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Series & Trilogias Literarias
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.
CONTINUA
ERUPÇÕES
Sergei ca’Rudka
Nico Morel
Sergei ca’Rudka
Allesandra ca’Vörl
Varina ca’Pallo
Niente
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Brie ca’Ostheim
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Sergei ca’Rudka
Sergei revirou os argumentos em sua cabeça enquanto seguia em sua carruagem em direção ao Palácio da Kraljica. O almoço de negócios, suspeitava ele, não correria bem. Allesandra não parecia estar inclinada a aceitar o ramo de oliva oferecido pelo filho se isso significasse nomeá-lo como herdeiro. Ter Erik ca’Vikej como confidente e (como Sergei temia) amante certamente não ajudaria. Por sua vez, Jan não parecia inclinado a ouvir a opinião mais ponderada de Brie e cessar as rondas nas fronteiras com o exército firenzciano.
Haveria guerra se Sergei não conseguisse intermediar um acordo entre matarh e filho, e a guerra seria desastrosa para Nessântico. Ele temia não ter tanto tempo ou energia restantes para esse esforço. Sentia-se velho. Sentia-se cansado. Sentia-se vazio. Conforme a carruagem sacudia por sobre os paralelepípedos da Avi a’Parete, Sergei sentia cada movimento como se fosse um golpe em seu corpo velho.
Ele deslizou os dedos por sob a aba da bolsa diplomática no assento ao seu lado, para tocar novamente a carta selada ali dentro. Como ele poderia enquadrar melhor as palavras destemperadas de Jan? Como ele deveria responder à provável fúria de Allesandra ao lê-las? Mais uma vez, ele perpassou a provável conversa em sua mente, com os olhos fechados e a cabeça recostada no assento estofado.
Sergei percebeu de repente que a carruagem estava parada. Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça.
— Já chegamos ao palácio? — perguntou Sergei ao condutor, surpreso.
Teria ele dormido? Estaria assim tão exausto?
— Não, embaixador — respondeu o homem. — Eu acho... acho que o senhor deveria ver isto.
Sergei levantou o vidro da janela da carruagem, colocou a cabeça para fora, olhando ao redor. Eles ainda estavam na Avi, quase se aproximando da extremidade sul da Pontica a’Brezi Veste. Outras carruagens também tinham parado, e muitas pessoas na multidão olhavam boquiabertas para o oeste. No banco acima de Sergei, o condutor apontou na mesma direção.
Sobre os telhados de Nessântico, uma escuridão tinha surgido a oeste. Ela já começava a bloquear o sol: como uma cunha de estranhas, espiraladas e encaracoladas nuvens tempestuosas desprovidas de relâmpagos ou trovões, e se movendo tão rápido que pareciam mais velozes que o vento. A borda da fumaça já estava diretamente sobre Sergei, mascarando o sol. Fez-se um falso anoitecer, e o ar sob a tempestade era estranhamente quente. Algo estava caindo, mas não era chuva: flocos cinzentos que quase pareciam com uma improvável neve. Sergei pegou alguns flocos na palma da mão, tocando-os com a ponta dos dedos: eles se desmancharam em sua pele como cinzas secas.
— Condutor! Siga em frente — gritou ele. — Depressa, homem!
O condutor assentiu e estalou o chicote sobre as costas do cavalo.
— Arre! — berrou o homem para o animal.
A carruagem começou se mover outra vez, balançando freneticamente. Sergei deixou a aba sobre a janela cair novamente.
Ele esperava que sua suposição estivesse errada.
No palácio, Sergei desembarcou no que parecia ser uma noite precipitada. As cinzas caíam mais intensamente agora, e as nuvens cobriam inteiramente o céu. Os criados corriam de um lado para o outro para acender as lanternas, e Talbot se dirigiu apressadamente da entrada do palácio até a carruagem de Sergei.
— Por aqui, embaixador, a kraljica está esperando.
Sergei agarrou a bolsa diplomática e andou o mais depressa que pôde com sua bengala, arrastando seus pés ao lado de Talbot, que o conduziu através dos corredores particulares e por um lance de escada que os levou até uma câmara no lado oeste do palácio. Lá, Allesandra estava parada perto da sacada da câmara. Erik ca’Vikej estava com ela. Sergei fez uma mesura para os dois, enquanto Talbot o anunciava e fechava as portas da câmara, e se dirigiu para onde a kraljica estava. Ela olhava para os jardins do palácio, que já estavam cobertos pela neve cinzenta.
— Monte.Karnmor — disse Allesandra quando o embaixador se aproximou.
Sua voz estava abafada pelo lenço de renda que ela segurava sobre o nariz e a boca.
— É o que isso deve ser. Talbot diz que há registros da época do kraljiki Geofrai que falam sobre como a face norte da montanha explodiu e desabou. Dizem que as cinzas chegaram a cair em Brezno.
— E Karnor? — perguntou Sergei.
Ela balançou a cabeça.
— Não tivemos notícias deles ainda. Elas podem levar dias para chegar.
Sergei ouviu Allesandra respirar fundo; ele sentiu o gosto de cinzas no ar.
— Se é que vão chegar — completou a kraljica.
Ela deu as costas para a sacada; Erik fechou as portas acortinadas. Isso pouco alterou a iluminação da sala, com algumas velas acesas e uma lâmpada mágica posta sobre o consolo da lareira.
— Esse é um terrível presságio — disse Allesandra. — Nós devemos rezar pelas pessoas de Karnor e de todas as cidades da ilha. E por falar nisso, se o que Talbot suspeita estiver certo, então a situação pode até mesmo piorar para quem estiver tão longe quanto em Fossano.
Sergei viu ca’Vikej acariciar o braço de Allesandra furtivamente, do lado oposto ao do embaixador. Sim, eles são amantes agora... Allesandra parecia preocupada e cansada. Ela respirou fundo outra vez e enfiou o lenço na manga da tashta.
— Você tem alguma coisa para mim? — ela perguntou.
Sergei entregou a bolsa para a kraljica. Ela retirou a carta e examinou o selo, em seguida, rompeu o lacre de cera do papel e abriu o envelope. Allesandra leu o documento lentamente. Ca’Vikej leu sobre o ombro dela, que pareceu não se importar ou notar. Sergei viu os pequenos músculos de seu maxilar se retesarem enquanto ela lia.
— Você sabe o que a carta diz? — perguntou Allesandra finalmente.
Ela dobrou o pergaminho novamente e o colocou no envelope.
Sergei olhou deliberadamente para ca’Vikej, sem responder. Allesandra acenou com o envelope.
— Pode falar. Afinal, como candidato ao trono da Magyaria Ocidental, Erik tem um interesse pessoal no assunto.
“Erik...” Ela o chama pelo primeiro nome.
— Então, sim, kraljica, o hïrzg me contou o que pretendia dizer para a senhora.
— Então nada mudou.
Sergei ergueu os ombros. E passou um dedo sobre a borda do nariz falso.
— O hïrzg mantém sua oferta original: nomeá-lo como seu herdeiro, e após sua morte os Domínios se uniriam automaticamente à Coalizão. Eu disse para ele que isso é inaceitável, mas... — Outro erguer de ombros. — Eu não consegui convencê-lo do bom senso de sua oferta alternativa.
— Não conseguiu convencê-lo — repetiu Allesandra com os lábios franzidos. — Sem dúvida você se empenhou de maneira impressionante.
Ela não se esforçou em esconder o tom de escárnio em sua voz.
— Kraljica, eu não tentei esconder minhas preferência nessa situação. E acho que nomear o hïrzg como seu herdeiro seria o melhor para os Domínios. Mas, como embaixador, minhas opiniões não importam. Eu representei a senhora e os Domínios dando o melhor das minhas poucas habilidades. — Ele espalmou suas mãos. — Se a senhora acha que outra pessoa faria melhor, então receberá meu pedido de demissão nesta tarde.
Ca’Vikej se virou rapidamente, dirigindo-se até a porta da sacada e afastando a cortina para olhar para as cinzas cadentes. Allesandra encarou Sergei e, em seguida, balançou a cabeça quase que imperceptivelmente.
— Isso não será necessário — ela disse. — Eu acredito em você, Sergei.
Allesandra olhou para a sacada, onde ca’Vikej continuava olhando para fora.
— É que esse dia horrível me deixou tensa. Alguns criados estavam dizendo que ouviram uma série de estrondos vindos do oeste esta manhã, e agora isso...
Sergei inclinou a cabeça na direção dela.
— Obrigado, kraljica. Eu odiaria pensar que a senhora acredita que representei os Domínios ou a senhora mal.
O embaixador fez uma pausa. Ela tinha amassado a carta em sua mão.
— Talvez — sugeriu Sergei delicadamente —, pudéssemos concordar provisoriamente com a oferta do hïrzg de negociação em pessoa, em Ville Colhem? Se ele acreditar que estamos levando adiante algum tipo de reconciliação, talvez fique menos agressivo com as incursões pelas fronteiras dos Domínios?
Allesandra fungou desdenhosamente e abanou a mão. Ca’Vikej tinha voltado a se postar ao lado dela. Sergei viu a kraljica se inclinar ligeiramente na direção dele.
— Talvez — falou Allesandra. — Eu terei que pensar sobre isso e consultar o Conselho.
E ca’Vikej, pensou Sergei. Ele sorriu para a kraljica e fez uma mesura novamente.
— Então, com sua licença, vou deixá-la com suas conferências, com licença, kraljica, vajiki.
Sergei acenou para os dois e arrastou os pés até a porta, na qual bateu com o punho da bengala e o criado do corretor a abriu. Sergei fez uma última mesura e saiu da câmara. Não muito tempo depois, o embaixador estava do lado de fora, sob a falsa noite, onde as cinzas caíam de um céu cinzento sobre edifícios cinzentos.
Sua carruagem se aproximou ruidosamente da entrada do palácio. O condutor abriu a porta para ele. Sergei iria à Bastida. Isso melhoraria seu humor.
Era um dia de dor. Um dia de perda.
Nico Morel
A falsa noite se estendeu até a tarde, juntando-se à sua verdadeira prima.
Os cidadãos de Nessântico amarraram panos em volta do nariz e da boca para afastar as cinzas, tossindo em meio ao ar fétido. Alguns dos que já tinham dificuldades para respirar sofriam mais do que as pessoas saudáveis ou até mesmo sucumbiam. A a’téni ca’Paim mandou os ténis-luminosos acenderem os postes da Avi a’Parete pouco depois da Segunda Chamada e teve de mandar uma segunda vez para renovarem o brilho depois da Terceira Chamada. Os moradores do Velho Distrito avançavam por uma camada de cinzas quase tão espessa quanto a primeira junta do dedo indicador de Nico.
E Nico rezou, agradecendo a Cénzi por enviar este sinal, o sinal incontestável de que Ele estava furioso com a Fé por sua incapacidade em seguir a Divolonté e o Toustour, e por sua tolerância com aqueles que O negaram. Eles se lembrariam das palavras de Nico — aqueles que o tinham ouvido discursar no parque e aqueles que tinham ouvido falar da profecia — e perceberiam a verdade dita por ele.
A verdade de Cénzi. A verdade eterna.
Morte e escuridão. Cénzi os tinha envolvido em ambas.
— Nico?
Ele sentiu Liana surgir atrás de si enquanto estava ajoelhado perante o altar do quarto, sentiu a sua mão tocar delicadamente em seu ombro. Nico sentiu um arrepio, seus olhos voltaram a focar o ambiente. Ele tossiu, a secura deixara sua garganta irritada. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado ajoelhado ali — Nico ouviu as trompas anunciarem a Terceira Chamada, mas isso podia ter ocorrido há várias viradas da ampulheta. Parecia que o tempo tinha deixado de existir em meio à escuridão.
— As cinzas pararam de cair — ela o informou, com a máscara que estava usando pendurada no pescoço. — Há pessoas na rua, lá fora. Muita gente. Ancel disse que eu deveria vir buscar você.
Ele tentou se levantar, mas descobriu que não conseguia; suas pernas não queriam cooperar. Liana colocou suas mãos sob as axilas de Nico e o ajudou cambaleando até a cama, onde ela massageou suas pernas para tirar a dormência.
— Você não come nada há duas viradas — falou Liana. — Eu trouxe um pouco de pão, queijo e vinho. Coma um pouco antes...
Nico fez o que ela sugeriu e percebeu como seu estômago estava contraído à primeira mordida. Ele cortou as fatias de queijo do bloco amarelo pálido e rasgou o pão. O vinho aliviava a aspereza em sua garganta.
— Obrigado — agradeceu ele a Liana. — Eu estou melhor agora. Como você tem lidado com tudo isso?
Nico ergueu Liana, que estava ajoelhada diante dele. Ela teve um sobressalto nesse momento.
— O bebê acabou de chutar — disse Liana. — Aqui, sinta...
Ela colocou a mão de Nico sobre a sua barriga, e ele sentiu a pressão de uma mão ou pé sob seus dedos. Nico tinha certeza de que, se olhasse para o estômago de Liana, teria visto o contorno desse pé ou mão na pele esticada da mulher.
— Agora não falta muito, pequenino — sussurrou ela para a criança. — Você sairá para ver seu vatarh e matarh.
Nico inclinou-se para beijar Liana, e ela sorriu.
— Você disse que Ancel...
Liana suspirou e pegou sua mão. Nico se levantou, com as pernas ainda formigando pela longa permanência em oração, e a seguiu para fora da sala.
Ancel esperava pelos dois na varanda da casa que eles tinham tomado nas entranhas do Velho Distrito. As estrelas e a lua sobre eles ainda estavam ocultas pelas nuvens e cinzas, mas a chuva de cinzas, como Liana dissera, tinha parado. Ainda assim, o corrimão da entrada estava coberto de pó, e os pés levantavam pequenas nuvens ao andar.
E na rua...
Havia pelo menos uma centena de pessoas na rua, talvez mais — era difícil precisar em meio à escuridão, mas elas preenchiam a rua estreita e se espalhavam entre as casas dos dois lados. Misturados entre eles, Nico viu vários robes verdes, com as cores obscurecidas pela noite e pelas manchas de cinzas. Eram pessoas de todas as idades, tanto homens quanto mulheres. E olhavam para a casa, em silêncio, mas Nico permaneceu nas sombras da varanda olhando para eles.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Nico para Ancel, que apenas balançou a cabeça.
— Eu não sei, Absoluto. Eles começaram a se reunir por volta da Terceira Chamada. Eu fiquei vigilante, com medo de que a Garde Kralji viesse, mas até agora... — respondeu Ancel, que ergueu os ombros e cinzas deslizaram das dobras de seu manto. — Eu pedi a eles que fossem embora, disse que eles estavam nos colocando em perigo, mas eles não vão. Dizem que esperam ouvir o senhor.
Nico assentiu.
— Então deixe-me falar com eles.
Nico dirigiu-se até a borda da varanda, com Liana e Ancel logo atrás de si e vários morellis surgindo da casa para ficar com eles. A multidão gritou ao vê-lo sob o brilho das lamparinas nas colunas do pórtico. Nico ouviu seu nome e o de Cénzi serem gritados, e ergueu as mãos para a multidão silenciar novamente.
Ele olhou para o cenário escuro e sombrio, e viu apenas os focos de luz das pessoas que carregavam lanternas, como se as estrelas tivessem trocado o céu pelo chão.
— Se vocês acreditam que estou contente com o que aconteceu, vocês estão enganados — disse Nico, ele disse, em um tom lento e suave, fazendo com que o povo precisasse se aproximar para ouvir suas palavras. Depois pigarreou, tossiu uma vez, e sentiu Cénzi tocar sua voz, que ganhou força e volume.
— Sim, eu disse que Cénzi nos daria um sinal, e Ele o fez. Cénzi nos enviou um sinal terrível e inconfundível. O fim dos tempos está chegando, se Seus fiéis não o escutarem! O que vocês veem a sua volta é a morte de milhares, todos mártires, para que nós, fiéis concénzianos, possamos ver o erro do nosso caminho atual, para que possamos ver o que o mundo pode esperar se não seguirmos a orientação de Cénzi. Eu choro por cada um daqueles que morreram. Choro porque a situação teve de chegar a esse ponto. Choro porque vocês não escutaram. Choro porque vocês não conseguiram seguir as palavras de Cénzi sem que Ele precisasse nos dar esse castigo terrível. Choro porque ainda temos muito do trabalho de Cénzi para fazer. Choro porque, mesmo com as cinzas que cobrem Nessântico, aqueles que a governam ainda não enxergam a verdade do que dizemos.
Nico fez uma pausa. Entre o público, ele pôde ouvir alguém tossindo.
— Eu sei por que vocês vieram aqui — continuou Nico —, mas afirmo que vocês já sabem o que devem fazer. Está aqui, nos seus corações.
Ele tocou seu próprio peito. As palavras desencadeavam um fogo em sua garganta, que queimava ao sabor das cinzas.
— Está em suas almas, que Cénzi já possui. Tudo o que vocês precisam fazer é escutar, sentir e se abrir para Ele. Assim como Cénzi foi severo em Seu sinal, também temos que ser severos em nossa resposta.
Ele pausou, e suas próximas palavras rasgaram o ar como garras negras.
— É chegado o momento! — rugiu ele para a multidão. — É isto que tenho para lhes dizer. É chegado o nosso tempo. Agora! Este é o tempo de Cénzi, ou Ele causará a morte de todos nós! Agora: vão e mostrem para eles!
Nico apontou para o sul, na direção da Ilha a’Kralj, do Velho Templo, do Palácio da Kraljica e da Margem Sul, com as casas dos ca’ e co’. O povo rugiu com ele, que podia sentir o toque de Cénzi partir, deixando-o exausto e com as pernas fracas mais uma vez. Mas as nuvens se abriram momentaneamente, liberando um feixe de luz da lua azulada pintando a multidão e iluminando seus rostos.
— É outro sinal! — berrou alguém em meio à multidão.
Todos começaram a gritar. A multidão avançou e afastou-se da casa.
Nico apoiou-se em uma das colunas do pórtico, sem se importar com as cinzas manchando seu rosto, enquanto via as pessoas se afastarem.
— Deveríamos ir com eles, Absoluto? — perguntou Ancel. — Se isto for o que Cénzi quer de nós...
— Não — respondeu Nico aos morellis. — Ainda temos que permanecer escondidos... mas em breve. Em breve.
Ele ergueu o olhar; as nuvens sob a lua tinham se fechado novamente, e a rua parecia ainda mais escura do que antes, enquanto os gritos da multidão se esvaiam na distância.
— Esta noite, há outra coisa que precisamos fazer.
Sergei ca’Rudka
O comandante Telo co’Ingres gesticulou energicamente para os offiziers.
— Você, leve seu esquadrão para o Mercado do Rio; preciso dos seus e dos seus homens para controlar a Avi, para que os ténis-bombeiros consigam entrar e fazer o serviço deles. O resto de vocês, mandem seus homens para empurrar a multidão pela Avi, para longe da Pontica. Juntem-se aos gardai que estão chegando do norte, se possível. Assim que afastarmos a multidão da Avi, eles vão se separar nas ruas menores, onde podemos controlá-los. Usem a força que for necessária. Agora, vamos! Vamos!
Os offiziers curvaram-se e saíram correndo do centro de comando da Garde Kralji, montado às pressas na Margem Norte da Pontica Kralji. Já haviam se passado algumas viradas depois da aurora, embora fosse quase impossível medir o tempo na escuridão. Sergei, que o ouvia de dentro de sua carruagem, abriu a porta e foi ao encontro do comandante co’Ingres, debruçado sobre uma mesa com um mapa da cidade aberto sobre ela, seus assistentes colocando marcadores conforme os mensageiros chegavam apressados com os últimos relatórios. Além do centro de comando, bem acima na Avi, Sergei podia ver os fogos enviando fumaça para se juntar às nuvens de cinzas. Todos, co’Ingres incluído, pareciam ter rolado dentro de uma lareira.
— Eu soube da multidão — disse Sergei. — Pensei em ver se eu podia ajudar.
— Embaixador — respondeu co’Ingres, cansado. — Eu agradeço a oferta e sei que posso tirar proveito da sua experiência. No entanto, acho que finalmente controlamos os incêndios e a multidão. Nem a Ilha a’Kralji, nem a Margem Sul correm mais perigo.
O comandante acenou para o brilho das conflagrações.
— Os ténis-bombeiros do Velho Templo estão fazendo algum progresso com essa situação, embora eu pense muitas vezes que ajudaria se eles acabassem queimando todo o Velho Distrito.
— Os morellis?
Co’Ingres assentiu.
— Recebi um relatório dando conta de uma multidão reunida em uma casa, supostamente onde Nico Morel estava se escondendo. Mandei um a’offizier e seus homens investigarem a área, mas eles foram atacados por uma multidão que seguia na direção da Avi e da ilha. Eles estavam ateando fogo e fazendo saques no caminho, gritavam sobre sinais, fim dos tempos e a baboseira morelli de sempre. Morel os colocou em um estado de frenesi sobre isso tudo, embora ele próprio e as pessoas próximas a ele não estivessem entre a multidão. — O comandante chutou uma pilha de cinzas no chão. — Tem sido um dia de merda, com o perdão da palavra. Primeiro, todos os problemas com as cinzas, agora isso.
Sergei deu um tapinha nas costas do homem.
— Você fez bem, Telo, eu informarei à kraljica. Baixas?
— Nada sério, graças a Cénzi. Alguns ferimentos causados por pedras arremessadas e confrontos com a multidão: cabeças ensanguentadas e ossos quebrados, o de sempre. Alguns ténis-bombeiros foram vencidos pelo cansaço e pela fumaça; até que os incêndios estejam sob controle, essa situação só vai piorar, mas a a’téni ca’Paim está enviando mais ténis para ajudar. Alguns morellis foram mortos nos confrontos e vários ficaram feridos. Temos muitos punhados de prisioneiros.
— Prisioneiros. Ah. — Sergei sentiu sua velha paixão estremecer ao ouvi-lo. — Onde eles estão?
Ele pensou que co’Ingres hesitou por um instante um tanto ou quanto longo demais antes de responder. O comandante então inclinou a cabeça na direção da extremidade norte da ponte.
— Ali. Eu iria transportá-los para a Bastida assim que tivesse gardai suficientes para isso.
— Eles devem saber dizer onde Morel está agora — disse Sergei.
— Tenho certeza que sim — co’Ingres respondeu maliciosamente. — Tenho certeza de que nos dirão.
— Prossiga, Telo — disse Sergei —, mas deixe um esquadrão completo de gardai prontos para partir em uma marca.
Telo fez uma continência.
— Como queira, embaixador.
Sergei fez uma continência para o homem e caminhou dolorosamente em direção à ponte. Ele encontrou os prisioneiros com facilidade, sentados sobre os paralelepípedos sujos de cinzas perto da ponte e cercados por gardai carrancudos. O o’offizier no comando prestou continência quando Sergei se aproximou e abriu espaço para que o embaixador pudesse ver os desordeiros capturados. Alguns o encararam de volta, outros simplesmente encaravam o pavimento de cabeça baixa.
— Eu preciso saber onde está Nico Morel — Sergei disse para os prisioneiros. — Eu sei que pelo menos alguns de vocês sabem. Preciso que um de vocês me conte.
Não houve resposta. O prisioneiro mais próximo a ele — um e’téni com sangue espalhado no rosto e o robe verde rasgado e manchado de cinzas e fuligem — fez uma careta e cuspiu na direção de Sergei. As mãos do homem estavam amarradas — para que não pudesse usar um feitiço para escapar ou atacar os gardai.
— Não lhe diremos nada, Nariz de Prata — respondeu o e’téni. — Nenhum de nós dirá. Não o trairemos.
Sergei sorriu gentilmente para o homem.
— Ah, um de vocês dirá. De bom grado. E você me ajudará. Pegue-o — falou o embaixador para o e’offizier. — Traga-o até aqui.
Sergei deu um passo, acenando com a bengala para o condutor da carruagem, que estalou as rédeas do cavalo e veio trotando até onde o embaixador estava.
— Preciso de corda — disse Sergei.
Um garda correu para pegar um pedaço.
— Amarre os pés também — ele ordenou, apontando para os pés do téni e sabendo que todos os prisioneiros assistiam.
Quando os gardai terminaram de amarrar os pés e as mãos do homem, Sergei mandou que eles atassem um curto pedaço de corda das mãos do homem à traseira da carruagem. O e’téni assistia, arregalando os olhos.
Sergei bateu nos paralelepípedos da Avi com a ponteira de latão da sua bengala, o téni olhou para baixo.
— Estas pedras... Elas são a própria alma de Nessântico. A Avi envolve a cidade em seu abraço e, como você sabe, sendo um téni, ela define a cidade com seus postes. As pessoas que construíram a Avi o fizeram com cuidado e amor por seu trabalho. Olhe para esses paralelepípedos; eles foram esculpidos em granito das colinas ao sul da cidade, e foram trazidos para cá em trens de carga e dispostos cuidadosamente. Foram necessários suor, trabalho e carinho, mas os trabalhadores o fizeram. Eles fizeram não só porque foram pagos, mas porque amam essa cidade.
O téni encarava Sergei; tanto os prisioneiros quanto os gardai o estavam ouvindo.
— Mas... Essas pedras, antigas como são, permanecem brutas e duras. Eternas, como essa cidade e os Domínios, eu gosto de pensar. Ora, essas pedras são tão inflexíveis e implacáveis que preciso mandar um carpinteiro trocar os aros das rodas da minha carruagem duas vezes por ano, e os aros são feitos de aço. Você consegue imaginar o que essas pedras fariam com a carne de alguém se, digamos, essa pessoa fosse arrastada sobre elas como as rodas desta bela carruagem? Ora, isso iria arrancar, rasgar e esfolar a pele dessa pessoa, quebrar seus ossos, fazê-la em pedaços. Esta seria uma morte horrível e desagradável. Você não concorda, e’téni?
O homem ficou boquiaberto ao se dar conta do que Sergei dizia. Ele podia sentir o medo do homem; podia sentir seu sabor e apreciar seu doce tempero.
— Embaixador — gaguejou o e’téni, que espalmou as mãos atadas em súplica. — O senhor não faria isso.
Sergei riu; alguns gardai também.
— Eu faria o que fosse preciso para servir aos Domínios e a Nessântico. Agora, para servir à cidade, eu preciso que você me diga a localização de Nico Morel. Então... você vai me dizer?
O homem umedeceu os lábios novamente.
— Embaixador...
Sergei ergueu sua bengala. O condutor ajeitou-se no banco, e o téni ergueu as mãos atadas em súplica mais uma vez.
— Não! — ele quase gritou. — Por favor! O Absoluto... ele... ele está em uma casa na rua Cordeiro, no lado sul, duas ruas depois do cruzamento com a Espinha de Peixe. Eu... eu juro. Por favor, embaixador.
— Viu só? — disse Sergei para o téni. — Eu sabia que você me diria.
Ele gesticulou novamente com a bengala, com força desta vez, e o condutor estalou as rédeas no cavalo.
— Arre! — o motorista gritou.
O téni gritou assim que a corda ficou subitamente tesa e a carruagem arrancou, balançando e ganhando velocidade. O homem berrou ao ser derrubado ao chão, e ter seu corpo arrastado atrás da carruagem e as pedras começarem a rasgar sua pele. Mesmo na escuridão, todos podiam ver a trilha úmida e escura que seu corpo deixou nos paralelepípedos. Sua voz ecoava um longo gemido sem palavras enquanto a carruagem fazia a curva, a caminho da ponte: primeiro aguda e aterrorizada, depois assustadora e terrivelmente silenciosa. O veículo continuou pelo A’Sele.
— Meu condutor voltará em breve — Sergei informou aos demais prisioneiros, com uma voz calma, quase gentil. — Agora, é possível que nosso e’téni estivesse mentindo sobre a localização. Estou certo de que, para evitar seu destino, todos vocês me dirão se este é o caso ou não, não é mesmo?
Ele sorriu quando todos responderam à afirmação com um grito de confirmação com suas vozes altas, confusas e apavoradas.
As trompas dos templos soaram a Primeira Chamada tenuemente, embora houvesse pouco sinal do sol no eterno anoitecer de cinzas.
Sergei sabia, mesmo antes de eles sequer entrarem na casa, que já era tarde demais. Mais uma vez.
— Não vou entrar — disse o embaixador para co’Ingres. — Eles já foram embora.
O comandante encarou Sergei longamente.
— O senhor matou um homem para isso. Um téni.
— Matei — ele respondeu com facilidade. — E mataria novamente, sem arrependimento. E escolhi o téni deliberadamente, pela mensagem que seria assimilada pelos demais — se fui capaz de matar um téni, seria capaz de matá-los com a mesma facilidade.
Sergei ergueu os ombros e bateu na rua com sua bengala, enquanto os gardai rapidamente cercavam a casa. Sim, este era o endereço correto: ele notou as novas pegadas nas cinzas; a multidão tinha se reunido ali primeiro.
— Eles estiveram aqui, mas não estão aqui agora, Telo. Eu tenho certeza de que alguém está vigiando para reportar tudo a Nico. Eu posso sentir. Mas... Prossiga. Faça o que tem que fazer.
Co’Ingres fungou, quase de raiva, e afastou o olhar de Sergei, gesticulando energicamente para os offiziers, que deram ordens rápidas. Vários gardai avançaram em direção à porta da casa e a arrombaram. Empunhando suas espadas, eles entraram. Alguns minutos depois, um deles saiu novamente, balançando a cabeça.
Sergei respirou fundo e sentiu o gosto das cinzas mortas nas ruas.
— Diga a Nico Morel que eu vou encontrá-lo — ele disse em voz alta, virando-se para encarar as outras habitações ao longo da rua. — Eu vou encontrá-lo, e ele será julgado pelo que fez. Digam a ele.
Não houve resposta ao seu chamado. Sergei voltou-se novamente para co’Ingres.
— Mande seus homens revirarem a casa. Eles podem ter deixado alguma coisa para trás que nos dê alguma pista de para onde foram. Quero um relatório na minha mesa e na mesa da kraljica até a Segunda Chamada.
O comandante prestou continência sem dizer uma palavra, embora seus olhos ainda estivessem carregados de uma acusação silenciosa.
Sergei começou a caminhar em direção a sua carruagem, que o aguardava.
Os gardai não encontrariam nada na casa que Nico não quisesse que eles encontrassem. Ele tinha certeza de que Nico era cuidadoso demais para isso, mas ele manteria a promessa feita ao jovem. Isso Sergei jurou.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra estava na sacada de seus aposentos, olhando para os jardins. A chuva de cinzas tinha parado há duas noites, e o pôr do sol de hoje estava deslumbrante. Nuvens brancas e amarelas ondulavam no horizonte: sulcadas pelo vento, com toques de vermelho, laranja e dourado, presas a um céu azul-ciano enquanto o sol lançava feixes de luz dourada brilhante através de suas brechas. A terra abaixo estava banhada por uma luz verde e dourada e sombras púrpuras. Fragmentos de cores saturadas pareciam espreitar aonde quer que ela olhasse, como se um pintor divino tivesse borrado sua paleta no céu.
Abaixo dela, os funcionários continuavam varrendo a teimosa poeira cinzenta das alamedas e retirando as cinzas que grudaram nos arbustos e nas plantas do jardim oficial, cuja vista podia ser apreciada dos aposentos de Allesandra. Misericordiosamente, tinha chovido mais cedo nesse dia — os jardins do palácio já começavam a recuperar sua aparência anterior, mas Allesandra sentia o cheiro das cinzas, adstringente e irritante, em suas narinas. Toda a cidade, toda a terra fedia a cinzas.
As cinzas, a insurreição morelli há duas noites, a insistência curta e grossa de Jan em ser nomeado seu herdeiro: tudo isso pesava sobre Allesandra, apesar da beleza do pôr do sol.
— A a’téni ca’Paim quer que você seja jogado na Bastida — disse ela.
Sergei, que ignorava o pôr do sol e, em vez disso, encarava o quadro da kraljica Marguerite na parede, bufou pelo nariz de metal.
— Sem dúvida ela quer. O que você disse para a a’téni?
— Eu disse que o téni que você matou era um morelli, que ele desrespeitou as leis dos Domínios e que estava omitindo informações de você, deliberadamente. Disse que não havia tempo para consultá-la; que você tomou a ação que julgou necessária para capturar Morel.
Sergei pareceu se curvar mais para Marguerite do que para Allesandra.
— Obrigado, kraljica.
— Eu também li o relatório do comandante co’Ingres. Parece-me que ele pensa que matar o téni não era necessário.
Sergei deu de ombros.
— Dois offiziers nem sempre concordam quanto às táticas. Se Telo tivesse feito o que eu fiz uma ou duas viradas mais cedo, nós poderíamos ter capturado Morel. Ele mencionou isso no relatório?
— Eu te conheço, Sergei. Você não matou o homem como uma tática; fez isso pelo prazer que lhe deu.
— Todos temos os nossos defeitos, kraljica — respondeu o embaixador. — Mas eu o fiz de fato para capturar Morel; pelo menos em parte.
— O gyula ca’Vikej acha que você não é mais confiável. Ele pensa que suas predileções e ambições o colocam em oposição a mim.
Se Sergei ficou preocupado com isso, não demonstrou.
— Você conhece as minhas fraquezas, e eu as admito abertamente para você, kraljica. Todos nós as temos, e sim, às vezes elas podem interferir no nosso melhor julgamento quanto ao que é melhor para os Domínios. E como o embaixador dos Domínios para Brezno e a Coalizão, eu gostaria que ninguém mais ouvisse a kraljica se referir a ca’Vikej como gyula. Mas, por outro lado, eu não levei o gyula exilado de um estado inimigo para a minha cama.
A onda de fúria que percorreu Allesandra era quente e brilhante como um relâmpago. Ela fez uma careta e cerrou os punhos cravando suas unhas nas palmas da mão, formando luas crescentes.
— Você ousa... — ela começou, mas Sergei espalmou as mãos em súplica antes que ela pudesse falar mais.
— Estou simplesmente ressaltando, desajeitadamente, admito, que as escolhas que fazemos não serão universalmente aceitas, que as fazemos por razões que fazem sentido para nós, mas não necessariamente para todo mundo. Perdoe-me, kraljica. Nós temos uma longa história juntos, mas eu não deveria tomar liberdades por causa disso. Você sabe que sou leal aos Domínios e a sua governante. Sempre e eternamente.
Sei que sua lealdade é para com os Domínios, mas quanto à outra parte... Allesandra mordeu o lábio ao pensar nas palavras, mas não as disse. Ela devia a Sergei: ela sabia; e sabia que ele sabia. Sergei tinha salvado a vida de Allesandra e de seu filho. O ferrão de seu comentário ainda a cortava, mas a raiva estava passando. Ela ainda precisava de Sergei. Ainda dava valor a seus conselhos.
Mas quando chegasse o momento, Allesandra não hesitaria em jogá-lo na Bastida, que ele amava tanto.
— Eu teria cuidado com o que falar e com quem falar — disse ela —, se você quiser evitar o destino que deu a outros. Você tem sorte de...
Houve uma batida discreta na porta da câmara; um instante depois, a porta se abriu e a cabeça de Talbot apareceu de lado, evitando cuidadosamente olhar para os dois.
— Kraljica — falou o assistente. — Chegou um mensageiro. Acho que a senhora deveria ouvir o que ele tem a dizer.
— Que mensagem? — Allesandra perguntou, ainda com irritação na voz. — Diga-me.
— Eu realmente acho que a senhora deve ouvir isso dele, kraljica — argumentou Talbot.
Allesandra fez uma careta.
— Tudo bem. Mande-o entrar.
A porta foi fechada e aberta novamente um momento depois. Talbot introduziu um homem esfarrapado, de roupa manchada de lama e cinzas, o rosto sujo e os olhos encovados em escuras olheiras. Seu cabelo era branco, suas mãos crispadas com enormes nós nos dedos. Ela supôs que ele tivesse cinco ou mais décadas de vida, alguém que tinha visto muito trabalho na vida.
— Por favor, sente-se — disse Allesandra imediatamente para o homem.
O sujeito se afundou, agradecido, na cadeira mais próxima, após o esboço de uma mesura.
— Sergei, sirva um pouco de vinho a este pobre homem. Talbot, veja se o cozinheiro ainda tem um pouco do ensopado do jantar...
Talbot fez uma mesura e deixou o cômodo. Allesandra parou diante do homem e ouviu o vinho ser despejado na taça e, em seguida, a bengala de Sergei batendo no chão quando ele ofereceu a taça ao sujeito. Ele bebeu com avidez.
— Qual é o seu nome? — ela perguntou.
— Martin ce’Mollis, kraljica.
— Martin. — Allesandra sorriu para ele. — Talbot me disse que você tem notícias.
O homem assentiu e engoliu em seco.
— Venho cavalgando há dias depois de vir de barco de Karnmor.
— Karnmor. — Ela olhou para Sergei. — Então você viu...
O homem assentiu e balançou a cabeça.
— Eu vi... kraljica, eu vivo no braço norte da baía de Karnmor, afastado de Karnor. Eu vi os navios se aproximando uma tarde; primeiro uma tempestade incomparável a tudo o que eu tinha visto antes, depois, de repente, eles simplesmente apareceram ali, navios pintados que atacaram nossa marinha na baía: embarcações ocidentais. Eu os vi arremessar bolas de fogo na cidade e nas nossas embarcações quando o sol começava a se pôr. Eu sabia que alguém tinha que vir lhe contar o que estava acontecendo. Sou apenas um pescador agora, mas eu servi na Garde Civile na minha época, então peguei meu barco e me mantive próximo à costa, navegando em torno da extremidade norte da ilha para chegar ao continente. Eu vi outro navio de guerra ocidental parado em alto-mar, e uma fileira de luzes descendo do monte Karnmor, como se houvesse gente ali, andando. Eu ancorei em um lugar onde estaria protegido e fiquei observando. As luzes desceram até a praia, e um pequeno bote saiu do navio de guerra ocidental. Depois disso, ele recolheu a âncora e foi embora. Eu vi ao longe no horizonte que havia mais embarcações à espera, kraljica, mais do que eu pude contar, e todas navegaram para longe de Karnmor como se Cénzi as perseguisse, como se eles soubessem...
Martin umedeceu os lábios e bebeu novamente.
— Graças a Cénzi eles não notaram a mim, não me viram. Eu naveguei a noite toda, permaneci próximo à costa e finalmente cruzei o canal, chegando ao continente antes da alvorada. Havia uma pequena guarnição ali, e eu contava ao offizier de serviço o que tinha visto enquanto o sol nascia. Aí...
Ele se deteve. Tomou outro gole de vinho.
— Então o monte Karnmor acordou. Eu vi aquela nuvem horrível subir ao céu, senti o trovão nos atingir como uma parede de ar quente, e as cinzas, tão quentes que queimavam a pele onde tocavam...
O homem estremeceu, e Allesandra notou a pele empolada e avermelhada de seus braços.
— Eles me deram um cavalo, e disseram para eu vir até aqui o mais rápido possível. Não pare, disse o offizier. E não parei, a não ser para roubar outro cavalo quando aquele que eu cavalgava morreu embaixo de mim. Eu vim para cá o mais rápido que pude, kraljica. A senhora tinha que saber, tinha que saber...
Ele tomou outro gole; Sergei, sem palavras, tornou a encher sua taça.
— Eles fizeram aquilo — ele disse, finalmente. — Os ocidentais. Eles trouxeram seus navios até lá, e sua magia fez a montanha explodir. Eles sabiam. Sabiam que isso aconteceria; é por isso que eles foram para o norte com sua frota nessa noite. Eles sabiam o que aconteceria e...
Talbot entrou com uma bandeja; o homem parou.
— Talbot — falou Allesandra —, leve nosso bom amigo Martin com você. Dê-lhe comida, deixe que tome um banho e acomode-o em um dos quartos de hóspedes. Chame meu curandeiro para garantir que ele receba qualquer tratamento de que precise. Martin, você prestou um grande serviço aos Domínios e será recompensado por isso. Eu lhe prometo.
Ela sorriu para ele mais uma vez, que se levantou da cadeira e fez uma mesura desequilibrada, permitindo que Talbot o conduzisse para fora do aposento.
— Os tehuantinos estão de volta... — murmurou Sergei assim que a porta foi fechada. — Isso muda tudo. Tudo.
Allesandra não disse nada. Ela voltou para a janela. O sol banhava o horizonte em tons de rosa e dourado.
— Haverá pânico nas ruas assim que a notícia se espalhar. E, se ele estiver certo, se a erupção do monte Karnmor não tiver sido uma simples coincidência...
O sol lançou uma coluna de luz laranja sobre a cerração enquanto o disco amarelo escaldante se escondia atrás dos prédios da cidade. O silhueta do domo dourado do Velho Templo foi emoldurada contra as cores intensas. A Terceira Chamada era anunciada pelas trompas; em uma marca da ampulheta, os ténis-luminosos sairiam pela cidade iluminando os postes da Avi a’Parete, para envolver a cidade em um colar de luzes. “Eu lhe darei a joia”, seu vatarh lhe dissera uma vez, referindo-se a Nessântico e àquelas luzes. Ele tinha fracassado em seu intento, mas Allesandra tomara a cidade e os Domínios para ela. Allesandra possuía a cidade, possuía suas pérolas de luz, era banhada pela luz do Trono do Sol.
Era dela, e Allesandra tinha que fazer o possível para mantê-la.
— Você vai retornar a Brezno — disse a kraljica para Sergei. — Você precisa entregar uma mensagem para meu filho.
Varina ca’Pallo
— ...E se o que ele diz for verdade, então eu me preocupo com os Domínios de forma geral.
Talbot sacudiu a cabeça enquanto ele, o mago Johannes e Varina caminhavam pela Avi a’Parete. Eles iam da Casa dos Numetodos, na Margem Sul — perto do que ainda era chamado o Templo do Archigos, embora nenhum archigos tivesse morado lá desde o pobre Kenne —, para um dos modernos restaurantes perto da Pontica a’Brezi Veste. A rua tinha sido limpa vigorosamente, mas Varina ainda podia ver montes de cinzas nas sarjetas, e os paralelepípedos tinham uma aparência vagamente acinzentada.
Johannes balançava a cabeça.
— Eu não conheço nenhuma magia que pudesse causar a erupção espontânea de um vulcão, se eles são capazes de fazer isso, então...
Ele pareceu sentir um arrepio e fechou mais o manto em volta dos ombros. Ele olhou para Varina, suas sobrancelhas brancas e espessas pareciam nuvens tempestuosas sobre os olhos negros escondidos.
— A senhora conhece as habilidades dos tehuantinos melhor do que qualquer um de nós — disse Johannes. — A senhora está quieta demais, a’morce, e isso está me deixando desconfortável.
Varina abriu um sorriso abatido para o homem.
— Eu não tenho mais informações do que qualquer um de vocês. Talvez seja uma simples coincidência ou talvez o homem esteja enganado sobre o que viu.
Talbot balançou a cabeça.
— Nem tudo. Vieram outros mensageiros rápidos relatando também terem visto a frota tehuantina. Eles certamente estão lá fora, a caminho do A’Selle, ao que tudo indica. Pensei que a senhora deveria saber, a’morce, uma vez que tudo que vier a acontecer pode acabar afetando os numetodos também. O público em geral saberá em um dia ou dois; não há como abafar o caso...
A voz de Talbot sumiu. Varina, que andava de cabeça baixa — como quase sempre fazia agora, pois seu equilíbrio era às vezes tão instável quanto o de uma pessoa duas décadas mais velha —, ergueu o olhar. Eles tinham acabado de atravessar a longa curva ao norte da Avi, passando por um curto segmento da muralha original de Nessântico conforme se aproximavam da Bastida. À sua esquerda, várias ruelas levavam até a área mais pobre da Margem Sul. Uma aglomeração de jovens acabara de sair de uma das alamedas em direção à Avi, diretamente em frente aos numetodos. Eles se espalharam em uma linha irregular, bloqueando o caminho, embora houvesse um amplo espaço na Avi.
— Afastem-se — disse Talbot para o jovem mais próximo. — A não ser que queiram ter mais problemas do que podem lidar. Vocês não sabem com quem estão lidando.
— Ah, é? — respondeu o homem. — Está quase na hora da Terceira Chamada, vajiki. Vocês não deviam estar a caminho do templo? Mas, não, eu teria lembrado de ver o assistente da kraljica no templo, ou a esposa do falecido embaixador, ou o mico amestrado com cara de coruja que vocês têm aí.
O sujeito riu da piada, e os outros juntaram-se a ele. Varina sentiu um nó no estômago: isso tinha sido calculado. Os jovens sabiam a quem confrontavam.
— Não cometam um erro aqui — Varina disse para eles.
Ela os encarou, um de cada vez, tentando perceber alguma hesitação ou medo em seus rostos. Não viu nenhum dos dois. Olhou a sua volta à procura de um utilino, um garda, qualquer um que pudesse ajudar, mas os olhos dos transeuntes que passeavam pela Avi pareciam estar voltados para outros lugares. Se alguém notou o confronto, o ignorou. Varina se perguntou se isso também tinha sido calculado.
— Erro? — o mesmo jovem disse. Ele tinha cicatrizes de varíola no rosto e lhe faltava um dos dentes da frente. — Não há nenhum erro. Nico Morel disse que haveria um sinal, e o sinal veio, como ele disse que viria. Mas vocês não acreditam em Cénzi e em Seus sinais, não é mesmo? Não acreditam que Cénzi fala através do Absoluto.
— Esta não é uma discussão para termos aqui, vajiki — disse Varina. — Eu adoraria discutir o assunto com Nico em pessoa. Diga isso a ele. Diga que eu o encontrarei onde e quando ele quiser. Mas, por agora, deixe-nos passar.
O homem marcado pela varíola riu, e o gesto foi reproduzido por seus companheiros.
— Eu acho que não — falou ele. — Acho que é hora de ensinarmos uma lição aos numetodos.
Enquanto o morelli falava, Varina percebeu que seus companheiros começaram a cercá-los.
— Não façam isso — falou ela. — Não queremos machucar ninguém.
Em resposta, o homem de rosto marcado tirou um porrete debaixo de seu manto. Erguendo as mãos, ele atacou Varina. O bastão acertou a lateral da cabeça e derrubou Varina no pavimento antes mesmo que ela erguesse as mãos para se proteger. Varina conseguiu erguer as mãos antes de cair sobre os paralelepípedos, que arranharam e sangraram suas palmas, mas o impacto ainda lhe tirou o fôlego. Ela sentiu alguma coisa (um pé?) golpeá-la no flanco e percebeu, mais do que viu, o clarão de um feitiço assim que Johannes pronunciou seu gatilho. Talbot também estava lançando um feitiço, assim como outros. Varina sentiu o gosto das cinzas que sua queda tinha levantado. Seu sangue escorria sobre seus olhos (ela tinha cortado a testa ou o porrete tinha provocado isso?). Varina tentou se levantar. Tudo estava confuso, sua cabeça latejava tanto que mal conseguia se lembrar dos gatilhos dos feitiços que ela — como a maioria dos numetodos — tinha preparado para se defender. Algo tinha cravado com força na lateral de seu corpo quando ela caiu: a chispeira sob seu manto. Piscando para se livrar do sangue, em meio ao tumulto da briga, ela pegou a arma.
Outro feitiço espocou, e Varina sentiu o cheiro de ozônio de sua descarga enquanto alguém — um dos morellis? — gritou em resposta. Havia mais feitiços sendo disparados; pelo menos um dos morellis deve ter tido treinamento como téni, ela percebeu. Em algum lugar distante, alguém estava gritando e ela ouviu o apito estridente de um utilino.
O volume da sua própria respiração se sobressaía.
Varina empunhava a chispeira agora. Ela engatilhou o cão e esfregou os olhos com a mão livre. Viu o homem de rosto marcado a sua esquerda, com o porrete erguido, prestes a golpear Johannes.
— Não! — berrou Varina e, ao mesmo tempo, seu dedo puxou o gatilho.
O estampido foi estridente, o som ecoou nas ruínas da muralha da cidade e repercutiu, mais baixo, nos prédios da Avi; o coice da chispeira jogou sua mão para o alto e para trás, ao mesmo tempo em que o homem de rosto marcado soltou um grunhido e caiu, o porrete saiu voando de sua mão enquanto uma lança invisível parecia ter arrancado carne, osso e sangue de seu rosto.
— Afastem-se! — Varina gritou, de joelhos, para as pessoas mais próximas a ela.
Pestanejando, ela brandiu a chispeira, agora inútil, soltando fumaça e um odor estranho e adstringente da areia negra.
A ordem era desnecessária. Com o disparo da arma e a morte súbita e violenta do líder, os outros morellis soltaram suas armas e fugiram. Varina sentiu Talbot passar seus braços sob seu corpo, ajudando-a a levantar. Havia pessoas vindo em sua direção, entre elas um utilino.
— Consegue ficar de pé, a’morce? Johannes, ela foi ferida...
— Estou bem — respondeu Varina.
Ela limpou o sangue de novo. Havia três pessoas caídas na Avi. Uma delas gemia e se contorcia; as outras duas estavam assustadoramente imóveis. Não havia dúvida sobre o destino do homem de rosto marcado. Varina desviou o olhar do corpo rapidamente. Ela ainda segurava a chispeira. Talbot percebeu e se aproximou de Varina para que o utilino e as outras pessoas vindo na direção deles não pudessem ver, e recolocou a arma dentro do manto dela.
— É melhor não deixarmos ninguém saber — ele sussurrou. — Deixem-nos pensar que usamos magia.
Ela estava confusa e ferida demais para argumentar. Sua cabeça latejava, e ela ainda queria olhar para o rosto destroçado do homem que ela tinha matado.
— Talbot — disse Varina, mas o mundo girou e ela não conseguiu se manter em pé.
Foi a última coisa de que se lembrou por um tempo.
Niente
— Foi como se as cinzas tivessem turvado tudo, taat — falou Atl. — E não venho conseguindo ver direito desde então.
A voz de Atl estava cansada, seu rosto exausto, e ele se afundara na cadeira do pequeno quarto de Niente no Yaoyotl, como se tivesse corrido a grande ilha de Tlaxcala de uma ponta à outra.
Niente resmungou. A chuva de cinzas tinha sido tão densa que parecia que a frota se deslocava em meio a um nevoeiro sólido. Primeiro, o céu tinha ganhado um tom estranha e doentiamente amarelo, antes das cinzas se tornarem tão espessas que transformaram o dia em noite. Raios e trovões envolveram furiosamente a nuvem em expansão, e as cinzas quentes fediam a enxofre queimado. Seu material era tão fino que se insinuavam em todos os lugares. As roupas estavam cheias de cinzas; elas entraram nos compartimentos de comida e entranharam nos poros da madeira, apesar das tentativas dos marinheiros de limpá-la. O cheiro de enxofre também era estranho, embora a esta altura os tehuantinos já estivessem acostumados a ele. As cinzas também eram abrasivas — um dos artesãos tehuantinos recolheu várias bolsinhas de cinzas, dizendo que poderia usá-las para polir.
E sim, as cinzas macularam a pureza da água e das ervas que Niente usava na tigela premonitória. Desde a chuva de cinzas, tentativas do próprio Niente de ver o futuro tinham sido tão obscurecidas e inúteis quanto as de Atl.
Niente esperava que eles ainda estivessem no mesmo caminho, no mesmo rumo através dos possíveis futuros que poderiam conduzi-los ao Longo Caminho que ele tinha vislumbrado. A frota tehuantina entrou na boca do A’Sele sem nenhuma resistência da marinha dos Domínios, embora Niente estivesse certo de que, a esta altura, Nessântico já devia saber dos acontecimentos e da aparição dos navios tehuantinos. Se a visão de Axat ainda estivesse certa, então os ocidentais teriam ligado a erupção do monte Karnmor à chegada dos tehuantinos.
Por enquanto, o vento que tocava seu crânio quase careca e seu rosto devastado era fresco e tinha cheiro de água doce, em vez de água salgada. A frota avançou por um irritante cenário monocromático; os morros distantes de ambos os lados estavam cinzas, quando Niente sabia que eles deveriam estar verdes e exuberantes. Cinzas finíssimas flutuavam nas correntes de água na direção do mar, de volta à fonte. A frota avançou por um cenário tocado pela morte. Niente viu as carcaças flutuantes passarem: pássaros, aves aquáticas, ocasionalmente, ovelhas, vacas e cães e, até mesmo — um ou dois —, corpos humanos. Tão perto de Karnmor, a devastação tinha sido terrível. Havia apenas algumas gaivotas voando esperançosamente ao lado da frota, bem menos do que Niente se lembrava de sua última visita aqui.
Atl jogou a água da tigela premonitória para fora do Yaoyotl. Seu gesto interrompeu o devaneio de Niente.
— O que você viu? — ele perguntou. — Conte-me.
— As imagens vieram muito rápido e eram tão turvas... — Atl suspirou. — Eu mal conseguia distingui-las, mas... por um momento eu pensei ter visto o senhor, taat. O senhor e um trono que brilhava como a luz do sol.
Niente sentiu um arrepio, como se o vento tivesse ficado repentinamente tão frio quanto os picos gelados das montanhas Ponta de Faca. Ele também tinha visto esse momento, e mais.
— Você me viu?
— Sim, mas só por um instante, então a visão sumiu novamente. — Atl ergueu as sobrancelhas. — Foi isso o que o senhor viu também, taat?
Ele estava no salão, cercado por todos os lados por corpos de tehuantinos e orientais. O lugar fedia a morte e sangue. Niente viu o Sombrio — o governante dali —, mas o trono brilhava tão intensamente que ele não pôde ver o rosto da pessoa sentada nele, nem sabia se era homem ou mulher. Niente segurava seu cajado mágico na mão, que ardia com o poder do X’in Ka, tão vital que ele sabia que poderia ter atingido o Sombrio, poderia ter quebrado o trono reluzente. No entanto, Niente se conteve e não disse as palavras, embora pudesse ouvir o tecuhtli berrando para que ele o fizesse, e acabasse com tudo aquilo.
Atrás do Sombrio surgiu uma presença ainda maior, com poderes tão grandes que Niente se sentiu atraído por eles: a Presença Solar. Esta segurava uma espada com as duas mãos e ergueu a arma enquanto Niente aguardava. Mas a espada não o tocou; em vez disso, a Presença Solar tocou a espada, que se quebrou como se não fosse mais forte que uma fatia de pão seco, dando um pedaço para Niente e ficando com o outro.
Niente afastou-se do trono, enquanto o tecuhtli e os guerreiros praguejavam contra ele, chamavam-no de traidor de seu próprio povo...
— Não — disse ele para Atl. — Eu não vi isso. Acho que sua visão estava confusa e errada. Eram apenas as cinzas falando, não Axat.
Atl pareceu desapontado.
— Dê-me a tigela — mandou Niente, com a mão estendida.
Atl entregou-lhe a tigela pesada de latão.
— Eu mesmo vou limpá-la e purificá-la. Tentaremos novamente, em alguns dias talvez. Você deveria descansar.
— Descansar? — Atl zombou. — Alguns dias?
Ele acenou para a frota em volta deles, na paisagem cinzenta.
— Precisamos da visão de Axat agora mais do que nunca, taat. O tecuhtli Citlali pergunta constantemente se o senhor viu algo...
— As cinzas turvam a nossa visão — Niente respondeu rispidamente, interrompendo o filho. — Até mesmo para mim, mas especialmente para você, que ainda está aprendendo a interpretar a tigela. Eu disse que temos que aguardar alguns dias, Atl. Se você não pode aprender a ter paciência, jamais aprenderá a interpretar a tigela.
Atl encarou Niente.
— Isso é mais do que seu velho “olhe para mim, não faça o que eu fiz”? Se for, eu já ouvi isso vezes demais.
— Eu disse que lhe ensinaria a usar a tigela, e ensinarei — respondeu Niente, mas aninhou a tigela na barriga possessivamente. — Você tem que me mostrar que está pronto para aceitar as lições.
— Há outros nahualli que podem me ensinar.
— E nenhum deles é o nahual — respondeu Niente com mais rispidez. — Nenhum deles tem o meu dom. Nenhum deles pode mostrar a você tão bem quanto eu.
Então, com medo da expressão no rosto de Atl, como se o rosto de seu filho tivesse sido esculpido em pedra, ele abrandou o tom.
— Você será nahual um dia, Atl. Eu tenho certeza disso. Eu vi isso. Mas, para que isso aconteça, você precisa me ouvir e me obedecer; não por ser meu filho, mas porque ainda há coisas que você deve aprender.
Niente pressionou a tigela contra seu corpo com uma mão e ofereceu a outra para Atl.
— Por favor — ele disse. — Eu quero que você saiba tudo o que sei e muito mais, mas você tem que confiar em mim.
Houve uma hesitação que partiu o coração de Niente. A boca de Atl estava torcida, e mesmo através do cansaço do rapaz, Niente podia ver seu desejo de usar a tigela novamente.
Ele se lembrava desse desejo — ele próprio o tinha sentido, quando tinha a idade do filho, quando se deu conta de que tinha sido tocado e marcado por Axat, quando se deu conta de que poderia ser o sucessor de Mahri, que poderia até mesmo chegar a nahual.
Niente sabia o que Atl estava sentindo, e isso o assustava mais do que qualquer outra coisa.
Atl finalmente deu de ombros, enquanto Niente ainda segurava a tigela, pegando na mão do taat, pressionando os dedos na palma de sua mão estendida.
— Eu farei o que o senhor me pede — falou Atl —, mas, taat, eu não vou esperar para sempre. Se for preciso, encontrarei outro caminho.
Ele soltou a mão de Niente e se afastou. Niente notou que o filho forçava o corpo para não demonstrar a exaustão que devia estar sentindo.
Era o que o próprio Niente teria feito, no lugar dele.
Rochelle Botelli
Ela passou os dias limpando, pois as cinzas que causaram tão lindos poentes também cobriram tudo de poeira no Palácio de Brezno. Rance ci’Lawli conduziu seus funcionários incansavelmente para manterem as superfícies limpas. Pelos rumores que Rochelle tinha ouvido, a experiência em Brezno tinha sido insignificante. Aqui, a chuva de cinzas tinha caído como uma leve cobertura de poeira acumulada durante uma semana sobre a mobília. Mas ela tinha ouvido pessoas que tinham vindo do oeste falando de precipitações tão intensas quanto as das queda de neve do inverno, e tão pesadas que telhados desmoronaram e animais morreram sufocados. Rochelle não sabia o quanto dos rumores eram simples contos exagerados com o intuito de entreter, e o quanto de verdade eles continham, mas era evidente que algo catastrófico tinha acontecido no extremo oeste dos Domínios. “O monte Karnmor acordou novamente após séculos adormecido”, era o rumor mais insistente. “Milhares de pessoas morreram.” Aqui, a pessoa que falava geralmente sacudia a cabeça. “Eles deviam ter pensado melhor antes de construir uma cidade na encosta de um vulcão. Era um desastre anunciado...”
Então ela limpou, e se certificou que as cortinas permanecessem fechadas quando as janelas fossem abertas. E aguardou. Aguardou porque a chuva de cinzas tinha alterado a rotina do palácio; e os padrões que ci’Lawli seguia durante o dia, até que eles se normalizassem de novo, Rochelle não poderia matar o homem com segurança e cumprir seu contrato. Ela percebeu que não se importava; ela flertou, na verdade, com a ideia de devolver o dinheiro a Josef co’Kella — as solas estavam escondidas em seu pequeno quarto de dormir no palácio.
“A Pedra Branca não pode deixar de cumprir nem recusar um contrato”, dizia sua matarh, em um dos momentos lúcidos em que não era atormentada pelas vozes. “Se as pessoas pensarem que a Pedra Branca trabalha por um motivo aleatório, então ela não é um fantasma a ser temido, mas apenas outro garda vestido com o uniforme dos governantes. As pessoas amam e temem a Pedra Branca porque ela ataca em qualquer lugar, a qualquer hora. Nós somos a Morte, que chega para alguém sem remorso e sem pensar.”
— Por que a matarh não gosta de você?
Rochelle estava limpando o quarto de Elissa, esfregando a mobília da menina com um pano úmido. Ela parou, endireitou as costas e olhou para a criança, que estava sentada na cama brincando com uma boneca. Rochelle notou que a menina estava presa naquele espaço estranho entre a infância e adolescência, em que tinha muita vontade de fazer tanto coisas de “adulto” quanto coisas como brincar com os brinquedos que a fascinavam antigamente. A boneca — cujo estado dos braços e das pernas de pano e do rosto de porcelana demonstrava que tinha sido sua favorita por muito tempo — agora passava a maior parte do tempo abandonada, a não ser em momentos como esse.
— O que quer dizer, vajica? — perguntou Rochelle, genuinamente intrigada.
A hïrzgin Brie nunca pareceu demonstrar descontentamento com ela — na verdade, após sua conversa naquele dia, Rochelle começara, inclusive, a pensar que a hïrzgin pudesse gostar mais dela do que das várias dezenas de criados que estavam em sua presença todos os dias.
— Ela não acha que eu faço bem o meu serviço?
Elissa negou vigorosamente com a cabeça, o braço da boneca balançou com o gesto.
— Não é isso — respondeu a menina. — Eu ouvi a matarh dizer para o vatarh que ela não gostou da maneira como ele agiu perto de você. O vatarh disse que não sabia do que ela estava falando. “Você sabe que isso aconteceu antes”, foi tudo o que a matarh disse, e o vatarh apenas resmungou. Ele disse que a matarh se preocupa demais e foi embora, mas ela ainda ficou com a cara amarrada, como fez com Maria e Greta. Você vai embora que nem elas?
— Maria e Greta?
Ela assentiu, de maneira tão vigorosa quanto a negativa.
— Elas eram criadas contratadas por Rance, como você. Greta trabalhou aqui quando eu tinha 9 anos, e Maria, no ano passado. Elas eram simpáticas, e o vatarh gostava delas, mas a matarh, não.
Rochelle percebeu que suas mãos de repente começaram a tremer. Ela se lembrou da conversa que teve com seu vatarh no outro dia, da maneira como ele tocara seu rosto, das palavras que ele dissera, do interesse que tinha demonstrado nela. Sua tola... Podia ter sido a voz de sua matarh sussurrando em sua cabeça. Sua garota estúpida.
— Ah — respondeu Rochelle, com uma inflexão vaga e sem vida, que pareceu cair no tapete entre elas, como um pássaro com o pescoço quebrado.
Rochelle tinha estado com homens antes. Já tinha se apaixonado, sentido luxúria, sentido duas vezes o peso de um homem sobre ela e dentro dela. Ouvido as mentiras reluzentes como joias que eles diziam para poder dividir o leito com ela, experimentado o vazio subsequente ao perceber que essas palavras eram falsas e ocas. Rochelle tinha aprendido a ouvir essas mentiras e a ignorá-las, aprendido a descartá-las quando pareciam ser um flerte inócuo — a menos que ela quisesse mais.
Ela tinha aprendido a esperar pelo vazio que se seguia após os momentos passageiros de intimidade e paixão, e a aceitá-los.
Sua tola... Rochelle devia ter percebido... Ela tinha ouvido as palavras que Jan lhe falara, mas não tinha pensado nele dessa maneira, não o tinha visto como um deles, como aqueles que queriam se imiscuir nos tesouros quentes e ocultos sob sua tashta. Agora ela entendia porque tinha sido tão fácil para Rance colocá-la no corpo de funcionários particulares da família. Ela se lembrou da conversa com a hïrzgin e compreendeu.
Rochelle também ouviu as palavras de Jan ecoarem em sua memória, e elas estavam mudadas e alteradas. Palavras de latão folheadas a ouro. Eram caixas vazias. Eram pergaminhos em branco.
Jan não era melhor que um homem qualquer à procura de uma companhia noturna anônima em uma taverna.
Tola... Não era de admirar que a hïrzgin a tivesse alertado.
“Eu deveria ter sido a hïrzgin”, dissera sua matarh, furiosa, quando Jan se casou com Brie. Na ocasião, Rochelle era mais nova que Elissa agora, mas ela ainda se lembrava da raiva e da loucura que consumiram sua matarh ao saber da notícia. “Ele amava a mim, não a ela! Ela é apenas uma escumalha ca’ e co’, outro título para adicionar à lista de Jan. Ele me amava...”
Rochelle se perguntou por quanto tempo ela poderia permanecer ali.
— Eu não sou nem a Maria nem a Greta — ela disse para Elissa.
“Elissa. Esse era meu nome, o nome com o qual ele me conheceu. Ele batizou sua filha em minha homenagem...”
— Eu jamais faria qualquer coisa que prejudicasse sua matarh. Eu espero que ela saiba disso.
— Eu direi isso para a matarh — respondeu Elissa ao abraçar a boneca.
Ela pareceu se dar conta do que fazia e largou a boneca, deixando que caísse descuidadamente sobre seu colo.
— Dirá o quê?
Outra voz as interrompeu, assustando Rochelle. Ela não tinha ouvido Jan entrar no quarto. Isso já era perturbador por si só; quantas vezes sua matarh a tinha advertido sobre o fato de que a Pedra Branca devia estar sempre alerta, não importava a situação. Mas Rochelle tinha ficado tão perdida em seus pensamentos que não tinha ouvido Jan entrar, embora agora se lembrasse de ter ouvido um arrastar de passos no tapete.
— Que ela deve manter a Rhianna — falou Elissa. — Eu gosto dela.
— Eu também — disse Jan.
O olhar dele estava fixo em Rochelle, que se forçou a sorrir, como Jan esperava, sem dúvida.
— Elissa, acho que sua matarh queria ver você. — Ele beijou o topo da cabeça da filha, mas seu olhar continuou fixo em Rochelle. — Mas, preste atenção, querida, não vamos dizer nada ainda a respeito de Rhianna para sua matarh. Vá, agora.
Jan despenteou o cabelo de Elissa. Ela pulou da cama, e a boneca caiu no chão. A menina deixou o brinquedo ali e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Rochelle colocou o pano no balde, limpou as mãos no avental do uniforme e apanhou o balde.
— Você também está saindo? — perguntou Jan.
Rochelle fez uma mesura, mantendo o olhar no chão.
— Eu terminei aqui, hïrzg, e tenho outros cômodos para limpar.
— Ah.
Jan fez uma pausa, e ela esperou, pensando que o hïrzg fosse dizer algo mais. Ele permaneceu parado ali, Rochelle podia sentir seu olhar. Ela começou a seguir em direção à porta de serviço e das escadas internas.
— Você realmente me lembra, bem, alguém que eu conheci uma vez. Alguém que foi muito importante para mim. É muito estranho.
Isso deteve Rochelle, apesar do nervosismo. “Deveria ter sido eu...”
— Posso perguntar quem ela era, hïrzg?
Rochele percebeu que tinha feito a pergunta involuntariamente. Ela ergueu seu olhar para Jan, olhou nos seus olhos e baixou ligeiramente o olhar.
Ele ergueu um ombro, casualmente.
— Eu não sei ao certo quem ela era, na verdade. Na melhor das hipóteses, ela era uma linda impostora que me amava, mas que ficou presa na teia de suas mentiras; na pior das hipóteses... — Jan se deteve e ergueu o ombro novamente. — Na pior das hipóteses, ela era uma assassina.
Por Cénzi, ele sabe! O pensamento fez com que Rochelle erguesse a cabeça novamente, de olhos arregalados. Jan pareceu confundir sua reação com medo. Ele sorriu, como se pedisse desculpas, e continuou.
— Se ela era uma assassina, então eu me tornei hïrzg por causa dela. Talvez tenha sido sua intenção desde o início.
Rochelle assentiu. Jan deu um passo em sua direção, que recuou a mesma distância. Ele se deteve.
— Você me lembra tanto dela, até mesmo o jeito de andar. Talvez eu devesse ter medo de você... você é uma assassina, Rhianna? — Jan riu da própria piada. — Rhianna, você não precisa sentir medo de mim. Acho que nós...
— Jan?
Ambos ouviram o chamado do quarto ao lado — a voz de Brie. A porta do quarto de Elissa começou a se abrir.
— Um mensageiro rápido chegou de Nessântico com notícias urgentes...
Jan virou a cabeça ao ouvir o som de seu nome e Rochelle aproveitou o ensejo para pegar o balde e fugir pela porta de serviço, fechando a porta e cortando a voz de Brie.
Ela tremia ao descer as escadas correndo.
Varina ca’Pallo
— Isso não se repetirá — disse Allesandra com a voz cheia de preocupação e raiva, enquanto afagava a mão de Varina. — Eu prometo.
Varina notou que a kraljica olhou de relance para sua cabeça enfaixada e levantou a mão reflexivamente para tocar a bandagem. A manga solta da tashta desceu por seu braço, revelando arranhões com crostas marrons. Os hematomas em seu rosto, que ela tinha visto esta manhã durante o banho, tinham ficado roxos e beges.
— Obrigada, kraljica. Eu aprecio sua preocupação, e obrigada por mandar sua curandeira pessoal; a poção dela ajudou bem a aliviar a minha dor de cabeça.
Allesandra acenou com a mão, dispensando o argumento. As duas estavam sentadas no solário da casa de Varina, sozinhas, exceto pelos dois valetes que acompanhavam a kraljica, parados em silêncio ao lado da porta. O aposento era o favorito de Karl na casa; ele frequentemente se sentava ali, lendo velhos pergaminhos ou escrevendo algumas observações na pequena mesinha que dava vista para o pequeno jardim do lado de fora. Sua bengala ainda estava encostada na escrivaninha que ele costumava usar; Varina a tinha deixado lá — os itens familiares faziam-na sentir como se ele fosse entrar no cômodo. “Ah, lá está minha bengala”, diria Karl. “Eu estava me perguntando onde eu tinha deixado isso...”
Mas Varina jamais ouviria sua voz de novo. O pensamento fez seus olhos brilharem de lágrimas, embora não tivessem caído. Através do véu ondulado de lágrimas, Varina viu Allesandra se inclinar em sua direção.
— Ainda sente dor?
— Não. — Ela secou os olhos. — Não é... nada. O sol nos meus olhos, embora eu ache que não deva reclamar. É bom finalmente ver o sol outra vez.
— Os vândalos que atacaram você foram executados.
Varina meneou a cabeça; não era o que ela queria, Karl sempre dizia — e ela mesma acreditava — que a retaliação severa apenas alimentava a raiva do inimigo. Mas a notícia não a surpreendeu, e Varina notou que não conseguiu sentir muita compaixão por eles.
Compaixão? Que compaixão você teve quando atirou em seu agressor? A imagem ainda se reproduzia em sua mente. Varina não achava que algum dia fosse esquecê-la. Mesmo assim... Ela faria de novo, se precisasse, e da próxima vez seria mais fácil. Varina se protegeria se fosse necessário e faria de todas as formas possíveis — através de magia ou de tecnologia. Para ela, não havia diferença: ambos eram produtos da lógica, raciocínio e experimentação.
Magia e tecnologia eram, basicamente, a mesma coisa.
A chispeira estava na gaveta da escrivaninha de Karl neste momento, recarregada. Ela quase podia sentir sua presença, podia imaginar o cheiro da areia negra.
Allesandra evidentemente atribuiu seu silêncio à aquiescência. Ela meneou a cabeça como se Varina tivesse tido alguma coisa.
— Eu falei com a a’téni ca’Paim e disse-lhe que considero esse incidente muito grave. Eu a alertei para a necessidade de ser enérgica com os morellis nos escalões dos ténis, e para o fato de que eu esperava que a fé concénziana continuasse a apoiar os direitos dos numetodos e não voltasse a pregar a opressão e a perseguição.
— Com todo respeito, kraljica, esta ordem deve ser dada pelo archigos Karrol, não pela senhora, nem pela a’téni ca’Paim. Infelizmente, eu receio que o archigos não compartilha do seu entusiasmo pelos numetodos, e a aversão que ele sente pelos morellis tem origem apenas no medo de que Nico Morel tenha realmente poder suficiente para tomar seu lugar, e não por algum desacordo em especial com relação à filosofia deles. Na verdade, o archigos e os morellis parecem muito bem alinhados.
Uma pequena careta de irritação tremulou nos lábios de Allesandra, mas foi rapidamente mascarada com um sorriso.
— Você está certa, é claro, Varina. Como sempre. Mas isso foi o que eu pude fazer, e espero que a’téni ca’Paim concorde comigo. Então talvez nós possamos fazer algo de bom.
A kraljica estendeu o braço para afagar a mão de Varina novamente.
— Vou deixá-la recuperar-se. Se precisar de alguma coisa, por favor, me avise. Eu receio que nós, os Domínios, precisaremos dos numetodos.
— Os tehuantinos? —Varina perguntou. — Os rumores, então, são verdadeiros... os ocidentais voltaram?
Allesandra respondeu com um único aceno com a cabeça. Era o suficiente.
— Eu tenho que ir — falou a kraljica ao se levantar. — Não, não se levante. Eu posso sair sozinha. Não esqueça: diga-me se precisar de alguma coisa. Os Domínios estão em dívida com você por seus serviços e pelos de Karl.
Os assistentes se apressaram em abrir a porta do solário enquanto Allesandra apertava o ombro de Varina ao passar por ela e saía. Varina ouviu a agitação de seus próprios funcionários conforme a kraljica percorria o corredor na direção da porta de entrada e de sua carruagem. Ela ouviu as portas se abrirem, e o barulho dos cascos dos cavalos e das rodas de aro de aço nos paralelepípedos da rua.
Varina não se mexeu. Ficou encarando as janelas e o jardim, a escrivaninha com a bengala de Karl, o puxador elegante da gaveta onde a chispeira estava guardada.
A porta de entrada foi aberta novamente. A criada do andar de baixo bateu suavemente na porta.
— A senhora precisa de alguma coisa, a’morce?
— Não, obrigada, Sula — respondeu Varina sem olhar para a criada.
Ela ouviu a porta do solário ser fechada novamente. Sentiu a brisa provocada pela porta acariciar sua bochecha.
— Eu sinto sua falta, Karl — ela disse para o vento. — Sinto falta de conversar com você. Eu me pergunto o que me diria para fazer agora. Eu queria poder ouvir você.
Mas não houve resposta. Jamais haveria.
Brie ca’Ostheim
Jan estava beijando alguém e Brie sentiu um imenso recalque de ciúme e irritação porque ele nem tinha se dado ao trabalho de esconder. Ele estava na sala de audiências do palácio, e todos estavam vendo Jan abraçar sua amante: Rance, o starkkapitän ca’Damont, o archigos Karrol, os filhos, todos os cortesãos e os ca’ e co’. Ela não pôde ver o rosto da mulher, mas seu cabelo era longo e preto, o som de sua paixão era tão alto que Brie podia ouvir uma batida como a de um coração...
A surda, mas insistente, batida vinha da porta de serviço, interrompendo seu sonho.
— Entre — respondeu a hïrzgin, sonolenta.
Ela esfregou os olhos e piscou, olhando para a sacada, onde as cortinas finas oscilavam contra a luz da falsa aurora atrás de si. Brie bocejou enquanto a porta era aberta de mansinho e Rhianna enfiava a cabeça dentro do quarto.
— Hïrzgin, Rance me mandou. O embaixador ca’Rudka voltou de Brezno.
— Sergei?
Brie acenou para a jovem entrar no quarto e se sentou na cama. Rhianna obedeceu quase timidamente e parou ao pé da cama, com a cabeça baixa.
— Ele voltou assim tão rápido? — perguntou a hïrzgin.
Rhianna assentiu.
— Sim. O assistente ci’Lawli disse que o mensageiro da embaixada dos Domínios informou que o embaixador chegaria ao palácio assim que tomasse um banho e se vestisse. Ele tem uma mensagem urgente da kraljica Allesandra.
O rosto de Rhianna pareceu se contorcer à menção do nome, como se tivesse um gosto ruim.
— Quer dizer que você não gosta da kraljica, Rhianna?
Ela deu de ombros.
— Desculpe-me, hïrzgin. Não sou eu. É a minha matarh. Ela... Bem, ela fez negócios com a kraljica. Antes de eu nascer. Não sei exatamente quais foram os problemas, mas a matarh nunca falou o nome da kraljica sem praguejar. Receio que a atitude dela tenha afetado a minha.
Brie riu.
— Bem, uma criança deve escutar o que sua matarh diz, e a atitude da sua matarh não seria tão estranha assim nesta família, creio eu. Ela ainda está viva?
Rhianna meneou a cabeça negativamente.
— Não, hïrzgin. Ela foi para o Segundo Mundo há três anos já.
— Ah, meus sentimentos. Deve ter sido difícil para você. — Brie empurrou as cobertas, pois o céu começava a ficar mais claro através das cortinas. — Rance lhe disse por que o embaixador tinha tanta pressa?
Brie estava certa de que já sabia quais eram as notícias que tinham trazido Sergei de volta para Brezno com tanta pressa — um mensageiro rápido do próprio embaixador ca’Schisler tinha vindo de Nessântico a Brezno não muito tempo após a chuva de cinzas, mas Rance e Jan fizeram pouco caso dos rumores que ca’Schisler relatou.
Eles estavam prestes a serem confirmados. Brie sabia disso.
Rhianna balançou a cabeça novamente.
— O assistente ci’Lawli disse apenas que o embaixador afirmou que a mensagem era urgente e pediu que a senhora descesse para a sala de recepção assim que estivesse pronta. O assistente mandou que servissem o café da manhã lá; fui informada de que o hïrzg já está presente e de que também mandaram chamar o starkkapitän e o archigos.
— Hum...
Brie suspirou e jogou as cobertas de lado completamente. Se isto for verdade, se os ocidentais estiverem vindo de novo...
— Então você vai ajudar a me vestir, Rhianna. No armário do quarto de vestir, quero vestir a tashta azul com os detalhes de renda preta. Vá pegá-las; eu estarei lá em alguns instantes.
Rhianna fez uma mesura e saiu do quarto para o cômodo de vestir adjacente. Brie suspirou e jogou as pernas para fora da cama.
Ela sentiu o frio do ar matinal em seus pés descalços e, através das cortinas, notou que as nuvens prometiam chuva.
Jan ca’Ostheim
— Você tem certeza disso? Certeza absoluta?
Jan encarava Sergei ca’Rudka ao fazer a pergunta, olhando para o rosto do homem, tentando ignorar a distração do nariz de prata. Não que alguém conseguisse ver uma mentira no rosto velho, enrugado e treinado do embaixador, ainda assim, Jan o encarava. Sergei simplesmente assentiu, devagar e com cuidado.
O hïrzg ouviu o suspiro coletivo dos demais em volta da mesa de conferências: o archigos Karrol, o starkkapitän ca’Damont, Brie e seu assistente, Rance.
— Ah, tenho certeza — respondeu Sergei.
A voz soou cansada, e seu manto de viagem ainda estava manchado pelas cinzas levantadas no caminho desde a capital dos Domínios. Ele enfiou a mão na bolsa de couro sobre a mesa à sua frente e pousou uma pilha de papéis amarrados na superfície de carvalho envernizado.
— Eu trouxe comigo as transcrições de vários mensageiros rápidos que vieram a Nessântico imediatamente após a chuva de cinzas; muitos são relatos em primeira mão de quem viu a frota tehuantina. A kraljica despachou mensageiros para o oeste a fim de verificar os relatos, mas estamos certos do que descobriremos. Eu vim o mais rápido possível, mas a esta altura... — Sergei ergueu os ombros. — Os ocidentais já devem ter desembarcado seu exército. Perdemos Karnmor para eles; Fossano já deve estar sob ataque, ou eles devem estar passando pela cidade na direção de Villembouchure, rio acima.
Jan viu-se ainda querendo negar as notícias. Como era possível que a magia ocidental tivesse despertado o monte Karnmor? Como era possível que eles tivessem destruído a frota dos Domínios e a cidade de Karnmor, como era possível que tivessem causado milhares de mortes e essa chuva de cinzas terrível?
— A erupção do monte Karnmor não poderia ter sido uma feliz coincidência para os ocidentais? — perguntou o hïrzg. — Eles não necessariamente causaram isso.
Sergei fungou com desdém.
— Eles não desembarcaram o exército na ilha. Levaram a frota para o norte de Karnmor, quando faria mais sentido ir diretamente para a boca do A’Sele. Uma de nossas testemunhas viu um navio tehuantino ancorar na encosta do monte Karnmor na noite em que a montanha explodiu e luzes nas encostas indo e voltando da embarcação. Isso não me parece coincidência, hïrzg.
E se eles pudessem fazer isso, o que mais poderiam fazer? Era nisso que todos estavam pensando, todos os presentes na sala.
— Quando o mensageiro rápido chegou de Nessântico, eu não quis acreditar — disse Jan. — Eu pensei que talvez...
— Eu disse que sua matarh não ousaria usar uma mentira tão ultrajante — interrompeu Brie.
— Sim, você disse — respondeu Jan, sem se esforçar para esconder a irritação em sua voz. — Embora eu ache que o fato de isso ser verdade não a impede de tentar tirar algum proveito da situação. Então, o que é que minha matarh quer, embaixador, para enviá-lo de volta a Brezno tão rápido?
— Ela pede a ajuda de Firenzcia e da Coalizão — disse Sergei, simplesmente.
— Pede ou exige? — interrompeu Jan.
Sergei espalmou as mãos delicadas e enrugadas.
— Isso importa, hïrzg Jan? A Garde Civile dos Domínios não conseguiu encarar e derrotar os tehuantinos sozinha há 15 anos. E continua sem conseguir.
De relance, Jan viu o starkkapitän ca’Damont se permitir um sorriso momentâneo.
— Então agora ela quer que nosso exército entre nos territórios dos Domínios. Que terrivelmente divertido e irônico.
— Não temos a obrigação de ajudá-los — argumentou o archigos Karrol.
A voz do velho tremia, e ele pigarreou ruidosamente, fazendo o catarro em seus pulmões se anunciarem.
— Se os tehuantinos querem atacar os Domínios, deixem-nos atacarem. Eles não virão para cá, e se vierem, cuidaremos deles então, quando suas fontes de abastecimento estiverem longe demais e suas forças estiverem fracas.
— Nenhuma obrigação de ajudar? — reagiu Sergei. — A própria obrigação que Cénzi nos dá no Toustour e também pelas regras da Divolonté. “É dever dos fiéis ajudar as pessoas da Fé que estejam em desespero.” Creio que esta seja uma citação precisa, ou o archigos decidiu abandonar os fiéis que por acaso vivem nos Domínios?
— Se sua kraljica não tivesse decidido interferir em questões da fé e decidido proteger e legitimar os numetodos, então talvez Cénzi não tivesse enviado essa provação para ela.
— Agora o senhor soa como Nico Morel, archigos. Confesso que acho isso, para usar as palavras do bom starkkapitän, terrivelmente divertido e irônico.
Jan bateu com as mãos na mesa.
— Embaixador, archigos, já chega!
Suas mãos formigaram com a força do impacto. O archigos Karrol fechou a boca, seus dentes rangeram de forma audível; Sergei simplesmente se recostou na cadeira, com a mão envolvendo o pomo de sua bengala.
— O que minha matarh oferece, embaixador? Porque ela deve estar oferecendo algo em troca.
Ao menos os tiques nervosos do homem eram previsíveis — Sergei esfregou a lateral do nariz de metal como se coçasse.
— Ela está disposta a lhe dar o que o senhor pediu — respondeu o embaixador.
Jan sentiu uma súbita pressão no peito.
— Ela o nomeará a’kralj — finalizou Sergei.
O hïrz sentiu a mão de Brie em seu braço.
— Onde está escondida a faca sob a seda dessas palavras?
O embaixador sorriu brevemente ao ouvir isso. E se inclinou para a frente na cadeira.
— Em troca do título, a kraljica pede que Firenzcia dissolva a Coalizão e volte imediatamente a fazer parte dos Domínios. Os outros países da Coalizão seriam convidados a voltar a fazer parte dos Domínios. Se eles se recusarem... — Sergei recostou-se. — Então a kraljica, depois que a crise acabar, talvez se sinta inclinada a fazê-los voltar à força, com o auxílio de Firenzcia e do exército do a’kralj... e hïrzg.
A pressão em seu peito o acometeu mais uma vez, e Jan viu-se rindo, com um som que mais parecia uma tosse. O archigos Karrol riu abertamente. Tanto Rance quanto o starkkapitän ca’Damont balançaram a cabeça. A mão de Brie soltou o braço do marido, deixando uma sensação fria para trás.
— Então a velha piranha ainda consegue o que quer — disse Jan.
— Isso é um meio-termo — respondeu Sergei. — Ambos conseguem uma parte do que queriam. E o senhor, hïrzg Jan, fica com o prêmio final: afinal, será o kraljiki dos Domínios unificados.
— Enquanto ela brinca de ser kraljica pelo resto da vida. — Jan zombou novamente. — E se ela ainda viver por décadas, eu viro o Justi da Marguerite dela, esperando pacientemente que ela morra para poder receber minha herança.
Os lábios de Sergei se contraíram; Jan não conseguiu perceber se de divertimento ou se simplesmente esperava a objeção.
— Eu acredito que posso convencê-la a colocar um limite de tempo em seu reinado, hïrzg. Afinal, Allesandra fará 60 anos em 570; ela pode ser persuadida a renunciar ao título em favor do a’kralj nessa altura, daqui a apenas sete anos.
— O que seria o momento adequado para, digamos, ocorrer um infeliz acidente com nosso hïrzg — intrometeu-se Rance.
Seu sorriso não mostrava os dentes, e seus lábios estavam franzidos quando ele inclinou a cabeça para Sergei.
— Essas coisas parecem ter o hábito de acontecer àqueles que estão envolvidos com a kraljica, afinal — ele acrescentou.
— Embora eu tenha conseguido sobreviver, de alguma forma — respondeu Sergei, espalmando as mãos. — A kraljica Allesandra tem seus defeitos, eu admito, mas não nos deixemos levar pelos rumores conspiratórios e atribuir cada infelicidade à sua influência. Com o seu perdão, archigos, ela está longe de ser o moitidi que muitos pintam.
Jan tinha ouvido apenas parte do diálogo.
— Ela ainda está se deitando com o embusteiro do Erik ca’Vikej?
Sergei suspirou.
— Sim — ele respondeu.
— E suponho que ela queira ca’Vikej no trono de Magyaria Ocidental, talvez até casado com ela. Outro aliado para mantê-la no trono.
Sergei não disse nada. Finalmente, Jan suspirou. É isto ou a guerra. Isto ou permitir que os ocidentais devastem os Domínios novamente — tornando-os sem valor para você. Ele olhou para Brie, que assentiu para ele.
— E ela faria como você o diz? — perguntou o hïrzg para Sergei. — Ela abdicaria do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário?
— Isto não está na oferta que ela fez, mas eu acredito que posso convencê-la da sabedoria desta opção — o embaixador respondeu. — Independentemente do que o senhor possa pensar a respeito de sua matarh, hïrzg, ou a respeito da escolha de seus amantes, a kraljica realmente quer o que é melhor para os Domínios. Ela sabe que isso significa reunificar os Domínios novamente.
— Hïrzg — interrompeu Rance —, perdoe-me, mas eu ainda não gosto disso. Não há razão para Firenzcia baixar a cabeça para Nessântico. Na verdade, deveria ser o oposto, o senhor deveria estar ditando os termos...
Rance se deteve quando uma batida soou na porta de serviço da sala.
— Ah, devem ser mais comidas e bebidas. Um momento...
Ele se levantou, fez uma mesura para Jan e se dirigiu até a porta. Rhianna estava entre os criados que entraram, o hïrzg a notou imediatamente, empurrando um carrinho cheio de taças, uma bandeja de doces e garrafas de vinho. Ela pareceu notar Jan e, no mesmo instante, baixou o olhar e continuou empurrando o carrinho até a ponta da mesa.
Brie também notara Rhianna. Jan se sentiu observado pela esposa enquanto olhava para Rhianna, e ouviu a respiração pesada de Brie. A conversa ao redor da mesa tinha se desviado para a chuva de cinzas, para a viagem de Sergei até lá — amenidades —, enquanto os criados colocavam as taças e os pratos diante de cada um deles, abriam garrafas e serviam seus conteúdos, e colocavam os doces ao alcance de todos. Jan fingiu escutar e participar da conversa, olhando deliberada e insistentemente para Brie enquanto falava, afastando o rosto cuidadosamente no momento em que Rhianna surgiu silenciosamente ao seu lado para colocar a taça e se afastar apressadamente. Ele percebeu que Brie olhava para a garota, notou a esposa estreitar olhos e narinas ao olhar para Rhianna, até mesmo enquanto sorria para Jan. Ele se esforçou para não desviar o olhar, embora quisesse fazê-lo. Havia algo na garota que o fazia querer falar com ela, ouvir sua voz, encarar seu rosto e, com sorte, conhecê-la bem melhor...
Mas se ele quisesse isso, teria que ter paciência. Teria que ser cuidadoso.
Paciência.
De repente, Jan riu, assustando Brie e os demais. Ela tocou seu rosto interrogativamente, como que se perguntando se a sombra em volta de seus olhos tivesse borrado.
— Algo errado, meu amor?
— Não, não — respondeu ele.
Rhianna, juntamente com os outros criados, já estava saindo da sala, conduzida por Rance, que fechou a porta atrás deles e retornou à mesa.
— Starkkapitän, eu quero que você reúna três divisões do exército: uma no desfiladeiro Loi-Clario e duas em Ville Colhelm; archigos, você coordenará com o starkkapitän para garantir que ele tenha ténis-guerreiros suficientes para operações em larga escala. Rance, partiremos de Brezno para a Encosta do Cervo em dois dias, esperaremos por mais notícias lá.
— Então o senhor aceitará a oferta da kraljica? — perguntou Sergei.
Jan balançou e cabeça.
— Não. Eu estou preparando meu país para uma possível guerra contra os ocidentais, porque o que você me contou a respeito de Karnmor é assustador. Talvez essa guerra chegue até nós...
Ele aguardou, pegou a taça que Rhianna tinha colocado ao lado e tomou um gole do vinho. Era acre e seco, e vermelho como sangue.
— Sergei, se você conseguir convencer minha matarh de que ela estaria mais confortável caso abdicasse do Trono do Sol em seu sexagésimo aniversário, e se ela declarar isso publicamente e por escrito para mim e para o Conselho dos Ca’, tanto de Nessântico quanto de Brezno, então talvez Firenzcia possa entrar nessa guerra, onde quer que ela esteja a essa altura. Eu mereço essa paciência, creio eu.
Sergei assentiu, levantou a bengala e bateu com força no chão.
— Então, hïrzg, preciso apenas comer e tirar o resto destas malditas cinzas das roupas e do corpo antes de retornar imediatamente a Nessântico.
Rochelle Botelli
Se Rochelle quisesse encarnar a Pedra Branca, se quisesse ser o que sua matarh a tinha ensinado a ser, então ela não podia esperar mais. O hïrzg e a hïrzgin, sua família — juntamente com Rance ci’Lawli e seus funcionários particulares — partiriam em dois dias, e isso arruinaria todo seu planejamento até então.
Rochelle tinha se demorado porque queria estar ali, queria conhecer melhor seu vatarh. Mas agora ela tinha que agir, se fosse agir.
Se Rochelle cumprisse o contrato e matasse Rance ci’Lawli como matou todos os outros, então talvez tivesse que ir embora do palácio com a mesma rapidez e, ao ir embora do palácio, teria de deixar seu vatarh para trás, para sempre.
Ela conhecia um pouco do mesmo conflito emocional que devia ter arrasado sua matarh em sua época: grávida da filha de Jan, apaixonada por ele e, mesmo assim, forçada a fugir — porque se ele soubesse quem ela era, esse conhecimento também destruiria esse amor e qualquer chance que ela tivesse. Rochelle passou o dedo na pedra pendurada na bolsinha de couro em volta de seu pescoço, o seixo branco que sua matarh acreditava conter as almas das pessoas que ela tinha assassinado. Eu entendo, matarh, pensou Rochelle, como deve ter sido difícil para a senhora...
Mas ela não era a sua matarh. Não era atormentada pelas vozes. Tinha acabado de se tornar a Pedra Branca. E sua matarh tinha sido demasiado enamorada por sua faca e por ver suas vítimas morrerem.
Havia outras maneiras de se matar alguém e, se ela fizesse direito... Bem, seria possível cumprir o contrato e não precisar fugir de cena. Tudo o que Rochelle precisava era de provas suficientes de sua inocência.
Com esse intuito, ela tinha seduzido Emerin ce’Stego, um dos gardai de confiança do palácio. Na última semana, Rochelle tinha passado o máximo de noites possível com ele em seu pequeno quarto nos níveis inferiores da ala da criadagem, uma vez que ambos geralmente estavam trabalhando durante o dia e os gardai do palácio tinham permissão para passar noites fora do quartel ocasionalmente. Emerin era bastante agradável e gentil, e não muito mais velho do que ela. E também tinha lindos olhos verdes; ela gostava de olhar para eles quando os dois faziam amor e de ver sua expressão de surpresa quando atingia o clímax. Nas primeiras noites, Rochelle fazia questão de acordar no meio da noite, agitando a cama e fazendo barulho para que Emerin acordasse, sonolento, e conversasse com ela.
— Você tem um sono tão leve, amor — disse Rochelle. — Deve ser seu treinamento.
Ele sorriu, quase com orgulho.
— Um garda precisa estar alerta, mesmo enquanto dorme. Nunca se sabe quando será chamado ou quando algo acontecerá.
— Bem, eu não conseguiria me esgueirar para longe de você durante a noite. Ora, eu me esforcei tanto para não perturbá-lo...
Sua matarh entendia de facas e armas cortantes, mas também conhecia o resto do repertório de um assassino, e Rochelle tinha prestado muita atenção a essa parte da sua educação. Foi muito fácil, na noite em que o embaixador de Brezno nos Domínios foi embora, colocar um entorpecente na taça de vinho de Emerin — uma poção para dormir de ação lenta. Os dois fizeram amor, e ele adormeceu. Rochelle saiu da cama e se vestiu, levando consigo a arma dada por sua matarh, sua adaga favorita, com gumes escurecidos pelo alcatrão que ela teve cuidado para não tocar.
Rochelle tinha se familiarizado com a rotina do palácio e da ala da criadagem. A equipe da noite estaria trabalhando; a equipe de dia, dormindo. Raramente alguém andava pelos corredores. Ela conseguiu escapulir pela única porta que dava para fora, depois se esgueirar pela parede em meio à noite nublada, sem lua, até a janela do quarto de Rance. Rochelle notou a fogueira dos gardai perto do portão e as silhuetas dos homens ao seu redor — olhando para fora, e não na direção do palácio, de qualquer forma, sua visão noturna estava prejudicada pelas chamas.
Os criados faziam a limpeza dos aposentos de Rance alternadamente; a vez de Rochelle tinha sido há três noites, e ela tinha aproveitado a ocasião para trocar a tranca de metal do batente de Rance por outra que ela tinha feito com argila seca e pintada. Ela precisou de apenas alguns instantes para empurrar a janela com força. A argila se quebrou e esfacelou facilmente; as duas janelas se abriram. Rochelle ouviu o ronco de Rance lá dentro — praticamente lendário entre os criados. Ela ergueu seu corpo e entrou de mansinho, caindo quase silenciosamente no chão e fechando as janelas novamente.
Rochelle não precisava de luz; ela tinha se familiarizado com o quarto. Rance invariavelmente dormia sozinho. “Ninguém conseguia dormir de verdade com aquele barulho na mesma cama” era geralmente a resposta irônica dos criados quando alguém especulava sobre a vida amorosa do assistente. Ela tinha ouvido fofocas mais nefastas — que Rance tinha sofrido um acidente quando era jovem e não tinha mais o equipamento necessário para tais atividades.
Seja qual fosse a razão, ele sempre dormia sozinho. Os olhos de Rochelle já tinham se adaptado à escuridão, e podia ver a protuberância de seu corpo sob as cobertas — não que alguém precisasse de mais do que ouvidos para localizá-lo. Ela caminhou na ponta dos pés até a cama. Rance tinha jogado um travesseiro no chão; Rochelle o pegou, tirou a adaga da bainha e, com um movimento, mergulhou o travesseiro sobre o rosto de Rance e deslizou a adaga pela lateral, provocando um corte superficial, mas comprido — a profundidade do golpe não importava, apenas que o veneno negro da lâmina entrasse em seu corpo.
Rance acordou com um sobressalto imediatamente, agitando as mãos cegamente, mas Rochelle colocou todo o peso de seu corpo sobre o homem. O veneno da adaga já estava fazendo seu efeito mortal; ela podia ouvir seu engasgo sufocado nos gritos abafados, e as mãos se debatendo e sacudindo espasmodicamente. Um instante depois, as mãos caíram sem vida sobre a cama. Cuidadosamente, Rochelle tirou o travesseiro da cabeça de Rance. Em meio à penumbra, ela pôde ver a boca aberta, a língua negra e grossa saindo de sua boca, o vômito espalhado em seu queixo. Seus olhos estavam arregalados. Ela retirou os dois seixos da bolsinha pendurada no pescoço rapidamente: o seixo da Pedra Branca e aquele que Josef co’Kella lhe dera. Rochelle colocou a pedra de sua matarh sobre o olho direito de Rance, a de co’Kella, no esquerdo. Um momento depois, ela pegou o seixo do olho direito e o guardou novamente na bolsinha. Rochelle limpou a adaga na roupa de cama antes de embainhá-la outra vez.
Caminhando em direção à janela, ela trocou a lingueta de metal e amarrou um barbante em volta rapidamente. Ela pulou a janela novamente e fechou as duas partes da janela; ao puxar o barbante, Rochelle fez com que a lingueta de metal se prendesse à lingueta oposta e, com outro puxar do barbante, se ajustasse entre os dois segmentos da janela.
Pouco tempo depois, ele estava de volta à cama, ao lado de Emerin.
Quando, na aurora, um grito os acordou.