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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MAGIA DA AURORA
A MAGIA DA AURORA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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          Niente

 


Niente

O mar estava calmo, e os nahualli que Niente designou para evocar os ventos trabalhavam intensamente com seus cajados mágicos. A proa dos navios esculpia longas brumas de água branca. Niente contemplava do castelo de popa do Yaoyotl, que começara sua vida como um navio de guerra dos Domínios até ser capturado há 15 anos. O Yaoyotl já tinha feito essa travessia uma vez, quando o tecuhtli Zolin realizara sua tola e fatal invasão nos Domínios. Agora a embarcação seguia para o leste outra vez, desta vez acompanhada por trezentos navios da marinha tehuantina, três vezes a quantidade que Zolin usara, com um exército a bordo do tamanho daquele que esmagara as forças dos Domínios em Munereo e nas outras cidades da terra de seus primos, no litoral do mar Oriental. Niente podia ver as velas sobre as amuradas do Yaoyotl ondulando como uma revoada de grandes pássaros brancos marinhos cobrindo o oceano.

A vista era formidável. Quando os orientais vissem a frota se aproximando, eles estremeceriam de medo. Niente sabia disso; ele tinha visto nas visões de Axat, na tigela premonitória. E viu novamente, neste instante, ao baixar o olhar para a tigela de latão diante de si. Niente tinha polvilhado o recipiente com pó mágico e usado o poder do X’in Ka para abrir o caminho da visão. Agora ele espiava as brumas esverdeadas, com o filho ao seu lado e sob a supervisão cuidadosa de seu assistente nahuali. Em meio às brumas, as cenas passavam rapidamente por Niente: ele viu a grande ilha de Karnmor despejar uma imensa coluna de fumaça e cinzas no céu enquanto o chão tremia e o próprio mar se contorcia em agonia. Viu a grande frota tehuantina subir pela boca do rio A’Sele, viu os exércitos se espalharem pela praia, viu as muralhas de Nessântico e o exército do inimigo reunido ali.

Mas ele franziu a testa ligeiramente ao fixar o olhar; antes, a cenas tinham a nitidez da realidade. Agora, estavam borradas e ligeiramente obscuras, como se as estivesse vendo mais com os próprios olhos do que com a ajuda de Axat. Isso o preocupou.

Onde está o Longo Caminho? Por que a Senhora o esconde de mim, Axat?

Não, lá estava ele... Mais uma vez, Niente viu o tecuhtli e o nahual mortos, e atrás deles, o Longo Caminho. Mas este, também, não estava tão nítido quanto antes. Várias visões interferentes deslizavam entre ele e o caminho, como se Axat estivesse dizendo que o curso dos acontecimentos estava contorcendo e revirando os fios do futuro. Niente espiou com mais atenção, tentou ver se ainda conseguia encontrar o rumo do Longo Caminho. Ele voltou atrás no tempo, viu a miríade de possibilidades se desdobrando...

O nahual sentiu seu filho, Atl, se aproximar de seu ombro, olhando fixamente para a tigela premonitória com a respiração presa, como se tivesse medo de que o olhar penetrasse as brumas e destruísse a visão. Niente sabia o que viria a seguir; e sabia também que não podia deixar que Atl visse. Ele exalou bruscamente, balançando as brumas verdes, e agarrou a tigela. Com um movimento brusco, Niente jogou a água no mar sobre a amurada, sibilando friamente. No mesmo instante, Niente sentiu o cansaço do feitiço afetá-lo e cambaleou ali mesmo. Atl passou o braço por sua cintura e o amparou.

O nahual deu um longo suspiro e pousou a tigela premonitória de volta na mesa. Ele se endireitou, e Atl se afastou dele.

— Limpe isto — disse Niente para o assistente mais próximo.

O homem se apressou e pegou a tigela de latão, inclinando a cabeça para Niente e saindo depressa.

— Vou descansar agora — informou Niente para os demais — e falarei com o tecuhtli Citlali mais tarde. Não havia nada de novo na visão.

Os nahualli fizeram uma mesura. Niente podia sentir seus olhares sobre si: será que ele estava mais fraco do que antes? Será que suas rugas tinham ficado mais fundas em seu rosto, suas feições mais distorcidas e deformadas, e seus olhos mais brancos de cataratas do que antes? Será que este era o momento de desafiá-lo, de se tornar nahual? Era nisso em que os nahualli pensavam, todos eles.

Seu filho talvez pensasse ainda mais que qualquer um dos outros.

Niente não podia permitir que isso acontecesse. Não ainda. Não até que ele cumprisse a visão que vislumbrara na tigela. O nahual fez um esforço para ficar tão ereto quanto sua coluna curvada permitia para sorrir seu sorriso torto e fingir que seu corpo não incomodava mais que o normal para um homem de sua idade.

Os nahualli, com protestos educados, começaram a se dirigir a suas outras obrigações.

— O senhor interrompeu a visão antes que estivesse completa — falou Atl baixinho.

— Não havia mais nada para ver.

— E como o senhor sabe disso, taat? O senhor não me disse que Axat às vezes altera a visão, que os atos dos que estão presentes na visão podem mudar o futuro, que a pessoa deve estar sempre atenta às mudanças para se manter no melhor caminho?

— Não havia mais nada — repetiu Niente.

Ele notou a dúvida no rosto do filho, e a desconfiança também. Niente forçou um tom agressivo em sua voz, como se tivessem voltado 20 anos no tempo e Atl tivesse quebrado uma tigela na casa.

— Ou você está pronto para me desafiar como nahual? Se estiver, então pegue seu cajado mágico.

Niente estendeu a mão para pegar seu próprio cajado, apoiado à mesa do castelo de popa. A ponta nodosa estava gasta pelos anos de uso, as figuras entalhadas dançavam sob seus dedos. Ele apoiou-se no cajado mágico como se fosse uma bengala, permitindo que suportasse seu peso.

Atl balançou a cabeça, obviamente contrariado em abandonar a discussão.

— Taat, eu também tenho o dom da premonição. O senhor sabe disso. Pode enganar os outros nahualli, mas não a mim. O senhor viu alguma coisa que não quer que eu veja. O que é? O senhor viu sua morte, como fez com a do tecuhtli Zolin e Talis? Foi isso?

Niente se perguntou se o que ouviu na voz de Atl era medo ou expectativa.

— Não — ele respondeu, esperando que o jovem não notasse a mentira. — Você está enganado, Atl. Não aprendeu tanto assim sobre premonição para saber.

— Porque o senhor não permite. O senhor sempre diz “Olhe para mim”. “O preço a pagar caro demais”. Bem, taat, Axat me deu o dom, e seria um insulto a Ela não usá-lo. Ou o senhor tem medo que eu queira ser o nahual no seu lugar?

O vento da maresia agitou o longo cabelo escuro de Atl; a vela sobre eles retumbou e estalou. O capitão do Yaoyotl berrou ordens, e os marinheiros correram para seus afazeres.

— Você será nahual — disse Niente para o filho. — Um dia. Tenho certeza disso.

Eu vi... Ele pensou, mas não ousou dizê-lo por medo de que isso alterasse o futuro.

— Axat lhe deu o dom, sim. E eu... eu tenho sido um mau taat e um mau nahual por não lhe ensinar tudo que sei. Talvez, talvez eu sinta um pouco de inveja do seu dom.

Niente viu a expressão no rosto de Atl: outra mentira, pois não havia inveja dentro dele, apenas um pavor lento, mas ele sabia que as palavras convenceriam o filho.

— Eu gostaria de começar a compensar você por isso, Atl. Agora: esta noite, depois de eu conversar com o tecuhtli Citlali. Venha à minha cabine quando me trouxerem o jantar, e eu começarei a mostrar a você. Pode ser?

Em resposta, Atl deu-lhe um abraço vigoroso. Niente sentiu seu filho beijar o topo de sua cabeça calva. Ele foi solto bruscamente e viu o filho sorrindo.

— Eu estarei lá — prometeu Atl.

O rapaz começou a se virar e parou. Ele olhou para o pai, sobre os ombros.

— Obrigado.

Niente meneou a cabeça e respondeu com seu sorriso torto, mas não havia nenhum ardor no gesto, nenhuma alegria.

Ele se perguntou por quanto tempo conseguiria manter a visão de Axat em segredo. E se — caso Atl viesse a se dar conta do que a visão significava — ele conseguiria alcançar essa visão de alguma forma.

Sergei ca’Rudka

Os campos ao longo da Avi a’Firenzcia estavam coloridos com as tendas do exército da Coalizão. “Em manobras”, dissera o assistente do corpo de funcionários do palácio que escoltou Sergei da fronteira até Brezno, mas ambos sabiam o que realmente era aquilo: um ajuntamento de tropas e uma ameaça direta. Um comunicado vindo de Il Trebbio foi entregue a Sergei antes que ele cruzasse a fronteira, informando-o a respeito da incursão de um batalhão pelo território de Il Trebbio sob o comando do starkkapitän ca’Damont. O batalhão havia recuado, mas obviamente vinha sondando para ver que resposta provocaria.

E agora essa concentração de tropas perto da fronteira de Nessântico...

Jan, o que você está aprontando? Quer mesmo cutucar os Domínios com essa vara curta?

Sergei sabia, enquanto sua bengala batia nas lajotas de mármore do Palácio de Brezno a caminho da reunião com o hïrzg Jan, como isso acabaria. A alça de uma pequena bolsa diplomática estava pendurada em seu ombro, e ele tinha adquirido habilidade suficiente ao longo dos anos para abrir a carta selada em seu interior e ler o que Allesandra escrevera ali. Rance, o assistente do hïrzg, fez uma mesura quando Sergei se aproximou da sala de recepção exterior dos aposentos de Jan. Sua expressão era agradável, mas havia desdém sob ela: Sergei sabia que Rance era um dos que aconselhavam o hïrzg a manter a Coalizão intacta e recusar qualquer acordo com os Domínios.

— O hïrzg acabou de entrar — disse o homem —, mas pede a sua compreensão, pois está com a hïrzgin e seus filhos. Uma marca da ampulheta...

— Eu adoraria vê-los — respondeu Sergei — para poder levar um relatório sobre a aparência das crianças à vavatarh delas.

Rance deu de ombros e abriu um sorriso fingido.

— Só um momento, então, e informarei ao hïrzg — disse Rance, que se voltou para um dos criados. — Por obséquio, acompanhe o embaixador até a sala externa e sirva-lhe alguns petiscos.

Rance fez outra mesura e desapareceu no corredor. Sergei acompanhou o criado até uma das salas de espera e aceitou uma taça de vinho e um prato de rétes doces de queijo. Não muito tempo depois, Rance voltou e acompanhou o embaixador por um corredor curto até outra porta. Do outro lado, Sergei ouviu várias vozes e risadas de crianças. O assistente deu duas batidas secas e a porta se abriu.

Os dois filhos mais velhos, Elissa e Kriege, brincavam com um tabuleiro de chevaritt sobre a mesa, observados pelo hïrzg; o filho homem mais novo, Caelor, assistia por trás dos ombros do irmão. A caçula, Eria, estava sentada no colo de sua matarh, perto da janela, e brincava com uma pilha de tricô, enquanto uma babá dobrava fraldas e roupas em um banco perto de uma das portas de saída.

— O embaixador ca’Rudka — anunciou Rance enquanto Sergei entrava na sala.

O som da bengala foi abafado pelo tapete espesso. Elissa virou-se para olhar.

— Vatarh, é o Velho Nariz de Prata!

— Elissa! — Jan lançou um olhar de desculpas para Sergei. — Isso é terrivelmente grosseiro.

— Bem, é assim que o starkkapitän ca’Damont o chama — respondeu ela.

Elissa fechou a cara e cruzou os braços. Uma das peças do jogo, um téni-guerreiro, ainda estava em sua mão.

— Mesmo assim, você tem que pedir desculpas ao embaixador — falou Jan, mas Sergei tossiu suavemente e interrompeu o hïrzg.

— Não é necessário, hïrzg. Já fui chamado de coisas piores, e ao menos ambas as partes do apelido são verdadeiras. A propósito, há presentes para as crianças, enviados por sua mamatarh nos aposentos da embaixada; eu os mandarei para cá hoje à tarde.

— Presentes!

O grito tinha vindo das três crianças mais velhas ao mesmo tempo, e até mesmo Eria tinha tirado os olhos do emaranhado do tricô da hïrzgin Brie.

Sergei riu — na verdade, os filhos de Jan e Brie o divertiam. Eles eram espertos, encantadores e saudáveis. Era uma pena que Allesandra não os conhecesse tão bem quanto ele.

— Se vocês falarem com Rance, aposto que ele mandaria um mensageiro pegar os presentes agora, se seus vatarh e matarh aprovarem.

— Vatarh? Matarh? — berrou Elissa imediatamente. — Podemos?

Brie sorriu complacentemente e olhou para Jan.

— Podem ir — ela disse para os filhos, entregando Eria para a babá. — E esperem pelos presentes na sala de brinquedos, por favor. Não fiquem incomodando o Rance.

As crianças saíram com a babá e chamaram Rance.

— Elas são crianças adoráveis — comentou Sergei quando saíram. — Vocês dois tiveram muita sorte.

— Isto é o que dizem as pessoas que não são pais — falou Brie rindo.

— Estou certo de que todos os seus filhos se comportam perfeitamente, o tempo todo.

Tanto Brie quanto Jan riram.

— Vamos deixá-los com você enquanto estiver aqui, Sergei — disse o hïrzg. — Isso vai fazê-lo mudar de ideia.

Nesse momento, o sorriso foi recolhido, e Jan acenou para que Sergei se sentasse em uma das cadeiras à mesa. O embaixador notou que o hïrzg pousou o olhar sobre a bolsa diplomática em sua cintura.

— Mas estou certo de que você não veio aqui para nos elogiar ou entregar presentes. O que minha matarh tem a dizer? Da última vez que esteve aqui, você disse que esperava intermediar um acordo e fazer com que ela me nomeasse o a’kralj. Ela concordou?

Sergei olhou para o jogo de chevaritt em andamento à sua frente antes de responder. Eles disputavam uma partida de dois jogadores, e o número de peças restantes no tabuleiro era mais ou menos igual. No entanto, Sergei viu um erro na maneira como as peças de Kriege estavam dispostas: se Elissa andasse três espaços com a vanguarda, ela estaria atrás das linhas de Kriege. O garoto teria que trazer três chevarittai para se proteger — e isso deixaria dois fortins abertos, sendo sitiados por ambos os flancos.

Ele se perguntou se Elissa também tinha visto aquilo. Pelo posicionamento das peças, Sergei suspeitava que sim.

— Elissa sempre vence — comentou Jan, evidentemente notando a atenção que Sergei dispensara ao tabuleiro. — Gosto de pensar que, pelo menos no jogo, ela não nega sua origem.

Com os dedos espalmados, Jan andou com as peças da vanguarda da filha: três espaços à frente. Sergei ergueu os olhos e coçou a lateral do nariz.

— Ah, então o senhor também viu.

Jan sorriu.

— Da mesma maneira que o fato de você não ter respondido à pergunta que fiz também me diz qual foi a resposta da kraljica.

Sergei enfiou a mão dentro da bolsa diplomática e retirou a carta novamente selada. Ele a pousou na mesa e bateu com o indicador no papel grosso ao lado do selo de cera vermelha.

— A kraljica ofereceu uma... contraproposta.

Jan olhou para a carta, sem estender a mão para pegá-la.

— Então vamos ouvi-la. Imagino que você já tenha lido, embora o selo ainda esteja intacto.

— Isto seria impróprio da minha parte, hïrzg — respondeu Sergei.

Ele ouviu Brie pigarrear e olhou para ela; sua atenção estava voltada para o tricô. Brie pareceu sentir a pressão do olhar de Sergei e falou sem tirar os olhos das agulhas.

— Allesandra diz que se continuarmos a ameaçar suas fronteiras, ela tomará uma atitude — falou a hïrzgin. — Ela interpretou a oferta de Jan como uma “capitulação”, não como um acordo. Ela sugere, como alternativa, que o hïrzg deveria dissolver sua tola Coalizão e tornar-se novamente “o braço forte” dos Domínios.

Sergei quase riu.

— A senhora tem ouvidos no palácio, hïrzgin? “Capitulação” é exatamente a palavra que a kraljica usou.

Brie pousou o tricô em seu colo e ergueu os olhos.

— Eu sei como ela pensa — respondeu a hïrzgin, com um sorriso espreitando os cantos da boca. — Meu marido pensa da mesma maneira.

— Brie... —

Jan começou a protestar, mas foi calado pela risada sutil da esposa.

— Isso não é uma crítica, meu amor — falou Brie. — Eu admiro você, sempre admirei. Mas você é filho da sua matarh.

Ela voltou a tricotar, e as agulhas soaram como espadas se chocando ao longe.

— E este é o problema; se entre vocês dois houvesse um líder medíocre, então não haveria Domínios e Coalizão, mas um único império.

— Este foi o meu erro — admitiu Jan. — Eu tive a oportunidade de fazê-lo há 15 anos. Podia ter tomado o Trono do Sol.

Ele olhou para Sergei, que exibia uma expressão cautelosamente neutra: nenhum assentimento, nenhuma expressão de concordância ou discordância.

— Mas eu era jovem e queria ensinar uma lição a minha matarh. Em vez disso, descobri que sou o aluno.

Novamente, Brie ameaçou sorrir.

— Vocês dois querem a mesma coisa, sempre quiseram. Infelizmente, vocês dois também consideram que sua visão de mundo é a certa.

A hïrzgin pousou o tricô no banco ao seu lado, se levantou e se dirigiu até Jan. Ela pegou o braço do marido, apoiou-se nele e beijou seu rosto.

— Eu te amo, meu querido, e compartilho de sua visão, mas também compreendo como sua matarh enxerga as coisas.

Jan passou o braço pela cintura da esposa e puxou-a para si. Sergei se levantou, com os joelhos estalando como gravetos secos sendo pisados. Ele apoiou-se na bengala e ajeitou o sobretudo.

— Deixarei que vocês dois leiam a resposta da kraljica e redijam a sua para mim, embora eu possa imaginar qual seja. Se quiserem, podemos discutir sobre a carta e suas possibilidades para chegarmos a termos mais equitativos. Gostariam de jantar na embaixada hoje à noite? Fui informado de que temos um novo chef, especializado em iguarias de Navarro...

— Nós adoraríamos — Brie respondeu.

Jan assentiu um momento depois.

— Então vejo vocês hoje à noite, uma virada da ampulheta depois da Terceira Chamada? Ótimo...

Sergei fez uma mesura para o casal, se dirigiu até a porta e bateu nela com a bengala. Um dos criados do corredor abriu para ele, que se perguntou, ao caminhar pelo corredor até o portão onde a carruagem o aguardava, quanto tempo levaria antes que filho e matarh estivessem novamente em guerra.

Nico Morel

Eles montaram o palanque no Parque do Templo rapidamente, não muito longe do antigo templo que ficava ali — o mais velho (e menor) dos templos da fé concénziana em Nessântico. A princípio, os morellis concordaram que Ancel seria o orador e eles permaneceriam ali não mais do que uma marca da ampulheta — tempo este que seria suficiente, com sorte, para que um utilino ou a Garde Kralji não reagissem, ainda que Nico tivesse preparado distrações caso as autoridades chegassem. O próprio Nico não discursaria; ele assistiria detrás do palanque com Liana e o resto do círculo interior dos morellis, pronto para fugir e desaparecer nas densas ruelas do Velho Distrito se as autoridades atacassem a manifestação.

Mas a multidão era maior do que o previsto. Notícias da manifestação tinham se espalhado de boca em boca, através de cartazes enigmáticos nas paredes de Nessântico que apenas seus seguidores entenderiam, mas a resposta tinha sido muito maior do que qualquer um deles imaginara. Nico estava certo de que alguma informação sobre a manifestação teria vazado para o pessoal do comandante, mas eles procuraram cuidadosamente por qualquer sinal que indicasse que eles seriam impedidos de falar. Nico não ficou surpreso ao não encontrar nenhum: o próprio Cénzi o protegia, era sua Voz Absoluta. Após o encontro com Varina, ele tinha voltado para casa com a cabeça doendo e os sentimentos confusos. Passou o resto do dia rezando e, nessa noite, Cénzi falou com Nico em seus sonhos: de maneira clara, sem enganos. Ele tinha dito a Nico o que precisava ser dito.

Cénzi falaria através de Nico hoje. E Nico obedeceria, como qualquer servo devia fazer. Ele escreveu as palavras que Ancel diria; Liana já tinha colocado o pergaminho no palanque. O que surpreendeu Nico foi o fato de que, no mesmo momento em que seus seguidores começaram a montar a pequena plataforma, a multidão começou a se reunir. Os primeiros a chegar foram os morellis da cidade, que já eram fiéis. Mas a multidão continuava a crescer, muito além do número de pessoas que já havia jurado publicamente sua lealdade a Nico. Espalhados pela multidão estavam robes verdes: os ténis da cidade, a maior parte do escalão dos e’ténis — os novos ténis, aqueles que podiam ter ouvido falar de Nico desde que ele voltou a Nessântico, mas que ainda não tinham tido a oportunidade de vê-lo discursar. Agora, no momento em que as trompas do templo anunciavam a Segunda Chamada, quando muitos na multidão deveriam estar nas missas, eles estavam aqui. Trezentas pessoas, pelo menos, talvez mais.

Aqui. Para escutar a palavra de Cénzi.

Você tem que discursar. Eles vieram ouvir você, ouvir Minhas palavras pelo dom da sua voz.

A compreensão o atingiu com força, como um golpe em sua têmpora. Ele quase cambaleou devido ao seu impacto. Liana agarrou o braço de Nico, sentindo sua reação.

— Nico...?

— Eu estou bem. Cénzi acabou de falar comigo.

Ele ouviu Liana respirar fundo.

— Há perigo?

— Não — respondeu Nico, quase rindo. — Exatamente o oposto. Ele quer que eu discurse.

— Você não pode — discordou Liana. — Todo mundo disse que é muito perigoso.

— Eu não corro perigo, não enquanto estiver sob a proteção de Cénzi.

Nico deu um tapinha em sua mão e, em seguida, acariciou sua barriga. Ele sentiu a criança se mexer sob sua mão e sorriu para Liana.

— Eu ficarei bem. Por favor, não se preocupe.

Ela franziu a testa, mas soltou seu braço. Ele sorriu para Liana e deu-lhe um beijo na bochecha, depois subiu rapidamente os dois degraus do pequeno palco onde Ancel já desenrolava o pergaminho. Nico foi recebido por um urro da plateia; Ancel desviou o olhar do pergaminho ao ouvir o som, olhou para o mar de mãos apontando para Nico, e virou a cabeça abruptamente. Sua voz mal conseguiu ser ouvida em meio ao urrar da multidão.

— Absoluto? Eu pensei...

Nico fez o sinal de Cénzi para ele.

— Eu ficarei bem, Ancel, mas agradeço se você ficar aqui comigo para vigiar os gardai. Cénzi... Cénzi quer que eu passe Sua mensagem para a nossa gente com minha própria voz.

Ancel arregalou os olhos e se curvou em uma longa reverência para Nico, fazendo o sinal.

— O pergaminho... Aqui está.

Ele entregou o papel para Nico, que sorriu para o amigo e balançou a cabeça.

— Eu não preciso disso. Cénzi me dará as palavras.

Outra mesura. Nico subiu no palanque e a multidão redobrou o barulho. Ele ergueu as mãos e fechou os olhos ao erguê-los para o céu. Ele podia sentir o sol em seu rosto e a adulação da multidão o atingir como um golpe físico.

— Pelo Senhor, Cénzi — sussurrou Nico. — Pelo Senhor.

Ele abriu os olhos e fez um gesto pedindo silêncio. Lentamente, a multidão obedeceu.

— Cénzi abençoa a todos vocês hoje — falou Nico.

Ele ouviu Cénzi se mesclar a sua voz, ouviu-a soar alta e retumbante no parque, como um e’téni usando o Ilmodo para amplificar sua Admoestação, ainda que Nico não tivesse criado tal feitiço. Não, esta era a presença de Cénzi, envolvendo o Segundo Mundo em suas palavras para que todos o ouvissem.

— Eu rezei, minha gente, e prestei atenção, e eu ouvi a Voz de Cénzi.

A última frase soou como um urro que atingiu a plateia e pareceu sacudir as árvores do parque, e as pessoas urraram de volta, sem dizer nada.

— O momento está chegando, Ele me disse, um momento em que teremos que fazer uma escolha, em que teremos que decidir se seguiremos Seu caminho ou o caminho dos fracos humanos. O momento está chegando, e está chegando em breve, meus amigos; muito em breve, teremos que mostrar para Ele que ouvimos Suas palavras e que as obedeceremos. As palavras estão lá para nós. Nós as ouvimos nas palavras do Toustour e da Divolonté. Nós as ouvimos nas palavras das Admoestações nos templos. Nós as ouvimos nas palavras dos profetas e dos ténis, mas...

Ele fez uma pausa momentânea, fechando os olhos e erguendo o rosto novamente.

— O fim dos tempos se aproxima de nós. Ele vem devagar, irreversível. Os ténis da Fé já não ouvem as palavras de Cénzi. Ah, eles as pronunciam, mas não as ouvem, não as sentem. As palavras do Toustour e da Divolonté deveriam golpeá-los como o próprio punho de Cénzi. Elas arrebentarão suas almas e as farão renascer, novas em folha, se vocês permitirem. Eu digo a vocês: é disso que nós precisamos agora. Precisamos nos abrir para Cénzi e deixar que Ele nos transforme em Sua lança!

As palavras emanaram como fogo da boca de Nico. A onda de calor que emergiu delas atingiu pessoas diante dele, que gritaram novamente sua convicção.

— Diga-nos, Absoluto! — alguém berrou, e todos a ecoaram, em uníssono.

— Diga-nos! Diga-nos!

Nico ouviu a multidão por vários segundos, enquanto seu peito arfava pelo esforço de falar. Finalmente, ele ergueu as mãos e todos se calaram novamente. Em meio ao silêncio, à quietude, Nico voltou a falar, e embora a voz não fosse mais que um sussurro, todos conseguiam ouvi-lo. Ele ouviu sua voz reverberar nas paredes do templo, do outro lado do parque.

— Cénzi me disse que não podemos mais tolerar os hereges entre nós. Não podemos tolerar nem mesmo aqueles que vestem os robes verdes mas que falham ao ouvir Suas palavras quando são ditas. O archigos e seus a’ténis falam com suas línguas falsas. Não podemos mais tolerar aqueles que este mundo abençoou com poder e dinheiro, mas que não enxergam que essas bênçãos derivam de Cénzi, não de si mesmos. Ele trará fogo e destruição. Trará morte e escuridão. Ele nos mostrará nossa estupidez para que todos vejamos, e quando Ele o fizer...

Outra pausa. Ele pronunciou cada uma das palavras a seguir claramente. Devagar. Cada uma em seu próprio tempo.

— Temos. Que. Responder.

As pessoas gritaram, aplaudiram, ergueram as mãos. Mas Nico, olhando por sobre a multidão, pôde ver atrás da última fila da multidão a Garde Kralji uniformizada, esquadrões de gardai que entravam aos borbotões no Parque do Templo.

— O sinal está chegando! — Ele berrou. — Nós o conheceremos em breve! Eu lhes prometo isso porque Ele me prometeu. Mas, olhem — Nico então apontou para a Garde Kralji —, existem aqueles que querem evitar que vocês ouçam as minhas palavras. Que querem me impedir de dizer a Verdade, porque a Verdade é a sua inimiga. Olhem!

A multidão se voltou para trás e viu a Garde Kralji, começando a berrar. Conforme os gardai abriam caminho à frente, tentando chegar ao palco, a multidão empurrava de volta. Os gardai reagiam com seus cassetetes. Algumas pessoas foram derrubadas com o ataque. Um e’téni na multidão soltou um feitiço: um jato de fogo que, rugindo, atingiu as fileiras de gardai.

De repente, virou um caos — muita gente na multidão avançou pelo novo buraco aberto entre as fileiras de gardai. Cassetetes subiram e desceram, e agora havia uma batalha campal no parque. Os apitos dos utilinos soaram, e o Ilmodo agora era usado contra a multidão. Uma rajada de vento controlado atingiu o palco e jogou o público mais próximo no chão, sobre a grama do parque, assim como jogou Nico sobre Ancel.

— Absoluto! — Ancel gritou alto em meio ao barulho da confusão. — Temos que ir embora! Agora!

Nico olhou ao longe. Não havia nada que ele pudesse fazer aqui, Cénzi estava mudo na sua cabeça.

— Eles não me ouvem — disse Nico. — Isto é desnecessário. Os fiéis não deveriam lutar entre si.

Mais gardai entravam no parque, alguns com uniformes da Garde Civile, armados com espadas e lanças em vez de cassetetes. Nico viu cabeças sangrando. Ele começou a se dirigir para a frente do palco, mas Ancel pegou seu braço. Liana tinha subido no palanque agora, juntamente com vários integrantes do círculo interno. Todos cercaram Nico.

— Vocês verão!

Nico berrou para a multidão, mas a voz era apenas sua voz agora, e ainda que o tivessem escutado, não lhe deram atenção. Nico estava exausto, tão cansado como se tivesse usado o Ilmodo. Ele caiu sobre as mãos dos seguidores, que o levaram rapidamente para o fundo do palco e escada abaixo.

— Terminamos aqui — disse Ancel para os demais. — Agora precisamos proteger o Absoluto e levá-lo embora. Rápido.

Nico pegou a mão de Liana enquanto seus seguidores cerravam o círculo ao seu redor, e eles fugiram para as profundezas do Parque do Templo, na direção do labirinto das ruas do Velho Distrito.

Varina ca’Pallo

A oficina de Pierre ficava no jardim dos fundos do terreno da Casa dos Numetodos, na Margem Sul. Ela cheirava a ferro, óleo, madeira e verniz, e também à salsicha que Pierre não terminou de comer, deixada sobre uma mesinha lateral no cômodo atulhado. Cada superfície de trabalho estava tomada; não havia madeira aparente nos tampos das bancadas. Vários instrumentos e apetrechos estranhos em vários estágios de montagem estavam dispostos aleatoriamente. Varina só podia imaginar o que metade deles poderia ser. O ambiente era iluminado pelo sol que entrava por várias claraboias com heras nas bordas; os raios de luz iluminavam o ar tomado pela serragem: Pierre lixava uma tábua presa em um torno sobre uma das bancadas.

— A’morce — disse o homem subitamente ao notar Varina à porta.

Ele largou a lixa, levantando uma nuvem de poeira reluzente.

— Eu não esperava pela senhora.

Conforme ela entrava, Pierre ia tirando meia dúzia de cinzéis de madeira de cima do assento de uma cadeira, enxotando a gata que estivera aninhada em meio às ferramentas. Ele fez um gesto para Varina se sentar, enquanto a gata rosnava, irritada, e entrava debaixo da bancada mais próxima para lamber as patas e ficar amuada.

— Eu soube que os morellis causaram um tumulto de grandes proporções no Parque do Templo ontem — falou Pierre. — Pelo menos uma dezena de pessoas foi morta, pelo que ouvi dizer, mas o desgraçado do Morel escapou.

Varina meneou a cabeça, em silêncio. Seu complexo de culpa a corroía por dentro novamente: por ter deixado Nico viver quando podia tê-lo matado; por se permitir pensar que poderia ser o juiz e o executor do rapaz; por ter decepcionado a Karl; por ainda nutrir sentimentos maternais por Nico após todos esses anos; por pensar que ele era digno de redenção; pela estranha simpatia que tinha por ele.

Pelo que estava prestes a fazer agora.

Karl, é isto o que eu devo fazer? É o que você teria feito como a’ morce? Ao pensar nisso, Varina foi tomada pela tristeza mais uma vez e teve que virar as costas a Pierre por um momento. Todo mundo a alertara de que seria assim: a tristeza recuaria lentamente, que por muito tempo ainda ela se lembraria de Karl e a dor a invadiria novamente.

Pierre deve ter pensando que uma fagulha tinha entrado no olho de Varina.

— Morel disse que haveria um sinal de Cénzi — ele continuou. — Algo a respeito de fogo, destruição e morte, pelo que ouvi dizer.

Pierre fungou com desdém.

— Se essa é a profecia, bem, qualquer um de nós poderia ganhar a vida como profeta. Há bastante fogo, destruição e morte todos os anos que cheguem para vinte profecias vagas como essa. Se Cénzi fosse tão poderoso como Morel parece acreditar, ele teria dado sinais inconfundíveis e suas profecias teriam sido mais específicas. Ora, se Morel me dissesse que o sol nasceria no oeste amanhã e isso acontecesse, aí sim, isso talvez me convença a entrar para a fé concénziana.

Ele riu da própria piada. Varina sorriu educadamente e secou os olhos rapidamente. Pierre pareceu encarar o sorriso como um incentivo.

— O que me incomoda — ele disse — é que havia evidentemente uma quantidade considerável de gente dando ouvidos aos morellis, e muitos eram ténis também, não dá para acreditar. Estou dizendo, os problemas dos numetodos podem estar prestes a começar de novo.

— Nico consegue ser bastante charmoso e convincente — disse Varina. — Ele tem muita presença.

E caso eu tivesse dúvidas quanto aos relatos, encontrá-lo fez com que eu os confirmasse.

Pierre deu de ombros.

— Pelo que ouvi, a multidão na verdade resistiu à Garde Kralji quando os gardai apareceram e permitiu que o desgraçado escapasse. Haverá derramamento de sangue entre os morellis e nós numetodos, a’ morce. Guarde o que eu digo... e me chame de profeta também.

Ele sorriu e ergueu ombros novamente.

— Mas, perdoe-me, a’ morce, por falar sem parar. Suponho que a senhora tenha testado o dispositivo que fiz. Funcionou? Ele sobreviveu à experiência?

— Sobreviveu — respondeu Varina.

Pierre meneou a cabeça, e ela viu uma intensa satisfação estampada em seu rosto.

— Eu fiquei muito contente com ele — continuou Varina. — É por isso que estou aqui. Quero mais dispositivos. Um punhado deles, na verdade.

Agora suas sobrancelhas se ergueram em seu rosto magro. Inconscientemente, Pierre limpou a serragem da frente da bashta. Seu olhar percorreu a oficina.

— Um punhado — murmurou ele, de maneira quase inaudível. — A’ morce, todo o trabalho que eu tenho aqui para fazer... Os pedidos de instrumentos e dispositivos, feitos por outros numetodos para seus estudos... Não sei nem mesmo por onde eu começaria...

Ele ergueu as mãos; Varina notou suas cicatrizes e calos e falou:

— Contrate alguns aprendizes competentes. Eu mesma pagarei sua remuneração, o que você achar justo. Compre o material que precisar e mande a conta para mim. Os dispositivos não precisam ser tão... — Varina pausou e sorriu para Pierre — ... primorosos quanto o que você fez para mim. Faça com que eles trabalhem sob a sua supervisão; você pode inclusive pedir a eles que lhe ajudem em outros serviços, se necessário. Eu não me importo.

Ela respirou fundo e sentiu um arrepio.

— Pierre, isso é necessário para a proteção de todos os numetodos.

— A’ morce, eu não ouvi...

— Não ouviu porque eu não disse nada para mais ninguém. E nem você deveria contar. Posso contar com sua discrição, imagino?

Ele ergueu ainda mais as sobrancelhas.

— Claro, a’ morce. Claro. É só que...

— Sim?

Pierre meneou a cabeça negativamente.

— Nada, a’ morce.

Ele passou a mão em suas coxas, levantando uma nuvem de poeira que brilhou no raio de luz mais próximo.

— Eu farei como o pedido, e espero que a senhora fique satisfeita com os resultados.

— Ótimo — respondeu Varina. — Obrigada, Pierre. Eu passarei no próximo draiordi para acompanhar seu progresso.

Ela se levantou, ajeitou o sobretudo sobre a tashta e falou:

— Espero que eu esteja enganada e que nada disso seja necessário. Na verdade, isso é o que me deixaria mais contente, mas duvido que eu tenha esse prazer.

Allesandra ca’Vörl

O comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji, e o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile, estavam ambos em uma inquieta posição de sentido diante do Trono do Sol. Os cortesãos e o público tinham sido dispensados do salão, e a costumeira reunião mensal do Conselho interrompida. O Conselho dos Ca’ estava sentado à direita do Trono e, exceto pelos criados a postos próximos às paredes, prontos para atender a qualquer pedido, não havia mais ninguém ali para testemunhar o desgosto que os relatórios causaram em Allesandra.

Ninguém além de Erik ca’Vikej, que estava sentado atrás do Conselho. Allesandra notou os conselheiros se esforçando para ignorar a presença do homem; seu constrangimento era quase agradável. Entre os conselheiros, apenas Varina parecia não notá-lo. Allesandra tinha a impressão de que ela estava perdida em seus próprios pensamentos; Varina não tinha dito nada durante a reunião inteira.

— Nico Morel foi capaz de fazer um discurso público, um discurso que atacou tanto a Fé quanto o Trono do Sol, e nós, ainda assim, fomos incapazes de capturá-lo.

Allesandra fungou com desdém. O brilho amarelo intenso do Trono do Sol a envolvia; ela pôde ver a claridade entre seus dedos quando apertou os braços cristalinos do Trono. Pôde ver as rachaduras na pedra translúcida e entalhada onde o Trono, danificado no assassinato do kraljiki Audric, há 15 anos, tinha sido reparado. As rachaduras não brilhavam, mas permaneciam teimosamente opacas apesar dos melhores esforços dos ténis-luminosos.

— Não era isso o que eu queria ouvir.

Ela ouviu Erik bufar com um divertimento frio diante do comentário.

— Nem é o que queríamos relatar, kraljica — respondeu o comandante co’Ingres. — Eu estava no comando da operação, não o comandante ca’Talin, que tinha concordado em apoiar a Garde Kralji e, portanto, não deve ser responsabilizado por isso. Eu não tenho nenhuma desculpa adequada, e não darei nenhuma.

— Então é bom que eu tenha recebido outros relatórios do acontecimento, comandante — falou Allesandra. — Eu sei que seus gardai foram atacados pela multidão, e que eles tiveram um controle admirável em não responder no mesmo tom contra os cidadãos dos Domínios.

Co’Ingres inclinou a cabeça em direção à ela em sinal de reconhecimento.

— Mas eu acho que o tempo de contenção contra os morellis já passou — ela continuou. — No futuro, ambos têm a minha permissão para usar a força que acharem necessária.

Allesandra olhou para Varina ao dizê-lo. Ela não fez sinal algum, só olhava fixamente para as mãos entrelaçadas em seu colo, e Allesandra se perguntou se Varina sequer tinha ouvido o que ela disse.

— Nico Morel deve ser encontrado e julgado pelo assassinato dos cidadãos de Nessântico e pelos danos que causou aqui — ela disse para os comandantes e conselheiros.

Os comandantes menearam suas cabeças, recebendo as ordens como qualquer bom soldado deveria, mas os cinco integrantes do Conselho dos Ca’ não estavam tão de acordo. Varina estava perdida em seus próprios pensamentos. Henri ca’Sibelli, primo de Allesandra, assentiu, e a papada sobre seu pescoço balançou com o movimento. Mas os outros três... a mão de Simon ca’Dawki cofiava sua barba branca, e sua boca se contorcia como se ele tivesse provado um gosto azedo; Anaïs ca’Gerodi inclinou-se na direção de Edouard ca’Matin e sussurrou algo em sua orelha peluda, ao que o homem reagiu franzindo o cenho vigorosamente, sacudindo a cabeça devido à paralisia que o afligia.

Será que calculei mal o apoio de Nico Morel aqui? Allesandra viu-se desejando que Sergei ainda estivesse na cidade; ela precisava de sua honestidade nua e crua. Mas, no lugar do embaixador, ela olhou para Erik.

Ele também franzia o cenho, mas sua irritação era dirigida ao Conselho: Allesandra viu que Erik tinha notado a reação deles.

— Estamos de acordo? — ela perguntou aos conselheiros.

— Estamos, kraljica — respondeu ca’Sibelli, mas sua voz foi a única ouvida.

Os outros não disseram nada; e, caso discordassem, não o diriam aqui, na frente dela.

— Ótimo — disparou Allesandra.

Se eles estavam demasiado inseguros em manifestar seu descontentamento, que ficassem descontentes. Ela se levantou do Trono do Sol, e o brilho dentro do cristal morreu. O salão pareceu subitamente escuro.

— Estamos encerrados. Comandantes, conselheiros, obrigada pelo seu tempo.

Os comandantes fizeram mesuras e saíram rapidamente, com os saltos de suas botas batendo ruidosamente nos ladrilhos do salão do Trono do Sol; os conselheiros se entreolharam, inseguros, então finalmente levantaram de suas cadeiras soltando vários gemidos e murmúrios. Eles fizeram mesuras para Allesandra e, com hesitação, para Erik antes de começarem a sair do salão, mais lentamente que os dois soldados.

— Varina — chamou Allesandra —, um momento, por obséquio...

Quando o último dos conselheiros saiu do salão e os criados fecharam as portas, Allesandra se aproximou de Varina e pegou em suas mãos.

— Como você está? — perguntou Allesandra. — Estou preocupada com você. Não disse absolutamente nada hoje.

— Desculpe-me, kraljica.

— Você está recuperada de seus ferimentos?

— Ferimentos? — perguntou Varina, como se não soubesse do que Allesandra estava falando. Então ela se lembrou: — Ah, os ferimentos. Sim, completamente. Obrigada pela preocupação.

Sua voz soou indiferente, e ela parecia mais cansada e esgotada que o habitual. Sua face esquerda parecia ceder ligeiramente, e seu olho esquerdo estava embaciado. Allesandra se lembrou de outros casais de longa data que conheceu, e de como quando um cônjuge morria, o outro geralmente o seguia para os braços de Cénzi logo depois. Ela se perguntou se este seria o caso com Varina.

— Mandarei meu curandeiro visitá-la hoje à noite — falou a kraljica, fazendo um gesto para interromper o protesto que se formava na boca de Varina. — Não, não ouvirei suas desculpas, minha querida. Eu insisto. Sei que você tem os numetodos para cuidar de você, mas Talbot me contou que você está se enterrando no trabalho, que fica trancada no laboratório. Isso não é saudável, Varina. Você deveria sair ao ar livre, se divertir com os amigos.

— Acho que estou sentindo minha mortalidade, kraljica. Não tenho muito tempo a perder, e ainda há muito o que fazer, muito que compreender.

— Você estará aqui ainda por anos e décadas — disse a kraljica.

Era uma mentira educada, e ambas sabiam disso.

— Você perdeu o Gschnas para cuidar do pobre Karl, e isso é uma pena. Eu darei outra festa em breve; você será convidada, e eu insisto que venha. Não aceito desculpas.

— A kraljica é gentil demais — respondeu Varina. — Claro que virei, mas eu preciso voltar à Casa dos Numetodos. Estou conduzindo uma experiência...

Ela fez uma mesura quase imperceptível e começou a se virar, então parou.

— Kraljica?

— Sim?

— Eu sempre disse a Karl que Nico podia ser recuperado, que se tivéssemos tido a oportunidade de falar com ele... — Varina umedeceu os lábios secos e rachados, rodeado de rugas. — Eu estava errada.

— Você realmente falou com ele? — perguntou Allesandra.

Varina assentiu.

— Nico está convencido de que está certo e que todos nós estamos errados. E ele é mais perigoso do que qualquer um de nós pensávamos.

Dito isso, Varina repetiu sua imperceptível mesura e arrastou os pés na direção das portas, com os passos de uma mulher duas décadas mais velha do que era.

— Ela está certa, e você sabe.

A voz sobressaltou Allesandra; ela tinha se esquecido de que Erik ainda estava ali. Ela sentiu a mão dele tocar seu ombro e pousou sua bochecha sobre ela.

— Eu sei — respondeu Allesandra. — E isso me assusta.

Rochelle Botelli

— O desgraçado do ci’Lawli me tirou da lista de chevaritt — disse co’Kella, xingando entredentes.

Conforme as instruções de Rochelle, o homem não voltara o olhar para as sombras onde ela estava.

— Ele mandou minha filha que está carregando o filho do hïrzg embora, e não estão me oferecendo quase nada, nada, em troca. Ora, eu teria sido nomeado ca’Kella no pronunciamento do hïrzg se ci’Lawli não tivesse interferido. Eu poderia até mesmo ter me tornado conselheiro a tempo. Agora ci’Lawli tem que pagar: por mim, por minha filha, pela sorte da minha família.

Era um conto antigo, uma versão da mesma história que ela tinha ouvido um punhado de vezes em sua curta carreira como Pedra Branca, uma história que sua matarh, certamente, tinha ouvido inúmeras vezes.

— Se é assim que deseja, vajiki — respondeu Rochelle moldando sua voz em um tom grave e ameaçador —, deixe as solas e a pedra que mandei trazer como sinal e vá para casa. Dentro de um mês, o homem estará morto. Eu lhe prometo.

Ele deixara a bolsinha de moedas de ouro e a pedra branca e lisa. Rochelle as pegou.

Rance ci’Lawli. Matá-lo significaria estar próximo de seu vatarh. Ela podia sentir a empolgação dentro de si pulsar diante da ideia.

Ela criou uma identidade para si mesma. Sua matarh tinha lhe mostrado como a Pedra Branca fazia isso. Rochelle já tinha quatro ou cinco identidades falsas, algumas usadas no passado: garotas que tinham nascido em anos próximos ao dela, mas que morreram na infância. Eram de todo tipo, de pessoas comum, sem status, a pessoas do escalão dos ca’. Em relação a essas últimas, ela conhecia suas genealogias, os nomes de seus vatarh e matarh, suas cidades e títulos, e quem essas pessoas conheciam. Sua matarh a tinha alertado que ela deveria tomar cuidado com identidades falsas, especialmente quando se subia a escala social para os ca’ e co’. Ela tinha contado sua história para sua filha, em tom de alerta, sobre como quase tinha sido descoberta em Brezno, quando se fez passar por Elissa ca’Karina, quando “Elissa” e o hïrzg Jan tinham sido amantes.

Quando a própria Rochelle foi concebida.

“A elite se conhece”, disse a matarh para Rochelle, após o segundo ou terceiro assassinato de Rochelle como Pedra Branca, pouco antes dela morrer. “Ah, cale-se, você não sabe do que está falando”. A fala tinha sido um aparte para uma das vozes na cabeça da matarh; Rochelle tinha aprendido a filtrar tais comentários. “Eles são um grupo fechado, muitos integrantes da elite têm parentesco entre si, e as ligações familiares são importantes para eles — e, por causa disso, eles conhecem essas ligações. Você deve ter cuidado com o que diz pois a menor distorção pode te revelar. Sim, eu sei disso, seu idiota. Por que você continua me atormentando assim? Cale a boca! Cale-se logo!” Ela apertou suas mãos contra os ouvidos como se pudesse deter o diálogo interno e inclinando-se na cadeira para frente e para trás, como se sentisse dor.

Dois dias depois, sua matarh estava morta. Por suas próprias mãos.

Rochelle não precisava seguir esse conselho nesse caso. Ela se apresentou a Rance ci’Lawli como Rhianna Berkell, uma jovem sem status de Sesemora que tinha vindo a Brezno para fazer fortuna tentando um emprego no quadro de funcionários do palácio. Ela trazia consigo recomendações em papel timbrado de três chevarittai de Sesemora, com quem supostamente tinha trabalhado. O papel timbrado e os nomes neles eram genuínos; o papel tinha sido roubado na ocasião em que ela estivera em Sesemora com sua matarh, anos atrás; as recomendações eram, obviamente, completamente falsas. Mas Rochelle era uma atriz talentosa: ela sabia o que dizer, como se apresentar, e que habilidades poderiam colocá-la em melhor situação no corpo de funcionários do palácio. Também sabia como flertar sem obviedade, e ci’Lawli era suscetível às atenções de uma linda jovem. Três dias depois, a convocação chegou à estalagem onde Rochelle estava hospedava: ela seria contratada. Foi colocada pelo assistente ci’Lawli na criadagem real, onde cuidaria da ala do hïrzg no palácio e trabalharia diretamente com ci’Lawli. Ao longo dos dias que se seguiram, Rochelle fez questão de fazer um trabalho superior e observar. Observar e aprender os hábitos e rotinas de ci’Lawli.

Ela também se viu ocasionalmente no mesmo ambiente que seu vatarh. Em uma ou duas ocasiões, ela pensou tê-lo visto olhando para ela de um modo estranho e se perguntou se o hïrzg sentia o mesmo impulso que ela. Mas, na maior parte do tempo, especialmente se a esposa ou os filhos estivessem no aposento, Jan prestava tanta atenção nela quanto nos quadros das paredes; Rochelle era — assim como todos os funcionários — mera parte da mobília do palácio.

Hoje, ela tinha sido enviada para limpar a sala de recepção do lado de fora dos cômodos dos aposentos principais do hïrzg. As crianças estavam em outro lugar, mas Jan e a hïrzgin tinham tomado café da manhã com o embaixador dos Domínios, ca’Rudka, que estaria deixando Brezno hoje.

Conforme ela entrava pela porta de serviço carregando uma bandeja para limpar a mesa, ca’Rudka — cujo rosto fez Rochelle estremecer, com seu terrível nariz de prata colado à pele enrugada — fazia uma mesura para Jan e Brie.

— ... levarei sua carta à kraljica assim que eu voltar.

— E nesse ínterim, você certamente terá lido a carta, apenas para garantir que ela corresponde ao que eu lhe disse — falou Jan.

Ele riu. Rochelle adorava o som de sua risada: cheia de calor puro e bruto. Também gostava do som da sua voz. Queria ter conhecido Jan na infância, ouvido sua voz sussurrando uma boa noite ou sentido seus braços a embalando em frente à lareira, contando histórias de sua juventude, ou talvez contos da longa história de Firenzcia e seus ancestrais.

— Ora, Jan, não dê ideias ao embaixador — a hïrzgin interveio.

Rochelle não estava certa quanto ao que sentia pela matarh de seus meios-irmãos. A hïrzgin Brie parecia gostar genuinamente de Jan, mas Rochelle já tinha ouvido comentários e visto olhares que a faziam se perguntar se essa afeição era recíproca. Também havia a fofoca palaciana, mas ela ainda não estava a par dos detalhes das suspeitas cuidadosamente sussurradas.

— Não se preocupem — disse Sergei para ambos. — O hïrzg já me disse exatamente como ele pensa, mas confio que ele tenha se expressado de maneira mais diplomática na carta para a kraljica. Pelo menos, eu espero que sim.

O trio riu novamente, mas o divertimento durou pouco desta vez e tinha um quê de outra coisa que Rochelle não conseguiu decifrar. A voz de Sergei ficou subitamente séria e baixa.

— Eu realmente espero que consigamos encontrar uma forma de passar por isso sem recorrer à violência. Uma nova guerra não seria bom nem para os Domínios, nem para a Coalizão.

— Isso só depende da minha matarh — respondeu Jan.

— E depende da Coalizão não provocá-la nesse meio-tempo — retrucou Sergei. Ele meneou a cabeça e fez uma mesura para os dois. — Estou indo, então. Enviarei uma resposta por mensageiro rápido assim que falar com a kraljica Allesandra. Deem um beijo nas crianças por mim, e que Cénzi os abençoe.

Ele fez uma mesura novamente e saiu da sala, enquanto Rochelle continuava a empilhar pratos sujos na bandeja.

— Eu vou ver as crianças — disse Brie. — Você vem, querido?

— Daqui a pouco — Jan respondeu.

— Ah.

A estranha e vaga inflexão dessa única palavra fez Rochelle erguer os olhos de seu serviço, mas Brie já se aproximava da entrada dos aposentos internos, com as costas voltadas para ela. Rochelle voltou-se para seu serviço novamente, os pratos batendo suavemente ao serem empilhados.

— Você é nova na equipe de funcionários?

Rochelle levou um momento para perceber que Jan falava com ela. Ela notou que ele a observava do outro lado da mesa. Rochelle fez uma mesura rapidamente, com a cabeça baixa, como tinha visto outros criados fazerem na presença de Jan.

— Sim, meu hïrzg — respondeu ela, sem erguer os olhos. — Eu fui contratada há uma semana.

— Então você obviamente impressionou Rance, se foi colocada na criadagem do palácio. Qual é o seu nome?

— Rhianna Berkell.

— Rhianna Berkell — Jan repetiu, como se a provar o nome. — Soa bonito. Bem, Rhianna, se fizer um bom trabalho aqui, um dia você talvez receba um ce’ antes do nome. O próprio Rance era ce’Lawli há apenas dois anos, e agora é ci’Lawli. E quase certamente será co’Lawli um dia. Nós recompensamos àqueles que nos servem bem.

— Obrigada, senhor. — Ela fez uma mesura novamente. — Eu tenho que voltar à cozinha...

— Olhe para mim — disse Jan.

Ele falou com uma voz meiga, gentil, e Rochelle ergueu o rosto. Seus olhos se encontraram, e o olhar de Jan permaneceu em seu rosto.

— Você me lembra...

Ele parou. Seu olhar pareceu se perder por um momento, como se estivesse perdido nas próprias memórias.

— ... alguém que eu conheci.

Jan estendeu sua mão, e os dedos da mão direita tocaram no rosto dela — o toque, pensou Rochelle, de um vatarh. Ela abaixou o olhar rapidamente, mas pôde sentir o toque dos dedos em sua pele por longos segundos depois.

— A bandeja, meu hïrzg — disse Rochelle.

— Ah, sim. Isso. É claro. Obrigado, Rhianna. Eu lhe agradeço.

Rochelle levantou a bandeja e seguiu na direção da porta de serviço. Ela podia sentir o olhar de Jan em suas costas ao abrir a porta com o quadril. Ela não ousou olhar para trás, com medo de que, se o fizesse, revelasse o segredo, com medo de que chamasse Jan pelo nome que tinha vontade de usar.

Vatarh...

Ela não podia fazer isso. Não agora.

Não ainda.

Varina ca’Pallo

Ela tinha armado a demonstração no salão principal da Casa dos Numetodos. Havia dois punhados de numetodos de longa data ao lado dela: entre eles, Pierre Gabrelli, que sorria, pois já sabia o que ela pretendia mostrar; o assistente-chefe da kraljica, Talbot ci’Noel; Johannes ce’Agrippa, talvez o mais talentoso dos magos numetodos, cujo estudo das práticas de magia tinha superado as descobertas do próprio Karl, e de Varina; Niels ce’Sedgwick, cujo interesse não era voltado a qualquer tipo de magia, mas sim nas formações geológicas da Terra e no que elas contavam de sua história; Leovic ce’Darci, cujos elegantes desenhos de prédios e maravilhas da engenharia eram não só um deleite, como também começavam a mudar o horizonte de Nessântico; Nicolau Petros, que estudava as estrelas e seus movimentos com um dispositivo baseado em um objeto que Karl tinha visto o espião Mahri usar; Albertus Paracel, o escriba e bibliotecário que era o encarregado da criação de uma já monumental compilação de todo conhecimento adquirido através das pesquisas e experiências dos numetodos. Todos eles eram essenciais para tarefa central dos numetodos — entender como o mundo funcionava sem o véu da superstição e da religião, usando a razão e a lógica para compreender os mistérios que os cercavam.

Eram aqueles que Nico Morel e sua laia consideravam tão terrivelmente ameaçadores.

Alguns numetodos estavam ausentes, no entanto — aqueles que Nico já havia matado, e que, na verdade, eram os mais próximos de Karl e Varina. Ela não podia fazer nada por eles, a não ser sentir a dor de sua ausência e de Karl.

Varina tinha continuado seus próprios experimentos com a chispeira. Ela refinara a mistura de areia negra e o formato e a composição da bala de chumbo disparada pelo dispositivo; mandara também que Pierre criasse algumas peças experimentais. A cada dia, Varina via com mais clareza o potencial assustador da chispeira e também estava mais convencida de que esse dispositivo poderia alterar os próprios tendões e fibras da sociedade em que eles viviam.

Varina às vezes se perguntava se essa mudança era algo que ela realmente queria desencadear.

“Não se pode esconder o conhecimento.” Era o que Karl dizia muitas vezes, ao longo de décadas. “O conhecimento se recusa a ser escondido. Se se tentar enterrá-lo, ele simplesmente encontrará uma maneira de se revelar para outras pessoas.”

Muito bem. Então ela não esconderia.

— Obrigada por terem vindo — disse Varina para o grupo reunido. — Todos vocês conhecem a areia negra. Todos conhecem a terrível destruição que ela pode causar quando acesa em grande escala. Meus experimentos recentes têm envolvido quantidades significativamente menores que as usadas na guerra e sem uso de magia alguma para acendê-la. E...

Ela se deteve, dando um passo na direção da mesa que ela tinha armado e coberto com um pano preto. A vários passos de distância, um melão maduro tinha sido preso a um suporte, em frente a uma mesa de carvalho deitada, que serviria como barreira: uma fruta do tamanho da cabeça de um homem, envolta por uma casca dura amarelo-esverdeada. Uma cabeça tão dura quanto a de um melão — um velho ditado nos Domínios. Varina pôde notar que todos olhavam para a instalação com curiosidade.

— Bem, é mais fácil simplesmente demonstrar.

Ela acenou com a cabeça para Pierre, que tirou o pano da mesa. A chispeira original do artesão estava ali, linda e reluzente, já carregada e pronta para uso. Varina pegou a arma sem dizer uma palavra, engatilhou-a e mirou a fruta doce.

Ela puxou o gatilho.

A chispeira estalou. A areia negra no tambor espocou; a chispeira deu um coice na mão de Varina soltando um estampido alto. Na outra extremidade do salão, a fruta pareceu explodir, espalhando pedaços pelo chão enquanto o restante partido pulou sobre o suporte. No silêncio que se seguiu, todos puderam ouvir o sumo da fruta destroçada pingando no chão.

O simbolismo, como Varina tinha esperado, tinha sido apreendido por todos eles.

— Sem magia? — murmurou Talbot. — Nenhuma?

Varina meneou a cabeça em negativa. O estampido da chispeira ainda ecoava em seus ouvidos; uma fina coluna de fumaça branca oscilante saía do cano.

— Sem magia — confirmou Varina. — Algumas pitadas de areia negra, uma bala de chumbo, e a habilidade artesanal de Pierre. E pode ser repetido. Afastem-se...

Ela pediu aos numetodos que tinham ido examinar a fruta despedaçada e as tábuas de madeira atrás dela, onde a bala estava cravada. Varina recarregou — um trabalho que levou alguns segundos —, engatilhou a chispeira e disparou novamente. Desta vez, os pedaços remanescentes da fruta foram completamente destroçados, e o suporte caiu para trás. Varina pousou a chispeira sobre a mesa e falou.

— Pierre fez uma chispeira para cada um de vocês, eu os ensinarei a usá-las.

— A’morce, isso... — disse Talbot, enquanto olhava para fruta arruinada no chão. — Por quê?

— Receio que os numetodos estejam prestes a serem atacados novamente — explicou Varina. — Com essas chispeiras, vocês não precisam ter habilidade com espada, força física ou magia para se defender. Tudo o que vocês precisam fazer é apontar o dispositivo e puxar o gatilho. Receio que precisaremos de toda proteção que pudermos arranjar.

Leovic tinha ido até a mesa. Ele virava a chispeira em suas mãos, examinando seu mecanismo. Varina notou que a mente do homem trabalhava. Leovic olhou para ela e comentou:

— Está quente. E se fosse um garda de armadura?

— Ele não se sairia melhor que a fruta — respondeu Varina. — Posso lhe mostrar, se quiser.

Os músculos do maxilar de Leovic retesaram, como se estivesse retendo a resposta que gostaria de dar.

— Qualquer artesão competente poderia criar uma coisa destas — disse o homem finalmente. — Ainda que não tão elaborada quanto a criação de Pierre. E quanto a aprender a usá-la?

— Posso mostrar-lhes em algumas marcas da ampulheta — disse Varina.

— Você pode nos dar o possibilidade de matar alguém a poucos passos de distância, mesmo que a pessoa esteja de armadura? — disse Johannes, em um sussurro quase reverencial.

— Sim — respondeu ela.

— A senhora quer de fato liberar esse poder?

— Ele já foi liberado — argumentou Varina. — Esse poder foi liberado quando os tehuantinos criaram a areia negra. Se destruirmos as chispeiras agora e jamais falarmos delas novamente, outra pessoa chegaria à mesma conclusão que eu e as faria novamente. Vocês todos conhecem a expressão de Karl...

Ao mencionar seu nome, sua voz ficou entrecortada. Ela engoliu em seco, se desculpando. Talbot acenou para ela, em solidariedade.

— ... Karl dizia que o conhecimento não pode ser escondido. Mesmo os fiéis concénzianos têm uma expressão para isso: “uma vez que os moitidis foram criados, não havia como Desfazê-los”. Isso não é diferente.

— Ainda assim, a’morce... — disse Niels, balançando os longos cachos grisalhos. — As possibilidades...

— Eu posso antevê-las tão bem quanto qualquer um de vocês — respondeu Varina. — Acreditem, essas possibilidades vêm assombrando meus sonhos desde o funeral de Karl e o assassinato da nossa gente pelos morellis. Mas eu também posso antever o que pode acontece se nós não tivermos todos os recursos disponíveis para nos proteger. E isso me assusta ainda mais.

Ela acenou para Pierre, que trouxe uma caixa comprida da lateral do salão. Ele a pousou sobre a mesa e a abriu. O aço e a madeira dentro dela reluziram.

— Há uma chispeira para cada um de vocês — disse Varina. — Peguem uma, um frasco de areia negra e um pacote de cartuchos de papel, e vou mostrar-lhes como usá-los...

Jan ca’Ostheim

— A jovem que trabalha na criadagem pessoal, chamada Rhianna — perguntou Jan para Rance. — O que você sabe sobre ela?

O assistente ergueu uma sobrancelha. Ele tinha acabado de trazer a agenda diária de reuniões e revisava os planos para o dia — que estava, como de costume, cheio demais. Era um daqueles dias em que Jan sentia o peso de suas responsabilidades; um daqueles dias em que ele se sentia velho antes do tempo; um daqueles dias em que o hïrzg se sentia inquieto e aprisionado.

Mas a jovem... Jan pensara nela mais de uma vez desde seu encontro, e ele se viu procurando por ela sempre que ele entrava em um aposento. Frequentemente, havia um leve sorriso no rosto da criada quando ela o via, embora ela nunca tenha quebrado o decoro, nunca tenha tentado se aproximar ou falar com Jan, mas se mantinha concentrada no serviço e ia embora quando terminava.

Jan gostava disso. Rhianna conhecia seu lugar. Era um bom sinal.

— Ela é de Sesemora — contou Rance —, embora tenha pouco daquele sotaque horroroso, felizmente. Tinha excelentes referências das famílias ca’Ceila e ca’Nemora. Ela acata bem às ordens e trabalha pesado. Seria bom que eu tivesse mais uma dúzia de criados que trabalhem tão bem quanto ela. E é bonita de se ver, como tenho certeza de que o hïrzg notou.

— Notei, de fato.

Esta era uma dança que ele e Rance tinham executado mais de uma vez ao longo dos anos, e ambos conheciam os passos.

— O hïrzg gostaria que ela fosse designada para seus aposentos pessoais?

— Seria bom. Ela parece uma excelente opção.

— Então eu farei isso — falou Rance. — Ouvi rumores de que a hïrzgin achou que Felicia foi um tanto quanto grosseira com ela, na semana passada; Rhianna pode ser uma boa substituta. Eu mandarei fazer a troca hoje.

Jan encolheu os ombros.

— O que você achar melhor, Rance. A equipe é sua. Deixarei que você o decida. Agora, tem algo que possamos fazer a respeito da audiência com o a’gyula? Talvez a hïrzgin pudesse recebê-lo. Ele é um grosseiro tedioso...


— Boa noite, crianças...

Jan beijou um filho de cada vez: Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria. Ele acenou com a cabeça para a babá, que começou a conduzir as crianças para fora do quarto. Elissa ficou para trás, teimando e de cara fechada.

— Eu devia poder ir ao baile hoje à noite — disse ela. — Eu não tenho nem um pouco de sono, vatarh.

— Ano que vem — falou Jan.

— O ano que vem é daqui a uma eternidade — respondeu a menina, batendo enfaticamente com o pé no chão.

Jan ouviu Brie soltar uma risadinha. Ele estava sentado na cadeira atrás da mesa do quarto da esposa. Brie estava atrás dele, com a mão sobre seu ombro. Ela vestia apenas uma camisola, seu cabelo estava solto, a joias encontravam-se sobre a penteadeira. Jan sentiu o cheiro do perfume que a hïrzgin tinha acabado de passar quando ela se inclinou próximo ao ouvido dele.

— Ela é sua filha — sussurrou a esposa. — Eu ouço você na voz dela.

Jan sorriu e gesticulou para Elissa vir até ele. A menina obedeceu, com um beicinho dramático no rosto.

— Se eu disser que você pode ir ao baile, eu vou ter que ouvir Kriege dizer que ele também devia poder ir ao baile.

— Kriege só tem 9 anos — respondeu Elissa. — Ele é praticamente um bebê. Eu tenho 11 anos, quase 12.

Jan sentiu os dedos de Brie apertarem seu ombro. Ele sorriu.

— Eu sei. Vamos combinar assim: se você for com a babá agora, eu pedirei a ela que tire você da cama e a arrume em uma virada da ampulheta, e aí você pode descer para o baile um pouquinho. Mas não pode deixar que seus irmãos saibam.

Elissa sorriu e bateu palmas, depois deixou as mãos caírem ao lado do corpo, com uma expressão comicamente solene no rosto.

— Sim, vatarh — ela respondeu em voz alta, para os irmãos escutarem, ainda na porta com a babá. — Eu vou para a cama, então.

Impulsivamente, a menina ficou na ponta dos pés e beijou o rosto do vatarh, depois o da matarh.

— Boa noite, vatarh, matarh.

Ela tamborilou os pezinhos no corredor junto com seus irmãos. Jan viu as crianças saírem, sem conseguir conter o sorriso no rosto.

— Se nós fôssemos artistas, não teríamos criado algo mais lindo que nossos filhos — disse Brie.

— Eu tenho que concordar.

Jan virou-se na cadeira para encará-la, pousando suas mãos em seus quadris. Ele podia ver o que os anos e o nascimento de seus filhos tinham feito ao corpo de Brie: ela não tinha mais a beleza esguia e suave de quando eles se casaram. Seu corpo tinha ficado largo e roliço ao longo dos anos, as marcas de expressão tinham invadido seu rosto, e a pele sob seu queixo se tornara flácida. Sua barriga ficara saliente e seus peitos maiores e mais pesados.

Jan também tinha mudado, ele sabia, mas mudanças eram mais fáceis de ver nos outros. O hïrzg acariciou as laterais roliças do corpo de Brie, e ela sorriu para ele, aproximando seu corpo do corpo dele.

— Ainda temos tempo — falou a hïrzgin. — Posso mandar chamar aquela garota nova... qual é o nome dela? Rhianna? Para me ajudar a me vestir rapidamente. Se você quiser...

Brie inclinou-se para baixo. Seus lábios ainda eram macios, ainda cediam, e, um instante depois, Jan perdeu-se no beijo. As mãos de Brie envolveram a cabeça do marido, levantando-o sem romper o abraço, e depois ela o apertou com força. Como uma só pessoa, como em uma dança lenta e cheia de paixão, os dois foram para a cama. Brie caiu sobre a fresca suavidade do tecido enquanto Jan se deixava puxar por ela para cobrir seu corpo. Ele beijou Brie desta vez, mais intensa e insistentemente, e as mãos dela desceram pelo corpo do esposo enquanto ele levantava a barra de sua camisola.

Mais tarde, os dois ficaram deitados sobre os lençóis emaranhados. Ela sorriu para Jan, acariciou suas bochechas e afastou o cabelo de seu rosto, enquanto ele passava o dedo indicador pelo contorno dos seios de Brie, circulando suas auréolas e observando a reação da pele sensível.

— Isso foi bom — disse Jan.

— Sim. — Ela o beijou novamente; com um ligeiro toque nos lábios desta vez. — Talvez tenhamos criado algo novo outra vez.

— Talvez.

Jan sorriu, embora não tivesse sentido nada com a ideia. Ele tinha muitos filhos — aqueles que podia reconhecer e aqueles que nem conhecia, gerados em uma amante ocasional que tinha que ser mandada embora com uma bolsa de solas de ouro como lembrança. Como Mavel co’Kella.

— Sergei deve chegar a Nessântico entre hoje e amanhã — disse Brie.

Ele riu.

— De onde veio essa ideia?

— Não sei. Só estava pensando. As crianças... Seria bom se elas conhecessem sua mamatarh. Que conhecessem de verdade.

Jan resmungou sem dizer uma palavra. A mão sobre o abdômen de Brie parou de se mover.

— Você acha que ela vai concordar com o seu pedido? Acha que Sergei vai conseguir convencê-la a nomeá-lo a’Kralji?

— Eu não sei — ele respondeu. — Além disso, Rance diria que é isso o que eu quero, afinal, isso não é bom para Brezno.

Essa era a verdade. Jan não sabia. Parte dele concordava com Rance, e queria que sua matarh recusasse, para que tivesse uma desculpa para atacá-la. E parte... Sim, uma parte de Jan torcia para que ela concordasse, torcia para que pudessem se reconciliar.

Jan só não sabia que parte era mais forte.

— A escolha é da matarh — ele disse. — Já não está mais em minhas mãos. Eu fiz a oferta; ela pode aceitar ou não.

— Espero que ela aceite. Está na hora. Uma família não pode ficar assim tão separada.

Brie beijou o marido mais uma vez e rolou para o lado. Olhou para a grande ampulheta sobre a escrivaninha.

— É melhor você voltar para o seu quarto e se vestir — ela disse. — Não temos muito tempo. Vou mandar o criado do corredor trazer Rhianna e enviar alguém para ajudá-lo...

Ela vestiu a camisola e o robe e caminhou em direção à porta do corredor. Jan observou a esposa, depois vestiu as próprias roupas enquanto ela abria a porta e chamava suavemente o criado do corredor. Ele se levantou; Brie voltou e o abraçou.

Houve uma batida suave na porta.

— Vá — falou Brie.

Jan se dirigiu para a porta dos fundos, que levava até seu quarto, mas parou ali, com a mão na maçaneta. Rhianna abriu a porta e entrou no quarto. Fez uma mesura para Brie.

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou a criada.

Rhianna notou Jan na porta; ele pensou tê-la visto esboçar um sorriso para ele, mas ela voltou sua atenção rapidamente para Brie e sem olhar para ele novamente.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho... — disse Rhianna.

Jan abriu a porta e saiu do quarto. Ele sorriu, embora não soubesse o porquê.

Brie ca’Ostheim

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou Rhianna.

Brie notou o olhar de Rhianna deslizar rapidamente para Jan e se desviar com a mesma velocidade. Rhianna não voltou a olhar para Jan, embora a hïrzgin tenha sentido Jan permanecer no quarto atrás dela.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho...

Ela virou-se para deixar que Rhianna pegasse os laços do espartilho em suas costas. A atenção de Jan estava presa em algum ponto acima do ombro de Brie, mas ele pareceu se libertar para encontrar os olhos de Brie. Jan sorriu para ela com um pouco de culpa, pensou Brie, em seguida, abriu a porta do quarto de vestir. Ele meneou a cabeça para Brie assim que que Rhianna puxou os laços, fechando a porta atrás de si. Brie olhou para o espelho na penteadeira, observando Rhianna através da superfície prateada. Ela não havia erguido o olhar para ver Jan sair; isso agradou Brie. Talvez eu esteja enganada... A garota — não, a jovem — era bonita o suficiente, com braços estranhamente musculados. Seus cabelos eram tão negros quanto as asas de um corvo, e seus olhos eram de um tom azul-claro estranhamente contrastantes com o cabelo e o rosto de pele morena-escura...

Quase todos os casos de Jan tinham sido com mulheres de cabelos negros, Brie percebeu. Ela se perguntava o que o marido buscava encontrar nelas.

Rhianna era provavelmente cinco ou seis anos mais velha que Elissa. Não mais.

— Pronto — disse a criada, atrás dela, com um leve sotaque que Brie não conseguia identificar. — Está confortável, hïrzgin? Eu posso soltar um pouco se os laços estiverem apertados demais...

— Está ótimo. Traga a minha tashta... ali, aquela na cama...

Brie observou Rhianna pegar a roupa e enrolar a barra cuidadosamente nas mãos.

— Então Rance colocou você no nosso corpo pessoal de funcionários?

— Sim, hïrzgin. Devo admitir que fiquei surpresa com isso, logo depois de ser contratada, mas ele disse que me saí bem no serviço e que tinha se aberto uma vaga inesperada.

— Sim, Rance está sempre de olho em vagas que beneficiem o hïrzg — respondeu Brie. — É uma de suas melhores qualidades, com certeza.

Rhianna pareceu intrigada, como se tivesse percebido algo nas entrelinhas, mas não soubesse exatamente como responder. Ela levou a tashta até a hïrzgin e a colocou sobre a cabeça dela, que erguia os braços.

— Aqui, deixe-me encontrar as mangas para a senhora, hïrzgin. Terei cuidado com seu cabelo...

Rhianna deslizou a tashta devagar, e Brie se endireitou para que as pregas caíssem sobre o resto de seu corpo. Rhianna ficou de joelhos para amarrar a faixa em volta da cintura da hïrzgin.

— Esse tecido é lindo, hïrzgin. Tem um desenho e uma cor tão bonitos, e lhe cai tão bem...

— Rhianna, você não precisa me elogiar.

O rosto da jovem ficou vermelho. Brie não viu malícia em sua expressão, apenas um genuíno embaraço.

— Hïrzgin, eu não quis... Disse apenas o que pensei... Desculpe-me...

Brie levou um dedo aos próprios lábios e sorriu delicadamente.

— Shhh. Não precisa se desculpar, minha cara. Eu gostaria... Bem, eu gostaria que, já que passaremos muito tempo juntas, nós pudéssemos confiar uma na outra.

Na verdade, Rhianna ficou mais vermelha ao ouvir isso. Ela hesitou, parecendo procurar uma resposta.

— Ah, a senhora pode confiar em mim, hïrzgin.

— Então — falou Brie, ainda sorrindo —, se, digamos, o hïrzg confidenciasse algo para você que eu deva saber como esposa dele, você me diria, não é?

O rubor intensificou ainda mais, o que revelara tudo o que Brie queria saber. Jan já tinha se aproximado dela...

— Ora, sim, hïrzgin — gaguejou Rhianna. — Eu diria. É claro.

— Ótimo.

Brie tocou o rosto da jovem. Tão macio, tão intocado... mas então seus dedos encontraram uma cicatriz ondulada ao longo do maxilar de Rhianna. Uma facada? Ela ficou intrigada com isso, mas ergueu a criada com a mão. Sentou-se novamente na cadeira diante do espelho, abriu a caixa de joias e tirou um colar.

— Aqui — disse Brie ao entregar a joia para Rhianna. — Acho que isto combinará com a tashta. Coloque em mim, por favor...

Enquanto a criada colocava o colar em volta de seu pescoço e prendia o fecho, Brie observava o rosto de Rhianna, conjecturando.

Niente

Da primeira vez que os tehuantinos tomaram Karnor, a principal cidade da ilha de Karnmor, eles entraram no porto com os navios escondidos por uma bruma mágica. Desta vez havia muito mais embarcações na frota, e Niente mandou que os nahualli invocassem uma tempestade mágica assim que vissem o vulcão da ilha surgir no horizonte. A tempestade irrompeu bem à frente da vanguarda dos navios de guerra, a escuridão de chuva torrencial e relâmpagos violentos impediu que eles fossem avistados rapidamente pela marinha dos Domínios, uma tempestade que tinha a intenção de instigar o inimigo a ancorar suas embarcações na segurança do porto.

Porto este que, quando os nahualli dissipassem a tempestade, já não seria mais tão seguro, porque o trio dos maiores navios de guerra tehuantinos se esconderia na entrada do porto, para impedir que qualquer embarcação dos Domínios escapasse para alertar o continente. Ao mesmo tempo, a maior parte da frota se separou e seguiu para o norte, depois para leste, contornando a ilha, todos menos um dos navios — o Yaoyotl em que Niente e o tecuhtli Citlali navegavam — que ficaria bem longe da costa.

O Yaoyotl ancorou em alto mar, no lado norte da ilha, ao anoitecer, a quilômetros de distância de Karnor, enquanto o resto da frota seguiu adiante. Niente, com Atl e vários nahualli, assim como um grande contingente de guerreiros, desembarcaram do navio em botes a remo carregados com bolsas de couro. Eles escalaram os flancos do monte Karnmor, o vulcão em cujas encostas a cidade tinha sido construída.

Niente tinha passado dias espiando na tigela premonitória. Tinha visto esta cena diversas vezes, e pareceu-lhe estranho vivenciá-la na realidade agora. Enquanto os tehuantinos subiam ao cair da noite, do outro lado da montanha eles podiam vislumbrar clarões de luz: os nahualli a bordo dos navios em guarda no porto de Karnor arremessavam bolas de fogo de areia negra na direção da frota inimiga, como se estivessem preparando um ataque frontal à cidade. Tudo isso era uma simulação e uma distração — para manter a atenção dos orientais no porto, e não na montanha atrás da cidade. Se o que a tigela premonitória tinha mostrado para Niente estivesse correto, a cidade seria destruída, mas não seria saqueada.

A própria terra destruiria a cidade.

Niente consolou-se com a ideia de que a descida seria bem mais fácil do que a subida. Ele ficou exausto rapidamente com a subida, embora não carregasse nada além de seu cajado mágico, enquanto os demais carregavam as bolsas de couro. Suas pernas e quadris doíam, e suas sandálias estavam rasgadas e gastas. As rochas deixaram longos arranhões em suas pernas e braços devido aos tropeços que Niente dera ocasionalmente, e o sangue agora formava crostas escuras. O mero esforço de colocar um pé diante do outro era exasperante, ele desejava que Axat jamais tivesse lhe mostrado esse caminho. Seu filho caminhava ao seu lado, ajudando-o ocasionalmente, mas ele tentava não depender de Atl — não era bom para o nahual demonstrar fraqueza. Se os outros nahualli sentissem que Niente estava vulnerável, um deles poderia desafiá-lo pelo título, e ele não podia arriscar isso agora ou tudo em que apostara estava perdido.

Niente fez um esforço para continuar caminhando, para conter os gemidos que ameaçavam escapar de seus lábios.

— Estamos quase lá — disse Niente finalmente para Atl, falando de maneira entrecortada, a cada tomada de fôlego. — Logo ali, em torno da saliência da montanha.

Na direção em que Niente apontou, um coluna de fumaça maculava o céu iluminado pela lua. Ele sabia o que veria ali, quando eles dessem a volta no cume do lado sul da montanha: uma fumarola sibilante e vaporosa expelindo o hálito amarelo e sulfúrico da terra. Havia várias aberturas como essa na área, bem acima e com vista panorâmica para a cidade — e esse era o destino dos tehuantinos.

— Ótimo — disse Atl.

Mesmo ele parecia estar sem fôlego. Atl olhou para a encosta abaixo, para a fila de nahualli e guerreiros tatuados que os seguiam. Ao longe, reluzindo na água que refletia o luar, o Yaoyotl esperava seu retorno, com as velas recolhidas no momento.

— O tecuhtli não parecia estar inteiramente satisfeito com o senhor — comentou Atl.

— O tecuhtli Citlali preferia que nós saqueássemos a cidade — respondeu Niente. — Como todo guerreiro, ele prefere o choque do aço, o cheiro do sangue e os gritos daqueles que caem diante de si. O que estamos fazendo parece injusto para ele.

Ele fez uma pausa para descansar por um momento, permitindo-se apoiar em Atl.

— Eu prometi a ele que Axat tinha me mostrado que ele terá muitas oportunidades de demonstrar suas habilidades como guerreiro.

Eles podiam ver não só os clarões de luz do bombardeio de areia negra sobre os navios dos Domínios; como também podiam ouvir, com um atraso estranho e desconexo, o trovejar das explosões. Niente subiu em uma saliência rochosa e pôde ver as luzes de Karnor abaixo deles se espalhando por várias plataformas nas encostas mais baixas até a água.

Não havia tropas dos Domínios protegendo a cidade, como Axat prometera em Suas visões. Ao longe, as águas reluzentes do porto foram acesas pelo incêndio nas embarcações em chamas. Enquanto Niente assistia, outra bola de fogo desenhava um arco da entrada do porto até o agrupamento de navios de guerra dos Domínios. O som chegou aos tehuantinos dois segundos depois, um ruído surdo que ele quase pôde sentir em seu peito.

— Rápido! — disse Niente para os nahualli, que davam a volta pela saliência.

Eles pararam sobre um ligeiro declive onde o monte Karnmor parecia inchar, um cenário dominado por buracos de vapor que assobiavam e borbulhavam. Niente, com a ajuda de Atl, orientou os nahualli a posicionarem os cajados mágicos — feitos especialmente para esse propósito e preparados com possantes feitiços para moldar a terra — em um grande círculo em volta das crateras. As bolsas cheias de areia negra, levadas pelos guerreiros, foram postas em uma única pilha grande, com a altura de um homem e o comprimento de dois homens. Atl, ao lado de Niente, balançou a cabeça.

— Tanta areia negra — disse o rapaz. — Nós poderíamos destruir a Teocalli Axat com isso.

— Com isso — disse Niente —, nós destruiremos a cidade deles inteira.

— Espero que o senhor esteja certo, taat. Se não der certo...

— Não falhará. Axat prometeu. Eu vi.

— Eu sei, mas eu tenho olhado na água, como o senhor me mostrou, e não vi nada disso.

Niente deu um tapinha no ombro do filho.

— As visões de Axat vêm devagar e em Seu próprio tempo. Tenha paciência. Ela falará com você em breve. Você saberá quando acontecer; Sua voz é ríspida e dolorosa de se ouvir.

E rezo à Ela para que, quando chegar o momento, você não veja o que eu vi. Não veja o que estou fazendo. Isso ele não disse.

Atl assentiu. Niente, grunhindo pelo esforço, cravou seu cajado mágico na parede de areia negra, com o punho voltado cuidadosamente para o leste. O nahual observou o cenário e assentiu — sim, era isso o que ele tinha visto.

— Terminamos aqui — ele disse para Atl e os demais, com a voz trêmula pelo cansaço. — É hora de voltarmos para os navios.


O tecuhtli Citlali balançou a cabeça calva, tatuada com uma selvagem águia rubro-negra com suas garras perpassando seu crânio e rosto. Seus olhos envoltos pelas garras do pássaro encaravam Niente.

— Nada aconteceu — ele disparou. — Podíamos ter tomado a cidade com nossos navios e guerreiros a esta altura. Podíamos ter dominando a ilha inteira. Se você desperdiçou a areia negra...

— Tenha paciência, tecuhtli — respondeu Niente. — Ainda não chegou a aurora. E o que acontecerá vai aterrorizar os orientais mais do que qualquer ataque.

O Yaoyotl e toda a frota, sob a ordem relutante de Citlali, tinham se afastado de Karnmor durante a noite. A ilha era uma escuridão vazia em contraste com as estrelas remanescentes ao longo do horizonte ocidental que se iluminava, enquanto a frota tehuantina — sob brisas estáveis que vinham do leste — navegava em direção ao Strettosei ao norte, como Niente pedira, o mais longe possível da ilha. A visão da tigela premonitória tinha sido clara, havia a possibilidade de este futuro se tornar realidade desde que Niente seguisse o caminho que Axat lhe mostrara. Os guerreiros supremos se reuniram em volta do tecuhtli Citlali, carrancudos e resmungando. Os nahualli do alto escalão, Atl entre eles, também o observavam, e seus olhares eram bem mais avaliadores, sempre à procura de algum sinal de fraqueza fatal da parte do nahual.

Ele não mostraria tal sinal; Axat não permitiria. Axat tinha lhe mostrado a fraqueza da montanha. Tinha sussurrado para ele que a montanha estava prestes a ejetar sua terrível vida outra vez, assim como as montanhas fumegantes de sua própria terra. Com a ajuda Dela, Niente podia acelerar o despertar. Ele olhou para o leste, onde faixas douradas no céu anunciavam o iminente nascer do sol sobre as colinas de névoas azuladas do continente. O céu oriental brilhava agora. Niente protegeu os olhos quando a borda do sol surgiu no horizonte. Feixes dourados flechavam as nuvens, e em direção a Karnmor e ao oeste.

O nahual voltou-se para a ilha. Esperou. Axat, não me abandone...

A ponta do monte Karnmor foi tocada pela luz do sol agora, os raios de sol deslizavam em direção aos lençóis de vapor branco que o ocultavam. Niente podia visualizar a luz tocando os punhos dos cajados mágicos dispostos lá, ainda que esse lado do vulcão estivesse escondido dos tehuantinos agora. Os cajados mágicos tinham sido encantados para soltar os feitiços em seu interior quando fossem tocados pela luz do sol. A saliência de terra se abriria, uma nova cratera apareceria, e a areia negra cairia em cascata em seu interior, e o conteúdo empoeirado seria derramado das bolsas no momento em que o cajado mágico que Niente cravou visse a luz e cuspisse fogo...

Os lençóis de vapor em torno do monte Karnmor foram rasgados em pedaços e substituídos por um jorro de fumaça escura. Não houve som, não por longos segundos, nem mesmo quando a fumaça negra foi consumida por uma explosão bem maior vermelha, laranja e amarela disparada da lateral da montanha. Uma fonte monstruosa de fumaça cinza começou a subir em direção ao céu, e as brisas do leste desmanchavam as bordas durante sua ascensão.

Os tehuantinos então ouviram o som: o estampido agudo da areia negra seguido do lamento divino da montanha em agonia. O som os atingiu como um soco: e o tecuhtli Citlali juntou-se a ele com um urro, os guerreiros e nahualli vibraram, e as comemorações ecoaram nos outros navios. Niente podia ver o fogo espesso descer pelo monte Karnmor em direção à cidade escondida. Ele imaginou a lava escorrendo sobre os habitantes aterrorizados e incendiando tudo em seu caminho. A cidade seria tomada pelo pânico, e após o fogo, viria uma espessa chuva de cinzas...

O navio estremeceu, como se o próprio mar os tivesse levantado e deixado cair novamente. Ondas de cristas brancas avançavam para o norte. A frota balançou nas longas ondas, os mastros oscilavam para frente e para trás. A grande nuvem tinha subido tanto que os tehuantinos tiveram que inclinar suas cabeças para trás a fim de vê-la. Ela bloqueou o céu da manhã que clareava e estendia seus braços escuros e agitados na direção leste.

Este seria um dia escuro, cinzas quentes cairiam do céu em vez de chuva, mas os tehuantinos estavam protegidos do pior.

— Nahual — berrou Citlali contra o rugido contínuo da erupção vulcânica. — Eu não devia ter duvidado de você.

A boca do tecuhtli carregava um largo sorriso aberto.

— Você é realmente o maior nahual de todos, e com você, não há dúvidas quanto a nossa vitória.

Todos os guerreiros e nahualli concordaram e vibraram aos berros. A expressão de Atl era de orgulho.

Niente deveria sentir um grande contentamento. Em vez disso, ele teve que se esforçar para retribuir o sorriso.


CONTINUA

PROGRESSÕES

Niente

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Varina ca’Pallo

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Varina ca’Pallo

Jan ca’Ostheim

Brie ca’Ostheim

Niente


Niente

O mar estava calmo, e os nahualli que Niente designou para evocar os ventos trabalhavam intensamente com seus cajados mágicos. A proa dos navios esculpia longas brumas de água branca. Niente contemplava do castelo de popa do Yaoyotl, que começara sua vida como um navio de guerra dos Domínios até ser capturado há 15 anos. O Yaoyotl já tinha feito essa travessia uma vez, quando o tecuhtli Zolin realizara sua tola e fatal invasão nos Domínios. Agora a embarcação seguia para o leste outra vez, desta vez acompanhada por trezentos navios da marinha tehuantina, três vezes a quantidade que Zolin usara, com um exército a bordo do tamanho daquele que esmagara as forças dos Domínios em Munereo e nas outras cidades da terra de seus primos, no litoral do mar Oriental. Niente podia ver as velas sobre as amuradas do Yaoyotl ondulando como uma revoada de grandes pássaros brancos marinhos cobrindo o oceano.

A vista era formidável. Quando os orientais vissem a frota se aproximando, eles estremeceriam de medo. Niente sabia disso; ele tinha visto nas visões de Axat, na tigela premonitória. E viu novamente, neste instante, ao baixar o olhar para a tigela de latão diante de si. Niente tinha polvilhado o recipiente com pó mágico e usado o poder do X’in Ka para abrir o caminho da visão. Agora ele espiava as brumas esverdeadas, com o filho ao seu lado e sob a supervisão cuidadosa de seu assistente nahuali. Em meio às brumas, as cenas passavam rapidamente por Niente: ele viu a grande ilha de Karnmor despejar uma imensa coluna de fumaça e cinzas no céu enquanto o chão tremia e o próprio mar se contorcia em agonia. Viu a grande frota tehuantina subir pela boca do rio A’Sele, viu os exércitos se espalharem pela praia, viu as muralhas de Nessântico e o exército do inimigo reunido ali.

Mas ele franziu a testa ligeiramente ao fixar o olhar; antes, a cenas tinham a nitidez da realidade. Agora, estavam borradas e ligeiramente obscuras, como se as estivesse vendo mais com os próprios olhos do que com a ajuda de Axat. Isso o preocupou.

Onde está o Longo Caminho? Por que a Senhora o esconde de mim, Axat?

Não, lá estava ele... Mais uma vez, Niente viu o tecuhtli e o nahual mortos, e atrás deles, o Longo Caminho. Mas este, também, não estava tão nítido quanto antes. Várias visões interferentes deslizavam entre ele e o caminho, como se Axat estivesse dizendo que o curso dos acontecimentos estava contorcendo e revirando os fios do futuro. Niente espiou com mais atenção, tentou ver se ainda conseguia encontrar o rumo do Longo Caminho. Ele voltou atrás no tempo, viu a miríade de possibilidades se desdobrando...

O nahual sentiu seu filho, Atl, se aproximar de seu ombro, olhando fixamente para a tigela premonitória com a respiração presa, como se tivesse medo de que o olhar penetrasse as brumas e destruísse a visão. Niente sabia o que viria a seguir; e sabia também que não podia deixar que Atl visse. Ele exalou bruscamente, balançando as brumas verdes, e agarrou a tigela. Com um movimento brusco, Niente jogou a água no mar sobre a amurada, sibilando friamente. No mesmo instante, Niente sentiu o cansaço do feitiço afetá-lo e cambaleou ali mesmo. Atl passou o braço por sua cintura e o amparou.

O nahual deu um longo suspiro e pousou a tigela premonitória de volta na mesa. Ele se endireitou, e Atl se afastou dele.

— Limpe isto — disse Niente para o assistente mais próximo.

O homem se apressou e pegou a tigela de latão, inclinando a cabeça para Niente e saindo depressa.

— Vou descansar agora — informou Niente para os demais — e falarei com o tecuhtli Citlali mais tarde. Não havia nada de novo na visão.

Os nahualli fizeram uma mesura. Niente podia sentir seus olhares sobre si: será que ele estava mais fraco do que antes? Será que suas rugas tinham ficado mais fundas em seu rosto, suas feições mais distorcidas e deformadas, e seus olhos mais brancos de cataratas do que antes? Será que este era o momento de desafiá-lo, de se tornar nahual? Era nisso em que os nahualli pensavam, todos eles.

Seu filho talvez pensasse ainda mais que qualquer um dos outros.

Niente não podia permitir que isso acontecesse. Não ainda. Não até que ele cumprisse a visão que vislumbrara na tigela. O nahual fez um esforço para ficar tão ereto quanto sua coluna curvada permitia para sorrir seu sorriso torto e fingir que seu corpo não incomodava mais que o normal para um homem de sua idade.

Os nahualli, com protestos educados, começaram a se dirigir a suas outras obrigações.

— O senhor interrompeu a visão antes que estivesse completa — falou Atl baixinho.

— Não havia mais nada para ver.

— E como o senhor sabe disso, taat? O senhor não me disse que Axat às vezes altera a visão, que os atos dos que estão presentes na visão podem mudar o futuro, que a pessoa deve estar sempre atenta às mudanças para se manter no melhor caminho?

— Não havia mais nada — repetiu Niente.

Ele notou a dúvida no rosto do filho, e a desconfiança também. Niente forçou um tom agressivo em sua voz, como se tivessem voltado 20 anos no tempo e Atl tivesse quebrado uma tigela na casa.

— Ou você está pronto para me desafiar como nahual? Se estiver, então pegue seu cajado mágico.

Niente estendeu a mão para pegar seu próprio cajado, apoiado à mesa do castelo de popa. A ponta nodosa estava gasta pelos anos de uso, as figuras entalhadas dançavam sob seus dedos. Ele apoiou-se no cajado mágico como se fosse uma bengala, permitindo que suportasse seu peso.

Atl balançou a cabeça, obviamente contrariado em abandonar a discussão.

— Taat, eu também tenho o dom da premonição. O senhor sabe disso. Pode enganar os outros nahualli, mas não a mim. O senhor viu alguma coisa que não quer que eu veja. O que é? O senhor viu sua morte, como fez com a do tecuhtli Zolin e Talis? Foi isso?

Niente se perguntou se o que ouviu na voz de Atl era medo ou expectativa.

— Não — ele respondeu, esperando que o jovem não notasse a mentira. — Você está enganado, Atl. Não aprendeu tanto assim sobre premonição para saber.

— Porque o senhor não permite. O senhor sempre diz “Olhe para mim”. “O preço a pagar caro demais”. Bem, taat, Axat me deu o dom, e seria um insulto a Ela não usá-lo. Ou o senhor tem medo que eu queira ser o nahual no seu lugar?

O vento da maresia agitou o longo cabelo escuro de Atl; a vela sobre eles retumbou e estalou. O capitão do Yaoyotl berrou ordens, e os marinheiros correram para seus afazeres.

— Você será nahual — disse Niente para o filho. — Um dia. Tenho certeza disso.

Eu vi... Ele pensou, mas não ousou dizê-lo por medo de que isso alterasse o futuro.

— Axat lhe deu o dom, sim. E eu... eu tenho sido um mau taat e um mau nahual por não lhe ensinar tudo que sei. Talvez, talvez eu sinta um pouco de inveja do seu dom.

Niente viu a expressão no rosto de Atl: outra mentira, pois não havia inveja dentro dele, apenas um pavor lento, mas ele sabia que as palavras convenceriam o filho.

— Eu gostaria de começar a compensar você por isso, Atl. Agora: esta noite, depois de eu conversar com o tecuhtli Citlali. Venha à minha cabine quando me trouxerem o jantar, e eu começarei a mostrar a você. Pode ser?

Em resposta, Atl deu-lhe um abraço vigoroso. Niente sentiu seu filho beijar o topo de sua cabeça calva. Ele foi solto bruscamente e viu o filho sorrindo.

— Eu estarei lá — prometeu Atl.

O rapaz começou a se virar e parou. Ele olhou para o pai, sobre os ombros.

— Obrigado.

Niente meneou a cabeça e respondeu com seu sorriso torto, mas não havia nenhum ardor no gesto, nenhuma alegria.

Ele se perguntou por quanto tempo conseguiria manter a visão de Axat em segredo. E se — caso Atl viesse a se dar conta do que a visão significava — ele conseguiria alcançar essa visão de alguma forma.

Sergei ca’Rudka

Os campos ao longo da Avi a’Firenzcia estavam coloridos com as tendas do exército da Coalizão. “Em manobras”, dissera o assistente do corpo de funcionários do palácio que escoltou Sergei da fronteira até Brezno, mas ambos sabiam o que realmente era aquilo: um ajuntamento de tropas e uma ameaça direta. Um comunicado vindo de Il Trebbio foi entregue a Sergei antes que ele cruzasse a fronteira, informando-o a respeito da incursão de um batalhão pelo território de Il Trebbio sob o comando do starkkapitän ca’Damont. O batalhão havia recuado, mas obviamente vinha sondando para ver que resposta provocaria.

E agora essa concentração de tropas perto da fronteira de Nessântico...

Jan, o que você está aprontando? Quer mesmo cutucar os Domínios com essa vara curta?

Sergei sabia, enquanto sua bengala batia nas lajotas de mármore do Palácio de Brezno a caminho da reunião com o hïrzg Jan, como isso acabaria. A alça de uma pequena bolsa diplomática estava pendurada em seu ombro, e ele tinha adquirido habilidade suficiente ao longo dos anos para abrir a carta selada em seu interior e ler o que Allesandra escrevera ali. Rance, o assistente do hïrzg, fez uma mesura quando Sergei se aproximou da sala de recepção exterior dos aposentos de Jan. Sua expressão era agradável, mas havia desdém sob ela: Sergei sabia que Rance era um dos que aconselhavam o hïrzg a manter a Coalizão intacta e recusar qualquer acordo com os Domínios.

— O hïrzg acabou de entrar — disse o homem —, mas pede a sua compreensão, pois está com a hïrzgin e seus filhos. Uma marca da ampulheta...

— Eu adoraria vê-los — respondeu Sergei — para poder levar um relatório sobre a aparência das crianças à vavatarh delas.

Rance deu de ombros e abriu um sorriso fingido.

— Só um momento, então, e informarei ao hïrzg — disse Rance, que se voltou para um dos criados. — Por obséquio, acompanhe o embaixador até a sala externa e sirva-lhe alguns petiscos.

Rance fez outra mesura e desapareceu no corredor. Sergei acompanhou o criado até uma das salas de espera e aceitou uma taça de vinho e um prato de rétes doces de queijo. Não muito tempo depois, Rance voltou e acompanhou o embaixador por um corredor curto até outra porta. Do outro lado, Sergei ouviu várias vozes e risadas de crianças. O assistente deu duas batidas secas e a porta se abriu.

Os dois filhos mais velhos, Elissa e Kriege, brincavam com um tabuleiro de chevaritt sobre a mesa, observados pelo hïrzg; o filho homem mais novo, Caelor, assistia por trás dos ombros do irmão. A caçula, Eria, estava sentada no colo de sua matarh, perto da janela, e brincava com uma pilha de tricô, enquanto uma babá dobrava fraldas e roupas em um banco perto de uma das portas de saída.

— O embaixador ca’Rudka — anunciou Rance enquanto Sergei entrava na sala.

O som da bengala foi abafado pelo tapete espesso. Elissa virou-se para olhar.

— Vatarh, é o Velho Nariz de Prata!

— Elissa! — Jan lançou um olhar de desculpas para Sergei. — Isso é terrivelmente grosseiro.

— Bem, é assim que o starkkapitän ca’Damont o chama — respondeu ela.

Elissa fechou a cara e cruzou os braços. Uma das peças do jogo, um téni-guerreiro, ainda estava em sua mão.

— Mesmo assim, você tem que pedir desculpas ao embaixador — falou Jan, mas Sergei tossiu suavemente e interrompeu o hïrzg.

— Não é necessário, hïrzg. Já fui chamado de coisas piores, e ao menos ambas as partes do apelido são verdadeiras. A propósito, há presentes para as crianças, enviados por sua mamatarh nos aposentos da embaixada; eu os mandarei para cá hoje à tarde.

— Presentes!

O grito tinha vindo das três crianças mais velhas ao mesmo tempo, e até mesmo Eria tinha tirado os olhos do emaranhado do tricô da hïrzgin Brie.

Sergei riu — na verdade, os filhos de Jan e Brie o divertiam. Eles eram espertos, encantadores e saudáveis. Era uma pena que Allesandra não os conhecesse tão bem quanto ele.

— Se vocês falarem com Rance, aposto que ele mandaria um mensageiro pegar os presentes agora, se seus vatarh e matarh aprovarem.

— Vatarh? Matarh? — berrou Elissa imediatamente. — Podemos?

Brie sorriu complacentemente e olhou para Jan.

— Podem ir — ela disse para os filhos, entregando Eria para a babá. — E esperem pelos presentes na sala de brinquedos, por favor. Não fiquem incomodando o Rance.

As crianças saíram com a babá e chamaram Rance.

— Elas são crianças adoráveis — comentou Sergei quando saíram. — Vocês dois tiveram muita sorte.

— Isto é o que dizem as pessoas que não são pais — falou Brie rindo.

— Estou certo de que todos os seus filhos se comportam perfeitamente, o tempo todo.

Tanto Brie quanto Jan riram.

— Vamos deixá-los com você enquanto estiver aqui, Sergei — disse o hïrzg. — Isso vai fazê-lo mudar de ideia.

Nesse momento, o sorriso foi recolhido, e Jan acenou para que Sergei se sentasse em uma das cadeiras à mesa. O embaixador notou que o hïrzg pousou o olhar sobre a bolsa diplomática em sua cintura.

— Mas estou certo de que você não veio aqui para nos elogiar ou entregar presentes. O que minha matarh tem a dizer? Da última vez que esteve aqui, você disse que esperava intermediar um acordo e fazer com que ela me nomeasse o a’kralj. Ela concordou?

Sergei olhou para o jogo de chevaritt em andamento à sua frente antes de responder. Eles disputavam uma partida de dois jogadores, e o número de peças restantes no tabuleiro era mais ou menos igual. No entanto, Sergei viu um erro na maneira como as peças de Kriege estavam dispostas: se Elissa andasse três espaços com a vanguarda, ela estaria atrás das linhas de Kriege. O garoto teria que trazer três chevarittai para se proteger — e isso deixaria dois fortins abertos, sendo sitiados por ambos os flancos.

Ele se perguntou se Elissa também tinha visto aquilo. Pelo posicionamento das peças, Sergei suspeitava que sim.

— Elissa sempre vence — comentou Jan, evidentemente notando a atenção que Sergei dispensara ao tabuleiro. — Gosto de pensar que, pelo menos no jogo, ela não nega sua origem.

Com os dedos espalmados, Jan andou com as peças da vanguarda da filha: três espaços à frente. Sergei ergueu os olhos e coçou a lateral do nariz.

— Ah, então o senhor também viu.

Jan sorriu.

— Da mesma maneira que o fato de você não ter respondido à pergunta que fiz também me diz qual foi a resposta da kraljica.

Sergei enfiou a mão dentro da bolsa diplomática e retirou a carta novamente selada. Ele a pousou na mesa e bateu com o indicador no papel grosso ao lado do selo de cera vermelha.

— A kraljica ofereceu uma... contraproposta.

Jan olhou para a carta, sem estender a mão para pegá-la.

— Então vamos ouvi-la. Imagino que você já tenha lido, embora o selo ainda esteja intacto.

— Isto seria impróprio da minha parte, hïrzg — respondeu Sergei.

Ele ouviu Brie pigarrear e olhou para ela; sua atenção estava voltada para o tricô. Brie pareceu sentir a pressão do olhar de Sergei e falou sem tirar os olhos das agulhas.

— Allesandra diz que se continuarmos a ameaçar suas fronteiras, ela tomará uma atitude — falou a hïrzgin. — Ela interpretou a oferta de Jan como uma “capitulação”, não como um acordo. Ela sugere, como alternativa, que o hïrzg deveria dissolver sua tola Coalizão e tornar-se novamente “o braço forte” dos Domínios.

Sergei quase riu.

— A senhora tem ouvidos no palácio, hïrzgin? “Capitulação” é exatamente a palavra que a kraljica usou.

Brie pousou o tricô em seu colo e ergueu os olhos.

— Eu sei como ela pensa — respondeu a hïrzgin, com um sorriso espreitando os cantos da boca. — Meu marido pensa da mesma maneira.

— Brie... —

Jan começou a protestar, mas foi calado pela risada sutil da esposa.

— Isso não é uma crítica, meu amor — falou Brie. — Eu admiro você, sempre admirei. Mas você é filho da sua matarh.

Ela voltou a tricotar, e as agulhas soaram como espadas se chocando ao longe.

— E este é o problema; se entre vocês dois houvesse um líder medíocre, então não haveria Domínios e Coalizão, mas um único império.

— Este foi o meu erro — admitiu Jan. — Eu tive a oportunidade de fazê-lo há 15 anos. Podia ter tomado o Trono do Sol.

Ele olhou para Sergei, que exibia uma expressão cautelosamente neutra: nenhum assentimento, nenhuma expressão de concordância ou discordância.

— Mas eu era jovem e queria ensinar uma lição a minha matarh. Em vez disso, descobri que sou o aluno.

Novamente, Brie ameaçou sorrir.

— Vocês dois querem a mesma coisa, sempre quiseram. Infelizmente, vocês dois também consideram que sua visão de mundo é a certa.

A hïrzgin pousou o tricô no banco ao seu lado, se levantou e se dirigiu até Jan. Ela pegou o braço do marido, apoiou-se nele e beijou seu rosto.

— Eu te amo, meu querido, e compartilho de sua visão, mas também compreendo como sua matarh enxerga as coisas.

Jan passou o braço pela cintura da esposa e puxou-a para si. Sergei se levantou, com os joelhos estalando como gravetos secos sendo pisados. Ele apoiou-se na bengala e ajeitou o sobretudo.

— Deixarei que vocês dois leiam a resposta da kraljica e redijam a sua para mim, embora eu possa imaginar qual seja. Se quiserem, podemos discutir sobre a carta e suas possibilidades para chegarmos a termos mais equitativos. Gostariam de jantar na embaixada hoje à noite? Fui informado de que temos um novo chef, especializado em iguarias de Navarro...

— Nós adoraríamos — Brie respondeu.

Jan assentiu um momento depois.

— Então vejo vocês hoje à noite, uma virada da ampulheta depois da Terceira Chamada? Ótimo...

Sergei fez uma mesura para o casal, se dirigiu até a porta e bateu nela com a bengala. Um dos criados do corredor abriu para ele, que se perguntou, ao caminhar pelo corredor até o portão onde a carruagem o aguardava, quanto tempo levaria antes que filho e matarh estivessem novamente em guerra.

Nico Morel

Eles montaram o palanque no Parque do Templo rapidamente, não muito longe do antigo templo que ficava ali — o mais velho (e menor) dos templos da fé concénziana em Nessântico. A princípio, os morellis concordaram que Ancel seria o orador e eles permaneceriam ali não mais do que uma marca da ampulheta — tempo este que seria suficiente, com sorte, para que um utilino ou a Garde Kralji não reagissem, ainda que Nico tivesse preparado distrações caso as autoridades chegassem. O próprio Nico não discursaria; ele assistiria detrás do palanque com Liana e o resto do círculo interior dos morellis, pronto para fugir e desaparecer nas densas ruelas do Velho Distrito se as autoridades atacassem a manifestação.

Mas a multidão era maior do que o previsto. Notícias da manifestação tinham se espalhado de boca em boca, através de cartazes enigmáticos nas paredes de Nessântico que apenas seus seguidores entenderiam, mas a resposta tinha sido muito maior do que qualquer um deles imaginara. Nico estava certo de que alguma informação sobre a manifestação teria vazado para o pessoal do comandante, mas eles procuraram cuidadosamente por qualquer sinal que indicasse que eles seriam impedidos de falar. Nico não ficou surpreso ao não encontrar nenhum: o próprio Cénzi o protegia, era sua Voz Absoluta. Após o encontro com Varina, ele tinha voltado para casa com a cabeça doendo e os sentimentos confusos. Passou o resto do dia rezando e, nessa noite, Cénzi falou com Nico em seus sonhos: de maneira clara, sem enganos. Ele tinha dito a Nico o que precisava ser dito.

Cénzi falaria através de Nico hoje. E Nico obedeceria, como qualquer servo devia fazer. Ele escreveu as palavras que Ancel diria; Liana já tinha colocado o pergaminho no palanque. O que surpreendeu Nico foi o fato de que, no mesmo momento em que seus seguidores começaram a montar a pequena plataforma, a multidão começou a se reunir. Os primeiros a chegar foram os morellis da cidade, que já eram fiéis. Mas a multidão continuava a crescer, muito além do número de pessoas que já havia jurado publicamente sua lealdade a Nico. Espalhados pela multidão estavam robes verdes: os ténis da cidade, a maior parte do escalão dos e’ténis — os novos ténis, aqueles que podiam ter ouvido falar de Nico desde que ele voltou a Nessântico, mas que ainda não tinham tido a oportunidade de vê-lo discursar. Agora, no momento em que as trompas do templo anunciavam a Segunda Chamada, quando muitos na multidão deveriam estar nas missas, eles estavam aqui. Trezentas pessoas, pelo menos, talvez mais.

Aqui. Para escutar a palavra de Cénzi.

Você tem que discursar. Eles vieram ouvir você, ouvir Minhas palavras pelo dom da sua voz.

A compreensão o atingiu com força, como um golpe em sua têmpora. Ele quase cambaleou devido ao seu impacto. Liana agarrou o braço de Nico, sentindo sua reação.

— Nico...?

— Eu estou bem. Cénzi acabou de falar comigo.

Ele ouviu Liana respirar fundo.

— Há perigo?

— Não — respondeu Nico, quase rindo. — Exatamente o oposto. Ele quer que eu discurse.

— Você não pode — discordou Liana. — Todo mundo disse que é muito perigoso.

— Eu não corro perigo, não enquanto estiver sob a proteção de Cénzi.

Nico deu um tapinha em sua mão e, em seguida, acariciou sua barriga. Ele sentiu a criança se mexer sob sua mão e sorriu para Liana.

— Eu ficarei bem. Por favor, não se preocupe.

Ela franziu a testa, mas soltou seu braço. Ele sorriu para Liana e deu-lhe um beijo na bochecha, depois subiu rapidamente os dois degraus do pequeno palco onde Ancel já desenrolava o pergaminho. Nico foi recebido por um urro da plateia; Ancel desviou o olhar do pergaminho ao ouvir o som, olhou para o mar de mãos apontando para Nico, e virou a cabeça abruptamente. Sua voz mal conseguiu ser ouvida em meio ao urrar da multidão.

— Absoluto? Eu pensei...

Nico fez o sinal de Cénzi para ele.

— Eu ficarei bem, Ancel, mas agradeço se você ficar aqui comigo para vigiar os gardai. Cénzi... Cénzi quer que eu passe Sua mensagem para a nossa gente com minha própria voz.

Ancel arregalou os olhos e se curvou em uma longa reverência para Nico, fazendo o sinal.

— O pergaminho... Aqui está.

Ele entregou o papel para Nico, que sorriu para o amigo e balançou a cabeça.

— Eu não preciso disso. Cénzi me dará as palavras.

Outra mesura. Nico subiu no palanque e a multidão redobrou o barulho. Ele ergueu as mãos e fechou os olhos ao erguê-los para o céu. Ele podia sentir o sol em seu rosto e a adulação da multidão o atingir como um golpe físico.

— Pelo Senhor, Cénzi — sussurrou Nico. — Pelo Senhor.

Ele abriu os olhos e fez um gesto pedindo silêncio. Lentamente, a multidão obedeceu.

— Cénzi abençoa a todos vocês hoje — falou Nico.

Ele ouviu Cénzi se mesclar a sua voz, ouviu-a soar alta e retumbante no parque, como um e’téni usando o Ilmodo para amplificar sua Admoestação, ainda que Nico não tivesse criado tal feitiço. Não, esta era a presença de Cénzi, envolvendo o Segundo Mundo em suas palavras para que todos o ouvissem.

— Eu rezei, minha gente, e prestei atenção, e eu ouvi a Voz de Cénzi.

A última frase soou como um urro que atingiu a plateia e pareceu sacudir as árvores do parque, e as pessoas urraram de volta, sem dizer nada.

— O momento está chegando, Ele me disse, um momento em que teremos que fazer uma escolha, em que teremos que decidir se seguiremos Seu caminho ou o caminho dos fracos humanos. O momento está chegando, e está chegando em breve, meus amigos; muito em breve, teremos que mostrar para Ele que ouvimos Suas palavras e que as obedeceremos. As palavras estão lá para nós. Nós as ouvimos nas palavras do Toustour e da Divolonté. Nós as ouvimos nas palavras das Admoestações nos templos. Nós as ouvimos nas palavras dos profetas e dos ténis, mas...

Ele fez uma pausa momentânea, fechando os olhos e erguendo o rosto novamente.

— O fim dos tempos se aproxima de nós. Ele vem devagar, irreversível. Os ténis da Fé já não ouvem as palavras de Cénzi. Ah, eles as pronunciam, mas não as ouvem, não as sentem. As palavras do Toustour e da Divolonté deveriam golpeá-los como o próprio punho de Cénzi. Elas arrebentarão suas almas e as farão renascer, novas em folha, se vocês permitirem. Eu digo a vocês: é disso que nós precisamos agora. Precisamos nos abrir para Cénzi e deixar que Ele nos transforme em Sua lança!

As palavras emanaram como fogo da boca de Nico. A onda de calor que emergiu delas atingiu pessoas diante dele, que gritaram novamente sua convicção.

— Diga-nos, Absoluto! — alguém berrou, e todos a ecoaram, em uníssono.

— Diga-nos! Diga-nos!

Nico ouviu a multidão por vários segundos, enquanto seu peito arfava pelo esforço de falar. Finalmente, ele ergueu as mãos e todos se calaram novamente. Em meio ao silêncio, à quietude, Nico voltou a falar, e embora a voz não fosse mais que um sussurro, todos conseguiam ouvi-lo. Ele ouviu sua voz reverberar nas paredes do templo, do outro lado do parque.

— Cénzi me disse que não podemos mais tolerar os hereges entre nós. Não podemos tolerar nem mesmo aqueles que vestem os robes verdes mas que falham ao ouvir Suas palavras quando são ditas. O archigos e seus a’ténis falam com suas línguas falsas. Não podemos mais tolerar aqueles que este mundo abençoou com poder e dinheiro, mas que não enxergam que essas bênçãos derivam de Cénzi, não de si mesmos. Ele trará fogo e destruição. Trará morte e escuridão. Ele nos mostrará nossa estupidez para que todos vejamos, e quando Ele o fizer...

Outra pausa. Ele pronunciou cada uma das palavras a seguir claramente. Devagar. Cada uma em seu próprio tempo.

— Temos. Que. Responder.

As pessoas gritaram, aplaudiram, ergueram as mãos. Mas Nico, olhando por sobre a multidão, pôde ver atrás da última fila da multidão a Garde Kralji uniformizada, esquadrões de gardai que entravam aos borbotões no Parque do Templo.

— O sinal está chegando! — Ele berrou. — Nós o conheceremos em breve! Eu lhes prometo isso porque Ele me prometeu. Mas, olhem — Nico então apontou para a Garde Kralji —, existem aqueles que querem evitar que vocês ouçam as minhas palavras. Que querem me impedir de dizer a Verdade, porque a Verdade é a sua inimiga. Olhem!

A multidão se voltou para trás e viu a Garde Kralji, começando a berrar. Conforme os gardai abriam caminho à frente, tentando chegar ao palco, a multidão empurrava de volta. Os gardai reagiam com seus cassetetes. Algumas pessoas foram derrubadas com o ataque. Um e’téni na multidão soltou um feitiço: um jato de fogo que, rugindo, atingiu as fileiras de gardai.

De repente, virou um caos — muita gente na multidão avançou pelo novo buraco aberto entre as fileiras de gardai. Cassetetes subiram e desceram, e agora havia uma batalha campal no parque. Os apitos dos utilinos soaram, e o Ilmodo agora era usado contra a multidão. Uma rajada de vento controlado atingiu o palco e jogou o público mais próximo no chão, sobre a grama do parque, assim como jogou Nico sobre Ancel.

— Absoluto! — Ancel gritou alto em meio ao barulho da confusão. — Temos que ir embora! Agora!

Nico olhou ao longe. Não havia nada que ele pudesse fazer aqui, Cénzi estava mudo na sua cabeça.

— Eles não me ouvem — disse Nico. — Isto é desnecessário. Os fiéis não deveriam lutar entre si.

Mais gardai entravam no parque, alguns com uniformes da Garde Civile, armados com espadas e lanças em vez de cassetetes. Nico viu cabeças sangrando. Ele começou a se dirigir para a frente do palco, mas Ancel pegou seu braço. Liana tinha subido no palanque agora, juntamente com vários integrantes do círculo interno. Todos cercaram Nico.

— Vocês verão!

Nico berrou para a multidão, mas a voz era apenas sua voz agora, e ainda que o tivessem escutado, não lhe deram atenção. Nico estava exausto, tão cansado como se tivesse usado o Ilmodo. Ele caiu sobre as mãos dos seguidores, que o levaram rapidamente para o fundo do palco e escada abaixo.

— Terminamos aqui — disse Ancel para os demais. — Agora precisamos proteger o Absoluto e levá-lo embora. Rápido.

Nico pegou a mão de Liana enquanto seus seguidores cerravam o círculo ao seu redor, e eles fugiram para as profundezas do Parque do Templo, na direção do labirinto das ruas do Velho Distrito.

Varina ca’Pallo

A oficina de Pierre ficava no jardim dos fundos do terreno da Casa dos Numetodos, na Margem Sul. Ela cheirava a ferro, óleo, madeira e verniz, e também à salsicha que Pierre não terminou de comer, deixada sobre uma mesinha lateral no cômodo atulhado. Cada superfície de trabalho estava tomada; não havia madeira aparente nos tampos das bancadas. Vários instrumentos e apetrechos estranhos em vários estágios de montagem estavam dispostos aleatoriamente. Varina só podia imaginar o que metade deles poderia ser. O ambiente era iluminado pelo sol que entrava por várias claraboias com heras nas bordas; os raios de luz iluminavam o ar tomado pela serragem: Pierre lixava uma tábua presa em um torno sobre uma das bancadas.

— A’morce — disse o homem subitamente ao notar Varina à porta.

Ele largou a lixa, levantando uma nuvem de poeira reluzente.

— Eu não esperava pela senhora.

Conforme ela entrava, Pierre ia tirando meia dúzia de cinzéis de madeira de cima do assento de uma cadeira, enxotando a gata que estivera aninhada em meio às ferramentas. Ele fez um gesto para Varina se sentar, enquanto a gata rosnava, irritada, e entrava debaixo da bancada mais próxima para lamber as patas e ficar amuada.

— Eu soube que os morellis causaram um tumulto de grandes proporções no Parque do Templo ontem — falou Pierre. — Pelo menos uma dezena de pessoas foi morta, pelo que ouvi dizer, mas o desgraçado do Morel escapou.

Varina meneou a cabeça, em silêncio. Seu complexo de culpa a corroía por dentro novamente: por ter deixado Nico viver quando podia tê-lo matado; por se permitir pensar que poderia ser o juiz e o executor do rapaz; por ter decepcionado a Karl; por ainda nutrir sentimentos maternais por Nico após todos esses anos; por pensar que ele era digno de redenção; pela estranha simpatia que tinha por ele.

Pelo que estava prestes a fazer agora.

Karl, é isto o que eu devo fazer? É o que você teria feito como a’ morce? Ao pensar nisso, Varina foi tomada pela tristeza mais uma vez e teve que virar as costas a Pierre por um momento. Todo mundo a alertara de que seria assim: a tristeza recuaria lentamente, que por muito tempo ainda ela se lembraria de Karl e a dor a invadiria novamente.

Pierre deve ter pensando que uma fagulha tinha entrado no olho de Varina.

— Morel disse que haveria um sinal de Cénzi — ele continuou. — Algo a respeito de fogo, destruição e morte, pelo que ouvi dizer.

Pierre fungou com desdém.

— Se essa é a profecia, bem, qualquer um de nós poderia ganhar a vida como profeta. Há bastante fogo, destruição e morte todos os anos que cheguem para vinte profecias vagas como essa. Se Cénzi fosse tão poderoso como Morel parece acreditar, ele teria dado sinais inconfundíveis e suas profecias teriam sido mais específicas. Ora, se Morel me dissesse que o sol nasceria no oeste amanhã e isso acontecesse, aí sim, isso talvez me convença a entrar para a fé concénziana.

Ele riu da própria piada. Varina sorriu educadamente e secou os olhos rapidamente. Pierre pareceu encarar o sorriso como um incentivo.

— O que me incomoda — ele disse — é que havia evidentemente uma quantidade considerável de gente dando ouvidos aos morellis, e muitos eram ténis também, não dá para acreditar. Estou dizendo, os problemas dos numetodos podem estar prestes a começar de novo.

— Nico consegue ser bastante charmoso e convincente — disse Varina. — Ele tem muita presença.

E caso eu tivesse dúvidas quanto aos relatos, encontrá-lo fez com que eu os confirmasse.

Pierre deu de ombros.

— Pelo que ouvi, a multidão na verdade resistiu à Garde Kralji quando os gardai apareceram e permitiu que o desgraçado escapasse. Haverá derramamento de sangue entre os morellis e nós numetodos, a’ morce. Guarde o que eu digo... e me chame de profeta também.

Ele sorriu e ergueu ombros novamente.

— Mas, perdoe-me, a’ morce, por falar sem parar. Suponho que a senhora tenha testado o dispositivo que fiz. Funcionou? Ele sobreviveu à experiência?

— Sobreviveu — respondeu Varina.

Pierre meneou a cabeça, e ela viu uma intensa satisfação estampada em seu rosto.

— Eu fiquei muito contente com ele — continuou Varina. — É por isso que estou aqui. Quero mais dispositivos. Um punhado deles, na verdade.

Agora suas sobrancelhas se ergueram em seu rosto magro. Inconscientemente, Pierre limpou a serragem da frente da bashta. Seu olhar percorreu a oficina.

— Um punhado — murmurou ele, de maneira quase inaudível. — A’ morce, todo o trabalho que eu tenho aqui para fazer... Os pedidos de instrumentos e dispositivos, feitos por outros numetodos para seus estudos... Não sei nem mesmo por onde eu começaria...

Ele ergueu as mãos; Varina notou suas cicatrizes e calos e falou:

— Contrate alguns aprendizes competentes. Eu mesma pagarei sua remuneração, o que você achar justo. Compre o material que precisar e mande a conta para mim. Os dispositivos não precisam ser tão... — Varina pausou e sorriu para Pierre — ... primorosos quanto o que você fez para mim. Faça com que eles trabalhem sob a sua supervisão; você pode inclusive pedir a eles que lhe ajudem em outros serviços, se necessário. Eu não me importo.

Ela respirou fundo e sentiu um arrepio.

— Pierre, isso é necessário para a proteção de todos os numetodos.

— A’ morce, eu não ouvi...

— Não ouviu porque eu não disse nada para mais ninguém. E nem você deveria contar. Posso contar com sua discrição, imagino?

Ele ergueu ainda mais as sobrancelhas.

— Claro, a’ morce. Claro. É só que...

— Sim?

Pierre meneou a cabeça negativamente.

— Nada, a’ morce.

Ele passou a mão em suas coxas, levantando uma nuvem de poeira que brilhou no raio de luz mais próximo.

— Eu farei como o pedido, e espero que a senhora fique satisfeita com os resultados.

— Ótimo — respondeu Varina. — Obrigada, Pierre. Eu passarei no próximo draiordi para acompanhar seu progresso.

Ela se levantou, ajeitou o sobretudo sobre a tashta e falou:

— Espero que eu esteja enganada e que nada disso seja necessário. Na verdade, isso é o que me deixaria mais contente, mas duvido que eu tenha esse prazer.

Allesandra ca’Vörl

O comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji, e o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile, estavam ambos em uma inquieta posição de sentido diante do Trono do Sol. Os cortesãos e o público tinham sido dispensados do salão, e a costumeira reunião mensal do Conselho interrompida. O Conselho dos Ca’ estava sentado à direita do Trono e, exceto pelos criados a postos próximos às paredes, prontos para atender a qualquer pedido, não havia mais ninguém ali para testemunhar o desgosto que os relatórios causaram em Allesandra.

Ninguém além de Erik ca’Vikej, que estava sentado atrás do Conselho. Allesandra notou os conselheiros se esforçando para ignorar a presença do homem; seu constrangimento era quase agradável. Entre os conselheiros, apenas Varina parecia não notá-lo. Allesandra tinha a impressão de que ela estava perdida em seus próprios pensamentos; Varina não tinha dito nada durante a reunião inteira.

— Nico Morel foi capaz de fazer um discurso público, um discurso que atacou tanto a Fé quanto o Trono do Sol, e nós, ainda assim, fomos incapazes de capturá-lo.

Allesandra fungou com desdém. O brilho amarelo intenso do Trono do Sol a envolvia; ela pôde ver a claridade entre seus dedos quando apertou os braços cristalinos do Trono. Pôde ver as rachaduras na pedra translúcida e entalhada onde o Trono, danificado no assassinato do kraljiki Audric, há 15 anos, tinha sido reparado. As rachaduras não brilhavam, mas permaneciam teimosamente opacas apesar dos melhores esforços dos ténis-luminosos.

— Não era isso o que eu queria ouvir.

Ela ouviu Erik bufar com um divertimento frio diante do comentário.

— Nem é o que queríamos relatar, kraljica — respondeu o comandante co’Ingres. — Eu estava no comando da operação, não o comandante ca’Talin, que tinha concordado em apoiar a Garde Kralji e, portanto, não deve ser responsabilizado por isso. Eu não tenho nenhuma desculpa adequada, e não darei nenhuma.

— Então é bom que eu tenha recebido outros relatórios do acontecimento, comandante — falou Allesandra. — Eu sei que seus gardai foram atacados pela multidão, e que eles tiveram um controle admirável em não responder no mesmo tom contra os cidadãos dos Domínios.

Co’Ingres inclinou a cabeça em direção à ela em sinal de reconhecimento.

— Mas eu acho que o tempo de contenção contra os morellis já passou — ela continuou. — No futuro, ambos têm a minha permissão para usar a força que acharem necessária.

Allesandra olhou para Varina ao dizê-lo. Ela não fez sinal algum, só olhava fixamente para as mãos entrelaçadas em seu colo, e Allesandra se perguntou se Varina sequer tinha ouvido o que ela disse.

— Nico Morel deve ser encontrado e julgado pelo assassinato dos cidadãos de Nessântico e pelos danos que causou aqui — ela disse para os comandantes e conselheiros.

Os comandantes menearam suas cabeças, recebendo as ordens como qualquer bom soldado deveria, mas os cinco integrantes do Conselho dos Ca’ não estavam tão de acordo. Varina estava perdida em seus próprios pensamentos. Henri ca’Sibelli, primo de Allesandra, assentiu, e a papada sobre seu pescoço balançou com o movimento. Mas os outros três... a mão de Simon ca’Dawki cofiava sua barba branca, e sua boca se contorcia como se ele tivesse provado um gosto azedo; Anaïs ca’Gerodi inclinou-se na direção de Edouard ca’Matin e sussurrou algo em sua orelha peluda, ao que o homem reagiu franzindo o cenho vigorosamente, sacudindo a cabeça devido à paralisia que o afligia.

Será que calculei mal o apoio de Nico Morel aqui? Allesandra viu-se desejando que Sergei ainda estivesse na cidade; ela precisava de sua honestidade nua e crua. Mas, no lugar do embaixador, ela olhou para Erik.

Ele também franzia o cenho, mas sua irritação era dirigida ao Conselho: Allesandra viu que Erik tinha notado a reação deles.

— Estamos de acordo? — ela perguntou aos conselheiros.

— Estamos, kraljica — respondeu ca’Sibelli, mas sua voz foi a única ouvida.

Os outros não disseram nada; e, caso discordassem, não o diriam aqui, na frente dela.

— Ótimo — disparou Allesandra.

Se eles estavam demasiado inseguros em manifestar seu descontentamento, que ficassem descontentes. Ela se levantou do Trono do Sol, e o brilho dentro do cristal morreu. O salão pareceu subitamente escuro.

— Estamos encerrados. Comandantes, conselheiros, obrigada pelo seu tempo.

Os comandantes fizeram mesuras e saíram rapidamente, com os saltos de suas botas batendo ruidosamente nos ladrilhos do salão do Trono do Sol; os conselheiros se entreolharam, inseguros, então finalmente levantaram de suas cadeiras soltando vários gemidos e murmúrios. Eles fizeram mesuras para Allesandra e, com hesitação, para Erik antes de começarem a sair do salão, mais lentamente que os dois soldados.

— Varina — chamou Allesandra —, um momento, por obséquio...

Quando o último dos conselheiros saiu do salão e os criados fecharam as portas, Allesandra se aproximou de Varina e pegou em suas mãos.

— Como você está? — perguntou Allesandra. — Estou preocupada com você. Não disse absolutamente nada hoje.

— Desculpe-me, kraljica.

— Você está recuperada de seus ferimentos?

— Ferimentos? — perguntou Varina, como se não soubesse do que Allesandra estava falando. Então ela se lembrou: — Ah, os ferimentos. Sim, completamente. Obrigada pela preocupação.

Sua voz soou indiferente, e ela parecia mais cansada e esgotada que o habitual. Sua face esquerda parecia ceder ligeiramente, e seu olho esquerdo estava embaciado. Allesandra se lembrou de outros casais de longa data que conheceu, e de como quando um cônjuge morria, o outro geralmente o seguia para os braços de Cénzi logo depois. Ela se perguntou se este seria o caso com Varina.

— Mandarei meu curandeiro visitá-la hoje à noite — falou a kraljica, fazendo um gesto para interromper o protesto que se formava na boca de Varina. — Não, não ouvirei suas desculpas, minha querida. Eu insisto. Sei que você tem os numetodos para cuidar de você, mas Talbot me contou que você está se enterrando no trabalho, que fica trancada no laboratório. Isso não é saudável, Varina. Você deveria sair ao ar livre, se divertir com os amigos.

— Acho que estou sentindo minha mortalidade, kraljica. Não tenho muito tempo a perder, e ainda há muito o que fazer, muito que compreender.

— Você estará aqui ainda por anos e décadas — disse a kraljica.

Era uma mentira educada, e ambas sabiam disso.

— Você perdeu o Gschnas para cuidar do pobre Karl, e isso é uma pena. Eu darei outra festa em breve; você será convidada, e eu insisto que venha. Não aceito desculpas.

— A kraljica é gentil demais — respondeu Varina. — Claro que virei, mas eu preciso voltar à Casa dos Numetodos. Estou conduzindo uma experiência...

Ela fez uma mesura quase imperceptível e começou a se virar, então parou.

— Kraljica?

— Sim?

— Eu sempre disse a Karl que Nico podia ser recuperado, que se tivéssemos tido a oportunidade de falar com ele... — Varina umedeceu os lábios secos e rachados, rodeado de rugas. — Eu estava errada.

— Você realmente falou com ele? — perguntou Allesandra.

Varina assentiu.

— Nico está convencido de que está certo e que todos nós estamos errados. E ele é mais perigoso do que qualquer um de nós pensávamos.

Dito isso, Varina repetiu sua imperceptível mesura e arrastou os pés na direção das portas, com os passos de uma mulher duas décadas mais velha do que era.

— Ela está certa, e você sabe.

A voz sobressaltou Allesandra; ela tinha se esquecido de que Erik ainda estava ali. Ela sentiu a mão dele tocar seu ombro e pousou sua bochecha sobre ela.

— Eu sei — respondeu Allesandra. — E isso me assusta.

Rochelle Botelli

— O desgraçado do ci’Lawli me tirou da lista de chevaritt — disse co’Kella, xingando entredentes.

Conforme as instruções de Rochelle, o homem não voltara o olhar para as sombras onde ela estava.

— Ele mandou minha filha que está carregando o filho do hïrzg embora, e não estão me oferecendo quase nada, nada, em troca. Ora, eu teria sido nomeado ca’Kella no pronunciamento do hïrzg se ci’Lawli não tivesse interferido. Eu poderia até mesmo ter me tornado conselheiro a tempo. Agora ci’Lawli tem que pagar: por mim, por minha filha, pela sorte da minha família.

Era um conto antigo, uma versão da mesma história que ela tinha ouvido um punhado de vezes em sua curta carreira como Pedra Branca, uma história que sua matarh, certamente, tinha ouvido inúmeras vezes.

— Se é assim que deseja, vajiki — respondeu Rochelle moldando sua voz em um tom grave e ameaçador —, deixe as solas e a pedra que mandei trazer como sinal e vá para casa. Dentro de um mês, o homem estará morto. Eu lhe prometo.

Ele deixara a bolsinha de moedas de ouro e a pedra branca e lisa. Rochelle as pegou.

Rance ci’Lawli. Matá-lo significaria estar próximo de seu vatarh. Ela podia sentir a empolgação dentro de si pulsar diante da ideia.

Ela criou uma identidade para si mesma. Sua matarh tinha lhe mostrado como a Pedra Branca fazia isso. Rochelle já tinha quatro ou cinco identidades falsas, algumas usadas no passado: garotas que tinham nascido em anos próximos ao dela, mas que morreram na infância. Eram de todo tipo, de pessoas comum, sem status, a pessoas do escalão dos ca’. Em relação a essas últimas, ela conhecia suas genealogias, os nomes de seus vatarh e matarh, suas cidades e títulos, e quem essas pessoas conheciam. Sua matarh a tinha alertado que ela deveria tomar cuidado com identidades falsas, especialmente quando se subia a escala social para os ca’ e co’. Ela tinha contado sua história para sua filha, em tom de alerta, sobre como quase tinha sido descoberta em Brezno, quando se fez passar por Elissa ca’Karina, quando “Elissa” e o hïrzg Jan tinham sido amantes.

Quando a própria Rochelle foi concebida.

“A elite se conhece”, disse a matarh para Rochelle, após o segundo ou terceiro assassinato de Rochelle como Pedra Branca, pouco antes dela morrer. “Ah, cale-se, você não sabe do que está falando”. A fala tinha sido um aparte para uma das vozes na cabeça da matarh; Rochelle tinha aprendido a filtrar tais comentários. “Eles são um grupo fechado, muitos integrantes da elite têm parentesco entre si, e as ligações familiares são importantes para eles — e, por causa disso, eles conhecem essas ligações. Você deve ter cuidado com o que diz pois a menor distorção pode te revelar. Sim, eu sei disso, seu idiota. Por que você continua me atormentando assim? Cale a boca! Cale-se logo!” Ela apertou suas mãos contra os ouvidos como se pudesse deter o diálogo interno e inclinando-se na cadeira para frente e para trás, como se sentisse dor.

Dois dias depois, sua matarh estava morta. Por suas próprias mãos.

Rochelle não precisava seguir esse conselho nesse caso. Ela se apresentou a Rance ci’Lawli como Rhianna Berkell, uma jovem sem status de Sesemora que tinha vindo a Brezno para fazer fortuna tentando um emprego no quadro de funcionários do palácio. Ela trazia consigo recomendações em papel timbrado de três chevarittai de Sesemora, com quem supostamente tinha trabalhado. O papel timbrado e os nomes neles eram genuínos; o papel tinha sido roubado na ocasião em que ela estivera em Sesemora com sua matarh, anos atrás; as recomendações eram, obviamente, completamente falsas. Mas Rochelle era uma atriz talentosa: ela sabia o que dizer, como se apresentar, e que habilidades poderiam colocá-la em melhor situação no corpo de funcionários do palácio. Também sabia como flertar sem obviedade, e ci’Lawli era suscetível às atenções de uma linda jovem. Três dias depois, a convocação chegou à estalagem onde Rochelle estava hospedava: ela seria contratada. Foi colocada pelo assistente ci’Lawli na criadagem real, onde cuidaria da ala do hïrzg no palácio e trabalharia diretamente com ci’Lawli. Ao longo dos dias que se seguiram, Rochelle fez questão de fazer um trabalho superior e observar. Observar e aprender os hábitos e rotinas de ci’Lawli.

Ela também se viu ocasionalmente no mesmo ambiente que seu vatarh. Em uma ou duas ocasiões, ela pensou tê-lo visto olhando para ela de um modo estranho e se perguntou se o hïrzg sentia o mesmo impulso que ela. Mas, na maior parte do tempo, especialmente se a esposa ou os filhos estivessem no aposento, Jan prestava tanta atenção nela quanto nos quadros das paredes; Rochelle era — assim como todos os funcionários — mera parte da mobília do palácio.

Hoje, ela tinha sido enviada para limpar a sala de recepção do lado de fora dos cômodos dos aposentos principais do hïrzg. As crianças estavam em outro lugar, mas Jan e a hïrzgin tinham tomado café da manhã com o embaixador dos Domínios, ca’Rudka, que estaria deixando Brezno hoje.

Conforme ela entrava pela porta de serviço carregando uma bandeja para limpar a mesa, ca’Rudka — cujo rosto fez Rochelle estremecer, com seu terrível nariz de prata colado à pele enrugada — fazia uma mesura para Jan e Brie.

— ... levarei sua carta à kraljica assim que eu voltar.

— E nesse ínterim, você certamente terá lido a carta, apenas para garantir que ela corresponde ao que eu lhe disse — falou Jan.

Ele riu. Rochelle adorava o som de sua risada: cheia de calor puro e bruto. Também gostava do som da sua voz. Queria ter conhecido Jan na infância, ouvido sua voz sussurrando uma boa noite ou sentido seus braços a embalando em frente à lareira, contando histórias de sua juventude, ou talvez contos da longa história de Firenzcia e seus ancestrais.

— Ora, Jan, não dê ideias ao embaixador — a hïrzgin interveio.

Rochelle não estava certa quanto ao que sentia pela matarh de seus meios-irmãos. A hïrzgin Brie parecia gostar genuinamente de Jan, mas Rochelle já tinha ouvido comentários e visto olhares que a faziam se perguntar se essa afeição era recíproca. Também havia a fofoca palaciana, mas ela ainda não estava a par dos detalhes das suspeitas cuidadosamente sussurradas.

— Não se preocupem — disse Sergei para ambos. — O hïrzg já me disse exatamente como ele pensa, mas confio que ele tenha se expressado de maneira mais diplomática na carta para a kraljica. Pelo menos, eu espero que sim.

O trio riu novamente, mas o divertimento durou pouco desta vez e tinha um quê de outra coisa que Rochelle não conseguiu decifrar. A voz de Sergei ficou subitamente séria e baixa.

— Eu realmente espero que consigamos encontrar uma forma de passar por isso sem recorrer à violência. Uma nova guerra não seria bom nem para os Domínios, nem para a Coalizão.

— Isso só depende da minha matarh — respondeu Jan.

— E depende da Coalizão não provocá-la nesse meio-tempo — retrucou Sergei. Ele meneou a cabeça e fez uma mesura para os dois. — Estou indo, então. Enviarei uma resposta por mensageiro rápido assim que falar com a kraljica Allesandra. Deem um beijo nas crianças por mim, e que Cénzi os abençoe.

Ele fez uma mesura novamente e saiu da sala, enquanto Rochelle continuava a empilhar pratos sujos na bandeja.

— Eu vou ver as crianças — disse Brie. — Você vem, querido?

— Daqui a pouco — Jan respondeu.

— Ah.

A estranha e vaga inflexão dessa única palavra fez Rochelle erguer os olhos de seu serviço, mas Brie já se aproximava da entrada dos aposentos internos, com as costas voltadas para ela. Rochelle voltou-se para seu serviço novamente, os pratos batendo suavemente ao serem empilhados.

— Você é nova na equipe de funcionários?

Rochelle levou um momento para perceber que Jan falava com ela. Ela notou que ele a observava do outro lado da mesa. Rochelle fez uma mesura rapidamente, com a cabeça baixa, como tinha visto outros criados fazerem na presença de Jan.

— Sim, meu hïrzg — respondeu ela, sem erguer os olhos. — Eu fui contratada há uma semana.

— Então você obviamente impressionou Rance, se foi colocada na criadagem do palácio. Qual é o seu nome?

— Rhianna Berkell.

— Rhianna Berkell — Jan repetiu, como se a provar o nome. — Soa bonito. Bem, Rhianna, se fizer um bom trabalho aqui, um dia você talvez receba um ce’ antes do nome. O próprio Rance era ce’Lawli há apenas dois anos, e agora é ci’Lawli. E quase certamente será co’Lawli um dia. Nós recompensamos àqueles que nos servem bem.

— Obrigada, senhor. — Ela fez uma mesura novamente. — Eu tenho que voltar à cozinha...

— Olhe para mim — disse Jan.

Ele falou com uma voz meiga, gentil, e Rochelle ergueu o rosto. Seus olhos se encontraram, e o olhar de Jan permaneceu em seu rosto.

— Você me lembra...

Ele parou. Seu olhar pareceu se perder por um momento, como se estivesse perdido nas próprias memórias.

— ... alguém que eu conheci.

Jan estendeu sua mão, e os dedos da mão direita tocaram no rosto dela — o toque, pensou Rochelle, de um vatarh. Ela abaixou o olhar rapidamente, mas pôde sentir o toque dos dedos em sua pele por longos segundos depois.

— A bandeja, meu hïrzg — disse Rochelle.

— Ah, sim. Isso. É claro. Obrigado, Rhianna. Eu lhe agradeço.

Rochelle levantou a bandeja e seguiu na direção da porta de serviço. Ela podia sentir o olhar de Jan em suas costas ao abrir a porta com o quadril. Ela não ousou olhar para trás, com medo de que, se o fizesse, revelasse o segredo, com medo de que chamasse Jan pelo nome que tinha vontade de usar.

Vatarh...

Ela não podia fazer isso. Não agora.

Não ainda.

Varina ca’Pallo

Ela tinha armado a demonstração no salão principal da Casa dos Numetodos. Havia dois punhados de numetodos de longa data ao lado dela: entre eles, Pierre Gabrelli, que sorria, pois já sabia o que ela pretendia mostrar; o assistente-chefe da kraljica, Talbot ci’Noel; Johannes ce’Agrippa, talvez o mais talentoso dos magos numetodos, cujo estudo das práticas de magia tinha superado as descobertas do próprio Karl, e de Varina; Niels ce’Sedgwick, cujo interesse não era voltado a qualquer tipo de magia, mas sim nas formações geológicas da Terra e no que elas contavam de sua história; Leovic ce’Darci, cujos elegantes desenhos de prédios e maravilhas da engenharia eram não só um deleite, como também começavam a mudar o horizonte de Nessântico; Nicolau Petros, que estudava as estrelas e seus movimentos com um dispositivo baseado em um objeto que Karl tinha visto o espião Mahri usar; Albertus Paracel, o escriba e bibliotecário que era o encarregado da criação de uma já monumental compilação de todo conhecimento adquirido através das pesquisas e experiências dos numetodos. Todos eles eram essenciais para tarefa central dos numetodos — entender como o mundo funcionava sem o véu da superstição e da religião, usando a razão e a lógica para compreender os mistérios que os cercavam.

Eram aqueles que Nico Morel e sua laia consideravam tão terrivelmente ameaçadores.

Alguns numetodos estavam ausentes, no entanto — aqueles que Nico já havia matado, e que, na verdade, eram os mais próximos de Karl e Varina. Ela não podia fazer nada por eles, a não ser sentir a dor de sua ausência e de Karl.

Varina tinha continuado seus próprios experimentos com a chispeira. Ela refinara a mistura de areia negra e o formato e a composição da bala de chumbo disparada pelo dispositivo; mandara também que Pierre criasse algumas peças experimentais. A cada dia, Varina via com mais clareza o potencial assustador da chispeira e também estava mais convencida de que esse dispositivo poderia alterar os próprios tendões e fibras da sociedade em que eles viviam.

Varina às vezes se perguntava se essa mudança era algo que ela realmente queria desencadear.

“Não se pode esconder o conhecimento.” Era o que Karl dizia muitas vezes, ao longo de décadas. “O conhecimento se recusa a ser escondido. Se se tentar enterrá-lo, ele simplesmente encontrará uma maneira de se revelar para outras pessoas.”

Muito bem. Então ela não esconderia.

— Obrigada por terem vindo — disse Varina para o grupo reunido. — Todos vocês conhecem a areia negra. Todos conhecem a terrível destruição que ela pode causar quando acesa em grande escala. Meus experimentos recentes têm envolvido quantidades significativamente menores que as usadas na guerra e sem uso de magia alguma para acendê-la. E...

Ela se deteve, dando um passo na direção da mesa que ela tinha armado e coberto com um pano preto. A vários passos de distância, um melão maduro tinha sido preso a um suporte, em frente a uma mesa de carvalho deitada, que serviria como barreira: uma fruta do tamanho da cabeça de um homem, envolta por uma casca dura amarelo-esverdeada. Uma cabeça tão dura quanto a de um melão — um velho ditado nos Domínios. Varina pôde notar que todos olhavam para a instalação com curiosidade.

— Bem, é mais fácil simplesmente demonstrar.

Ela acenou com a cabeça para Pierre, que tirou o pano da mesa. A chispeira original do artesão estava ali, linda e reluzente, já carregada e pronta para uso. Varina pegou a arma sem dizer uma palavra, engatilhou-a e mirou a fruta doce.

Ela puxou o gatilho.

A chispeira estalou. A areia negra no tambor espocou; a chispeira deu um coice na mão de Varina soltando um estampido alto. Na outra extremidade do salão, a fruta pareceu explodir, espalhando pedaços pelo chão enquanto o restante partido pulou sobre o suporte. No silêncio que se seguiu, todos puderam ouvir o sumo da fruta destroçada pingando no chão.

O simbolismo, como Varina tinha esperado, tinha sido apreendido por todos eles.

— Sem magia? — murmurou Talbot. — Nenhuma?

Varina meneou a cabeça em negativa. O estampido da chispeira ainda ecoava em seus ouvidos; uma fina coluna de fumaça branca oscilante saía do cano.

— Sem magia — confirmou Varina. — Algumas pitadas de areia negra, uma bala de chumbo, e a habilidade artesanal de Pierre. E pode ser repetido. Afastem-se...

Ela pediu aos numetodos que tinham ido examinar a fruta despedaçada e as tábuas de madeira atrás dela, onde a bala estava cravada. Varina recarregou — um trabalho que levou alguns segundos —, engatilhou a chispeira e disparou novamente. Desta vez, os pedaços remanescentes da fruta foram completamente destroçados, e o suporte caiu para trás. Varina pousou a chispeira sobre a mesa e falou.

— Pierre fez uma chispeira para cada um de vocês, eu os ensinarei a usá-las.

— A’morce, isso... — disse Talbot, enquanto olhava para fruta arruinada no chão. — Por quê?

— Receio que os numetodos estejam prestes a serem atacados novamente — explicou Varina. — Com essas chispeiras, vocês não precisam ter habilidade com espada, força física ou magia para se defender. Tudo o que vocês precisam fazer é apontar o dispositivo e puxar o gatilho. Receio que precisaremos de toda proteção que pudermos arranjar.

Leovic tinha ido até a mesa. Ele virava a chispeira em suas mãos, examinando seu mecanismo. Varina notou que a mente do homem trabalhava. Leovic olhou para ela e comentou:

— Está quente. E se fosse um garda de armadura?

— Ele não se sairia melhor que a fruta — respondeu Varina. — Posso lhe mostrar, se quiser.

Os músculos do maxilar de Leovic retesaram, como se estivesse retendo a resposta que gostaria de dar.

— Qualquer artesão competente poderia criar uma coisa destas — disse o homem finalmente. — Ainda que não tão elaborada quanto a criação de Pierre. E quanto a aprender a usá-la?

— Posso mostrar-lhes em algumas marcas da ampulheta — disse Varina.

— Você pode nos dar o possibilidade de matar alguém a poucos passos de distância, mesmo que a pessoa esteja de armadura? — disse Johannes, em um sussurro quase reverencial.

— Sim — respondeu ela.

— A senhora quer de fato liberar esse poder?

— Ele já foi liberado — argumentou Varina. — Esse poder foi liberado quando os tehuantinos criaram a areia negra. Se destruirmos as chispeiras agora e jamais falarmos delas novamente, outra pessoa chegaria à mesma conclusão que eu e as faria novamente. Vocês todos conhecem a expressão de Karl...

Ao mencionar seu nome, sua voz ficou entrecortada. Ela engoliu em seco, se desculpando. Talbot acenou para ela, em solidariedade.

— ... Karl dizia que o conhecimento não pode ser escondido. Mesmo os fiéis concénzianos têm uma expressão para isso: “uma vez que os moitidis foram criados, não havia como Desfazê-los”. Isso não é diferente.

— Ainda assim, a’morce... — disse Niels, balançando os longos cachos grisalhos. — As possibilidades...

— Eu posso antevê-las tão bem quanto qualquer um de vocês — respondeu Varina. — Acreditem, essas possibilidades vêm assombrando meus sonhos desde o funeral de Karl e o assassinato da nossa gente pelos morellis. Mas eu também posso antever o que pode acontece se nós não tivermos todos os recursos disponíveis para nos proteger. E isso me assusta ainda mais.

Ela acenou para Pierre, que trouxe uma caixa comprida da lateral do salão. Ele a pousou sobre a mesa e a abriu. O aço e a madeira dentro dela reluziram.

— Há uma chispeira para cada um de vocês — disse Varina. — Peguem uma, um frasco de areia negra e um pacote de cartuchos de papel, e vou mostrar-lhes como usá-los...

Jan ca’Ostheim

— A jovem que trabalha na criadagem pessoal, chamada Rhianna — perguntou Jan para Rance. — O que você sabe sobre ela?

O assistente ergueu uma sobrancelha. Ele tinha acabado de trazer a agenda diária de reuniões e revisava os planos para o dia — que estava, como de costume, cheio demais. Era um daqueles dias em que Jan sentia o peso de suas responsabilidades; um daqueles dias em que ele se sentia velho antes do tempo; um daqueles dias em que o hïrzg se sentia inquieto e aprisionado.

Mas a jovem... Jan pensara nela mais de uma vez desde seu encontro, e ele se viu procurando por ela sempre que ele entrava em um aposento. Frequentemente, havia um leve sorriso no rosto da criada quando ela o via, embora ela nunca tenha quebrado o decoro, nunca tenha tentado se aproximar ou falar com Jan, mas se mantinha concentrada no serviço e ia embora quando terminava.

Jan gostava disso. Rhianna conhecia seu lugar. Era um bom sinal.

— Ela é de Sesemora — contou Rance —, embora tenha pouco daquele sotaque horroroso, felizmente. Tinha excelentes referências das famílias ca’Ceila e ca’Nemora. Ela acata bem às ordens e trabalha pesado. Seria bom que eu tivesse mais uma dúzia de criados que trabalhem tão bem quanto ela. E é bonita de se ver, como tenho certeza de que o hïrzg notou.

— Notei, de fato.

Esta era uma dança que ele e Rance tinham executado mais de uma vez ao longo dos anos, e ambos conheciam os passos.

— O hïrzg gostaria que ela fosse designada para seus aposentos pessoais?

— Seria bom. Ela parece uma excelente opção.

— Então eu farei isso — falou Rance. — Ouvi rumores de que a hïrzgin achou que Felicia foi um tanto quanto grosseira com ela, na semana passada; Rhianna pode ser uma boa substituta. Eu mandarei fazer a troca hoje.

Jan encolheu os ombros.

— O que você achar melhor, Rance. A equipe é sua. Deixarei que você o decida. Agora, tem algo que possamos fazer a respeito da audiência com o a’gyula? Talvez a hïrzgin pudesse recebê-lo. Ele é um grosseiro tedioso...


— Boa noite, crianças...

Jan beijou um filho de cada vez: Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria. Ele acenou com a cabeça para a babá, que começou a conduzir as crianças para fora do quarto. Elissa ficou para trás, teimando e de cara fechada.

— Eu devia poder ir ao baile hoje à noite — disse ela. — Eu não tenho nem um pouco de sono, vatarh.

— Ano que vem — falou Jan.

— O ano que vem é daqui a uma eternidade — respondeu a menina, batendo enfaticamente com o pé no chão.

Jan ouviu Brie soltar uma risadinha. Ele estava sentado na cadeira atrás da mesa do quarto da esposa. Brie estava atrás dele, com a mão sobre seu ombro. Ela vestia apenas uma camisola, seu cabelo estava solto, a joias encontravam-se sobre a penteadeira. Jan sentiu o cheiro do perfume que a hïrzgin tinha acabado de passar quando ela se inclinou próximo ao ouvido dele.

— Ela é sua filha — sussurrou a esposa. — Eu ouço você na voz dela.

Jan sorriu e gesticulou para Elissa vir até ele. A menina obedeceu, com um beicinho dramático no rosto.

— Se eu disser que você pode ir ao baile, eu vou ter que ouvir Kriege dizer que ele também devia poder ir ao baile.

— Kriege só tem 9 anos — respondeu Elissa. — Ele é praticamente um bebê. Eu tenho 11 anos, quase 12.

Jan sentiu os dedos de Brie apertarem seu ombro. Ele sorriu.

— Eu sei. Vamos combinar assim: se você for com a babá agora, eu pedirei a ela que tire você da cama e a arrume em uma virada da ampulheta, e aí você pode descer para o baile um pouquinho. Mas não pode deixar que seus irmãos saibam.

Elissa sorriu e bateu palmas, depois deixou as mãos caírem ao lado do corpo, com uma expressão comicamente solene no rosto.

— Sim, vatarh — ela respondeu em voz alta, para os irmãos escutarem, ainda na porta com a babá. — Eu vou para a cama, então.

Impulsivamente, a menina ficou na ponta dos pés e beijou o rosto do vatarh, depois o da matarh.

— Boa noite, vatarh, matarh.

Ela tamborilou os pezinhos no corredor junto com seus irmãos. Jan viu as crianças saírem, sem conseguir conter o sorriso no rosto.

— Se nós fôssemos artistas, não teríamos criado algo mais lindo que nossos filhos — disse Brie.

— Eu tenho que concordar.

Jan virou-se na cadeira para encará-la, pousando suas mãos em seus quadris. Ele podia ver o que os anos e o nascimento de seus filhos tinham feito ao corpo de Brie: ela não tinha mais a beleza esguia e suave de quando eles se casaram. Seu corpo tinha ficado largo e roliço ao longo dos anos, as marcas de expressão tinham invadido seu rosto, e a pele sob seu queixo se tornara flácida. Sua barriga ficara saliente e seus peitos maiores e mais pesados.

Jan também tinha mudado, ele sabia, mas mudanças eram mais fáceis de ver nos outros. O hïrzg acariciou as laterais roliças do corpo de Brie, e ela sorriu para ele, aproximando seu corpo do corpo dele.

— Ainda temos tempo — falou a hïrzgin. — Posso mandar chamar aquela garota nova... qual é o nome dela? Rhianna? Para me ajudar a me vestir rapidamente. Se você quiser...

Brie inclinou-se para baixo. Seus lábios ainda eram macios, ainda cediam, e, um instante depois, Jan perdeu-se no beijo. As mãos de Brie envolveram a cabeça do marido, levantando-o sem romper o abraço, e depois ela o apertou com força. Como uma só pessoa, como em uma dança lenta e cheia de paixão, os dois foram para a cama. Brie caiu sobre a fresca suavidade do tecido enquanto Jan se deixava puxar por ela para cobrir seu corpo. Ele beijou Brie desta vez, mais intensa e insistentemente, e as mãos dela desceram pelo corpo do esposo enquanto ele levantava a barra de sua camisola.

Mais tarde, os dois ficaram deitados sobre os lençóis emaranhados. Ela sorriu para Jan, acariciou suas bochechas e afastou o cabelo de seu rosto, enquanto ele passava o dedo indicador pelo contorno dos seios de Brie, circulando suas auréolas e observando a reação da pele sensível.

— Isso foi bom — disse Jan.

— Sim. — Ela o beijou novamente; com um ligeiro toque nos lábios desta vez. — Talvez tenhamos criado algo novo outra vez.

— Talvez.

Jan sorriu, embora não tivesse sentido nada com a ideia. Ele tinha muitos filhos — aqueles que podia reconhecer e aqueles que nem conhecia, gerados em uma amante ocasional que tinha que ser mandada embora com uma bolsa de solas de ouro como lembrança. Como Mavel co’Kella.

— Sergei deve chegar a Nessântico entre hoje e amanhã — disse Brie.

Ele riu.

— De onde veio essa ideia?

— Não sei. Só estava pensando. As crianças... Seria bom se elas conhecessem sua mamatarh. Que conhecessem de verdade.

Jan resmungou sem dizer uma palavra. A mão sobre o abdômen de Brie parou de se mover.

— Você acha que ela vai concordar com o seu pedido? Acha que Sergei vai conseguir convencê-la a nomeá-lo a’Kralji?

— Eu não sei — ele respondeu. — Além disso, Rance diria que é isso o que eu quero, afinal, isso não é bom para Brezno.

Essa era a verdade. Jan não sabia. Parte dele concordava com Rance, e queria que sua matarh recusasse, para que tivesse uma desculpa para atacá-la. E parte... Sim, uma parte de Jan torcia para que ela concordasse, torcia para que pudessem se reconciliar.

Jan só não sabia que parte era mais forte.

— A escolha é da matarh — ele disse. — Já não está mais em minhas mãos. Eu fiz a oferta; ela pode aceitar ou não.

— Espero que ela aceite. Está na hora. Uma família não pode ficar assim tão separada.

Brie beijou o marido mais uma vez e rolou para o lado. Olhou para a grande ampulheta sobre a escrivaninha.

— É melhor você voltar para o seu quarto e se vestir — ela disse. — Não temos muito tempo. Vou mandar o criado do corredor trazer Rhianna e enviar alguém para ajudá-lo...

Ela vestiu a camisola e o robe e caminhou em direção à porta do corredor. Jan observou a esposa, depois vestiu as próprias roupas enquanto ela abria a porta e chamava suavemente o criado do corredor. Ele se levantou; Brie voltou e o abraçou.

Houve uma batida suave na porta.

— Vá — falou Brie.

Jan se dirigiu para a porta dos fundos, que levava até seu quarto, mas parou ali, com a mão na maçaneta. Rhianna abriu a porta e entrou no quarto. Fez uma mesura para Brie.

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou a criada.

Rhianna notou Jan na porta; ele pensou tê-la visto esboçar um sorriso para ele, mas ela voltou sua atenção rapidamente para Brie e sem olhar para ele novamente.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho... — disse Rhianna.

Jan abriu a porta e saiu do quarto. Ele sorriu, embora não soubesse o porquê.

Brie ca’Ostheim

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou Rhianna.

Brie notou o olhar de Rhianna deslizar rapidamente para Jan e se desviar com a mesma velocidade. Rhianna não voltou a olhar para Jan, embora a hïrzgin tenha sentido Jan permanecer no quarto atrás dela.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho...

Ela virou-se para deixar que Rhianna pegasse os laços do espartilho em suas costas. A atenção de Jan estava presa em algum ponto acima do ombro de Brie, mas ele pareceu se libertar para encontrar os olhos de Brie. Jan sorriu para ela com um pouco de culpa, pensou Brie, em seguida, abriu a porta do quarto de vestir. Ele meneou a cabeça para Brie assim que que Rhianna puxou os laços, fechando a porta atrás de si. Brie olhou para o espelho na penteadeira, observando Rhianna através da superfície prateada. Ela não havia erguido o olhar para ver Jan sair; isso agradou Brie. Talvez eu esteja enganada... A garota — não, a jovem — era bonita o suficiente, com braços estranhamente musculados. Seus cabelos eram tão negros quanto as asas de um corvo, e seus olhos eram de um tom azul-claro estranhamente contrastantes com o cabelo e o rosto de pele morena-escura...

Quase todos os casos de Jan tinham sido com mulheres de cabelos negros, Brie percebeu. Ela se perguntava o que o marido buscava encontrar nelas.

Rhianna era provavelmente cinco ou seis anos mais velha que Elissa. Não mais.

— Pronto — disse a criada, atrás dela, com um leve sotaque que Brie não conseguia identificar. — Está confortável, hïrzgin? Eu posso soltar um pouco se os laços estiverem apertados demais...

— Está ótimo. Traga a minha tashta... ali, aquela na cama...

Brie observou Rhianna pegar a roupa e enrolar a barra cuidadosamente nas mãos.

— Então Rance colocou você no nosso corpo pessoal de funcionários?

— Sim, hïrzgin. Devo admitir que fiquei surpresa com isso, logo depois de ser contratada, mas ele disse que me saí bem no serviço e que tinha se aberto uma vaga inesperada.

— Sim, Rance está sempre de olho em vagas que beneficiem o hïrzg — respondeu Brie. — É uma de suas melhores qualidades, com certeza.

Rhianna pareceu intrigada, como se tivesse percebido algo nas entrelinhas, mas não soubesse exatamente como responder. Ela levou a tashta até a hïrzgin e a colocou sobre a cabeça dela, que erguia os braços.

— Aqui, deixe-me encontrar as mangas para a senhora, hïrzgin. Terei cuidado com seu cabelo...

Rhianna deslizou a tashta devagar, e Brie se endireitou para que as pregas caíssem sobre o resto de seu corpo. Rhianna ficou de joelhos para amarrar a faixa em volta da cintura da hïrzgin.

— Esse tecido é lindo, hïrzgin. Tem um desenho e uma cor tão bonitos, e lhe cai tão bem...

— Rhianna, você não precisa me elogiar.

O rosto da jovem ficou vermelho. Brie não viu malícia em sua expressão, apenas um genuíno embaraço.

— Hïrzgin, eu não quis... Disse apenas o que pensei... Desculpe-me...

Brie levou um dedo aos próprios lábios e sorriu delicadamente.

— Shhh. Não precisa se desculpar, minha cara. Eu gostaria... Bem, eu gostaria que, já que passaremos muito tempo juntas, nós pudéssemos confiar uma na outra.

Na verdade, Rhianna ficou mais vermelha ao ouvir isso. Ela hesitou, parecendo procurar uma resposta.

— Ah, a senhora pode confiar em mim, hïrzgin.

— Então — falou Brie, ainda sorrindo —, se, digamos, o hïrzg confidenciasse algo para você que eu deva saber como esposa dele, você me diria, não é?

O rubor intensificou ainda mais, o que revelara tudo o que Brie queria saber. Jan já tinha se aproximado dela...

— Ora, sim, hïrzgin — gaguejou Rhianna. — Eu diria. É claro.

— Ótimo.

Brie tocou o rosto da jovem. Tão macio, tão intocado... mas então seus dedos encontraram uma cicatriz ondulada ao longo do maxilar de Rhianna. Uma facada? Ela ficou intrigada com isso, mas ergueu a criada com a mão. Sentou-se novamente na cadeira diante do espelho, abriu a caixa de joias e tirou um colar.

— Aqui — disse Brie ao entregar a joia para Rhianna. — Acho que isto combinará com a tashta. Coloque em mim, por favor...

Enquanto a criada colocava o colar em volta de seu pescoço e prendia o fecho, Brie observava o rosto de Rhianna, conjecturando.

Niente

Da primeira vez que os tehuantinos tomaram Karnor, a principal cidade da ilha de Karnmor, eles entraram no porto com os navios escondidos por uma bruma mágica. Desta vez havia muito mais embarcações na frota, e Niente mandou que os nahualli invocassem uma tempestade mágica assim que vissem o vulcão da ilha surgir no horizonte. A tempestade irrompeu bem à frente da vanguarda dos navios de guerra, a escuridão de chuva torrencial e relâmpagos violentos impediu que eles fossem avistados rapidamente pela marinha dos Domínios, uma tempestade que tinha a intenção de instigar o inimigo a ancorar suas embarcações na segurança do porto.

Porto este que, quando os nahualli dissipassem a tempestade, já não seria mais tão seguro, porque o trio dos maiores navios de guerra tehuantinos se esconderia na entrada do porto, para impedir que qualquer embarcação dos Domínios escapasse para alertar o continente. Ao mesmo tempo, a maior parte da frota se separou e seguiu para o norte, depois para leste, contornando a ilha, todos menos um dos navios — o Yaoyotl em que Niente e o tecuhtli Citlali navegavam — que ficaria bem longe da costa.

O Yaoyotl ancorou em alto mar, no lado norte da ilha, ao anoitecer, a quilômetros de distância de Karnor, enquanto o resto da frota seguiu adiante. Niente, com Atl e vários nahualli, assim como um grande contingente de guerreiros, desembarcaram do navio em botes a remo carregados com bolsas de couro. Eles escalaram os flancos do monte Karnmor, o vulcão em cujas encostas a cidade tinha sido construída.

Niente tinha passado dias espiando na tigela premonitória. Tinha visto esta cena diversas vezes, e pareceu-lhe estranho vivenciá-la na realidade agora. Enquanto os tehuantinos subiam ao cair da noite, do outro lado da montanha eles podiam vislumbrar clarões de luz: os nahualli a bordo dos navios em guarda no porto de Karnor arremessavam bolas de fogo de areia negra na direção da frota inimiga, como se estivessem preparando um ataque frontal à cidade. Tudo isso era uma simulação e uma distração — para manter a atenção dos orientais no porto, e não na montanha atrás da cidade. Se o que a tigela premonitória tinha mostrado para Niente estivesse correto, a cidade seria destruída, mas não seria saqueada.

A própria terra destruiria a cidade.

Niente consolou-se com a ideia de que a descida seria bem mais fácil do que a subida. Ele ficou exausto rapidamente com a subida, embora não carregasse nada além de seu cajado mágico, enquanto os demais carregavam as bolsas de couro. Suas pernas e quadris doíam, e suas sandálias estavam rasgadas e gastas. As rochas deixaram longos arranhões em suas pernas e braços devido aos tropeços que Niente dera ocasionalmente, e o sangue agora formava crostas escuras. O mero esforço de colocar um pé diante do outro era exasperante, ele desejava que Axat jamais tivesse lhe mostrado esse caminho. Seu filho caminhava ao seu lado, ajudando-o ocasionalmente, mas ele tentava não depender de Atl — não era bom para o nahual demonstrar fraqueza. Se os outros nahualli sentissem que Niente estava vulnerável, um deles poderia desafiá-lo pelo título, e ele não podia arriscar isso agora ou tudo em que apostara estava perdido.

Niente fez um esforço para continuar caminhando, para conter os gemidos que ameaçavam escapar de seus lábios.

— Estamos quase lá — disse Niente finalmente para Atl, falando de maneira entrecortada, a cada tomada de fôlego. — Logo ali, em torno da saliência da montanha.

Na direção em que Niente apontou, um coluna de fumaça maculava o céu iluminado pela lua. Ele sabia o que veria ali, quando eles dessem a volta no cume do lado sul da montanha: uma fumarola sibilante e vaporosa expelindo o hálito amarelo e sulfúrico da terra. Havia várias aberturas como essa na área, bem acima e com vista panorâmica para a cidade — e esse era o destino dos tehuantinos.

— Ótimo — disse Atl.

Mesmo ele parecia estar sem fôlego. Atl olhou para a encosta abaixo, para a fila de nahualli e guerreiros tatuados que os seguiam. Ao longe, reluzindo na água que refletia o luar, o Yaoyotl esperava seu retorno, com as velas recolhidas no momento.

— O tecuhtli não parecia estar inteiramente satisfeito com o senhor — comentou Atl.

— O tecuhtli Citlali preferia que nós saqueássemos a cidade — respondeu Niente. — Como todo guerreiro, ele prefere o choque do aço, o cheiro do sangue e os gritos daqueles que caem diante de si. O que estamos fazendo parece injusto para ele.

Ele fez uma pausa para descansar por um momento, permitindo-se apoiar em Atl.

— Eu prometi a ele que Axat tinha me mostrado que ele terá muitas oportunidades de demonstrar suas habilidades como guerreiro.

Eles podiam ver não só os clarões de luz do bombardeio de areia negra sobre os navios dos Domínios; como também podiam ouvir, com um atraso estranho e desconexo, o trovejar das explosões. Niente subiu em uma saliência rochosa e pôde ver as luzes de Karnor abaixo deles se espalhando por várias plataformas nas encostas mais baixas até a água.

Não havia tropas dos Domínios protegendo a cidade, como Axat prometera em Suas visões. Ao longe, as águas reluzentes do porto foram acesas pelo incêndio nas embarcações em chamas. Enquanto Niente assistia, outra bola de fogo desenhava um arco da entrada do porto até o agrupamento de navios de guerra dos Domínios. O som chegou aos tehuantinos dois segundos depois, um ruído surdo que ele quase pôde sentir em seu peito.

— Rápido! — disse Niente para os nahualli, que davam a volta pela saliência.

Eles pararam sobre um ligeiro declive onde o monte Karnmor parecia inchar, um cenário dominado por buracos de vapor que assobiavam e borbulhavam. Niente, com a ajuda de Atl, orientou os nahualli a posicionarem os cajados mágicos — feitos especialmente para esse propósito e preparados com possantes feitiços para moldar a terra — em um grande círculo em volta das crateras. As bolsas cheias de areia negra, levadas pelos guerreiros, foram postas em uma única pilha grande, com a altura de um homem e o comprimento de dois homens. Atl, ao lado de Niente, balançou a cabeça.

— Tanta areia negra — disse o rapaz. — Nós poderíamos destruir a Teocalli Axat com isso.

— Com isso — disse Niente —, nós destruiremos a cidade deles inteira.

— Espero que o senhor esteja certo, taat. Se não der certo...

— Não falhará. Axat prometeu. Eu vi.

— Eu sei, mas eu tenho olhado na água, como o senhor me mostrou, e não vi nada disso.

Niente deu um tapinha no ombro do filho.

— As visões de Axat vêm devagar e em Seu próprio tempo. Tenha paciência. Ela falará com você em breve. Você saberá quando acontecer; Sua voz é ríspida e dolorosa de se ouvir.

E rezo à Ela para que, quando chegar o momento, você não veja o que eu vi. Não veja o que estou fazendo. Isso ele não disse.

Atl assentiu. Niente, grunhindo pelo esforço, cravou seu cajado mágico na parede de areia negra, com o punho voltado cuidadosamente para o leste. O nahual observou o cenário e assentiu — sim, era isso o que ele tinha visto.

— Terminamos aqui — ele disse para Atl e os demais, com a voz trêmula pelo cansaço. — É hora de voltarmos para os navios.


O tecuhtli Citlali balançou a cabeça calva, tatuada com uma selvagem águia rubro-negra com suas garras perpassando seu crânio e rosto. Seus olhos envoltos pelas garras do pássaro encaravam Niente.

— Nada aconteceu — ele disparou. — Podíamos ter tomado a cidade com nossos navios e guerreiros a esta altura. Podíamos ter dominando a ilha inteira. Se você desperdiçou a areia negra...

— Tenha paciência, tecuhtli — respondeu Niente. — Ainda não chegou a aurora. E o que acontecerá vai aterrorizar os orientais mais do que qualquer ataque.

O Yaoyotl e toda a frota, sob a ordem relutante de Citlali, tinham se afastado de Karnmor durante a noite. A ilha era uma escuridão vazia em contraste com as estrelas remanescentes ao longo do horizonte ocidental que se iluminava, enquanto a frota tehuantina — sob brisas estáveis que vinham do leste — navegava em direção ao Strettosei ao norte, como Niente pedira, o mais longe possível da ilha. A visão da tigela premonitória tinha sido clara, havia a possibilidade de este futuro se tornar realidade desde que Niente seguisse o caminho que Axat lhe mostrara. Os guerreiros supremos se reuniram em volta do tecuhtli Citlali, carrancudos e resmungando. Os nahualli do alto escalão, Atl entre eles, também o observavam, e seus olhares eram bem mais avaliadores, sempre à procura de algum sinal de fraqueza fatal da parte do nahual.

Ele não mostraria tal sinal; Axat não permitiria. Axat tinha lhe mostrado a fraqueza da montanha. Tinha sussurrado para ele que a montanha estava prestes a ejetar sua terrível vida outra vez, assim como as montanhas fumegantes de sua própria terra. Com a ajuda Dela, Niente podia acelerar o despertar. Ele olhou para o leste, onde faixas douradas no céu anunciavam o iminente nascer do sol sobre as colinas de névoas azuladas do continente. O céu oriental brilhava agora. Niente protegeu os olhos quando a borda do sol surgiu no horizonte. Feixes dourados flechavam as nuvens, e em direção a Karnmor e ao oeste.

O nahual voltou-se para a ilha. Esperou. Axat, não me abandone...

A ponta do monte Karnmor foi tocada pela luz do sol agora, os raios de sol deslizavam em direção aos lençóis de vapor branco que o ocultavam. Niente podia visualizar a luz tocando os punhos dos cajados mágicos dispostos lá, ainda que esse lado do vulcão estivesse escondido dos tehuantinos agora. Os cajados mágicos tinham sido encantados para soltar os feitiços em seu interior quando fossem tocados pela luz do sol. A saliência de terra se abriria, uma nova cratera apareceria, e a areia negra cairia em cascata em seu interior, e o conteúdo empoeirado seria derramado das bolsas no momento em que o cajado mágico que Niente cravou visse a luz e cuspisse fogo...

Os lençóis de vapor em torno do monte Karnmor foram rasgados em pedaços e substituídos por um jorro de fumaça escura. Não houve som, não por longos segundos, nem mesmo quando a fumaça negra foi consumida por uma explosão bem maior vermelha, laranja e amarela disparada da lateral da montanha. Uma fonte monstruosa de fumaça cinza começou a subir em direção ao céu, e as brisas do leste desmanchavam as bordas durante sua ascensão.

Os tehuantinos então ouviram o som: o estampido agudo da areia negra seguido do lamento divino da montanha em agonia. O som os atingiu como um soco: e o tecuhtli Citlali juntou-se a ele com um urro, os guerreiros e nahualli vibraram, e as comemorações ecoaram nos outros navios. Niente podia ver o fogo espesso descer pelo monte Karnmor em direção à cidade escondida. Ele imaginou a lava escorrendo sobre os habitantes aterrorizados e incendiando tudo em seu caminho. A cidade seria tomada pelo pânico, e após o fogo, viria uma espessa chuva de cinzas...

O navio estremeceu, como se o próprio mar os tivesse levantado e deixado cair novamente. Ondas de cristas brancas avançavam para o norte. A frota balançou nas longas ondas, os mastros oscilavam para frente e para trás. A grande nuvem tinha subido tanto que os tehuantinos tiveram que inclinar suas cabeças para trás a fim de vê-la. Ela bloqueou o céu da manhã que clareava e estendia seus braços escuros e agitados na direção leste.

Este seria um dia escuro, cinzas quentes cairiam do céu em vez de chuva, mas os tehuantinos estavam protegidos do pior.

— Nahual — berrou Citlali contra o rugido contínuo da erupção vulcânica. — Eu não devia ter duvidado de você.

A boca do tecuhtli carregava um largo sorriso aberto.

— Você é realmente o maior nahual de todos, e com você, não há dúvidas quanto a nossa vitória.

Todos os guerreiros e nahualli concordaram e vibraram aos berros. A expressão de Atl era de orgulho.

Niente deveria sentir um grande contentamento. Em vez disso, ele teve que se esforçar para retribuir o sorriso.


CONTINUA

PROGRESSÕES

Niente

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Varina ca’Pallo

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Varina ca’Pallo

Jan ca’Ostheim

Brie ca’Ostheim

Niente


Niente

O mar estava calmo, e os nahualli que Niente designou para evocar os ventos trabalhavam intensamente com seus cajados mágicos. A proa dos navios esculpia longas brumas de água branca. Niente contemplava do castelo de popa do Yaoyotl, que começara sua vida como um navio de guerra dos Domínios até ser capturado há 15 anos. O Yaoyotl já tinha feito essa travessia uma vez, quando o tecuhtli Zolin realizara sua tola e fatal invasão nos Domínios. Agora a embarcação seguia para o leste outra vez, desta vez acompanhada por trezentos navios da marinha tehuantina, três vezes a quantidade que Zolin usara, com um exército a bordo do tamanho daquele que esmagara as forças dos Domínios em Munereo e nas outras cidades da terra de seus primos, no litoral do mar Oriental. Niente podia ver as velas sobre as amuradas do Yaoyotl ondulando como uma revoada de grandes pássaros brancos marinhos cobrindo o oceano.

A vista era formidável. Quando os orientais vissem a frota se aproximando, eles estremeceriam de medo. Niente sabia disso; ele tinha visto nas visões de Axat, na tigela premonitória. E viu novamente, neste instante, ao baixar o olhar para a tigela de latão diante de si. Niente tinha polvilhado o recipiente com pó mágico e usado o poder do X’in Ka para abrir o caminho da visão. Agora ele espiava as brumas esverdeadas, com o filho ao seu lado e sob a supervisão cuidadosa de seu assistente nahuali. Em meio às brumas, as cenas passavam rapidamente por Niente: ele viu a grande ilha de Karnmor despejar uma imensa coluna de fumaça e cinzas no céu enquanto o chão tremia e o próprio mar se contorcia em agonia. Viu a grande frota tehuantina subir pela boca do rio A’Sele, viu os exércitos se espalharem pela praia, viu as muralhas de Nessântico e o exército do inimigo reunido ali.

Mas ele franziu a testa ligeiramente ao fixar o olhar; antes, a cenas tinham a nitidez da realidade. Agora, estavam borradas e ligeiramente obscuras, como se as estivesse vendo mais com os próprios olhos do que com a ajuda de Axat. Isso o preocupou.

Onde está o Longo Caminho? Por que a Senhora o esconde de mim, Axat?

Não, lá estava ele... Mais uma vez, Niente viu o tecuhtli e o nahual mortos, e atrás deles, o Longo Caminho. Mas este, também, não estava tão nítido quanto antes. Várias visões interferentes deslizavam entre ele e o caminho, como se Axat estivesse dizendo que o curso dos acontecimentos estava contorcendo e revirando os fios do futuro. Niente espiou com mais atenção, tentou ver se ainda conseguia encontrar o rumo do Longo Caminho. Ele voltou atrás no tempo, viu a miríade de possibilidades se desdobrando...

O nahual sentiu seu filho, Atl, se aproximar de seu ombro, olhando fixamente para a tigela premonitória com a respiração presa, como se tivesse medo de que o olhar penetrasse as brumas e destruísse a visão. Niente sabia o que viria a seguir; e sabia também que não podia deixar que Atl visse. Ele exalou bruscamente, balançando as brumas verdes, e agarrou a tigela. Com um movimento brusco, Niente jogou a água no mar sobre a amurada, sibilando friamente. No mesmo instante, Niente sentiu o cansaço do feitiço afetá-lo e cambaleou ali mesmo. Atl passou o braço por sua cintura e o amparou.

O nahual deu um longo suspiro e pousou a tigela premonitória de volta na mesa. Ele se endireitou, e Atl se afastou dele.

— Limpe isto — disse Niente para o assistente mais próximo.

O homem se apressou e pegou a tigela de latão, inclinando a cabeça para Niente e saindo depressa.

— Vou descansar agora — informou Niente para os demais — e falarei com o tecuhtli Citlali mais tarde. Não havia nada de novo na visão.

Os nahualli fizeram uma mesura. Niente podia sentir seus olhares sobre si: será que ele estava mais fraco do que antes? Será que suas rugas tinham ficado mais fundas em seu rosto, suas feições mais distorcidas e deformadas, e seus olhos mais brancos de cataratas do que antes? Será que este era o momento de desafiá-lo, de se tornar nahual? Era nisso em que os nahualli pensavam, todos eles.

Seu filho talvez pensasse ainda mais que qualquer um dos outros.

Niente não podia permitir que isso acontecesse. Não ainda. Não até que ele cumprisse a visão que vislumbrara na tigela. O nahual fez um esforço para ficar tão ereto quanto sua coluna curvada permitia para sorrir seu sorriso torto e fingir que seu corpo não incomodava mais que o normal para um homem de sua idade.

Os nahualli, com protestos educados, começaram a se dirigir a suas outras obrigações.

— O senhor interrompeu a visão antes que estivesse completa — falou Atl baixinho.

— Não havia mais nada para ver.

— E como o senhor sabe disso, taat? O senhor não me disse que Axat às vezes altera a visão, que os atos dos que estão presentes na visão podem mudar o futuro, que a pessoa deve estar sempre atenta às mudanças para se manter no melhor caminho?

— Não havia mais nada — repetiu Niente.

Ele notou a dúvida no rosto do filho, e a desconfiança também. Niente forçou um tom agressivo em sua voz, como se tivessem voltado 20 anos no tempo e Atl tivesse quebrado uma tigela na casa.

— Ou você está pronto para me desafiar como nahual? Se estiver, então pegue seu cajado mágico.

Niente estendeu a mão para pegar seu próprio cajado, apoiado à mesa do castelo de popa. A ponta nodosa estava gasta pelos anos de uso, as figuras entalhadas dançavam sob seus dedos. Ele apoiou-se no cajado mágico como se fosse uma bengala, permitindo que suportasse seu peso.

Atl balançou a cabeça, obviamente contrariado em abandonar a discussão.

— Taat, eu também tenho o dom da premonição. O senhor sabe disso. Pode enganar os outros nahualli, mas não a mim. O senhor viu alguma coisa que não quer que eu veja. O que é? O senhor viu sua morte, como fez com a do tecuhtli Zolin e Talis? Foi isso?

Niente se perguntou se o que ouviu na voz de Atl era medo ou expectativa.

— Não — ele respondeu, esperando que o jovem não notasse a mentira. — Você está enganado, Atl. Não aprendeu tanto assim sobre premonição para saber.

— Porque o senhor não permite. O senhor sempre diz “Olhe para mim”. “O preço a pagar caro demais”. Bem, taat, Axat me deu o dom, e seria um insulto a Ela não usá-lo. Ou o senhor tem medo que eu queira ser o nahual no seu lugar?

O vento da maresia agitou o longo cabelo escuro de Atl; a vela sobre eles retumbou e estalou. O capitão do Yaoyotl berrou ordens, e os marinheiros correram para seus afazeres.

— Você será nahual — disse Niente para o filho. — Um dia. Tenho certeza disso.

Eu vi... Ele pensou, mas não ousou dizê-lo por medo de que isso alterasse o futuro.

— Axat lhe deu o dom, sim. E eu... eu tenho sido um mau taat e um mau nahual por não lhe ensinar tudo que sei. Talvez, talvez eu sinta um pouco de inveja do seu dom.

Niente viu a expressão no rosto de Atl: outra mentira, pois não havia inveja dentro dele, apenas um pavor lento, mas ele sabia que as palavras convenceriam o filho.

— Eu gostaria de começar a compensar você por isso, Atl. Agora: esta noite, depois de eu conversar com o tecuhtli Citlali. Venha à minha cabine quando me trouxerem o jantar, e eu começarei a mostrar a você. Pode ser?

Em resposta, Atl deu-lhe um abraço vigoroso. Niente sentiu seu filho beijar o topo de sua cabeça calva. Ele foi solto bruscamente e viu o filho sorrindo.

— Eu estarei lá — prometeu Atl.

O rapaz começou a se virar e parou. Ele olhou para o pai, sobre os ombros.

— Obrigado.

Niente meneou a cabeça e respondeu com seu sorriso torto, mas não havia nenhum ardor no gesto, nenhuma alegria.

Ele se perguntou por quanto tempo conseguiria manter a visão de Axat em segredo. E se — caso Atl viesse a se dar conta do que a visão significava — ele conseguiria alcançar essa visão de alguma forma.

Sergei ca’Rudka

Os campos ao longo da Avi a’Firenzcia estavam coloridos com as tendas do exército da Coalizão. “Em manobras”, dissera o assistente do corpo de funcionários do palácio que escoltou Sergei da fronteira até Brezno, mas ambos sabiam o que realmente era aquilo: um ajuntamento de tropas e uma ameaça direta. Um comunicado vindo de Il Trebbio foi entregue a Sergei antes que ele cruzasse a fronteira, informando-o a respeito da incursão de um batalhão pelo território de Il Trebbio sob o comando do starkkapitän ca’Damont. O batalhão havia recuado, mas obviamente vinha sondando para ver que resposta provocaria.

E agora essa concentração de tropas perto da fronteira de Nessântico...

Jan, o que você está aprontando? Quer mesmo cutucar os Domínios com essa vara curta?

Sergei sabia, enquanto sua bengala batia nas lajotas de mármore do Palácio de Brezno a caminho da reunião com o hïrzg Jan, como isso acabaria. A alça de uma pequena bolsa diplomática estava pendurada em seu ombro, e ele tinha adquirido habilidade suficiente ao longo dos anos para abrir a carta selada em seu interior e ler o que Allesandra escrevera ali. Rance, o assistente do hïrzg, fez uma mesura quando Sergei se aproximou da sala de recepção exterior dos aposentos de Jan. Sua expressão era agradável, mas havia desdém sob ela: Sergei sabia que Rance era um dos que aconselhavam o hïrzg a manter a Coalizão intacta e recusar qualquer acordo com os Domínios.

— O hïrzg acabou de entrar — disse o homem —, mas pede a sua compreensão, pois está com a hïrzgin e seus filhos. Uma marca da ampulheta...

— Eu adoraria vê-los — respondeu Sergei — para poder levar um relatório sobre a aparência das crianças à vavatarh delas.

Rance deu de ombros e abriu um sorriso fingido.

— Só um momento, então, e informarei ao hïrzg — disse Rance, que se voltou para um dos criados. — Por obséquio, acompanhe o embaixador até a sala externa e sirva-lhe alguns petiscos.

Rance fez outra mesura e desapareceu no corredor. Sergei acompanhou o criado até uma das salas de espera e aceitou uma taça de vinho e um prato de rétes doces de queijo. Não muito tempo depois, Rance voltou e acompanhou o embaixador por um corredor curto até outra porta. Do outro lado, Sergei ouviu várias vozes e risadas de crianças. O assistente deu duas batidas secas e a porta se abriu.

Os dois filhos mais velhos, Elissa e Kriege, brincavam com um tabuleiro de chevaritt sobre a mesa, observados pelo hïrzg; o filho homem mais novo, Caelor, assistia por trás dos ombros do irmão. A caçula, Eria, estava sentada no colo de sua matarh, perto da janela, e brincava com uma pilha de tricô, enquanto uma babá dobrava fraldas e roupas em um banco perto de uma das portas de saída.

— O embaixador ca’Rudka — anunciou Rance enquanto Sergei entrava na sala.

O som da bengala foi abafado pelo tapete espesso. Elissa virou-se para olhar.

— Vatarh, é o Velho Nariz de Prata!

— Elissa! — Jan lançou um olhar de desculpas para Sergei. — Isso é terrivelmente grosseiro.

— Bem, é assim que o starkkapitän ca’Damont o chama — respondeu ela.

Elissa fechou a cara e cruzou os braços. Uma das peças do jogo, um téni-guerreiro, ainda estava em sua mão.

— Mesmo assim, você tem que pedir desculpas ao embaixador — falou Jan, mas Sergei tossiu suavemente e interrompeu o hïrzg.

— Não é necessário, hïrzg. Já fui chamado de coisas piores, e ao menos ambas as partes do apelido são verdadeiras. A propósito, há presentes para as crianças, enviados por sua mamatarh nos aposentos da embaixada; eu os mandarei para cá hoje à tarde.

— Presentes!

O grito tinha vindo das três crianças mais velhas ao mesmo tempo, e até mesmo Eria tinha tirado os olhos do emaranhado do tricô da hïrzgin Brie.

Sergei riu — na verdade, os filhos de Jan e Brie o divertiam. Eles eram espertos, encantadores e saudáveis. Era uma pena que Allesandra não os conhecesse tão bem quanto ele.

— Se vocês falarem com Rance, aposto que ele mandaria um mensageiro pegar os presentes agora, se seus vatarh e matarh aprovarem.

— Vatarh? Matarh? — berrou Elissa imediatamente. — Podemos?

Brie sorriu complacentemente e olhou para Jan.

— Podem ir — ela disse para os filhos, entregando Eria para a babá. — E esperem pelos presentes na sala de brinquedos, por favor. Não fiquem incomodando o Rance.

As crianças saíram com a babá e chamaram Rance.

— Elas são crianças adoráveis — comentou Sergei quando saíram. — Vocês dois tiveram muita sorte.

— Isto é o que dizem as pessoas que não são pais — falou Brie rindo.

— Estou certo de que todos os seus filhos se comportam perfeitamente, o tempo todo.

Tanto Brie quanto Jan riram.

— Vamos deixá-los com você enquanto estiver aqui, Sergei — disse o hïrzg. — Isso vai fazê-lo mudar de ideia.

Nesse momento, o sorriso foi recolhido, e Jan acenou para que Sergei se sentasse em uma das cadeiras à mesa. O embaixador notou que o hïrzg pousou o olhar sobre a bolsa diplomática em sua cintura.

— Mas estou certo de que você não veio aqui para nos elogiar ou entregar presentes. O que minha matarh tem a dizer? Da última vez que esteve aqui, você disse que esperava intermediar um acordo e fazer com que ela me nomeasse o a’kralj. Ela concordou?

Sergei olhou para o jogo de chevaritt em andamento à sua frente antes de responder. Eles disputavam uma partida de dois jogadores, e o número de peças restantes no tabuleiro era mais ou menos igual. No entanto, Sergei viu um erro na maneira como as peças de Kriege estavam dispostas: se Elissa andasse três espaços com a vanguarda, ela estaria atrás das linhas de Kriege. O garoto teria que trazer três chevarittai para se proteger — e isso deixaria dois fortins abertos, sendo sitiados por ambos os flancos.

Ele se perguntou se Elissa também tinha visto aquilo. Pelo posicionamento das peças, Sergei suspeitava que sim.

— Elissa sempre vence — comentou Jan, evidentemente notando a atenção que Sergei dispensara ao tabuleiro. — Gosto de pensar que, pelo menos no jogo, ela não nega sua origem.

Com os dedos espalmados, Jan andou com as peças da vanguarda da filha: três espaços à frente. Sergei ergueu os olhos e coçou a lateral do nariz.

— Ah, então o senhor também viu.

Jan sorriu.

— Da mesma maneira que o fato de você não ter respondido à pergunta que fiz também me diz qual foi a resposta da kraljica.

Sergei enfiou a mão dentro da bolsa diplomática e retirou a carta novamente selada. Ele a pousou na mesa e bateu com o indicador no papel grosso ao lado do selo de cera vermelha.

— A kraljica ofereceu uma... contraproposta.

Jan olhou para a carta, sem estender a mão para pegá-la.

— Então vamos ouvi-la. Imagino que você já tenha lido, embora o selo ainda esteja intacto.

— Isto seria impróprio da minha parte, hïrzg — respondeu Sergei.

Ele ouviu Brie pigarrear e olhou para ela; sua atenção estava voltada para o tricô. Brie pareceu sentir a pressão do olhar de Sergei e falou sem tirar os olhos das agulhas.

— Allesandra diz que se continuarmos a ameaçar suas fronteiras, ela tomará uma atitude — falou a hïrzgin. — Ela interpretou a oferta de Jan como uma “capitulação”, não como um acordo. Ela sugere, como alternativa, que o hïrzg deveria dissolver sua tola Coalizão e tornar-se novamente “o braço forte” dos Domínios.

Sergei quase riu.

— A senhora tem ouvidos no palácio, hïrzgin? “Capitulação” é exatamente a palavra que a kraljica usou.

Brie pousou o tricô em seu colo e ergueu os olhos.

— Eu sei como ela pensa — respondeu a hïrzgin, com um sorriso espreitando os cantos da boca. — Meu marido pensa da mesma maneira.

— Brie... —

Jan começou a protestar, mas foi calado pela risada sutil da esposa.

— Isso não é uma crítica, meu amor — falou Brie. — Eu admiro você, sempre admirei. Mas você é filho da sua matarh.

Ela voltou a tricotar, e as agulhas soaram como espadas se chocando ao longe.

— E este é o problema; se entre vocês dois houvesse um líder medíocre, então não haveria Domínios e Coalizão, mas um único império.

— Este foi o meu erro — admitiu Jan. — Eu tive a oportunidade de fazê-lo há 15 anos. Podia ter tomado o Trono do Sol.

Ele olhou para Sergei, que exibia uma expressão cautelosamente neutra: nenhum assentimento, nenhuma expressão de concordância ou discordância.

— Mas eu era jovem e queria ensinar uma lição a minha matarh. Em vez disso, descobri que sou o aluno.

Novamente, Brie ameaçou sorrir.

— Vocês dois querem a mesma coisa, sempre quiseram. Infelizmente, vocês dois também consideram que sua visão de mundo é a certa.

A hïrzgin pousou o tricô no banco ao seu lado, se levantou e se dirigiu até Jan. Ela pegou o braço do marido, apoiou-se nele e beijou seu rosto.

— Eu te amo, meu querido, e compartilho de sua visão, mas também compreendo como sua matarh enxerga as coisas.

Jan passou o braço pela cintura da esposa e puxou-a para si. Sergei se levantou, com os joelhos estalando como gravetos secos sendo pisados. Ele apoiou-se na bengala e ajeitou o sobretudo.

— Deixarei que vocês dois leiam a resposta da kraljica e redijam a sua para mim, embora eu possa imaginar qual seja. Se quiserem, podemos discutir sobre a carta e suas possibilidades para chegarmos a termos mais equitativos. Gostariam de jantar na embaixada hoje à noite? Fui informado de que temos um novo chef, especializado em iguarias de Navarro...

— Nós adoraríamos — Brie respondeu.

Jan assentiu um momento depois.

— Então vejo vocês hoje à noite, uma virada da ampulheta depois da Terceira Chamada? Ótimo...

Sergei fez uma mesura para o casal, se dirigiu até a porta e bateu nela com a bengala. Um dos criados do corredor abriu para ele, que se perguntou, ao caminhar pelo corredor até o portão onde a carruagem o aguardava, quanto tempo levaria antes que filho e matarh estivessem novamente em guerra.

Nico Morel

Eles montaram o palanque no Parque do Templo rapidamente, não muito longe do antigo templo que ficava ali — o mais velho (e menor) dos templos da fé concénziana em Nessântico. A princípio, os morellis concordaram que Ancel seria o orador e eles permaneceriam ali não mais do que uma marca da ampulheta — tempo este que seria suficiente, com sorte, para que um utilino ou a Garde Kralji não reagissem, ainda que Nico tivesse preparado distrações caso as autoridades chegassem. O próprio Nico não discursaria; ele assistiria detrás do palanque com Liana e o resto do círculo interior dos morellis, pronto para fugir e desaparecer nas densas ruelas do Velho Distrito se as autoridades atacassem a manifestação.

Mas a multidão era maior do que o previsto. Notícias da manifestação tinham se espalhado de boca em boca, através de cartazes enigmáticos nas paredes de Nessântico que apenas seus seguidores entenderiam, mas a resposta tinha sido muito maior do que qualquer um deles imaginara. Nico estava certo de que alguma informação sobre a manifestação teria vazado para o pessoal do comandante, mas eles procuraram cuidadosamente por qualquer sinal que indicasse que eles seriam impedidos de falar. Nico não ficou surpreso ao não encontrar nenhum: o próprio Cénzi o protegia, era sua Voz Absoluta. Após o encontro com Varina, ele tinha voltado para casa com a cabeça doendo e os sentimentos confusos. Passou o resto do dia rezando e, nessa noite, Cénzi falou com Nico em seus sonhos: de maneira clara, sem enganos. Ele tinha dito a Nico o que precisava ser dito.

Cénzi falaria através de Nico hoje. E Nico obedeceria, como qualquer servo devia fazer. Ele escreveu as palavras que Ancel diria; Liana já tinha colocado o pergaminho no palanque. O que surpreendeu Nico foi o fato de que, no mesmo momento em que seus seguidores começaram a montar a pequena plataforma, a multidão começou a se reunir. Os primeiros a chegar foram os morellis da cidade, que já eram fiéis. Mas a multidão continuava a crescer, muito além do número de pessoas que já havia jurado publicamente sua lealdade a Nico. Espalhados pela multidão estavam robes verdes: os ténis da cidade, a maior parte do escalão dos e’ténis — os novos ténis, aqueles que podiam ter ouvido falar de Nico desde que ele voltou a Nessântico, mas que ainda não tinham tido a oportunidade de vê-lo discursar. Agora, no momento em que as trompas do templo anunciavam a Segunda Chamada, quando muitos na multidão deveriam estar nas missas, eles estavam aqui. Trezentas pessoas, pelo menos, talvez mais.

Aqui. Para escutar a palavra de Cénzi.

Você tem que discursar. Eles vieram ouvir você, ouvir Minhas palavras pelo dom da sua voz.

A compreensão o atingiu com força, como um golpe em sua têmpora. Ele quase cambaleou devido ao seu impacto. Liana agarrou o braço de Nico, sentindo sua reação.

— Nico...?

— Eu estou bem. Cénzi acabou de falar comigo.

Ele ouviu Liana respirar fundo.

— Há perigo?

— Não — respondeu Nico, quase rindo. — Exatamente o oposto. Ele quer que eu discurse.

— Você não pode — discordou Liana. — Todo mundo disse que é muito perigoso.

— Eu não corro perigo, não enquanto estiver sob a proteção de Cénzi.

Nico deu um tapinha em sua mão e, em seguida, acariciou sua barriga. Ele sentiu a criança se mexer sob sua mão e sorriu para Liana.

— Eu ficarei bem. Por favor, não se preocupe.

Ela franziu a testa, mas soltou seu braço. Ele sorriu para Liana e deu-lhe um beijo na bochecha, depois subiu rapidamente os dois degraus do pequeno palco onde Ancel já desenrolava o pergaminho. Nico foi recebido por um urro da plateia; Ancel desviou o olhar do pergaminho ao ouvir o som, olhou para o mar de mãos apontando para Nico, e virou a cabeça abruptamente. Sua voz mal conseguiu ser ouvida em meio ao urrar da multidão.

— Absoluto? Eu pensei...

Nico fez o sinal de Cénzi para ele.

— Eu ficarei bem, Ancel, mas agradeço se você ficar aqui comigo para vigiar os gardai. Cénzi... Cénzi quer que eu passe Sua mensagem para a nossa gente com minha própria voz.

Ancel arregalou os olhos e se curvou em uma longa reverência para Nico, fazendo o sinal.

— O pergaminho... Aqui está.

Ele entregou o papel para Nico, que sorriu para o amigo e balançou a cabeça.

— Eu não preciso disso. Cénzi me dará as palavras.

Outra mesura. Nico subiu no palanque e a multidão redobrou o barulho. Ele ergueu as mãos e fechou os olhos ao erguê-los para o céu. Ele podia sentir o sol em seu rosto e a adulação da multidão o atingir como um golpe físico.

— Pelo Senhor, Cénzi — sussurrou Nico. — Pelo Senhor.

Ele abriu os olhos e fez um gesto pedindo silêncio. Lentamente, a multidão obedeceu.

— Cénzi abençoa a todos vocês hoje — falou Nico.

Ele ouviu Cénzi se mesclar a sua voz, ouviu-a soar alta e retumbante no parque, como um e’téni usando o Ilmodo para amplificar sua Admoestação, ainda que Nico não tivesse criado tal feitiço. Não, esta era a presença de Cénzi, envolvendo o Segundo Mundo em suas palavras para que todos o ouvissem.

— Eu rezei, minha gente, e prestei atenção, e eu ouvi a Voz de Cénzi.

A última frase soou como um urro que atingiu a plateia e pareceu sacudir as árvores do parque, e as pessoas urraram de volta, sem dizer nada.

— O momento está chegando, Ele me disse, um momento em que teremos que fazer uma escolha, em que teremos que decidir se seguiremos Seu caminho ou o caminho dos fracos humanos. O momento está chegando, e está chegando em breve, meus amigos; muito em breve, teremos que mostrar para Ele que ouvimos Suas palavras e que as obedeceremos. As palavras estão lá para nós. Nós as ouvimos nas palavras do Toustour e da Divolonté. Nós as ouvimos nas palavras das Admoestações nos templos. Nós as ouvimos nas palavras dos profetas e dos ténis, mas...

Ele fez uma pausa momentânea, fechando os olhos e erguendo o rosto novamente.

— O fim dos tempos se aproxima de nós. Ele vem devagar, irreversível. Os ténis da Fé já não ouvem as palavras de Cénzi. Ah, eles as pronunciam, mas não as ouvem, não as sentem. As palavras do Toustour e da Divolonté deveriam golpeá-los como o próprio punho de Cénzi. Elas arrebentarão suas almas e as farão renascer, novas em folha, se vocês permitirem. Eu digo a vocês: é disso que nós precisamos agora. Precisamos nos abrir para Cénzi e deixar que Ele nos transforme em Sua lança!

As palavras emanaram como fogo da boca de Nico. A onda de calor que emergiu delas atingiu pessoas diante dele, que gritaram novamente sua convicção.

— Diga-nos, Absoluto! — alguém berrou, e todos a ecoaram, em uníssono.

— Diga-nos! Diga-nos!

Nico ouviu a multidão por vários segundos, enquanto seu peito arfava pelo esforço de falar. Finalmente, ele ergueu as mãos e todos se calaram novamente. Em meio ao silêncio, à quietude, Nico voltou a falar, e embora a voz não fosse mais que um sussurro, todos conseguiam ouvi-lo. Ele ouviu sua voz reverberar nas paredes do templo, do outro lado do parque.

— Cénzi me disse que não podemos mais tolerar os hereges entre nós. Não podemos tolerar nem mesmo aqueles que vestem os robes verdes mas que falham ao ouvir Suas palavras quando são ditas. O archigos e seus a’ténis falam com suas línguas falsas. Não podemos mais tolerar aqueles que este mundo abençoou com poder e dinheiro, mas que não enxergam que essas bênçãos derivam de Cénzi, não de si mesmos. Ele trará fogo e destruição. Trará morte e escuridão. Ele nos mostrará nossa estupidez para que todos vejamos, e quando Ele o fizer...

Outra pausa. Ele pronunciou cada uma das palavras a seguir claramente. Devagar. Cada uma em seu próprio tempo.

— Temos. Que. Responder.

As pessoas gritaram, aplaudiram, ergueram as mãos. Mas Nico, olhando por sobre a multidão, pôde ver atrás da última fila da multidão a Garde Kralji uniformizada, esquadrões de gardai que entravam aos borbotões no Parque do Templo.

— O sinal está chegando! — Ele berrou. — Nós o conheceremos em breve! Eu lhes prometo isso porque Ele me prometeu. Mas, olhem — Nico então apontou para a Garde Kralji —, existem aqueles que querem evitar que vocês ouçam as minhas palavras. Que querem me impedir de dizer a Verdade, porque a Verdade é a sua inimiga. Olhem!

A multidão se voltou para trás e viu a Garde Kralji, começando a berrar. Conforme os gardai abriam caminho à frente, tentando chegar ao palco, a multidão empurrava de volta. Os gardai reagiam com seus cassetetes. Algumas pessoas foram derrubadas com o ataque. Um e’téni na multidão soltou um feitiço: um jato de fogo que, rugindo, atingiu as fileiras de gardai.

De repente, virou um caos — muita gente na multidão avançou pelo novo buraco aberto entre as fileiras de gardai. Cassetetes subiram e desceram, e agora havia uma batalha campal no parque. Os apitos dos utilinos soaram, e o Ilmodo agora era usado contra a multidão. Uma rajada de vento controlado atingiu o palco e jogou o público mais próximo no chão, sobre a grama do parque, assim como jogou Nico sobre Ancel.

— Absoluto! — Ancel gritou alto em meio ao barulho da confusão. — Temos que ir embora! Agora!

Nico olhou ao longe. Não havia nada que ele pudesse fazer aqui, Cénzi estava mudo na sua cabeça.

— Eles não me ouvem — disse Nico. — Isto é desnecessário. Os fiéis não deveriam lutar entre si.

Mais gardai entravam no parque, alguns com uniformes da Garde Civile, armados com espadas e lanças em vez de cassetetes. Nico viu cabeças sangrando. Ele começou a se dirigir para a frente do palco, mas Ancel pegou seu braço. Liana tinha subido no palanque agora, juntamente com vários integrantes do círculo interno. Todos cercaram Nico.

— Vocês verão!

Nico berrou para a multidão, mas a voz era apenas sua voz agora, e ainda que o tivessem escutado, não lhe deram atenção. Nico estava exausto, tão cansado como se tivesse usado o Ilmodo. Ele caiu sobre as mãos dos seguidores, que o levaram rapidamente para o fundo do palco e escada abaixo.

— Terminamos aqui — disse Ancel para os demais. — Agora precisamos proteger o Absoluto e levá-lo embora. Rápido.

Nico pegou a mão de Liana enquanto seus seguidores cerravam o círculo ao seu redor, e eles fugiram para as profundezas do Parque do Templo, na direção do labirinto das ruas do Velho Distrito.

Varina ca’Pallo

A oficina de Pierre ficava no jardim dos fundos do terreno da Casa dos Numetodos, na Margem Sul. Ela cheirava a ferro, óleo, madeira e verniz, e também à salsicha que Pierre não terminou de comer, deixada sobre uma mesinha lateral no cômodo atulhado. Cada superfície de trabalho estava tomada; não havia madeira aparente nos tampos das bancadas. Vários instrumentos e apetrechos estranhos em vários estágios de montagem estavam dispostos aleatoriamente. Varina só podia imaginar o que metade deles poderia ser. O ambiente era iluminado pelo sol que entrava por várias claraboias com heras nas bordas; os raios de luz iluminavam o ar tomado pela serragem: Pierre lixava uma tábua presa em um torno sobre uma das bancadas.

— A’morce — disse o homem subitamente ao notar Varina à porta.

Ele largou a lixa, levantando uma nuvem de poeira reluzente.

— Eu não esperava pela senhora.

Conforme ela entrava, Pierre ia tirando meia dúzia de cinzéis de madeira de cima do assento de uma cadeira, enxotando a gata que estivera aninhada em meio às ferramentas. Ele fez um gesto para Varina se sentar, enquanto a gata rosnava, irritada, e entrava debaixo da bancada mais próxima para lamber as patas e ficar amuada.

— Eu soube que os morellis causaram um tumulto de grandes proporções no Parque do Templo ontem — falou Pierre. — Pelo menos uma dezena de pessoas foi morta, pelo que ouvi dizer, mas o desgraçado do Morel escapou.

Varina meneou a cabeça, em silêncio. Seu complexo de culpa a corroía por dentro novamente: por ter deixado Nico viver quando podia tê-lo matado; por se permitir pensar que poderia ser o juiz e o executor do rapaz; por ter decepcionado a Karl; por ainda nutrir sentimentos maternais por Nico após todos esses anos; por pensar que ele era digno de redenção; pela estranha simpatia que tinha por ele.

Pelo que estava prestes a fazer agora.

Karl, é isto o que eu devo fazer? É o que você teria feito como a’ morce? Ao pensar nisso, Varina foi tomada pela tristeza mais uma vez e teve que virar as costas a Pierre por um momento. Todo mundo a alertara de que seria assim: a tristeza recuaria lentamente, que por muito tempo ainda ela se lembraria de Karl e a dor a invadiria novamente.

Pierre deve ter pensando que uma fagulha tinha entrado no olho de Varina.

— Morel disse que haveria um sinal de Cénzi — ele continuou. — Algo a respeito de fogo, destruição e morte, pelo que ouvi dizer.

Pierre fungou com desdém.

— Se essa é a profecia, bem, qualquer um de nós poderia ganhar a vida como profeta. Há bastante fogo, destruição e morte todos os anos que cheguem para vinte profecias vagas como essa. Se Cénzi fosse tão poderoso como Morel parece acreditar, ele teria dado sinais inconfundíveis e suas profecias teriam sido mais específicas. Ora, se Morel me dissesse que o sol nasceria no oeste amanhã e isso acontecesse, aí sim, isso talvez me convença a entrar para a fé concénziana.

Ele riu da própria piada. Varina sorriu educadamente e secou os olhos rapidamente. Pierre pareceu encarar o sorriso como um incentivo.

— O que me incomoda — ele disse — é que havia evidentemente uma quantidade considerável de gente dando ouvidos aos morellis, e muitos eram ténis também, não dá para acreditar. Estou dizendo, os problemas dos numetodos podem estar prestes a começar de novo.

— Nico consegue ser bastante charmoso e convincente — disse Varina. — Ele tem muita presença.

E caso eu tivesse dúvidas quanto aos relatos, encontrá-lo fez com que eu os confirmasse.

Pierre deu de ombros.

— Pelo que ouvi, a multidão na verdade resistiu à Garde Kralji quando os gardai apareceram e permitiu que o desgraçado escapasse. Haverá derramamento de sangue entre os morellis e nós numetodos, a’ morce. Guarde o que eu digo... e me chame de profeta também.

Ele sorriu e ergueu ombros novamente.

— Mas, perdoe-me, a’ morce, por falar sem parar. Suponho que a senhora tenha testado o dispositivo que fiz. Funcionou? Ele sobreviveu à experiência?

— Sobreviveu — respondeu Varina.

Pierre meneou a cabeça, e ela viu uma intensa satisfação estampada em seu rosto.

— Eu fiquei muito contente com ele — continuou Varina. — É por isso que estou aqui. Quero mais dispositivos. Um punhado deles, na verdade.

Agora suas sobrancelhas se ergueram em seu rosto magro. Inconscientemente, Pierre limpou a serragem da frente da bashta. Seu olhar percorreu a oficina.

— Um punhado — murmurou ele, de maneira quase inaudível. — A’ morce, todo o trabalho que eu tenho aqui para fazer... Os pedidos de instrumentos e dispositivos, feitos por outros numetodos para seus estudos... Não sei nem mesmo por onde eu começaria...

Ele ergueu as mãos; Varina notou suas cicatrizes e calos e falou:

— Contrate alguns aprendizes competentes. Eu mesma pagarei sua remuneração, o que você achar justo. Compre o material que precisar e mande a conta para mim. Os dispositivos não precisam ser tão... — Varina pausou e sorriu para Pierre — ... primorosos quanto o que você fez para mim. Faça com que eles trabalhem sob a sua supervisão; você pode inclusive pedir a eles que lhe ajudem em outros serviços, se necessário. Eu não me importo.

Ela respirou fundo e sentiu um arrepio.

— Pierre, isso é necessário para a proteção de todos os numetodos.

— A’ morce, eu não ouvi...

— Não ouviu porque eu não disse nada para mais ninguém. E nem você deveria contar. Posso contar com sua discrição, imagino?

Ele ergueu ainda mais as sobrancelhas.

— Claro, a’ morce. Claro. É só que...

— Sim?

Pierre meneou a cabeça negativamente.

— Nada, a’ morce.

Ele passou a mão em suas coxas, levantando uma nuvem de poeira que brilhou no raio de luz mais próximo.

— Eu farei como o pedido, e espero que a senhora fique satisfeita com os resultados.

— Ótimo — respondeu Varina. — Obrigada, Pierre. Eu passarei no próximo draiordi para acompanhar seu progresso.

Ela se levantou, ajeitou o sobretudo sobre a tashta e falou:

— Espero que eu esteja enganada e que nada disso seja necessário. Na verdade, isso é o que me deixaria mais contente, mas duvido que eu tenha esse prazer.

Allesandra ca’Vörl

O comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji, e o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile, estavam ambos em uma inquieta posição de sentido diante do Trono do Sol. Os cortesãos e o público tinham sido dispensados do salão, e a costumeira reunião mensal do Conselho interrompida. O Conselho dos Ca’ estava sentado à direita do Trono e, exceto pelos criados a postos próximos às paredes, prontos para atender a qualquer pedido, não havia mais ninguém ali para testemunhar o desgosto que os relatórios causaram em Allesandra.

Ninguém além de Erik ca’Vikej, que estava sentado atrás do Conselho. Allesandra notou os conselheiros se esforçando para ignorar a presença do homem; seu constrangimento era quase agradável. Entre os conselheiros, apenas Varina parecia não notá-lo. Allesandra tinha a impressão de que ela estava perdida em seus próprios pensamentos; Varina não tinha dito nada durante a reunião inteira.

— Nico Morel foi capaz de fazer um discurso público, um discurso que atacou tanto a Fé quanto o Trono do Sol, e nós, ainda assim, fomos incapazes de capturá-lo.

Allesandra fungou com desdém. O brilho amarelo intenso do Trono do Sol a envolvia; ela pôde ver a claridade entre seus dedos quando apertou os braços cristalinos do Trono. Pôde ver as rachaduras na pedra translúcida e entalhada onde o Trono, danificado no assassinato do kraljiki Audric, há 15 anos, tinha sido reparado. As rachaduras não brilhavam, mas permaneciam teimosamente opacas apesar dos melhores esforços dos ténis-luminosos.

— Não era isso o que eu queria ouvir.

Ela ouviu Erik bufar com um divertimento frio diante do comentário.

— Nem é o que queríamos relatar, kraljica — respondeu o comandante co’Ingres. — Eu estava no comando da operação, não o comandante ca’Talin, que tinha concordado em apoiar a Garde Kralji e, portanto, não deve ser responsabilizado por isso. Eu não tenho nenhuma desculpa adequada, e não darei nenhuma.

— Então é bom que eu tenha recebido outros relatórios do acontecimento, comandante — falou Allesandra. — Eu sei que seus gardai foram atacados pela multidão, e que eles tiveram um controle admirável em não responder no mesmo tom contra os cidadãos dos Domínios.

Co’Ingres inclinou a cabeça em direção à ela em sinal de reconhecimento.

— Mas eu acho que o tempo de contenção contra os morellis já passou — ela continuou. — No futuro, ambos têm a minha permissão para usar a força que acharem necessária.

Allesandra olhou para Varina ao dizê-lo. Ela não fez sinal algum, só olhava fixamente para as mãos entrelaçadas em seu colo, e Allesandra se perguntou se Varina sequer tinha ouvido o que ela disse.

— Nico Morel deve ser encontrado e julgado pelo assassinato dos cidadãos de Nessântico e pelos danos que causou aqui — ela disse para os comandantes e conselheiros.

Os comandantes menearam suas cabeças, recebendo as ordens como qualquer bom soldado deveria, mas os cinco integrantes do Conselho dos Ca’ não estavam tão de acordo. Varina estava perdida em seus próprios pensamentos. Henri ca’Sibelli, primo de Allesandra, assentiu, e a papada sobre seu pescoço balançou com o movimento. Mas os outros três... a mão de Simon ca’Dawki cofiava sua barba branca, e sua boca se contorcia como se ele tivesse provado um gosto azedo; Anaïs ca’Gerodi inclinou-se na direção de Edouard ca’Matin e sussurrou algo em sua orelha peluda, ao que o homem reagiu franzindo o cenho vigorosamente, sacudindo a cabeça devido à paralisia que o afligia.

Será que calculei mal o apoio de Nico Morel aqui? Allesandra viu-se desejando que Sergei ainda estivesse na cidade; ela precisava de sua honestidade nua e crua. Mas, no lugar do embaixador, ela olhou para Erik.

Ele também franzia o cenho, mas sua irritação era dirigida ao Conselho: Allesandra viu que Erik tinha notado a reação deles.

— Estamos de acordo? — ela perguntou aos conselheiros.

— Estamos, kraljica — respondeu ca’Sibelli, mas sua voz foi a única ouvida.

Os outros não disseram nada; e, caso discordassem, não o diriam aqui, na frente dela.

— Ótimo — disparou Allesandra.

Se eles estavam demasiado inseguros em manifestar seu descontentamento, que ficassem descontentes. Ela se levantou do Trono do Sol, e o brilho dentro do cristal morreu. O salão pareceu subitamente escuro.

— Estamos encerrados. Comandantes, conselheiros, obrigada pelo seu tempo.

Os comandantes fizeram mesuras e saíram rapidamente, com os saltos de suas botas batendo ruidosamente nos ladrilhos do salão do Trono do Sol; os conselheiros se entreolharam, inseguros, então finalmente levantaram de suas cadeiras soltando vários gemidos e murmúrios. Eles fizeram mesuras para Allesandra e, com hesitação, para Erik antes de começarem a sair do salão, mais lentamente que os dois soldados.

— Varina — chamou Allesandra —, um momento, por obséquio...

Quando o último dos conselheiros saiu do salão e os criados fecharam as portas, Allesandra se aproximou de Varina e pegou em suas mãos.

— Como você está? — perguntou Allesandra. — Estou preocupada com você. Não disse absolutamente nada hoje.

— Desculpe-me, kraljica.

— Você está recuperada de seus ferimentos?

— Ferimentos? — perguntou Varina, como se não soubesse do que Allesandra estava falando. Então ela se lembrou: — Ah, os ferimentos. Sim, completamente. Obrigada pela preocupação.

Sua voz soou indiferente, e ela parecia mais cansada e esgotada que o habitual. Sua face esquerda parecia ceder ligeiramente, e seu olho esquerdo estava embaciado. Allesandra se lembrou de outros casais de longa data que conheceu, e de como quando um cônjuge morria, o outro geralmente o seguia para os braços de Cénzi logo depois. Ela se perguntou se este seria o caso com Varina.

— Mandarei meu curandeiro visitá-la hoje à noite — falou a kraljica, fazendo um gesto para interromper o protesto que se formava na boca de Varina. — Não, não ouvirei suas desculpas, minha querida. Eu insisto. Sei que você tem os numetodos para cuidar de você, mas Talbot me contou que você está se enterrando no trabalho, que fica trancada no laboratório. Isso não é saudável, Varina. Você deveria sair ao ar livre, se divertir com os amigos.

— Acho que estou sentindo minha mortalidade, kraljica. Não tenho muito tempo a perder, e ainda há muito o que fazer, muito que compreender.

— Você estará aqui ainda por anos e décadas — disse a kraljica.

Era uma mentira educada, e ambas sabiam disso.

— Você perdeu o Gschnas para cuidar do pobre Karl, e isso é uma pena. Eu darei outra festa em breve; você será convidada, e eu insisto que venha. Não aceito desculpas.

— A kraljica é gentil demais — respondeu Varina. — Claro que virei, mas eu preciso voltar à Casa dos Numetodos. Estou conduzindo uma experiência...

Ela fez uma mesura quase imperceptível e começou a se virar, então parou.

— Kraljica?

— Sim?

— Eu sempre disse a Karl que Nico podia ser recuperado, que se tivéssemos tido a oportunidade de falar com ele... — Varina umedeceu os lábios secos e rachados, rodeado de rugas. — Eu estava errada.

— Você realmente falou com ele? — perguntou Allesandra.

Varina assentiu.

— Nico está convencido de que está certo e que todos nós estamos errados. E ele é mais perigoso do que qualquer um de nós pensávamos.

Dito isso, Varina repetiu sua imperceptível mesura e arrastou os pés na direção das portas, com os passos de uma mulher duas décadas mais velha do que era.

— Ela está certa, e você sabe.

A voz sobressaltou Allesandra; ela tinha se esquecido de que Erik ainda estava ali. Ela sentiu a mão dele tocar seu ombro e pousou sua bochecha sobre ela.

— Eu sei — respondeu Allesandra. — E isso me assusta.

Rochelle Botelli

— O desgraçado do ci’Lawli me tirou da lista de chevaritt — disse co’Kella, xingando entredentes.

Conforme as instruções de Rochelle, o homem não voltara o olhar para as sombras onde ela estava.

— Ele mandou minha filha que está carregando o filho do hïrzg embora, e não estão me oferecendo quase nada, nada, em troca. Ora, eu teria sido nomeado ca’Kella no pronunciamento do hïrzg se ci’Lawli não tivesse interferido. Eu poderia até mesmo ter me tornado conselheiro a tempo. Agora ci’Lawli tem que pagar: por mim, por minha filha, pela sorte da minha família.

Era um conto antigo, uma versão da mesma história que ela tinha ouvido um punhado de vezes em sua curta carreira como Pedra Branca, uma história que sua matarh, certamente, tinha ouvido inúmeras vezes.

— Se é assim que deseja, vajiki — respondeu Rochelle moldando sua voz em um tom grave e ameaçador —, deixe as solas e a pedra que mandei trazer como sinal e vá para casa. Dentro de um mês, o homem estará morto. Eu lhe prometo.

Ele deixara a bolsinha de moedas de ouro e a pedra branca e lisa. Rochelle as pegou.

Rance ci’Lawli. Matá-lo significaria estar próximo de seu vatarh. Ela podia sentir a empolgação dentro de si pulsar diante da ideia.

Ela criou uma identidade para si mesma. Sua matarh tinha lhe mostrado como a Pedra Branca fazia isso. Rochelle já tinha quatro ou cinco identidades falsas, algumas usadas no passado: garotas que tinham nascido em anos próximos ao dela, mas que morreram na infância. Eram de todo tipo, de pessoas comum, sem status, a pessoas do escalão dos ca’. Em relação a essas últimas, ela conhecia suas genealogias, os nomes de seus vatarh e matarh, suas cidades e títulos, e quem essas pessoas conheciam. Sua matarh a tinha alertado que ela deveria tomar cuidado com identidades falsas, especialmente quando se subia a escala social para os ca’ e co’. Ela tinha contado sua história para sua filha, em tom de alerta, sobre como quase tinha sido descoberta em Brezno, quando se fez passar por Elissa ca’Karina, quando “Elissa” e o hïrzg Jan tinham sido amantes.

Quando a própria Rochelle foi concebida.

“A elite se conhece”, disse a matarh para Rochelle, após o segundo ou terceiro assassinato de Rochelle como Pedra Branca, pouco antes dela morrer. “Ah, cale-se, você não sabe do que está falando”. A fala tinha sido um aparte para uma das vozes na cabeça da matarh; Rochelle tinha aprendido a filtrar tais comentários. “Eles são um grupo fechado, muitos integrantes da elite têm parentesco entre si, e as ligações familiares são importantes para eles — e, por causa disso, eles conhecem essas ligações. Você deve ter cuidado com o que diz pois a menor distorção pode te revelar. Sim, eu sei disso, seu idiota. Por que você continua me atormentando assim? Cale a boca! Cale-se logo!” Ela apertou suas mãos contra os ouvidos como se pudesse deter o diálogo interno e inclinando-se na cadeira para frente e para trás, como se sentisse dor.

Dois dias depois, sua matarh estava morta. Por suas próprias mãos.

Rochelle não precisava seguir esse conselho nesse caso. Ela se apresentou a Rance ci’Lawli como Rhianna Berkell, uma jovem sem status de Sesemora que tinha vindo a Brezno para fazer fortuna tentando um emprego no quadro de funcionários do palácio. Ela trazia consigo recomendações em papel timbrado de três chevarittai de Sesemora, com quem supostamente tinha trabalhado. O papel timbrado e os nomes neles eram genuínos; o papel tinha sido roubado na ocasião em que ela estivera em Sesemora com sua matarh, anos atrás; as recomendações eram, obviamente, completamente falsas. Mas Rochelle era uma atriz talentosa: ela sabia o que dizer, como se apresentar, e que habilidades poderiam colocá-la em melhor situação no corpo de funcionários do palácio. Também sabia como flertar sem obviedade, e ci’Lawli era suscetível às atenções de uma linda jovem. Três dias depois, a convocação chegou à estalagem onde Rochelle estava hospedava: ela seria contratada. Foi colocada pelo assistente ci’Lawli na criadagem real, onde cuidaria da ala do hïrzg no palácio e trabalharia diretamente com ci’Lawli. Ao longo dos dias que se seguiram, Rochelle fez questão de fazer um trabalho superior e observar. Observar e aprender os hábitos e rotinas de ci’Lawli.

Ela também se viu ocasionalmente no mesmo ambiente que seu vatarh. Em uma ou duas ocasiões, ela pensou tê-lo visto olhando para ela de um modo estranho e se perguntou se o hïrzg sentia o mesmo impulso que ela. Mas, na maior parte do tempo, especialmente se a esposa ou os filhos estivessem no aposento, Jan prestava tanta atenção nela quanto nos quadros das paredes; Rochelle era — assim como todos os funcionários — mera parte da mobília do palácio.

Hoje, ela tinha sido enviada para limpar a sala de recepção do lado de fora dos cômodos dos aposentos principais do hïrzg. As crianças estavam em outro lugar, mas Jan e a hïrzgin tinham tomado café da manhã com o embaixador dos Domínios, ca’Rudka, que estaria deixando Brezno hoje.

Conforme ela entrava pela porta de serviço carregando uma bandeja para limpar a mesa, ca’Rudka — cujo rosto fez Rochelle estremecer, com seu terrível nariz de prata colado à pele enrugada — fazia uma mesura para Jan e Brie.

— ... levarei sua carta à kraljica assim que eu voltar.

— E nesse ínterim, você certamente terá lido a carta, apenas para garantir que ela corresponde ao que eu lhe disse — falou Jan.

Ele riu. Rochelle adorava o som de sua risada: cheia de calor puro e bruto. Também gostava do som da sua voz. Queria ter conhecido Jan na infância, ouvido sua voz sussurrando uma boa noite ou sentido seus braços a embalando em frente à lareira, contando histórias de sua juventude, ou talvez contos da longa história de Firenzcia e seus ancestrais.

— Ora, Jan, não dê ideias ao embaixador — a hïrzgin interveio.

Rochelle não estava certa quanto ao que sentia pela matarh de seus meios-irmãos. A hïrzgin Brie parecia gostar genuinamente de Jan, mas Rochelle já tinha ouvido comentários e visto olhares que a faziam se perguntar se essa afeição era recíproca. Também havia a fofoca palaciana, mas ela ainda não estava a par dos detalhes das suspeitas cuidadosamente sussurradas.

— Não se preocupem — disse Sergei para ambos. — O hïrzg já me disse exatamente como ele pensa, mas confio que ele tenha se expressado de maneira mais diplomática na carta para a kraljica. Pelo menos, eu espero que sim.

O trio riu novamente, mas o divertimento durou pouco desta vez e tinha um quê de outra coisa que Rochelle não conseguiu decifrar. A voz de Sergei ficou subitamente séria e baixa.

— Eu realmente espero que consigamos encontrar uma forma de passar por isso sem recorrer à violência. Uma nova guerra não seria bom nem para os Domínios, nem para a Coalizão.

— Isso só depende da minha matarh — respondeu Jan.

— E depende da Coalizão não provocá-la nesse meio-tempo — retrucou Sergei. Ele meneou a cabeça e fez uma mesura para os dois. — Estou indo, então. Enviarei uma resposta por mensageiro rápido assim que falar com a kraljica Allesandra. Deem um beijo nas crianças por mim, e que Cénzi os abençoe.

Ele fez uma mesura novamente e saiu da sala, enquanto Rochelle continuava a empilhar pratos sujos na bandeja.

— Eu vou ver as crianças — disse Brie. — Você vem, querido?

— Daqui a pouco — Jan respondeu.

— Ah.

A estranha e vaga inflexão dessa única palavra fez Rochelle erguer os olhos de seu serviço, mas Brie já se aproximava da entrada dos aposentos internos, com as costas voltadas para ela. Rochelle voltou-se para seu serviço novamente, os pratos batendo suavemente ao serem empilhados.

— Você é nova na equipe de funcionários?

Rochelle levou um momento para perceber que Jan falava com ela. Ela notou que ele a observava do outro lado da mesa. Rochelle fez uma mesura rapidamente, com a cabeça baixa, como tinha visto outros criados fazerem na presença de Jan.

— Sim, meu hïrzg — respondeu ela, sem erguer os olhos. — Eu fui contratada há uma semana.

— Então você obviamente impressionou Rance, se foi colocada na criadagem do palácio. Qual é o seu nome?

— Rhianna Berkell.

— Rhianna Berkell — Jan repetiu, como se a provar o nome. — Soa bonito. Bem, Rhianna, se fizer um bom trabalho aqui, um dia você talvez receba um ce’ antes do nome. O próprio Rance era ce’Lawli há apenas dois anos, e agora é ci’Lawli. E quase certamente será co’Lawli um dia. Nós recompensamos àqueles que nos servem bem.

— Obrigada, senhor. — Ela fez uma mesura novamente. — Eu tenho que voltar à cozinha...

— Olhe para mim — disse Jan.

Ele falou com uma voz meiga, gentil, e Rochelle ergueu o rosto. Seus olhos se encontraram, e o olhar de Jan permaneceu em seu rosto.

— Você me lembra...

Ele parou. Seu olhar pareceu se perder por um momento, como se estivesse perdido nas próprias memórias.

— ... alguém que eu conheci.

Jan estendeu sua mão, e os dedos da mão direita tocaram no rosto dela — o toque, pensou Rochelle, de um vatarh. Ela abaixou o olhar rapidamente, mas pôde sentir o toque dos dedos em sua pele por longos segundos depois.

— A bandeja, meu hïrzg — disse Rochelle.

— Ah, sim. Isso. É claro. Obrigado, Rhianna. Eu lhe agradeço.

Rochelle levantou a bandeja e seguiu na direção da porta de serviço. Ela podia sentir o olhar de Jan em suas costas ao abrir a porta com o quadril. Ela não ousou olhar para trás, com medo de que, se o fizesse, revelasse o segredo, com medo de que chamasse Jan pelo nome que tinha vontade de usar.

Vatarh...

Ela não podia fazer isso. Não agora.

Não ainda.

Varina ca’Pallo

Ela tinha armado a demonstração no salão principal da Casa dos Numetodos. Havia dois punhados de numetodos de longa data ao lado dela: entre eles, Pierre Gabrelli, que sorria, pois já sabia o que ela pretendia mostrar; o assistente-chefe da kraljica, Talbot ci’Noel; Johannes ce’Agrippa, talvez o mais talentoso dos magos numetodos, cujo estudo das práticas de magia tinha superado as descobertas do próprio Karl, e de Varina; Niels ce’Sedgwick, cujo interesse não era voltado a qualquer tipo de magia, mas sim nas formações geológicas da Terra e no que elas contavam de sua história; Leovic ce’Darci, cujos elegantes desenhos de prédios e maravilhas da engenharia eram não só um deleite, como também começavam a mudar o horizonte de Nessântico; Nicolau Petros, que estudava as estrelas e seus movimentos com um dispositivo baseado em um objeto que Karl tinha visto o espião Mahri usar; Albertus Paracel, o escriba e bibliotecário que era o encarregado da criação de uma já monumental compilação de todo conhecimento adquirido através das pesquisas e experiências dos numetodos. Todos eles eram essenciais para tarefa central dos numetodos — entender como o mundo funcionava sem o véu da superstição e da religião, usando a razão e a lógica para compreender os mistérios que os cercavam.

Eram aqueles que Nico Morel e sua laia consideravam tão terrivelmente ameaçadores.

Alguns numetodos estavam ausentes, no entanto — aqueles que Nico já havia matado, e que, na verdade, eram os mais próximos de Karl e Varina. Ela não podia fazer nada por eles, a não ser sentir a dor de sua ausência e de Karl.

Varina tinha continuado seus próprios experimentos com a chispeira. Ela refinara a mistura de areia negra e o formato e a composição da bala de chumbo disparada pelo dispositivo; mandara também que Pierre criasse algumas peças experimentais. A cada dia, Varina via com mais clareza o potencial assustador da chispeira e também estava mais convencida de que esse dispositivo poderia alterar os próprios tendões e fibras da sociedade em que eles viviam.

Varina às vezes se perguntava se essa mudança era algo que ela realmente queria desencadear.

“Não se pode esconder o conhecimento.” Era o que Karl dizia muitas vezes, ao longo de décadas. “O conhecimento se recusa a ser escondido. Se se tentar enterrá-lo, ele simplesmente encontrará uma maneira de se revelar para outras pessoas.”

Muito bem. Então ela não esconderia.

— Obrigada por terem vindo — disse Varina para o grupo reunido. — Todos vocês conhecem a areia negra. Todos conhecem a terrível destruição que ela pode causar quando acesa em grande escala. Meus experimentos recentes têm envolvido quantidades significativamente menores que as usadas na guerra e sem uso de magia alguma para acendê-la. E...

Ela se deteve, dando um passo na direção da mesa que ela tinha armado e coberto com um pano preto. A vários passos de distância, um melão maduro tinha sido preso a um suporte, em frente a uma mesa de carvalho deitada, que serviria como barreira: uma fruta do tamanho da cabeça de um homem, envolta por uma casca dura amarelo-esverdeada. Uma cabeça tão dura quanto a de um melão — um velho ditado nos Domínios. Varina pôde notar que todos olhavam para a instalação com curiosidade.

— Bem, é mais fácil simplesmente demonstrar.

Ela acenou com a cabeça para Pierre, que tirou o pano da mesa. A chispeira original do artesão estava ali, linda e reluzente, já carregada e pronta para uso. Varina pegou a arma sem dizer uma palavra, engatilhou-a e mirou a fruta doce.

Ela puxou o gatilho.

A chispeira estalou. A areia negra no tambor espocou; a chispeira deu um coice na mão de Varina soltando um estampido alto. Na outra extremidade do salão, a fruta pareceu explodir, espalhando pedaços pelo chão enquanto o restante partido pulou sobre o suporte. No silêncio que se seguiu, todos puderam ouvir o sumo da fruta destroçada pingando no chão.

O simbolismo, como Varina tinha esperado, tinha sido apreendido por todos eles.

— Sem magia? — murmurou Talbot. — Nenhuma?

Varina meneou a cabeça em negativa. O estampido da chispeira ainda ecoava em seus ouvidos; uma fina coluna de fumaça branca oscilante saía do cano.

— Sem magia — confirmou Varina. — Algumas pitadas de areia negra, uma bala de chumbo, e a habilidade artesanal de Pierre. E pode ser repetido. Afastem-se...

Ela pediu aos numetodos que tinham ido examinar a fruta despedaçada e as tábuas de madeira atrás dela, onde a bala estava cravada. Varina recarregou — um trabalho que levou alguns segundos —, engatilhou a chispeira e disparou novamente. Desta vez, os pedaços remanescentes da fruta foram completamente destroçados, e o suporte caiu para trás. Varina pousou a chispeira sobre a mesa e falou.

— Pierre fez uma chispeira para cada um de vocês, eu os ensinarei a usá-las.

— A’morce, isso... — disse Talbot, enquanto olhava para fruta arruinada no chão. — Por quê?

— Receio que os numetodos estejam prestes a serem atacados novamente — explicou Varina. — Com essas chispeiras, vocês não precisam ter habilidade com espada, força física ou magia para se defender. Tudo o que vocês precisam fazer é apontar o dispositivo e puxar o gatilho. Receio que precisaremos de toda proteção que pudermos arranjar.

Leovic tinha ido até a mesa. Ele virava a chispeira em suas mãos, examinando seu mecanismo. Varina notou que a mente do homem trabalhava. Leovic olhou para ela e comentou:

— Está quente. E se fosse um garda de armadura?

— Ele não se sairia melhor que a fruta — respondeu Varina. — Posso lhe mostrar, se quiser.

Os músculos do maxilar de Leovic retesaram, como se estivesse retendo a resposta que gostaria de dar.

— Qualquer artesão competente poderia criar uma coisa destas — disse o homem finalmente. — Ainda que não tão elaborada quanto a criação de Pierre. E quanto a aprender a usá-la?

— Posso mostrar-lhes em algumas marcas da ampulheta — disse Varina.

— Você pode nos dar o possibilidade de matar alguém a poucos passos de distância, mesmo que a pessoa esteja de armadura? — disse Johannes, em um sussurro quase reverencial.

— Sim — respondeu ela.

— A senhora quer de fato liberar esse poder?

— Ele já foi liberado — argumentou Varina. — Esse poder foi liberado quando os tehuantinos criaram a areia negra. Se destruirmos as chispeiras agora e jamais falarmos delas novamente, outra pessoa chegaria à mesma conclusão que eu e as faria novamente. Vocês todos conhecem a expressão de Karl...

Ao mencionar seu nome, sua voz ficou entrecortada. Ela engoliu em seco, se desculpando. Talbot acenou para ela, em solidariedade.

— ... Karl dizia que o conhecimento não pode ser escondido. Mesmo os fiéis concénzianos têm uma expressão para isso: “uma vez que os moitidis foram criados, não havia como Desfazê-los”. Isso não é diferente.

— Ainda assim, a’morce... — disse Niels, balançando os longos cachos grisalhos. — As possibilidades...

— Eu posso antevê-las tão bem quanto qualquer um de vocês — respondeu Varina. — Acreditem, essas possibilidades vêm assombrando meus sonhos desde o funeral de Karl e o assassinato da nossa gente pelos morellis. Mas eu também posso antever o que pode acontece se nós não tivermos todos os recursos disponíveis para nos proteger. E isso me assusta ainda mais.

Ela acenou para Pierre, que trouxe uma caixa comprida da lateral do salão. Ele a pousou sobre a mesa e a abriu. O aço e a madeira dentro dela reluziram.

— Há uma chispeira para cada um de vocês — disse Varina. — Peguem uma, um frasco de areia negra e um pacote de cartuchos de papel, e vou mostrar-lhes como usá-los...

Jan ca’Ostheim

— A jovem que trabalha na criadagem pessoal, chamada Rhianna — perguntou Jan para Rance. — O que você sabe sobre ela?

O assistente ergueu uma sobrancelha. Ele tinha acabado de trazer a agenda diária de reuniões e revisava os planos para o dia — que estava, como de costume, cheio demais. Era um daqueles dias em que Jan sentia o peso de suas responsabilidades; um daqueles dias em que ele se sentia velho antes do tempo; um daqueles dias em que o hïrzg se sentia inquieto e aprisionado.

Mas a jovem... Jan pensara nela mais de uma vez desde seu encontro, e ele se viu procurando por ela sempre que ele entrava em um aposento. Frequentemente, havia um leve sorriso no rosto da criada quando ela o via, embora ela nunca tenha quebrado o decoro, nunca tenha tentado se aproximar ou falar com Jan, mas se mantinha concentrada no serviço e ia embora quando terminava.

Jan gostava disso. Rhianna conhecia seu lugar. Era um bom sinal.

— Ela é de Sesemora — contou Rance —, embora tenha pouco daquele sotaque horroroso, felizmente. Tinha excelentes referências das famílias ca’Ceila e ca’Nemora. Ela acata bem às ordens e trabalha pesado. Seria bom que eu tivesse mais uma dúzia de criados que trabalhem tão bem quanto ela. E é bonita de se ver, como tenho certeza de que o hïrzg notou.

— Notei, de fato.

Esta era uma dança que ele e Rance tinham executado mais de uma vez ao longo dos anos, e ambos conheciam os passos.

— O hïrzg gostaria que ela fosse designada para seus aposentos pessoais?

— Seria bom. Ela parece uma excelente opção.

— Então eu farei isso — falou Rance. — Ouvi rumores de que a hïrzgin achou que Felicia foi um tanto quanto grosseira com ela, na semana passada; Rhianna pode ser uma boa substituta. Eu mandarei fazer a troca hoje.

Jan encolheu os ombros.

— O que você achar melhor, Rance. A equipe é sua. Deixarei que você o decida. Agora, tem algo que possamos fazer a respeito da audiência com o a’gyula? Talvez a hïrzgin pudesse recebê-lo. Ele é um grosseiro tedioso...


— Boa noite, crianças...

Jan beijou um filho de cada vez: Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria. Ele acenou com a cabeça para a babá, que começou a conduzir as crianças para fora do quarto. Elissa ficou para trás, teimando e de cara fechada.

— Eu devia poder ir ao baile hoje à noite — disse ela. — Eu não tenho nem um pouco de sono, vatarh.

— Ano que vem — falou Jan.

— O ano que vem é daqui a uma eternidade — respondeu a menina, batendo enfaticamente com o pé no chão.

Jan ouviu Brie soltar uma risadinha. Ele estava sentado na cadeira atrás da mesa do quarto da esposa. Brie estava atrás dele, com a mão sobre seu ombro. Ela vestia apenas uma camisola, seu cabelo estava solto, a joias encontravam-se sobre a penteadeira. Jan sentiu o cheiro do perfume que a hïrzgin tinha acabado de passar quando ela se inclinou próximo ao ouvido dele.

— Ela é sua filha — sussurrou a esposa. — Eu ouço você na voz dela.

Jan sorriu e gesticulou para Elissa vir até ele. A menina obedeceu, com um beicinho dramático no rosto.

— Se eu disser que você pode ir ao baile, eu vou ter que ouvir Kriege dizer que ele também devia poder ir ao baile.

— Kriege só tem 9 anos — respondeu Elissa. — Ele é praticamente um bebê. Eu tenho 11 anos, quase 12.

Jan sentiu os dedos de Brie apertarem seu ombro. Ele sorriu.

— Eu sei. Vamos combinar assim: se você for com a babá agora, eu pedirei a ela que tire você da cama e a arrume em uma virada da ampulheta, e aí você pode descer para o baile um pouquinho. Mas não pode deixar que seus irmãos saibam.

Elissa sorriu e bateu palmas, depois deixou as mãos caírem ao lado do corpo, com uma expressão comicamente solene no rosto.

— Sim, vatarh — ela respondeu em voz alta, para os irmãos escutarem, ainda na porta com a babá. — Eu vou para a cama, então.

Impulsivamente, a menina ficou na ponta dos pés e beijou o rosto do vatarh, depois o da matarh.

— Boa noite, vatarh, matarh.

Ela tamborilou os pezinhos no corredor junto com seus irmãos. Jan viu as crianças saírem, sem conseguir conter o sorriso no rosto.

— Se nós fôssemos artistas, não teríamos criado algo mais lindo que nossos filhos — disse Brie.

— Eu tenho que concordar.

Jan virou-se na cadeira para encará-la, pousando suas mãos em seus quadris. Ele podia ver o que os anos e o nascimento de seus filhos tinham feito ao corpo de Brie: ela não tinha mais a beleza esguia e suave de quando eles se casaram. Seu corpo tinha ficado largo e roliço ao longo dos anos, as marcas de expressão tinham invadido seu rosto, e a pele sob seu queixo se tornara flácida. Sua barriga ficara saliente e seus peitos maiores e mais pesados.

Jan também tinha mudado, ele sabia, mas mudanças eram mais fáceis de ver nos outros. O hïrzg acariciou as laterais roliças do corpo de Brie, e ela sorriu para ele, aproximando seu corpo do corpo dele.

— Ainda temos tempo — falou a hïrzgin. — Posso mandar chamar aquela garota nova... qual é o nome dela? Rhianna? Para me ajudar a me vestir rapidamente. Se você quiser...

Brie inclinou-se para baixo. Seus lábios ainda eram macios, ainda cediam, e, um instante depois, Jan perdeu-se no beijo. As mãos de Brie envolveram a cabeça do marido, levantando-o sem romper o abraço, e depois ela o apertou com força. Como uma só pessoa, como em uma dança lenta e cheia de paixão, os dois foram para a cama. Brie caiu sobre a fresca suavidade do tecido enquanto Jan se deixava puxar por ela para cobrir seu corpo. Ele beijou Brie desta vez, mais intensa e insistentemente, e as mãos dela desceram pelo corpo do esposo enquanto ele levantava a barra de sua camisola.

Mais tarde, os dois ficaram deitados sobre os lençóis emaranhados. Ela sorriu para Jan, acariciou suas bochechas e afastou o cabelo de seu rosto, enquanto ele passava o dedo indicador pelo contorno dos seios de Brie, circulando suas auréolas e observando a reação da pele sensível.

— Isso foi bom — disse Jan.

— Sim. — Ela o beijou novamente; com um ligeiro toque nos lábios desta vez. — Talvez tenhamos criado algo novo outra vez.

— Talvez.

Jan sorriu, embora não tivesse sentido nada com a ideia. Ele tinha muitos filhos — aqueles que podia reconhecer e aqueles que nem conhecia, gerados em uma amante ocasional que tinha que ser mandada embora com uma bolsa de solas de ouro como lembrança. Como Mavel co’Kella.

— Sergei deve chegar a Nessântico entre hoje e amanhã — disse Brie.

Ele riu.

— De onde veio essa ideia?

— Não sei. Só estava pensando. As crianças... Seria bom se elas conhecessem sua mamatarh. Que conhecessem de verdade.

Jan resmungou sem dizer uma palavra. A mão sobre o abdômen de Brie parou de se mover.

— Você acha que ela vai concordar com o seu pedido? Acha que Sergei vai conseguir convencê-la a nomeá-lo a’Kralji?

— Eu não sei — ele respondeu. — Além disso, Rance diria que é isso o que eu quero, afinal, isso não é bom para Brezno.

Essa era a verdade. Jan não sabia. Parte dele concordava com Rance, e queria que sua matarh recusasse, para que tivesse uma desculpa para atacá-la. E parte... Sim, uma parte de Jan torcia para que ela concordasse, torcia para que pudessem se reconciliar.

Jan só não sabia que parte era mais forte.

— A escolha é da matarh — ele disse. — Já não está mais em minhas mãos. Eu fiz a oferta; ela pode aceitar ou não.

— Espero que ela aceite. Está na hora. Uma família não pode ficar assim tão separada.

Brie beijou o marido mais uma vez e rolou para o lado. Olhou para a grande ampulheta sobre a escrivaninha.

— É melhor você voltar para o seu quarto e se vestir — ela disse. — Não temos muito tempo. Vou mandar o criado do corredor trazer Rhianna e enviar alguém para ajudá-lo...

Ela vestiu a camisola e o robe e caminhou em direção à porta do corredor. Jan observou a esposa, depois vestiu as próprias roupas enquanto ela abria a porta e chamava suavemente o criado do corredor. Ele se levantou; Brie voltou e o abraçou.

Houve uma batida suave na porta.

— Vá — falou Brie.

Jan se dirigiu para a porta dos fundos, que levava até seu quarto, mas parou ali, com a mão na maçaneta. Rhianna abriu a porta e entrou no quarto. Fez uma mesura para Brie.

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou a criada.

Rhianna notou Jan na porta; ele pensou tê-la visto esboçar um sorriso para ele, mas ela voltou sua atenção rapidamente para Brie e sem olhar para ele novamente.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho... — disse Rhianna.

Jan abriu a porta e saiu do quarto. Ele sorriu, embora não soubesse o porquê.

Brie ca’Ostheim

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou Rhianna.

Brie notou o olhar de Rhianna deslizar rapidamente para Jan e se desviar com a mesma velocidade. Rhianna não voltou a olhar para Jan, embora a hïrzgin tenha sentido Jan permanecer no quarto atrás dela.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho...

Ela virou-se para deixar que Rhianna pegasse os laços do espartilho em suas costas. A atenção de Jan estava presa em algum ponto acima do ombro de Brie, mas ele pareceu se libertar para encontrar os olhos de Brie. Jan sorriu para ela com um pouco de culpa, pensou Brie, em seguida, abriu a porta do quarto de vestir. Ele meneou a cabeça para Brie assim que que Rhianna puxou os laços, fechando a porta atrás de si. Brie olhou para o espelho na penteadeira, observando Rhianna através da superfície prateada. Ela não havia erguido o olhar para ver Jan sair; isso agradou Brie. Talvez eu esteja enganada... A garota — não, a jovem — era bonita o suficiente, com braços estranhamente musculados. Seus cabelos eram tão negros quanto as asas de um corvo, e seus olhos eram de um tom azul-claro estranhamente contrastantes com o cabelo e o rosto de pele morena-escura...

Quase todos os casos de Jan tinham sido com mulheres de cabelos negros, Brie percebeu. Ela se perguntava o que o marido buscava encontrar nelas.

Rhianna era provavelmente cinco ou seis anos mais velha que Elissa. Não mais.

— Pronto — disse a criada, atrás dela, com um leve sotaque que Brie não conseguia identificar. — Está confortável, hïrzgin? Eu posso soltar um pouco se os laços estiverem apertados demais...

— Está ótimo. Traga a minha tashta... ali, aquela na cama...

Brie observou Rhianna pegar a roupa e enrolar a barra cuidadosamente nas mãos.

— Então Rance colocou você no nosso corpo pessoal de funcionários?

— Sim, hïrzgin. Devo admitir que fiquei surpresa com isso, logo depois de ser contratada, mas ele disse que me saí bem no serviço e que tinha se aberto uma vaga inesperada.

— Sim, Rance está sempre de olho em vagas que beneficiem o hïrzg — respondeu Brie. — É uma de suas melhores qualidades, com certeza.

Rhianna pareceu intrigada, como se tivesse percebido algo nas entrelinhas, mas não soubesse exatamente como responder. Ela levou a tashta até a hïrzgin e a colocou sobre a cabeça dela, que erguia os braços.

— Aqui, deixe-me encontrar as mangas para a senhora, hïrzgin. Terei cuidado com seu cabelo...

Rhianna deslizou a tashta devagar, e Brie se endireitou para que as pregas caíssem sobre o resto de seu corpo. Rhianna ficou de joelhos para amarrar a faixa em volta da cintura da hïrzgin.

— Esse tecido é lindo, hïrzgin. Tem um desenho e uma cor tão bonitos, e lhe cai tão bem...

— Rhianna, você não precisa me elogiar.

O rosto da jovem ficou vermelho. Brie não viu malícia em sua expressão, apenas um genuíno embaraço.

— Hïrzgin, eu não quis... Disse apenas o que pensei... Desculpe-me...

Brie levou um dedo aos próprios lábios e sorriu delicadamente.

— Shhh. Não precisa se desculpar, minha cara. Eu gostaria... Bem, eu gostaria que, já que passaremos muito tempo juntas, nós pudéssemos confiar uma na outra.

Na verdade, Rhianna ficou mais vermelha ao ouvir isso. Ela hesitou, parecendo procurar uma resposta.

— Ah, a senhora pode confiar em mim, hïrzgin.

— Então — falou Brie, ainda sorrindo —, se, digamos, o hïrzg confidenciasse algo para você que eu deva saber como esposa dele, você me diria, não é?

O rubor intensificou ainda mais, o que revelara tudo o que Brie queria saber. Jan já tinha se aproximado dela...

— Ora, sim, hïrzgin — gaguejou Rhianna. — Eu diria. É claro.

— Ótimo.

Brie tocou o rosto da jovem. Tão macio, tão intocado... mas então seus dedos encontraram uma cicatriz ondulada ao longo do maxilar de Rhianna. Uma facada? Ela ficou intrigada com isso, mas ergueu a criada com a mão. Sentou-se novamente na cadeira diante do espelho, abriu a caixa de joias e tirou um colar.

— Aqui — disse Brie ao entregar a joia para Rhianna. — Acho que isto combinará com a tashta. Coloque em mim, por favor...

Enquanto a criada colocava o colar em volta de seu pescoço e prendia o fecho, Brie observava o rosto de Rhianna, conjecturando.

Niente

Da primeira vez que os tehuantinos tomaram Karnor, a principal cidade da ilha de Karnmor, eles entraram no porto com os navios escondidos por uma bruma mágica. Desta vez havia muito mais embarcações na frota, e Niente mandou que os nahualli invocassem uma tempestade mágica assim que vissem o vulcão da ilha surgir no horizonte. A tempestade irrompeu bem à frente da vanguarda dos navios de guerra, a escuridão de chuva torrencial e relâmpagos violentos impediu que eles fossem avistados rapidamente pela marinha dos Domínios, uma tempestade que tinha a intenção de instigar o inimigo a ancorar suas embarcações na segurança do porto.

Porto este que, quando os nahualli dissipassem a tempestade, já não seria mais tão seguro, porque o trio dos maiores navios de guerra tehuantinos se esconderia na entrada do porto, para impedir que qualquer embarcação dos Domínios escapasse para alertar o continente. Ao mesmo tempo, a maior parte da frota se separou e seguiu para o norte, depois para leste, contornando a ilha, todos menos um dos navios — o Yaoyotl em que Niente e o tecuhtli Citlali navegavam — que ficaria bem longe da costa.

O Yaoyotl ancorou em alto mar, no lado norte da ilha, ao anoitecer, a quilômetros de distância de Karnor, enquanto o resto da frota seguiu adiante. Niente, com Atl e vários nahualli, assim como um grande contingente de guerreiros, desembarcaram do navio em botes a remo carregados com bolsas de couro. Eles escalaram os flancos do monte Karnmor, o vulcão em cujas encostas a cidade tinha sido construída.

Niente tinha passado dias espiando na tigela premonitória. Tinha visto esta cena diversas vezes, e pareceu-lhe estranho vivenciá-la na realidade agora. Enquanto os tehuantinos subiam ao cair da noite, do outro lado da montanha eles podiam vislumbrar clarões de luz: os nahualli a bordo dos navios em guarda no porto de Karnor arremessavam bolas de fogo de areia negra na direção da frota inimiga, como se estivessem preparando um ataque frontal à cidade. Tudo isso era uma simulação e uma distração — para manter a atenção dos orientais no porto, e não na montanha atrás da cidade. Se o que a tigela premonitória tinha mostrado para Niente estivesse correto, a cidade seria destruída, mas não seria saqueada.

A própria terra destruiria a cidade.

Niente consolou-se com a ideia de que a descida seria bem mais fácil do que a subida. Ele ficou exausto rapidamente com a subida, embora não carregasse nada além de seu cajado mágico, enquanto os demais carregavam as bolsas de couro. Suas pernas e quadris doíam, e suas sandálias estavam rasgadas e gastas. As rochas deixaram longos arranhões em suas pernas e braços devido aos tropeços que Niente dera ocasionalmente, e o sangue agora formava crostas escuras. O mero esforço de colocar um pé diante do outro era exasperante, ele desejava que Axat jamais tivesse lhe mostrado esse caminho. Seu filho caminhava ao seu lado, ajudando-o ocasionalmente, mas ele tentava não depender de Atl — não era bom para o nahual demonstrar fraqueza. Se os outros nahualli sentissem que Niente estava vulnerável, um deles poderia desafiá-lo pelo título, e ele não podia arriscar isso agora ou tudo em que apostara estava perdido.

Niente fez um esforço para continuar caminhando, para conter os gemidos que ameaçavam escapar de seus lábios.

— Estamos quase lá — disse Niente finalmente para Atl, falando de maneira entrecortada, a cada tomada de fôlego. — Logo ali, em torno da saliência da montanha.

Na direção em que Niente apontou, um coluna de fumaça maculava o céu iluminado pela lua. Ele sabia o que veria ali, quando eles dessem a volta no cume do lado sul da montanha: uma fumarola sibilante e vaporosa expelindo o hálito amarelo e sulfúrico da terra. Havia várias aberturas como essa na área, bem acima e com vista panorâmica para a cidade — e esse era o destino dos tehuantinos.

— Ótimo — disse Atl.

Mesmo ele parecia estar sem fôlego. Atl olhou para a encosta abaixo, para a fila de nahualli e guerreiros tatuados que os seguiam. Ao longe, reluzindo na água que refletia o luar, o Yaoyotl esperava seu retorno, com as velas recolhidas no momento.

— O tecuhtli não parecia estar inteiramente satisfeito com o senhor — comentou Atl.

— O tecuhtli Citlali preferia que nós saqueássemos a cidade — respondeu Niente. — Como todo guerreiro, ele prefere o choque do aço, o cheiro do sangue e os gritos daqueles que caem diante de si. O que estamos fazendo parece injusto para ele.

Ele fez uma pausa para descansar por um momento, permitindo-se apoiar em Atl.

— Eu prometi a ele que Axat tinha me mostrado que ele terá muitas oportunidades de demonstrar suas habilidades como guerreiro.

Eles podiam ver não só os clarões de luz do bombardeio de areia negra sobre os navios dos Domínios; como também podiam ouvir, com um atraso estranho e desconexo, o trovejar das explosões. Niente subiu em uma saliência rochosa e pôde ver as luzes de Karnor abaixo deles se espalhando por várias plataformas nas encostas mais baixas até a água.

Não havia tropas dos Domínios protegendo a cidade, como Axat prometera em Suas visões. Ao longe, as águas reluzentes do porto foram acesas pelo incêndio nas embarcações em chamas. Enquanto Niente assistia, outra bola de fogo desenhava um arco da entrada do porto até o agrupamento de navios de guerra dos Domínios. O som chegou aos tehuantinos dois segundos depois, um ruído surdo que ele quase pôde sentir em seu peito.

— Rápido! — disse Niente para os nahualli, que davam a volta pela saliência.

Eles pararam sobre um ligeiro declive onde o monte Karnmor parecia inchar, um cenário dominado por buracos de vapor que assobiavam e borbulhavam. Niente, com a ajuda de Atl, orientou os nahualli a posicionarem os cajados mágicos — feitos especialmente para esse propósito e preparados com possantes feitiços para moldar a terra — em um grande círculo em volta das crateras. As bolsas cheias de areia negra, levadas pelos guerreiros, foram postas em uma única pilha grande, com a altura de um homem e o comprimento de dois homens. Atl, ao lado de Niente, balançou a cabeça.

— Tanta areia negra — disse o rapaz. — Nós poderíamos destruir a Teocalli Axat com isso.

— Com isso — disse Niente —, nós destruiremos a cidade deles inteira.

— Espero que o senhor esteja certo, taat. Se não der certo...

— Não falhará. Axat prometeu. Eu vi.

— Eu sei, mas eu tenho olhado na água, como o senhor me mostrou, e não vi nada disso.

Niente deu um tapinha no ombro do filho.

— As visões de Axat vêm devagar e em Seu próprio tempo. Tenha paciência. Ela falará com você em breve. Você saberá quando acontecer; Sua voz é ríspida e dolorosa de se ouvir.

E rezo à Ela para que, quando chegar o momento, você não veja o que eu vi. Não veja o que estou fazendo. Isso ele não disse.

Atl assentiu. Niente, grunhindo pelo esforço, cravou seu cajado mágico na parede de areia negra, com o punho voltado cuidadosamente para o leste. O nahual observou o cenário e assentiu — sim, era isso o que ele tinha visto.

— Terminamos aqui — ele disse para Atl e os demais, com a voz trêmula pelo cansaço. — É hora de voltarmos para os navios.


O tecuhtli Citlali balançou a cabeça calva, tatuada com uma selvagem águia rubro-negra com suas garras perpassando seu crânio e rosto. Seus olhos envoltos pelas garras do pássaro encaravam Niente.

— Nada aconteceu — ele disparou. — Podíamos ter tomado a cidade com nossos navios e guerreiros a esta altura. Podíamos ter dominando a ilha inteira. Se você desperdiçou a areia negra...

— Tenha paciência, tecuhtli — respondeu Niente. — Ainda não chegou a aurora. E o que acontecerá vai aterrorizar os orientais mais do que qualquer ataque.

O Yaoyotl e toda a frota, sob a ordem relutante de Citlali, tinham se afastado de Karnmor durante a noite. A ilha era uma escuridão vazia em contraste com as estrelas remanescentes ao longo do horizonte ocidental que se iluminava, enquanto a frota tehuantina — sob brisas estáveis que vinham do leste — navegava em direção ao Strettosei ao norte, como Niente pedira, o mais longe possível da ilha. A visão da tigela premonitória tinha sido clara, havia a possibilidade de este futuro se tornar realidade desde que Niente seguisse o caminho que Axat lhe mostrara. Os guerreiros supremos se reuniram em volta do tecuhtli Citlali, carrancudos e resmungando. Os nahualli do alto escalão, Atl entre eles, também o observavam, e seus olhares eram bem mais avaliadores, sempre à procura de algum sinal de fraqueza fatal da parte do nahual.

Ele não mostraria tal sinal; Axat não permitiria. Axat tinha lhe mostrado a fraqueza da montanha. Tinha sussurrado para ele que a montanha estava prestes a ejetar sua terrível vida outra vez, assim como as montanhas fumegantes de sua própria terra. Com a ajuda Dela, Niente podia acelerar o despertar. Ele olhou para o leste, onde faixas douradas no céu anunciavam o iminente nascer do sol sobre as colinas de névoas azuladas do continente. O céu oriental brilhava agora. Niente protegeu os olhos quando a borda do sol surgiu no horizonte. Feixes dourados flechavam as nuvens, e em direção a Karnmor e ao oeste.

O nahual voltou-se para a ilha. Esperou. Axat, não me abandone...

A ponta do monte Karnmor foi tocada pela luz do sol agora, os raios de sol deslizavam em direção aos lençóis de vapor branco que o ocultavam. Niente podia visualizar a luz tocando os punhos dos cajados mágicos dispostos lá, ainda que esse lado do vulcão estivesse escondido dos tehuantinos agora. Os cajados mágicos tinham sido encantados para soltar os feitiços em seu interior quando fossem tocados pela luz do sol. A saliência de terra se abriria, uma nova cratera apareceria, e a areia negra cairia em cascata em seu interior, e o conteúdo empoeirado seria derramado das bolsas no momento em que o cajado mágico que Niente cravou visse a luz e cuspisse fogo...

Os lençóis de vapor em torno do monte Karnmor foram rasgados em pedaços e substituídos por um jorro de fumaça escura. Não houve som, não por longos segundos, nem mesmo quando a fumaça negra foi consumida por uma explosão bem maior vermelha, laranja e amarela disparada da lateral da montanha. Uma fonte monstruosa de fumaça cinza começou a subir em direção ao céu, e as brisas do leste desmanchavam as bordas durante sua ascensão.

Os tehuantinos então ouviram o som: o estampido agudo da areia negra seguido do lamento divino da montanha em agonia. O som os atingiu como um soco: e o tecuhtli Citlali juntou-se a ele com um urro, os guerreiros e nahualli vibraram, e as comemorações ecoaram nos outros navios. Niente podia ver o fogo espesso descer pelo monte Karnmor em direção à cidade escondida. Ele imaginou a lava escorrendo sobre os habitantes aterrorizados e incendiando tudo em seu caminho. A cidade seria tomada pelo pânico, e após o fogo, viria uma espessa chuva de cinzas...

O navio estremeceu, como se o próprio mar os tivesse levantado e deixado cair novamente. Ondas de cristas brancas avançavam para o norte. A frota balançou nas longas ondas, os mastros oscilavam para frente e para trás. A grande nuvem tinha subido tanto que os tehuantinos tiveram que inclinar suas cabeças para trás a fim de vê-la. Ela bloqueou o céu da manhã que clareava e estendia seus braços escuros e agitados na direção leste.

Este seria um dia escuro, cinzas quentes cairiam do céu em vez de chuva, mas os tehuantinos estavam protegidos do pior.

— Nahual — berrou Citlali contra o rugido contínuo da erupção vulcânica. — Eu não devia ter duvidado de você.

A boca do tecuhtli carregava um largo sorriso aberto.

— Você é realmente o maior nahual de todos, e com você, não há dúvidas quanto a nossa vitória.

Todos os guerreiros e nahualli concordaram e vibraram aos berros. A expressão de Atl era de orgulho.

Niente deveria sentir um grande contentamento. Em vez disso, ele teve que se esforçar para retribuir o sorriso.


CONTINUA

PROGRESSÕES

Niente

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Varina ca’Pallo

Allesandra ca’Vörl

Rochelle Botelli

Varina ca’Pallo

Jan ca’Ostheim

Brie ca’Ostheim

Niente


Niente

O mar estava calmo, e os nahualli que Niente designou para evocar os ventos trabalhavam intensamente com seus cajados mágicos. A proa dos navios esculpia longas brumas de água branca. Niente contemplava do castelo de popa do Yaoyotl, que começara sua vida como um navio de guerra dos Domínios até ser capturado há 15 anos. O Yaoyotl já tinha feito essa travessia uma vez, quando o tecuhtli Zolin realizara sua tola e fatal invasão nos Domínios. Agora a embarcação seguia para o leste outra vez, desta vez acompanhada por trezentos navios da marinha tehuantina, três vezes a quantidade que Zolin usara, com um exército a bordo do tamanho daquele que esmagara as forças dos Domínios em Munereo e nas outras cidades da terra de seus primos, no litoral do mar Oriental. Niente podia ver as velas sobre as amuradas do Yaoyotl ondulando como uma revoada de grandes pássaros brancos marinhos cobrindo o oceano.

A vista era formidável. Quando os orientais vissem a frota se aproximando, eles estremeceriam de medo. Niente sabia disso; ele tinha visto nas visões de Axat, na tigela premonitória. E viu novamente, neste instante, ao baixar o olhar para a tigela de latão diante de si. Niente tinha polvilhado o recipiente com pó mágico e usado o poder do X’in Ka para abrir o caminho da visão. Agora ele espiava as brumas esverdeadas, com o filho ao seu lado e sob a supervisão cuidadosa de seu assistente nahuali. Em meio às brumas, as cenas passavam rapidamente por Niente: ele viu a grande ilha de Karnmor despejar uma imensa coluna de fumaça e cinzas no céu enquanto o chão tremia e o próprio mar se contorcia em agonia. Viu a grande frota tehuantina subir pela boca do rio A’Sele, viu os exércitos se espalharem pela praia, viu as muralhas de Nessântico e o exército do inimigo reunido ali.

Mas ele franziu a testa ligeiramente ao fixar o olhar; antes, a cenas tinham a nitidez da realidade. Agora, estavam borradas e ligeiramente obscuras, como se as estivesse vendo mais com os próprios olhos do que com a ajuda de Axat. Isso o preocupou.

Onde está o Longo Caminho? Por que a Senhora o esconde de mim, Axat?

Não, lá estava ele... Mais uma vez, Niente viu o tecuhtli e o nahual mortos, e atrás deles, o Longo Caminho. Mas este, também, não estava tão nítido quanto antes. Várias visões interferentes deslizavam entre ele e o caminho, como se Axat estivesse dizendo que o curso dos acontecimentos estava contorcendo e revirando os fios do futuro. Niente espiou com mais atenção, tentou ver se ainda conseguia encontrar o rumo do Longo Caminho. Ele voltou atrás no tempo, viu a miríade de possibilidades se desdobrando...

O nahual sentiu seu filho, Atl, se aproximar de seu ombro, olhando fixamente para a tigela premonitória com a respiração presa, como se tivesse medo de que o olhar penetrasse as brumas e destruísse a visão. Niente sabia o que viria a seguir; e sabia também que não podia deixar que Atl visse. Ele exalou bruscamente, balançando as brumas verdes, e agarrou a tigela. Com um movimento brusco, Niente jogou a água no mar sobre a amurada, sibilando friamente. No mesmo instante, Niente sentiu o cansaço do feitiço afetá-lo e cambaleou ali mesmo. Atl passou o braço por sua cintura e o amparou.

O nahual deu um longo suspiro e pousou a tigela premonitória de volta na mesa. Ele se endireitou, e Atl se afastou dele.

— Limpe isto — disse Niente para o assistente mais próximo.

O homem se apressou e pegou a tigela de latão, inclinando a cabeça para Niente e saindo depressa.

— Vou descansar agora — informou Niente para os demais — e falarei com o tecuhtli Citlali mais tarde. Não havia nada de novo na visão.

Os nahualli fizeram uma mesura. Niente podia sentir seus olhares sobre si: será que ele estava mais fraco do que antes? Será que suas rugas tinham ficado mais fundas em seu rosto, suas feições mais distorcidas e deformadas, e seus olhos mais brancos de cataratas do que antes? Será que este era o momento de desafiá-lo, de se tornar nahual? Era nisso em que os nahualli pensavam, todos eles.

Seu filho talvez pensasse ainda mais que qualquer um dos outros.

Niente não podia permitir que isso acontecesse. Não ainda. Não até que ele cumprisse a visão que vislumbrara na tigela. O nahual fez um esforço para ficar tão ereto quanto sua coluna curvada permitia para sorrir seu sorriso torto e fingir que seu corpo não incomodava mais que o normal para um homem de sua idade.

Os nahualli, com protestos educados, começaram a se dirigir a suas outras obrigações.

— O senhor interrompeu a visão antes que estivesse completa — falou Atl baixinho.

— Não havia mais nada para ver.

— E como o senhor sabe disso, taat? O senhor não me disse que Axat às vezes altera a visão, que os atos dos que estão presentes na visão podem mudar o futuro, que a pessoa deve estar sempre atenta às mudanças para se manter no melhor caminho?

— Não havia mais nada — repetiu Niente.

Ele notou a dúvida no rosto do filho, e a desconfiança também. Niente forçou um tom agressivo em sua voz, como se tivessem voltado 20 anos no tempo e Atl tivesse quebrado uma tigela na casa.

— Ou você está pronto para me desafiar como nahual? Se estiver, então pegue seu cajado mágico.

Niente estendeu a mão para pegar seu próprio cajado, apoiado à mesa do castelo de popa. A ponta nodosa estava gasta pelos anos de uso, as figuras entalhadas dançavam sob seus dedos. Ele apoiou-se no cajado mágico como se fosse uma bengala, permitindo que suportasse seu peso.

Atl balançou a cabeça, obviamente contrariado em abandonar a discussão.

— Taat, eu também tenho o dom da premonição. O senhor sabe disso. Pode enganar os outros nahualli, mas não a mim. O senhor viu alguma coisa que não quer que eu veja. O que é? O senhor viu sua morte, como fez com a do tecuhtli Zolin e Talis? Foi isso?

Niente se perguntou se o que ouviu na voz de Atl era medo ou expectativa.

— Não — ele respondeu, esperando que o jovem não notasse a mentira. — Você está enganado, Atl. Não aprendeu tanto assim sobre premonição para saber.

— Porque o senhor não permite. O senhor sempre diz “Olhe para mim”. “O preço a pagar caro demais”. Bem, taat, Axat me deu o dom, e seria um insulto a Ela não usá-lo. Ou o senhor tem medo que eu queira ser o nahual no seu lugar?

O vento da maresia agitou o longo cabelo escuro de Atl; a vela sobre eles retumbou e estalou. O capitão do Yaoyotl berrou ordens, e os marinheiros correram para seus afazeres.

— Você será nahual — disse Niente para o filho. — Um dia. Tenho certeza disso.

Eu vi... Ele pensou, mas não ousou dizê-lo por medo de que isso alterasse o futuro.

— Axat lhe deu o dom, sim. E eu... eu tenho sido um mau taat e um mau nahual por não lhe ensinar tudo que sei. Talvez, talvez eu sinta um pouco de inveja do seu dom.

Niente viu a expressão no rosto de Atl: outra mentira, pois não havia inveja dentro dele, apenas um pavor lento, mas ele sabia que as palavras convenceriam o filho.

— Eu gostaria de começar a compensar você por isso, Atl. Agora: esta noite, depois de eu conversar com o tecuhtli Citlali. Venha à minha cabine quando me trouxerem o jantar, e eu começarei a mostrar a você. Pode ser?

Em resposta, Atl deu-lhe um abraço vigoroso. Niente sentiu seu filho beijar o topo de sua cabeça calva. Ele foi solto bruscamente e viu o filho sorrindo.

— Eu estarei lá — prometeu Atl.

O rapaz começou a se virar e parou. Ele olhou para o pai, sobre os ombros.

— Obrigado.

Niente meneou a cabeça e respondeu com seu sorriso torto, mas não havia nenhum ardor no gesto, nenhuma alegria.

Ele se perguntou por quanto tempo conseguiria manter a visão de Axat em segredo. E se — caso Atl viesse a se dar conta do que a visão significava — ele conseguiria alcançar essa visão de alguma forma.

Sergei ca’Rudka

Os campos ao longo da Avi a’Firenzcia estavam coloridos com as tendas do exército da Coalizão. “Em manobras”, dissera o assistente do corpo de funcionários do palácio que escoltou Sergei da fronteira até Brezno, mas ambos sabiam o que realmente era aquilo: um ajuntamento de tropas e uma ameaça direta. Um comunicado vindo de Il Trebbio foi entregue a Sergei antes que ele cruzasse a fronteira, informando-o a respeito da incursão de um batalhão pelo território de Il Trebbio sob o comando do starkkapitän ca’Damont. O batalhão havia recuado, mas obviamente vinha sondando para ver que resposta provocaria.

E agora essa concentração de tropas perto da fronteira de Nessântico...

Jan, o que você está aprontando? Quer mesmo cutucar os Domínios com essa vara curta?

Sergei sabia, enquanto sua bengala batia nas lajotas de mármore do Palácio de Brezno a caminho da reunião com o hïrzg Jan, como isso acabaria. A alça de uma pequena bolsa diplomática estava pendurada em seu ombro, e ele tinha adquirido habilidade suficiente ao longo dos anos para abrir a carta selada em seu interior e ler o que Allesandra escrevera ali. Rance, o assistente do hïrzg, fez uma mesura quando Sergei se aproximou da sala de recepção exterior dos aposentos de Jan. Sua expressão era agradável, mas havia desdém sob ela: Sergei sabia que Rance era um dos que aconselhavam o hïrzg a manter a Coalizão intacta e recusar qualquer acordo com os Domínios.

— O hïrzg acabou de entrar — disse o homem —, mas pede a sua compreensão, pois está com a hïrzgin e seus filhos. Uma marca da ampulheta...

— Eu adoraria vê-los — respondeu Sergei — para poder levar um relatório sobre a aparência das crianças à vavatarh delas.

Rance deu de ombros e abriu um sorriso fingido.

— Só um momento, então, e informarei ao hïrzg — disse Rance, que se voltou para um dos criados. — Por obséquio, acompanhe o embaixador até a sala externa e sirva-lhe alguns petiscos.

Rance fez outra mesura e desapareceu no corredor. Sergei acompanhou o criado até uma das salas de espera e aceitou uma taça de vinho e um prato de rétes doces de queijo. Não muito tempo depois, Rance voltou e acompanhou o embaixador por um corredor curto até outra porta. Do outro lado, Sergei ouviu várias vozes e risadas de crianças. O assistente deu duas batidas secas e a porta se abriu.

Os dois filhos mais velhos, Elissa e Kriege, brincavam com um tabuleiro de chevaritt sobre a mesa, observados pelo hïrzg; o filho homem mais novo, Caelor, assistia por trás dos ombros do irmão. A caçula, Eria, estava sentada no colo de sua matarh, perto da janela, e brincava com uma pilha de tricô, enquanto uma babá dobrava fraldas e roupas em um banco perto de uma das portas de saída.

— O embaixador ca’Rudka — anunciou Rance enquanto Sergei entrava na sala.

O som da bengala foi abafado pelo tapete espesso. Elissa virou-se para olhar.

— Vatarh, é o Velho Nariz de Prata!

— Elissa! — Jan lançou um olhar de desculpas para Sergei. — Isso é terrivelmente grosseiro.

— Bem, é assim que o starkkapitän ca’Damont o chama — respondeu ela.

Elissa fechou a cara e cruzou os braços. Uma das peças do jogo, um téni-guerreiro, ainda estava em sua mão.

— Mesmo assim, você tem que pedir desculpas ao embaixador — falou Jan, mas Sergei tossiu suavemente e interrompeu o hïrzg.

— Não é necessário, hïrzg. Já fui chamado de coisas piores, e ao menos ambas as partes do apelido são verdadeiras. A propósito, há presentes para as crianças, enviados por sua mamatarh nos aposentos da embaixada; eu os mandarei para cá hoje à tarde.

— Presentes!

O grito tinha vindo das três crianças mais velhas ao mesmo tempo, e até mesmo Eria tinha tirado os olhos do emaranhado do tricô da hïrzgin Brie.

Sergei riu — na verdade, os filhos de Jan e Brie o divertiam. Eles eram espertos, encantadores e saudáveis. Era uma pena que Allesandra não os conhecesse tão bem quanto ele.

— Se vocês falarem com Rance, aposto que ele mandaria um mensageiro pegar os presentes agora, se seus vatarh e matarh aprovarem.

— Vatarh? Matarh? — berrou Elissa imediatamente. — Podemos?

Brie sorriu complacentemente e olhou para Jan.

— Podem ir — ela disse para os filhos, entregando Eria para a babá. — E esperem pelos presentes na sala de brinquedos, por favor. Não fiquem incomodando o Rance.

As crianças saíram com a babá e chamaram Rance.

— Elas são crianças adoráveis — comentou Sergei quando saíram. — Vocês dois tiveram muita sorte.

— Isto é o que dizem as pessoas que não são pais — falou Brie rindo.

— Estou certo de que todos os seus filhos se comportam perfeitamente, o tempo todo.

Tanto Brie quanto Jan riram.

— Vamos deixá-los com você enquanto estiver aqui, Sergei — disse o hïrzg. — Isso vai fazê-lo mudar de ideia.

Nesse momento, o sorriso foi recolhido, e Jan acenou para que Sergei se sentasse em uma das cadeiras à mesa. O embaixador notou que o hïrzg pousou o olhar sobre a bolsa diplomática em sua cintura.

— Mas estou certo de que você não veio aqui para nos elogiar ou entregar presentes. O que minha matarh tem a dizer? Da última vez que esteve aqui, você disse que esperava intermediar um acordo e fazer com que ela me nomeasse o a’kralj. Ela concordou?

Sergei olhou para o jogo de chevaritt em andamento à sua frente antes de responder. Eles disputavam uma partida de dois jogadores, e o número de peças restantes no tabuleiro era mais ou menos igual. No entanto, Sergei viu um erro na maneira como as peças de Kriege estavam dispostas: se Elissa andasse três espaços com a vanguarda, ela estaria atrás das linhas de Kriege. O garoto teria que trazer três chevarittai para se proteger — e isso deixaria dois fortins abertos, sendo sitiados por ambos os flancos.

Ele se perguntou se Elissa também tinha visto aquilo. Pelo posicionamento das peças, Sergei suspeitava que sim.

— Elissa sempre vence — comentou Jan, evidentemente notando a atenção que Sergei dispensara ao tabuleiro. — Gosto de pensar que, pelo menos no jogo, ela não nega sua origem.

Com os dedos espalmados, Jan andou com as peças da vanguarda da filha: três espaços à frente. Sergei ergueu os olhos e coçou a lateral do nariz.

— Ah, então o senhor também viu.

Jan sorriu.

— Da mesma maneira que o fato de você não ter respondido à pergunta que fiz também me diz qual foi a resposta da kraljica.

Sergei enfiou a mão dentro da bolsa diplomática e retirou a carta novamente selada. Ele a pousou na mesa e bateu com o indicador no papel grosso ao lado do selo de cera vermelha.

— A kraljica ofereceu uma... contraproposta.

Jan olhou para a carta, sem estender a mão para pegá-la.

— Então vamos ouvi-la. Imagino que você já tenha lido, embora o selo ainda esteja intacto.

— Isto seria impróprio da minha parte, hïrzg — respondeu Sergei.

Ele ouviu Brie pigarrear e olhou para ela; sua atenção estava voltada para o tricô. Brie pareceu sentir a pressão do olhar de Sergei e falou sem tirar os olhos das agulhas.

— Allesandra diz que se continuarmos a ameaçar suas fronteiras, ela tomará uma atitude — falou a hïrzgin. — Ela interpretou a oferta de Jan como uma “capitulação”, não como um acordo. Ela sugere, como alternativa, que o hïrzg deveria dissolver sua tola Coalizão e tornar-se novamente “o braço forte” dos Domínios.

Sergei quase riu.

— A senhora tem ouvidos no palácio, hïrzgin? “Capitulação” é exatamente a palavra que a kraljica usou.

Brie pousou o tricô em seu colo e ergueu os olhos.

— Eu sei como ela pensa — respondeu a hïrzgin, com um sorriso espreitando os cantos da boca. — Meu marido pensa da mesma maneira.

— Brie... —

Jan começou a protestar, mas foi calado pela risada sutil da esposa.

— Isso não é uma crítica, meu amor — falou Brie. — Eu admiro você, sempre admirei. Mas você é filho da sua matarh.

Ela voltou a tricotar, e as agulhas soaram como espadas se chocando ao longe.

— E este é o problema; se entre vocês dois houvesse um líder medíocre, então não haveria Domínios e Coalizão, mas um único império.

— Este foi o meu erro — admitiu Jan. — Eu tive a oportunidade de fazê-lo há 15 anos. Podia ter tomado o Trono do Sol.

Ele olhou para Sergei, que exibia uma expressão cautelosamente neutra: nenhum assentimento, nenhuma expressão de concordância ou discordância.

— Mas eu era jovem e queria ensinar uma lição a minha matarh. Em vez disso, descobri que sou o aluno.

Novamente, Brie ameaçou sorrir.

— Vocês dois querem a mesma coisa, sempre quiseram. Infelizmente, vocês dois também consideram que sua visão de mundo é a certa.

A hïrzgin pousou o tricô no banco ao seu lado, se levantou e se dirigiu até Jan. Ela pegou o braço do marido, apoiou-se nele e beijou seu rosto.

— Eu te amo, meu querido, e compartilho de sua visão, mas também compreendo como sua matarh enxerga as coisas.

Jan passou o braço pela cintura da esposa e puxou-a para si. Sergei se levantou, com os joelhos estalando como gravetos secos sendo pisados. Ele apoiou-se na bengala e ajeitou o sobretudo.

— Deixarei que vocês dois leiam a resposta da kraljica e redijam a sua para mim, embora eu possa imaginar qual seja. Se quiserem, podemos discutir sobre a carta e suas possibilidades para chegarmos a termos mais equitativos. Gostariam de jantar na embaixada hoje à noite? Fui informado de que temos um novo chef, especializado em iguarias de Navarro...

— Nós adoraríamos — Brie respondeu.

Jan assentiu um momento depois.

— Então vejo vocês hoje à noite, uma virada da ampulheta depois da Terceira Chamada? Ótimo...

Sergei fez uma mesura para o casal, se dirigiu até a porta e bateu nela com a bengala. Um dos criados do corredor abriu para ele, que se perguntou, ao caminhar pelo corredor até o portão onde a carruagem o aguardava, quanto tempo levaria antes que filho e matarh estivessem novamente em guerra.

Nico Morel

Eles montaram o palanque no Parque do Templo rapidamente, não muito longe do antigo templo que ficava ali — o mais velho (e menor) dos templos da fé concénziana em Nessântico. A princípio, os morellis concordaram que Ancel seria o orador e eles permaneceriam ali não mais do que uma marca da ampulheta — tempo este que seria suficiente, com sorte, para que um utilino ou a Garde Kralji não reagissem, ainda que Nico tivesse preparado distrações caso as autoridades chegassem. O próprio Nico não discursaria; ele assistiria detrás do palanque com Liana e o resto do círculo interior dos morellis, pronto para fugir e desaparecer nas densas ruelas do Velho Distrito se as autoridades atacassem a manifestação.

Mas a multidão era maior do que o previsto. Notícias da manifestação tinham se espalhado de boca em boca, através de cartazes enigmáticos nas paredes de Nessântico que apenas seus seguidores entenderiam, mas a resposta tinha sido muito maior do que qualquer um deles imaginara. Nico estava certo de que alguma informação sobre a manifestação teria vazado para o pessoal do comandante, mas eles procuraram cuidadosamente por qualquer sinal que indicasse que eles seriam impedidos de falar. Nico não ficou surpreso ao não encontrar nenhum: o próprio Cénzi o protegia, era sua Voz Absoluta. Após o encontro com Varina, ele tinha voltado para casa com a cabeça doendo e os sentimentos confusos. Passou o resto do dia rezando e, nessa noite, Cénzi falou com Nico em seus sonhos: de maneira clara, sem enganos. Ele tinha dito a Nico o que precisava ser dito.

Cénzi falaria através de Nico hoje. E Nico obedeceria, como qualquer servo devia fazer. Ele escreveu as palavras que Ancel diria; Liana já tinha colocado o pergaminho no palanque. O que surpreendeu Nico foi o fato de que, no mesmo momento em que seus seguidores começaram a montar a pequena plataforma, a multidão começou a se reunir. Os primeiros a chegar foram os morellis da cidade, que já eram fiéis. Mas a multidão continuava a crescer, muito além do número de pessoas que já havia jurado publicamente sua lealdade a Nico. Espalhados pela multidão estavam robes verdes: os ténis da cidade, a maior parte do escalão dos e’ténis — os novos ténis, aqueles que podiam ter ouvido falar de Nico desde que ele voltou a Nessântico, mas que ainda não tinham tido a oportunidade de vê-lo discursar. Agora, no momento em que as trompas do templo anunciavam a Segunda Chamada, quando muitos na multidão deveriam estar nas missas, eles estavam aqui. Trezentas pessoas, pelo menos, talvez mais.

Aqui. Para escutar a palavra de Cénzi.

Você tem que discursar. Eles vieram ouvir você, ouvir Minhas palavras pelo dom da sua voz.

A compreensão o atingiu com força, como um golpe em sua têmpora. Ele quase cambaleou devido ao seu impacto. Liana agarrou o braço de Nico, sentindo sua reação.

— Nico...?

— Eu estou bem. Cénzi acabou de falar comigo.

Ele ouviu Liana respirar fundo.

— Há perigo?

— Não — respondeu Nico, quase rindo. — Exatamente o oposto. Ele quer que eu discurse.

— Você não pode — discordou Liana. — Todo mundo disse que é muito perigoso.

— Eu não corro perigo, não enquanto estiver sob a proteção de Cénzi.

Nico deu um tapinha em sua mão e, em seguida, acariciou sua barriga. Ele sentiu a criança se mexer sob sua mão e sorriu para Liana.

— Eu ficarei bem. Por favor, não se preocupe.

Ela franziu a testa, mas soltou seu braço. Ele sorriu para Liana e deu-lhe um beijo na bochecha, depois subiu rapidamente os dois degraus do pequeno palco onde Ancel já desenrolava o pergaminho. Nico foi recebido por um urro da plateia; Ancel desviou o olhar do pergaminho ao ouvir o som, olhou para o mar de mãos apontando para Nico, e virou a cabeça abruptamente. Sua voz mal conseguiu ser ouvida em meio ao urrar da multidão.

— Absoluto? Eu pensei...

Nico fez o sinal de Cénzi para ele.

— Eu ficarei bem, Ancel, mas agradeço se você ficar aqui comigo para vigiar os gardai. Cénzi... Cénzi quer que eu passe Sua mensagem para a nossa gente com minha própria voz.

Ancel arregalou os olhos e se curvou em uma longa reverência para Nico, fazendo o sinal.

— O pergaminho... Aqui está.

Ele entregou o papel para Nico, que sorriu para o amigo e balançou a cabeça.

— Eu não preciso disso. Cénzi me dará as palavras.

Outra mesura. Nico subiu no palanque e a multidão redobrou o barulho. Ele ergueu as mãos e fechou os olhos ao erguê-los para o céu. Ele podia sentir o sol em seu rosto e a adulação da multidão o atingir como um golpe físico.

— Pelo Senhor, Cénzi — sussurrou Nico. — Pelo Senhor.

Ele abriu os olhos e fez um gesto pedindo silêncio. Lentamente, a multidão obedeceu.

— Cénzi abençoa a todos vocês hoje — falou Nico.

Ele ouviu Cénzi se mesclar a sua voz, ouviu-a soar alta e retumbante no parque, como um e’téni usando o Ilmodo para amplificar sua Admoestação, ainda que Nico não tivesse criado tal feitiço. Não, esta era a presença de Cénzi, envolvendo o Segundo Mundo em suas palavras para que todos o ouvissem.

— Eu rezei, minha gente, e prestei atenção, e eu ouvi a Voz de Cénzi.

A última frase soou como um urro que atingiu a plateia e pareceu sacudir as árvores do parque, e as pessoas urraram de volta, sem dizer nada.

— O momento está chegando, Ele me disse, um momento em que teremos que fazer uma escolha, em que teremos que decidir se seguiremos Seu caminho ou o caminho dos fracos humanos. O momento está chegando, e está chegando em breve, meus amigos; muito em breve, teremos que mostrar para Ele que ouvimos Suas palavras e que as obedeceremos. As palavras estão lá para nós. Nós as ouvimos nas palavras do Toustour e da Divolonté. Nós as ouvimos nas palavras das Admoestações nos templos. Nós as ouvimos nas palavras dos profetas e dos ténis, mas...

Ele fez uma pausa momentânea, fechando os olhos e erguendo o rosto novamente.

— O fim dos tempos se aproxima de nós. Ele vem devagar, irreversível. Os ténis da Fé já não ouvem as palavras de Cénzi. Ah, eles as pronunciam, mas não as ouvem, não as sentem. As palavras do Toustour e da Divolonté deveriam golpeá-los como o próprio punho de Cénzi. Elas arrebentarão suas almas e as farão renascer, novas em folha, se vocês permitirem. Eu digo a vocês: é disso que nós precisamos agora. Precisamos nos abrir para Cénzi e deixar que Ele nos transforme em Sua lança!

As palavras emanaram como fogo da boca de Nico. A onda de calor que emergiu delas atingiu pessoas diante dele, que gritaram novamente sua convicção.

— Diga-nos, Absoluto! — alguém berrou, e todos a ecoaram, em uníssono.

— Diga-nos! Diga-nos!

Nico ouviu a multidão por vários segundos, enquanto seu peito arfava pelo esforço de falar. Finalmente, ele ergueu as mãos e todos se calaram novamente. Em meio ao silêncio, à quietude, Nico voltou a falar, e embora a voz não fosse mais que um sussurro, todos conseguiam ouvi-lo. Ele ouviu sua voz reverberar nas paredes do templo, do outro lado do parque.

— Cénzi me disse que não podemos mais tolerar os hereges entre nós. Não podemos tolerar nem mesmo aqueles que vestem os robes verdes mas que falham ao ouvir Suas palavras quando são ditas. O archigos e seus a’ténis falam com suas línguas falsas. Não podemos mais tolerar aqueles que este mundo abençoou com poder e dinheiro, mas que não enxergam que essas bênçãos derivam de Cénzi, não de si mesmos. Ele trará fogo e destruição. Trará morte e escuridão. Ele nos mostrará nossa estupidez para que todos vejamos, e quando Ele o fizer...

Outra pausa. Ele pronunciou cada uma das palavras a seguir claramente. Devagar. Cada uma em seu próprio tempo.

— Temos. Que. Responder.

As pessoas gritaram, aplaudiram, ergueram as mãos. Mas Nico, olhando por sobre a multidão, pôde ver atrás da última fila da multidão a Garde Kralji uniformizada, esquadrões de gardai que entravam aos borbotões no Parque do Templo.

— O sinal está chegando! — Ele berrou. — Nós o conheceremos em breve! Eu lhes prometo isso porque Ele me prometeu. Mas, olhem — Nico então apontou para a Garde Kralji —, existem aqueles que querem evitar que vocês ouçam as minhas palavras. Que querem me impedir de dizer a Verdade, porque a Verdade é a sua inimiga. Olhem!

A multidão se voltou para trás e viu a Garde Kralji, começando a berrar. Conforme os gardai abriam caminho à frente, tentando chegar ao palco, a multidão empurrava de volta. Os gardai reagiam com seus cassetetes. Algumas pessoas foram derrubadas com o ataque. Um e’téni na multidão soltou um feitiço: um jato de fogo que, rugindo, atingiu as fileiras de gardai.

De repente, virou um caos — muita gente na multidão avançou pelo novo buraco aberto entre as fileiras de gardai. Cassetetes subiram e desceram, e agora havia uma batalha campal no parque. Os apitos dos utilinos soaram, e o Ilmodo agora era usado contra a multidão. Uma rajada de vento controlado atingiu o palco e jogou o público mais próximo no chão, sobre a grama do parque, assim como jogou Nico sobre Ancel.

— Absoluto! — Ancel gritou alto em meio ao barulho da confusão. — Temos que ir embora! Agora!

Nico olhou ao longe. Não havia nada que ele pudesse fazer aqui, Cénzi estava mudo na sua cabeça.

— Eles não me ouvem — disse Nico. — Isto é desnecessário. Os fiéis não deveriam lutar entre si.

Mais gardai entravam no parque, alguns com uniformes da Garde Civile, armados com espadas e lanças em vez de cassetetes. Nico viu cabeças sangrando. Ele começou a se dirigir para a frente do palco, mas Ancel pegou seu braço. Liana tinha subido no palanque agora, juntamente com vários integrantes do círculo interno. Todos cercaram Nico.

— Vocês verão!

Nico berrou para a multidão, mas a voz era apenas sua voz agora, e ainda que o tivessem escutado, não lhe deram atenção. Nico estava exausto, tão cansado como se tivesse usado o Ilmodo. Ele caiu sobre as mãos dos seguidores, que o levaram rapidamente para o fundo do palco e escada abaixo.

— Terminamos aqui — disse Ancel para os demais. — Agora precisamos proteger o Absoluto e levá-lo embora. Rápido.

Nico pegou a mão de Liana enquanto seus seguidores cerravam o círculo ao seu redor, e eles fugiram para as profundezas do Parque do Templo, na direção do labirinto das ruas do Velho Distrito.

Varina ca’Pallo

A oficina de Pierre ficava no jardim dos fundos do terreno da Casa dos Numetodos, na Margem Sul. Ela cheirava a ferro, óleo, madeira e verniz, e também à salsicha que Pierre não terminou de comer, deixada sobre uma mesinha lateral no cômodo atulhado. Cada superfície de trabalho estava tomada; não havia madeira aparente nos tampos das bancadas. Vários instrumentos e apetrechos estranhos em vários estágios de montagem estavam dispostos aleatoriamente. Varina só podia imaginar o que metade deles poderia ser. O ambiente era iluminado pelo sol que entrava por várias claraboias com heras nas bordas; os raios de luz iluminavam o ar tomado pela serragem: Pierre lixava uma tábua presa em um torno sobre uma das bancadas.

— A’morce — disse o homem subitamente ao notar Varina à porta.

Ele largou a lixa, levantando uma nuvem de poeira reluzente.

— Eu não esperava pela senhora.

Conforme ela entrava, Pierre ia tirando meia dúzia de cinzéis de madeira de cima do assento de uma cadeira, enxotando a gata que estivera aninhada em meio às ferramentas. Ele fez um gesto para Varina se sentar, enquanto a gata rosnava, irritada, e entrava debaixo da bancada mais próxima para lamber as patas e ficar amuada.

— Eu soube que os morellis causaram um tumulto de grandes proporções no Parque do Templo ontem — falou Pierre. — Pelo menos uma dezena de pessoas foi morta, pelo que ouvi dizer, mas o desgraçado do Morel escapou.

Varina meneou a cabeça, em silêncio. Seu complexo de culpa a corroía por dentro novamente: por ter deixado Nico viver quando podia tê-lo matado; por se permitir pensar que poderia ser o juiz e o executor do rapaz; por ter decepcionado a Karl; por ainda nutrir sentimentos maternais por Nico após todos esses anos; por pensar que ele era digno de redenção; pela estranha simpatia que tinha por ele.

Pelo que estava prestes a fazer agora.

Karl, é isto o que eu devo fazer? É o que você teria feito como a’ morce? Ao pensar nisso, Varina foi tomada pela tristeza mais uma vez e teve que virar as costas a Pierre por um momento. Todo mundo a alertara de que seria assim: a tristeza recuaria lentamente, que por muito tempo ainda ela se lembraria de Karl e a dor a invadiria novamente.

Pierre deve ter pensando que uma fagulha tinha entrado no olho de Varina.

— Morel disse que haveria um sinal de Cénzi — ele continuou. — Algo a respeito de fogo, destruição e morte, pelo que ouvi dizer.

Pierre fungou com desdém.

— Se essa é a profecia, bem, qualquer um de nós poderia ganhar a vida como profeta. Há bastante fogo, destruição e morte todos os anos que cheguem para vinte profecias vagas como essa. Se Cénzi fosse tão poderoso como Morel parece acreditar, ele teria dado sinais inconfundíveis e suas profecias teriam sido mais específicas. Ora, se Morel me dissesse que o sol nasceria no oeste amanhã e isso acontecesse, aí sim, isso talvez me convença a entrar para a fé concénziana.

Ele riu da própria piada. Varina sorriu educadamente e secou os olhos rapidamente. Pierre pareceu encarar o sorriso como um incentivo.

— O que me incomoda — ele disse — é que havia evidentemente uma quantidade considerável de gente dando ouvidos aos morellis, e muitos eram ténis também, não dá para acreditar. Estou dizendo, os problemas dos numetodos podem estar prestes a começar de novo.

— Nico consegue ser bastante charmoso e convincente — disse Varina. — Ele tem muita presença.

E caso eu tivesse dúvidas quanto aos relatos, encontrá-lo fez com que eu os confirmasse.

Pierre deu de ombros.

— Pelo que ouvi, a multidão na verdade resistiu à Garde Kralji quando os gardai apareceram e permitiu que o desgraçado escapasse. Haverá derramamento de sangue entre os morellis e nós numetodos, a’ morce. Guarde o que eu digo... e me chame de profeta também.

Ele sorriu e ergueu ombros novamente.

— Mas, perdoe-me, a’ morce, por falar sem parar. Suponho que a senhora tenha testado o dispositivo que fiz. Funcionou? Ele sobreviveu à experiência?

— Sobreviveu — respondeu Varina.

Pierre meneou a cabeça, e ela viu uma intensa satisfação estampada em seu rosto.

— Eu fiquei muito contente com ele — continuou Varina. — É por isso que estou aqui. Quero mais dispositivos. Um punhado deles, na verdade.

Agora suas sobrancelhas se ergueram em seu rosto magro. Inconscientemente, Pierre limpou a serragem da frente da bashta. Seu olhar percorreu a oficina.

— Um punhado — murmurou ele, de maneira quase inaudível. — A’ morce, todo o trabalho que eu tenho aqui para fazer... Os pedidos de instrumentos e dispositivos, feitos por outros numetodos para seus estudos... Não sei nem mesmo por onde eu começaria...

Ele ergueu as mãos; Varina notou suas cicatrizes e calos e falou:

— Contrate alguns aprendizes competentes. Eu mesma pagarei sua remuneração, o que você achar justo. Compre o material que precisar e mande a conta para mim. Os dispositivos não precisam ser tão... — Varina pausou e sorriu para Pierre — ... primorosos quanto o que você fez para mim. Faça com que eles trabalhem sob a sua supervisão; você pode inclusive pedir a eles que lhe ajudem em outros serviços, se necessário. Eu não me importo.

Ela respirou fundo e sentiu um arrepio.

— Pierre, isso é necessário para a proteção de todos os numetodos.

— A’ morce, eu não ouvi...

— Não ouviu porque eu não disse nada para mais ninguém. E nem você deveria contar. Posso contar com sua discrição, imagino?

Ele ergueu ainda mais as sobrancelhas.

— Claro, a’ morce. Claro. É só que...

— Sim?

Pierre meneou a cabeça negativamente.

— Nada, a’ morce.

Ele passou a mão em suas coxas, levantando uma nuvem de poeira que brilhou no raio de luz mais próximo.

— Eu farei como o pedido, e espero que a senhora fique satisfeita com os resultados.

— Ótimo — respondeu Varina. — Obrigada, Pierre. Eu passarei no próximo draiordi para acompanhar seu progresso.

Ela se levantou, ajeitou o sobretudo sobre a tashta e falou:

— Espero que eu esteja enganada e que nada disso seja necessário. Na verdade, isso é o que me deixaria mais contente, mas duvido que eu tenha esse prazer.

Allesandra ca’Vörl

O comandante Telo co’Ingres, da Garde Kralji, e o comandante Eleric ca’Talin, da Garde Civile, estavam ambos em uma inquieta posição de sentido diante do Trono do Sol. Os cortesãos e o público tinham sido dispensados do salão, e a costumeira reunião mensal do Conselho interrompida. O Conselho dos Ca’ estava sentado à direita do Trono e, exceto pelos criados a postos próximos às paredes, prontos para atender a qualquer pedido, não havia mais ninguém ali para testemunhar o desgosto que os relatórios causaram em Allesandra.

Ninguém além de Erik ca’Vikej, que estava sentado atrás do Conselho. Allesandra notou os conselheiros se esforçando para ignorar a presença do homem; seu constrangimento era quase agradável. Entre os conselheiros, apenas Varina parecia não notá-lo. Allesandra tinha a impressão de que ela estava perdida em seus próprios pensamentos; Varina não tinha dito nada durante a reunião inteira.

— Nico Morel foi capaz de fazer um discurso público, um discurso que atacou tanto a Fé quanto o Trono do Sol, e nós, ainda assim, fomos incapazes de capturá-lo.

Allesandra fungou com desdém. O brilho amarelo intenso do Trono do Sol a envolvia; ela pôde ver a claridade entre seus dedos quando apertou os braços cristalinos do Trono. Pôde ver as rachaduras na pedra translúcida e entalhada onde o Trono, danificado no assassinato do kraljiki Audric, há 15 anos, tinha sido reparado. As rachaduras não brilhavam, mas permaneciam teimosamente opacas apesar dos melhores esforços dos ténis-luminosos.

— Não era isso o que eu queria ouvir.

Ela ouviu Erik bufar com um divertimento frio diante do comentário.

— Nem é o que queríamos relatar, kraljica — respondeu o comandante co’Ingres. — Eu estava no comando da operação, não o comandante ca’Talin, que tinha concordado em apoiar a Garde Kralji e, portanto, não deve ser responsabilizado por isso. Eu não tenho nenhuma desculpa adequada, e não darei nenhuma.

— Então é bom que eu tenha recebido outros relatórios do acontecimento, comandante — falou Allesandra. — Eu sei que seus gardai foram atacados pela multidão, e que eles tiveram um controle admirável em não responder no mesmo tom contra os cidadãos dos Domínios.

Co’Ingres inclinou a cabeça em direção à ela em sinal de reconhecimento.

— Mas eu acho que o tempo de contenção contra os morellis já passou — ela continuou. — No futuro, ambos têm a minha permissão para usar a força que acharem necessária.

Allesandra olhou para Varina ao dizê-lo. Ela não fez sinal algum, só olhava fixamente para as mãos entrelaçadas em seu colo, e Allesandra se perguntou se Varina sequer tinha ouvido o que ela disse.

— Nico Morel deve ser encontrado e julgado pelo assassinato dos cidadãos de Nessântico e pelos danos que causou aqui — ela disse para os comandantes e conselheiros.

Os comandantes menearam suas cabeças, recebendo as ordens como qualquer bom soldado deveria, mas os cinco integrantes do Conselho dos Ca’ não estavam tão de acordo. Varina estava perdida em seus próprios pensamentos. Henri ca’Sibelli, primo de Allesandra, assentiu, e a papada sobre seu pescoço balançou com o movimento. Mas os outros três... a mão de Simon ca’Dawki cofiava sua barba branca, e sua boca se contorcia como se ele tivesse provado um gosto azedo; Anaïs ca’Gerodi inclinou-se na direção de Edouard ca’Matin e sussurrou algo em sua orelha peluda, ao que o homem reagiu franzindo o cenho vigorosamente, sacudindo a cabeça devido à paralisia que o afligia.

Será que calculei mal o apoio de Nico Morel aqui? Allesandra viu-se desejando que Sergei ainda estivesse na cidade; ela precisava de sua honestidade nua e crua. Mas, no lugar do embaixador, ela olhou para Erik.

Ele também franzia o cenho, mas sua irritação era dirigida ao Conselho: Allesandra viu que Erik tinha notado a reação deles.

— Estamos de acordo? — ela perguntou aos conselheiros.

— Estamos, kraljica — respondeu ca’Sibelli, mas sua voz foi a única ouvida.

Os outros não disseram nada; e, caso discordassem, não o diriam aqui, na frente dela.

— Ótimo — disparou Allesandra.

Se eles estavam demasiado inseguros em manifestar seu descontentamento, que ficassem descontentes. Ela se levantou do Trono do Sol, e o brilho dentro do cristal morreu. O salão pareceu subitamente escuro.

— Estamos encerrados. Comandantes, conselheiros, obrigada pelo seu tempo.

Os comandantes fizeram mesuras e saíram rapidamente, com os saltos de suas botas batendo ruidosamente nos ladrilhos do salão do Trono do Sol; os conselheiros se entreolharam, inseguros, então finalmente levantaram de suas cadeiras soltando vários gemidos e murmúrios. Eles fizeram mesuras para Allesandra e, com hesitação, para Erik antes de começarem a sair do salão, mais lentamente que os dois soldados.

— Varina — chamou Allesandra —, um momento, por obséquio...

Quando o último dos conselheiros saiu do salão e os criados fecharam as portas, Allesandra se aproximou de Varina e pegou em suas mãos.

— Como você está? — perguntou Allesandra. — Estou preocupada com você. Não disse absolutamente nada hoje.

— Desculpe-me, kraljica.

— Você está recuperada de seus ferimentos?

— Ferimentos? — perguntou Varina, como se não soubesse do que Allesandra estava falando. Então ela se lembrou: — Ah, os ferimentos. Sim, completamente. Obrigada pela preocupação.

Sua voz soou indiferente, e ela parecia mais cansada e esgotada que o habitual. Sua face esquerda parecia ceder ligeiramente, e seu olho esquerdo estava embaciado. Allesandra se lembrou de outros casais de longa data que conheceu, e de como quando um cônjuge morria, o outro geralmente o seguia para os braços de Cénzi logo depois. Ela se perguntou se este seria o caso com Varina.

— Mandarei meu curandeiro visitá-la hoje à noite — falou a kraljica, fazendo um gesto para interromper o protesto que se formava na boca de Varina. — Não, não ouvirei suas desculpas, minha querida. Eu insisto. Sei que você tem os numetodos para cuidar de você, mas Talbot me contou que você está se enterrando no trabalho, que fica trancada no laboratório. Isso não é saudável, Varina. Você deveria sair ao ar livre, se divertir com os amigos.

— Acho que estou sentindo minha mortalidade, kraljica. Não tenho muito tempo a perder, e ainda há muito o que fazer, muito que compreender.

— Você estará aqui ainda por anos e décadas — disse a kraljica.

Era uma mentira educada, e ambas sabiam disso.

— Você perdeu o Gschnas para cuidar do pobre Karl, e isso é uma pena. Eu darei outra festa em breve; você será convidada, e eu insisto que venha. Não aceito desculpas.

— A kraljica é gentil demais — respondeu Varina. — Claro que virei, mas eu preciso voltar à Casa dos Numetodos. Estou conduzindo uma experiência...

Ela fez uma mesura quase imperceptível e começou a se virar, então parou.

— Kraljica?

— Sim?

— Eu sempre disse a Karl que Nico podia ser recuperado, que se tivéssemos tido a oportunidade de falar com ele... — Varina umedeceu os lábios secos e rachados, rodeado de rugas. — Eu estava errada.

— Você realmente falou com ele? — perguntou Allesandra.

Varina assentiu.

— Nico está convencido de que está certo e que todos nós estamos errados. E ele é mais perigoso do que qualquer um de nós pensávamos.

Dito isso, Varina repetiu sua imperceptível mesura e arrastou os pés na direção das portas, com os passos de uma mulher duas décadas mais velha do que era.

— Ela está certa, e você sabe.

A voz sobressaltou Allesandra; ela tinha se esquecido de que Erik ainda estava ali. Ela sentiu a mão dele tocar seu ombro e pousou sua bochecha sobre ela.

— Eu sei — respondeu Allesandra. — E isso me assusta.

Rochelle Botelli

— O desgraçado do ci’Lawli me tirou da lista de chevaritt — disse co’Kella, xingando entredentes.

Conforme as instruções de Rochelle, o homem não voltara o olhar para as sombras onde ela estava.

— Ele mandou minha filha que está carregando o filho do hïrzg embora, e não estão me oferecendo quase nada, nada, em troca. Ora, eu teria sido nomeado ca’Kella no pronunciamento do hïrzg se ci’Lawli não tivesse interferido. Eu poderia até mesmo ter me tornado conselheiro a tempo. Agora ci’Lawli tem que pagar: por mim, por minha filha, pela sorte da minha família.

Era um conto antigo, uma versão da mesma história que ela tinha ouvido um punhado de vezes em sua curta carreira como Pedra Branca, uma história que sua matarh, certamente, tinha ouvido inúmeras vezes.

— Se é assim que deseja, vajiki — respondeu Rochelle moldando sua voz em um tom grave e ameaçador —, deixe as solas e a pedra que mandei trazer como sinal e vá para casa. Dentro de um mês, o homem estará morto. Eu lhe prometo.

Ele deixara a bolsinha de moedas de ouro e a pedra branca e lisa. Rochelle as pegou.

Rance ci’Lawli. Matá-lo significaria estar próximo de seu vatarh. Ela podia sentir a empolgação dentro de si pulsar diante da ideia.

Ela criou uma identidade para si mesma. Sua matarh tinha lhe mostrado como a Pedra Branca fazia isso. Rochelle já tinha quatro ou cinco identidades falsas, algumas usadas no passado: garotas que tinham nascido em anos próximos ao dela, mas que morreram na infância. Eram de todo tipo, de pessoas comum, sem status, a pessoas do escalão dos ca’. Em relação a essas últimas, ela conhecia suas genealogias, os nomes de seus vatarh e matarh, suas cidades e títulos, e quem essas pessoas conheciam. Sua matarh a tinha alertado que ela deveria tomar cuidado com identidades falsas, especialmente quando se subia a escala social para os ca’ e co’. Ela tinha contado sua história para sua filha, em tom de alerta, sobre como quase tinha sido descoberta em Brezno, quando se fez passar por Elissa ca’Karina, quando “Elissa” e o hïrzg Jan tinham sido amantes.

Quando a própria Rochelle foi concebida.

“A elite se conhece”, disse a matarh para Rochelle, após o segundo ou terceiro assassinato de Rochelle como Pedra Branca, pouco antes dela morrer. “Ah, cale-se, você não sabe do que está falando”. A fala tinha sido um aparte para uma das vozes na cabeça da matarh; Rochelle tinha aprendido a filtrar tais comentários. “Eles são um grupo fechado, muitos integrantes da elite têm parentesco entre si, e as ligações familiares são importantes para eles — e, por causa disso, eles conhecem essas ligações. Você deve ter cuidado com o que diz pois a menor distorção pode te revelar. Sim, eu sei disso, seu idiota. Por que você continua me atormentando assim? Cale a boca! Cale-se logo!” Ela apertou suas mãos contra os ouvidos como se pudesse deter o diálogo interno e inclinando-se na cadeira para frente e para trás, como se sentisse dor.

Dois dias depois, sua matarh estava morta. Por suas próprias mãos.

Rochelle não precisava seguir esse conselho nesse caso. Ela se apresentou a Rance ci’Lawli como Rhianna Berkell, uma jovem sem status de Sesemora que tinha vindo a Brezno para fazer fortuna tentando um emprego no quadro de funcionários do palácio. Ela trazia consigo recomendações em papel timbrado de três chevarittai de Sesemora, com quem supostamente tinha trabalhado. O papel timbrado e os nomes neles eram genuínos; o papel tinha sido roubado na ocasião em que ela estivera em Sesemora com sua matarh, anos atrás; as recomendações eram, obviamente, completamente falsas. Mas Rochelle era uma atriz talentosa: ela sabia o que dizer, como se apresentar, e que habilidades poderiam colocá-la em melhor situação no corpo de funcionários do palácio. Também sabia como flertar sem obviedade, e ci’Lawli era suscetível às atenções de uma linda jovem. Três dias depois, a convocação chegou à estalagem onde Rochelle estava hospedava: ela seria contratada. Foi colocada pelo assistente ci’Lawli na criadagem real, onde cuidaria da ala do hïrzg no palácio e trabalharia diretamente com ci’Lawli. Ao longo dos dias que se seguiram, Rochelle fez questão de fazer um trabalho superior e observar. Observar e aprender os hábitos e rotinas de ci’Lawli.

Ela também se viu ocasionalmente no mesmo ambiente que seu vatarh. Em uma ou duas ocasiões, ela pensou tê-lo visto olhando para ela de um modo estranho e se perguntou se o hïrzg sentia o mesmo impulso que ela. Mas, na maior parte do tempo, especialmente se a esposa ou os filhos estivessem no aposento, Jan prestava tanta atenção nela quanto nos quadros das paredes; Rochelle era — assim como todos os funcionários — mera parte da mobília do palácio.

Hoje, ela tinha sido enviada para limpar a sala de recepção do lado de fora dos cômodos dos aposentos principais do hïrzg. As crianças estavam em outro lugar, mas Jan e a hïrzgin tinham tomado café da manhã com o embaixador dos Domínios, ca’Rudka, que estaria deixando Brezno hoje.

Conforme ela entrava pela porta de serviço carregando uma bandeja para limpar a mesa, ca’Rudka — cujo rosto fez Rochelle estremecer, com seu terrível nariz de prata colado à pele enrugada — fazia uma mesura para Jan e Brie.

— ... levarei sua carta à kraljica assim que eu voltar.

— E nesse ínterim, você certamente terá lido a carta, apenas para garantir que ela corresponde ao que eu lhe disse — falou Jan.

Ele riu. Rochelle adorava o som de sua risada: cheia de calor puro e bruto. Também gostava do som da sua voz. Queria ter conhecido Jan na infância, ouvido sua voz sussurrando uma boa noite ou sentido seus braços a embalando em frente à lareira, contando histórias de sua juventude, ou talvez contos da longa história de Firenzcia e seus ancestrais.

— Ora, Jan, não dê ideias ao embaixador — a hïrzgin interveio.

Rochelle não estava certa quanto ao que sentia pela matarh de seus meios-irmãos. A hïrzgin Brie parecia gostar genuinamente de Jan, mas Rochelle já tinha ouvido comentários e visto olhares que a faziam se perguntar se essa afeição era recíproca. Também havia a fofoca palaciana, mas ela ainda não estava a par dos detalhes das suspeitas cuidadosamente sussurradas.

— Não se preocupem — disse Sergei para ambos. — O hïrzg já me disse exatamente como ele pensa, mas confio que ele tenha se expressado de maneira mais diplomática na carta para a kraljica. Pelo menos, eu espero que sim.

O trio riu novamente, mas o divertimento durou pouco desta vez e tinha um quê de outra coisa que Rochelle não conseguiu decifrar. A voz de Sergei ficou subitamente séria e baixa.

— Eu realmente espero que consigamos encontrar uma forma de passar por isso sem recorrer à violência. Uma nova guerra não seria bom nem para os Domínios, nem para a Coalizão.

— Isso só depende da minha matarh — respondeu Jan.

— E depende da Coalizão não provocá-la nesse meio-tempo — retrucou Sergei. Ele meneou a cabeça e fez uma mesura para os dois. — Estou indo, então. Enviarei uma resposta por mensageiro rápido assim que falar com a kraljica Allesandra. Deem um beijo nas crianças por mim, e que Cénzi os abençoe.

Ele fez uma mesura novamente e saiu da sala, enquanto Rochelle continuava a empilhar pratos sujos na bandeja.

— Eu vou ver as crianças — disse Brie. — Você vem, querido?

— Daqui a pouco — Jan respondeu.

— Ah.

A estranha e vaga inflexão dessa única palavra fez Rochelle erguer os olhos de seu serviço, mas Brie já se aproximava da entrada dos aposentos internos, com as costas voltadas para ela. Rochelle voltou-se para seu serviço novamente, os pratos batendo suavemente ao serem empilhados.

— Você é nova na equipe de funcionários?

Rochelle levou um momento para perceber que Jan falava com ela. Ela notou que ele a observava do outro lado da mesa. Rochelle fez uma mesura rapidamente, com a cabeça baixa, como tinha visto outros criados fazerem na presença de Jan.

— Sim, meu hïrzg — respondeu ela, sem erguer os olhos. — Eu fui contratada há uma semana.

— Então você obviamente impressionou Rance, se foi colocada na criadagem do palácio. Qual é o seu nome?

— Rhianna Berkell.

— Rhianna Berkell — Jan repetiu, como se a provar o nome. — Soa bonito. Bem, Rhianna, se fizer um bom trabalho aqui, um dia você talvez receba um ce’ antes do nome. O próprio Rance era ce’Lawli há apenas dois anos, e agora é ci’Lawli. E quase certamente será co’Lawli um dia. Nós recompensamos àqueles que nos servem bem.

— Obrigada, senhor. — Ela fez uma mesura novamente. — Eu tenho que voltar à cozinha...

— Olhe para mim — disse Jan.

Ele falou com uma voz meiga, gentil, e Rochelle ergueu o rosto. Seus olhos se encontraram, e o olhar de Jan permaneceu em seu rosto.

— Você me lembra...

Ele parou. Seu olhar pareceu se perder por um momento, como se estivesse perdido nas próprias memórias.

— ... alguém que eu conheci.

Jan estendeu sua mão, e os dedos da mão direita tocaram no rosto dela — o toque, pensou Rochelle, de um vatarh. Ela abaixou o olhar rapidamente, mas pôde sentir o toque dos dedos em sua pele por longos segundos depois.

— A bandeja, meu hïrzg — disse Rochelle.

— Ah, sim. Isso. É claro. Obrigado, Rhianna. Eu lhe agradeço.

Rochelle levantou a bandeja e seguiu na direção da porta de serviço. Ela podia sentir o olhar de Jan em suas costas ao abrir a porta com o quadril. Ela não ousou olhar para trás, com medo de que, se o fizesse, revelasse o segredo, com medo de que chamasse Jan pelo nome que tinha vontade de usar.

Vatarh...

Ela não podia fazer isso. Não agora.

Não ainda.

Varina ca’Pallo

Ela tinha armado a demonstração no salão principal da Casa dos Numetodos. Havia dois punhados de numetodos de longa data ao lado dela: entre eles, Pierre Gabrelli, que sorria, pois já sabia o que ela pretendia mostrar; o assistente-chefe da kraljica, Talbot ci’Noel; Johannes ce’Agrippa, talvez o mais talentoso dos magos numetodos, cujo estudo das práticas de magia tinha superado as descobertas do próprio Karl, e de Varina; Niels ce’Sedgwick, cujo interesse não era voltado a qualquer tipo de magia, mas sim nas formações geológicas da Terra e no que elas contavam de sua história; Leovic ce’Darci, cujos elegantes desenhos de prédios e maravilhas da engenharia eram não só um deleite, como também começavam a mudar o horizonte de Nessântico; Nicolau Petros, que estudava as estrelas e seus movimentos com um dispositivo baseado em um objeto que Karl tinha visto o espião Mahri usar; Albertus Paracel, o escriba e bibliotecário que era o encarregado da criação de uma já monumental compilação de todo conhecimento adquirido através das pesquisas e experiências dos numetodos. Todos eles eram essenciais para tarefa central dos numetodos — entender como o mundo funcionava sem o véu da superstição e da religião, usando a razão e a lógica para compreender os mistérios que os cercavam.

Eram aqueles que Nico Morel e sua laia consideravam tão terrivelmente ameaçadores.

Alguns numetodos estavam ausentes, no entanto — aqueles que Nico já havia matado, e que, na verdade, eram os mais próximos de Karl e Varina. Ela não podia fazer nada por eles, a não ser sentir a dor de sua ausência e de Karl.

Varina tinha continuado seus próprios experimentos com a chispeira. Ela refinara a mistura de areia negra e o formato e a composição da bala de chumbo disparada pelo dispositivo; mandara também que Pierre criasse algumas peças experimentais. A cada dia, Varina via com mais clareza o potencial assustador da chispeira e também estava mais convencida de que esse dispositivo poderia alterar os próprios tendões e fibras da sociedade em que eles viviam.

Varina às vezes se perguntava se essa mudança era algo que ela realmente queria desencadear.

“Não se pode esconder o conhecimento.” Era o que Karl dizia muitas vezes, ao longo de décadas. “O conhecimento se recusa a ser escondido. Se se tentar enterrá-lo, ele simplesmente encontrará uma maneira de se revelar para outras pessoas.”

Muito bem. Então ela não esconderia.

— Obrigada por terem vindo — disse Varina para o grupo reunido. — Todos vocês conhecem a areia negra. Todos conhecem a terrível destruição que ela pode causar quando acesa em grande escala. Meus experimentos recentes têm envolvido quantidades significativamente menores que as usadas na guerra e sem uso de magia alguma para acendê-la. E...

Ela se deteve, dando um passo na direção da mesa que ela tinha armado e coberto com um pano preto. A vários passos de distância, um melão maduro tinha sido preso a um suporte, em frente a uma mesa de carvalho deitada, que serviria como barreira: uma fruta do tamanho da cabeça de um homem, envolta por uma casca dura amarelo-esverdeada. Uma cabeça tão dura quanto a de um melão — um velho ditado nos Domínios. Varina pôde notar que todos olhavam para a instalação com curiosidade.

— Bem, é mais fácil simplesmente demonstrar.

Ela acenou com a cabeça para Pierre, que tirou o pano da mesa. A chispeira original do artesão estava ali, linda e reluzente, já carregada e pronta para uso. Varina pegou a arma sem dizer uma palavra, engatilhou-a e mirou a fruta doce.

Ela puxou o gatilho.

A chispeira estalou. A areia negra no tambor espocou; a chispeira deu um coice na mão de Varina soltando um estampido alto. Na outra extremidade do salão, a fruta pareceu explodir, espalhando pedaços pelo chão enquanto o restante partido pulou sobre o suporte. No silêncio que se seguiu, todos puderam ouvir o sumo da fruta destroçada pingando no chão.

O simbolismo, como Varina tinha esperado, tinha sido apreendido por todos eles.

— Sem magia? — murmurou Talbot. — Nenhuma?

Varina meneou a cabeça em negativa. O estampido da chispeira ainda ecoava em seus ouvidos; uma fina coluna de fumaça branca oscilante saía do cano.

— Sem magia — confirmou Varina. — Algumas pitadas de areia negra, uma bala de chumbo, e a habilidade artesanal de Pierre. E pode ser repetido. Afastem-se...

Ela pediu aos numetodos que tinham ido examinar a fruta despedaçada e as tábuas de madeira atrás dela, onde a bala estava cravada. Varina recarregou — um trabalho que levou alguns segundos —, engatilhou a chispeira e disparou novamente. Desta vez, os pedaços remanescentes da fruta foram completamente destroçados, e o suporte caiu para trás. Varina pousou a chispeira sobre a mesa e falou.

— Pierre fez uma chispeira para cada um de vocês, eu os ensinarei a usá-las.

— A’morce, isso... — disse Talbot, enquanto olhava para fruta arruinada no chão. — Por quê?

— Receio que os numetodos estejam prestes a serem atacados novamente — explicou Varina. — Com essas chispeiras, vocês não precisam ter habilidade com espada, força física ou magia para se defender. Tudo o que vocês precisam fazer é apontar o dispositivo e puxar o gatilho. Receio que precisaremos de toda proteção que pudermos arranjar.

Leovic tinha ido até a mesa. Ele virava a chispeira em suas mãos, examinando seu mecanismo. Varina notou que a mente do homem trabalhava. Leovic olhou para ela e comentou:

— Está quente. E se fosse um garda de armadura?

— Ele não se sairia melhor que a fruta — respondeu Varina. — Posso lhe mostrar, se quiser.

Os músculos do maxilar de Leovic retesaram, como se estivesse retendo a resposta que gostaria de dar.

— Qualquer artesão competente poderia criar uma coisa destas — disse o homem finalmente. — Ainda que não tão elaborada quanto a criação de Pierre. E quanto a aprender a usá-la?

— Posso mostrar-lhes em algumas marcas da ampulheta — disse Varina.

— Você pode nos dar o possibilidade de matar alguém a poucos passos de distância, mesmo que a pessoa esteja de armadura? — disse Johannes, em um sussurro quase reverencial.

— Sim — respondeu ela.

— A senhora quer de fato liberar esse poder?

— Ele já foi liberado — argumentou Varina. — Esse poder foi liberado quando os tehuantinos criaram a areia negra. Se destruirmos as chispeiras agora e jamais falarmos delas novamente, outra pessoa chegaria à mesma conclusão que eu e as faria novamente. Vocês todos conhecem a expressão de Karl...

Ao mencionar seu nome, sua voz ficou entrecortada. Ela engoliu em seco, se desculpando. Talbot acenou para ela, em solidariedade.

— ... Karl dizia que o conhecimento não pode ser escondido. Mesmo os fiéis concénzianos têm uma expressão para isso: “uma vez que os moitidis foram criados, não havia como Desfazê-los”. Isso não é diferente.

— Ainda assim, a’morce... — disse Niels, balançando os longos cachos grisalhos. — As possibilidades...

— Eu posso antevê-las tão bem quanto qualquer um de vocês — respondeu Varina. — Acreditem, essas possibilidades vêm assombrando meus sonhos desde o funeral de Karl e o assassinato da nossa gente pelos morellis. Mas eu também posso antever o que pode acontece se nós não tivermos todos os recursos disponíveis para nos proteger. E isso me assusta ainda mais.

Ela acenou para Pierre, que trouxe uma caixa comprida da lateral do salão. Ele a pousou sobre a mesa e a abriu. O aço e a madeira dentro dela reluziram.

— Há uma chispeira para cada um de vocês — disse Varina. — Peguem uma, um frasco de areia negra e um pacote de cartuchos de papel, e vou mostrar-lhes como usá-los...

Jan ca’Ostheim

— A jovem que trabalha na criadagem pessoal, chamada Rhianna — perguntou Jan para Rance. — O que você sabe sobre ela?

O assistente ergueu uma sobrancelha. Ele tinha acabado de trazer a agenda diária de reuniões e revisava os planos para o dia — que estava, como de costume, cheio demais. Era um daqueles dias em que Jan sentia o peso de suas responsabilidades; um daqueles dias em que ele se sentia velho antes do tempo; um daqueles dias em que o hïrzg se sentia inquieto e aprisionado.

Mas a jovem... Jan pensara nela mais de uma vez desde seu encontro, e ele se viu procurando por ela sempre que ele entrava em um aposento. Frequentemente, havia um leve sorriso no rosto da criada quando ela o via, embora ela nunca tenha quebrado o decoro, nunca tenha tentado se aproximar ou falar com Jan, mas se mantinha concentrada no serviço e ia embora quando terminava.

Jan gostava disso. Rhianna conhecia seu lugar. Era um bom sinal.

— Ela é de Sesemora — contou Rance —, embora tenha pouco daquele sotaque horroroso, felizmente. Tinha excelentes referências das famílias ca’Ceila e ca’Nemora. Ela acata bem às ordens e trabalha pesado. Seria bom que eu tivesse mais uma dúzia de criados que trabalhem tão bem quanto ela. E é bonita de se ver, como tenho certeza de que o hïrzg notou.

— Notei, de fato.

Esta era uma dança que ele e Rance tinham executado mais de uma vez ao longo dos anos, e ambos conheciam os passos.

— O hïrzg gostaria que ela fosse designada para seus aposentos pessoais?

— Seria bom. Ela parece uma excelente opção.

— Então eu farei isso — falou Rance. — Ouvi rumores de que a hïrzgin achou que Felicia foi um tanto quanto grosseira com ela, na semana passada; Rhianna pode ser uma boa substituta. Eu mandarei fazer a troca hoje.

Jan encolheu os ombros.

— O que você achar melhor, Rance. A equipe é sua. Deixarei que você o decida. Agora, tem algo que possamos fazer a respeito da audiência com o a’gyula? Talvez a hïrzgin pudesse recebê-lo. Ele é um grosseiro tedioso...


— Boa noite, crianças...

Jan beijou um filho de cada vez: Elissa, Kriege, Caelor e a pequena Eria. Ele acenou com a cabeça para a babá, que começou a conduzir as crianças para fora do quarto. Elissa ficou para trás, teimando e de cara fechada.

— Eu devia poder ir ao baile hoje à noite — disse ela. — Eu não tenho nem um pouco de sono, vatarh.

— Ano que vem — falou Jan.

— O ano que vem é daqui a uma eternidade — respondeu a menina, batendo enfaticamente com o pé no chão.

Jan ouviu Brie soltar uma risadinha. Ele estava sentado na cadeira atrás da mesa do quarto da esposa. Brie estava atrás dele, com a mão sobre seu ombro. Ela vestia apenas uma camisola, seu cabelo estava solto, a joias encontravam-se sobre a penteadeira. Jan sentiu o cheiro do perfume que a hïrzgin tinha acabado de passar quando ela se inclinou próximo ao ouvido dele.

— Ela é sua filha — sussurrou a esposa. — Eu ouço você na voz dela.

Jan sorriu e gesticulou para Elissa vir até ele. A menina obedeceu, com um beicinho dramático no rosto.

— Se eu disser que você pode ir ao baile, eu vou ter que ouvir Kriege dizer que ele também devia poder ir ao baile.

— Kriege só tem 9 anos — respondeu Elissa. — Ele é praticamente um bebê. Eu tenho 11 anos, quase 12.

Jan sentiu os dedos de Brie apertarem seu ombro. Ele sorriu.

— Eu sei. Vamos combinar assim: se você for com a babá agora, eu pedirei a ela que tire você da cama e a arrume em uma virada da ampulheta, e aí você pode descer para o baile um pouquinho. Mas não pode deixar que seus irmãos saibam.

Elissa sorriu e bateu palmas, depois deixou as mãos caírem ao lado do corpo, com uma expressão comicamente solene no rosto.

— Sim, vatarh — ela respondeu em voz alta, para os irmãos escutarem, ainda na porta com a babá. — Eu vou para a cama, então.

Impulsivamente, a menina ficou na ponta dos pés e beijou o rosto do vatarh, depois o da matarh.

— Boa noite, vatarh, matarh.

Ela tamborilou os pezinhos no corredor junto com seus irmãos. Jan viu as crianças saírem, sem conseguir conter o sorriso no rosto.

— Se nós fôssemos artistas, não teríamos criado algo mais lindo que nossos filhos — disse Brie.

— Eu tenho que concordar.

Jan virou-se na cadeira para encará-la, pousando suas mãos em seus quadris. Ele podia ver o que os anos e o nascimento de seus filhos tinham feito ao corpo de Brie: ela não tinha mais a beleza esguia e suave de quando eles se casaram. Seu corpo tinha ficado largo e roliço ao longo dos anos, as marcas de expressão tinham invadido seu rosto, e a pele sob seu queixo se tornara flácida. Sua barriga ficara saliente e seus peitos maiores e mais pesados.

Jan também tinha mudado, ele sabia, mas mudanças eram mais fáceis de ver nos outros. O hïrzg acariciou as laterais roliças do corpo de Brie, e ela sorriu para ele, aproximando seu corpo do corpo dele.

— Ainda temos tempo — falou a hïrzgin. — Posso mandar chamar aquela garota nova... qual é o nome dela? Rhianna? Para me ajudar a me vestir rapidamente. Se você quiser...

Brie inclinou-se para baixo. Seus lábios ainda eram macios, ainda cediam, e, um instante depois, Jan perdeu-se no beijo. As mãos de Brie envolveram a cabeça do marido, levantando-o sem romper o abraço, e depois ela o apertou com força. Como uma só pessoa, como em uma dança lenta e cheia de paixão, os dois foram para a cama. Brie caiu sobre a fresca suavidade do tecido enquanto Jan se deixava puxar por ela para cobrir seu corpo. Ele beijou Brie desta vez, mais intensa e insistentemente, e as mãos dela desceram pelo corpo do esposo enquanto ele levantava a barra de sua camisola.

Mais tarde, os dois ficaram deitados sobre os lençóis emaranhados. Ela sorriu para Jan, acariciou suas bochechas e afastou o cabelo de seu rosto, enquanto ele passava o dedo indicador pelo contorno dos seios de Brie, circulando suas auréolas e observando a reação da pele sensível.

— Isso foi bom — disse Jan.

— Sim. — Ela o beijou novamente; com um ligeiro toque nos lábios desta vez. — Talvez tenhamos criado algo novo outra vez.

— Talvez.

Jan sorriu, embora não tivesse sentido nada com a ideia. Ele tinha muitos filhos — aqueles que podia reconhecer e aqueles que nem conhecia, gerados em uma amante ocasional que tinha que ser mandada embora com uma bolsa de solas de ouro como lembrança. Como Mavel co’Kella.

— Sergei deve chegar a Nessântico entre hoje e amanhã — disse Brie.

Ele riu.

— De onde veio essa ideia?

— Não sei. Só estava pensando. As crianças... Seria bom se elas conhecessem sua mamatarh. Que conhecessem de verdade.

Jan resmungou sem dizer uma palavra. A mão sobre o abdômen de Brie parou de se mover.

— Você acha que ela vai concordar com o seu pedido? Acha que Sergei vai conseguir convencê-la a nomeá-lo a’Kralji?

— Eu não sei — ele respondeu. — Além disso, Rance diria que é isso o que eu quero, afinal, isso não é bom para Brezno.

Essa era a verdade. Jan não sabia. Parte dele concordava com Rance, e queria que sua matarh recusasse, para que tivesse uma desculpa para atacá-la. E parte... Sim, uma parte de Jan torcia para que ela concordasse, torcia para que pudessem se reconciliar.

Jan só não sabia que parte era mais forte.

— A escolha é da matarh — ele disse. — Já não está mais em minhas mãos. Eu fiz a oferta; ela pode aceitar ou não.

— Espero que ela aceite. Está na hora. Uma família não pode ficar assim tão separada.

Brie beijou o marido mais uma vez e rolou para o lado. Olhou para a grande ampulheta sobre a escrivaninha.

— É melhor você voltar para o seu quarto e se vestir — ela disse. — Não temos muito tempo. Vou mandar o criado do corredor trazer Rhianna e enviar alguém para ajudá-lo...

Ela vestiu a camisola e o robe e caminhou em direção à porta do corredor. Jan observou a esposa, depois vestiu as próprias roupas enquanto ela abria a porta e chamava suavemente o criado do corredor. Ele se levantou; Brie voltou e o abraçou.

Houve uma batida suave na porta.

— Vá — falou Brie.

Jan se dirigiu para a porta dos fundos, que levava até seu quarto, mas parou ali, com a mão na maçaneta. Rhianna abriu a porta e entrou no quarto. Fez uma mesura para Brie.

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou a criada.

Rhianna notou Jan na porta; ele pensou tê-la visto esboçar um sorriso para ele, mas ela voltou sua atenção rapidamente para Brie e sem olhar para ele novamente.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho... — disse Rhianna.

Jan abriu a porta e saiu do quarto. Ele sorriu, embora não soubesse o porquê.

Brie ca’Ostheim

— A senhora quer ajuda para se vestir, hïrzgin? — perguntou Rhianna.

Brie notou o olhar de Rhianna deslizar rapidamente para Jan e se desviar com a mesma velocidade. Rhianna não voltou a olhar para Jan, embora a hïrzgin tenha sentido Jan permanecer no quarto atrás dela.

— Aqui, deixe-me ajudá-la com o espartilho...

Ela virou-se para deixar que Rhianna pegasse os laços do espartilho em suas costas. A atenção de Jan estava presa em algum ponto acima do ombro de Brie, mas ele pareceu se libertar para encontrar os olhos de Brie. Jan sorriu para ela com um pouco de culpa, pensou Brie, em seguida, abriu a porta do quarto de vestir. Ele meneou a cabeça para Brie assim que que Rhianna puxou os laços, fechando a porta atrás de si. Brie olhou para o espelho na penteadeira, observando Rhianna através da superfície prateada. Ela não havia erguido o olhar para ver Jan sair; isso agradou Brie. Talvez eu esteja enganada... A garota — não, a jovem — era bonita o suficiente, com braços estranhamente musculados. Seus cabelos eram tão negros quanto as asas de um corvo, e seus olhos eram de um tom azul-claro estranhamente contrastantes com o cabelo e o rosto de pele morena-escura...

Quase todos os casos de Jan tinham sido com mulheres de cabelos negros, Brie percebeu. Ela se perguntava o que o marido buscava encontrar nelas.

Rhianna era provavelmente cinco ou seis anos mais velha que Elissa. Não mais.

— Pronto — disse a criada, atrás dela, com um leve sotaque que Brie não conseguia identificar. — Está confortável, hïrzgin? Eu posso soltar um pouco se os laços estiverem apertados demais...

— Está ótimo. Traga a minha tashta... ali, aquela na cama...

Brie observou Rhianna pegar a roupa e enrolar a barra cuidadosamente nas mãos.

— Então Rance colocou você no nosso corpo pessoal de funcionários?

— Sim, hïrzgin. Devo admitir que fiquei surpresa com isso, logo depois de ser contratada, mas ele disse que me saí bem no serviço e que tinha se aberto uma vaga inesperada.

— Sim, Rance está sempre de olho em vagas que beneficiem o hïrzg — respondeu Brie. — É uma de suas melhores qualidades, com certeza.

Rhianna pareceu intrigada, como se tivesse percebido algo nas entrelinhas, mas não soubesse exatamente como responder. Ela levou a tashta até a hïrzgin e a colocou sobre a cabeça dela, que erguia os braços.

— Aqui, deixe-me encontrar as mangas para a senhora, hïrzgin. Terei cuidado com seu cabelo...

Rhianna deslizou a tashta devagar, e Brie se endireitou para que as pregas caíssem sobre o resto de seu corpo. Rhianna ficou de joelhos para amarrar a faixa em volta da cintura da hïrzgin.

— Esse tecido é lindo, hïrzgin. Tem um desenho e uma cor tão bonitos, e lhe cai tão bem...

— Rhianna, você não precisa me elogiar.

O rosto da jovem ficou vermelho. Brie não viu malícia em sua expressão, apenas um genuíno embaraço.

— Hïrzgin, eu não quis... Disse apenas o que pensei... Desculpe-me...

Brie levou um dedo aos próprios lábios e sorriu delicadamente.

— Shhh. Não precisa se desculpar, minha cara. Eu gostaria... Bem, eu gostaria que, já que passaremos muito tempo juntas, nós pudéssemos confiar uma na outra.

Na verdade, Rhianna ficou mais vermelha ao ouvir isso. Ela hesitou, parecendo procurar uma resposta.

— Ah, a senhora pode confiar em mim, hïrzgin.

— Então — falou Brie, ainda sorrindo —, se, digamos, o hïrzg confidenciasse algo para você que eu deva saber como esposa dele, você me diria, não é?

O rubor intensificou ainda mais, o que revelara tudo o que Brie queria saber. Jan já tinha se aproximado dela...

— Ora, sim, hïrzgin — gaguejou Rhianna. — Eu diria. É claro.

— Ótimo.

Brie tocou o rosto da jovem. Tão macio, tão intocado... mas então seus dedos encontraram uma cicatriz ondulada ao longo do maxilar de Rhianna. Uma facada? Ela ficou intrigada com isso, mas ergueu a criada com a mão. Sentou-se novamente na cadeira diante do espelho, abriu a caixa de joias e tirou um colar.

— Aqui — disse Brie ao entregar a joia para Rhianna. — Acho que isto combinará com a tashta. Coloque em mim, por favor...

Enquanto a criada colocava o colar em volta de seu pescoço e prendia o fecho, Brie observava o rosto de Rhianna, conjecturando.

Niente

Da primeira vez que os tehuantinos tomaram Karnor, a principal cidade da ilha de Karnmor, eles entraram no porto com os navios escondidos por uma bruma mágica. Desta vez havia muito mais embarcações na frota, e Niente mandou que os nahualli invocassem uma tempestade mágica assim que vissem o vulcão da ilha surgir no horizonte. A tempestade irrompeu bem à frente da vanguarda dos navios de guerra, a escuridão de chuva torrencial e relâmpagos violentos impediu que eles fossem avistados rapidamente pela marinha dos Domínios, uma tempestade que tinha a intenção de instigar o inimigo a ancorar suas embarcações na segurança do porto.

Porto este que, quando os nahualli dissipassem a tempestade, já não seria mais tão seguro, porque o trio dos maiores navios de guerra tehuantinos se esconderia na entrada do porto, para impedir que qualquer embarcação dos Domínios escapasse para alertar o continente. Ao mesmo tempo, a maior parte da frota se separou e seguiu para o norte, depois para leste, contornando a ilha, todos menos um dos navios — o Yaoyotl em que Niente e o tecuhtli Citlali navegavam — que ficaria bem longe da costa.

O Yaoyotl ancorou em alto mar, no lado norte da ilha, ao anoitecer, a quilômetros de distância de Karnor, enquanto o resto da frota seguiu adiante. Niente, com Atl e vários nahualli, assim como um grande contingente de guerreiros, desembarcaram do navio em botes a remo carregados com bolsas de couro. Eles escalaram os flancos do monte Karnmor, o vulcão em cujas encostas a cidade tinha sido construída.

Niente tinha passado dias espiando na tigela premonitória. Tinha visto esta cena diversas vezes, e pareceu-lhe estranho vivenciá-la na realidade agora. Enquanto os tehuantinos subiam ao cair da noite, do outro lado da montanha eles podiam vislumbrar clarões de luz: os nahualli a bordo dos navios em guarda no porto de Karnor arremessavam bolas de fogo de areia negra na direção da frota inimiga, como se estivessem preparando um ataque frontal à cidade. Tudo isso era uma simulação e uma distração — para manter a atenção dos orientais no porto, e não na montanha atrás da cidade. Se o que a tigela premonitória tinha mostrado para Niente estivesse correto, a cidade seria destruída, mas não seria saqueada.

A própria terra destruiria a cidade.

Niente consolou-se com a ideia de que a descida seria bem mais fácil do que a subida. Ele ficou exausto rapidamente com a subida, embora não carregasse nada além de seu cajado mágico, enquanto os demais carregavam as bolsas de couro. Suas pernas e quadris doíam, e suas sandálias estavam rasgadas e gastas. As rochas deixaram longos arranhões em suas pernas e braços devido aos tropeços que Niente dera ocasionalmente, e o sangue agora formava crostas escuras. O mero esforço de colocar um pé diante do outro era exasperante, ele desejava que Axat jamais tivesse lhe mostrado esse caminho. Seu filho caminhava ao seu lado, ajudando-o ocasionalmente, mas ele tentava não depender de Atl — não era bom para o nahual demonstrar fraqueza. Se os outros nahualli sentissem que Niente estava vulnerável, um deles poderia desafiá-lo pelo título, e ele não podia arriscar isso agora ou tudo em que apostara estava perdido.

Niente fez um esforço para continuar caminhando, para conter os gemidos que ameaçavam escapar de seus lábios.

— Estamos quase lá — disse Niente finalmente para Atl, falando de maneira entrecortada, a cada tomada de fôlego. — Logo ali, em torno da saliência da montanha.

Na direção em que Niente apontou, um coluna de fumaça maculava o céu iluminado pela lua. Ele sabia o que veria ali, quando eles dessem a volta no cume do lado sul da montanha: uma fumarola sibilante e vaporosa expelindo o hálito amarelo e sulfúrico da terra. Havia várias aberturas como essa na área, bem acima e com vista panorâmica para a cidade — e esse era o destino dos tehuantinos.

— Ótimo — disse Atl.

Mesmo ele parecia estar sem fôlego. Atl olhou para a encosta abaixo, para a fila de nahualli e guerreiros tatuados que os seguiam. Ao longe, reluzindo na água que refletia o luar, o Yaoyotl esperava seu retorno, com as velas recolhidas no momento.

— O tecuhtli não parecia estar inteiramente satisfeito com o senhor — comentou Atl.

— O tecuhtli Citlali preferia que nós saqueássemos a cidade — respondeu Niente. — Como todo guerreiro, ele prefere o choque do aço, o cheiro do sangue e os gritos daqueles que caem diante de si. O que estamos fazendo parece injusto para ele.

Ele fez uma pausa para descansar por um momento, permitindo-se apoiar em Atl.

— Eu prometi a ele que Axat tinha me mostrado que ele terá muitas oportunidades de demonstrar suas habilidades como guerreiro.

Eles podiam ver não só os clarões de luz do bombardeio de areia negra sobre os navios dos Domínios; como também podiam ouvir, com um atraso estranho e desconexo, o trovejar das explosões. Niente subiu em uma saliência rochosa e pôde ver as luzes de Karnor abaixo deles se espalhando por várias plataformas nas encostas mais baixas até a água.

Não havia tropas dos Domínios protegendo a cidade, como Axat prometera em Suas visões. Ao longe, as águas reluzentes do porto foram acesas pelo incêndio nas embarcações em chamas. Enquanto Niente assistia, outra bola de fogo desenhava um arco da entrada do porto até o agrupamento de navios de guerra dos Domínios. O som chegou aos tehuantinos dois segundos depois, um ruído surdo que ele quase pôde sentir em seu peito.

— Rápido! — disse Niente para os nahualli, que davam a volta pela saliência.

Eles pararam sobre um ligeiro declive onde o monte Karnmor parecia inchar, um cenário dominado por buracos de vapor que assobiavam e borbulhavam. Niente, com a ajuda de Atl, orientou os nahualli a posicionarem os cajados mágicos — feitos especialmente para esse propósito e preparados com possantes feitiços para moldar a terra — em um grande círculo em volta das crateras. As bolsas cheias de areia negra, levadas pelos guerreiros, foram postas em uma única pilha grande, com a altura de um homem e o comprimento de dois homens. Atl, ao lado de Niente, balançou a cabeça.

— Tanta areia negra — disse o rapaz. — Nós poderíamos destruir a Teocalli Axat com isso.

— Com isso — disse Niente —, nós destruiremos a cidade deles inteira.

— Espero que o senhor esteja certo, taat. Se não der certo...

— Não falhará. Axat prometeu. Eu vi.

— Eu sei, mas eu tenho olhado na água, como o senhor me mostrou, e não vi nada disso.

Niente deu um tapinha no ombro do filho.

— As visões de Axat vêm devagar e em Seu próprio tempo. Tenha paciência. Ela falará com você em breve. Você saberá quando acontecer; Sua voz é ríspida e dolorosa de se ouvir.

E rezo à Ela para que, quando chegar o momento, você não veja o que eu vi. Não veja o que estou fazendo. Isso ele não disse.

Atl assentiu. Niente, grunhindo pelo esforço, cravou seu cajado mágico na parede de areia negra, com o punho voltado cuidadosamente para o leste. O nahual observou o cenário e assentiu — sim, era isso o que ele tinha visto.

— Terminamos aqui — ele disse para Atl e os demais, com a voz trêmula pelo cansaço. — É hora de voltarmos para os navios.


O tecuhtli Citlali balançou a cabeça calva, tatuada com uma selvagem águia rubro-negra com suas garras perpassando seu crânio e rosto. Seus olhos envoltos pelas garras do pássaro encaravam Niente.

— Nada aconteceu — ele disparou. — Podíamos ter tomado a cidade com nossos navios e guerreiros a esta altura. Podíamos ter dominando a ilha inteira. Se você desperdiçou a areia negra...

— Tenha paciência, tecuhtli — respondeu Niente. — Ainda não chegou a aurora. E o que acontecerá vai aterrorizar os orientais mais do que qualquer ataque.

O Yaoyotl e toda a frota, sob a ordem relutante de Citlali, tinham se afastado de Karnmor durante a noite. A ilha era uma escuridão vazia em contraste com as estrelas remanescentes ao longo do horizonte ocidental que se iluminava, enquanto a frota tehuantina — sob brisas estáveis que vinham do leste — navegava em direção ao Strettosei ao norte, como Niente pedira, o mais longe possível da ilha. A visão da tigela premonitória tinha sido clara, havia a possibilidade de este futuro se tornar realidade desde que Niente seguisse o caminho que Axat lhe mostrara. Os guerreiros supremos se reuniram em volta do tecuhtli Citlali, carrancudos e resmungando. Os nahualli do alto escalão, Atl entre eles, também o observavam, e seus olhares eram bem mais avaliadores, sempre à procura de algum sinal de fraqueza fatal da parte do nahual.

Ele não mostraria tal sinal; Axat não permitiria. Axat tinha lhe mostrado a fraqueza da montanha. Tinha sussurrado para ele que a montanha estava prestes a ejetar sua terrível vida outra vez, assim como as montanhas fumegantes de sua própria terra. Com a ajuda Dela, Niente podia acelerar o despertar. Ele olhou para o leste, onde faixas douradas no céu anunciavam o iminente nascer do sol sobre as colinas de névoas azuladas do continente. O céu oriental brilhava agora. Niente protegeu os olhos quando a borda do sol surgiu no horizonte. Feixes dourados flechavam as nuvens, e em direção a Karnmor e ao oeste.

O nahual voltou-se para a ilha. Esperou. Axat, não me abandone...

A ponta do monte Karnmor foi tocada pela luz do sol agora, os raios de sol deslizavam em direção aos lençóis de vapor branco que o ocultavam. Niente podia visualizar a luz tocando os punhos dos cajados mágicos dispostos lá, ainda que esse lado do vulcão estivesse escondido dos tehuantinos agora. Os cajados mágicos tinham sido encantados para soltar os feitiços em seu interior quando fossem tocados pela luz do sol. A saliência de terra se abriria, uma nova cratera apareceria, e a areia negra cairia em cascata em seu interior, e o conteúdo empoeirado seria derramado das bolsas no momento em que o cajado mágico que Niente cravou visse a luz e cuspisse fogo...

Os lençóis de vapor em torno do monte Karnmor foram rasgados em pedaços e substituídos por um jorro de fumaça escura. Não houve som, não por longos segundos, nem mesmo quando a fumaça negra foi consumida por uma explosão bem maior vermelha, laranja e amarela disparada da lateral da montanha. Uma fonte monstruosa de fumaça cinza começou a subir em direção ao céu, e as brisas do leste desmanchavam as bordas durante sua ascensão.

Os tehuantinos então ouviram o som: o estampido agudo da areia negra seguido do lamento divino da montanha em agonia. O som os atingiu como um soco: e o tecuhtli Citlali juntou-se a ele com um urro, os guerreiros e nahualli vibraram, e as comemorações ecoaram nos outros navios. Niente podia ver o fogo espesso descer pelo monte Karnmor em direção à cidade escondida. Ele imaginou a lava escorrendo sobre os habitantes aterrorizados e incendiando tudo em seu caminho. A cidade seria tomada pelo pânico, e após o fogo, viria uma espessa chuva de cinzas...

O navio estremeceu, como se o próprio mar os tivesse levantado e deixado cair novamente. Ondas de cristas brancas avançavam para o norte. A frota balançou nas longas ondas, os mastros oscilavam para frente e para trás. A grande nuvem tinha subido tanto que os tehuantinos tiveram que inclinar suas cabeças para trás a fim de vê-la. Ela bloqueou o céu da manhã que clareava e estendia seus braços escuros e agitados na direção leste.

Este seria um dia escuro, cinzas quentes cairiam do céu em vez de chuva, mas os tehuantinos estavam protegidos do pior.

— Nahual — berrou Citlali contra o rugido contínuo da erupção vulcânica. — Eu não devia ter duvidado de você.

A boca do tecuhtli carregava um largo sorriso aberto.

— Você é realmente o maior nahual de todos, e com você, não há dúvidas quanto a nossa vitória.

Todos os guerreiros e nahualli concordaram e vibraram aos berros. A expressão de Atl era de orgulho.

Niente deveria sentir um grande contentamento. Em vez disso, ele teve que se esforçar para retribuir o sorriso.

 

 


CONTINUA