saber quem era a pessoa envolta em brumas diante de seu corpo arruinado. Receava ver aquele rosto, afastando os olhos da tigela premonitória antes que as brumas se dissipassem.
— Pegue sua tigela, taat — repetiu Atl — ou use a minha, mas vamos fazer isso juntos. Mostre para mim aquilo que o senhor diz que não consigo ver. Prove para mim.
— Não. — Era a única resposta que Niente podia dar.
— Não? Pelas sete montanhas, taat, essa é a única resposta que o senhor pode me dar? “Não”; só essa única palavra?
— Eu lhe dei a minha resposta. Contente-se com isso. — Ele deu meia-volta e começou a arrumar suas coisas para o dia de marcha.
— Essa é a resposta do meu taat ou a resposta do nahual? — Atl olhou deliberadamente para o bracelete dourado no antebraço de Niente.
— As duas coisas.
— Não é o bastante. Lamento, taat. Não é. Não faça isso. Eu lhe imploro.
— Está na hora de levantarmos acampamento — Niente respondeu, sem olhar para o filho.
Ele não podia olhar; se olhasse, estaria perdido.
— Vá e se prepare.
— Taat...
Niente segurava sua própria tigela premonitória. Suas mãos tremiam em volta de sua borda entalhada, os animais gravados ali pareciam se mexer por vontade própria. Ele enfiou a tigela na bolsa.
— Vá — repetiu Niente.
Ele pôde sentir o olhar de Atl, pôde sentir sua fúria crescendo.
— Por que o senhor está me obrigando a isso?
— Eu não estou lhe obrigando a nada, Atl. — Niente se virou, finalmente, e quis chorar diante da expressão no rosto do filho. — Você deve fazer suas próprias escolhas. Tudo o que estou pedindo é que acredite em mim como acreditou um dia.
— Eu quero acreditar, taat. Quero mais do que tudo. E tudo o que estou pedindo é que me prove que eu devo acreditar. Eu quero aprender com o senhor. Quero mais do que tudo. Ensine-me.
— Eu ensinei, e ensinei muito bem, e sendo assim, você sabe que deve me obedecer.
A expressão de Atl se alterou. Tornou-se severa e carrancuda, como se Niente estivesse olhando para um estranho.
— Há outras autoridades a quem eu devo obediência, taat. Eu vou pedir uma última vez, pegue a sua tigela. Mostre para mim.
Niente apenas balançou a cabeça. A expressão de Atl ficou rígida como pedra. Suas mãos apertaram sua própria tigela.
— Então o senhor não me deixa nenhuma escolha, taat. Lamento, mas não posso deixar que o senhor nos conduza à derrota. Não posso deixar que as mortes de milhares de bons guerreiros recaiam sobre o senhor, ou sobre mim por causa do meu silêncio. Não posso...
Dito isso, Atl deu meia-volta.
— Atl, espere! — Niente o chamou, mas o filho já tinha saído pela aba da tenda. — Atl...
Niente caiu no chão. Ele rezou para Axat levá-lo agora, para dar fim a sua permanência ali e carregá-lo para os céus de estrelas. Mas isso era algo que ele não tinha visto na tigela, e Axat permaneceu em silêncio.
INTENÇÕES
Rochelle Botelli
Niente
Varina ca’Pallo
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Jan ca’Ostheim
Allesandra ca’Vörl
Brie ca’Ostheim
Niente
Rochelle Botelli
Ela começou do princípio.
— Rochelle é o nome que minha matarh me deu. Rochelle também é o nome da primeira mulher que minha matarh matou na vida. Eu não soube disso por muito tempo, não tinha me dado conta de que tinha sido batizada em homenagem à primeira voz feminina que a atormentara.
A história começara a ser contada mais fácil do que ela imaginava que seria. Talvez porque Sergei fosse tão bom ouvinte e ouvisse tão atentamente, inclinando-se ansiosamente para ouvir cada palavra; talvez porque Rochelle tivesse descoberto que queria compartilhar isso com alguém, sem saber. Independentemente do motivo, sua longa história saiu com facilidade, com Sergei fazendo perguntas ocasionais. “Sua matarh era a Pedra Branca? A mesma?” ou “Nico Morel? Você quer dizer que o menino era seu irmão?” ou “Você é a filha de Jan...?”
A primeira metade da história tomou o resto do dia. Ela contou a respeito do aprendizado com sua matarh, sobre a loucura e a morte da Pedra Branca, uma morte no desvario da insanidade, e sobre como ela tomou o manto da Pedra Branca para si — embora, dado o posto de Sergei, ela não tivesse mencionado a promessa com a qual sua matarh a tinha comprometido no leito de morte.
Assim que a carruagem parou em Passe a’Fiume, Sergei não insistiu em saber mais. Mandou a equipe dos aposentos da kraljica preparar uma refeição para dois e um quarto separado para Rochelle e pediu que os criados trouxessem uma nova tashta, cosméticos e algumas joias para ela, dizendo que eles tinham perdido a bagagem de Rochelle durante a tempestade. Ela se olhou no espelho depois e quase não se reconheceu. Ela se perguntou que pagamento Sergei exigiria e fez questão de deixar a adaga do vatarh acessível sob a tashta.
O comté da cidade se juntou a eles para o jantar; Sergei apresentou Rochelle como “Remy, minha sobrinha-neta, de Graubundi”, viajando com ele a Nessântico; ela percebeu que estava sendo observada pelo embaixador enquanto seguia a deixa dele e inventava histórias sobre seus parentes. Sergei pareceu achar graça na maior parte de seus esforços e nas respostas educadas do comté e de sua família. A conversa à mesa era principalmente sobre política antiga e sobre a iminente passagem do exército de Jan pela cidade, enquanto os criados serviam os pratos na sala de jantar e várias figuras distintas desfilavam para saudá-los. Após o comté e o último dos signatários da cidade se retirarem, Sergei alegou sentir cansaço e uma vontade de se retirar para seus aposentos.
Isso, Rochelle descobriu, era mentira. Ela ouviu a porta do quarto do embaixador ser aberta pouco tempo depois; Rochelle sacou a adaga de Jan da bainha, pronta para se defender se ele entrasse no quarto, mas ela ouviu sua bengala e seus passos recuarem no corredor; pouco depois, ela ouviu o rangido das portas principais, no andar debaixo. Da janela, Rochelle observou Sergei sair pelas ruas escuras da cidade.
Ela trancou a porta do quarto mesmo assim.
Rochelle não viu quando ele retornou. Ela acordou de manhã, com as trompas da Primeira Chamada e a batida de um dos criados. Rochelle se vestiu e encontrou Sergei já tomando café da manhã. Meia virada da ampulheta depois, os dois estavam de volta à privacidade da carruagem, e o embaixador pediu que ela retomasse a história. Rochelle retomou e começou a contar sobre seus passeios sem rumo, saindo do local da cova de sua matarh, sobre os primeiros contratos experimentais como a nova Pedra Branca, e sobre como ela se sentiu quando ouviu as histórias do ressurgimento da Pedra Branca na Coalizão.
Havia detalhes que Rochelle não tinha contado, certamente. Mesmo assim... Contar sua história era uma catarse. Assim que começou, ela não achava que poderia parar. Não tinha percebido a pressão de conter tudo aquilo. Rochelle tinha se perguntado se um dia ela talvez conseguisse contar para um amante de sua confiança, mas com Sergei... Ele era um estranho e, ainda assim, ela conseguia contar para ele.
Rochelle se perguntou se não era porque — caso decidisse ser necessário — ela achava que ainda poderia manter tudo em segredo, envolvido no silêncio de um corpo morto. Ela mantinha sua mão perto do cabo da adaga de Jan e observava o rosto do Nariz de Prata com atenção.
No momento em que eles se aproximaram das muralhas de Nessântico, Rochelle estava contando sobre seu confronto final com Jan, embora tivesse omitido os detalhes do quão física a situação tinha sido. Sergei parecia compreender, com uma expressão solidária e quase triste enquanto ouvia.
— Pobre Jan... — disse ele, e sua simpatia por seu vatarh a irritou. — Eu fui a Firenzcia pouco tempo depois do assassinato de Fynn, e já havia rumores a respeito desta tal Elissa que o novo hïrzg tinha amado e que havia desaparecido. Eu não acho que Jan jamais tenha deixado de amá-la completamente, ou pelo menos de amar a pessoa que ele pensava que ela era. Eu ouvi rumores de que Elissa talvez fosse a Pedra Branca, então, quando Jan a viu novamente em Nessântico, essa foi a confirmação.
Sergei parou, franzindo a boca fechada como que para conter mais do que poderia ter dito, fazendo as dobras sob seu queixo tremerem com o movimento. Ela se perguntou se o que o embaixador tinha decidido não contar era sobre o fato de que a kraljica Allesandra, a mamatarh de Rochelle, tinha contratado sua matarh para assassinar Fynn. Ela se perguntou se Sergei tinha percebido que ela devia saber disso também.
Se esse fosse o caso, nenhum dos dois o mencionou.
— Então agora você veio a Nessântico — disse o embaixador.
Os olhos cheios de remela de Sergei sustentaram o olhar de Rochelle, tão próximo que ela pôde ver seu reflexo distorcido passar sobre seu nariz.
— A filha da Pedra Branca. A filha de Jan e a neta da kraljica também. A irmã de Nico Morel. Eu tenho que perguntar por que você veio.
— Todo mundo vem a Nessântico eventualmente.
Ele pareceu rir consigo mesmo.
— Em outro momento você talvez pudesse se safar com essa resposta, Rochelle. Mas não agora. Não com a Coalizão sendo a maior rival de Nessântico. Não com os tehuantinos avançando nas suas fronteiras. Não com o pessoal do seu irmão exercendo sua influência violenta aqui. Você está sendo falsa, Rochelle, e isso não lhe cai bem.
Sergei olhou fixamente para ela; a ponta dos dedos de Rochelle roçou o cabo liso e gasto da adaga de Jan. Será que você terá que matá-lo agora? Poderá deixá-lo ir embora sabendo o que sabe?
— Eu não sei por que vim — ela respondeu — e esta é a verdade, Sergei. Não podia ficar onde estava e não sabia mais para onde ir, então comecei a andar. Nessântico parecia estar me chamando.
— Chamando para quê? — insistiu o embaixador. — Vingança? Uma reunião?
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu Rochelle.
Sim, vingança... Ele quase podia ouvir a voz da matarh sussurrando a frase dentro dela.
— Eu sequer sabia ao certo que Nico estava aqui. Juro por Cénzi.
— Ah, uma assassina jurando por Cénzi. Que ironia. Seu irmão talvez goste disso. Se ainda estiver vivo.
A frase fez uma brisa de inverno subir por suas costas, fazendo os cabelos recém-cortados da nuca ficarem eriçados.
— O quê?
Rochelle não soube dizer se Sergei deu de ombros ou se se ajeitou no banco da carruagem.
— Você deixou o acampamento antes da notícia chegar — explicou o embaixador. — Seu irmão e seus seguidores atacaram o Velho Templo em Nessântico. Tomaram o templo e se barricaram lá dentro. A esta altura, a kraljica Allesandra já deve ter ordenado um ataque contra eles, que não devem ter conseguido suportar lá dentro. Eu suspeito que Nico Morel esteja morto ou na Bastida neste momento. Eu lamento; eu percebo que isso a preocupa, mas sinto muito, receio que eu não tenho compaixão por ele.
Rochelle estava atônita. Ela se recostou no assento à frente do embaixador. Nico, morto? Não, Rochelle não via ou falava com o irmão há anos, mas ainda podia ver o jovem que partira para se tornar um acólito da fé concénziana, sendo agarrado por sua matarh enquanto levantava uma bolsa na mão com suas poucas posses, enquanto o condutor da carruagem o chamava impacientemente. Rochelle tinha visto Nico uma ou duas vezes desde então; sua matarh a levara para ver sua posse como téni; quando sua matarh morreu, ele não veio vê-la, ainda que ela tivesse esperado pelo irmão. Ela se perguntou se Nico sequer a reconheceria; se perguntou se ele a condenaria pelo que fez e pelo que se tornou.
— Eu não vim por causa dele — disse Rochelle. — Eu não sabia...
— Então por que você está aqui? Você ainda não me respondeu.
Lá fora, ela viu casas e outras carruagens na estrada com eles, bem como pessoas a cavalo ou caminhando em direção à ou vindo da cidade — ao se debruçar para fora, Rochelle viu os portões da cidade logo adiante.
— Pare a carruagem — ela disse. — Eu gostaria de saltar aqui.
Sergei encarou Rochelle por um instante, depois bateu no teto da carruagem duas vezes; o condutor puxou as rédeas, berrou para os cavalos e levou os animais para o acostamento da estrada.
— Você pretende me matar agora? — perguntou Sergei. — Está pensando que provavelmente conseguirá se safar; é fácil se perder na multidão daqui antes que o condutor dê o alarme.
Ele sabe no que você está pensando... E isso, Rochelle percebeu, significava que Sergei provavelmente tinha previsto o golpe e tinha um plano para contra-atacar. Sua mão segurava o punho da bengala. Ainda assim, ele era velho e lento demais para detê-la.
— Não faça isso. — Sua voz soou quase como se ele estivesse se divertindo. — Eu não sou uma ameaça para você, Rochelle. Não agora, de qualquer forma; a não ser que você se torne uma ameaça para Nessântico, então nós nos encontraremos novamente. Somos muito parecidos, eu e você, sabia disso? Eu te conheço melhor do que pensa. A diferença é que você ainda é jovem. Você tem a chance de evitar se transformar em mim ou na sua matarh: uma louca atormentada pelas mortes que causou e apaixonada demais pela morte para parar. Você tem que parar. Pare de ser a Pedra Branca; porque, se você não parar, em breve não vai querer parar. Não poderá parar. Preste atenção: eu sei do que estou falando. Você não quer que isso aconteça, Rochelle. Não quer mesmo.
Sergei segurava sua bengala e ainda a observava. Ela viu o olhar do embaixador se fixar em sua mão direita sob a tashta, sobre a adaga escondida.
Um rápido corte de baixo para cima. O golpe o atingiria antes mesmo que ele pudesse se mexer, e o sangue jorraria do embaixador assim que eu pulasse da carruagem. Ele estaria morto no meu primeiro passo...
A respiração de Rochelle estava acelerada. Mas não haveria tempo de usar a pedra. A voz podia ter sido a da sua matarh. Você estará no olhar dele, registrada ali para sempre no momento de sua morte. Os olhos dele trairão você...
O barulho da cidade ecoava alto dentro da carruagem.
— Embaixador? — perguntou o condutor através da cortina fechada.
Pare de ser a Pedra Branca...
— Bem, Rochelle? — perguntou Sergei. — O que vai ser?
Um instantes depois, ela desceu da carruagem, olhando para o condutor.
— O embaixador disse para continuar.
O homem estalou as rédeas, e a carruagem foi posta em movimento novamente, seguindo o fluxo do trânsito que se dirigia para o portão. Ela observou o veículo até passar pelos arcos de pedras meio tombadas e penetrou na multidão.
Niente
O tecuhtli mandou suspender a marcha ao meio-dia; quase imediatamente depois, um dos guerreiros chegou ofegante até Niente e disse que Citlali exigia sua presença. Com o estômago agitado de preocupação, Niente seguiu o homem até onde a maioria dos guerreiros supremos estava reunida em um grande círculo. Eles se afastaram para deixá-lo passar; o tecuhtli Citlali estava sentado ao centro, com o supremo guerreiro Tototl, como sempre, ao seu lado direito. Atl estava à sua esquerda, carrancudo e sem sorrir, enquanto Niente entrava no espaço aberto.
A ardência no estômago de Niente aumentou.
— Seu filho me contou coisas perturbadoras, nahual Niente — disse Citlali, sem preâmbulos. — Ele diz que seu caminho leva à derrota, não à vitória. Ele diz que vê outro caminho, e que devemos tomá-lo agora, antes que seja tarde demais.
Dividir o exército em três armadas, uma das quais deve retornar a Villembouchure e cruzar o rio. Aproximar-se da cidade pelo oeste, norte e sul, em marcha acelerada, para chegar à cidade antes que o outro exército possa alcançá-la... Ele mesmo tinha tido essa visão. Tinha visto os guerreiros avançarem aos gritos pelas ruas, e as defesas da cidade espalhadas demais para oferecer resistência. A cidade cairia em um único dia sangrento.
— Meu filho está enganado — disse Niente, sem conseguir olhar para o rosto de Atl. — Eu já disse isso ao tecuhtli.
— Você disse — respondeu Citlali. — E eu dei ouvidos a você e a Atl. Eu acho um tanto ou quanto curioso que um filho que sempre amou, respeitou e obedeceu ao taat sinta uma vontade tão forte de ir contra ele: não apenas como taat, mas como nahual.
— Atl acredita no que viu na tigela, e ele realmente tem o dom de Axat — argumentou Niente. — Mas ainda não tem a habilidade de interpretar o que vê nas brumas, nem de enxergar tão longe nelas. O que Atl não se dá conta é que a vitória de um dia pode levar à derrota do dia seguinte.
— Hum... — Os dedos de Citlali coçaram seu queixo como se estivesse acariciando um gato. — Ou um velho pode estar tão fraco pelos anos de uso do dom que não tenha mais força suficiente para ver bem e, em vez disso, esteja vendo apenas aquilo que quer ver.
— Não confunda fraqueza física com outra habilidade, tecuhtli. Eu ainda sou mais forte nos costumes do X’in Ka do que qualquer outro nahualli. — Agora Niente olhou mesmo para Atl, quase se desculpando. — E isso inclui meu próprio filho.
Em suas visões, Axat tinha lhe concedido apenas lampejos passageiros deste momento — ou talvez tivessem sido seus próprios medos que influenciavam a direção da visão premonitória. Fosse como fosse, Axat não tinha permitido que ele visse esse momento completamente. Em suas visões originais, em Tlaxcala, essa cena não estivera nos caminhos do futuro, de forma alguma. Mesmo assim, o novelo emaranhado de possibilidades trouxera Niente até aqui, apesar de suas tentativas de evitá-lo. Era mais um lembrete de que o futuro era maleável e mutável, de que havia outras influências além da de Axat em ação.
Mahri e Tali tinham aprendido isso, ao custo de suas próprias ruínas. Talvez agora fosse a vez do próprio Niente aprender a lição.
Citlali estava sorrindo, uma expressão que Niente não gostava de ver no rosto do homem, uma vez que o que divertia o tecuhtli geralmente era desagradável para os outros. Tototl também o observava, embora o rosto do guerreiro supremo estivesse impassível — o que quer que ele estivesse pensando, estava escondido de Niente.
— Você deve demonstrar sua força para mim, se quiser continuar sendo o nahual. Caso contrário... — Citlali deu de ombros, um gesto abrangente, e as tatuagens de corpo se mexeram como sombras pintadas — ...então talvez Atl talvez devesse ser o novo nahual.
Niente viu Atl arregalar os olhos ao perceber as implicações do que Citlali tinha acabado de dizer.
— Tecuhtli, não foi por isso que eu vim até o senhor. — Ele olhou para seu taat, balançando a cabeça.
— Talvez não, mas é isso o que estou pedindo. Você tem seu cajado mágico, e Niente tem o dele. Vamos ver quem é o mais forte. Vamos ver quem Axat deseja que seja o nahual; agora, enquanto ainda há tempo.
Atl olhou para Niente com desespero novamente.
— Eu não posso. Taat, isso não é...
— Você não tem escolha agora — respondeu Citlali, com uma voz firme, mas não indelicada. — Essa é a lei natural da vida: os fracos caem diante dos mais fortes, como Necalli caiu diante de Zolin, e, quando Zolin caiu, a águia vermelha veio para mim.
Ele tocou o crânio onde o pássaro vermelho estava tatuado. Tototl também olhou para o símbolo.
— Assim como um dia eu também cairei. Ou você está me dizendo que o nahual Niente está certo e que você não viu corretamente?
Atl balançou a cabeça, e Niente viu o filho tramado, preso como um coelho entre a verdade e o amor por Niente.
— Taat — disse ele —, eu lhe peço, pelo nosso amor, pelo bem de todos os guerreiros aqui, que abra mão do bracelete dourado e da tigela.
Niente sentiu como se estivesse parado em uma encruzilhada. Mesmo sem a tigela premonitória, o ar a sua volta pareceu ter sido pela bruma esmeralda de Axat, à espera da sua escolha. Ali: ele podia pousar a tigela, tirar o bracelete e simplesmente se tornar Niente, aquele que uma vez tinha sido um nahualli, deixando que Atl recebesse seu legado. Ou podia recusar... e no fim dessa estrada só havia bruma, confusão e incerteza. Ele não sabia se tinha nem a convicção, nem a força ou a vontade para derrotar Atl, não quando isso significaria a morte quase certa de um ou de outro.
Mesmo assim, a situação chegara a esse ponto. Não havia outros caminhos abertos.
Axat, por que a Senhora me deu este fardo? Xaria, será que um dia você me perdoaria por isso, por matar nosso filho?
— Niente? — chamou Citlali. — Atl espera sua resposta, assim como eu.
Nas brumas, o filho parado a sua frente, impedindo a entrada no caminho...
Estranhamente, não havia lágrimas, embora a tristeza parecesse pesar sobre seus ombros como se ele carregasse a própria Teocalli Axat ali. Sua espinha se curvou com o peso. Ele mal conseguia erguer a cabeça, e sua voz estava tão fraca quanto a voz das estrelas.
Não há garantias de que você possa ganhar agora, mesmo que sacrifique Atl. O caminho se tornou tênue e difícil de encontrar. Tudo poderia ser um desperdício...
— Eu sou o nahual — disse Niente. — Eu vejo o caminho.
Ele olhou para o filho e imaginou se Atl podia ver o desespero desolado em seu rosto.
— Eu lamento, Atl.
Atl afastou o olhar, como se pudesse haver uma resposta escrita nas nuvens sobre eles.
— Então, esta noite, sob o olhar de Axat, vocês dois resolverão isso, para que eu tome minha decisão como tecuhtli — declarou Citlali.
Ele se levantou do ninho de almofadas. Tototl e os outros guerreiros supremos ficaram em posição de sentido.
— Vão e se preparem — ordenou Citlali.
— Taat, eu não quero isso.
— Então você deveria ter considerado o que significaria consultar o tecuhtli Citlali pela segunda vez — disse Niente. — Você não viu isto na tigela premonitória?
Era difícil conter a preocupação e a irritação em sua voz.
O sol estava se pondo no horizonte atrás do exército, disparando feixes de luz dourada sobre o acampamento. O calor era um escárnio. Niente se sentou de pernas cruzadas em frente a sua tenda, com seu cajado mágico em seu colo. Os guerreiros fingiam ignorar os dois; os outros nahualli tinham desaparecido; Niente não tinha visto nenhum deles desde que o sol começara a se pôr. Eles deviam estar esperando para ver como a situação acabaria e aonde aquilo os levaria.
A lua nasceria logo. O Olho de Axat.
— Eu não estou enganado a respeito do que vi, taat — insistiu Atl. — Os sinais e os presságios do caminho em que o senhor nos colocou eram terríveis. Eu vi o estandarte da águia vermelha pisoteado no chão. Eu vi centenas de guerreiros mortos. Eu vi o senhor, taat; vi o senhor morto também.
Ele balançava a cabeça, alargando as narinas, tomado pela emoção.
— Eu vi. Não há erro. O que Axat me mostrou não podia ser a vitória.
— E o seu próprio caminho? — perguntou Niente.
— Esse rumo se tornou obscurecido — admitiu ele — e se torna mais incerto a cada dia que avançamos. Mas da primeira vez, eu vi com clareza: o exército dividido, nós chegando com velocidade à grande cidade antes que o exército vindo do leste pudesse ajudá-los. Eu vi nossos estandartes hasteados nas torres.
Niente assentiu. Sim, ele vê com precisão...
— E depois? — perguntou ele para o filho. — O que você viu depois disso? O que você viu quando aquele exército oriental chegou a Nessântico?
Atl balançou a cabeça.
— As brumas ficaram confusas aí. Eu vi muitas possibilidades, e muitas sombras. Mas tenho certeza de que algumas delas levariam à vitória.
Algumas levam, embora quase todas ainda sejam sinistras e mortais para nós. Ainda assim, no caminho que eu vi... Niente suspirou.
— Atl, meu filho, meu amado... — Ele suspirou profundamente. — Você viu a verdade.
Atl deu um passo para trás, sua mão cortou o ar.
— O senhor admite isso? Então vai abrir mão do bracelete de nahual e da tigela? Podemos ir até o tecuhtli Citlali e dizer que chegamos a um acordo?
— Não — respondeu Niente. — Não ainda. Você vê corretamente, mas não vê longe o suficiente. Não, preste atenção e fique calado: eu direi isto apenas para você e negarei ter dito se você repetir. Você está certo, Atl. O caminho em que eu nos coloquei provavelmente não levará à vitória em Nessântico.
Atl piscou, atônito. Ele ficou boquiaberto, como um peixe ofegando por ar.
— Eu... Eu não entendo. Como... Se isso for verdade, por que... por que o senhor daria este conselho para o tecuhtli?
— Porque Axat me permitiu enxergar mais longe. Atl, se nós tomássemos Nessântico, toda a fúria dos orientais cairia sobre nós. Para eles, não bastará nos destruir lá; os orientais nos perseguirão de volta até nossos lares no oeste e não descansarão até que Tlaxcala seja uma pilha de pedras desmoronadas sobre o lago Ixtapatl, um espelho de Nessântico. Não há paz nesse futuro, só há morte e mais morte, ruína e mais ruína. Uma vitória temporária não é vitória de forma alguma, Atl.
— Então o senhor prefere nos ver derrotados... porque nas brumas o senhor acredita que vê mais guerra? — Atl fungou com desdém. — Isso não faz sentido. Eu conheço as visões de Axat, taat, e sei que, quanto mais longe a pessoa vir, mais caminhos surgem e menos clara fica a direção para onde eles levam. Como o senhor sabe que viu certo? Deve haver outros caminhos. Esse seu futuro terrível não pode ser o único resultado.
— Não. Há piores... E talvez haja melhores, sim, mas o caminho para eles está escuro para mim. O que eu vi é o resultado mais provável.
— Isso é o que diz o senhor. Eu digo que o seu próprio desespero está influenciando suas visões. O senhor mesmo me disse, taat; disse que o humor do visionário pode moldar as visões de Axat. Foi o que aconteceu com o senhor.
— Eu vi o que acontecerá se formos derrotados aqui, Atl. Se formos derrotados, então o oriente e o ocidente se reconciliarão mais à frente. Eu vi navios indo e vindo entre nossas terras com mercadorias. Vi uma geração de paz.
— Paz para sempre? — Atl zombou. — Não existe tal coisa, taat. Nunca houve, nunca haverá. Como o senhor sabe que este seu adorável futuro não leva a uma guerra ainda maior e a ainda mais mortes para os tehuantinos? O senhor não sabe; eu posso ver no seu rosto. O senhor pode sacrificar todos os nossos guerreiros e nahualli por nada. Não percebe isso?
Niente queria negar. Queria se revoltar contra o que Atl disse. Lá em Tlaxcala, a visão tinha sido tão nítida, tão certa, tão definitiva. Mas agora... Ele não tinha visto isso com tanta clareza desde que saíram de sua própria terra, e tudo o que ele via estava envolvido em dúvida e incerteza, com meros lampejos torturantes e debochados do futuro que ele tinha vislumbrado. Agora, Niente descobriu que não tinha certeza.
Você conseguiria fazer isso? Estaria disposto a matar Atl por uma possibilidade?
Uma pequena ponta do sol estava visível sobre as árvores no horizonte. O céu no leste já estava roxo, e a estrela do pôr do sol, que era o portão do além, já estava visível. O olho de Axat espiaria sobre a borda do mundo em breve.
— Vá e se prepare — disse Niente. — Não há muito tempo.
Toda a esperança no rosto de Atl se esvaneceu. Ele cerrou os lábios e assentiu, dando meia-volta e se afastando a passos largos. Niente viu o filho partir. Quando não pôde mais ver Atl, ele meteu a mão na bolsa e retirou a tigela premonitória.
O nahual sabia que os nahualli de baixo escalão estariam observando.
— Tragam-me água limpa — ele berrou para a noite. — Rápido!
Varina ca’Pallo
Ela não sabia ao certo porque tinha feito isso. Só sabia que não poderia conviver consigo mesma se não o fizesse.
— Eu sei que Nico merece morrer pelo que fez — disse Varina para Allesandra.
Ela olhou de relance para Erik ca’Vikej, sentado em uma cadeira atrás da kraljica; Varina não gostou da presença do homem, mas Allesandra não fez menção de pedir que ele saísse. Varina estava sentada, com um prato de doces e uma xícara fumegante intocados, na mesa ao lado.
— Mas peço que a senhora o poupe. Peço em nome da nossa amizade, Allesandra.
A kraljica andava de um lado para o outro, sem olhar para Varina. Ela passou em frente à lareira, ergueu o olhar para o quadro da kraljica Marguerite pendurado ali, e seguiu para a sacada. Varina podia ver a vista do lado de fora. O domo do Velho Templo surgia sobre os prédios entre eles, na Ilha a’Kralji, e ela notou as listras de fuligem dos incêndios que ainda maculavam suas curvas douradas. Levaria meses, talvez um ano ou mais, para que o Velho Templo fosse restaurado, e os danos, reparados. Mas as memórias... Essas nunca poderiam ser apagadas.
— Eu não entendo — disse Allesandra. — Morel condenou a si mesmo. Ele sabia das consequências de seus atos e seguiu em frente com eles. Punhados e mais punhados de pessoas foram mortas, Varina. Nós perdemos a a’téni ca’Paim e o comandante co’Ingres foi gravemente ferido. Você mesma quase foi morta.
— Assim como a kraljica e eu — intrometeu-se ca’Vikej.
Quando Allesandra se virou — lançando o que Varina pensou ser um olhar estranho —, ele deu de ombros e falou.
— É a verdade.
— De qualquer maneira, não há apenas o meu julgamento envolvido, mas o da fé concénziana — continuou Allesandra, mantendo seu olhar sobre ca’Vikej por vários momentos antes de voltar a comtemplar a cena do lado de fora da sacada. — Eles vão querer suas mãos e língua pelo uso do Ilmodo, e pela vida da a’téni ca’Paim. Os cidadãos de Nessântico também insistirão em tirar-lhe a vida pelas vidas do nosso povo que ele matou.
— Muitos desses mesmos cidadãos apoiaram Nico quando ele falava sobre a fé concénziana, quando dizia que a Fé deveria estar menos interessada em acumular riqueza para si e mais voltada a ajudar as pessoas, quando dizia que os ténis deveriam prestar mais atenção ao Toustour e menos aos bolsos.
Allesandra torceu a boca em sorriso de escárnio.
— E esses mesmos cidadãos também vibraram quando ele disse que a Fé não deveria tolerar hereges, ou você se esqueceu disso?
Varina balançou a cabeça.
— Não, não me esqueci. Eu só... Eu só não quero desistir de Nico. Ele foi dotado de um grande poder, e odeio vê-lo desperdiçado.
— Ele não é a criança adorável de que você se lembra, Varina. Ele está usando esse grande poder contra você. E contra mim.
— Eu sei disso. Mas também quero acreditar que ele não é a pessoa que deveria ter se tornado. Dadas as circunstâncias certas, ou erradas, qualquer um de nós poderia ter acabado do jeito que Nico acabou. E as habilidades dele... — Varina balançou a cabeça devagar. — Eu nunca, nunca, vi alguém fazer o que ele faz. É como se Nico simplesmente acessasse o Segundo Mundo com a mente e arrancasse o poder, sem nem ao menos entoar um feitiço. No mínimo, isso merece ser estudado.
Varina pegou a xícara de chá ao lado do pires e a pousou novamente sem tomar um gole. O som da porcelana soou alto no aposento.
— Eu não estou pedindo para libertá-lo. Ele merece ser punido. Estou pedindo que a senhora não o mate.
Ca’Vikej riu com desdém.
— O bastardo talvez prefira uma morte rápida a uma vida na Bastida. Cénzi sabe que eu preferiria.
— Erik, por favor! — disparou Allesandra.
Ca’Vikej estreitou os olhos e fechou a boca. Ele se levantou da cadeira e se curvou zombeteiramente para a kraljica, como um suplicante diante dela.
— Eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o embaixador de Namarro em uma virada da ampulheta. — Ao passar por Varina, ca’Vikej se abaixou e sussurrou — Se quiser, eu posso garantir que ele tenha uma morte rápida. Acredite em mim, seria uma bênção.
Ele sorriu para Varina e deu uma palmada em seu ombro, como se ela fosse uma velha amiga, ao sair.
— Às vezes me pergunto o que eu vi nele — disse Allesandra assim que ca’Vikej saiu. — Alguma vez foi assim entre você e Karl?
— Com Karl, o problema foi fazê-lo me notar, antes de mais nada — respondeu Varina. — Mas, não, eu nunca tive dúvidas sobre ele. Eu sabia que Karl era o homem da minha vida.
— Eu invejo você. Eu nunca me dei esse luxo. Quer dizer, somente uma vez, quando era muito jovem... — A kraljica pareceu se perder em um devaneio por um instante, e Varina a viu estremecer como se tivesse sido tocada por uma brisa gelada. — Os gardai me contaram que os numetodos foram vitais para o sucesso do ataque. Talbot também me informou que vocês usaram umas... engenhocas interessantes; armas que usavam areia negra e podiam ser levadas na mão. Ele disse que elas foram muito eficientes contra os ténis-guerreiros. Vocês chamam as armas de “chispeiras”, creio que foi o que ele disse.
Isso fez Varina se lembrar de Liana: a jovem caindo para trás, após Talbot ter disparado com a chispeira contra ela, o buraco terrível aberto em seu peito e o estertor gorgolejante de seus últimos suspiros, o grito de Nico ao vê-la cair e a loucura e tristeza incontrolável que o tomaram então, a jovem morrendo em seus braços enquanto ela e um curandeiro arrancavam a criança do útero. Eram imagens que Varina queria apagar desesperadamente da memória, como giz de um quadro-negro. Mas elas não podiam ser apagadas, não seriam apagadas. Ela receava que essas imagem a assombrassem pelo resto da vida.
Varina também se lembraria de ter apertado o gatilho da chispeira contra o corpo de Nico diante de si e da falha da arma. Você mesma esteve disposta a matá-lo...
— Talbot me disse que você desenvolveu a arma — dizia Allesandra. — Era nisso que você estava trabalhando e se escondendo desde o falecimento de Karl?
Varina assentiu; e essa era toda a resposta que ela podia dar.
— Eu tenho uma proposta para você — disse Allesandra, olhando em direção ao Velho Templo mais uma vez. — Você quer que Nico permaneça vivo. Eu acho uma tolice, mas estou disposta a lhe conceder esse desejo, pelo menos temporariamente, se você der aos Domínios o segredo dessa chispeira.
A kraljica olhava diretamente para Varina agora, com a pergunta estampada em seu rosto. Varina não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo; ela desviou o rosto na direção do quadro de Marguerite.
— Allesandra... — Varina ia responder, mas não conseguiu continuar.
Como ela explicaria para a kraljica o quanto isso a assustava e fazia sentir-se culpada, como o futuro que ela imaginou — um mundo onde a fórmula da areia negra seria conhecida por todos, onde qualquer um podia construir uma chispeira — seria. Varina sabia que alguém melhoraria a fórmula da areia negra e a tornaria mais poderosa, mais mortal. Não tinha dúvidas de que algum artesão habilidoso seria capaz — como Pierre Gabrielli — de pegar seu projeto e aperfeiçoá-lo, de tornar a chispeira uma arma melhor e mais eficaz.
Varina podia imaginar um mundo assim. Mas não sabia se conseguiria viver nele.
Você não viverá. Por mais quanto tempo você viverá, ainda que sobreviva ao vindouro cerco dos tehuantinos? Cinco anos? Dez? Você não verá o mundo que criou.
Ainda assim, esse seria o mundo dela. O nome de Varina e o nome dos numetodos estariam atrelados a ele.
— Eu sei no que você está pensando — falou Allesandra. — O que Karl diria para você, Varina?
Não se pode deter o conhecimento: ele deseja nascer e forçará sua entrada no mundo, não importa o que se faça. Ela ouviu a voz de Karl em seu ouvido, tão nitidamente quanto se ele estivesse ao seu lado. Varina arfou, uma inspiração que quase desembocou em pranto.
— Eu tenho medo do que desencadearíamos, Allesandra. A senhora acredita em Cénzi, e isso... Isso abalaria as fundações da fé concénziana. Isso diria ao mundo que a magia é menos importante e menos eficaz que o conhecimento. Nós, numetodos, já desafiamos a Fé; nós refutamos a ideia de que a magia deva se restringir apenas aos fiéis, de que ela venha de Cénzi. Isso iria além, Allesandra. Eu tenho medo que... — Ela balançou a cabeça. — Mas Karl diria que assim que o pato é cozido, não pode voltar a ficar cru, então é melhor comê-lo.
— Então diga-nos como fazer as chispeiras, eu colocarei os ferreiros e os artesãos da cidade para trabalhar. Esta talvez seja a nossa única esperança.
Varina ainda balançava a cabeça, assombrada pela visão do mundo que talvez estivesse criando. Ambas ouviram a batida de Talbot na porta da câmara, e o assistente abriu a porta. Ele acenou com a cabeça para Varina antes de se dirigir a Allesandra.
— Kraljica, o embaixador Sergei está no palácio; ele acabou de chegar de Firenzcia.
— Mande-o subir — respondeu Allesandra.
Talbot fez uma mesura e fechou a porta novamente. Varina começou a se levantar, mas Allesandra gesticulou para que ela ficasse.
— Não — disse a kraljica. — Nós duas temos coisas a tratar com ele.
Uma nova batida na porta, e Talbot anunciou Sergei, que entrou capengando no cômodo com sua bengala. Ele parecia mais cansado do que Varina se lembrava, como se não tivesse dormido direito.
— Sergei — falou Allesandra. — Você voltou rápido. Fez boa viagem?
A voz da kraljica estremeceu tão estranhamente que fez Varina virar a cabeça.
— Fiz uma viagem interessante, sob vários aspectos — ele respondeu e, sob seu nariz de metal, ele estava sorrindo enquanto tirou um pergaminho da bolsa diplomática e o entregou para Allesandra. — Seu tratado, kraljica. Assinado. O hïrzg Jan está a caminho com o exército firenzciano.
Varina notou uma mistura de alívio e preocupação em luta no rosto de Allesandra, como se a notícia ao mesmo tempo a alegrasse e entristecesse. Ela ficou curiosa com isso.
— Excelente — Allesandra respondeu, mas faltava entusiasmo em sua voz.
— Eu vi o vajiki ca’Vikej no corredor enquanto eu subia, e ele me perguntou sobre o acordo — disse Sergei, quase casualmente. — Eu disse que me reportava à senhora, e não a ele. O vajiki não pareceu contente com a resposta.
Em seguida, o embaixador se voltou para Varina.
— Varina, eu soube que os numetodos foram fundamentais na retirada de Nico Morel e sua gente do Velho Templo. Fico feliz em ver que não está ferida. É verdade que você está com o filho de Nico?
Varina assentiu. Segurar a criança... Ver seu rosto inocente e confiante, e enxergar o rosto de Nico ali... Observar a ama de leite que ela contratou amamentando...
— Uma filha — respondeu ela. — Seu nome é Serafina.
Sergei meneou a cabeça, encarando Varina de uma maneira estranha.
— Ótimo. Fico feliz em saber que ela está em suas mãos. E lamento também; eu imagino como você deve estar se sentindo. Eu lhe prometo que falarei com o capitão ce’Denis para garantir que, quando a hora chegar, a morte de Nico seja rápida. Se a fé concénziana quiser suas mãos e língua, eles podem tirá-las depois.
Varina estremeceu ao imaginar a cena, embora não houvesse nada além de compaixão nos olhos de Sergei.
— Talvez não haja uma morte — disse Allesandra antes que Varina pudesse responder. — Se os numetodos cooperarem.
— Hã? — Sergei ergueu suas sobrancelhas brancas e voltou a olhar para Varina. — Cooperar, como?
— Varina desenvolveu um mecanismo de areia negra, um dispositivo que qualquer pessoa pode operar sem precisar de magia, e, ainda assim, ser devastador. Vários morellis e ténis-guerreiros foram mortos com esses mecanismos durante o ataque. Eu acredito que isso poderia, literalmente, mudar a maneira como se faz guerra.
Então ela compreende, assim como eu... Varina se remexeu na cadeira, incomodada. Se Allesandra vislumbrava o mesmo futuro que Varina, isso não parecia perturbá-la.
— Eu ainda não concordei — ela lembrou a kraljica. — Eu tenho que pensar a respeito.
Allesandra saiu da janela da sacada para se agachar em frente à Varina, quase em súplica. Ela pegou as mãos de Varina.
— Varina — disse a kraljica, sem permitir que ela desviasse o olhar —, não há tempo para pensar. Não há tempo para hesitar, de maneira alguma. Os ocidentais estarão aqui em poucos dias. É bom que Jan esteja trazendo o exército, mas isso pode não ser suficiente; não diante do que os tehuantinos fizeram em Karnmor e Villembouchure. O comandante ca’Talin diz que há quatro ou cinco vezes mais ocidentais que da última vez que eles estiveram aqui. Quanto mais tempo esperarmos, menos de suas chispeiras teremos feito e menos tempo teremos para treinar as pessoas a usá-las. Você não tem tempo para pensar a respeito. Precisa me dar uma resposta, porque não é apenas a vida de Nico que está em jogo aqui, mas a vida de todo mundo na cidade, incluindo você.
— Eu não me importo com a minha vida — respondeu Varina. — Não mais. Não desde que Karl morreu.
— Não diga isso — disse Allesandra, apertando suas mãos. — Eu não quero ouvir esse tipo de coisa. E você não está falando sério. Você tem que pensar na criança agora.
Varina tentou devolver o sorriso para Allesandra. Ela se sentia exausta e dolorida pelos esforços do ataque. Sergei se ajoelhou ao lado de Allesandra, gemendo com o esforço.
— Dê ouvidos à kraljica — disse o embaixador. — Ela está dizendo o que ambos pensamos, e o que Talbot e o resto dos numetodos também pensam.
Varina suspirou. Fechou os olhos. Do lado de fora, ela podia ouvir os pássaros piando no jardim do palácio e o barulho suave das pessoas na Avi. Sons tranquilos. Os sons da paz. As mãos de Allesandra estavam quentes em comparação às suas, que pareciam pedras frias em seu colo.
Coisas mortas. Coisas arruinadas.
— Tudo bem — respondeu ela. — Diga para Talbot passar no meu laboratório hoje à noite. Eu lhe darei o projeto e as fórmulas.
Sergei ca’Rudka
O capitão Ari ce’Denis parecia cansado, como não dormisse bem há alguns dias. O que provavelmente era verdade, uma vez que as celas da Bastida estavam lotadas, como raramente tinham estado: com os ténis-guerreiros rebeldes, com os morellis que sobreviveram ao ataque ao Velho Templo. E havia o prisioneiro premiado: Nico Morel.
— Eu tenho boas notícias para você, Ari. Fui informado que os ténis-guerreiros que pedirem perdão e rejeitarem todas as opiniões dos morellis serão soltos — disse Sergei para ce’Denis.
O capitão não olhou para o rolo de couro manchado que Sergei tinha pousado na cadeira onde esteve sentado. Ele sequer olhou para Sergei; aparentemente, a papelada sobre sua mesa era bem mais interessante. Ce’Denis pegou os papéis, remexeu e os pousou novamente enquanto ouvia o embaixador.
— O archigos Karrol já mandou uma mensagem nesse sentido, ele mesmo deve chegar a Nessântico em alguns dias. Se os ténis-guerreiros concordarem em lutar com o exército, ele os mandará para a linha de frente e deixará que Cénzi decida se vai permitir que vivam ou não.
Ce’Denis assentiu.
— E os morellis? Qual foi a resolução com relação a eles?
— Aqueles que eram ténis, mas não ténis-guerreiros, serão julgados individualmente por um Colégio de Iguais, que o archigos pretende convocar ao chegar. Aqueles que não eram ténis passarão pelos procedimentos judiciais habituais e serão levados diante do Conselho dos Ca’ para o julgamento.
— E Nico Morel?
Sergei sorriu.
— Ele é um caso especial e será tratado como tal. A kraljica o colocou inteiramente sob minha jurisdição.
O capitão então olhou para o rolo, um olhar que parecia igualmente de nojo e fascínio.
— Imagino que o senhor tenha vindo para falar com o prisioneiro.
Sergei ouviu uma pequena hesitação e nervosismo na palavra “falar”, como se outro termo tivesse penetrado primeiro na mente de ce’Denis.
— Sim. A kraljica determinou que Morel não será executado e se recusará a entregá-lo à fé concénziana. Ele é... — Um sorriso. — Meu.
O capitão ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada: um bom soldado.
— Morel está na cela dos kralji, na torre principal — disse ele. — O senhor sabe o caminho.
Sergei sorriu novamente.
— Sei sim. Vou deixá-lo com seus afazeres, Ari. Deveríamos almoçar juntos um dia desses; talvez depois que a crise atual passar.
Ce’Denis assentiu; nenhum dos dois encarou a sugestão como outra coisa que não uma formalidade. Sergei se apoiou no punho da bengala, se levantando e enfiando o rolo de couro sob o braço livre. Cumprimentou ce’Denis com a cabeça — ele tinha se levantado juntamente com Sergei e agora prestava continência ao embaixador. Sergei saiu do gabinete do homem, cruzou o pátio e ergueu o olhar para o crânio do dragão montado na muralha sobre si.
Os gardai a postos na porta da torre principal prestaram continência quando ele se aproximou. Quando abriram a enorme porta de aço, Sergei foi tomado por uma onda de ar frio cheirando a dejetos humanos e desespero. Ele respirou fundo — o cheiro familiar fez com Sergei se sentisse momentaneamente jovem. Nem mesmo seu próprio confinamento breve aqui não mudou essa reação.
Ele subiu pela escada em espiral devagar. De vez em quando espiava as celas que se apresentavam de ambos os lados, descansando em cada patamar para tomar fôlego. Antigamente, Sergei teria subido essa escadaria de dois em dois degraus, de baixo para cima. Agora, cada degrau era uma montanha individual que precisava ser escalada. Ele ofegava pesadamente quando chegou ao nível superior, apesar das paradas frequentes.
O garda a postos ali prestou continência para Sergei e ficou em posição de sentido.
— Abra a porta e depois vá comer e beber alguma coisa — disse o embaixador. — Eu assumo a responsabilidade pelo prisioneiro.
— Embaixador? — O garda franziu a testa, confuso. — O senhor não deveria ficar sozinho com o prisioneiro. Não é seguro para o senhor.
— Eu ficarei bem — respondeu Sergei.
— Pelo menos deixe-me acorrentá-lo à parede primeiro.
— Eu ficarei bem — ele repetiu, com mais firmeza desta vez. — Vá.
O garda franziu a testa e quase soltou um suspiro audível — talvez pela decepção ao perder a “entrevista” de Sergei com o prisioneiro — e finalmente prestou continência novamente. As chaves tilintaram e as dobradiças gemeram quando o homem abriu a porta. Sergei esperou até ouvir os passos do garda sumirem na escada. Então ele espiou o interior da cela em si.
Esta era a cela para os prisioneiros mais importantes. Ela tinha abrigado os aspirantes ao Trono do Sol e até mesmo contido alguns que anteriormente tinham se autoproclamado kraljiki ou kraljica. Karl esteve preso ali, e o próprio Sergei — ambos conseguiram escapar: Karl através da magia de Mahri, e Sergei com a ajuda de Karl e Varina. O embaixador se lembrava muitíssimo bem da cela: do piso de pedra fria coberto com palha imunda, da única cama com um cobertor fino, da pequena mesa de madeira para refeições, da abertura na muralha externa que levava a um sacada estreita de onde o prisioneiro podia observar a cidade (e de onde mais de um prisioneiro tinha decidido dar fim ao encarceramento caindo no pátio lá embaixo).
Nico estava agora nessa sacada, olhando para fora. Sergei não sabia se o jovem não tinha ouvido que ele entrara ou se não se importava. Seu cabelo estava desarrumado e oleoso, em pé aqui e ali entre as tiras do silenciador amarrado em volta da sua cabeça. Suas mãos e pés estavam presos por correntes e algemas de ferro, de modo que ele só podia se arrastar fazendo barulho.
Sergei entrou na cela. Apoiado em sua bengala, ele falou alto, como se declamando de um palco.
“Uma única gota de orvalho
Pendendo do ferro negro, refletindo um céu livre,
Esperando para ser respirada pelo sol feroz
E cair mais uma vez, exalada pela nuvem.
Assim uma alma, eterna,
Nunca desaparecerá,
Mas apenas disfarçar-se-á, renovada, e retornará.”
Nico se virou ao ouvir a declamação de Sergei. Ele encarava o embaixador agora, com seus olhos ainda irresistíveis e poderosos.
— “Renascimento”, poema de Levo ca’Niomi — disse Sergei. — Você ouviu falar dele, não é? Acho que declamei certo; antigamente, eu passava muitas viradas da ampulheta memorizando sua poesia sentado aqui, no gabinete do capitão. Nós temos os manuscritos originais de ca’Niomi, sabia? Ele tinha uma caligrafia bastante bonita, muito elaborada. Passou décadas aqui, depois de seu reinado felizmente curto como kraljiki; foi nesta mesma cela que ele compôs todos os versos pelos quais é famoso. Portanto, você vê, uma vida passada na prisão não precisa ser uma vida completamente desperdiçada.
Nico o encarou através das tiras do silenciador. Sua saliva gotejou do pedaço envolto em couro saliente em sua boca, reluzindo entre os fios negros da barba, e escurecendo a frente da túnica simples.
— Se você me prometer que não usará o Ilmodo, não que eu ache que consiga, com as mãos presas desta maneira, e se prometer que não tentará escapar, eu removerei o silenciador. E espero que você jure em nome de Cénzi que não fará nem uma coisa, nem outra. Acene com a cabeça, caso concorde.
Nico acenou, devagar. Sergei pousou o rolo de couro na cama e se aproximou do jovem.
— Vire-se e se abaixe um pouco para eu alcançar as fivelas...
Com cuidado, o embaixador soltou as tiras e retirou o instrumento da cabeça de Nico, que engasgou quando a peça de metal foi removida de sua boca. Sergei deu um passo para trás com o silenciador balançando em sua mão, fazendo as fivelas tilintarem.
— Fique onde está — disse o embaixador.
Ele saiu lentamente pela porta aberta da cela, gemendo ao se abaixar para pegar o cantil de água do garda. Ele o trouxe para dentro e o entregou para Nico.
— Vá em frente...
Ele observou o jovem beber a água em grandes goles. Nico devolveu o cantil para Sergei, que o pousou na mesa.
— Você vai me torturar agora? — perguntou ele.
Sua bela voz soou rouca e prejudicada pelo uso prolongado do silenciador. Ele pigarreou, e Sergei ouviu o barulho de sua respiração nos pulmões — os prisioneiros geralmente adoeciam aqui, e muitos morriam de inflamação nos pulmões. O embaixador se perguntou se Nico seria um deles.
— É isso que você acha que eu sou, seu torturador? A ideia assusta você? Você imagina qual será a sensação, se vai ser capaz de aguentar a dor, se vai berrar sem parar até sua garganta ficar seca ao ouvir seus ossos se partindo, ao ver seu sangue jorrando, ao ser forçado a ver partes do seu corpo açoitadas, arrancadas e esmagadas? Imagina se implorará pelo fim, se prometerá qualquer coisa para eu simplesmente parar? — Sergei não conseguiu conter completamente a ansiedade em sua voz; ele sabia que Nico tinha percebido.
O rapaz engoliu em seco audivelmente, seu pomo de adão se mexeu sob sua barba rala. O embaixador percebeu que seus olhos pousaram sobre o rolo de couro na cama.
— Eu sei a seu respeito, Nariz de Prata — disse Nico. — Todo mundo sabe.
— Sabe mesmo? Eu me pergunto, o que é que eles dizem? Não, não responda. Em vez disso, eu tenho uma pergunta para você. Qual é a sensação de saber que você será lembrado como alguém ainda mais vilipendiado do que eu? Qual é a sensação de saber que, por causa de seu orgulho, arrogância e fé inapropriada, a mulher grávida de seu filho está morta?
Sergei viu lágrimas se formarem nos olhos de Nico, as viu crescer e cair por suas bochechas intocadas.
— Você não pode me machucar mais do que isso — disse o jovem, com sua voz cedendo à emoção. — Não pode me causar mais dor do que eu mesmo já causei.
— Bravas palavras — respondeu Sergei —, mesmo que não sejam verdadeiras.
Deliberadamente, o embaixador caminhou até o rolo de couro e apoiou a bengala na cama. Ele se abaixou como se estivesse prestes a abrir os laços que mantinham o rolo fechado, depois se endireitou novamente.
— Eu encontrei uma jovem interessante ao voltar para Nessântico — falou Sergei.
Nico fez uma careta.
— Eu não estou interessado em sua devassidão imunda, ca’Rudka.
O embaixador quase riu.
— Não havia “devassidão”, infelizmente. Não que eu não estivesse interessado, especialmente porque eu imagino que ela teria compartilhado de minhas, digamos, preferências. Mas nós conversamos. Estranhamente, eu vi meu reflexo nela, e não foi uma visão bonita. Ainda pior que a genuína. — Ele tocou no nariz para enfatizar. — Mas eu fiquei curioso... Será que ela consegue mudar? Será que consegue evitar se tornar o que eu me tornei, ou seria essa uma tarefa impossível? Será que somos o que Cénzi determinou ou podemos mudar o nosso destino? Uma questão interessante, não é mesmo?
Sergei se abaixou novamente sobre o rolo de couro. Ele puxou os laços, desatando os nós. Ele pausou, com a ponta dos dedos sobre o couro antigo e macio, e olhou sobre seu ombro para Nico, que o encarava com um fascínio aterrorizado: como todos o faziam, todos os que ele estivera prestes a torturar.
Todos olhavam. Não podiam deixar de olhar.
— É uma questão que podemos discutir, você e eu — disse Sergei. — Eu gostaria de ouvir suas opiniões sobre o assunto.
Dito isso, o embaixador abriu o rolo de couro. Em seu interior acolchoado, havia uma bisnaga de pão, um pedaço de queijo, e uma garrafa de vinho. Ele ouviu o suspiro de alívio e descrença de Nico.
— Varina ca’Pallo mandou isso. Você deve agradecê-la por sua vida.
— Minha vida?
Sergei ouviu o fio de esperança em sua voz e assentiu.
— Ela implorou por você diante da kraljica. Como você devia estar esperando, você seria entregue primeiro para o archigos, para que ele arrancasse suas mãos e língua, depois seria torturado e executado pela Garde Kralji; tudo isso publicamente, para que os cidadãos ouvissem seus gritos e vissem seu sangue. Mas sua vida foi poupada, por um numetodo. Por uma mulher que você admite odiar. Não é interessante?
— Por quê? — perguntou Nico. — Eu não entendo.
— Nem eu. Se a escolha fosse minha, você já estaria morto, e seu corpo, mãos e língua estariam pendurados na Pontica a’Kralji como uma lição para outros. Mas Varina... — Sergei ergueu os ombros. — Ela amou você, Nico. Tanto ela quanto Karl teriam adotado você como filho se tivessem tido a chance. Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Nico balançou a cabeça em negação, mas o movimento era lento e tênue.
Nico Morel
— Em outra vida, você pode até mesmo ter sido um numetodo.
Não. Isso nunca teria acontecido. Cénzi não teria permitido. Nico queria ficar furioso e negar a acusação, mas não conseguiu. Não conseguiu sentir Cénzi de maneira nenhuma; ele não O sentia desde que vira Liana cair. Cénzi o abandonara. Nico tinha passado seu tempo rezando como pôde em meio ao desespero sombrio. Salve-me se esta for a Sua Vontade. Estou em Suas Mãos. Salve-me se ainda houver mais que eu precise fazer pelo Senhor aqui, ou leve-me para Seus braços. Eu sou Seu criado, sou Sua Mão e Sua Voz. Não sou nada sem o Senhor... Nico anteriormente se sentia tão repleto de Cénzi que parecia impossível não estar em comunhão com Ele. Agora, Nico estava vazio e sozinho.
Em vez de Cénzi, Varina se ofereceu para salvá-lo.
Nico olhou fixamente para a comida e o vinho sobre o couro, que ele sabia que continha os instrumentos de tortura que os rumores diziam que ca’Rudka portava sempre que visitava a Bastida. Sergei arrancava um pedaço do pão. Ele o passou para Nico, e seu estômago roncou em resposta. O primeiro gosto foi estonteante; o pão parecia ter vindo do próprio Segundo Mundo. Ele teve que se forçar a não enfiá-lo todo na boca.
Nico podia sentir o olhar do embaixador sobre si enquanto comia. Ele viu ca’Rudka arrancar a rolha do vinho, tomar um longo gole e passar a garrafa para ele. Nico engoliu — assim como o pão, o sabor do vinho explodiu como um néctar em sua boca seca e sofrida.
Relutantemente, ele devolveu a garrafa para Sergei e aceitou um pouco do queijo e outro pedaço de pão.
— Devagar — disse o embaixador. — Você passará mal se comer muito e rápido demais.
Nico deu uma mordida pequena no queijo.
— Eu nunca poderia ter sido um numetodo.
Sergei riu sarcasticamente e balançou a cabeça com cabelos brancos e ralos. O nariz de prata disparou lampejos de luz nas paredes.
— Você responde com muita pressa e facilidade — disse ca’Rudka. — Isso indica que ou você não pensa no que diz ou não faz ideia de como a infância pode influenciar uma pessoa.
— Eu jamais poderia não acreditar em Cénzi — disse Nico, com teimosia. — Minha fé é forte demais. Estou muito próximo Dele.
— Sim, eu percebo como Ele protegeu bem a você e aos seus no Velho Templo.
— Blasfêmia — Nico sussurrou, instintivamente.
— Eu teria cuidado em não proferir insultos se fosse você. — A voz do homem tinha uma calma perigosa, e seu sorriso era afiado o bastante para cortar a pele. — A kraljica o colocou sob meus cuidados. Eu honrarei o desejo de Varina de mantê-lo vivo porque ela é minha amiga, mas isso deixa abertas tantas possibilidades.
Nico pôde sentir a escuridão dentro do homem, como uma tempestade se aproximando a passos largos em pernas de relâmpagos e rugindo com trovões. Ele estremeceu com a visão. Cénzi, o Senhor está comigo novamente? Não, Nico não conseguia sentir a presença do Divino. Estava sozinho. Abandonado.
— Veja bem — dizia Sergei —, este é o seu problema, Nico. Você acha que todo mundo é predeterminado. Acha que Cénzi sempre teve a intenção de torná-lo o que é, que Ele ainda está direcionando a sua vida. Você acha que teria acabado no mesmo lugar, independentemente do que acontecesse. Mas eu não acredito que seja assim. Não que o futuro de alguém não seja predeterminado, de maneira alguma. Acho que você poderia ter sido facilmente um numetodo. Na verdade, aposto que, a esta altura, você seria o a’morce dos numetodos, assim como se tornou o Absoluto dos morellis. Você realmente tem um dom, Nico.
— O Dom de Cénzi — respondeu ele.
— Talvez. — Sergei tomou outro gole do vinho e passou a garrafa para Nico, cuja garganta seca estava tão devastada quanto o deserto de Daritria; ele pegou a garrafa, agradecido. — Eu acredito em Cénzi, portanto, sim, eu diria que você foi dotado por Ele, mas Varina certamente não foi, assim como Karl, e ambos eram quase tão poderosos quanto você. Então talvez nós dois estejamos errados. Talvez Cénzi simplesmente não interfira tão diretamente na vida das pessoas.
— Se você acredita nisso, então nega um dos preceitos do Toustour.
— Ou talvez eu não acredite que Cénzi seja cruel o bastante para desejar que Liana morresse e que você jamais visse sua filha.
Nico ia responder. O Nico que tinha sido a Voz de Cénzi não teria tido problema para fazê-lo. Ele teria aberto a boca e teria sido tomado pela resposta de Cénzi. Suas palavras teriam ardido e pulsado, e ca’Rudka teria tremido face ao seu poder. Agora, ele só ficou boquiaberto, e as palavras não vieram. Quando eu a vi cair, minha fé caiu com ela...
— Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou. Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.
— Eu faço o que Cénzi exige de mim — respondeu Nico. — Só isso.
— Eu vi um kraljiki cair na loucura por ouvir as vozes que ele pensava que escutava — disse Sergei.
— Eu não sou louco.
— Audric também não achava que era louco.
— Você não pode comparar meu relacionamento com Cénzi com o de alguém que acreditava falar com um quadro.
— Não posso? Um quadro pelo menos pode ser visto e tocado, para se ter certeza de que ele está ali, de verdade. Não é possível fazer isso com Cénzi.
Sergei pegou o pão, arrancou um pedaço e o colocou na boca.
— O que eu vejo — ele continuou, mastigando e engolindo — é que Cénzi trouxe você até aqui, mas foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você.
Cénzi atua através dela, Nico queria dizer, mas as palavras não saíram. Soltando um gemido, Sergei se sentou na cama perto do rolo de couro. Nico notou os anéis e bolsos em seu interior, todos vazios, embora o couro tivesse a marca das silhuetas dos instrumentos que normalmente ficavam ali. Manchas escuras e sinistras coloriam seu interior.
— Termine de comer o que quiser da comida e do vinho, mas seja rápido — disse Sergei. — Eu tenho outros compromissos hoje e, infelizmente, vou ter de levar isso comigo.
Ele ergueu o silenciador pendurado por uma faixa em seu dedo. A boca de Nico subitamente se encheu com a memória do couro antigo e manchado, e ele quase vomitou.
— Você devia pensar sobre isso, Nico — continuou o homem. — Não há mais nada a fazer, afinal.
— Você age como se tivesse alguma coisa para me oferecer.
— E tenho — respondeu Sergei facilmente. — Sua vida, e qualquer conforto que ela possa oferecer.
— Em troca de quê?
O embaixador gemeu ao se levantar.
— Nós podemos começar com uma declaração sua para os ténis-guerreiros dizendo que eles devem retornar aos seus deveres e se entregar à autoridade da fé concénziana novamente.
— Cénzi me disse que eles não deveriam lutar — insistiu Nico. — Disse que os tehuantinos são um castigo pelo fracasso da fé concénziana, pelo fracasso do archigos e da a’téni. Como posso negar as próprias palavras de Cénzi para mim mesmo, embaixador?
— Há duas maneiras. Você pode fazer por vontade própria, ou eu posso voltar aqui amanhã com um presente diferente. — Sergei olhou para a cama, onde estava o rolo vazio. — De uma forma ou de outra, você dará essa declaração. Eu lhe prometo. Só depende de você decidir como. De uma forma ou de outra, eu sempre consigo o que quero.
Ele sorriu para Nico.
— Veja bem, é tarde demais para eu mudar.
O embaixador ergueu o silenciador; as fivelas nas tiras tilintaram.
— Eu realmente tenho que ir agora, mas voltarei. Amanhã. E aí você poderá me dizer o que decidiu.
Jan ca’Ostheim
A vanguarda do exército ainda estava a um dia ou mais de distância, sob o comando dos a’offiziers, mas Jan cavalgava à frente das tropas com o archigos Karrol e o starkkapitän ca’Damont, bem como vários chevarittai firenzcianos.
O hïrzg não tinha estado em Nessântico há quinze anos, não desde a última vez em que Firenzcia socorreu os Domínios contra os tehuantinos. Ele tinha se esquecido de como a cidade parecia magnífica. Eles pararam no cume da última colina próximo à Avi a’Firenzcia, onde podiam vislumbrar Nessântico delineada a sua frente, em ambas as margens do reluzente do A’Sele. Da última vez que Jan vislumbrara Nessântico, a cidade esteve envolvida em chamas e ruínas, quase destruída. Nessântico tinha se reconstruído mais uma vez. Os domos dos templos estavam dourados, as torres brancas do Palácio da Kraljica pareciam quase furar as nuvens na Ilha a’Kralji, e a cidade ocupava completamente a depressão plana que a abrigava. Mesmo maculada e ameaçada, a cidade era magnífica.
— É mesmo uma visão estonteante, não é, meu hïrzg? — comentou o archigos Karrol.
O homem, com sua espinha curvada, não podia andar a cavalo, mas ele tinha descido da carruagem para admirar a paisagem, parado ao lado do garanhão de Jan.
— Mas eu ainda prefiro Brezno e nossos terraços.
Jan não sabia se concordava totalmente. Sim, Brezno tinha suas belezas como cidade, e tinha vistas em sua entrada que faziam um viajante parar e admirar, mas isto... Havia um poder ali. Talvez viesse da profusão de pessoas ali, milhares a mais do que em Brezno. Talvez fosse produto da longa história da cidade, que tinha visto impérios surgirem e caírem, que se tornara a capital do maior império jamais visto, pelo menos desse lado do Strettosei. Até mesmo Jan sentiu a atração da cidade. Isto será seu em breve. Tudo isso... se você puder salvá-la agora.
— Olhe — disse o starkkapitän ca’Damont, apontando. — A Avi está lotada de gente no Portão Leste. A evacuação já começou. Os tehuantinos devem estar próximos.
Ele se debruçou sobre a sela e espiou a vista diante do grupo.
— Eu me perguntou se eles virão da Margem Norte, da Sul, ou de ambas. Se pudermos enfrentá-los antes que alcancem a cidade, melhor. Especialmente sem os ténis-guerreiros, precisamos evitar que eles entrem na cidade.
Ca’Damont lançou um olhar venenoso para o archigos Karrol, mas o homem parecia estar olhando a estrada.
— Haverá ténis-guerreiros dos templos aqui — falou o archigos Karrol. — O senhor terá os ténis-guerreiros de que precisa.
— Tomara que sim — respondeu ca’Damont sumariamente. — Mas parece que eles preferem seguir Morel ao senhor.
— Descobriremos qual é a situação em breve — disse Jan, rapidamente, interrompendo a resposta que o archigos Karrol ia dizer. — Archigos, se o senhor puder retornar à carruagem, nós seguiremos a cavalo. Se nos apressarmos, estaremos dentro das muralhas pela Terceira Chamada.
Enquanto o archigos Karrol, ajudado por um quarteto de assistentes ténis, subia lentamente no assento da carruagem, Jan olhou na direção oeste da cidade, especialmente para a Ilha a’Kralji, e para o palácio. Ele se perguntou se sua matarh estaria ali e como ela se sentiria com sua iminente chegada. E se perguntou se ela estaria tanto temerosa quanto estava ansiosa por isso, em um sentimento contraditório.
Como ele.
— Vamos — disse o hïrzg para os demais, fazendo um gesto. — A cidade nos espera.
Eles entraram pela Avi a’Firenzcia e procederam lentamente em direção ao Portão Oeste da cidade. Nessântico estava começando a ser evacuada, e a estrada se encontrava entupida de pessoas e carroças, a maioria saindo da cidade. Eram, em grande parte, mulheres e crianças, assim como velhos — homens fisicamente aptos estavam visivelmente ausentes; Jan presumiu que eles estivessem sendo convocados pela Garde Kralji e a Garde Civile para servir na defesa da cidade. As casas e prédios ao longo da Avi aumentavam em número à medida que eles se aproximavam, até começar a chegar a algumas casas espremidas, embora ainda estivessem fora das muralhas da cidade propriamente dita. Alguém tinha alertado as autoridades; conforme eles avançavam, os cidadãos de repente paravam e comemoravam, e as pessoas espiavam o grupo de janelas e sacadas, acenando com as mãos e hasteando estandartes antigos e surrados com as cores preta e prata firenzcianas — estandartes que, evidentemente, tinham estado mofando dentro de baús há anos. Jan notou que muitos cidadãos olhavam a leste da Avi, como se esperassem ver o exército imediatamente seguindo o grupo, e depois retornavam o olhar para eles, confusos.
Jan ouviu seu nome ser berrado, sendo saudado como se já tivesse libertado a cidade.
— Hïrzg Jan! Hïrzg Jan!
Os chevarittai que o acompanhavam sorriram, mas também fecharam o cerco em volta de Jan, protegendo-o e observando as casas e a multidão crescente, à procura de sinais de problema.
Muitos deles tinham lutado contra tropas dos Domínios. Muitos deles sentiam a inimizade dos Domínios pela Coalizão. Como Jan, os chevarittai se perguntavam quais eram as verdadeiras intenções por trás das comemorações.
Quando eles conseguiram ver os antigos portões se avultando sobre eles, a multidão tinha crescido ainda mais, enchendo os dois lados da estrada. Havia gente acenando do alto das ruínas das velhas muralhas, e cada janela e sacada estava ocupada. O starkkapitän ca’Damont se debruçou sobre Jan.
— Até parece que os tehuantinos já estão correndo de volta pelo mar.
Jan deu de ombros.
— Acho que se eles estão se lembrando de quando eu trouxe o exército aqui da última vez, nós chegamos após os tehuantinos já terem tomado a cidade. Acho que eles têm a esperança de que isso signifique que eles estão a salvo. Embora, a julgar por alguns rostos à nossa frente, algumas pessoas estejam menos convencidas disso.
Ele apontou com a cabeça na direção do estandarte azul e dourado dos Domínios, tremulando no meio da Avi, logo abaixo dos baluartes do portão da cidade. Um integrante do grupo vestia o uniforme da equipe da kraljica; o resto parecia ser um contingente de chevarittai e — julgando pelas bashtas elegantes de dois ou três — integrantes do Conselho dos Ca’.
Ainda que os cidadãos estivessem sorrindo, os chevarittai e conselheiros ali não estavam. Eles carregavam expressões solenes e carrancudas. Jan se viu um pouco desapontado pela própria Allesandra não estar ali, embora soubesse que — caso a kraljica visitasse Brezno — ele teria feito o mesmo, teria feito sua matarh ir até ele.
Neste momento, Jan sentiu muito a falta de Rance, seu assistente, que teria cavalgado a seu lado e teria identificado muitas das pessoas que o aguardavam.
— Você os conhece? — perguntou o hïrzg a ca’Damont, inclinando-se na direção do starkkapitän. — Aquele é o assistente da matarh? Qual é o nome dele? Talbot ci’Noel ou algo assim...
— Talbot ci’Noel, creio eu. E aquele provavelmente é ele. Os outros... — Ca’Damont balançou a cabeça. — Infelizmente eu não conheço outros conselheiros além de Varina ca’Pallo, que não está presente. Lamento, hïrzg.
Jan viu o starkkapitän franzir os olhos.
— Aquele homem atrás de ci’Noel, vestido ao estilo magyariano. Eu juraria que é Erik ca’Vikej, o filho do traidor do Stor. Olhe para o sorrisinho irônico em seu rosto; isto pode ser uma armadilha, hïrzg.
A mão de ca’Damont segurou o cabo da espada, Jan tocou em seu braço.
— Não agora — disse o hïrzg para o starkkapitän. — A matarh não seria tão óbvia assim. Vamos analisar a situação primeiro.
O assistente ci’Noel se aproximou com os conselheiros quando Jan alcançou o grupo, e os chevarittai se deslocaram para a lateral, para garantir que o hïrzg fosse o primeiro a entrar na cidade. O assistente fez uma reverência longa; os conselheiros, um pouco menos.
— Hïrzg Jan — ele disse. — Seja bem-vindo de volta a Nessântico, após uma ausência tão longa. A kraljica Allesandra envia seus cumprimentos e agradecimento, ela o aguarda no palácio. Se o senhor nos permitir escoltá-lo até ela...
— Obrigado, vajiki ci’Noel — respondeu Jan, feliz pelo homem ter assentido em reconhecimento; ou o nome estava certo ou era bem próximo. — Conselheiros e chevarittai.
O hïrzg ignorou ca’Vikej. Teria sido melhor se ele tivesse chamado alguns conselheiros e chevarittai pelo nome, mas em vez disso, Jan simplesmente inclinou a cabeça para o grupo.
— Este é o starkkapitän ca’Damont da Garde Civile e... — Ele ouviu a porta da carruagem se abrir e olhou para trás, vendo o archigos sendo ajudado a descer. — O archigos Karrol — concluiu.
Ci’Noel fez uma mesura para ca’Damont, mas, significativamente, não fez o sinal de Cénzi para o archigos Karrol. Em vez disso, fez uma mesura como faria para qualquer um. Jan se lembrou que o assistente de sua matarh era um numetodo. O archigos Karrol franziu a testa, com as mãos meio erguidas sobre sua testa abaixada para devolver o sinal esperado. Os conselheiros e chevarittai, no entanto, de fato levaram as mãos à testa, e o archigos devolveu o gesto com indiferença e uma expressão de desdém visível.
— Bem-vindo, starkkapitän — falou ci’Noel. — Tenho certeza de que o comandante ca’Talin receberá bem o senhor e seus conselhos; ele também está à sua espera no palácio. Archigos, o senhor também é bem-vindo, especialmente porque a morte da a’téni ca’Paim deixou os fiéis daqui destituídos de liderança. Eu soube que o comandante ca’Talin está desesperado pela ajuda de seus ténis-guerreiros.
Ci’Noel disse a última frase sorrindo imperceptivelmente, e Jan se deu conta de que talvez o homem suspeitasse que poucos ténis-guerreiros tivessem seguido o archigos. Karrol torceu o nariz.
— Eu irei ao Templo do Archigos imediatamente para me estabelecer lá e ver o que precisa ser feito — ele disse para o assistente. — Eu presumo que alguém nos indicará o caminho mais fácil até lá.
— Certamente, archigos — respondeu ci’Noel —, assim que o senhor vir a kraljica. Ela pediu que o senhor também esteja presente na reunião.
— Foi uma longa viagem — argumentou o archigos —, e como você pode ver, eu não sou tão jovem quanto os demais aqui...
— A kraljica aguarda a sua presença primeiro — interrompeu ci’Noel, isso fez com que o archigos erguesse a cabeça e encarasse o homem. — Tenho certeza de que o hïrzg compreende a importância das jurisprudências de Estado e as explicou para o senhor.
Ele aprendeu com a matarh... Jan quase sorriu diante da impertinência inteligente do homem.
— O archigos certamente vai querer ouvir as últimas notícias sobre Nico Morel — concordou Jan, e o olhar feio do archigos se voltou para o hïrzg. — Para que ele tome a melhor decisão em relação ao destino de Morel e de seus seguidores.
— De fato — respondeu ci’Noel, concordando vigorosamente com a cabeça antes que o archigos pudesse se opor. — Há notícias sobre as quais eu tenho certeza de que a kraljica está esperando para lhes contar.
O assistente fez uma mesura novamente.
— Se o senhor puder me seguir, hïrzg Jan. Os cidadãos, como o senhor pode ver, estão esperando para lhe dar suas próprias boas-vindas.
Dito isso, um dos chevarittai levou um cavalo à frente e ci’Noel montou na sela. Ele acenou com a cabeça para Jan, puxou as rédeas e virou o cavalo para continuar a oeste.
A população vibrou à medida que eles prosseguiram sob o arco do portão e entraram em Nessântico.
Allesandra ca’Vörl
Ela estava mais nervosa do que pensava que estaria. O salão do Trono do Sol tinha sido arrumado para a recepção, enquanto Allesandra aguardava na sala atrás da plataforma do trono juntamente com três e’ténis do palácio e dois criados do salão, ela pôde ouvir o agito dos criados garantindo que tudo estivesse pronto. A kraljica foi informada de que o hïrzg Jan e os demais estavam nas dependências do palácio, sendo conduzidos por Talbot e o Conselho dos Ca’ até o salão, ela foi até a cortina quase transparente para espiar o ambiente. Uma batida soou alto na porta, e os porteiros do palácio se apressaram em abri-la. Talbot entrou, fazendo uma mesura e anunciando o hïrzg.
Pela primeira vez em quinze anos, Allesandra viu seu filho.
Jan tinha mudado, e não tinha mudado. Ela certamente o reconheceu imediatamente. A imagem do filho como um jovem rapaz ainda estava gravada na face deste adulto no apogeu da vida. Seu cabelo tinha escurecido e recuado um pouco, havia um tom de cinza em suas têmporas que a surpreendeu. Allesandra tocou seu próprio cabelo, sabendo que os fios grisalhos dominavam rapidamente suas longas madeixas amarradas. Mas as feições de Jan: ela se lembrava bem de seus olhos, com olhar tão aguçado que poderia disparar uma flecha certeira no coração de um cervo. Sua boca rígida, o contorno forte do maxilar, o passo confiante; ainda eram como Allesandra se lembrava.
Ela queria abrir a cortina e correr para o filho, mas não podia. Esta teria que ser uma dança tão complicada e tão bem coreografada quanto um minueto de ce’Miella. Este não era o momento das emoções governarem, e sim a diplomacia. Mesmo com o desafio dos tehuantinos batendo à porta, os requintes da sociedade e de seu posto deveriam ser seguidos. Allesandra então esperou que Jan e o contingente firenzciano fossem conduzidos ao espaço aberto frente à plataforma do trono, e que os criados trouxessem bandejas com comida e bebida. Os conselheiros da kraljica (Varina incluída, segurando a filha de Nico) estavam em seu próprio grupo; os chevarittai firenzcianos, como a maioria dos guerreiros que acabaram de vir de uma longa marcha, aceitaram avidamente a comida e bebida oferecidas, o starkkapitän ca’Damont entre eles. O archigos Karrol ficou na frente dos degraus da plataforma, dispensando os criados com um gesto (para a evidente tristeza dos ténis reunidos em volta do homem); ele parecia considerar se seu posto de archigos o permitiria subir os degraus até a plataforma, e seu rosto — quando ele o ergueu do chão — continha uma máscara de irritação. Jan bebeu água, mas dispensou a comida com um gesto, em pé conversando em tom baixo com Talbot, em frente ao enorme quadro de ci’Recroix de uma família de camponeses. Jan olhou fixamente para as figuras incrivelmente realistas na tela sobre o ombro de Talbot.
Erik estava sozinho. Isolado. Ignorado pelos firenzcianos e nessanticanos. Por alguma razão, Allesandra achou isso apropriado.
Talbot olhou na direção da cortina e acenou com a cabeça. Ele fez uma breve mesura para Jan, passando pelo archigos Karrol, subindo na plataforma e parando ao lado do Trono do Sol. A conversa no salão foi interrompida, e todos olharam para o assistente. Allesandra ouviu uma e’téni começar um cântico e um gestual.
— A kraljica Allesandra ca’Vörl dos Domínios — entoou Talbot, e o feitiço da e’téni fez as palavras ecoarem e retumbarem no salão, como se tivessem sido ditas por um moitidi.
Outros dois e’ténis entoavam um cântico agora e, quando os criados do salão abriram a cortina, lançaram seus feitiços, cercando Allesandra em um banho de luz dourada tênue, como se um feixe de luz do meio-dia tivesse caído sobre ela. Todos os presentes no salão fizeram mesuras, exceto o archigos e os ténis, que preferiram fazer o sinal de Cénzi. Talbot se ajoelhou quando a kraljica se aproximou.
Seu coração batia forte, sua respiração estava acelerada. Apenas Jan não tinha abaixado a cabeça. Ele olhava fixamente para sua matarh, assim como ela olhava para o filho. Seus olhares se sustentaram, e Allesandra esperava que Jan visse carinho ali.
Ela deu três passos adiante até parar ao lado do Trono do Sol, sem se sentar, como teria feito em uma recepção normal. Em vez disso, Allesandra ficou em pé ali e estendeu as mãos na direção do filho.
— Hïrzg — disse a kraljica. — Jan... Por favor...
Com o convite, ele subiu os degraus da plataforma — mais como um jovem do que um monarca, mais como a criança que Allesandra se lembrava. Jan pegou as mãos oferecidas.
— Matarh, é bom ver a senhora.
Ela tinha encenado este momento em sua cabeça centenas de vezes, antevendo as milhares de reações diferentes. Ela tinha imaginado Jan furioso, ou emburrado, ou terrivelmente educado e indiferente. Tinha até mesmo ousado imaginar um reencontro cheio de lágrimas. Isso... isso repuxou os lábios de Allesandra em um sorriso largo e inevitável, e ela apertou os dedos do filho.
— É bom ver você, Jan — disse a kraljica, em um tom de voz baixo, para que apenas ele pudesse escutá-la. — De verdade, meu filho. Eu não devia ter esperado tanto tempo, eu peço as minhas sinceras desculpas por isso.
Jan sorriu, mas havia uma cautela ali, uma prudência em seus olhos. Allesandra percebeu que o filho olhava para o Trono do Sol.
— Ele se acenderia se eu sentasse lá? — perguntou o hïrzg.
— Ele se acenderá — respondeu a kraljica. — Em breve.
E se você mandar que os ténis-luminosos preparem o trono antecipadamente. Jan também aprenderia isso em breve; embora o Trono do Sol ainda brilhasse quando a kraljica ou o kraljiki se sentassem nele, sua luz, desde a época da kraljica Marguerite, era visível apenas na escuridão do crepúsculo, apenas uma tênue fagulha. Agora ela exigia a ajuda de ténis-luminosos para ser notada durante o dia. Allesandra também aprendera que o gatilho da luz não era ela mesma, mas o anel com o sinete dos kralji — a luz que o famoso archigos Siwel ca’Ela encantara dentro das profundezas cristalinas e surgia sempre que qualquer pessoa que usasse o anel se sentasse no trono.
Jan abaixara as mãos, embora ainda sorrisse — assim como todos os que assistiam a esse encontro histórico. Ele era muito parecido com Allesandra; sabia da importância desse momento, sabia que ele moldaria o futuro.
— Matarh — disse Jan, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o exército de Firenzcia está aqui mais uma vez para ajudar os Domínios e o Trono do Sol.
Aplausos e comemoração irromperam com essa declaração, e o som passou como uma onda pelos dois, ali na plataforma. Os dois se viraram e aceitaram a aclamação. Allesandra sentiu uma leveza que não sentia há muito tempo. Viu Erik em meio ao público, ainda isolado, perto de conselheiros e chevarittai dos Domínios, mas não com eles, e bem distante dos firenzcianos. Ele aplaudiu tão alto quanto os outros, mas seu riso era presunçoso e convencido. Allesandra odiava isso.
Ela pegou a mão de Jan, erguendo as duas no ar.
— A uma nova união — disse a kraljica. — De família e de países.
Os aplausos e comemorações redobraram. A luz e o brilho na sala se intensificaram entre os dois, e ainda que Allesandra soubesse que era apenas um efeito dos ténis-luminosos escondidos na sala atrás da plataforma, isso ainda parecia adequado e correto.
Nessa noite, depois da recepção e de uma rápida bênção da Terceira Chamada dada pelo archigos Karrol, Talbot escoltou o grupo até a sala de jantar privativa dentro dos aposentos da kraljica, no palácio. Allesandra andou de braço dado com Jan; o archigos Karrol vinha atrás deles, se arrastando com sua bengala e um único assistente téni, seguido do starkkapitän ca’Damont, Erik seguia o grupo a um passo atrás.
Esperando por eles na sala estavam Sergei e Varina. Ela estava com os braços vazios agora, pois tinha deixado a filha de Nico sob os cuidados dos criados enquanto durasse a reunião.
— Kraljica! Hïrzg Jan! — A voz de Sergei trovejou quando Talbot abriu a porta e deu passagem. — O senhor e a senhora não sabem como estou feliz em vê-los juntos! Matarh e filho, como deveria ser. Hïrzg Jan, o senhor certamente se lembra de Varina ca’Pallo, a’morce dos numetodos...
Varina fez uma mesura para Jan, que devolveu o cumprimento, mas Allesandra ouviu um distinto silvo de desgosto vindo do archigos Karrol. O homem murmurou alguma coisa para seu assistente que a kraljica não conseguiu ouvir.
— Por favor, sentem-se — disse Allesandra, gesticulando para uma mesa redonda que Talbot tinha colocado na sala, cheia de decantadores e pratos cobertos. — Há comida e bebida, mandaremos servir o jantar mais tarde. Jan, se puder se sentar ao meu lado...
Ela viu os demais se sentarem em volta da mesa: Sergei à esquerda da kraljica, com Varina ao lado; o archigos Karrol à direita de Jan, depois o starkkapitän ca’Damont. Erik se sentou entre os firenzcianos e os nessanticanos, com Varina e ca’Damont de ambos os lados; Allesandra notou, incomodada, que Erik lançava um olhar desconcertante para o starkkapitän, que derrotara seu vatarh. O assistente téni do archigos e Talbot se sentaram em uma mesa no lado da sala, perto da porta de serviço. Allesandra esperou até que todos estivessem sentados, e Talbot acenou para os garçons servirem vinho.
— Esta é uma ocasião grandiosa — disse a kraljica, finalmente, ao erguer a taça. — Eu proponho um brinde aos Domínios renovados e ao meu filho, hïrzg de Firenzcia e agora a’Kralji dos Domínios.
— E à vitória sobre os tehuantinos — acrescentou Sergei.
Allesandra assentiu.
— Aos Domínios e à vitória.
A frase ecoou pela mesa, embora Jan tivesse apenas erguido a taça dando um sorriso, sem dizer nada.
— Kraljica, eu agradeço a hospitalidade oferecida pela senhora — disse o archigos, embora sua expressão negasse suas palavras. — Mas o trabalho da fé concénziana me aguarda. Eu deveria ir até o Velho Templo para ver o que os desprezíveis morellis fizeram. E gostaria que Nico Morel fosse entregue a mim esta noite, para que eu possa executar imediatamente o julgamento da Fé sobre ele.
— Para que você arranque suas mãos e língua, quer dizer? — perguntou Allesandra, Varina conteve um sobressalto e encarou a kraljica, como se temesse que Allesandra fosse entregar Nico, apesar da promessa. — Para que você possa, então, executá-lo?
O archigos fungou.
— Certamente. Morel é o culpado por seu próprio destino, kraljica. Não é o meu desígnio. Eu vou, é claro, arrancar suas mãos e língua publicamente, na praça do Templo, para que todos possam ver o que acontece com hereges que desafiam a Fé. — Ele olhou para Varina ao dizer a última frase.
— Infelizmente, archigos, eu alterei o destino de Nico Morel, a pedido da a’morce dos numetodos — respondeu Allesandra. — Nico Morel atualmente reside na Bastida e permanecerá lá, como e por quanto tempo eu quiser.
A cabeça de Karrol se voltou para Allesandra, como a de uma tartaruga olhando para os lados. Ambas as suas mãos estavam sobre a mesa, como se ele estivesse tentando decidir se se levantaria. Do outro lado da sala, a kraljica viu o assistente do archigos começar a se levantar; Talbot colocou a mão no braço do jovem e balançou a cabeça.
— Como é estranho que uma infiel numetoda se preocupe com a vida de Morel, uma vez que, se a vontade dele fosse feita, ela própria estaria na Bastida, ou pior. Mas, em todo caso, Nico Morel é assunto da fé concénziana, não da coroa ou dos numetodos — declarou Karrol. — Esta é uma questão religiosa, não de Estado.
— Ah. — Allesandra juntou as mãos em formato de pirâmide, apoiando seu queixo. — Mas a guerra é uma questão de Estado, archigos. Diga-me, quantos ténis-guerreiros você trouxe consigo?
O archigos sibilou, também como uma tartaruga, decidiu Allesandra.
— Eu ouvi dizer que vieram menos de dois punhados — continuou a kraljica. — Tão poucos... Mas Sergei me prometeu que Nico Morel nos dará os ténis-guerreiros de Nessântico, e ele também vai enviar uma mensagem para aqueles que se recusaram a seguir você, e que os ténis-guerreiros atenderão ao chamado dele.
Ela viu Sergei assentir e Varina olhar estranhamente para ele.
— Ao que parece, archigos, Nico Morel pode fornecer ao Estado um número muito maior de ténis-guerreiros do que você. Portanto, eu não acho que seu compromisso no Velho Templo é tão premente. Eu já perdoei os ténis e ténis-guerreiros que seguiram Morel, desde que eles sigam para o fronte de batalha. Os poucos que ainda se recusarem... — Ela levantou um ombro indiferente. — Bem, eu permitirei que você faça com eles o que quiser.
O rosto do archigos Karrol ficou branco, como se estivesse engasgando.
— A senhora permitirá... A senhora não tem autoridade para isso, kraljica. Nenhuma. Eu sou o archigos, e eu...
— E você, archigos Karrol, não parece perceber que seu posto é frágil e precário. A maioria de seus ténis seguiram Nico Morel em vez da pobre a’téni ca’Paim, e seus próprios ténis-guerreiros fizeram o mesmo. Onde está o poder que você parece possuir, archigos? Você não conseguiu derrotar Nico Morel, mas eu, sim; com a grande ajuda, deixe-me lembrá-lo, dos numetodos. Parece que a fé concénziana não é a única aliada com que um kralji pode contar em um momento de necessidade, nem a mais forte. Se você quiser demonstrar como a fé concénziana pode ajudar, eu sugiro que o faça, archigos. Minha fé em Cénzi continua forte como nunca, mas francamente eu não acho que a defesa de Nessântico seria menos forte se você dividisse a mesma cela com Morel.
Karrol bateu com as mãos na mesa, fazendo os copos retinirem e a porcelana tremer.
— Meu hïrzg, o senhor vai deixar esta... esta... herege falar comigo dessa forma?
Allesandra viu Jan dar de ombros em sua visão periférica.
— Se a kraljica realmente conseguir trazer mais ténis-guerreiros para o meu exército, archigos, talvez ela tenha razão. — Ele se voltou para Allesandra. — Matarh, a senhora não mudou em nada. Ainda consegue tudo o que quer, de uma forma ou de outra.
— Eu não preciso ficar aqui — disparou o archigos Karrol. — Eu não preciso ouvir essa apostasia.
— Então eu permito que se retire — disse Allesandra. — Mas tenha cuidado com o que diz e com o que faz, archigos. Você vai consultar meu filho ou a mim antes de tomar qualquer decisão significativa; ou isso ou você será substituído por um a’téni que realmente entenda que é a Fé que serve ao Estado, não o contrário.
— A senhora não tem autoridade nenhuma para me substituir — vociferou o archigos. — O Colégio A’Téni não permitirá. Os interesses da fé concénziana se sobrepõem aos de qualquer Estado.
— Se você quiser testar esta teoria, archigos, eu o convido a experimentar. Talbot, você poderia mandar os gardai do palácio escoltarem o archigos Karrol até o Velho Templo, para que ele possa verificar os danos lá? Talvez ele queira supervisionar as equipes de trabalhadores, uma vez que não pode nos dar os ténis-guerreiros de que precisamos.
O assistente de Karrol se aproximou com a bengala enquanto o archigos se levantava. Ele encarou Allesandra, que calmamente devolveu o olhar e fez o sinal de Cénzi. Karrol saiu da sala com a pouca dignidade que lhe restava. Jan aplaudiu ironicamente quando as portas se fecharam atrás do homem.
— Hurra, matarh — exclamou o hïrzg. — Esta foi uma boa jogada. Estou tentando encontrar uma desculpa para me livrar desse velho bastardo inútil há um ano ou mais, e a senhora o fez por mim agora.
— Agradeça a Sergei. É ele quem vai convencer Nico Morel a cooperar. — Allesandra viu Varina encarar Sergei, como se percebesse as entrelinhas. — Agora, vamos tratar do nosso assunto. Você falou com as nações da Coalizão? Elas estão todas de acordo?
— Não, não falei com todas, mas enviei mensagens. Sesemora é a mais forte das nações da Coalizão exceto por Firenzcia e, portanto, a mais perigosa, mas Brie é prima em primeiro grau do pjathi ca’Brinka, e os laços familiares vão prevalecer. Miscoli seguirá Sesemora. A Magyaria Oriental sabe que as tropas de Tennshah invadirão as fronteiras em debandada sem a proteção de Firenzcia. A Magyaria Ocidental... — nesse momento, Jan se deteve, lançando um olhar furtivo na direção de Erik. — O gyula é nosso aliado.
Allesandra viu Erik fazer uma careta e, em seguida, colocar um sorriso, como uma máscara, de volta ao rosto.
— O destino da Magyaria Ocidental talvez não esteja tão definido quanto o senhor acredita, hïrzg Jan — disse Erik. — Talvez a kraljica tenha outros planos?
— Ah, é? — perguntou Jan. — Isso é verdade, matarh? Esses rebeldes, traidores e incompetentes comandam os Domínios? A senhora está planejando tornar o hïrzg de Firenzcia tão irrelevante quanto o archigos? Receio que isso não vá funcionar; eu tenho as melhores cartas neste jogo, a menos que a senhora queira que Nessântico seja invadida pelos ocidentais.
Da voz de Jan podia-se distinguir uma raiva genuína agora. Allesandra olhou para Erik mais uma vez. Ele acenou com a cabeça e sorriu. Ela desviou o olhar.
— Receio que, mesmo com Firenzcia, ainda não haja garantias de que os tehuantinos não vencerão — falou a kraljica. — Seu exército é bem maior do que o que eles trouxeram antes, o comandante ca’Talin não tem conseguido deter o avanço, e o que eles fizeram em Karnmor...
Allesandra estremeceu involuntariamente e continuou, com mais firmeza.
— Mas, em resposta à sua pergunta, não. Eu tomarei as minhas próprias decisões quanto ao que é melhor para Nessântico, assim como você, Jan. Assim como nós faremos, juntos.
Ela fez uma pausa. Você ainda está certa de que quer fazer isso? Erik sorria, confiante, e a presunção do gesto a irritou. Ela já sabia a resposta — porque sabia que, inevitavelmente, com Erik e Jan tudo se resumiria a ter de escolher entre os dois. A kraljica ergueu a taça para Jan.
— Se o atual gyula é satisfatório para você, então ele permanecerá gyula.
— O quê? — Erik soltou um grito de indignação e se levantou.
Talbot se levantou também, e os gardai na porta se empertigaram.
— Você me prometeu — ele gritou para Allesandra, com o rosto vermelho e o dedo em riste no ar. — Eu confiei em você. Você e eu dividimos sua...
— Silêncio! — Allesandra trovejou de volta. — Se disser mais uma palavra, vajiki, você vai ser jogado na Bastida. Eu prometo isso. Você não é mais bem-vindo na minha presença. Tem a noite de hoje para sair de Nessântico. Vá para onde quiser, mas se estiver aqui na Primeira Chamada de amanhã, você será declarado um traidor do Trono do Sol e será perseguido de acordo. Se for capturado, será mandado para a Magyaria Ocidental para ser julgado pelo tribunal do gyula.
— Você não pode estar falando sério.
— Ah, eu estou sim — respondeu Allesandra.
— Então, eu não signifiquei nada para você? O tempo que passamos juntos...
— ...acabou. — A kraljica encerrou a frase no lugar dele. — Uma coisa é um kralji cometer um erro, Erik. Outra é insistir no erro. Você pensou que eu trocaria o bem dos Domínios por uma simples paixão? Se pensou, então você nunca me conheceu mesmo.
— Eu conheço você agora — disparou Erik. — Você é uma cadela fria, muito fria.
Isso deveria tê-la magoado, mas não magoou. Allesandra não sentiu nada.
— Erik, você está desperdiçando o pouco tempo que tem.
Erik a encarou, furioso. Mas se calou e saiu da mesa. Os gardai abriram a porta para ele e seus passos sumiram ao longo corredor quando as portas se fecharam novamente.
— Matarh, a senhora realmente me surpreende — disse Jan, olhando para o starkkapitän ca’Damont, Sergei e Varina. — Qual de nós será o próximo a sair?
Ela ignorou o sarcasmo.
— O archigos precisava perceber qual era o seu lugar. Não podemos nos dar ao luxo de ter que aplacar a fé concénziana em meio a esta crise. Quanto a Erik... — Allesandra deu de ombros. — Infelizmente, eu tomei uma decisão ruim, e era hora de retificá-la.
— Na verdade, se não se importa que eu corrija, a senhora tomou duas decisões ruins: também apoiou o vatarh dele.
A kraljica ia discordar. Não, deixe que ele vença aqui. Jan está indeciso e preocupado.
— Eu aceito isso. — Ela acenou com a cabeça para Sergei, Varina e ca’Damont, que ficaram sentados em silêncio durante o diálogo. — Lamento que todos vocês tenham que ter testemunhado isso. Espero que saibam que dou valor aos seus conselhos e opiniões, Sergei, Varina. Ambos são vitais para os Domínios, especialmente agora. E starkkapitän ca’Damont, sua experiência será essencial nos dias que virão. Agora... Vamos falar sobre o que Nessântico vai enfrentar e como podemos vencer...
Brie ca’Ostheim
Foram necessários dois dias para alcançar o comboio de suprimentos do exército, e mais meio dia para passar entre as aparentemente infinitas fileiras triplas de infantaria em direção ao batalhão de comando. Os soldados vibraram ao ver a carruagem se aproximar com a insígnia do hïrzg na lateral. Eles saíram da estrada para permitir a passagem do veículo, Brie acenou para os homens. Também viu cavaleiros sendo despachados para a vanguarda, galopando pelos campos e campinas ao longo da estrada, e ela sabia que a notícia de sua chegada alcançaria os offiziers, e eles informariam Jan. Brie esperava que o marido estivesse entre os soldados que a saudaram quando ela finalmente se aproximou do estandarte do hïrzg e do starkkapitän, mas foi Armond co’Weller, um chevaritt e a’offizier, que caminhou a passos largos até sua carruagem quando o condutor puxou as rédeas. Brie abriu a porta do veículo e desceu os degraus antes que os cavaleiros da Garde Brezno que a acompanhavam ou co’Weller pudessem ajudá-la.
— Hïrzgin — cumprimentou o a’offizzier.
A expressão do homem era de preocupação e ansiedade. Ele desviou o olhar de Brie para o trio de gardai da Garde Brezno montados em volta da hïrzgin. Em volta deles, o exército parou lentamente.
— Algum problema? Seu comboio foi atacado? As crianças...?
— As crianças estão bem e já devem estar em Brezno a esta altura — ela respondeu. — Eu voltei para ficar com meu marido, só isso, e para estar ao seu lado quando ele se encontrar com a kraljica. Agradeço se puder informá-lo sobre a minha chegada. Pensei que ele estivesse aqui...
Co’Weller afastou o olhar por um momento e franziu os lábios.
— Lamento, hïrzgin, ter que informá-la de que o hïrzg, o starkkapitän ca’Damont e vários chevarittai seguiram a cavalo à frente do exército. Eles provavelmente já estão em Nessântico.
— Ah.
A imagem de Jan em chamas voltou à sua mente, acompanhada pela mulher misteriosa... Brie mordeu o lábio inferior, e isso deu a deixa para co’Weller rapidamente abrir a porta da carruagem para ela, como se esperasse que Brie fosse voltar para seu interior imediatamente.
— Sinto muito, hïrzgin. — O a’offizier voltou a olhar para os gardai em torno dela. — Eu destacarei um esquadrão de tropas adicionais para acompanhá-la de volta à Encosta do Cervo e lhe darei novos cavalos e condutor. O cozinheiro pode preparar provisões para a viagem...
— Eu não vou partir — informou Brie, fazendo co’Weller levantar as sobrancelhas, surpreso.
— Hïrzgin, este não é um lugar para a senhora. Um exército em marcha...
— Meu marido não está aqui. Isso significa que eu sou a autoridade do trono de Firenzcia, não é mesmo, a’offizier?
Por um instante, pareceu que Co’Weller faria uma objeção, mas ele balançou a cabeça ligeiramente.
— Sim, hïrzgin, acredito que sim, mas...
— Então minhas ordens estão acima das suas, eu seguirei para Nessântico com você, até que o starkkapitän e meu marido retornem. Tem algum problema com isso, a’offizier?
— Não, hïrzgin. Nenhum problema.
As palavras eram de aceitação, mas a expressão em seu rosto era de negação.
Isso não importava para Brie. Alguma coisa dizia que ela precisava estar com Jan, e ela estaria.
— Ótimo. — A hïrzgin abriu a porta da carruagem e colocou um pé no degrau. — Então não vamos deixar o exército esperando. Temos uma longa marcha pela frente.
Niente
As águas de Axat traíram Niente. Ele podia ver muito pouco do Longo Caminho na bruma. Até mesmo os eventos pouco antes dele estavam obscurecidos. Havia muitos sinais conflitantes, muitas possibilidades, muitos poderes em oposição. Tudo estava em fluxo, todo mundo estava em movimento. Niente já não podia mais ver o Longo Caminho. Ele tinha sumido, como se Axat tivesse retirado seu favoritismo de Niente, como se Ela estivesse furiosa com o nahual pelos seus fracassos.
Niente só via uma coisa. Ele viu a si mesmo e Atl, um encarando o outro, um raio explodiu entre os dois e, dentro da bruma, Niente viu Atl cair...
Dando um grito e um golpe com o braço, Niente jogou longe a tigela premonitória. Os três nahualli que tinham trazido a tigela e a água para ele e estavam lhe auxiliando se levantaram, assustados.
— Nahual?
— Deixe-me em paz! Vamos! Saiam!
Eles se dispersaram, deixando Niente sozinho na tenda.
Sumiu. O futuro que você buscou foi tomado. Será que consegue encontrá-lo novamente? Será que ainda há tempo, será que essa oportunidade passou completamente agora?
Niente não sabia. A incerteza ardeu como fogo em seu estômago e bateu como um martelo em seu crânio.
Ele caiu no chão, enterrando a cabeça entre as mãos. A tigela tinha caído, de cabeça para baixo, sobre a grama à frente de Niente, de maneira acusadora, a água cor de laranja molhava as folhas verdes. A grama estrangeira, o solo estrangeiro...
Niente não sabia dizer quanto tempo tinha ficado sentado até ver uma sombra se agitar sobre o tecido, provocada pela grande fogueira montada no centro do acampamento.
— Nahual? — chamou uma voz hesitante. — Está na hora. O Olho de Axat surgiu. Nahual?
— Estou indo — respondeu ele. — Seja paciente.
A sombra recuou. Niente se levantou. Seu cajado mágico ainda estava sobre a mesa. Ele o pegou, sentindo o formigamento dos feitiços contidos na grã espiralada. Você vai conseguir fazer isso? Você o fará?
Niente caminhou até a aba da tenda, a abriu e saiu.
O exército tinha acampado ao longo da estrada principal, onde ela descia por uma longa colina. As tendas do nahual e do tecuhtli tinham sido montadas no topo da colina, cercadas pelas tendas dos guerreiros supremos e dos nahualli. Lá embaixo, Niente viu o brilho das centenas de fogueiras; acima, a faixa do Rio Estelar cortava o céu, ofuscada pelo brilho do Olho de Axat, olhando para eles. Os guerreiros supremos e os nahualli estavam sentados em um círculo em volta da grama pisoteada da campina. Perto da fogueira, ardendo no espaço aberto entre a tenda do nahual e a do tecuhtli, estavam o tecuhtli Citlali, Tototl e Atl. Seu filho tinha o peito nu, sua pele brilhava. Ele segurava seu cajado mágico em uma das mão, batendo sua ponta nervosamente no chão.
— Você ainda quer isso, Atl? — perguntou Niente. — Tem tanta certeza assim do seu caminho?
Atl balançou a cabeça.
— Se eu quero, taat? Não, não quero. Mas estou certo a respeito do caminho que Axat me mostrou e tenho confiança de que o caminho que o senhor quer que nós sigamos nos levará à derrota, apesar do que o senhor pensa. Foi o senhor quem me ensinou que, mesmo quando alguma autoridade diz que está certa, ela ainda pode estar errada; e que, para salvá-la, é preciso persistir. O senhor me disse que esse era o papel do nahual em relação ao tecuhtli, e dos nahualli em relação ao nahual. — Ele inspirou profunda e lentamente, batendo com o cajado mágico no chão mais uma vez. — Não, eu não quero isso. Não quero lutar com o senhor. Eu odeio ter que fazer isso. Mas não vejo outra escolha.
Citlali se colocou entre os dois.
— Chega de conversa. Já perdemos tempo demais com isso; e a cidade espera por nós. Façam o que for necessário, para que eu decida quem é o meu nahual, e quem está vendo o caminho corretamente. — Ele olhou de Niente para Atl — Andem com isso. Agora!
O tecuhtli se afastou e gesticulou para Niente e Atl. Niente sabia que Citlali queria que os dois erguessem seus cajados mágicos, que a noite se iluminasse subitamente com raios e fogo, que um dos dois desmoronasse no chão, derrotado, queimado e morto. Ele podia ver a ansiedade no rosto do homem, na forma como as asas da águia vermelha se mexiam nas laterais de seu crânio raspado. Os nahualli, os guerreiros supremos, todos compartilhavam a mesma avidez — todos olhavam fixamente para eles, inclinados para frente, com as bocas entreabertas em expectativa.
Ninguém tinha visto um nahual batalhar com um desafiante há uma geração. Eles estavam ansiosos para ver a cena histórica. Mas nem Atl, nem Niente se mexiam. O nahual viu os músculos do braço do filho se retesarem e percebeu que Atl prosseguiria. Sabia que a visão na tigela se realizaria. Assim que Niente erguesse seu cajado mágico, o duelo começaria — e Atl morreria.
— Não! — gritou Niente, jogando o cajado mágico no chão. — Eu não farei isso.
— Se você é o meu nahual, você o fará — rugiu Citlali, como se estivesse desapontado.
— Então eu não sou o seu nahual — disse Niente. — Não mais. Atl está certo. Axat obscureceu minha visão do Caminho. Ela não me favorece mais, e eu não tenho mais a verdadeira Visão.
Ele fez uma mesura para o filho, como um nahualli para o nahual. Ele arrancou o bracelete dourado do antebraço. Ele sentiu sua pele parecer fria e nua sem ele.
— Eu me rendo.
Niente se ajoelhou e ofereceu o bracelete a Atl.
— O senhor é o nahual do tecuhtli agora. Eu sou um mero nahualli. Seu criado.
Niente pôde sentir o Longo Caminho desaparecendo da sua mente. A Senhora o tirou de mim, Axat. Isto é culpa Sua. Se ele já não podia mais ver, então ele trocaria a sua visão pela de Atl. Se já não havia mais Longo Caminho, então ele aceitaria a vitória dos tehuantinos.
Ele ficaria satisfeito. Não viveria para ver as consequências.
FRACASSOS
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Jan ca’Ostheim
Niente
Varina ca’Pallo
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Niente
Nico Morel
Cénzi...
Cénzi o tinha abandonado, Nico só podia se perguntar o que tinha feito de errado, como podia ter interpretado tudo tão mal a ponto de Cénzi permitir que isso acontecesse. Nico passou todo o tempo, desde que Sergei foi embora, de joelhos recusando a água e a comida. Ele usou as correntes em suas mãos e pernas como flagelos, para abrir as crostas das feridas que ele sofreu na batalha pelo Velho Templo, para deixar o sangue quente e a dor levarem embora todos os pensamentos do mundo exterior. Nico aceitou a dor; mergulhou nela; a ofereceu para Cénzi como uma oferenda, na esperança de que Ele falasse com Nico novamente.
O Senhor me tirou a minha mulher e roubou minha filha. O Senhor permitiu que as pessoas que me seguiam morressem de maneira horrível. O Senhor me arrancou a liberdade. Como foi que eu O ofendi? O que eu deixei de ver ou fazer pelo Senhor? Como eu ouvi errado a Sua mensagem? Diga-me. Se deseja me punir, então eu me entrego ao Senhor livremente, mas me diga, por que eu devo ser punido. Por favor, me ajude a entender...
Esta foi a prece de Nico. Isto foi o que ele repetiu, sem parar: enquanto as trompas anunciavam a Terceira Chamada, ao cair da noite, enquanto as estrelas passavam correndo e a lua surgia. Ele rezou, de joelhos, perdido em si mesmo e tentando encontrar de novo a voz de Cénzi em algum lugar em meio ao desespero.
Nico não conseguiu evitar a invasão de outros pensamentos. Sua mente vagou sem foco. Ele ouviu a voz de Sergei falando sem parar: “foi Varina quem poupou sua filha, sua vida, suas mãos e sua língua e, portanto, seu dom: alguém que não acredita em Cénzi, mas que acredita em você... foi Varina quem...” Abafado pelo silenciador, Nico gritou tentando apagar a terrível voz, fechando bem os olhos, como se, com isso, pudesse impedir a entrada da memória em sua mente e se negar sua própria visão. “Eu comentei sobre a jovem que encontrei ao vir para cá; eu lhe disse que ela ainda tinha tempo para mudar, para encontrar um caminho que não terminasse onde estou”. O embaixador insistiu. “Eu acho que é isso o que Varina acredita a seu respeito, Nico. Ela acredita em você, no seu dom, e acredita que você pode fazer coisas melhores do que já fez com ele.”
Não! Se Varina me salvou, foi porque ela cedeu involuntariamente à Sua vontade. Só pode ser. Diga-me que foi assim! Dê-me Seu sinal...
Mas o que veio à tona em sua mente no lugar do sinal de Cénzi foi o corpo de Liana quebrado e rasgado, foi a forma como seus olhos se fixaram cegamente na cúpula do Templo Antigo, e a forma como suas mãos apertaram sua barriga, tentando proteger a criança em seu interior. Ele pediu a Cénzi para mudar este fato terrível, para devolvê-la à vida, tirando sua própria vida em seu lugar, mas seu olhar ficou imóvel, seu peito não se mexeu e o sangue ficou espesso e parado ao seu redor, enquanto ele tentava acordá-la, enquanto a abraçava, enquanto os gardai o arrastavam para longe e ele gritava...
O que o Senhor quer de mim? Peça, e eu o farei. Eu pensei que estivesse fazendo, mas se isso não for verdade, então me mostre. Tire esse tormento de mim. Faça com que eu compreenda...
Nico pensou ter sentido uma mão tocar seu ombro e se virou, mas não havia ninguém ali. Devia ter sido o efeito da alta madrugada, quando o silêncio caía até mesmo sobre a grande cidade. Ele devia ter ficado ajoelhado por várias viradas da ampulheta, suas pernas estavam dormentes. O ar fétido e parado da cela estremeceu e Nico ouviu a voz de Varina. “Eu odeio o que você pregou e o que fez em nome de suas convicções. Mas eu não odeio você, Nico. Jamais odiarei”.
— Por que não? — ele tentou dizer, mas sua língua estava aprisionada pelo silenciador, Nico só conseguia emitir sons abafados e ininteligíveis. — Por que você não me odeia? Como pode não me odiar?
O ar estremeceu, Nico pensou ter ouvido uma risada.
Cénzi? Varina?
Ele tentou rezar mais uma vez, mas sua mente não permitiu. Sua cabeça estava cheia de vozes, mas nenhuma era aquela que Nico tanto queria ouvir. Ele voltou no tempo em suas memórias e seguiu para frente, para o presente imundo e esquálido, voltando mais uma vez ao passado.
Nico tinha 11 anos, estava na casa em que eles moraram após Elle levá-lo embora de Nessântico, onde ficou até sua barriga inchar ao máximo com a criança lá dentro, a criança que Elle dizia que seria seu irmão ou irmã. Nico ouvia Elle gemendo ou chorando no quarto ao lado e ficava encolhido na sala comunal, assustado e com medo da dor óbvia em sua voz, rezando para Cénzi para que ela ficasse bem. Nico tinha ouvido muitas histórias sobre mulheres que morriam no parto e não sabia o que aconteceria com ele se Elle morresse — não com seu próprio vatarh e matarh mortos, não com Varina e Karl provavelmente mortos também, até onde Nico sabia. Elle era tudo o que ele tinha no mundo, Nico rezou com todo o fervor possível para que ela vivesse. Prometeu a Cénzi que dedicaria a vida a Ele se a mantivesse viva.
Elle gemeu novamente, desta vez soltando um grito estridente e longo que foi rapidamente abafado, como se alguém tivesse colocado uma mão ou um travesseiro sobre sua boca, ele ouviu a oste-femme chamar suas assistentes. Ele saiu de seu canto, caminhou até a porta fechada e a abriu com cuidado. Viu Elle sentada na cama, apoiada pelas assistentes.
— Onde está meu bebê? — ela perguntou, chorando. — Onde... Não, fiquem calados! Eu não consigo ouvir! Onde ele está?
Nico sabia que Elle não estava falando com as pessoas no quarto, mas com as vozes em sua cabeça.
Havia muito sangue nos lençóis. Ele tentou não olhar para isso.
Uma ama de leite se sentava em uma cadeira próxima, mas os laços de sua tashta ainda estavam amarrados e seu rosto estava tenso. A oste-femme estava agachada diante de uma trouxa ao pé da cama. Ela balançava a cabeça.
— Lamento, vajica — disse a mulher. — O cordão estava... o que esse menino está fazendo aqui?
Nico percebeu que a oste-femme estava olhando fixamente para ele na porta.
— Eu posso ajudar — disse Nico.
— Fora daqui! — berrou a oste-femme, apontando para a porta.
A mulher gesticulou para uma das assistentes.
— Tirem o menino daqui! — ela ordenou, voltando-se para a trouxa.
Nico correu para dentro do quarto. Ele podia sentir o frio poder envolvê-lo. O sentira desde que tinha começado a rezar, e ele foi ficando cada vez mais frio e mais poderoso a cada fôlego. Agora o poder queimava seus pulmões e garganta, Nico não conseguia contê-lo. Ele se desviou quando a assistente tentou agarrá-lo, enquanto Elle gritava para ele ou para as vozes em sua cabeça ou para a oste-femme. Nos braços da mulher, Nico viu um bebê, sua pele tinha uma cor arroxeada estranha, havia uma corda cor de carne em volta de seu pescoço. Ele estendeu a mão para tocar a menina... E, ao tocá-la, Nico sentiu a energia fria sair de si, enquanto ele dizia palavras que não conhecia e suas mãos se mexiam em um padrão estranho. Seus dedos tocaram a perna do bebê, e ele conteve um grito ao sentir o poder sair todo de si, deixando Nico exausto como se tivesse corrido o dia inteiro. A perna da menina tremeu, seu corpo entrou em convulsão e a corda se desmanchou: a boca do bebê se abriu, soltando um berro e um choro. A oste-femme, que tinha dado passo para trás quando Nico a empurrara para passar, agora gaguejava.
— A criança — disse a mulher. — Ela estava morta...
O bebê chorava agora, a ama de leite se aproximou, desfez os laços da blusa da tashta e pegou a criança nos braços.
— O que está acontecendo? — disse Elle, mas então...
...sua memória mudou. Desta vez sem a bruma suave da lembrança. Tudo estava nítido, com cores intensas, como acontecia quando Cénzi lhe enviava uma visão. Já não era mais Elle quem estava no leito do parto, mas Varina, e ela abria os braços. Nico se aninhou alegremente em seus braços. Varina acariciou seu cabelo.
— Você salvou a vida dela — ela disse. — Foi você.
— Eu rezei para Cénzi — disse Nico. — Foi Ele.
— Não — respondeu Varina/Elle baixinho, acariciando suas costas. — Foi você, Nico. Você sozinho. Você entrou em contato com o Segundo Mundo e pegou seu poder, que não vem de Cénzi ou de outro deus, simplesmente existe. Você pode se conectar com isso. Rochelle lhe deve a vida. Ela sempre lhe deverá isso.
— Rochelle? Esse será o nome dela?
— Sim. Era o nome da minha própria matarh — disse Varina/Elle — e eu vou ensiná-la tudo o que sei, e talvez um dia ela retribua a você o que você fez por ela.
A mulher, que ao mesmo tempo era Elle e não era Elle, abraçou Nico com força, e ele devolveu o abraço, mas agora só havia o ar vazio a sua frente. Nico abriu os olhos.
O sol tinha nascido, ele agora ouvia as trompas anunciando a Primeira Chamada, enquanto o sol descia relutantemente pela torre negra da Bastida a’Drago em direção à abertura em sua cela. De repente, ele quis olhar lá fora, ver a luz crescente. Nico tentou se levantar, mas seus pés estavam tão duros e inflexíveis quanto pedra, e quando ele tentou mexê-los, a dor fez com que ele soltasse um grito abafado pelo silenciador. Ele não conseguia se levantar. Então, ele se arrastou para frente com suas mãos acorrentadas, rastejando até a abertura que levava até a pequena plataforma da torre. Nico se levantou, apoiando-se no parapeito e gemendo por causa do formigamento intenso que ele sentia nas pernas à medida que elas voltavam à vida. Nico olhou para a manhã. Uma bruma tinha surgido sobre o A’Sele, a Avi a’Parete do lado de fora dos portões da Bastida começava a se encher de gente caminhando em direção ao templo ou aos compromissos da manhã.
Uma figura atraiu seu olhar... Uma mulher parada em frente aos portões da Bastida, sob o sorriso malicioso da cabeça do dragão. Ela não se movia, mas encarava a Bastida, e a torre em que ele estava preso. Mesmo com essa distância, havia algo nela, alguma coisa familiar.
— Rochelle...? — murmurou Nico.
Ele não sabia se estava sonhando ou se isso sequer era possível; ele não a via há anos. Mas aquelas feições...
Nico tentou subir na sacada, mas sua mão escorregou no parapeito, suas pernas não conseguiram sustentá-lo e ele caiu. Ele se ergueu novamente, odiando que não conseguisse berrar o nome dela. Mas podia acenar, podia fazer com que a ela o visse...
Mas ela já não estava lá. Tinha sumido. Nico procurou por algum sinal dela na Avi — ali, será que era ela, correndo para o norte, sobre a Pontica? —, mas ele não tinha como ter certeza, e não podia chamá-la. A figura desapareceu na multidão, ao longe.
Nico se deixou cair novamente na plataforma.
Era ela, Cénzi? O Senhor a mandou vir até aqui por mim?
Não foi Cénzi quem respondeu. Em vez disso, ele pensou ter ouvido a risada suave de Varina.
Sergei ca’Rudka
— Há quanto tempo ele está assim?
O garda da cela de Nico deu de ombros. Seu olhar não parava de se fixar no rolo de couro sob o braço do embaixador.
— A noite inteira — respondeu o homem. — Ele começou a rezar quando o senhor saiu; não bebe, não come. Só reza.
— Abra a porta — ordenou Sergei — e entre comigo. Talvez eu precise da sua ajuda.
O garda assentiu. Sergei pensou ter visto um ligeiro sorriso se formar nos lábios do sujeito enquanto ele pegava o molho de chaves do cinto, destrancava a cela e empurrava a porta para abri-la. Ele entrou e gesticulou para Nico.
— O senhor quer que eu o arraste para dentro de novo?
Sergei meneou a cabeça e entrou na cela, passando pelo garda.
— Nico? — ele chamou.
Nico não respondeu.
Ele estava ajoelhado na plataforma da torre, o sol lançava uma longa sombra da sua figura encolhida para o interior da cela. Sergei notou que Nico tinha sujado a bashta em algum momento durante a noite.
— Nico? — ele chamou novamente, e, novamente, não houve resposta.
Sergei pisou com cuidado sobre a palha suja no piso de pedra, colocou o rolo de couro na cama e caminhou em torno de Nico para ver seu rosto. Seus olhos estavam fechados, mas o peito subia e descia com a respiração. Suas mãos estavam entrelaçadas, e sua boca se mexia em torno do silenciador como se ele estivesse rezando.
— Nico! — chamou Sergei, mais alto desta vez, colocando-se contra a luz do sol, de maneira que sua sombra encobrisse o jovem.
Nico abriu os olhos estreitos e inchados lentamente, piscando ao ver Sergei.
— Você está horrível — disse o embaixador.
Nico soltou uma risada abafada pela mordaça.
— Deixe-me tirar o silenciador. Você promete que não tentará usar o Ilmodo?
Nico meneou a cabeça lentamente, e Sergei soltou as tiras do equipamento e o tirou da cabeça do jovem. Ele tossiu e engoliu em seco, limpando o rosto na manga da bashta desajeitadamente com as mãos acorrentadas.
— Obrigado — falou Nico.
Seu olhar se fixou no rolo de couro, depois no garda parado em silêncio perto da porta, com um sorriso ansioso no rosto.
— Por que eu acho que não há comida desta vez? Você quer me ouvir gritar? É isso?
— Não precisa ser assim — respondeu Sergei. — Não é... não é o que eu quero. Não de você. Mas nós precisamos dos ténis-guerreiros e eles dão ouvidos a você.
— E você acha que pode me torturar até me fazer cooperar.
Nico se levantou lentamente, massageando as pernas e fazendo uma careta. Sergei deu de ombros.
— Eu não acho. Eu sei. Já fiz isso muitas vezes.
— Ah, caro Nariz de Prata. Você gosta disso, não é, gosta de forçar uma pessoa a fazer o que não quer? — Estranhamente, Nico ainda sorria. — Você gosta da dor.
Sergei não respondeu. Ele caminhou até a cama e desatou os laços do rolo de couro, empurrando sua ponta para abri-lo. O garda riu ao ver o embaixador fazê-lo. Os instrumentos estavam todos ali, instrumentos estes que ele tinha colecionado e cuidado tão bem por longos anos, que tinha usado tantas vezes, com tantos prisioneiros. Sergei sabia que Nico também estava olhando para eles; sabia que o arrepio de medo estaria passando pelo corpo do jovem enquanto ele imaginava os objetos torcendo, arrancando e furando sua carne. Antes mesmo que Sergei puxasse a primeira ferramenta da presilha, Nico já estaria sentindo a dor.
Poderia ser esse o momento em que isso se alterava?
Mas não podia ser, não se ele quisesse salvar Nessântico.
Não dessa vez.
Mas Nico não estava olhando para o conjunto de instrumentos com o mesmo medo que um sem-número de prisioneiros tinha olhado. Ele olhou para os instrumentos com um olhar firme e, só então, voltou a olhar para Sergei, lentamente. Seus lábios rachados e inchados ainda se abriam em um sorriso, e através dos hematomas seus olhos não demonstravam medo.
Será que o rapaz enlouqueceu completamente?
— Qual vai ser o primeiro? — perguntou Nico. — Aquele ali?
Ele apontou para uma tenaz afiada.
— Ou aquele? — Seu dedo se moveu na direção do martelo de latão. — Você gosta muito desse, não é?
— Você vai assinar o documento? — perguntou Sergei. — Vai se postar em frente ao Velho Templo e se retratar? Dirá aos ténis-guerreiros que eles devem servir?
— Cénzi me enviou uma visão esta noite — Nico disse, informalmente, o que fez Sergei estreitar os olhos diante da evasiva. — Eu rezei viradas a fio, e Ele não me respondia. Quando Ele finalmente respondeu, foi estranho, e ainda não sei se entendi. Varina estava lá. E minha irmã.
— Nico — Sergei disse, gentilmente, como se estivesse falando com uma criança. — Preste atenção. Não há outra saída para você. Eu preciso da sua retratação. Preciso obtê-la em nome de Nessântico. Eu preciso dela para salvar vidas e para o bem de todos na cidade. Diga-me que você vai se retratar e nada disso acontecerá. Diga-me.
— Varina me disse que eu ainda possuo o Dom, que ele não foi tirado de mim.
— Nico...
Ele ergueu as mãos algemadas.
— Você disse que Varina salvou minha vida.
— Salvou, sim.
— Diga-me, meu caro Nariz de Prata, você acha que ela me salvou para isso?
O jovem apontou para a cama e os instrumentos sobre ela. As correntes retiniram sombriamente com o movimento.
— E é por causa de Varina que eu ainda não lhe forcei — explicou Sergei. — É por causa dela que ainda não forçarei; desde que você jure para mim, e por Cénzi, que se retratará. Mas não se iluda, Nico; não foi Varina quem poupou sua vida, mas a kraljica, a pedido de Varina. A kraljica permitirá que você viva se confessar seu erro; ela me deu autoridade para arrancar essa confissão de você caso se recuse, e mesmo assim você não...
Sergei ergueu as mãos. Ele tirou o martelo de latão da presilha, encaixando seu cabo.
— Se você não se retratar... então, depois, que eu terminar, você será entregue para o archigos. E eu posso lhe garantir que você não terá nenhuma compaixão.
— Nós dois acreditamos em Cénzi, embaixador. Ambos acreditamos que Sua vontade deve ser seguida.
— Eu não acredito que Cénzi fala comigo. — Sergei bateu com a ponta do martelo de latão em uma mão. — Eu faço o melhor que posso, mas não sou mais que um ser humano fraco. Eu faço o que acho que é o melhor para Cénzi, mas, principalmente, o que acho que é o melhor para Nessântico.
Nico assentiu. Ele virou as costas para o embaixador e arrastou os pés cuidadosamente em direção à sacada da cela. Ficou parado ali, olhando para fora.
— Eu podia me jogar — disse Nico para o ar. — Tudo estaria acabado em poucos instantes.
— Outros já fizeram isso. Se você fizer isso, eu assinarei uma confissão por você e mandarei que leiam em voz alta na praça. Não terá o mesmo efeito, mas pode ser o suficiente.
Nico sorriu, virando a cabeça para olhar para Sergei. Nesse momento, Sergei pensou que ele pularia. E não havia nada que ele pudesse fazer para detê-lo. No momento em que ele alcançasse o rapaz, seu corpo já estaria quebrado sobre as pedras do pátio abaixo e, mesmo que alcançasse, Sergei já não tinha força suficiente para segurá-lo, e ambos acabariam caindo.
Mas Nico não caiu. Ele respirou fundo, olhando para a cidade.
— Eu pensei ter visto minha irmã lá embaixo. — Nico disse para Sergei — Varina e minha irmã, e a pobre Liana, cujo único pecado foi me amar e me seguir; foi isso o que Cénzi me mostrou quando rezei para Ele.
Nico voltou a olhar para Sergei, com o rosto triste.
— Tudo o que eu quis, tudo o que eu sempre quis, foi servi-Lo, em gratidão pelo Dom que Ele me deu.
— Então sirva a Cénzi e admita que você estava errado.
— Como fazer isso? — perguntou Nico. — Como mudar de repente o que se fez por anos? Como?
Sergei se aproximou e parou ao lado dele. O embaixador se lembrava desta plataforma; se lembrava de todas as pedras que passou a conhecer tão bem quando esteve preso aqui. Nico estava chorando, e as lágrimas grossas deixaram um rastro em suas bochechas sujas.
— Eu não sei como — respondeu Sergei. — Só sei que você deve dar o primeiro passo.
O embaixador ainda segurava o martelo de latão. Ele ergueu o instrumento e o mostrou para Nico.
— Coloque suas mãos sobre o parapeito — mandou Sergei com severidade. — Obedeça!
O garda começou a se aproximar para forçar Nico a cooperar, mas Sergei acenou para ele permanecer afastado.
Nico, com as mãos tremendo nas correntes, colocou as mãos espalmadas sobre a pedra lascada, gasta pelo tempo, com os dedos bem abertos. Sergei ergueu o martelo. Ele podia imaginar a cabeça de latão esmagando carne e osso, o grito doce, muito doce, de agonia que Nico soltaria e a onda de prazer que ele sentiria com isso.
...e ele deixou o martelo cair de suas mãos, rolar pela beirada da sacada até bater nas lajotas lá embaixo. Lascas de pedra foram soltas, o cabo de madeira se partiu em dois; o martelo abriu uma fenda profunda na pedra. Os gardai a postos nos portões levaram um susto e olharam para o pátio.
— Venha comigo — disse Sergei para Nico. — Nós vamos até o Velho Templo. Acho que você tem algo a dizer.
Nico ergueu as mãos. Olhou fixamente para elas, surpreso, e cerrou os punhos.
Ele meneou a cabeça.
Jan ca’Ostheim
Jan observava a paisagem do alto de uma colina ao longo da Avi a’Sele, cerca de 25 quilômetros de Nessântico, sua mente dava voltas.
— Pelos colhões de Cénzi... — sussurrou o starkkapitän ca’Damont ao lado do hïrzg, e o comandante Eleric ca’Talin soltou uma risada solidária ao ouvir o palavrão.
— É bastante impressionante, não é? — comentou o comandante. — Eles estão enxameando a estrada, há cerca dois ou três quilômetros de cada lado. Eu recebi relatórios dizendo que algumas companhias de guerreiros tehuantinos cruzaram o A’Sele e agora estão se aproximando pelo lado sul também. Não conseguimos fazer mais do que incomodá-los, muito menos detê-los.
Jan tinha visto exércitos marchando antes, mas raramente tinha visto uma força tão grande. Os ocidentais estavam espalhados à frente deles, parecendo pontinhos escuros como formigas caminhando pela estrada e pelos campos cultivados em ambos os lados do rio. As escamas costuradas em suas armaduras de couro e bambu reluziam sob a luz do sol. Eles fizeram o exército atrás do comandante ca’Talin parecer apenas um esquadrão solitário. A força firenzciana que chegaria tinha pouco mais que a metade de soldados que os tehuantinos.
— Eu me sinto melhor agora que nós temos ao menos alguns punhados de ténis-guerreiros conosco — continuou ca’Talin — e um abastecimento de areia negra adequado, mas esses feiticeiros ocidentais são muito poderosos, e nós já vimos o que suas armas de areia negra podem fazer contra as muralhas da cidade. Eles romperam as defesas de Villembouchure como ratos mordendo queijo cremoso; eu só consegui defender a cidade durante um único dia e tornar a vitória tão cara para eles quanto pude. Mesmo assim, eles me forçaram a recuar, ainda que somente para preservar o que sobrou das minhas tropas para que eu pudesse perturbá-los a caminho daqui.
O comandante balançou a cabeça e prosseguiu.
— Se eu achasse que tínhamos chances reais de diminuir o número de ocidentais de maneira significativa, eu teria dito para trazer nossas tropas para cá para enfrentar os tehuantinos aqui e agora, antes que eles chegassem a Nessântico. Nós temos a vantagem da altitude, e além dessas colinas, o terreno é plano diante de Nessântico, e teremos menos margem de manobra. Mas se fizermos isso e falharmos, então teremos abandonado as defesas da cidade àqueles que conseguirem sobreviver e recuar, e à Garde Kralji. Se os senhores tiverem alguma estratégia melhor, hïrzg, starkkapitän, eu adoraria ouvi-la.
Ca’Damont balançou a cabeça grisalha. Jan olhou para baixo.
— Vejam — disse ca’Talin. — Eu despachei um grupo de chevarittai para atacar o flanco esquerdo deles, perto do rio onde eles estão expostos. Eles estão naquele arvoredo...
Antes que o comandante terminasse de falar, um grupo de cavaleiros em cotas de malha saiu correndo da proteção das árvores, disparando na direção de um grupo de guerreiros tehuantinos, que se afastou ligeiramente da força principal. Eles viram os guerreiros ocidentais empunharem suas lanças e firmá-las contra o ataque. Mas o chevaritt da ponta lançou alguma coisa que brilhou sob o sol na direção das fileiras da vanguarda. Aquilo explodiu e se despedaçou ao atingi-los. Eles viram o brilho da explosão e a fumaça subir das fileiras tehuantinas antes que o som da explosão chegasse, um trovão que ecoou na encosta do morro. Havia uma brecha na fileira de lanças, havia vários tehuantinos caídos no chão. Os chevarittai entraram nessa brecha; espadas e lanças tilintaram, mas os outros guerreiros corriam em direção à brecha e feiticeiros com capacetes emplumados erguerem seus cajados mágicos. Raios brilharam, e — com uma chamada estridente de uma corneta — os chevarittai recuaram pela brecha que tinham aberto na linha. Havia apenas seis deles agora, acompanhados de dois cavalos sem cavaleiros, e mais dois cavalos abatidos. Eles correram de volta para a proteção das árvores enquanto flechas choviam sobre eles — Jan viu outro cavaleiro cair diante do ataque pouco antes deles alcançarem o arvoredo.
Então o combate acabou.
— Cinco mortos — falou ca’Talin. — Mas pelo menos o dobro desse número foi abatido entre os ocidentais. Mesmo assim... — O comandante umedeceu os lábios. — Essa não é uma margem de perda que podemos sustentar. Há bravura, e nossos chevarittai têm isso em abundância, e estupidez nessa ideia. Nós podemos eliminar os tehuantinos um punhado por vez, mas mesmo que façamos isso, eles estarão diante dos portões de Nessântico em cinco dias, nesse ritmo. Com a areia negra que eles têm, não conseguiremos impedir a entrada dos tehuantinos... e se eles conseguirem fazer em Nessântico o mesmo que fizeram em Karnmor... — Ca’Talin deu de ombros. — Eu agradeço a Cénzi por sua reconciliação com a kraljica, hïrzg Jan. Sem Firenzcia, nós estaríamos condenados. Mesmo com seu apoio, nada está garantido. Eu cedo o controle da Garde Civile ao senhor, e vou cooperar com o senhor e o starkkapitän de qualquer modo.
— Obrigado, comandante — falou Jan. — Minha matarh escolheu bem quando lhe nomeou comandante e tem sorte de ter alguém com sua capacidade ao seu lado. Você fez tão bem quanto se podia esperar. Ninguém poderia ter feito melhor.
O starkkapitän ca’Damont concordou com a avaliação.
Jan olhou novamente para a formação mortal diante deles, depois para a terra atrás de si: para a Avi A’Sele serpenteando entre as florestas até desaparecer. Ele viu, vagamente, os telhados de Pre a’Fleuve sobre os topos das árvores distantes. Nessântico ficava a apenas alguns quilômetros de distância dali. Em algum ponto imediatamente a oeste da cidade, o exército do hïrzg estaria quase vendo Nessântico, cansado pela longa marcha acelerada desde Firenzcia.
Ao sul, o grande leito do rio A’Sele serpenteava pelo cenário ondulante, indiferente ao drama acontecendo tão perto dele. Caso os Domínios ou os tehuantinos vencessem, o rio continuaria fluindo para o mar, tranquilo e indiferente.
— Eu concordo com a sua avaliação, comandante — disse Jan. — Não podemos enfrentá-los aqui, não com as tropas que temos, embora seja uma pena, já que temos a vantagem da posição elevada. Mesmo assim, acho que ainda podemos atrasá-los. Precisamos de mais tempo para nos preparar, para minhas tropas chegarem e descansarem, e para Sergei conseguir mais ténis-guerreiros aqui também. Nós enfrentaremos a força principal dos tehuantinos fora de Nessântico porque esta é nossa única opção, mas acho que também vamos dar uma mostra do que eles vão enfrentar... ao menos para ver como os inimigos vão reagir. Starkkapitän, comandante, vamos nos recolher para as tendas e fazer nossos planos...
Niente
Nos últimos dias, os orientais tinham fustigado as forças tehuantinas, cortando seus flancos periféricos como cães raivosos e recuando, sem nunca enfrentá-las completamente. Niente ficou curioso com a tática — os orientais ainda mantinham sua posição elevada, enquanto a maioria dos guerreiros tehuantinos estava concentrada ao longo da estrada e nos campos que a ladeavam, nos vales desta terra. Ele sabia que, se Citlali fosse o general oriental, ele teria feito cair tempestades de flechas sobre eles, teria lançado feitiços dos céus em direção aos inimigos, teria enviado ondas de soldados morro abaixo. Citlali teria forçado uma batalha decisiva contra eles enquanto mantinha a vantagem do terreno.
Mas os orientais tinham usado seus arcos apenas algumas vezes enquanto eles passavam pelos desfiladeiros. Eles enviaram somente pequenos grupos de cavaleiros que tentaram eliminar esquadrões afastados do corpo principal do exército. Raramente usavam seus feiticeiros.
Talvez Atl estivesse certo. Talvez o melhor caminho fosse aquele que levava à vitória aqui. Talvez eles conseguissem dar um golpe tão devastador no império dos orientais que os inimigos jamais conseguiriam forçar a retaliação horrível que Niente tinha visto na tigela premonitória.
Talvez.
Niente se arrastou com o resto dos nahualli no comboio do nahual Atl. Seus pés doíam, suas pernas tremiam de cansaço sempre que eles paravam, ele se perguntava se conseguiria manter esse ritmo lento até chegarem à cidade. Como nahual, Niente cavalgava, raramente andava, mas agora... A maioria dos outros nahualli o ignoravam, como se ele fosse invisível. Quando Niente era o nahual, eles se dispunham a procurá-lo, pedindo conselhos, ouvindo o que ele tinha a dizer. Não mais. Agora Niente via os nahualli bajularem seu filho como o tinham feito com ele. Ele via Atl se deleitar com a adoração dos nahualli. Viu a inveja em seus corações e a avaliação em seus olhares tentando encontrar qualquer fraqueza que pudessem explorar em Atl.
Eles se comparavam a Atl assim como tinham se comparado a Niente, para saber se um dia poderiam se tornar o nahual.
— Taat!
Niente ouviu Atl chamá-lo e apressou o passo enquanto eles andavam, passou pelos nahualli alcançou o filho — montado sobre o cavalo em que o próprio Niente tinha cavalgado —, a seis cautelosos passos atrás do tecuhtli Citlali, no meio do comboio.
— Nahual — disse Niente, percebendo-se secretamente contente ao ver a dor nos olhos do filho quando ele o chamou pelo título. — O que o senhor precisa?
— O senhor usou a tigela premonitória ontem à noite?
Niente balançou a cabeça. Ele não usava a tigela desde que abdicara ao título. Ainda sentia o peso dela na bolsa de couro pendurada no ombro. Atl franziu os lábios ao ouvir a resposta. Niente achava que o filho já parecia visivelmente mais velho desde que eles saíram de sua própria terra: o preço pelo uso da visão premonitória. Com o tempo — pouquíssimo tempo — ele ficaria tão emaciado, velho e cheio de cicatrizes quanto Niente estava agora. Seu rosto seria um horror, uma lembrança permanente do poder de Axat. Um dia, Atl perceberia que todos os avisos de Niente eram verdadeiros.
Niente tinha esperanças de não estar vivo para ver esse dia.
— Eu vejo pouca coisa na minha própria tigela — disse Alt, sussurrando para que só os dois pudessem ouvir. — Está tudo confuso. Há tantas imagens, tantas contradições. E o tecuhtli Citlali não para de perguntar o que eu acho das estratégias dele.
Novamente, Niente sentiu uma culpa por sua satisfação.
— Você ainda vê a nossa vitória?
O filho assentiu.
— Sim, mas...
— Mas?
Atl deu de ombros, incomodado. Ele olhou para frente, desviando o olhar de Niente.
— Eu tinha tanta certeza, taat. Logo depois de Karnmor, eu quase consegui tocar, era tudo tão nítido. Mas, desde então, as brumas começaram a cobrir tudo, há sombras avançando sobre o futuro e forças que não consigo distinguir exatamente. A situação piorou desde, bem, desde que o senhor abdicou.
— Eu sei — disse Niente. — Eu senti essas forças, e as mudanças também.
Atl voltou a olhar para Niente, erguendo o braço direito ligeiramente, de maneira que o bracelete de ouro do nahual brilhou brevemente.
— Não era isso o que eu queria, taat. Eu preferia que o senhor ainda estivesse usando isso, essa é a verdade. Eu só... eu sei o que vi na tigela, e não era o que o senhor tinha dito que vira.
— Eu também sei disso.
— O senhor teria conseguido me matar, se tivéssemos lutado como o tecuhtli queria?
Niente assentiu.
— Sim.
Sua resposta foi rápida e certeira. Sim, ele ainda era mais poderoso que o filho com o X’in Ka. Mesmo agora. Niente tinha certeza disso.
— Mas eu não teria feito isso. Não teria matado meu próprio filho para manter o título de Nahual. Não teria conseguido.
Atl não respondeu. Ele pareceu ponderar sobre isso.
— Eu preciso da sua ajuda, taat. O senhor foi o nahual por tanto tempo. Preciso de seu conselho, da sua opinião, do seu conhecimento.
— E o terá — ele disse, e pela primeira vez em dias, Niente sorriu.
Aos poucos, Atl devolveu o gesto.
— Ótimo — disse o jovem. — Então esta noite, quando nós pararmos, ambos usaremos nossas tigelas premonitórias e conversaremos sobre o que virmos, e assim eu poderei dar o melhor conselho possível para o tecuhtli Citlali. O senhor fará isso comigo, taat?
Niente deu um tapinha na perna do filho.
— Farei.
— Ótimo. Então está combinado. Você! — Atl chamou um nahualli. — Vá encontrar um cavalo para o uchben nahual. Eu preciso falar com ele e usufruir de sua sabedoria, o uchben nahual não deve andar. Depressa!
Uchben nahual — o Velho Nahual.
Niente poderia ser isso. Poderia servir dessa forma.
Se esse era o papel que Axat tinha lhe dado, ele o encenaria.
Varina ca’Pallo
Ela talvez tivesse compreendido de maneira instintiva se tivesse tido filhos com Karl, mas isso nunca aconteceu. Mas Karl tinha filhos, em Paeti.
— É diferente com os próprios filhos — Karl tinha dito, certa vez. — Não importa o que eles façam; há muito pouco que eles possam fazer, mesmo coisas horríveis, para mudar o sentimento que se tem por eles. É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Varina pensou que talvez tivesse compreendido isso, finalmente.
Ela abordou Sergei após a reunião com o hïrzg Jan e puxou a bashta do velho Nariz de Prata quando os dois saíram do palácio.
— Se você machucá-lo, Sergei, eu jamais lhe perdoarei. Jamais. Não importa há quanto tempo nós somos amigos. Se você torturá-lo, eu jamais lhe chamarei de amigo novamente.
O embaixador tinha uma expressão sofrida, suas rugas estavam acentuadas em volta de seu nariz falso e dos olhos.
— Varina, os ténis-guerreiros...
— Eu não me importo — respondeu ela. — Lembre-se de que Karl e eu arriscamos nossas vidas para salvá-lo do mesmo destino. Pague a dívida agora.
Sergei apenas balançou a cabeça.
— Eu não posso prometer nada — respondeu ele. — Lamento, Varina. Nessântico precisa dos ténis-guerreiros.
Era estranho como Nico se tornara o filho que ela nunca teve. O filho que Varina não viu por anos após a primeira invasão de Nessântico. O filho que odiava tudo em que ela e Karl acreditavam e pelo que os dois lutaram por décadas. O filho que parecia perfeitamente à vontade com a ideia de matá-la por suas próprias convicções.
É possível odiar suas ações, mas é impossível odiá-los.
Ela não podia odiá-lo. Não fazia sentido, mas os sentimentos estavam ali.
O pajem veio do palácio até a Casa dos Numetodos para entregar-lhe uma carta da kraljica.
— A kraljica exige sua presença no Velho Templo em uma virada da ampulheta — disse o pajem.
Ele fez uma mesura e foi embora. A carta não informava muito mais, apenas que a própria Allesandra estaria lá, e que a kraljica exigia a presença de Varina tanto como amiga quanto como integrante do Conselho dos Ca’, e que o archigos também estaria presente. Ela sabia que devia ser algo a respeito de Nico. O pensamento a aterrorizou.
Varina não tinha certeza do que faria se ele tivesse sido abusado, de como reagiria. Ela não sabia o que podia fazer, uma vez que Talbot já tinha começado a fabricar as chispeiras para a Garde Kralji e Garde Civile. Seu único trunfo estava perdido.
Varina ouviu o barulho da carruagem com a insígnia da Garde Kralji no espaço aberto da praça. Uma plataforma tinha sido erguida próximo à fachada frontal do Velho Templo, que estava escurecida e arruinada, com um palanque a cerca de cinco passos de distância dela. A plataforma era grande o bastante para que apenas algumas pessoas subissem; no centro, havia um pilar de madeira com correntes. Allesandra já estava sentada no palanque com uma unidade de gardai da Garde Kralji a sua volta; também havia um mar de ténis presentes. O archigos Karrol, se estivesse realmente assistindo, provavelmente estaria em outro lugar qualquer — Varina se perguntou se a kraljica insistira nisso. Atrás dos ténis havia uma grande multidão de espectadores, como se este fosse um feriado e eles estivessem ali para uma comemoração. Estavam estranhamente silenciosos, os cidadãos de Nessântico; Varina não tinha ideia do que eles poderiam estar pensando ou quais seriam suas afinidades.
Varina quis caminhar em direção à carruagem, pois sabia que Nico estaria lá dentro, mas Allesandra fez um gesto para ela do palanque e Talbot já havia se aproximado.
— Siga-me, a’morce — falou ele.
Varina olhou novamente para a carruagem, depois acompanhou Talbot até plataforma, e os gardai abriram caminho à medida que os dois subiram o pequeno conjunto de degraus. Ela fez uma mesura para Allesandra, depois para os outros integrantes do Conselho dos Ca’, que estavam sentados imediatamente atrás da kraljica.
— Sente-se aqui, minha querida — disse Allesandra, gesticulando para um assento a sua direita.
O assento à esquerda estava vago; Varina se perguntou se o archigos Karrol deveria estar sentado ali — o que também a deixou curiosa sobre o significado de colocar o archigos à esquerda, uma posição inferior, mas então Talbot se sentou ali.
A carruagem — com as janelas cerradas, para que ninguém visse seu interior, e sendo puxada por um único cavalo preto — se aproximou da lateral da plataforma menor. Gardai se aproximaram e cercaram o veículo, dois deles abriram a porta. À frente da kraljica, Sergei era ajudado a descer. Apoiado na bengala, ele fez uma mesura para o palanque com os dignitários, e deu a volta até o outro lado da carruagem. Varina vislumbrou a cabeça de Nico sobre o teto do veículo, em seguida viu o corpo dele quando subia a escada ao lado de Sergei. Nico estaria mancando ou aquilo era por causa das correntes que prendiam seus tornozelos e mãos? Havia hematomas em seu rosto, mas pareciam antigos, não recentes, e não havia mutilações notáveis. A cabeça estava livre da gaiola terrível do silenciador. Ele pareceu se inclinar na direção de Sergei quando eles chegaram ao topo da plataforma e dizer algo para o homem. Deu a impressão de quase sorrir ao olhar para a multidão — seria esta uma reação de alguém que fora torturado?
Agora Nico também encarava a kraljica, ele se curvou na direção dela, fazendo o sinal de Cénzi como pôde com as mãos algemadas.
— Kraljica, conselheiros — disse Nico.
Ele parecia vasculhar a multidão. Varina se perguntou se ele estava procurando pelo archigos.
— E, especialmente, ténis. Eu vim implorar por seu perdão e compreensão.
Sua voz era tênue e continha apenas uma reminiscência do poder de que Varina se lembrava. Ele parecia cansado e exausto, mas levantou a cabeça e encarou cada um deles, e seus olhos encontraram todos eles, um a um. Varina sentiu um choque quando o olhar de Nico chegou a ela. Ele sorriu novamente, acenando ligeiramente com a cabeça para Varina, e ela não conteve o sorriso. Então o olhar de Nico se desviou, e Varina pensou que ele manteve seu olhar por muito tempo nos cidadãos atrás dos ténis. Ela se virou um pouco para ver quem tinha chamado a atenção de Nico, mas ele finalmente pigarreou e começou a falar novamente.
— Eu agi com a convicção de que estava fazendo o que Cénzi exigia de mim — disse Nico, mais alto. — Nada mais. Eu digo isso não para justificar meus atos, apenas para que entendam que não havia maldade neles, apenas fé. Uma fé terrivelmente equivocada.
Sua voz se inflamou com as últimas poucas palavras. Elas tremeram, pulsaram, ecoaram entre os baluartes dos prédios ao redor da praça com uma clareza impossível. Varina olhou a sua volta para tentar descobrir se havia algum téni entoando um cântico, adicionando o poder do Ilmodo às palavras, mas não notou nenhum movimento entre as fileiras de robes verdes e percebeu que isso devia estar vindo do próprio Nico. Ela se perguntou se Sergei teria se dado conta de que Nico podia usar o Ilmodo mesmo com as mãos acorrentadas, como nenhum téni podia fazer. A cabeça da própria Allesandra se moveu para trás como se tentasse escapar do som, e agora Sergei olhava para Nico, inclinando a cabeça, como se estivesse intrigado.
— Eu pensei que fosse a Voz de Cénzi — continuou Nico. — Pensei que era o Absoluto. Mas não era. Na verdade, era a minha própria voz que eu escutava, meu próprio ódio e preconceito. Peço desculpas a todos que me ouviram na ocasião, e eu lhes digo o seguinte: eu era, de maneira completamente involuntária, um falso profeta e teria sido melhor se vocês não tivessem me escutado. Eu poderia ainda ter o amor da pessoa mais importante da minha vida se não tivesse sido tão tolo.
Varina ouviu sua voz embargar e pensou em Serafina — ela tinha deixado o bebê dormindo na Casa dos Numetodos, sob os cuidados da ama de leite Belle.
— Eu peço desculpas a vocês — prosseguiu Nico — e lamento profundamente pelo que fiz. Seus pecados estão em minha cabeça, e quando Cénzi me chamar, eu vou responder por eles. Eu libero vocês. Eu lhes digo agora: sigam seu archigos. Sigam sua kraljica e seu hïrzg.
— Pronto — sussurrou Allesandra para Varina. — Foi para isso que viemos. Temos que lhe agradecer por isso, Varina...
A kraljica parecia estar pronta para se levantar e responder, mas Nico tinha tomado fôlego e agora sua voz emanava gelo e fogo ao mesmo tempo.
— Eu acreditava — ele disse. — E ainda acredito. Eu rezei durante dias pedindo pela Sua orientação. O que eu percebi é que o dom que Cénzi me deu não é limitado às leis e restrições que a fé concénziana me impingiu. A revelação de Cénzi para mim, ao despertar da minha estupidez, foi ao mesmo tempo esclarecedora e libertadora.
Nico ergueu as mãos acorrentadas como se as oferecesse para o céu.
— Eu permiti que o archigos e as pessoas da fé concénziana acorrentassem e prendessem meu dom com seus grilhões humanos quando, na verdade, Cénzi não coloca tais limitações nele. E isso os numetodos sabiam desde o princípio, justiça seja feita... — nesse momento, o olhar de Nico encontrou o de Varina novamente, e ele abriu um sorriso largo para ela. — Foi o que eu finalmente percebi e é isso o que eu demonstrarei para vocês agora.
Varina ficou de pé.
— Nico, não... — ela começou, mas sua voz não se comparava a de Nico e já era tarde demais.
As mãos dele ainda estavam erguidas, ele fez um único gesto, com ambas unidas, e berrou uma única palavra — uma palavra na língua do Ilmodo, do Scáth Cumhacht, do X’in Ka. Uma escuridão, um fragmento de noite sem estrelas e sem lua, pareceu envolvê-lo, o escondendo. Sergei soltou um grito e estendeu o braço na direção de Nico, apenas para recuar a mão soltando um grito ao tocar a escuridão. Os gardai fizeram o mesmo e, quando eles tocaram a escuridão, a noite falsa em que Nico estava envolvido de repente desapareceu.
E onde ele estava, foram encontradas apenas as correntes que o tinham prendido, caídas nas tábuas de madeira da plataforma. Nico tinha desaparecido.
Varina piscou.
— Bem — comentou ela —, parece que ele me ouviu mais do que eu esperava.