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Series & Trilogias Literarias
ENCARNAÇÕES
Nico Morel
Varina ca’Pallo
Allesandra ca’Vörl
Niente
Sergei ca’Rudka
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Nico Morel
A explosão da areia negra foi mais poderosa e atordoante do que Nico tinha esperado.
A concussão atingiu seu peito como o punho de Cénzi. Ela agitou os trapos do boneco golpeando a cabeça de papier mâché com tanta força que nenhum deles conseguiu segurá-la no lugar. O boneco desmoronou enquanto as pessoas gritavam e pedaços do esquife funerário do embaixador começaram a cair em volta delas.
— Vão embora! — berrou Nico para seus seguidores. — Espalhem-se! Rápido!
A multidão já fugia; os gardai estavam confusos e atordoados. Os morellis evaporaram na multidão e sumiram em poucos instantes. Nico esperou alguns segundos, encarando a destruição. Havia várias pessoas caídas, a maioria numetodos que estavam em volta do esquife — ele não sentia compaixão alguma pelas mortes e ferimentos sofridos por eles. Ainda assim, alguns espectadores tinham sido feridos pelos estilhaços.
— Sinto muito — Nico sussurrou para um deles, uma mulher com um corte na têmpora que sangrava bastante. — Ninguém tinha a intenção de machucá-la. Cénzi lhe abençoará pelo sangue derramado hoje aqui e por sua dor.
Ele sentiu Liana puxar sua manga.
— Temos que ir — disse ela com urgência.
Nico ergueu os olhos. O embaixador ca’Rudka estava se levantando desajeitadamente da estrutura retorcida da carruagem que seguia o esquife; a espora herege de ca’Pallo, Varina, já tinha saído e observava horrorizada a destruição do esquife. Os cavalos que puxavam a carruagem da kraljica dispararam, e o condutor tentava detê-los mais abaixo no pátio, com gardai correndo atrás deles. A explosão derrubou o condutor da a’téni do assento e encerrou seu cântico; sua carruagem estava intacta e intocada, bem atrás do resto.
Nico sorriu ao ver isso — ele não queria que a a’téni ca’Paim se ferisse.
Onde estivera deitado o corpo de Karl, havia um buraco negro nos paralelepípedos, com estilhaços espalhados por todo lado, a uma dezena de passos de distância.
— Obrigado, Cénzi — ele rezou, fazendo o sinal rapidamente. — Obrigado por me permitir fazer a Sua vontade.
Ele se perguntou se Varina perceberia a ironia em usar a areia negra — uma invenção dos hereges ocidentais, recriada por Karl e Varina — contra eles.
Nico meneou a cabeça quando Liana puxou sua manga novamente. Ela segurava sua barriga inchada.
— Você está bem? — ele perguntou, subitamente preocupado que Liana estivesse ferida.
— Eu estou bem, mas você precisa ir embora. Agora!
Nico meneou a cabeça negativamente.
— Vá em frente — disse calmamente, em voz baixa. — Eu encontro você na casa.
Liana hesitou, e Nico acenou com a mão para ela.
— Vá! — repetiu ele.
Dessa vez, Liana obedeceu e foi embora correndo desajeitadamente por causa da gravidez avançada.
Nico voltou-se para o caos. Ele observou os gardai por detrás da cobertura de pessoas que também ficaram para trás, hipnotizadas pela visão de toda a destruição. Ele ouviu o Velho Nariz de Prata berrar enquanto tentava organizar o resgate. Mal conseguia conter a alegria que sentia, embora tentasse, pois esse era apenas seu orgulho tolo repuxando os cantos de sua boca. Finalmente, ele se afastou lenta e calmamente, em paz — como se tivesse saído para uma simples caminhada matinal.
Eles só conseguiriam pegá-lo se esta fosse a vontade de Cénzi, e se Ele assim o desejasse, então Nico se conformaria com Sua decisão. Cénzi estava acima da autoridade da kraljica ou do archigos. Sozinhos, os dois não podiam fazer nada contra Nico.
Portanto, Nico se afastou sem pressa, com uma expressão solene no rosto. Cénzi o segurava em Suas mãos protetoras.
Quando ele chegou ao esconderijo que os morellis tinham estabelecido no Velho Distrito, uma virada da ampulheta ou mais depois, Nico encontrou uma comemoração em curso. Ancel deu um tapa em seus ombros; Liana o abraçou desesperadamente enquanto os demais reunidos no ambiente gritavam e sorriam.
— Um punhado deles mortos, é o que dizem os rumores — comentou Ancel. — E o corpo do degenerado do ca’Pallo espalhado em pedaços pelo pátio do templo para os ténis limparem; isso ensinará a a’téni a agradar aos hereges. Que pena que a explosão poupou a esposa de ca’Pallo e o Velho Nariz de Prata.
Estranhamente, a alegria no rosto de Ancel azedou o bom humor de Nico. Ele olhou para seus seguidores, para o prazer que sentiam, e Cénzi manifestou-se em Nico. Ele franziu a testa, sua expressão ficou séria.
— Por que estão rindo? Por que que estão sorrindo? — perguntou Nico para eles.
O desprezo em sua voz calou a comemoração na boca de todos. A sala ficou rapidamente silenciosa. Liana soltou Nico; Ancel deu um passo para trás, com o rosto subitamente abatido.
— Sinto muito, Absoluto — disse Ancel ao abrir os braços em um gesto de desculpas. — Nós não fizemos o que Cénzi pediu?
— Fizemos — respondeu Nico. — E só tivemos êxito porque temos as mãos de Cénzi sobre nós. Será que devemos comemorar isso? Sim, mandamos vários hereges para Ele julgar, mas tiramos matarhs e vatarhs de crianças, destruímos suas famílias. Levamos sofrimento àqueles próximos aos hereges, e muitos deles não eram nossos inimigos. Muitos eram fiéis. Devemos ficar contentes por tê-los prejudicado, por ter-lhes causado sofrimento?
— Eu não pensei... — Ancel começou a dizer, mas foi interrompido por um gesto de Nico.
— Não, você não pensou. Nenhum de vocês pensou. Nem mesmo eu. — Ele respirou fundo e sentiu as palavras de Cénzi preencherem sua mente. — Estamos falando de vidas. Estamos falando de pessoas que são pouco diferentes de nós. Sim, são hereges. Sim, eles envenenam os Domínios e a fé concénziana com sua presença. Sim, são nossos inimigos. Mas são pessoas, apesar de tudo, e quando lhes causamos sofrimento, trazemos sofrimento para nós mesmos, ao mesmo tempo.
Nico sentiu lágrimas quentes brotando de seus olhos, e não se importou que escorressem por seu rosto sob os olhares de seus discípulos.
— Eu não lamento uma xícara quebrada. Eu não sofro se a tira da minha sandália se parte. Mas eu choro sim pelos numetodos. Choro porque eles não conseguiram enxergar a verdade. Choro porque não pude convencê-los a seguir a verdade. Choro por que me foi dada a tarefa de ser seu executor. Choro porque me dói ver o desperdício de seu grande potencial.
Ele, então, sentiu-se enlevado por Cénzi, e enxugou as lágrimas de olhos com sua manga enquanto a raiva ia embora.
— Ancel, desculpe-me. Não estou com raiva de você. Não estou. Você é meu braço direito e agiu bem hoje. Todos vocês agiram, e devemos ficar contentes por termos conseguido demonstrar o poder de Cénzi para aqueles que controlam os Domínios e a Fé. Fomos bons servos hoje. Mas é nosso dever sermos sempre bons servos, estarmos prontos para agir quando o Mestre nos chamar para fazer a Sua vontade, independentemente do que Ele nos peça.
Nico abriu os braços, deu um passo na direção de Ancel e o abraçou. Ele beijou a bochecha do homem.
— Você sabe disso. Sei que você sabe, e não cabia a mim repreendê-lo. Você me perdoa, meu amigo?
Ancel fez uma careta e soltou um suspiro pelo nariz. Ele assentiu, e Nico agarrou sua cabeça e beijou sua testa. Ele deu um tapinha nas costas do homem. Sorriu para todos os discípulos. Liana abraçou Nico novamente, pressionando sua barriga e seu filho contra a barriga dele.
— Todos nós agimos bem hoje — Nico disse para eles, seu olhar pairou sobre as pessoas reunidas na sala. — Vocês todos são abençoados.
Varina ca’Pallo
Seus ouvidos zumbiam, Varina mal podia ouvir as vozes que se dirigiam a ela através do retinir. Isso, ao menos, já era um progresso: imediatamente após a explosão, ela se viu inteiramente surda. Varina tinha sido levada para o prédio mais próximo — um dos edifícios de administração dos Domínios que dominavam a Ilha a’Kralji. Foram enviados curandeiros; gardai entravam e saíam fazendo perguntas a ela e Sergei. Até o comandante co’Ingres veio visitá-la, e as notícias que ele trouxe eram péssimas. A kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim estavam abaladas, mas ilesas, porém, dos doze numetodos que acompanhavam o esquife de Karl — todos amigos, a maioria integrantes de longa data do grupo —, cinco morreram e mais três estavam gravemente feridos. Mesmo que sobrevivessem, eles ficariam com sequelas do dia de hoje pelo resto de suas vidas.
Varina chorou por eles mais do que chorou por Karl, que estava além do sofrimento.
Talbot estava entre os numetodos que acompanhavam o esquife; felizmente, seus ferimentos tinham sido leves.
Varina franziu a testa para se concentrar em Sergei, que se debruçava sobre ela de forma solícita. Varina pôde notar seu reflexo distorcido no nariz de prata; seu rosto estava arranhado, uma longa linha de sangue seco cortava sua testa, e em sua bochecha direita havia uma mancha escura de um hematoma inchado.
— A surdez deve ser temporária, me disseram os curandeiros — dizia Sergei.
Ela teve que se concentrar nos lábios do embaixador para compreendê-lo.
— É uma boa notícia para nós dois; minha audição já sofreu o bastante nesses últimos anos. Também me disseram que nenhum dos seus ferimentos deve ser grave, embora você vá ficar dolorida por vários dias. Não parece que tenha ossos quebrados, embora você deva avisá-los caso sinta alguma dor interna aguda ou caso os cortes comecem a ficar vermelhos ou podres.
— Foi Nico quem fez isso? — ela perguntou.
Sergei fez uma careta.
— Sim. Ele e os morellis. Um dos gardai jura ter visto Nico no grupo que conduzia o boneco.
— Por que ele faria isso? Karl e eu nunca... nunca...
Varina mordeu o lábio inferior, e as lágrimas ameaçaram surgir novamente à menção do nome dele.
— Com sorte, você terá a oportunidade de perguntar ao homem em pessoa, quando o encontrarmos — falou Sergei. — E eles o encontrarão. Eu já disse ao comandante co’Ingres que coordenarei pessoalmente a busca por Morel caso ele não tenha sido capturado quando eu voltar de Brezno.
— Você ainda vai? Está bem?
— Sou velho e durão; é preciso mais que um pouco de areia negra para me deter. Eu já comecei uma investigação sobre a maneira como eles adquiriram a areia negra; suspeito de que alguém do arsenal seja um simpatizante morelli. Mas com as recentes incursões na fronteira, eu tenho que ir... — seu sorriso desmoronou com o próprio peso, Sergei pousou sua mão sobre o ombro dela. — Eu sinto muitíssimo, Varina. Isso jamais deveria ter acontecido. Karl merecia muito mais do que isso.
O choro tomou conta dela, e ela não conseguiu responder. Sergei deu um tapinha em seu ombro, mas seu olhar estava voltado para outro lugar.
— O corpo... de Karl? — ela finalmente conseguiu falar.
— O corpo de Karl — respondeu Sergei, e pela contração de seu maxilar, Varina percebeu que ele não estava lhe contando tudo — foi recuperado e já está na pira no Palácio da Kraljica. A Garde Kralji foi posicionada em volta dela, e também há vários numetodos lá, que dizem que não irão embora até que a pira seja acesa.
— Eu preciso ir até lá, então.
Varina começou a se levantar. Ela sentiu os músculos protestarem com o movimento, mas conseguiu se sentar. O quarto rodou ao seu redor e depois se assentou.
— Varina, a kraljica Allesandra disse que ela mesma acenderia a pira. Os curandeiros disseram que você deveria ficar...
— Eu preciso ir até lá — repetiu ela, com mais firmeza.
Sergei suspirou e assentiu.
— Eu disse para a kraljica que essa seria a sua resposta. Eu a acompanharei até lá...
— Varina... — A kraljica Allesandra a abraçou assim que ela desceu da carruagem, depois de Sergei. — Eu sinto muito. Sou a culpada por esta atrocidade. Nós obviamente não tomamos todas as precauções que deveríamos, e isso é responsabilidade minha.
Varina negou com a cabeça.
— Não foi culpa sua — respondeu ela simplesmente.
Atrás dos cortesãos e chevarittai que flanqueavam Allesandra, Varina viu Mason ce’Fieur, um amigo numetodo que era um de seus alunos no grupo. Ele acenou para ela com uma expressão grave.
— Com licença, kraljica — disse Varina para a kraljica e se dirigiu até Mason.
Os dois se abraçaram.
— A’morce numetodo — cumprimentou ele.
O uso do título pegou Varina de surpresa. Karl tinha sido o líder nominal do grupo desde que ela começou a fazer parte dele. Varina nunca considerou que o título pudesse passar para ela com o falecimento dele, mas aparentemente passou.
— Todos nós estávamos lhe esperando — disse Mason.
Ela olhou para a pira. Havia ca’ e co’ em roupas elegantes — aduladores do palácio que queriam ser vistos pela kraljica —, mas também havia numetodos da cidade, a maioria ce’ ou de status inferiores: duzentas pessoas ou mais, rostos que ela reconhecia, gente com quem trabalhou e a quem ensinou. Eles estavam ali agora, silenciosos e pacientes.
A pira tinha a altura de três pessoas, e o cheiro de óleo era forte no pátio entre as alas do palácio tomadas por andaimes. No topo da pilha piramidal de lenha fora colocado um caixão fechado de madeira — não mais o corpo envolvido na bandeira de Paeti. Varina apertou os lábios com a visão, seu estômago revirou, enviando ácido para a sua garganta. Ela engoliu em seco, uma vez.
— Vamos fazer isso logo. Em breve, teremos que acender mais piras para o restante de nossos companheiros que caíram.
Com Sergei à sua esquerda, kraljica à sua direita, e as fileiras de numetodos atrás dela, Varina avançou até a base da pira. Ela ergueu o olhar para o caixão e por um momento teve que fazer uma pausa, sobrepujada pelas lembranças de Karl. Seu estômago revirou novamente, e Varina fechou os olhos brevemente.
Ela abriu os olhos novamente quando encontrou, em sua mente, o feitiço que havia preparado na noite anterior. Estava em sua cabeça como um ovo prestes a explodir, e Varina o acariciou com seus pensamentos. Este era o método dos numetodos: como os ténis, eles usavam uma combinação de palavras e gestos para dar forma ao feitiço — uma fórmula que devia ser seguida. Como com os ténis, o esforço de invocar feitiços tinha um custo de exaustão e fraqueza. Ao contrário dos ténis, os numetodos não invocavam Cénzi ou atribuíam seu poder a qualquer divindade; ao contrário dos ténis, eles não precisavam lançar o feitiço imediatamente após o término do encantamento. Os numetodos sabiam como manter o feitiço em suas mentes, como lançá-lo com uma palavra e um único gesto muito tempo depois. Eles, portanto, podiam “pagar antecipadamente” a fraqueza que acompanhava a invocação do feitiço e não eram afetados depois. Os numetodos podiam lançar um feitiço preparado com um simples gesto ou pronúncia.
Varina fez isso agora. Diante da pira, ela abriu o feitiço.
— Tine — disse Varina na língua de Paeti, a terra natal de Karl.
Fogo. Varina fez um gesto como se jogasse uma pedra na base da pira. Um sol irrompeu no centro da pirâmide, branco-amarelado e tão quente que seu deslocamento de ar tremulante golpeou os espectadores como o vento de um furacão. A lenha banhada em óleo pegou fogo com um estrondo, e as chamas saltaram no ar, com tornados de fagulhas rodopiantes diante delas. Uma coluna de fumaça veio a seguir, levada pela brisa na direção dos telhados distantes do palácio, onde foi dispersada pelo vento e espalhada na direção do Velho Templo e do rio A’Sele, a oeste.
O fogo furioso agora lambia o caixão que continha os restos mortais de Karl. Enquanto Varina assistia, as chamas subiram pelas laterais até obscurecer a caixa de madeira com o fogo e encobri-la com fumaça.
— Adeus, meu amor — sussurrou Varina. — Eu sempre sentirei sua falta.
As lágrimas desciam por seu rosto sem pudor e secavam rapidamente pelo calor da pira. Alguém a estava abraçando, e ela não sabia se era Sergei, a kraljica ou Mason.
Não importava. Ela assistiu aos restos mortais de Karl alçarem à eternidade em uma espiral.
Varina ficou ali até o fogo na pira entrar em colapso, muitos minutos depois, e virar uma pilha de cinzas e carvão tão morta e carbonizada quanto ela mesma.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra observou Sergei andar de um lado para o outro em frente ao quadro da kraljica Marguerite. O olhar severo do retrato parecia, para Allesandra, acompanhar o avanço manco do embaixador, de lá para cá. O comandante co’Ingres sequer o observava; seu olhar estava fixo e resoluto no pequeno fogo da lareira, aceso com a intenção de tirar do ambiente o frio noturno. A a’téni ca’Paim estava sentada ao lado da mesa de doces, com um prato cheio em seu colo largo.
Allesandra não tinha apetite. A carnificina que a kraljica testemunhara durante a procissão fúnebre lhe tirara a fome. Suas mãos ainda tremiam ao lembrar. Tão covardemente, o uso da areia negra. Uma morte tão horrível... Ainda havia um leve zumbido em seus ouvidos provocado pela explosão.
— Não podemos permitir outro incidente como este, kraljica — declarou Sergei ao passar pelo quadro novamente. — A mensagem que isso transmite à população; a mensagem que transmite aos fiéis... Não podemos permitir.
— Não havia magia téni envolvida no incidente — declarou a a’téni ca’Paim em tom severo. — Morel sabe quais são as consequências de usar o Ilmodo. É por isso que usou a areia negra; embora um de seus seguidores provavelmente tenha acendido a areia negra com um feitiço quando o esquife passou sobre ela.
— Esta é exatamente a questão — respondeu Sergei. — Ele conseguiu perturbar um ritual solene dos Domínios sem o Ilmodo. Sem magia. O uso da areia negra foi uma mensagem: de que a Fé é inútil e fraca, que os Domínios podem ser reféns de qualquer um que consiga criar areia negra; que os numetodos são mais perigosos do que qualquer téni. Isto é pior do que se ele tivesse usado o Ilmodo.
O rosto de ca’Paim contorceu-se em uma careta de desdém.
— A Fé não é fraca — respondeu ela com firmeza. — Ela está mais forte do que há décadas. O archigos Karrol cuidou disso.
Allesandra notou que ca’Paim fingiu não ouvir o audível fungar de desdém dado por Sergei diante daquela declaração.
— Você acha que Morel não é inteligente o bastante para compreender o simbolismo de suas ações? — perguntou Allesandra para a a’téni. — Ficou claro o suficiente para mim. Aquele boneco blasfemo de Cénzi estava encarando o esquife diretamente quando a areia negra explodiu. Acho que Morel teria usado o Ilmodo para obter o mesmo efeito, mas ele estava obedecendo às leis da fé concénziana. Peço desculpas, a’téni ca’Paim, mas o homem acredita seguir os preceitos do Toustour e da Divolonté bem mais à risca do que qualquer a’téni e o archigos Karrol.
— A mensagem de Morel pode ser interpretada de várias maneiras por pessoas diferentes, kraljica — insistiu Sergei —, e isso é um problema ainda maior. Sim, para a Fé ele está dizendo: “vejam só, eu obedeci suas regras, embora as considere completamente tolas”. Para os numetodos, Morel diz: “eu considero suas crenças desprezíveis e hereges”. Mas acho que a população em geral, que não é nem téni, nem numetodo, interpreta uma declaração completamente diferente. Acho que alguns deles podem olhar para o que aconteceu e pensar: “eu posso fazer aquilo. Ora, qualquer um pode fazer aquilo”. Isso é perigoso. Não é no que queremos que as pessoas acreditem, especialmente as que podem ter motivos para se opor a nós.
Ca’Paim atacou um docinho e o mastigou furiosamente. Co’Ingres assistia à dança das chamas.
— Então o que você sugere que eu faça, Sergei? — perguntou Allesandra.
— Precisamos encontrar Morel. Temos que executá-lo publicamente, com violência — respondeu Sergei. — Então sua resposta à mensagem dele será: “se alguém tentar isso, morre.”
— É isso o que Varina me dirá para fazer? — indagou a kraljica.
— Não — admitiu Sergei. — Não é. Mas eu sou seu conselheiro, não a a’morce dos numetodos. Minha lealdade é à senhora, kraljica; a Nessântico e aos Domínios, como sempre. Eu digo o que será mais útil a essa fidelidade. Precisamos cuidar de Nico Morel e seus seguidores com rigor.
— Eu concordo completamente com o embaixador — disse ca’Paim ao se levantar, ainda segurando o prato de doces. — Meu pessoal irá ajudá-lo como for possível. Eu posso começar interrogando os suspeitos de ter afinidades com os morellis...
Ela fez o sinal de Cénzi com uma mão só para Allesandra e os demais.
— Será que Talbot poderia mandar alguém embrulhar isso para mim, kraljica? — perguntou ca’Paim ao erguer o prato. — Eu odiaria desperdiçá-los...
A a’téni ca’Paim foi embora com um pacote de doces, acompanhada pelo comandante co’Ingres. Talbot — que insistiu em voltar ao trabalho, apesar dos cortes e arranhões que recebeu — mandou um trio de criadas limpar as mesas e levar as bandejas de volta às cozinhas.
Sergei não fez menção de ir embora. Allesandra observou o embaixador, cuja atenção parecia estar voltada para os criados enquanto realizavam suas tarefas, com uma mão atrás das costas e a outra apoiada na bengala de punho prateado que quase combinava com seu nariz. Pouco tempo depois, a última criada fez uma mesura e fechou a porta ao sair.
— O que foi, Sergei? — perguntou Allesandra então. — Estou esperando Erik ca’Vikej chegar para almoçar em meia virada. Ele quer conversar a respeito da possível reação do governo exilado da Magyaria Ocidental ao problema dos morellis.
Sergei voltou-se para kraljica. Ela viu os olhos do embaixador fecharem brevemente e seus lábios franzirem, como se o gesto o incomodasse — ou como se a menção ao nome de ca’Vikej o aborrecesse.
— A senhora está brincando com fogo e areia negra, kraljica. Como embaixador dos Domínios na Coalizão, devo aconselhá-la a não dar a impressão de que apoia abertamente o homem.
Ele pareceu engolir algo mais que poderia ter dito, e Allesandra perguntou-se se Sergei percebia que outros sentimentos ela nutria por Erik.
— Como embaixador dos Domínios na Coalizão, eu espero que você me apoie, do modo como eu disser para fazê-lo — respondeu Allesandra com rispidez.
Sergei abaixou a cabeça, principalmente, suspeitou a kraljica, para que ela não pudesse ver seus olhos.
— Perdoe-me, kraljica; este é, obviamente, o meu dever. Verei seu filho em poucos dias, mas gostaria de oferecer-lhe um ramo de oliva em vez de uma espada desembainhada.
Allesandra já fazia que não com a cabeça antes que ele terminasse de falar.
— Você está se tornando previsível, Sergei, e mole com a velhice.
— Então a senhora decidiu que é contra a minha proposta de reconciliação com ele?
— Eu agradeço o esforço que você dedicou a isso, Sergei. E a boa intenção.
— Mas?
— Eu não tenho intenção de ceder para que meu filho possa tomar o Trono do Sol.
Tap, tap... Sergei deu alguns passos arrastados em direção a Allesandra. Seu rosto enrugado tinha uma expressão sincera, e ela pôde ver o reflexo do fogo da lareira em seu nariz polido.
— A senhora não estaria cedendo, kraljica, apenas nomeando seu filho como seu sucessor na sua morte.
A risada que ela soltou soou mais como uma tosse.
— Eu não consigo ver a diferença, Sergei. Se eu nomear Jan como herdeiro, perco meu poder como kraljica. A cada proclamação que eu fizer, todos passarão a olhar na direção a leste, para Brezno e para o hïrzg, a fim de ver se ele concorda. O Conselho dos Ca’ aqui ficará mais preocupado em ver como suas decisões são consideradas por Jan do que por mim. Eu pretendo ter uma vida ainda muito longa, Sergei. O que você me disse no outro dia, que eu ainda tenho décadas para me igualar à kraljica Marguerite?
Allesandra se levantou — deixe que ele note que nossa conversa acabou. Ela falou em um tom distante e severo, como se desse uma ordem para Talbot.
— Bem, eu pretendo fazer exatamente isso. E você me apoiará ou outra pessoa será meu embaixador.
A kraljica observou seu rosto, embora a expressão de Sergei raramente revelasse seus pensamentos mais íntimos. Não revelou agora. Ele fez uma reverência um pouco desajeitada e dura, mas seu rosto estava impassível e seus olhos pareciam não ter nada além de respeito por Allesandra.
— Eu sempre servirei a Nessântico e a quem estiver sentado no Trono do Sol — respondeu Sergei. — Sempre.
Ela quase riu novamente — dito com tanta cautela.
— Então diga ao meu filho que ele brinca com fogo e areia negra, como você disse, com suas recentes incursões na fronteira, e que minha paciência está se esgotando. Diga-lhe que espero que parem imediatamente, ou serei forçada a responder na mesma moeda. Lembre a Jan que a Magyaria Ocidental só lhe pertence porque não enviei a Garde Civile inteira para apoiar Stor ca’Vikej, um erro que não repetirei.
O rosto de Sergei não revelou nada ao fazer uma reverência.
— Como a kraljica desejar — respondeu ele.
— Ótimo. Mandarei Talbot fazer uma lista de exigências para a sua reunião, e minhas respostas às possíveis questões que você ouvirá do hïrzg.
O hïrzg. Não “meu filho”. Allesandra teve uma súbita lembrança de Jan: de segurá-lo como bebê, de vê-lo mamar em seu peito e do prazer íntimo e intenso de sentir o leite vir; das primeiras palavras; dos primeiros passos trôpegos; das ocasiões em que ele veio até ela chorando por causa de algum machucado ou de uma ofensa em que ela o abraçava e consolava. Quando foi que isso mudou? Por que deixei que acontecesse? Ela respirou fundo. Sergei observava Allesandra, com os olhos mucosos voltados para seu rosto.
— Estamos encerrados — falou ela. — Mandarei Talbot com minhas instruções.
— Sim, kraljica.
Allesandra odiou a compaixão que Sergei deixou transparecer em seu rosto, odiou que ele tivesse percebido o vazio dentro dela, que a fazia chorar sozinha à noite, que atormentava seus sonhos. O embaixador fez uma mesura ao sair, mas a kraljica já não estava prestando atenção nele. Era Jan quem ela via agora, como ele era da última vez que ela o viu. Allesandra imaginou como ele seria agora, como seriam seus netos, a quem ela nunca tinha abraçado, beijado ou embalado no colo. Tanta coisa que você deixou de viver. Tanta coisa que perdeu. Sua visão oscilou, as paredes cobertas por tapeçarias se tornaram brevemente líquidas, e ela se perguntou se Sergei estaria certo. Talvez fosse o momento.
Houve uma batida suave na porta, e Allesandra piscou, enxugando os olhos rapidamente com a manga.
— Entre — disse ela.
Talbot enfiou a cabeça na porta.
— O embaixador disse que a senhora precisava de mim, kraljica.
Ela fungou.
— Sim. Entre, mas primeiro mande um dos criados trazer pergaminho e tinta. E se o vajiki ca’Vikej chegar, diga-lhe que o receberei em breve.
— Eu fiquei horrorizado quando soube, preocupado que a senhora tivesse se ferido...
Erik andava de um lado para o outro em frente às janelas do aposento. O almoço fumegava na mesa, intocado. Sentada na cadeira à mesa, Allesandra observava ca’Vikej fixamente: a preocupação em seu rosto, a maneira como seus músculos se contraíam no crânio careca.
A preocupação que ele sente por você é real. Não é fingida, não é baseada em seus próprios interesses: é genuína. Ela esperava que estivesse certa quanto a isso. Allesandra também se deu conta de que tomara uma decisão, espontânea e não solicitada. Uma decisão envolta em sua própria solidão, no afastamento de Jan, no erro que ela cometera com o vatarh de Erik, na dor intensa que sentia quando estava com Varina, na raiva dirigida aos morellis. Allesandra esperava que sua decisão fosse a certa.
— Eu estou bem, Erik. Fiquei abalada, mas não ferida. O ataque não foi direcionado a mim.
Ele balançou a cabeça enfaticamente.
— Se a senhora tivesse se ferido, eu mesmo teria saído e encontrado esse Nico Morel, e... — Ele parou e se afastou das janelas a fim de olhar para Allesandra; seu rosto e voz abrandaram. — Minhas desculpas, kraljica. É que fiquei tão preocupado...
— Eu estou bem — ela repetiu. — E aqui, enquanto estivermos sozinhos, eu prefiro que você me chame de Allesandra.
— Allesandra — disse Erik, como se saboreasse a palavra. Ele sorriu. — Obrigado. Mas não menospreze esses morellis. Eles são um perigo para você, quer você acredite ou não. São fanáticos que ameaçam qualquer um que não acredite no que eles acreditam.
— Você é um fanático, Erik? — perguntou a kraljica com delicadeza e apontou para a cadeira à sua direita.
Ca’Vikej sentou-se antes de responder.
— Sobre a Magyaria Ocidental, você quer dizer?
Ele pegou a taça de vinho, e sacudiu o líquido rubro.
— Não, não quanto a isso. Em política, eu sou mais pragmático do que meu vatarh. Acredito que a Magyaria Ocidental estaria melhor sendo parte dos Domínios. Acredito que eu seria um bom gyula, se Cénzi desejar que isso aconteça. Estou disposto a trabalhar tão duro quanto for necessário para tornar isso possível, mas também sei que às vezes sacrifícios e concessões precisam ser feitos para se alcançar um objetivo, e que às vezes o melhor resultado não é aquele que se gostaria de ver. Então, não, eu não sou um fanático, mas um realista.
Erik ergueu a taça e a pousou novamente.
— Isto não quer dizer que não existam coisas com as quais eu me importe muito ou que eu não seja um homem passional, kralji... — Ele respirou fundo. — Allesandra. Quando chego a amar alguma coisa ou alguém...
A mão esquerda de Erik abandonou a taça e pousou na toalha de mesa de linho. A kraljica estendeu sua própria mão e pousou na dele. Allesandra o ouviu respirar fundo. Seus belos olhos claros sustentaram o olhar dela, sem pestanejar, quase como um desafio. Ele abriu os dedos e os entrelaçou aos de Allesandra.
— Eu sou passional. — ela disse em voz baixa. — Nessântico e os Domínios são minhas paixões. E também sou perigosa por causa disso. Portanto, esta... — Allesandra apertou levemente os dedos de Erik — ... não seria uma decisão a ser tomada levianamente. Ou, se você preferir, podemos comer o jantar que está posto diante de nós.
Erik assentiu, ergueu sua mão, ainda segurando a de Allesandra, até sua boca e beijou as costas da mão dela. Ela sentiu sua respiração quente em sua pele, o toque dos lábios, suave e excitante.
— Você está com fome, Allesandra? — perguntou Erik.
É isso que você quer... Foi por isso que você o chamou aqui hoje...
— Estou — ela respondeu.
A kraljica levantou-se da cadeira, ainda segurando a mão dele, e o levou embora.
Niente
As águas da baía de Munereo estavam cheias de navios ancorados tão próximos uns dos outros que parecia ser possível uma pessoa cruzar a grande baía a pé sem se molhar. Suas velas estavam recolhidas e amarradas nos mastros, e as embarcações estavam amontoadas sob um céu baixo com nuvens que corriam para o oeste. Ocasionais raios solares empoeirados perfuravam as nuvens e deslizavam sobre a baía, brilhando nas ondas distantes e nos panos brancos amarrados em seus mastros.
Niente nunca tinha visto tantos navios reunidos em um só lugar, e só uma vez, anteriormente, tinha visto tantos guerreiros tehuantinos reunidos.
Ele ouviu um grito ao seu lado, conforme seu filho, Atl, se aproximava.
— Pela teta esquerda de Axat — ele sussurrou a blasfêmia que ecoou alto no ar frio da manhã —, isto é uma novidade no mundo.
— Certamente que sim — respondeu Niente para o jovem.
Ele piscou, e tentou, sem sucesso, limpar a imagem borrada — mesmo a visão do olho remanescente começava a falhar. Os dois estavam sobre um morro do lado de fora das muralhas da cidade, não muito longe da estrada principal que levava ao porto. A estrada estava repleta de soldados que marchavam em direção aos barcos. As poucas centenas de nahualli e os feiticeiros que acompanhariam a força invasora estavam reunidos em seu próprio grupo, um pouco mais abaixo no morro, próximo à estrada. Eles estariam entre os últimos a subir a bordo das embarcações, imediatamente antes do tecuhtli Citlali e seus guerreiros supremos.
Atrás de Niente e Atl, as espessas muralhas de Munereo ainda estavam esburacadas e manchadas pelos vestígios da batalha travada ali há uma década e meia, quando as forças dos Domínios tinham sido derrotadas pelo exército do tecuhtli Zolin, o antecessor de Citlali. Niente tinha participado dessa batalha, tinha visto a areia negra rugir e as pedras voarem, e tinha ajudado a sacrificar os líderes orientais derrotados em nome de Axat. Também tinha navegado mar adentro ao lado do tecuhtli Zoli desse mesmo porto até os próprios Domínios.
Há tanto tempo. Parecia ter sido em outra vida para Niente.
Uma vida que ele agora era forçado a revisitar, se quisesse alcançar a visão vislumbrada na tigela premonitória. Quantos destes guerreiros morrerão por causa disso? Quantas almas serão enviadas para o submundo por causa do que estou fazendo? Axat, por favor, diga-me que eu sou capaz de realizar isso, que valerá a pena carregar essa culpa em minha alma. Ajude-me.
— Taat?
Niente saiu do devaneio.
— O quê?
— Pensei que o senhor tinha dito alguma coisa.
— Não — ele respondeu.
Pelo menos, espero que não. Ninguém pode saber dessa visão. Não ainda.
— Eu só pigarreei; o ar desta manhã está afetando meus pulmões. — Niente apontou na direção dos navios e da baía. — Amanhã, navegaremos na direção do sol quando ele nascer.
— E haverá bons ventos — afirmou Atl.
A confiança em sua voz fez Niente se voltar para o filho, estreitando os olhos.
— Você sabe disso? — perguntou ele.
Atl sorriu brevemente, como o toque do sol através das nuvens sobre os navios lá embaixo.
— Sim.
— Atl... — Niente ia dizer, mas o filho ergueu uma mão.
— Pare, taat. Deixe-me terminar por você. “Olhe para mim. Veja como Axat me marcou. Deixe a premonição para algum outro nahualli. Axat é cruel com aqueles a quem Ela dá a Visão.” Eu já ouvi isso tudo. Muitas vezes.
— Você devia olhar para mim — insistiu Niente.
Ele tocou seu olho branco e cego, massageou os músculos flácidos do lado esquerdo do rosto, os sulcos da pele morta e cheia de cicatrizes: uma máscara de horror.
— É assim que você quer ficar?
O olhar de Atl varreu o rosto de Niente e se afastou mais uma vez.
— Isso levou muitos anos, taat — ele respondeu. — E o juramento dos nahualli nos obriga a fazer o que Axat exigir de nós. E sua premonição também lhe deu isso.
Atl apontou para o bracelete dourado no braço de Niente.
— Você não deve fazer isso — insistiu Niente. — Atl, estou falando sério. Quando eu morrer, faça como quiser, mas enquanto eu estiver vivo, enquanto for seu taat e o nahual...
Ele pousou sua mão no ombro de Atl. O contraste entre suas peles o assustou: a dele era flácida, dolorosamente seca e tomada por incontáveis rugas; a de Atl era lisa e bronzeada.
— Não invoque Axat — terminou Niente. — Esta tarefa é minha. É o meu fardo.
— Não precisa ser só seu.
— Sim, precisa.
As palavras de Niente saíram mais ríspidas do que ele tinha intenção, fazendo com que Atl virasse o rosto, como se tivesse levado um tapa. Os olhos do jovem estavam entreabertos, e ele disparou um olhar de pura fúria para Niente antes de virar a cabeça ligeiramente para encarar deliberadamente a baía. “Cuide dele”, dissera Xaria antes de os dois irem embora. “Atl ama, respeita e admira você. Seu filho quer tanto que você se orgulhe dele — e eu me preocupo que Atl faça alguma tolice tentando...”
Xaria não compreendia. Nem Atl, e Niente não podia contar para nenhum dos dois. Ele não podia permitir que o filho usasse os feitiços premonitórios, não por causa do preço que eles cobravam — embora isso fosse significativo — mas porque sabia que Atl tinha o mesmo Dom que ele, e Niente não podia deixar que Atl visse o que ele viu na tigela. Não podia. Se Atl visse o que ele viu, Niente podia perder o Longo Caminho. Os vislumbres do futuro de Axat eram volúveis e facilmente mutáveis.
— Sinto muito — ele disse para Atl —, mas isso é importante.
— Tenho certeza que sim, porque o nahual está sempre certo, não é?
Dito isto, Atl fez uma mesura debochada para o taat e seguiu na direção dos outros nahualli, no mesmo instante em que Niente esticou o braço na direção dele. O nahual piscou; com o olho remanescente, ele viu Atl entrar no grupo.
Ele podia sentir os olhares de todos os nahualli voltados para ele morro acima, imaginando se Atl em breve desafiaria seu taat como nahual, imaginando se talvez devessem desafiá-lo primeiro.
Seus olhares eram avaliadores, desafiadores, destituídos de misericórdia ou compaixão.
Sergei ca’Rudka
Da rua onde se encontrava, Sergei observava o esquadrão do comandante co’Ingres se reunir em volta do prédio gasto e degradado do Velho Distrito sob a cinzenta aurora. O fedor dos açougues da rua tomou suas narinas. Havia quatro homens na frente, outros três em volta da porta dos fundos, e dois em cada espaço entre a casa e seus vizinhos. Também havia um quarteto de ténis-guerreiros cedidos pela a’téni ca’Paim — reunidos em volta da porta da frente, já entoando os cânticos de proteção.
A manhã estava fria, e Sergei fechou mais a capa em volta de seus ombros. A rua estava vazia — havia um utilino postado nas encruzilhadas próximas para impedir que as pessoas entrassem, e multidões se reuniram atrás deles para assistir. Os vizinhos que notaram a Garde Kralji avançando permaneceram prudentemente em suas casas. Sergei podia ver a oscilação ocasional de um rosto nas cortinas, embora não tivesse visto movimento algum na casa em que estavam prestes a entrar.
Isso fez Sergei torcer os lábios em uma careta. A informação veio de um bom informante e foi “verificada” pela interrogação de dois suspeitos de serem simpatizantes dos morellis na Bastida. Sergei tinha esperança de que esta batida capturasse Nico Morel. No entanto...
— Agora! — co’Ingres gritou e acenou com a mão.
Um dos ténis-guerreiros gesticulou, e a porta da casa explodiu em lascas de madeira, acompanhada de um estrondo alto e uma fumaça escura. A Garde Kralji entrou correndo, brandindo espadas e ordenando que qualquer pessoa no interior se rendesse.
Sergei não ouviu respostas aos gritos. Fez uma careta e começou a atravessar a rua, batendo com a bengala nos paralelepípedos — o comandante co’Ingres seguiu o passo cadenciado e cauteloso de Sergei —, no mesmo momento em que o o’offizier no comando do esquadrão apareceu na porta, negou com a cabeça.
— Sinto muito, embaixador, comandante — falou ele, dando passagem para que Sergei entrasse na casa.
Seus joelhos estalaram conforme ele subia pela soleira elevada. Ele ouviu o ruído alto das botas dos gardai vasculhando os ambientes no segundo andar batendo no assoalho.
— Aparentemente não há ninguém aqui — disse o’offizier.
— Não. Eles sabiam que viríamos — respondeu Sergei.
O cômodo em que eles estavam tinha pouquíssima mobília: uma mesa cuja superfície arranhada era pouco escondida por uma toalha quadrada e manchada; algumas cadeiras bambas com assentos de vime que precisavam de revestimento novo. Parecia que, se os morellis morassem aqui, viviam com pouco luxo. Sergei foi até a lareira no outro aposento e agachou, resmungando com a dor em suas pernas. Ele estendeu a mão sobre as cinzas: sentiu o calor que ainda emanava dos carvões abaixo. O embaixador ficou de pé novamente.
— Eles estiveram aqui ontem à noite. Alguém os avisou.
Sergei coçou a pele perto da narina direita falsa. No consolo sobre a lareira, havia apenas um pergaminho dobrado com capricho, com algo escrito na frente. Sergei aproximou-se para ler: era seu próprio nome, escrito em letra elegante e cuidadosa. Ele bufou pelo nariz metálico.
— Embaixador? — Co’Ingres espiava sobre o ombro de Sergei. — Ah, então nosso informante estava certo.
— Certo a respeito da localização. Errado quanto ao momento — ele respondeu.
Sergei pegou o papel do consolo e abriu o pergaminho duro.
Sergei — sinto muito ter perdido sua visita. Cénzi me diz que um dia eu e você devemos conversar. Mas não hoje. Não até eu ter cumprido todas as tarefas que Ele me passou. Gostaria de pensar que talvez agora você entenda que estou apenas fazendo Seu trabalho, mas suspeito que seus olhos, assim como os da kraljica e da a’téni, estão cegos. Sinto muito por isso, rezarei para que Cénzi lhe dê a visão. Estava assinado simplesmente “Nico”.
— Não encontraremos nada aqui — disse Sergei para co’Ingres. — Mande seus homens vasculharem o lugar exaustivamente, caso tenham perdido algum detalhe importante, mas não vão encontrar nada. Os morellis têm seu próprio informante, seja na Garde Kralji ou, mais provavelmente, dentro da Fé. Nós os perdemos.
Ele cutucou as cinzas na lareira com a ponta da bengala até ver uma brasa vermelha. Deixou o bilhete cair sobre os carvões. As pontas do papel escureceram, linhas vermelhas correram sobre o pergaminho antes de ele pegar fogo.
— Não deixarei que isso aconteça uma segunda vez — falou Sergei: para co’Ingres, para o papel, para o fantasma de Nico.
O papel virou cinza seca, e seus fragmentos subiram pela chaminé. Sergei ergueu os ombros para ajeitar a capa. Bateu com a bengala uma vez com força no piso da casa e saiu.
— Teremos sucesso da próxima vez — disse Sergei. — Eu juro.
Ele observou Varina dar de ombros na luz que passava entre as cortinas de renda da janela. Os desenhos da renda pontilhavam seu rosto e ombros com luz salpicada e deixavam seus olhos nas sombras.
— Eu sei que não é o que você quer ouvir — respondeu ela —, mas parte de mim está feliz por Nico ter escapado de você, Sergei. Acho que Karl teria se sentido da mesma forma.
O bule de chá sobre a mesa entre eles fez barulho quando Sergei se ajeitou na cadeira.
— Sua compaixão é admirável, e é o que faz a todos, incluindo Karl, amarem você.
— Mas?
Varina pousou a xícara de chá. As sombras das rendas percorreram as costas das suas mãos.
Agora foi Sergei quem deu de ombros.
— Compaixão nem sempre é bom para o Estado.
— Você teria dito isso na época em que os numetodos eram chamados de hereges e condenados à morte? — retrucou Varina suavemente.
Ela olhou lá fora, pela janela cortinada e voltou a olhar para Sergei.
— Você teria dito isso quando o kraljiki Audric e o Conselho dos Ca’ chamaram você de traidor?
Sergei estendeu suas mãos em frente ao corpo como se fosse deter um ataque. Ele lembrava-se muitíssimo bem do tempo que tinha passado na Bastida após ter sido condenado por Audric: de como tinha sentido medo de que fizessem com ele o que ele tinha feito com tantos outros, de como Karl e Varina o tinham salvado desse destino, colocando suas próprias vidas e liberdade em risco.
— Eu me rendo — falou o embaixador. — A dama tomou o campo de batalha.
Varina quase sorriu ao ouvir isso. A expressão foi momentânea, mas Sergei sorriu de volta — era a primeira vez que a via mostrar um traço de divertimento desde a doença fatal de Karl. O embaixador estendeu o braço e deu um tapinha na mão de Varina; a pele flácida em volta de seus ossos fez as mãos dela parecerem jovens, em comparação.
— O menino teve uma vida difícil — argumentou ela. — Ele foi tirado de sua pobre matarh por aquela louca horrorosa, a Pedra Branca. Que tipo de vida o menino poderia ter tido? Não fazemos ideia dos horrores pelos quais ele pode ter passado com ela.
— Concordo, não há como sabermos. No entanto, ele não é mais um menino, mas um homem que tem que ser responsabilizado por seus atos — disse Sergei.
E ergueu novamente as mãos ao ver que Varina se preparava para responder.
— Eu sei, eu sei. “A criança molda o homem”. Eu conheço o ditado, e sim, há verdade nessas palavras, mas ainda assim... — Sergei balançou a cabeça. — ... Nico Morel não é o menino que conhecemos, Varina, não importa o quanto você gostaria que isso fosse verdade. A última ação dele matou cinco amigos nossos e feriu muitos outros.
— Eu sei — ela respondeu tristemente. — E não estou dizendo que ele não deve ser punido por isso. Nem considero Nico o monstro que você pinta, mesmo depois do que ele disse, mesmo depois do que fez ao...
Varina parou. Sergei ouviu a hesitação em sua voz e viu seus olhos umedecerem, e soube o que ela não diria. Varina fungou e recuperou o controle.
— Mas compaixão... Você está errado quanto a isso, Sergei. Está errado a respeito do que estou sentindo. Um cachorro raivoso não pode ser culpado por sua raiva, mas deve ser detido pelo bem de todos. Eu compreendo, Sergei. Mas se o cão for meu, então é meu dever detê-lo. Meu.
Seu tom era fervoroso, e Sergei ficou intrigado com a urgência que ouviu em sua voz.
— Só me prometa que, se, por alguma razão, você souber de alguma sobre Nico, irá avisar o comandante co’Ingres imediatamente — pediu o embaixador. — Ele prometeu que a protegeria enquanto eu estiver em Brezno, mas me preocupo com os morellis, especialmente após o funeral de Karl. Só Cénzi sabe o que eles são capazes de fazer. Detê-lo sozinha seria arriscado. Pelo que a a’téni ca’Paim me falou, a habilidade de Nico com o Ilmodo é absolutamente assustadora, se ele escolher usá-la. Prometa-me que tomará cuidado. Prometa-me que não fará esforço algum para contatá-lo. Esse cão raivoso em particular ameaça a todos na cidade; deixe que a cidade o detenha.
Outro sorriso, este bem mais fraco que o anterior.
— Você pareceu o Karl falando agora. Eu sempre acreditei que a cautela era superestimada — disse Varina, e seu sorriso de repente se ampliou. — E você, Sergei... vai tomar cuidado?
— O hïrzg Jan, embora isso provavelmente demonstre sua falta de bom senso, parece gostar de mim, apesar do relacionamento frio entre ele e sua matarh. De qualquer maneira, eu sou apenas o mensageiro da kraljica Allesandra.
E às vezes o mensageiro é culpado quando a mensagem não é o que eles querem escutar... Sergei sorriu mesmo quando a dúvida penetrou em sua mente. Jan não gostaria da mensagem de Allesandra, isso era certo. E ele suspeitava que Allesandra também não iria gostar da resposta de Jan.
Você está ficando velho demais para isso... Esse pensamento continuava a vir à tona, cada vez mais. Sergei estava cansado, e a ideia de passar vários dias em uma carruagem na estrada, da surra que seu corpo levaria da viagem, e do desconforto das estalagens e camas estranhas no caminho...
Velho demais...
— Cuide-se, Varina. Tome cuidado e, por favor, lembre-se do que falei sobre Nico.
Com uma careta, Sergei empurrou a cadeira e se levantou. Ele pegou sua bengala, que estava apoiada na mesa. Varina levantou-se com o embaixador, dando um passo em sua direção e abraçando-o. Com uma mão, Sergei retribuiu o gesto.
— E você, cuide-se — disse Varina. — E cuidado com as cortesãs, embaixador. Eu soube que, em Brezno, elas não são tão... discretas como somos aqui.
Não serão as cortesãs com quem me envolverei...
— Infelizmente, quando elas olham para mim, não querem outra coisa que não sair correndo — disse Sergei, tocando o nariz.
Ele abraçou Varina com força mais uma vez, e depois se afastou.
— Eu a visitarei assim que retornar. Prometo.
Brie ca’Ostheim
Kriege não deveria estar no quarto de vestir de maneira alguma, mas tinha o hábito de fugir das babás que cuidavam dele. Brie teria que falar com elas mais tarde.
Ela acordou quando ouviu a porta de serviço do quarto de vestir ranger ao ser aberta. Ouviu os passos de Kriege sobre o tapete. Brie saiu de mansinho da cama e entrou no quarto de vestir que ela e Jan compartilhavam. Kriege estava em pé diante na penteadeira de Jan, com as mãos ocupadas com alguma coisa que seu corpo escondia. Ela sorriu satisfeita, esfregando os olhos para espantar o sono.
— Kriege — perguntou Brie —, o que você está fazendo?
Kriege deu meia-volta, assustado, e ela viu a adaga na mão do menino, com a lâmina fora da bainha e os gumes de aço firenzciano escuro reluzindo. A boca de Kriege fez um “Ó” de surpresa, e seu rosto ficou vermelho quando se deu conta de que ainda segurava a arma.
— Kriege, abaixe isso. Com cuidado. Seu vatarh ficaria muito irritado se visse você com isso.
Os olhos de nove anos de idade se arregalaram. Brie viu seu lábio inferior começar a tremer.
— Eu não estou irritada com você, Kriege. Apenas abaixe isso.
Ele obedeceu, um pouco rápido demais, de forma que a adaga bateu na madeira e sacudiu as caixas ali. Brie deslizou para frente rapidamente, pegou a arma e a colocou de volta na bainha usada. Kriege observou seus movimentos: ele observava tudo que tinha a ver com coisas marciais — quanto a isso, o menino era diferente de seu vatarh, e mais parecido com o vatarh de Brie, que era obcecado por armas brancas e possuía uma coleção de espadas e facas que causava inveja até mesmo a museus. O verdadeiro nome de Kriege era Jan — em homenagem a seu vatarh e a seu vavatarh; ele tinha adquirido o apelido de “Kriege” (guerreiro) ainda muito cedo por sua personalidade teimosa e birrenta quando bebê. O nome tinha pegado; ele era “Kriege” para todos no palácio. E agora parecia que tinha a intenção de honrar o apelido.
A própria Brie herdara o fascínio do vatarh por armas; na verdade, ela chamara a atenção do marido pela primeira vez quando demonstrou sua habilidade com espadas em um evento palaciano em que compareceu com seu vatarh, duelou e derrotou um chevaritt que dera uma resposta depreciativa a um comentário que Brie tinha feito sobre sua arma. Ela geralmente levava uma arma escondida no corpo, ainda.
Mas esta não era a arma dela; era de Jan. Brie devolveu a adaga à caixa de pau-rosa onde Jan a guardava quando não estava em seu cinto, e se agachou em frente a Kriege. Os cachos castanhos do menino caíram sobre sua testa quando ele abaixou a cabeça, e ela ergueu o queixo do filho com a mão, sorrindo para ele.
— Você sabe que não deveria estar aqui, não é?
Ele assentiu, uma vez, em silêncio.
— E você sabe que não deveria mexer nas coisas do seu vatarh, não é?
Outro gesto com a cabeça.
— Desculpe — respondeu ele.
— Do que você se desculpa?
A voz surgiu por trás dos dois; Brie olhou para trás e viu Jan parado na porta do próprio quarto, ainda de camisola, com o cabelo despenteado. Ele bocejou com sonolência e esfregou o rosto barbado.
Brie hesitou, mas Kriege já tinha passado por ela, abraçando as pernas de seu vatarh.
— Vatarh, era a sua adaga. Eu queria vê-la...
Jan olhou para Brie, ainda agachada diante da penteadeira. Ela levantou os ombros para o marido, balançando a cabeça.
— Minha adaga, é? Bem, venha cá...
Ele levou Kriege pela mão até a penteadeira. Abriu a caixa de pau-rosa e tirou a arma e sua bainha suja e manchada. O pomo no fim do cabo era decorado por pedras semipreciosas — Brie suspeitava de que tinha sido isso o que atraíra Kriege em primeiro lugar —, e o cabo em si era feito de madeira sólida de acácia-negra. A lâmina tinha dois gumes que se estreitavam em um ponto preciso e mortal. Uma arma elegante. Com uma história elegante.
Jan segurou a adaga, embainhada, na mão.
— Era isto o que você estava procurando?
Kriege assentiu enfaticamente.
— O que você sabe sobre essa faca?
— Eu sei que o senhor sempre a usa, vatarh. Eu a vejo no seu cinto quase todos os dias. E sei que ela é antiga.
Jan sorriu para Brie sobre a cabeça de Kriege. Ela respondeu para o filho.
— E é muito antiga. Foi feita para seu trivatarh, Karin, quando ele se tornou hïrzg, há quase 70 anos, e ele a deu para seu bivatarh, Jan, quando ele era jovem, e Jan a deu para... — ela parou, olhando para Jan, que levantou os ombros — ... sua mamatarh Allesandra.
Brie não mencionou que Allesandra usou a adaga para matar o mago ocidental Mahri. Supostamente, tanto Karin quanto o primeiro Jan também mataram alguém com a mesma arma. Seu Jan também tinha encontrado um motivo para alimentar seu aço com o sangue de um inimigo — quando sua espada fora quebrada no meio da batalha contra o exército de Tennshah.
— E Allesandra deu para seu vatarh.
Os olhos de Kriege foram ficando cada vez mais arregalados conforme Brie contava a história da arma.
— O senhor vai me dar a adaga um dia também, vatarh? — ele perguntou para Jan, depois fez uma expressão apreensiva e uma careta de desdém. — Ou a estúpida da Elissa vai ficar com ela porque é a mais velha?
Brie conteve a risada enquanto Jan abriu a boca, e a fechou novamente.
— Ninguém vai ganhar a adaga até que estejam muito mais velhos — ele respondeu, finalmente. — Ela não é um brinquedo.
— Eu quero uma faca só minha — insistiu Kriege. — Tenho idade suficiente. Eu não vou me cortar. Serei bem cuidadoso.
— Tenho certeza que sim — disse Jan.
Ele respirou fundo e olhou mais uma vez para Brie, que balançou a cabeça levemente. Não, ela murmurou.
— Vamos fazer assim — o hïrzg disse para o filho. — Mandarei Rance conversar com o mestre de armas da Garde, para ver se ele pode lhe ensinar como manusear corretamente uma faca. Se ele me disser que você compreendeu e aprendeu todas as lições, então talvez no seu aniversário nós possamos conversar sobre algo que você possa usar em eventos de estado.
— Ah, obrigado, vatarh!
Kriege exclamou e abraçou Jan novamente. E se afastou, dizendo.
— Eu vou contar para Elissa e Caelor. Eles vão morrer de inveja!
O menino saiu correndo do quarto, chamando os irmãos.
— Não. — Jan disse, erguendo a mão quando Brie começou a falar. — Eu sei o que você vai dizer. Eu sei. Elissa estará aqui em poucos minutos, exigindo saber por que não pode ter uma faca também, e Caelor virá logo atrás dela.
— E o que você dirá a eles?
— Que Caelor precisa esperar até que tenha a idade de Kriege.
— E Elissa?
— Acho que ter aulas para aprender a manusear uma arma seria bom para ela. É uma habilidade que ela pode vir a precisar um dia. — Jan guardou a adaga de volta na caixa e fechou sua tampa. — Não concorda?
Essa é uma das muitas habilidades que ela precisará aprender, Brie poderia ter respondido, ao se lembrar de Mavel co’Kella, que a esta altura estava a caminho de seus parentes em Miscoli. Brie tinha certeza de que Jan sabia o que tinha acontecido e quem a tinha mandado embora, apesar de que nenhum dos dois tenha falado a respeito. Ele tinha vindo ao quarto de Brie na noite passada, o que indicava que ninguém tinha entrado na cama de Jan ontem.
— Às vezes — respondeu Brie —, não se pode ter tudo que se quer. Nem mesmo o hïrzg.
Jan lançou um olhar severo para a esposa ao ouvir isso, e ela acrescentou.
— Ou a hïrzgin. Caso esse seja o destino dela.
— É verdade. Mas mesmo assim acho que será bom para Elissa... e que ela tenha aquelas aulas com Kriege. Eles podem começar a se relacionar melhor.
Jan ergueu a cabeça. Ambos ouviram o bater de pés no corredor, seguidos pelos chamados sonolentos e em vão da babá atrás deles (sim, ela teria que falar com a mulher, e talvez substituí-la), e, logo depois, a voz de Elissa.
— Vatarh! Onde está o senhor, vatarh?
Ele suspirou, Brie colocou a mão sobre a de Jan.
— Ela é sua filha. Assim como você, quando quer alguma coisa, ela dá um jeito de conseguir. Você não pode culpá-la por isso.
Ele teria respondido, mas Elissa irrompeu no quarto pela porta de serviço no segundo seguinte, com o irmão caçula, Caelor, vindo logo atrás.
— Vatarh, não é justo! — exclamou a menina ao bater com o pé no chão.
— Vou deixá-lo responder — falou Brie para Jan, rindo. — Vou chamar a camareira para me ajudar a vestir. Preciso ter uma conversa com a babá...
Varina ca’Pallo
— Aqui está — disse Pierre Gabrelli entregando o dispositivo para Varina — Espero que funcione para você — ele acrescentou com um sorriso irônico.
Ela segurou o objeto em suas mãos, admirada.
— Pierre, isto é lindo...
O sorriso do homem se ampliou.
Ela montou sozinha a maior parte das versões experimentais do objeto, garimpando peças aqui e ali na cidade e depois juntando tudo. Seus próprios dispositivos eram funcionais, mas feios e desajeitados de manusear. Pierre era ferreiro e artesão, assim como numetodo. O que ele tinha dado a Varina não era uma cópia crua da ideia que ela tinha em mente, mas uma obra de arte.
Varina manuseou a “chispeira”, como decidira chamá-la, para examinar todos os lados, maravilhada. O dispositivo era deliciosamente pesado e sólido e, no entanto, balanceado o suficiente para ser empunhado com uma mão. Um tubo de metal reto e octogonal — mais espesso desta vez — estendia-se a um palmo do cabo curvo de madeira. Os canos de Varina eram lisos, sem adorno; este era gravado com desenhos de vinhas e folhas enroscadas, o metal era escovado e os desenhos tinham sido traçados em preto fosco. Onde o cano encontrava a madeira, as folhas se lançavam para fora, encaixando perfeitamente em nichos na madeira entalhada para receber o padrão floreado. E a madeira: Pierre pegou várias espécies de madeira, laminou todas juntas, e a variedade de grãs criou um padrão adorável e atraente sob o verniz reluzente. O tambor que carregaria a pólvora não era mais um dispositivo bruto parafusado tortamente no topo: aqui estava encaixado em seu próprio nicho no cabo, e Pierre tinha incluído uma tampa de metal para protegê-lo da chuva e fechá-lo. A roda de aço finamente salientada e ligeiramente sulcada no tambor era cromada e polida; um pequeno cão sobre ele tinha o mesmo desenho de vinhas e folhas do cano, com uma peça delicada de pirita presa nos mordentes. Um guarda-mato — também no formato de folha e cromado — envolvia o mecanismo de disparo.
Ao olhar fixamente para o objeto, Varina esqueceu-se por um momento da dor que pairara como uma sombra negra sobre ela há dias. Por um momento, havia luz em seu mundo.
— Tenho medo de testar isso — ela disse para Pierre. — Odiaria estragá-lo.
— Foi totalmente feito de acordo com suas especificações, que eram, devo dizer, engenhosas; eu só acrescentei a decoração para deixá-lo bonito. Vá em frente, puxe o cão para trás. Coloque o polegar na folha e pressione para trás...
Varina obedeceu: ela ouviu os mecanismos clicarem suavemente quando a pirita se afastou do tambor, ouviu a mola presa à engrenagem ranger ao ser estendida, sentiu o gatilho deslizar para frente e travar. Varina colocou o dedo em volta do gatilho e o apertou: ele voltou imediatamente dando um estalo; a engrenagem girou furiosamente; o cão de pirita bateu contra o aro da roda, e ela viu fagulhas saírem voando do tambor.
Varina podia imaginar o resto: as fagulhas acendendo a areia negra no tambor; a explosão propagando uma bola de chumbo saída do buraco redondo feito no cano...
Pelo menos, esta era a teoria. A última versão feita por ela, bem mais crua, quase funcionou, como ela tinha contado a Karl. Quase — ela ainda carregava as cicatrizes dessa experiência. Ou o cano do dispositivo tinha ficado fino demais, ou o metal tinha algum defeito, ou o buraco tinha sido feito ligeiramente torto. A explosão da areia negra fez o cano se romper, espalhando uma chuva de fragmentos de metal no ambiente, um dos quais tinha aberto um corte profundo no braço de Varina — mais dois palmos para cima e teria acertado seu rosto, mais um palmo para o lado e poderia ter penetrado seu peito. Ela podia ter ficado cega ou morrido — isto foi o que Varina não contou para Karl.
Ao pensar em seu nome, a tristeza ameaçara voltar, e ela forçou-se a sorrir para o ferreiro e fingir.
— Pierre, eu devia ter pedido para você fazer isso há tempos. Ela é bem mais elegante do que as engenhocas que eu fiz sozinha. Todo esse trabalho lindo. É só que... e se ela se quebrar como a última?
— Então a senhora me diz o que preciso fazer para a próxima funcionar melhor, não é? — Ele sorriu novamente. — Ande. Teste. Estou morrendo de vontade de ver.
Pierre arregalou os olhos subitamente ao se dar conta do que disse.
— A’morce, eu...
Varina sorriu e tocou a mão do ferreiro. Ela meneou a cabeça.
— Eu não sei.
Até agora, Varina tinha conduzido todas as experiências sozinha. Os outros numetodos sabiam que ela estava fazendo experimentos com alguma espécie de dispositivo para disparar areia negra, mas ninguém — nem mesmo Karl — sabia dos detalhes.
— Pierre... isso é perigoso. Se...
Desculpas. Apenas desculpas. Varina não queria que Pierre estivesse presente; ela notou pelas rugas de expressão em seu rosto que ele compreendeu.
Ele franziu a testa. Deu de ombros.
— Como quiser, a’morce — respondeu Pierre.
Ele se dirigiu até a porta do aposento; Varina quase o chamou de volta, sentindo-se culpada, mas a letargia que tomara conta dela nos últimos dias a tinha deixado lenta e desanimada, e ela não o chamou.
A porta se fechou quando Pierre saiu.
Varina estava no porão da Casa dos Numetodos na Margem Sul, um dos vários laboratórios de lá. Seus laboratórios. Foi aqui que Varina, há anos, desvendou a fórmula de produção da areia negra dos tehuantinos. Foi aqui também que ela trabalhou no desenvolvimento da magia ocidental: a cansativa habilidade de encantar um objeto para armazenar um feitiço. Varina tinha passado muitas longas horas aqui. Horas demais, ela pensava, às vezes. Às vezes parecia que Varina tinha passado toda a sua vida aqui. Sozinha, na maior parte do tempo. Cada marca, cada arranhão na mobília, cada pincelada de tinta nas paredes lembrava a Varina do passado.
Ela tinha organizado o laboratório com cuidado: em uma das extremidades do cômodo havia um boneco de pano, vestido com um conjunto velho e amassado de armaduras de placas dadas pelo comandante co’Ingres. Na outra extremidade, Varina tinha posto uma mesa com um torno pesado de madeira. Uma das coisas que ela tinha aprendido no decorrer desse experimento era que o dispositivo dava um coice quando a pólvora era acendida. Durante uma das experiências, Varina machucara o pulso quando uma das versões da chispeira ricocheteou fortemente em sua mão ao disparar. Desde então, ela passara a usar o torno para segurar as várias encarnações das chispeiras e um barbante amarrado ao gatilho para acioná-lo — esse esquema provavelmente a salvou de ferimentos mais graves quando o cano explodiu na última vez.
Varina levou a chispeira de Pierre até a mesa. Com cuidado, ela encheu o recipiente com areia negra delicadamente. Ela tinha preparado “cartuchos” de papel com mais areia negra e uma bola de chumbo, que ela enfiou no cano. Dobrou um pano em volta do cano — “é tão bonito que não quero arranhá-lo no torno”, ela teria dito para Pierre, caso ele estivesse ali — e fechou o tambor do dispositivo, depois de garantir que ele estava apontado diretamente para o peito do boneco. Ela puxou o cão de pirita, amarrou um barbante ao gatilho e foi para trás da mesa, com o barbante na mão.
O cano da chispeira apontava de maneira ameaçadora para o boneco de armadura. Varina puxou o barbante.
A engrenagem girou, faíscas voaram. Ouviu-se um estouro alto, e uma fumaça branca saiu detrás do cano e do tambor. Na outra ponta do laboratório, ela ouviu um nítido estalo metálico.
Varina abanou a mão em meio à fumaça cáustica. Deu uma espiada no boneco: no meio da placa peitoral, apareceu um buraco escuro. Ela arrastou os pés até lá o mais rápido que pôde, inclinando-se para examinar a armadura. Havia um buraco tão largo quanto seu dedo indicador, com as bordas rasgadas e voltadas para dentro. Ela meteu o dedo no buraco — não conseguiu sentir o fundo, e o buraco ficava maior conforme ela penetrava no recheio do boneco. Em algum lugar ali no fundo, havia pedaços da bola de chumbo enterrados. Varina percebeu que estava prendendo a respiração.
Um golpe de espada teria sido aparado pela armadura. A flecha de um arco teria ricocheteado. A seta de uma besta talvez tivesse penetrado, mas não tão fundo.
Funcionou. Se fosse um garda, estaria no chão, sangrando terrivelmente ou talvez morto...
Varina podia imaginar a cena, e essa não era uma visão agradável; ela já tinha visto muita gente morrer em batalha. Varina endireitou o corpo. Voltou para a mesa e examinou a chispeira no torno. Ela parecia inteira e incólume, seu cano ainda estava reto e intacto, exceto por uma mancha de fuligem negra na ponta. Também havia marcas de fuligem em volta do tambor, mas, tirando isso, a arma parecia estar ilesa. Varina abriu o torno e tirou o dispositivo. Então, ela o segurou com o braço estendido e apontou seu cano para o boneco.
Bem, minha velha, o próximo passo é óbvio, se você quiser dá-lo... Isso tinha soado como Karl, rindo ao repreendê-la. A lembrança trouxera lágrimas aos seus olhos, e ela teve que parar por um momento para conter o choro. Varina pousou a chispeira na mesa e, depois de alguns instantes, começou a encher novamente o tambor com mais areia negra e enfiar outro cartucho de papel no cano. Ela pegou a arma e puxou o cão de pirita para engatilhá-lo. Suas mãos tremeram um pouco ao apontar a arma. Varina estendeu a outra mão para estabilizá-la enquanto olhava pelo cano. Ela se perguntou, por um segundo, se estava sendo precipitada e imprudente, se deveria esperar e repetir a experiência como tinha feito minutos atrás, mas no mesmo momento em que a ideia lhe veio à cabeça, ela apertou o gatilho e fechou os olhos.
A resposta da chispeira foi terrível, e a arma deu um pulo em sua mão, embora não tão forte quanto ela se lembrava. Varina abaixou a arma e espiou o boneco. Sim, havia um segundo buraco na armadura, este do outro lado da placa peitoral, mais alto.
Alguém bateu na porta do laboratório.
— A’morce, a senhora está bem? — chamou uma voz vaga.
— Sim — respondeu ela. — Estou bem, está tudo bem.
Varina sentou-se na única cadeira do aposento, com a chispeira aninhada em seu colo. Estava quente, e uma fina coluna de fumaça subia do cano. Varina olhou fixamente para ela: sua criação.
Qualquer um pode manusear isto. Só é preciso um pouco de habilidade e alguns momentos para aprender. Com isso, qualquer um pode matar uma pessoa à distância, mesmo um garda de armadura. Ela sempre tivera a capacidade de imaginar possibilidades; Karl sempre dissera que era isso que a tornava uma boa pesquisadora para os numetodos. “Você tem imaginação”, ele dizia. “Consegue enxergar possibilidades onde ninguém mais as vê. Esta é a melhor magia que se pode ter.”
A linha de pesquisa que produzira a chispeira tinha sido o resultado dessa capacidade — ela vinha experimentando uma nova mistura de areia negra há alguns anos. Varina colocou uma pequena quantidade dessa areia negra no fundo de um recipiente estreito de metal, tampado por um pilão de pedra; ela não tinha notado que o pilão estava rachado e que tinha deixado para trás um pedaço do pilão dentro do recipiente. Varina usou um feitiço de fogo para acender a areia negra... e o fragmento do pilão foi impulsionado pela boca do recipiente, batendo no teto do laboratório. O sulco na viga de madeira ainda estava lá, em cima da mesa. Ela percebeu, então, que a areia negra podia ser usada para outros fins que não os da simples destruição dispersa.
Um exército de soldados com chispeiras... Varina podia imaginá-lo, e a visão fez suas mãos tremerem.
Isso podia mudar a guerra. Isso mudaria a guerra. Completamente. Assim como a própria areia negra estava começando a tornar os ténis-guerreiros desnecessários, a habilidade no manuseio de espadas pesadas também já não era mais importante, não quando tudo o que era necessário era de força para puxar um gatilho e de olhos para mirar pelo cano.
Qualquer um podia ser um guerreiro. Qualquer um podia fazer justiça.
Qualquer um podia se vingar. Ou matar um cão raivoso.
Qualquer um podia matar desnecessariamente. Pelo pior ou mais trivial dos motivos.
Qualquer um. Até mesmo ela.
O que eu fiz desta vez, Karl?
Varina piscou. Sua mão acariciou o verniz sedoso do cabo. Que ironia: um instrumento tão belamente esculpido e dedicado inteiramente à destruição.
Finalmente, ela se levantou da cadeira e foi até a mesa. Tampou o frasco de areia negra e recolheu os cartuchos de papel que havia preparado. Varina colocou o frasco, os cartuchos e a chispeira em uma bolsa de couro e pendurou no ombro. Apagou as lanternas que iluminavam o laboratório, abriu a porta e trancou novamente ao sair.
Com a bolsa pesada no ombro e as mãos ainda se ecoando a sensação da chispeira ao disparar, Varina subiu a escada.
Jan ca’Ostheim
— Nossas tropas estavam tranquilamente a um dia de marcha além das fronteiras de Il Trebbio, antes que tivéssemos qualquer sinal de termos sido vistos. Tivemos uma pequena escaramuça com uma companhia de chevarittai dos Domínios. Dois deles foram mortos por nossos ténis-guerreiros, e os chevarittai deram meia-volta e fugiram depois disso; nenhum dos nossos homens foi gravemente ferido. Dadas as nossas últimas conversas, depois passar um dia ali eu recuei o batalhão pela fronteira. Com tudo que descobrimos nos últimos meses, hïrzg Jan, parece que as fronteiras dos Domínios são um tanto quanto porosas, e Il Trebbio certamente é um dos pontos mais fracos. A kraljica Allesandra não tem forças suficientes...
Armen ca’Damont, starkkapitän da Garde Civile firenzciana, parou de ler o relatório para Jan quando a porta do aposento foi aberta repentinamente, batendo com força nos aparadores. Um trio de crianças entrou no rastro da interrupção, seguido de longe por uma das criadas com uma criança menor nos braços.
— Vatarh!
Kriege, o filho mais velho de Jan, foi o primeiro a entrar. Ele bateu o pé e olhou com raiva para a irmã, que vinha atrás de si. Caelor, um ano mais novo que Kriege, parou ao lado do irmão, concordou enfaticamente com a cabeça e lançou o mesmo olhar.
— Nós estávamos brincando de chevarittai, e Elissa trapaceou! Não é justo!
A babá entrou correndo, com uma aparência nervosa, e fez uma reverência desajeitada para Jan e ca’Damont, com Eria, a caçula de Jan, agora nos braços.
— Sinto muitíssimo, hïrzg — disse a mulher sem erguer o olhar. — As crianças estavam brincando, e eu vestia a pequena Eria, quando houve uma discussão e eles correram para encontrá-lo...
— Tudo bem — respondeu Jan sorrindo para ca’Damont. — Não se preocupe. Agora, Kriege, que história é essa de trapaça?
— Elissa trapaceou — repetiu Kriege, fazendo uma careta tão feia que parecia cômica. — Trapaceou, sim.
— Elissa? — disse Jan em tom severo ao mover o olhar na direção da filha.
Outra criança talvez olhasse para o chão. Jan sabia que Caelor teria olhado, ainda que com censura, e até mesmo Kriege afastava o olhar agora. Mas Elissa devolvia o olhar calmamente, fitou uma vez o rosto magro de ca’Damont, marcado e desfigurado pelas memórias de velhas batalhas, e depois se fixou em Jan. Ela penteou para trás os fios castanhos-dourados que escaparam das tranças que caíam nos olhos.
— Eu não trapaceei, vatarh — respondeu Elissa. — Não mesmo.
— Trapaceou, sim — interrompeu Kriege, batendo o pé novamente. — Ela mentiu.
Elissa nem se incomodou em olhar para o irmão. Seu olhar permanecia fixo em Jan.
— Eu realmente menti, vatarh — admitiu ela. — Eu disse para Kriege que o ajudaria se ele atacasse o fortim de Caelor com seus soldados.
— Ela disse que usaria os ténis-guerreiros no próximo turno para me ajudar — interrompeu Kriege novamente. — E não ajudou. Em vez disso, quando chegou o turno dela, Elissa me atacou e eu perdi todos os meus fortins e a maior parte dos chevarittai. Ela trapaceou.
Jan voltou a olhar para ca’Damont, que continha um sorriso.
— Isso é verdade, Elissa?
A menina assentiu.
— Sim — respondeu em tom sério. — Veja bem, Caelor tinha a maior parte dos fortins e soldados que sobraram no tabuleiro, e Kriege e eu tínhamos mais ou menos o mesmo número. Eu sabia que não venceria Caelor sozinha, portanto, disse para Kriege que o ajudaria porque sabia que Caelor acabaria com vários soldados dele e perderia homens suficientes, de maneira que não poderia me atacar, e então, quando fosse meu turno, eu poderia tomar a maior parte dos fortins de Kriege e capturar soldados suficientes para provavelmente ganhar o jogo.
Elissa olhou para os irmãos.
— E teria ganhado também, se Kriege não tivesse ficado furioso e derrubado todas as peças no chão.
O riso abafado de ca’Damont era audível, e ele virou o rosto com cicatrizes por um momento. Jan teve que lutar para conter seu próprio divertimento, embora a graça fosse moderada pela similaridade entre Elissa e Allesandra, a mamatarh da menina. Jan podia imaginá-la fazendo a mesma coisa quando criança; era o que ele a tinha visto fazer quando adulta.
— Então... — disse Jan para a filha —, você ofereceu ao seu irmão uma aliança que não pretendia cumprir para que pudesse ganhar? Estou certo?
Ela assentiu. Jan olhou para os dois meninos e disse.
— Acho que sua irmã acabou de ensinar uma lição excelente a vocês. Na guerra, às vezes a palavra de uma pessoa não é suficiente. Às vezes seu inimigo mentirá para vocês com o intuito de ganhar vantagem. E há mais coisas na guerra do que deslocar soldados. Vocês dois devem se lembrar disso.
— Mas ela trapaceou! — insistiu Kriege, batendo o pé mais uma vez.
Jan cofiou a barba, tentando não rir.
— O que você acha, starkkapitän? — perguntou ele para ca’Damont. — Devo punir Elissa por sua trapaça?
— Não, meu hïrzg — respondeu ca’Damont.
Jan viu o rosto de Elissa relaxar ligeiramente — então a menina estava preocupada com o que ele poderia fazer. O starkkapitän continuou.
— Mas eu diria que ela também aprendeu uma lição nesta situação, a de que quando alguém dá a sua palavra, a outra parte poderá ficar aborrecida se essa palavra não for cumprida, e às vezes sua reação pode impedir que se obtenha a vantagem que se esperava ganhar. Agora ninguém vai saber qual de vocês teria vencido o jogo.
Jan deu um tapinha no ombro de ca’Damont.
— Pronto, viram só? — disse o hïrzg para os filhos. — Vocês ouviram do próprio starkkapitän. Ele entende mais de guerra do que qualquer um de nós. Espero que tenham aprendido bem, pois quando um de vocês for hïrzg...
— Rezemos a Cénzi para que isso não aconteça ainda por muitas décadas, meu marido.
A voz ergueu a cabeça de Jan, que viu Brie parada no umbral, rindo da cena. Ele foi em sua direção, deu-lhe um beijo e um abraço breve. Brie cheirava a jasmim e água doce, e seu cabelo — que um dia fora da mesma cor que o de Elissa, mas que agora ficava escuro — era macio mesmo preso nas tranças firmes de Tennshah, tão populares nos dias de hoje. Se sua silhueta tinha ficado mais pesada depois de dar à luz a seus filhos, bem, isso era como as cicatrizes no rosto de ca’Damont; um sinal dos sacrifícios que ela fizera.
Rance tinha contado para Jan que foi Brie quem mandara Mavel co’Kella embora e o porquê. Após a irritação inicial, ele ficou feliz: isso poupou-lhe o trabalho de fazer o mesmo.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Brie, que olhou para as crianças, para a criada que segurava Eria e para a babá. — Rance me disse que você ainda estava em reunião, temos que estar no templo para a bênção do Dia do Retorno em uma virada da ampulheta.
Ela balançou a cabeça, embora a expressão no rosto fosse paciente e calma.
— E nenhum de nossos filhos está arrumado ainda.
— Desculpe-me, hïrzgin — falou a babá ao fazer uma mesura. — A culpa é minha. Eu vou arrumar as crianças. Elissa, Kriege, Caelor, venham comigo agora. Rápido...
Brie abraçou cada um ao saírem (Kriege ainda de cara feia e vermelho de raiva, Elissa com um sorrisinho de triunfo, Caelor sempre circunspecto e pensativo).
— Também devo me retirar — disse ca’Damont, fazendo uma reverência para Brie e Jan, e se dirigiu ao hïrzg. — Eu mandarei meu escriba preparar um relatório completo para o senhor hoje à tarde. E verei o que o embaixador ca’Rudka tem a dizer quando chegar. Tenho certeza de que ele receberá a notícia a caminho daqui. Hïrzg, hïrzgin...
O starkkapitän fez uma mesura e se ausentou. Quando as portas da câmara se fecharam, Brie foi até Jan, o abraçou novamente e ergueu a cabeça para ser beijada. Ela recuou um pouco nos braços dele e puxou o colarinho da camisa.
— Você vai usar isto na cerimônia?
— Estou considerando, sim. É confortável.
— Mas você fica tão bonito naquela sua camisa vermelha nova.
Jan sorriu para Brie.
— Então talvez eu mude para a vermelha, só para lhe agradar.
Ela o beijou novamente.
— Armen não teve problemas em Il Trebbio?
— Menos do que eu esperava, na verdade.
Brie assentiu, encostando a cabeça no ombro dele.
— As crianças nunca viram a mamatarh, Jan. Eles apenas a veem como aquela mulher horrível de Nessântico que às vezes envia presentes. Eu acho que você devia considerar o que Sergei quer oferecer por ela.
— Ela é a responsável pelo afastamento — respondeu Jan. — E Rance concorda que não deve haver acordo algum com os Domínios. Se ela queria paz, não deveria ter apoiado Stor ca’Vikej na Magyaria Ocidental e não deveria ter permitido que o filho dele andasse à vontade pela corte dos Domínios. Ela fez a fama, agora que se deite na cama; se achou desconfortável, bem, ela é a única responsável.
— Eu sei — sussurrou Brie. — Eu sei. Mas ainda assim... As crianças devem conhecer seus parentes, e não considerá-los inimigos.
— Então que ela abra mão completamente do Trono do Sol, em vez de deixar que Sergei proponha essa tolice de me nomear a’kralji.
— Você a colocou no trono, meu amor.
A censura não tinha sido tão dura quanto poderia, e Brie tocou o rosto dele delicadamente para abrandá-la.
— Eu sei, você fez o que achou que era certo na ocasião.
— Eu era jovem e tolo — disse Jan, que abriu os braços e soltou Brie. — Não quero falar sobre isso, não agora.
Ele pegou a mão da esposa e a beijou.
— Deixe-me mandar os camareiros encontrar esta camisa vermelha que você gosta tanto, e iremos ao templo fazer nossa aparição...
Jan ouviu um suspiro contido, mas Brie sorriu para o marido, passou a mão em seu peito e parou exatamente no cinto.
— Não os chame ainda — disse Brie, que ficou na ponta dos pés para beijá-lo, enquanto deixava a mão onde estava. — Ainda há tempo, não, amor?
Ele riu.
— Quanto tempo quisermos. Eles não podem começar sem nós, não é?
Jan beijou Brie novamente, com mais urgência. Ele sentiu o corpo da esposa ceder ao dele, e isso espantou todos os outros pensamentos, por um instante.
Rochelle Botelli
A cerimônia começou tarde, uma vez que a comitiva real chegou atrasada ao templo. Rochelle, em meio à confusão de pessoas comuns, sem status, encontrou alívio no abrigo de uma das meias colunas do interior, na parede dos fundos, encostando-se ali com os olhos semicerrados, com as narinas queimando com o fedor de incenso e os ouvidos cheios do cântico das preces e da cantoria do coro. Ela ouviu os ca’ e co’ sentados ficarem de pé quando as trompas soaram seu chamado lamentoso do domo do templo e as grandes portas principais se abrirem para dar passagem ao hïrzg e sua família. A luz radiante do sol entrou na escuridão parcial do templo. Rochelle abriu totalmente os olhos e subiu na base da meia coluna, para olhar sobre as cabeças da congregação.
A procissão era liderada pelo archigos Karrol e vários o’ténis, envoltos pela bruma de fumaça aromática dos incensórios, com quatro ténis-luminosos cantando e levando lanternas com chamas amarelas ainda mais intensas que o sol. O archigos andava devagar, com um o’téni de cada lado, caso ele tropeçasse — Karrol tinha mais de sete décadas de idade, e embora ainda tivesse a mente afiada de sempre, nos últimos anos sua saúde física começara a declinar, e seus assistentes estavam sempre atentos quando ele subia degraus e escadas, ou quando, como hoje, o ritual exigia que o archigos andasse uma distância considerável, embora ele se apoiasse no cajado do archigos que levava na mão direita, com o globo cravejado e partido de Cénzi na ponta. Karrol vestia um robe verde enfeitado com fio dourado, os desenhos reluziam na claridade que o banhava, o longo cabelo branco parecia brilhar sob a coroa pontiaguda. Ele ergueu sua mão livre para saudar a multidão, e a boca curvou-se em um sorriso sob a barba.
O starkkapitän Armen ca’Damont e sua família vieram a seguir, seguidos dos integrantes do Conselho dos Ca’ com suas famílias. Rochelle ficou na ponta dos pés para ver melhor Jan quando ele entrou. Ela lembrava-se da matarh — nos momentos cada vez mais raros de lucidez antes que fosse completamente dominada pelas vozes em sua cabeça — falando de Jan, dizendo que ele era bonito, o jeito que a abraçava, a promessa de que a amaria para sempre.
Que Jan era seu vatarh.
A matarh de Rochelle amou Jan até a morte, assim como odiou a kraljica Allesandra por ter separado os dois.
Rochelle já tinha visto quadros do hïrzg e olhado fixamente para a imagem, à procura de alguma semelhança com as feições que ela via quando se olhava em metal escovado ou água parada. Talvez o nariz fino e comprido? Ou as maçãs do rosto acentuadas? A pele, mais escura e facilmente bronzeada no sol; será que indicava as Magyarias e o sul, onde o hïrzg nasceu? Será que esses traços tinham vindo do vatarh de Rochelle, ou da vavatarh?
Ela nunca o vira assim tão perto, ao vivo — a uma distância tão curta quando Jan entrou no tempo. Rochelle espiou ansiosamente na direção do hïrzg.
Ele era bonito: tinha uma barba fina e escura que envolvia sua mandíbula firme, um nariz fino e comprido (sim, parecido com o dela), uma pele tão escura que se destacava entre os firenzcianos no templo; olhos escuros e intensos; cabelo cacheado e tão escuro que era quase preto, embora o sol revelasse mechas vermelhas e cor de bronze.
Parecia com o cabelo dela. Como o rosto que Rochelle às vezes via devolvendo o olhar.
Sim, ele podia ser mesmo seu vatarh. As histórias que sua matarh lhe contara podiam ser verdade. Rochelle ficou aflita quando o hïrzg olhou em volta, quando seu olhar passou momentaneamente por ela. Ela ergueu a mão; e ele pareceu acenar ligeiramente com a cabeça para ela.
Ao lado dele estava a hïrzgin Brie. Rochelle viu a mão de Jan tocar sua cintura ao se aproximar e cochichar alguma coisa em seu ouvido. A hïrzgin riu, e Rochelle viu o carinho nos olhos da mulher ao encarar o marido. O vatarh de Rochelle. E atrás...
Atrás deles estavam os filhos. Rochelle sabia seus nomes; todo mundo em Firenzcia sabia. Ela olhou fixamente para as crianças, seus meios-irmãos. Sentiu vontade de chamá-los. “Eu deveria estar ali, com ele”, dissera sua matarh, “com você como a filha mais velha, aquela que Jan mimaria, que sempre faria com que ele desse aquele sorriso. Jan tinha um sorriso tão maravilhoso...”.
Rochelle sorriu para Jan, mas ele não estava mais olhando na sua direção, ele agora havia passado por ela, percorrendo a passos largos a nave do templo em direção ao coro, onde o archigos Karrol o esperava. O hïrzg cumprimentou os ca’ e co’ nos bancos voltados para a frente.
Rochelle imaginou-se andando com ele. Imaginou-se recebendo uma onda de aplausos. Imaginou que Jan desmanchava seu cabelo em vez do de Elissa.
“Esse era o meu nome: quando o conheci, quando éramos amantes. Era o nome que eu usava na época — Elissa. Ele batizou sua primogênita em minha homenagem. Ele...”.
A família — a família que poderia, que deveria ter sido dela — estava distante agora, entrava nos assentos vazios diante do Alto Púlpito em frente ao templo, sob o domo e as figuras pintadas que olhavam para a assembleia lá do alto, em seus afrescos. Os e’ténis no fundo do templo entoavam cânticos, a energia do Ilmodo fechou as enormes portas de bronze, e Rochelle deixou-se cair do poleiro para o chão. Andando agilmente e em silêncio, ela saiu de mansinho antes que as portas se fechassem.
Rochelle entrou correndo nas zonas mais antigas e pobres da cidade, onde morava. Este era outro conselho da matarh: “Viver entre os ricos deixa a pessoa visível demais. Este foi o erro que cometi com seu vatarh...”. Ela ouviu as trompas do templo soarem a Segunda Chamada e a bênção do Dia do Retorno ao entrar cada vez mais nas vielas estreitas e tortuosas que se enrolavam em torno dos morros de Brezno, com pressa porque estava atrasada para um compromisso.
Alguém queria contratar a Pedra Branca: Josef co’Kella, pertencente a uma família em ascensão que parecia estar envolvida em vários negócios na cidade. Rochelle imaginou que desculpa o homem teria usado para evitar sua presença no templo na manhã de hoje.
Ele já deveria estar esperando do lado de fora da Faísca Azul, uma taverna na alameda Reta — um nome apropriado, pois subia em linha reta pela encosta íngreme do morro Hïrzgai, que abrigava as ruínas do primeiro palácio, queimado e abandonado há três séculos. A Faísca Azul ficava localizada no meio da subida do morro; Rochelle tinha escolhido o lugar porque podia chegar tanto por cima quanto por baixo da alameda, o que lhe dava uma visão de onde era possível determinar se era seguro se aproximar ou se ela deveria passar pela taverna; na última semana, desde que cumprira o contrato com o goltschlager ci’Braun, os utilinos e a Garde Brezno vinham fazendo perguntas e incursões estranhas, prendendo determinadas mulheres pela cidade: mulheres que quase sempre tinham praticamente a mesma idade que sua matarh teria se estivesse viva, mulheres que tinham a mesma compleição física da sua matarh. Era óbvio para Rochelle que eles estavam caçando a Pedra Branca. Era possível que co’Kella fosse a isca de uma armadilha para capturá-la.
Ela se perguntou, mais uma vez, se deveria sequer se encontrar com o homem, mesmo que ele não fosse nada além de um cliente em potencial. O sujeito era um co’, o que significava que Rochelle podia cobrar caro pelo serviço, mas sua matarh a tinha alertado havia muito tempo de que a Pedra Branca deveria cumprir dois, no máximo três, contratos na mesma cidade antes de se mudar. Ela queria ficar em Brezno, agora que tinha visto Jan. Queria saber mais a respeito dele, queria conhecê-lo melhor. Queria encontrá-lo. Seria melhor deixar a Pedra Branca de lado; Rochelle tinha moedas suficientes na bolsa.
Mas a verdade é que ela não queria deixá-la de lado. Era empolgante ser a Pedra Branca, caçar e, consequentemente, matar.
Mais um contrato. Só isso.
Rochelle já tinha visto co’Kella, usando — como ordenado — uma bashta vermelha e um chapéu com uma pena azul. Ele parecia pouco à vontade, observando a todos que passavam enquanto entrava e saía da porta da taverna. Rochelle olhou para ambos os lados da rua; nenhum utilino, nem gardai da Garde Brezno; não havia ninguém por perto fingindo estar fazendo qualquer outra coisa em um lugar onde pudesse vigiar facilmente o homem. O que não significava que não havia gardai escondidos nos prédios nos arredores à espreita, mas até o momento tudo parecia seguro e normal. Ela continuou andando na direção do homem, sem olhar para ele deliberadamente enquanto se aproximava, fingindo estar interessada nas mercadorias das vitrines. Em sua visão periférica, Rochelle notou que co’Kella a examinava com o olhar, afastando o rosto em seguida. Ela passou pelo sujeito e colocou a mão no cabo da faca sob o manto.
— Venha comigo, vajiki co’Kella — sussurrou Rochelle ao passar por ele.
Ela continuou subindo a alameda, lentamente. O homem ficou visivelmente espantado. Em seguida, se moveu e se virou para caminhar ao lado de Rochelle.
— Você é...?
— Eu sou quem você esperava — respondeu ela.
Rochelle olhou para trás: ninguém surgiu dos prédios em volta; nenhum utilino deu um apito de alerta; nenhum esquadrão da Garde Brezno apareceu. Ela relaxou um pouco, embora continuasse a espiar para ver se os dois estavam sendo seguidos — havia um grande emaranhado de travessas que afluíam da alameda Reta, Rochelle pensou que poderia despistar possíveis perseguidores ali, se precisasse. Ela manteve a mão no cabo da faca, caso o próprio co’Kella tentasse atacá-la, mas as mãos do homem estavam visíveis e ele não parecia ter uma espada.
— Qual o seu nome? — perguntou co’Kella.
Rochelle riu.
— Você não precisa saber meu nome, vajiki. Não estamos fazendo negócio, e mesmo que estivéssemos, este é um negócio do tipo que dispensa nomes. Já basta que eu saiba o seu, e não é comigo, afinal de contas, que você quer conversar.
— Então você não é... Claro que não, é tão jovem...
— Não, eu não sou a pessoa que você quer contratar — respondeu ela em tom firme. — Eu sei como entrar em contato com ela, se é isso o que você quer saber. E isso é tudo. Mas nem mesmo eu sei dizer qual a sua aparência ou quem ela é.
Co’Kella parou. Rochelle virou a cabeça para olhar para ele.
— Continue andando, vajiki, a não ser que tenha mudado de ideia.
O homem pareceu sentir um calafrio, depois deu um passo para acompanhá-la novamente.
— Ótimo — disse ela. — Então me diga, quem é a pessoa?
— Quem é a pessoa? — perguntou co’Kella estupidamente, estremecendo novamente. — Ah, isso. Eu preferia não dizer. Apenas para... a pessoa com quem você entrará em contato por mim.
Os dois chegaram a uma das transversais. Rochelle parou.
— Então estamos conversados. Bom dia, vajiki.
Ela começou a virar para a esquerda, se afastando da alameda.
— Não, espere! — berrou co’Kella quando Rochelle deu as costas.
Ela parou e se permitiu abrir um sorriso. Tão típico. Rochelle voltou a subir a alameda, sem dizer nada, e co’Kella a seguiu apressadamente, próximo ao seu cotovelo.
— Eu... eu digo para você. É Rance ci’Lawli.
Ela não conseguiu conter totalmente a surpresa em sua voz.
— Ci’Lawli? O assistente-chefe do hïrzg?
Ele assentiu.
— O próprio.
Você não devia fazer isso. Matar alguém tão próximo ao hïrzg. Ainda assim... seria preciso estar perto ou dentro do palácio, onde teria que estar perto de seu vatarh e da família dele... Rochelle sentiu um pulsar dentro de si, que a fez queimar com um anseio louco que ela não sabia definir.
— Por que ci’Lawli?
Ele torceu o nariz.
— Como você disse, vajica, não há necessidade de nomes, nem de histórias aqui. Eu contarei à Pe... — Ele se interrompeu. — À pessoa que você conhece, se ela se importar.
Rochelle deu de ombros.
— Como queira.
Ela pegou o braço de co’Kella, como se fossem dois namorados passeando pela alameda, e puxou o homem para si. Rochelle sussurrou em seu ouvido: um local, um dia e o valor em solas de ouro.
Co’Kella se afastou dela.
— Tanto assim?
— Tanto assim — ela respondeu. — Esteja lá com as solas se estiver interessado, vajiki, e você a encontrará.
Varina ca’Pallo
Ela sabia que não devia ter feito isso, sabia que Sergei ficaria irritado quando descobrisse — e sabia que ele descobriria. Mas ela esperava que fosse mais tarde, quando fosse tarde demais.
Um dos gardai designados para proteger Varina, a pedido de Sergei, tinha deixado escapar o endereço da casa, no Velho Distrito, que tinha sido invadida pela Garde Kralji. Ela se certificou de que seus compromissos no dia seguinte a fizessem passar pela casa e pediu para o condutor da carruagem parar. O garda (que não era o mesmo que lhe dera o endereço) parecia preocupado quando Varina abriu a porta da carruagem e desceu.
— Vajica ca’Pallo, eu não aconselharia...
— Então não aconselhe — ela interrompeu.
O garda ergueu as sobrancelhas. A reação à reprimenda poderia ter agradado outra pessoa, mas apenas fez Varina se sentir culpada. Ainda assim, ela continuou tentando abrandar o tom.
— Eu só quero ver o lugar onde os morellis moravam. Só dar uma olhada; você pode vir comigo, se quiser.
— O comandante vai pedir a minha cabeça por isso.
— Eu direi ao comandante que não lhe dei escolha.
O garda não pareceu convencido, mas conduziu Varina até a porta da casa. Ela deixou que ele entrasse primeiro. Teve a impressão de que podia sentir olhos os vigiando, os encarando de algum lugar. Sem tentar ocultar o gesto, Varina tirou uma pequena caixa de dentro do manto; entalhada finamente em carvalho envernizado, um trabalho primoroso, a obra de um mestre. Ela pousou a caixa no peitoril da janela mais próxima da porta, sentindo o frio do Scáth Cumhacht agarrado à madeira. Em seguida, rapidamente, seguiu o garda e entrou na casa.
Varina passou pouco tempo ali, já que o que viera fazer já tinha sido feito. Ainda assim, tentou imaginar Nico ali, sua voz e a presença nos cômodos, ou dormindo em uma das camas. Havia ícones religiosos da fé concénziana por todos os lugares da casa, e alguém com algum talento artístico havia pintado o globo partido de Cénzi na parede lateral de um dos quartos, enquanto que na parede oposta as formas demoníacas dos semideuses, os moitidi, paródias distorcidas e deformadas da humanidade, a espreitavam. Varina sentiu um arrepio ao olhar para eles, imaginando como alguém poderia dormir ali, sob esses olhares perversos, sorrisos cruéis e as mãos em forma de garras dos moitidi. Até mesmo o garda balançou a cabeça ao olhar para eles.
— Eles têm uma visão estranha da Fé, esses morellis — comentou o homem.
Os dedos do garda seguravam o cabo da espada com firmeza, como se estivesse com medo de que uma das figuras pintadas pulasse em cima dele.
— Dizem que o archigos Karrol nutre alguma simpatia por eles, embora eu jure que não entendo.
— Eu também não. Não consigo imaginar que o Nico que conheci... — Varina se interrompeu. — Estou pronta para ir.
— Ótimo — respondeu o garda, um pouco rápido demais. — Essa pintura me dá calafrios. É uma coisa feia.
Eles saíram depressa, e o garda fechou a porta atrás deles. Varina se posicionou cuidadosamente entre o homem e o peitoril da janela onde a caixa estava pousada, para garantir que ele não a visse. O condutor da carruagem era de seu corpo de funcionários; ele não diria nada.
O garda abriu a porta da carruagem para ela; Varina entrou, o garda fechou a porta e subiu para o assento ao lado do condutor. A pequena portinhola acima de sua cabeça foi erguida, e Varina viu o rosto do condutor voltado para ela, lá de cima.
— Para casa — ordenou Varina.
O homem assentiu e fechou a portinhola novamente. A carruagem entrou em movimento com um tranco.
Varina olhou para fora quando o veículo partiu. Ela podia ver a caixa no peitoril e o brilho da madeira dourada sob o sol vespertino.
— A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você. — Essas foram as primeiras palavras que ele disse para Varina, sorrindo para ela.
Em sua mente, Nico continuava a ser, de certa forma, a criança que Varina conheceu. Sim, ela sabia que o menino tinha entrado na idade adulta aos 15 anos. Varina tinha acompanhado sua carreira desde que ele reapareceu, de maneira inesperada e repentina, como um téni em ascensão no Templo do Archigos em Brezno, um acólito cuja habilidade com o Ilmodo, cujo carisma e força da personalidade impressionavam a todos que o conheciam. Ela — assim como Karl — tinham tentado entrar em contato com Nico, através de cartas enviadas por meio de Sergei em suas viagens frequentes a Brezno, mas estas seguiram sem resposta. Sergei conseguira falar com ele lá, mas Nico tinha deixado claro que não tinha interesse em entrar em contato nem com Karl, nem com Varina.
— Ele disse assim — falou Sergei ao voltar. — “Diga aos dois hereges que eles são um anátema para mim. Eles ridicularizam Cénzi e, portanto, me ridicularizam. Diga a eles que, quando eles virem os erros em suas convicções, então talvez nós tenhamos alguma coisa a dizer uns aos outros. Até lá, eles estão mortos para mim, tão mortos como se já estivessem em seus túmulos, com suas almas se contorcendo com o tormento dos retalhadores de almas.” E aí ele riu, como se achasse graça na ideia.
Apesar da decepção, Varina continuou a acompanhar a carreira de Nico. Ficara preocupada quando ele e seus seguidores desafiaram diretamente a autoridade do archigos, fazendo com que Nico perdesse o título de téni e fosse proibido de usar o Ilmodo para sempre, sob risco de perder as mãos e a língua.
Então Nico foi embora de Brezno, perambulando por algum tempo e continuando a pregar sua interpretação ortodoxa do Toustour e da Divolonté — os textos sagrados da fé concénziana — até, finalmente, chegar a Nessântico. Agora ele estava perante Varina, e ela ainda podia ver o rosto redondo do menino no semblante barbado, fino e devoto diante de si, com seu olhar forte e intenso.
“A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você.” Em todos esses anos, durante todo esse tempo, foi assim que ele começou. Varina sentiu o peso da chispeira na bolsa presa ao cinto.
— Por que eles ficariam desapontados? — perguntou ela.
Varina gesticulou na taverna do Velho Distrito onde os dois se sentavam. Em volta deles, os clientes conversavam entre si e bebiam. Um grupo de músicos afinava os instrumento em um canto. O barulho emprestava privacidade aos dois na cabine. Nico estava sentado de frente para ela, com as mãos entrelaçadas sobre a superfície arranhada da mesa de madeira rústica entre os dois, quase como se estivesse rezando. Ele vestia preto, o que fazia seu rosto pálido parecer quase espectral em comparação, mesmo com a luz fraca da taverna e da única vela na mesa.
— Por que não há nenhum gardai aqui para prendê-lo? — indagou ela. — Você acha que eu te odeio tanto assim, Nico? Eu não odeio. De maneira alguma. Nem Karl odiava.
— Então por que o esquema elaborado? — perguntou Nico. — Deixar uma caixa encantada... Devo admitir que foi inteligente e certamente chamou minha atenção, embora meu amigo Ancel não tinha dado atenção ao aviso de não abri-la. Ele me disse que pensou que suas mãos fossem empolar, e que a madeira ficara muito quente.
Nico meneou a cabeça, estalando a língua como se estivesse repreendendo uma criança.
— Você realmente deveria ser mais cuidadosa com a dádiva que Cénzi lhe deu, Varina.
Ela respirou fundo.
— Você matou pessoas, Nico. Meus amigos e colegas. Karl já estava morto; você não podia mais machucá-lo. Mas os outros... eles eram pessoas, com maridos, esposas e filhos. E você tirou a vida deles.
— Ah, isso. — Ele franziu a testa momentaneamente. — Está escrito no Toustour: “... se lutarem contra você, mate-os; esta é a recompensa dos incrédulos. Lute com eles até que não haja perseguição, e até que a única religião seja a de Cénzi”. Sinto muito pelo sofrimento que causei às famílias dos que morreram. Sinto muito, de verdade, eu rezei para Cénzi por eles.
As desculpas de Nico pareceram genuinamente sinceras, e lágrimas nascentes brilharam na base de seus olhos. Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, como se estivesse escutando uma voz invisível vinda do alto. Então seu queixo se abaixou novamente, e quando ele abriu os olhos, eles estavam secos.
— Mas, se eu sinto que alguns numetodos tenham sido mortos para serem julgados por Cénzi por sua heresia? Não, não sinto.
— O Toustour também diz: “... ó, seres humanos! Nós os criamos e dividimos em nações e tribos para que vocês conheçam uns aos outros, não para que se desprezem”.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso.
— Eu não esperava que uma numetoda citasse um texto no qual ela não acredita.
— Eu acredito, como qualquer numetodo, que o conhecimento é o que levará à compreensão. Isso inclui conhecer aqueles que lhe consideram um inimigo e entender o que eles acreditam e por que acreditam. Eu li o Toustour inteiro, e a Divolonté também, e tive conversas longas e interessantes com a archigos Ana, com o archigos Kenne e com a a’téni ca’Paim.
— Você leu o Toustour, mas evidentemente não conseguiu enxergar a verdade no texto.
— Qualquer um pode escrever um livro. Eu sou uma numetoda. Preciso de provas. Preciso de provas irrefutáveis. Eu preciso ver hipóteses testadas e resultados repetidos. Só então posso me permitir acreditar. — Varina suspirou. — Mas nenhum de nós vai conseguir convencer o outro, não é?
— Não. — Ele abriu as mãos, com as palmas para cima, sobre a mesa. — Embora eu deva admitir que vocês, numetodos, podem ser úteis ocasionalmente: a areia negra dos tehuantinos, por exemplo. É um tanto quanto irônico, se você pensar a respeito: se eu e minha gente tivéssemos permissão para usar o Ilmodo, então não teríamos precisado usar a areia negra, e seus amigos provavelmente ainda estariam vivos. O Ilmodo, pelo menos, pode ser uma arma precisa.
Varina ficou vermelha, e sua mão acariciou o cabo da chispeira carregada e engatilhada na bolsa do cinto.
— Então por que eu estou aqui, Varina — continuou ele —, se você não está planejando me entregar para a Garde Kralji e me jogar na Bastida?
— Eu queria vê-lo novamente, Nico — respondeu ela.
O dedo de Varina envolveu o guarda-mato de metal do gatilho.
— Eu queria ouvi-lo — a língua de metal frio no dedo se aqueceu com o toque — porque eu preciso saber...
Só um puxão do músculo. É o que basta.
— ... se eu sou o monstro que a Fé pinta? — concluiu Nico para Varina.
Seria tão fácil: embaixo da mesa, retirar a chispeira sorrateiramente e apontar o cano de metal na direção de Nico; puxar o mecanismo do gatilho para girar a engrenagem e soltar faíscas que tocariam a areia negra no tambor fechado. Um instante depois e... Os buracos na armadura; o que isto faria com um corpo desprotegido?
— Ninguém pensa em si mesmo como um monstro — Nico dizia. — Alguns podem julgar o ato de uma pessoa como maldade, mas essas pessoas pensam que estão fazendo o que é necessário para corrigir o que consideram pecado. Eu não sou diferente. Não, eu não sou um monstro.
Ele sorriu para Varina, e seu rosto e olhos ficaram radiantes, de uma maneira que fez com que ela se lembrasse do antigo Nico, da criança.
— Nem você é, Varina. Não importa o que possa estar pensando em fazer comigo.
Seu dedo recuou. Ela tirou a mão da bolsa.
— Nico...
— Varina — ele disse antes que ela pudesse organizar seus pensamentos caóticos —, você fez o que achou melhor para mim durante o Saque de Nessântico. Eu reconheço isso e sempre lhe serei grato por seus esforços, mesmo que você não saiba que estava seguindo a vontade de Cénzi. Quando rezo para Cénzi, peço a Ele perdão por você e Karl. Rezo para que Cénzi levante a cegueira dos seus olhos para que você possa enxergar Sua glória e ir até Ele.
Nico saiu da cabine e parou ao lado dela. Tocou no ombro de Varina levemente e recolheu a mão. Seus olhos estavam tomados por uma tristeza serena.
— Estamos em lados opostos nesta situação. Eu não queria que fosse assim, mas é. Infelizmente, não pode haver reconciliação entre nós. Pelo que você fez, eu sempre te amarei. Porque você também é uma criação de Cénzi, eu sempre te amarei. E por causa do caminho que você escolheu, eu sempre serei seu inimigo.
A tristeza no rosto de Nico aumentou.
— E é bem mais fácil odiar um inimigo desconhecido do que um conhecido. Portanto, adeus, Varina.
Nico fez, sem nenhuma ironia aparente, o sinal de Cénzi e virou-lhe as costas. O cão raivoso... Eu podia detê-lo agora. Ela cerrou o punho direito; tentou ouvir a voz de Karl, mas não ouviu nada. Nico começou a se afastar devagar.
É agora, ou será tarde demais...
Varina permaneceu imóvel na cadeira, olhando fixamente para o tecido preto nas costas de Nico conforme ele caminhava entre os clientes da taverna até a porta.
Nico abriu a porta e saiu. De algum lugar na rua, ela ouviu um cachorro latindo. Parecia debochar de Varina.
CONTINUA
ENCARNAÇÕES
Nico Morel
Varina ca’Pallo
Allesandra ca’Vörl
Niente
Sergei ca’Rudka
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Nico Morel
A explosão da areia negra foi mais poderosa e atordoante do que Nico tinha esperado.
A concussão atingiu seu peito como o punho de Cénzi. Ela agitou os trapos do boneco golpeando a cabeça de papier mâché com tanta força que nenhum deles conseguiu segurá-la no lugar. O boneco desmoronou enquanto as pessoas gritavam e pedaços do esquife funerário do embaixador começaram a cair em volta delas.
— Vão embora! — berrou Nico para seus seguidores. — Espalhem-se! Rápido!
A multidão já fugia; os gardai estavam confusos e atordoados. Os morellis evaporaram na multidão e sumiram em poucos instantes. Nico esperou alguns segundos, encarando a destruição. Havia várias pessoas caídas, a maioria numetodos que estavam em volta do esquife — ele não sentia compaixão alguma pelas mortes e ferimentos sofridos por eles. Ainda assim, alguns espectadores tinham sido feridos pelos estilhaços.
— Sinto muito — Nico sussurrou para um deles, uma mulher com um corte na têmpora que sangrava bastante. — Ninguém tinha a intenção de machucá-la. Cénzi lhe abençoará pelo sangue derramado hoje aqui e por sua dor.
Ele sentiu Liana puxar sua manga.
— Temos que ir — disse ela com urgência.
Nico ergueu os olhos. O embaixador ca’Rudka estava se levantando desajeitadamente da estrutura retorcida da carruagem que seguia o esquife; a espora herege de ca’Pallo, Varina, já tinha saído e observava horrorizada a destruição do esquife. Os cavalos que puxavam a carruagem da kraljica dispararam, e o condutor tentava detê-los mais abaixo no pátio, com gardai correndo atrás deles. A explosão derrubou o condutor da a’téni do assento e encerrou seu cântico; sua carruagem estava intacta e intocada, bem atrás do resto.
Nico sorriu ao ver isso — ele não queria que a a’téni ca’Paim se ferisse.
Onde estivera deitado o corpo de Karl, havia um buraco negro nos paralelepípedos, com estilhaços espalhados por todo lado, a uma dezena de passos de distância.
— Obrigado, Cénzi — ele rezou, fazendo o sinal rapidamente. — Obrigado por me permitir fazer a Sua vontade.
Ele se perguntou se Varina perceberia a ironia em usar a areia negra — uma invenção dos hereges ocidentais, recriada por Karl e Varina — contra eles.
Nico meneou a cabeça quando Liana puxou sua manga novamente. Ela segurava sua barriga inchada.
— Você está bem? — ele perguntou, subitamente preocupado que Liana estivesse ferida.
— Eu estou bem, mas você precisa ir embora. Agora!
Nico meneou a cabeça negativamente.
— Vá em frente — disse calmamente, em voz baixa. — Eu encontro você na casa.
Liana hesitou, e Nico acenou com a mão para ela.
— Vá! — repetiu ele.
Dessa vez, Liana obedeceu e foi embora correndo desajeitadamente por causa da gravidez avançada.
Nico voltou-se para o caos. Ele observou os gardai por detrás da cobertura de pessoas que também ficaram para trás, hipnotizadas pela visão de toda a destruição. Ele ouviu o Velho Nariz de Prata berrar enquanto tentava organizar o resgate. Mal conseguia conter a alegria que sentia, embora tentasse, pois esse era apenas seu orgulho tolo repuxando os cantos de sua boca. Finalmente, ele se afastou lenta e calmamente, em paz — como se tivesse saído para uma simples caminhada matinal.
Eles só conseguiriam pegá-lo se esta fosse a vontade de Cénzi, e se Ele assim o desejasse, então Nico se conformaria com Sua decisão. Cénzi estava acima da autoridade da kraljica ou do archigos. Sozinhos, os dois não podiam fazer nada contra Nico.
Portanto, Nico se afastou sem pressa, com uma expressão solene no rosto. Cénzi o segurava em Suas mãos protetoras.
Quando ele chegou ao esconderijo que os morellis tinham estabelecido no Velho Distrito, uma virada da ampulheta ou mais depois, Nico encontrou uma comemoração em curso. Ancel deu um tapa em seus ombros; Liana o abraçou desesperadamente enquanto os demais reunidos no ambiente gritavam e sorriam.
— Um punhado deles mortos, é o que dizem os rumores — comentou Ancel. — E o corpo do degenerado do ca’Pallo espalhado em pedaços pelo pátio do templo para os ténis limparem; isso ensinará a a’téni a agradar aos hereges. Que pena que a explosão poupou a esposa de ca’Pallo e o Velho Nariz de Prata.
Estranhamente, a alegria no rosto de Ancel azedou o bom humor de Nico. Ele olhou para seus seguidores, para o prazer que sentiam, e Cénzi manifestou-se em Nico. Ele franziu a testa, sua expressão ficou séria.
— Por que estão rindo? Por que que estão sorrindo? — perguntou Nico para eles.
O desprezo em sua voz calou a comemoração na boca de todos. A sala ficou rapidamente silenciosa. Liana soltou Nico; Ancel deu um passo para trás, com o rosto subitamente abatido.
— Sinto muito, Absoluto — disse Ancel ao abrir os braços em um gesto de desculpas. — Nós não fizemos o que Cénzi pediu?
— Fizemos — respondeu Nico. — E só tivemos êxito porque temos as mãos de Cénzi sobre nós. Será que devemos comemorar isso? Sim, mandamos vários hereges para Ele julgar, mas tiramos matarhs e vatarhs de crianças, destruímos suas famílias. Levamos sofrimento àqueles próximos aos hereges, e muitos deles não eram nossos inimigos. Muitos eram fiéis. Devemos ficar contentes por tê-los prejudicado, por ter-lhes causado sofrimento?
— Eu não pensei... — Ancel começou a dizer, mas foi interrompido por um gesto de Nico.
— Não, você não pensou. Nenhum de vocês pensou. Nem mesmo eu. — Ele respirou fundo e sentiu as palavras de Cénzi preencherem sua mente. — Estamos falando de vidas. Estamos falando de pessoas que são pouco diferentes de nós. Sim, são hereges. Sim, eles envenenam os Domínios e a fé concénziana com sua presença. Sim, são nossos inimigos. Mas são pessoas, apesar de tudo, e quando lhes causamos sofrimento, trazemos sofrimento para nós mesmos, ao mesmo tempo.
Nico sentiu lágrimas quentes brotando de seus olhos, e não se importou que escorressem por seu rosto sob os olhares de seus discípulos.
— Eu não lamento uma xícara quebrada. Eu não sofro se a tira da minha sandália se parte. Mas eu choro sim pelos numetodos. Choro porque eles não conseguiram enxergar a verdade. Choro porque não pude convencê-los a seguir a verdade. Choro por que me foi dada a tarefa de ser seu executor. Choro porque me dói ver o desperdício de seu grande potencial.
Ele, então, sentiu-se enlevado por Cénzi, e enxugou as lágrimas de olhos com sua manga enquanto a raiva ia embora.
— Ancel, desculpe-me. Não estou com raiva de você. Não estou. Você é meu braço direito e agiu bem hoje. Todos vocês agiram, e devemos ficar contentes por termos conseguido demonstrar o poder de Cénzi para aqueles que controlam os Domínios e a Fé. Fomos bons servos hoje. Mas é nosso dever sermos sempre bons servos, estarmos prontos para agir quando o Mestre nos chamar para fazer a Sua vontade, independentemente do que Ele nos peça.
Nico abriu os braços, deu um passo na direção de Ancel e o abraçou. Ele beijou a bochecha do homem.
— Você sabe disso. Sei que você sabe, e não cabia a mim repreendê-lo. Você me perdoa, meu amigo?
Ancel fez uma careta e soltou um suspiro pelo nariz. Ele assentiu, e Nico agarrou sua cabeça e beijou sua testa. Ele deu um tapinha nas costas do homem. Sorriu para todos os discípulos. Liana abraçou Nico novamente, pressionando sua barriga e seu filho contra a barriga dele.
— Todos nós agimos bem hoje — Nico disse para eles, seu olhar pairou sobre as pessoas reunidas na sala. — Vocês todos são abençoados.
Varina ca’Pallo
Seus ouvidos zumbiam, Varina mal podia ouvir as vozes que se dirigiam a ela através do retinir. Isso, ao menos, já era um progresso: imediatamente após a explosão, ela se viu inteiramente surda. Varina tinha sido levada para o prédio mais próximo — um dos edifícios de administração dos Domínios que dominavam a Ilha a’Kralji. Foram enviados curandeiros; gardai entravam e saíam fazendo perguntas a ela e Sergei. Até o comandante co’Ingres veio visitá-la, e as notícias que ele trouxe eram péssimas. A kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim estavam abaladas, mas ilesas, porém, dos doze numetodos que acompanhavam o esquife de Karl — todos amigos, a maioria integrantes de longa data do grupo —, cinco morreram e mais três estavam gravemente feridos. Mesmo que sobrevivessem, eles ficariam com sequelas do dia de hoje pelo resto de suas vidas.
Varina chorou por eles mais do que chorou por Karl, que estava além do sofrimento.
Talbot estava entre os numetodos que acompanhavam o esquife; felizmente, seus ferimentos tinham sido leves.
Varina franziu a testa para se concentrar em Sergei, que se debruçava sobre ela de forma solícita. Varina pôde notar seu reflexo distorcido no nariz de prata; seu rosto estava arranhado, uma longa linha de sangue seco cortava sua testa, e em sua bochecha direita havia uma mancha escura de um hematoma inchado.
— A surdez deve ser temporária, me disseram os curandeiros — dizia Sergei.
Ela teve que se concentrar nos lábios do embaixador para compreendê-lo.
— É uma boa notícia para nós dois; minha audição já sofreu o bastante nesses últimos anos. Também me disseram que nenhum dos seus ferimentos deve ser grave, embora você vá ficar dolorida por vários dias. Não parece que tenha ossos quebrados, embora você deva avisá-los caso sinta alguma dor interna aguda ou caso os cortes comecem a ficar vermelhos ou podres.
— Foi Nico quem fez isso? — ela perguntou.
Sergei fez uma careta.
— Sim. Ele e os morellis. Um dos gardai jura ter visto Nico no grupo que conduzia o boneco.
— Por que ele faria isso? Karl e eu nunca... nunca...
Varina mordeu o lábio inferior, e as lágrimas ameaçaram surgir novamente à menção do nome dele.
— Com sorte, você terá a oportunidade de perguntar ao homem em pessoa, quando o encontrarmos — falou Sergei. — E eles o encontrarão. Eu já disse ao comandante co’Ingres que coordenarei pessoalmente a busca por Morel caso ele não tenha sido capturado quando eu voltar de Brezno.
— Você ainda vai? Está bem?
— Sou velho e durão; é preciso mais que um pouco de areia negra para me deter. Eu já comecei uma investigação sobre a maneira como eles adquiriram a areia negra; suspeito de que alguém do arsenal seja um simpatizante morelli. Mas com as recentes incursões na fronteira, eu tenho que ir... — seu sorriso desmoronou com o próprio peso, Sergei pousou sua mão sobre o ombro dela. — Eu sinto muitíssimo, Varina. Isso jamais deveria ter acontecido. Karl merecia muito mais do que isso.
O choro tomou conta dela, e ela não conseguiu responder. Sergei deu um tapinha em seu ombro, mas seu olhar estava voltado para outro lugar.
— O corpo... de Karl? — ela finalmente conseguiu falar.
— O corpo de Karl — respondeu Sergei, e pela contração de seu maxilar, Varina percebeu que ele não estava lhe contando tudo — foi recuperado e já está na pira no Palácio da Kraljica. A Garde Kralji foi posicionada em volta dela, e também há vários numetodos lá, que dizem que não irão embora até que a pira seja acesa.
— Eu preciso ir até lá, então.
Varina começou a se levantar. Ela sentiu os músculos protestarem com o movimento, mas conseguiu se sentar. O quarto rodou ao seu redor e depois se assentou.
— Varina, a kraljica Allesandra disse que ela mesma acenderia a pira. Os curandeiros disseram que você deveria ficar...
— Eu preciso ir até lá — repetiu ela, com mais firmeza.
Sergei suspirou e assentiu.
— Eu disse para a kraljica que essa seria a sua resposta. Eu a acompanharei até lá...
— Varina... — A kraljica Allesandra a abraçou assim que ela desceu da carruagem, depois de Sergei. — Eu sinto muito. Sou a culpada por esta atrocidade. Nós obviamente não tomamos todas as precauções que deveríamos, e isso é responsabilidade minha.
Varina negou com a cabeça.
— Não foi culpa sua — respondeu ela simplesmente.
Atrás dos cortesãos e chevarittai que flanqueavam Allesandra, Varina viu Mason ce’Fieur, um amigo numetodo que era um de seus alunos no grupo. Ele acenou para ela com uma expressão grave.
— Com licença, kraljica — disse Varina para a kraljica e se dirigiu até Mason.
Os dois se abraçaram.
— A’morce numetodo — cumprimentou ele.
O uso do título pegou Varina de surpresa. Karl tinha sido o líder nominal do grupo desde que ela começou a fazer parte dele. Varina nunca considerou que o título pudesse passar para ela com o falecimento dele, mas aparentemente passou.
— Todos nós estávamos lhe esperando — disse Mason.
Ela olhou para a pira. Havia ca’ e co’ em roupas elegantes — aduladores do palácio que queriam ser vistos pela kraljica —, mas também havia numetodos da cidade, a maioria ce’ ou de status inferiores: duzentas pessoas ou mais, rostos que ela reconhecia, gente com quem trabalhou e a quem ensinou. Eles estavam ali agora, silenciosos e pacientes.
A pira tinha a altura de três pessoas, e o cheiro de óleo era forte no pátio entre as alas do palácio tomadas por andaimes. No topo da pilha piramidal de lenha fora colocado um caixão fechado de madeira — não mais o corpo envolvido na bandeira de Paeti. Varina apertou os lábios com a visão, seu estômago revirou, enviando ácido para a sua garganta. Ela engoliu em seco, uma vez.
— Vamos fazer isso logo. Em breve, teremos que acender mais piras para o restante de nossos companheiros que caíram.
Com Sergei à sua esquerda, kraljica à sua direita, e as fileiras de numetodos atrás dela, Varina avançou até a base da pira. Ela ergueu o olhar para o caixão e por um momento teve que fazer uma pausa, sobrepujada pelas lembranças de Karl. Seu estômago revirou novamente, e Varina fechou os olhos brevemente.
Ela abriu os olhos novamente quando encontrou, em sua mente, o feitiço que havia preparado na noite anterior. Estava em sua cabeça como um ovo prestes a explodir, e Varina o acariciou com seus pensamentos. Este era o método dos numetodos: como os ténis, eles usavam uma combinação de palavras e gestos para dar forma ao feitiço — uma fórmula que devia ser seguida. Como com os ténis, o esforço de invocar feitiços tinha um custo de exaustão e fraqueza. Ao contrário dos ténis, os numetodos não invocavam Cénzi ou atribuíam seu poder a qualquer divindade; ao contrário dos ténis, eles não precisavam lançar o feitiço imediatamente após o término do encantamento. Os numetodos sabiam como manter o feitiço em suas mentes, como lançá-lo com uma palavra e um único gesto muito tempo depois. Eles, portanto, podiam “pagar antecipadamente” a fraqueza que acompanhava a invocação do feitiço e não eram afetados depois. Os numetodos podiam lançar um feitiço preparado com um simples gesto ou pronúncia.
Varina fez isso agora. Diante da pira, ela abriu o feitiço.
— Tine — disse Varina na língua de Paeti, a terra natal de Karl.
Fogo. Varina fez um gesto como se jogasse uma pedra na base da pira. Um sol irrompeu no centro da pirâmide, branco-amarelado e tão quente que seu deslocamento de ar tremulante golpeou os espectadores como o vento de um furacão. A lenha banhada em óleo pegou fogo com um estrondo, e as chamas saltaram no ar, com tornados de fagulhas rodopiantes diante delas. Uma coluna de fumaça veio a seguir, levada pela brisa na direção dos telhados distantes do palácio, onde foi dispersada pelo vento e espalhada na direção do Velho Templo e do rio A’Sele, a oeste.
O fogo furioso agora lambia o caixão que continha os restos mortais de Karl. Enquanto Varina assistia, as chamas subiram pelas laterais até obscurecer a caixa de madeira com o fogo e encobri-la com fumaça.
— Adeus, meu amor — sussurrou Varina. — Eu sempre sentirei sua falta.
As lágrimas desciam por seu rosto sem pudor e secavam rapidamente pelo calor da pira. Alguém a estava abraçando, e ela não sabia se era Sergei, a kraljica ou Mason.
Não importava. Ela assistiu aos restos mortais de Karl alçarem à eternidade em uma espiral.
Varina ficou ali até o fogo na pira entrar em colapso, muitos minutos depois, e virar uma pilha de cinzas e carvão tão morta e carbonizada quanto ela mesma.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra observou Sergei andar de um lado para o outro em frente ao quadro da kraljica Marguerite. O olhar severo do retrato parecia, para Allesandra, acompanhar o avanço manco do embaixador, de lá para cá. O comandante co’Ingres sequer o observava; seu olhar estava fixo e resoluto no pequeno fogo da lareira, aceso com a intenção de tirar do ambiente o frio noturno. A a’téni ca’Paim estava sentada ao lado da mesa de doces, com um prato cheio em seu colo largo.
Allesandra não tinha apetite. A carnificina que a kraljica testemunhara durante a procissão fúnebre lhe tirara a fome. Suas mãos ainda tremiam ao lembrar. Tão covardemente, o uso da areia negra. Uma morte tão horrível... Ainda havia um leve zumbido em seus ouvidos provocado pela explosão.
— Não podemos permitir outro incidente como este, kraljica — declarou Sergei ao passar pelo quadro novamente. — A mensagem que isso transmite à população; a mensagem que transmite aos fiéis... Não podemos permitir.
— Não havia magia téni envolvida no incidente — declarou a a’téni ca’Paim em tom severo. — Morel sabe quais são as consequências de usar o Ilmodo. É por isso que usou a areia negra; embora um de seus seguidores provavelmente tenha acendido a areia negra com um feitiço quando o esquife passou sobre ela.
— Esta é exatamente a questão — respondeu Sergei. — Ele conseguiu perturbar um ritual solene dos Domínios sem o Ilmodo. Sem magia. O uso da areia negra foi uma mensagem: de que a Fé é inútil e fraca, que os Domínios podem ser reféns de qualquer um que consiga criar areia negra; que os numetodos são mais perigosos do que qualquer téni. Isto é pior do que se ele tivesse usado o Ilmodo.
O rosto de ca’Paim contorceu-se em uma careta de desdém.
— A Fé não é fraca — respondeu ela com firmeza. — Ela está mais forte do que há décadas. O archigos Karrol cuidou disso.
Allesandra notou que ca’Paim fingiu não ouvir o audível fungar de desdém dado por Sergei diante daquela declaração.
— Você acha que Morel não é inteligente o bastante para compreender o simbolismo de suas ações? — perguntou Allesandra para a a’téni. — Ficou claro o suficiente para mim. Aquele boneco blasfemo de Cénzi estava encarando o esquife diretamente quando a areia negra explodiu. Acho que Morel teria usado o Ilmodo para obter o mesmo efeito, mas ele estava obedecendo às leis da fé concénziana. Peço desculpas, a’téni ca’Paim, mas o homem acredita seguir os preceitos do Toustour e da Divolonté bem mais à risca do que qualquer a’téni e o archigos Karrol.
— A mensagem de Morel pode ser interpretada de várias maneiras por pessoas diferentes, kraljica — insistiu Sergei —, e isso é um problema ainda maior. Sim, para a Fé ele está dizendo: “vejam só, eu obedeci suas regras, embora as considere completamente tolas”. Para os numetodos, Morel diz: “eu considero suas crenças desprezíveis e hereges”. Mas acho que a população em geral, que não é nem téni, nem numetodo, interpreta uma declaração completamente diferente. Acho que alguns deles podem olhar para o que aconteceu e pensar: “eu posso fazer aquilo. Ora, qualquer um pode fazer aquilo”. Isso é perigoso. Não é no que queremos que as pessoas acreditem, especialmente as que podem ter motivos para se opor a nós.
Ca’Paim atacou um docinho e o mastigou furiosamente. Co’Ingres assistia à dança das chamas.
— Então o que você sugere que eu faça, Sergei? — perguntou Allesandra.
— Precisamos encontrar Morel. Temos que executá-lo publicamente, com violência — respondeu Sergei. — Então sua resposta à mensagem dele será: “se alguém tentar isso, morre.”
— É isso o que Varina me dirá para fazer? — indagou a kraljica.
— Não — admitiu Sergei. — Não é. Mas eu sou seu conselheiro, não a a’morce dos numetodos. Minha lealdade é à senhora, kraljica; a Nessântico e aos Domínios, como sempre. Eu digo o que será mais útil a essa fidelidade. Precisamos cuidar de Nico Morel e seus seguidores com rigor.
— Eu concordo completamente com o embaixador — disse ca’Paim ao se levantar, ainda segurando o prato de doces. — Meu pessoal irá ajudá-lo como for possível. Eu posso começar interrogando os suspeitos de ter afinidades com os morellis...
Ela fez o sinal de Cénzi com uma mão só para Allesandra e os demais.
— Será que Talbot poderia mandar alguém embrulhar isso para mim, kraljica? — perguntou ca’Paim ao erguer o prato. — Eu odiaria desperdiçá-los...
A a’téni ca’Paim foi embora com um pacote de doces, acompanhada pelo comandante co’Ingres. Talbot — que insistiu em voltar ao trabalho, apesar dos cortes e arranhões que recebeu — mandou um trio de criadas limpar as mesas e levar as bandejas de volta às cozinhas.
Sergei não fez menção de ir embora. Allesandra observou o embaixador, cuja atenção parecia estar voltada para os criados enquanto realizavam suas tarefas, com uma mão atrás das costas e a outra apoiada na bengala de punho prateado que quase combinava com seu nariz. Pouco tempo depois, a última criada fez uma mesura e fechou a porta ao sair.
— O que foi, Sergei? — perguntou Allesandra então. — Estou esperando Erik ca’Vikej chegar para almoçar em meia virada. Ele quer conversar a respeito da possível reação do governo exilado da Magyaria Ocidental ao problema dos morellis.
Sergei voltou-se para kraljica. Ela viu os olhos do embaixador fecharem brevemente e seus lábios franzirem, como se o gesto o incomodasse — ou como se a menção ao nome de ca’Vikej o aborrecesse.
— A senhora está brincando com fogo e areia negra, kraljica. Como embaixador dos Domínios na Coalizão, devo aconselhá-la a não dar a impressão de que apoia abertamente o homem.
Ele pareceu engolir algo mais que poderia ter dito, e Allesandra perguntou-se se Sergei percebia que outros sentimentos ela nutria por Erik.
— Como embaixador dos Domínios na Coalizão, eu espero que você me apoie, do modo como eu disser para fazê-lo — respondeu Allesandra com rispidez.
Sergei abaixou a cabeça, principalmente, suspeitou a kraljica, para que ela não pudesse ver seus olhos.
— Perdoe-me, kraljica; este é, obviamente, o meu dever. Verei seu filho em poucos dias, mas gostaria de oferecer-lhe um ramo de oliva em vez de uma espada desembainhada.
Allesandra já fazia que não com a cabeça antes que ele terminasse de falar.
— Você está se tornando previsível, Sergei, e mole com a velhice.
— Então a senhora decidiu que é contra a minha proposta de reconciliação com ele?
— Eu agradeço o esforço que você dedicou a isso, Sergei. E a boa intenção.
— Mas?
— Eu não tenho intenção de ceder para que meu filho possa tomar o Trono do Sol.
Tap, tap... Sergei deu alguns passos arrastados em direção a Allesandra. Seu rosto enrugado tinha uma expressão sincera, e ela pôde ver o reflexo do fogo da lareira em seu nariz polido.
— A senhora não estaria cedendo, kraljica, apenas nomeando seu filho como seu sucessor na sua morte.
A risada que ela soltou soou mais como uma tosse.
— Eu não consigo ver a diferença, Sergei. Se eu nomear Jan como herdeiro, perco meu poder como kraljica. A cada proclamação que eu fizer, todos passarão a olhar na direção a leste, para Brezno e para o hïrzg, a fim de ver se ele concorda. O Conselho dos Ca’ aqui ficará mais preocupado em ver como suas decisões são consideradas por Jan do que por mim. Eu pretendo ter uma vida ainda muito longa, Sergei. O que você me disse no outro dia, que eu ainda tenho décadas para me igualar à kraljica Marguerite?
Allesandra se levantou — deixe que ele note que nossa conversa acabou. Ela falou em um tom distante e severo, como se desse uma ordem para Talbot.
— Bem, eu pretendo fazer exatamente isso. E você me apoiará ou outra pessoa será meu embaixador.
A kraljica observou seu rosto, embora a expressão de Sergei raramente revelasse seus pensamentos mais íntimos. Não revelou agora. Ele fez uma reverência um pouco desajeitada e dura, mas seu rosto estava impassível e seus olhos pareciam não ter nada além de respeito por Allesandra.
— Eu sempre servirei a Nessântico e a quem estiver sentado no Trono do Sol — respondeu Sergei. — Sempre.
Ela quase riu novamente — dito com tanta cautela.
— Então diga ao meu filho que ele brinca com fogo e areia negra, como você disse, com suas recentes incursões na fronteira, e que minha paciência está se esgotando. Diga-lhe que espero que parem imediatamente, ou serei forçada a responder na mesma moeda. Lembre a Jan que a Magyaria Ocidental só lhe pertence porque não enviei a Garde Civile inteira para apoiar Stor ca’Vikej, um erro que não repetirei.
O rosto de Sergei não revelou nada ao fazer uma reverência.
— Como a kraljica desejar — respondeu ele.
— Ótimo. Mandarei Talbot fazer uma lista de exigências para a sua reunião, e minhas respostas às possíveis questões que você ouvirá do hïrzg.
O hïrzg. Não “meu filho”. Allesandra teve uma súbita lembrança de Jan: de segurá-lo como bebê, de vê-lo mamar em seu peito e do prazer íntimo e intenso de sentir o leite vir; das primeiras palavras; dos primeiros passos trôpegos; das ocasiões em que ele veio até ela chorando por causa de algum machucado ou de uma ofensa em que ela o abraçava e consolava. Quando foi que isso mudou? Por que deixei que acontecesse? Ela respirou fundo. Sergei observava Allesandra, com os olhos mucosos voltados para seu rosto.
— Estamos encerrados — falou ela. — Mandarei Talbot com minhas instruções.
— Sim, kraljica.
Allesandra odiou a compaixão que Sergei deixou transparecer em seu rosto, odiou que ele tivesse percebido o vazio dentro dela, que a fazia chorar sozinha à noite, que atormentava seus sonhos. O embaixador fez uma mesura ao sair, mas a kraljica já não estava prestando atenção nele. Era Jan quem ela via agora, como ele era da última vez que ela o viu. Allesandra imaginou como ele seria agora, como seriam seus netos, a quem ela nunca tinha abraçado, beijado ou embalado no colo. Tanta coisa que você deixou de viver. Tanta coisa que perdeu. Sua visão oscilou, as paredes cobertas por tapeçarias se tornaram brevemente líquidas, e ela se perguntou se Sergei estaria certo. Talvez fosse o momento.
Houve uma batida suave na porta, e Allesandra piscou, enxugando os olhos rapidamente com a manga.
— Entre — disse ela.
Talbot enfiou a cabeça na porta.
— O embaixador disse que a senhora precisava de mim, kraljica.
Ela fungou.
— Sim. Entre, mas primeiro mande um dos criados trazer pergaminho e tinta. E se o vajiki ca’Vikej chegar, diga-lhe que o receberei em breve.
— Eu fiquei horrorizado quando soube, preocupado que a senhora tivesse se ferido...
Erik andava de um lado para o outro em frente às janelas do aposento. O almoço fumegava na mesa, intocado. Sentada na cadeira à mesa, Allesandra observava ca’Vikej fixamente: a preocupação em seu rosto, a maneira como seus músculos se contraíam no crânio careca.
A preocupação que ele sente por você é real. Não é fingida, não é baseada em seus próprios interesses: é genuína. Ela esperava que estivesse certa quanto a isso. Allesandra também se deu conta de que tomara uma decisão, espontânea e não solicitada. Uma decisão envolta em sua própria solidão, no afastamento de Jan, no erro que ela cometera com o vatarh de Erik, na dor intensa que sentia quando estava com Varina, na raiva dirigida aos morellis. Allesandra esperava que sua decisão fosse a certa.
— Eu estou bem, Erik. Fiquei abalada, mas não ferida. O ataque não foi direcionado a mim.
Ele balançou a cabeça enfaticamente.
— Se a senhora tivesse se ferido, eu mesmo teria saído e encontrado esse Nico Morel, e... — Ele parou e se afastou das janelas a fim de olhar para Allesandra; seu rosto e voz abrandaram. — Minhas desculpas, kraljica. É que fiquei tão preocupado...
— Eu estou bem — ela repetiu. — E aqui, enquanto estivermos sozinhos, eu prefiro que você me chame de Allesandra.
— Allesandra — disse Erik, como se saboreasse a palavra. Ele sorriu. — Obrigado. Mas não menospreze esses morellis. Eles são um perigo para você, quer você acredite ou não. São fanáticos que ameaçam qualquer um que não acredite no que eles acreditam.
— Você é um fanático, Erik? — perguntou a kraljica com delicadeza e apontou para a cadeira à sua direita.
Ca’Vikej sentou-se antes de responder.
— Sobre a Magyaria Ocidental, você quer dizer?
Ele pegou a taça de vinho, e sacudiu o líquido rubro.
— Não, não quanto a isso. Em política, eu sou mais pragmático do que meu vatarh. Acredito que a Magyaria Ocidental estaria melhor sendo parte dos Domínios. Acredito que eu seria um bom gyula, se Cénzi desejar que isso aconteça. Estou disposto a trabalhar tão duro quanto for necessário para tornar isso possível, mas também sei que às vezes sacrifícios e concessões precisam ser feitos para se alcançar um objetivo, e que às vezes o melhor resultado não é aquele que se gostaria de ver. Então, não, eu não sou um fanático, mas um realista.
Erik ergueu a taça e a pousou novamente.
— Isto não quer dizer que não existam coisas com as quais eu me importe muito ou que eu não seja um homem passional, kralji... — Ele respirou fundo. — Allesandra. Quando chego a amar alguma coisa ou alguém...
A mão esquerda de Erik abandonou a taça e pousou na toalha de mesa de linho. A kraljica estendeu sua própria mão e pousou na dele. Allesandra o ouviu respirar fundo. Seus belos olhos claros sustentaram o olhar dela, sem pestanejar, quase como um desafio. Ele abriu os dedos e os entrelaçou aos de Allesandra.
— Eu sou passional. — ela disse em voz baixa. — Nessântico e os Domínios são minhas paixões. E também sou perigosa por causa disso. Portanto, esta... — Allesandra apertou levemente os dedos de Erik — ... não seria uma decisão a ser tomada levianamente. Ou, se você preferir, podemos comer o jantar que está posto diante de nós.
Erik assentiu, ergueu sua mão, ainda segurando a de Allesandra, até sua boca e beijou as costas da mão dela. Ela sentiu sua respiração quente em sua pele, o toque dos lábios, suave e excitante.
— Você está com fome, Allesandra? — perguntou Erik.
É isso que você quer... Foi por isso que você o chamou aqui hoje...
— Estou — ela respondeu.
A kraljica levantou-se da cadeira, ainda segurando a mão dele, e o levou embora.
Niente
As águas da baía de Munereo estavam cheias de navios ancorados tão próximos uns dos outros que parecia ser possível uma pessoa cruzar a grande baía a pé sem se molhar. Suas velas estavam recolhidas e amarradas nos mastros, e as embarcações estavam amontoadas sob um céu baixo com nuvens que corriam para o oeste. Ocasionais raios solares empoeirados perfuravam as nuvens e deslizavam sobre a baía, brilhando nas ondas distantes e nos panos brancos amarrados em seus mastros.
Niente nunca tinha visto tantos navios reunidos em um só lugar, e só uma vez, anteriormente, tinha visto tantos guerreiros tehuantinos reunidos.
Ele ouviu um grito ao seu lado, conforme seu filho, Atl, se aproximava.
— Pela teta esquerda de Axat — ele sussurrou a blasfêmia que ecoou alto no ar frio da manhã —, isto é uma novidade no mundo.
— Certamente que sim — respondeu Niente para o jovem.
Ele piscou, e tentou, sem sucesso, limpar a imagem borrada — mesmo a visão do olho remanescente começava a falhar. Os dois estavam sobre um morro do lado de fora das muralhas da cidade, não muito longe da estrada principal que levava ao porto. A estrada estava repleta de soldados que marchavam em direção aos barcos. As poucas centenas de nahualli e os feiticeiros que acompanhariam a força invasora estavam reunidos em seu próprio grupo, um pouco mais abaixo no morro, próximo à estrada. Eles estariam entre os últimos a subir a bordo das embarcações, imediatamente antes do tecuhtli Citlali e seus guerreiros supremos.
Atrás de Niente e Atl, as espessas muralhas de Munereo ainda estavam esburacadas e manchadas pelos vestígios da batalha travada ali há uma década e meia, quando as forças dos Domínios tinham sido derrotadas pelo exército do tecuhtli Zolin, o antecessor de Citlali. Niente tinha participado dessa batalha, tinha visto a areia negra rugir e as pedras voarem, e tinha ajudado a sacrificar os líderes orientais derrotados em nome de Axat. Também tinha navegado mar adentro ao lado do tecuhtli Zoli desse mesmo porto até os próprios Domínios.
Há tanto tempo. Parecia ter sido em outra vida para Niente.
Uma vida que ele agora era forçado a revisitar, se quisesse alcançar a visão vislumbrada na tigela premonitória. Quantos destes guerreiros morrerão por causa disso? Quantas almas serão enviadas para o submundo por causa do que estou fazendo? Axat, por favor, diga-me que eu sou capaz de realizar isso, que valerá a pena carregar essa culpa em minha alma. Ajude-me.
— Taat?
Niente saiu do devaneio.
— O quê?
— Pensei que o senhor tinha dito alguma coisa.
— Não — ele respondeu.
Pelo menos, espero que não. Ninguém pode saber dessa visão. Não ainda.
— Eu só pigarreei; o ar desta manhã está afetando meus pulmões. — Niente apontou na direção dos navios e da baía. — Amanhã, navegaremos na direção do sol quando ele nascer.
— E haverá bons ventos — afirmou Atl.
A confiança em sua voz fez Niente se voltar para o filho, estreitando os olhos.
— Você sabe disso? — perguntou ele.
Atl sorriu brevemente, como o toque do sol através das nuvens sobre os navios lá embaixo.
— Sim.
— Atl... — Niente ia dizer, mas o filho ergueu uma mão.
— Pare, taat. Deixe-me terminar por você. “Olhe para mim. Veja como Axat me marcou. Deixe a premonição para algum outro nahualli. Axat é cruel com aqueles a quem Ela dá a Visão.” Eu já ouvi isso tudo. Muitas vezes.
— Você devia olhar para mim — insistiu Niente.
Ele tocou seu olho branco e cego, massageou os músculos flácidos do lado esquerdo do rosto, os sulcos da pele morta e cheia de cicatrizes: uma máscara de horror.
— É assim que você quer ficar?
O olhar de Atl varreu o rosto de Niente e se afastou mais uma vez.
— Isso levou muitos anos, taat — ele respondeu. — E o juramento dos nahualli nos obriga a fazer o que Axat exigir de nós. E sua premonição também lhe deu isso.
Atl apontou para o bracelete dourado no braço de Niente.
— Você não deve fazer isso — insistiu Niente. — Atl, estou falando sério. Quando eu morrer, faça como quiser, mas enquanto eu estiver vivo, enquanto for seu taat e o nahual...
Ele pousou sua mão no ombro de Atl. O contraste entre suas peles o assustou: a dele era flácida, dolorosamente seca e tomada por incontáveis rugas; a de Atl era lisa e bronzeada.
— Não invoque Axat — terminou Niente. — Esta tarefa é minha. É o meu fardo.
— Não precisa ser só seu.
— Sim, precisa.
As palavras de Niente saíram mais ríspidas do que ele tinha intenção, fazendo com que Atl virasse o rosto, como se tivesse levado um tapa. Os olhos do jovem estavam entreabertos, e ele disparou um olhar de pura fúria para Niente antes de virar a cabeça ligeiramente para encarar deliberadamente a baía. “Cuide dele”, dissera Xaria antes de os dois irem embora. “Atl ama, respeita e admira você. Seu filho quer tanto que você se orgulhe dele — e eu me preocupo que Atl faça alguma tolice tentando...”
Xaria não compreendia. Nem Atl, e Niente não podia contar para nenhum dos dois. Ele não podia permitir que o filho usasse os feitiços premonitórios, não por causa do preço que eles cobravam — embora isso fosse significativo — mas porque sabia que Atl tinha o mesmo Dom que ele, e Niente não podia deixar que Atl visse o que ele viu na tigela. Não podia. Se Atl visse o que ele viu, Niente podia perder o Longo Caminho. Os vislumbres do futuro de Axat eram volúveis e facilmente mutáveis.
— Sinto muito — ele disse para Atl —, mas isso é importante.
— Tenho certeza que sim, porque o nahual está sempre certo, não é?
Dito isto, Atl fez uma mesura debochada para o taat e seguiu na direção dos outros nahualli, no mesmo instante em que Niente esticou o braço na direção dele. O nahual piscou; com o olho remanescente, ele viu Atl entrar no grupo.
Ele podia sentir os olhares de todos os nahualli voltados para ele morro acima, imaginando se Atl em breve desafiaria seu taat como nahual, imaginando se talvez devessem desafiá-lo primeiro.
Seus olhares eram avaliadores, desafiadores, destituídos de misericórdia ou compaixão.
Sergei ca’Rudka
Da rua onde se encontrava, Sergei observava o esquadrão do comandante co’Ingres se reunir em volta do prédio gasto e degradado do Velho Distrito sob a cinzenta aurora. O fedor dos açougues da rua tomou suas narinas. Havia quatro homens na frente, outros três em volta da porta dos fundos, e dois em cada espaço entre a casa e seus vizinhos. Também havia um quarteto de ténis-guerreiros cedidos pela a’téni ca’Paim — reunidos em volta da porta da frente, já entoando os cânticos de proteção.
A manhã estava fria, e Sergei fechou mais a capa em volta de seus ombros. A rua estava vazia — havia um utilino postado nas encruzilhadas próximas para impedir que as pessoas entrassem, e multidões se reuniram atrás deles para assistir. Os vizinhos que notaram a Garde Kralji avançando permaneceram prudentemente em suas casas. Sergei podia ver a oscilação ocasional de um rosto nas cortinas, embora não tivesse visto movimento algum na casa em que estavam prestes a entrar.
Isso fez Sergei torcer os lábios em uma careta. A informação veio de um bom informante e foi “verificada” pela interrogação de dois suspeitos de serem simpatizantes dos morellis na Bastida. Sergei tinha esperança de que esta batida capturasse Nico Morel. No entanto...
— Agora! — co’Ingres gritou e acenou com a mão.
Um dos ténis-guerreiros gesticulou, e a porta da casa explodiu em lascas de madeira, acompanhada de um estrondo alto e uma fumaça escura. A Garde Kralji entrou correndo, brandindo espadas e ordenando que qualquer pessoa no interior se rendesse.
Sergei não ouviu respostas aos gritos. Fez uma careta e começou a atravessar a rua, batendo com a bengala nos paralelepípedos — o comandante co’Ingres seguiu o passo cadenciado e cauteloso de Sergei —, no mesmo momento em que o o’offizier no comando do esquadrão apareceu na porta, negou com a cabeça.
— Sinto muito, embaixador, comandante — falou ele, dando passagem para que Sergei entrasse na casa.
Seus joelhos estalaram conforme ele subia pela soleira elevada. Ele ouviu o ruído alto das botas dos gardai vasculhando os ambientes no segundo andar batendo no assoalho.
— Aparentemente não há ninguém aqui — disse o’offizier.
— Não. Eles sabiam que viríamos — respondeu Sergei.
O cômodo em que eles estavam tinha pouquíssima mobília: uma mesa cuja superfície arranhada era pouco escondida por uma toalha quadrada e manchada; algumas cadeiras bambas com assentos de vime que precisavam de revestimento novo. Parecia que, se os morellis morassem aqui, viviam com pouco luxo. Sergei foi até a lareira no outro aposento e agachou, resmungando com a dor em suas pernas. Ele estendeu a mão sobre as cinzas: sentiu o calor que ainda emanava dos carvões abaixo. O embaixador ficou de pé novamente.
— Eles estiveram aqui ontem à noite. Alguém os avisou.
Sergei coçou a pele perto da narina direita falsa. No consolo sobre a lareira, havia apenas um pergaminho dobrado com capricho, com algo escrito na frente. Sergei aproximou-se para ler: era seu próprio nome, escrito em letra elegante e cuidadosa. Ele bufou pelo nariz metálico.
— Embaixador? — Co’Ingres espiava sobre o ombro de Sergei. — Ah, então nosso informante estava certo.
— Certo a respeito da localização. Errado quanto ao momento — ele respondeu.
Sergei pegou o papel do consolo e abriu o pergaminho duro.
Sergei — sinto muito ter perdido sua visita. Cénzi me diz que um dia eu e você devemos conversar. Mas não hoje. Não até eu ter cumprido todas as tarefas que Ele me passou. Gostaria de pensar que talvez agora você entenda que estou apenas fazendo Seu trabalho, mas suspeito que seus olhos, assim como os da kraljica e da a’téni, estão cegos. Sinto muito por isso, rezarei para que Cénzi lhe dê a visão. Estava assinado simplesmente “Nico”.
— Não encontraremos nada aqui — disse Sergei para co’Ingres. — Mande seus homens vasculharem o lugar exaustivamente, caso tenham perdido algum detalhe importante, mas não vão encontrar nada. Os morellis têm seu próprio informante, seja na Garde Kralji ou, mais provavelmente, dentro da Fé. Nós os perdemos.
Ele cutucou as cinzas na lareira com a ponta da bengala até ver uma brasa vermelha. Deixou o bilhete cair sobre os carvões. As pontas do papel escureceram, linhas vermelhas correram sobre o pergaminho antes de ele pegar fogo.
— Não deixarei que isso aconteça uma segunda vez — falou Sergei: para co’Ingres, para o papel, para o fantasma de Nico.
O papel virou cinza seca, e seus fragmentos subiram pela chaminé. Sergei ergueu os ombros para ajeitar a capa. Bateu com a bengala uma vez com força no piso da casa e saiu.
— Teremos sucesso da próxima vez — disse Sergei. — Eu juro.
Ele observou Varina dar de ombros na luz que passava entre as cortinas de renda da janela. Os desenhos da renda pontilhavam seu rosto e ombros com luz salpicada e deixavam seus olhos nas sombras.
— Eu sei que não é o que você quer ouvir — respondeu ela —, mas parte de mim está feliz por Nico ter escapado de você, Sergei. Acho que Karl teria se sentido da mesma forma.
O bule de chá sobre a mesa entre eles fez barulho quando Sergei se ajeitou na cadeira.
— Sua compaixão é admirável, e é o que faz a todos, incluindo Karl, amarem você.
— Mas?
Varina pousou a xícara de chá. As sombras das rendas percorreram as costas das suas mãos.
Agora foi Sergei quem deu de ombros.
— Compaixão nem sempre é bom para o Estado.
— Você teria dito isso na época em que os numetodos eram chamados de hereges e condenados à morte? — retrucou Varina suavemente.
Ela olhou lá fora, pela janela cortinada e voltou a olhar para Sergei.
— Você teria dito isso quando o kraljiki Audric e o Conselho dos Ca’ chamaram você de traidor?
Sergei estendeu suas mãos em frente ao corpo como se fosse deter um ataque. Ele lembrava-se muitíssimo bem do tempo que tinha passado na Bastida após ter sido condenado por Audric: de como tinha sentido medo de que fizessem com ele o que ele tinha feito com tantos outros, de como Karl e Varina o tinham salvado desse destino, colocando suas próprias vidas e liberdade em risco.
— Eu me rendo — falou o embaixador. — A dama tomou o campo de batalha.
Varina quase sorriu ao ouvir isso. A expressão foi momentânea, mas Sergei sorriu de volta — era a primeira vez que a via mostrar um traço de divertimento desde a doença fatal de Karl. O embaixador estendeu o braço e deu um tapinha na mão de Varina; a pele flácida em volta de seus ossos fez as mãos dela parecerem jovens, em comparação.
— O menino teve uma vida difícil — argumentou ela. — Ele foi tirado de sua pobre matarh por aquela louca horrorosa, a Pedra Branca. Que tipo de vida o menino poderia ter tido? Não fazemos ideia dos horrores pelos quais ele pode ter passado com ela.
— Concordo, não há como sabermos. No entanto, ele não é mais um menino, mas um homem que tem que ser responsabilizado por seus atos — disse Sergei.
E ergueu novamente as mãos ao ver que Varina se preparava para responder.
— Eu sei, eu sei. “A criança molda o homem”. Eu conheço o ditado, e sim, há verdade nessas palavras, mas ainda assim... — Sergei balançou a cabeça. — ... Nico Morel não é o menino que conhecemos, Varina, não importa o quanto você gostaria que isso fosse verdade. A última ação dele matou cinco amigos nossos e feriu muitos outros.
— Eu sei — ela respondeu tristemente. — E não estou dizendo que ele não deve ser punido por isso. Nem considero Nico o monstro que você pinta, mesmo depois do que ele disse, mesmo depois do que fez ao...
Varina parou. Sergei ouviu a hesitação em sua voz e viu seus olhos umedecerem, e soube o que ela não diria. Varina fungou e recuperou o controle.
— Mas compaixão... Você está errado quanto a isso, Sergei. Está errado a respeito do que estou sentindo. Um cachorro raivoso não pode ser culpado por sua raiva, mas deve ser detido pelo bem de todos. Eu compreendo, Sergei. Mas se o cão for meu, então é meu dever detê-lo. Meu.
Seu tom era fervoroso, e Sergei ficou intrigado com a urgência que ouviu em sua voz.
— Só me prometa que, se, por alguma razão, você souber de alguma sobre Nico, irá avisar o comandante co’Ingres imediatamente — pediu o embaixador. — Ele prometeu que a protegeria enquanto eu estiver em Brezno, mas me preocupo com os morellis, especialmente após o funeral de Karl. Só Cénzi sabe o que eles são capazes de fazer. Detê-lo sozinha seria arriscado. Pelo que a a’téni ca’Paim me falou, a habilidade de Nico com o Ilmodo é absolutamente assustadora, se ele escolher usá-la. Prometa-me que tomará cuidado. Prometa-me que não fará esforço algum para contatá-lo. Esse cão raivoso em particular ameaça a todos na cidade; deixe que a cidade o detenha.
Outro sorriso, este bem mais fraco que o anterior.
— Você pareceu o Karl falando agora. Eu sempre acreditei que a cautela era superestimada — disse Varina, e seu sorriso de repente se ampliou. — E você, Sergei... vai tomar cuidado?
— O hïrzg Jan, embora isso provavelmente demonstre sua falta de bom senso, parece gostar de mim, apesar do relacionamento frio entre ele e sua matarh. De qualquer maneira, eu sou apenas o mensageiro da kraljica Allesandra.
E às vezes o mensageiro é culpado quando a mensagem não é o que eles querem escutar... Sergei sorriu mesmo quando a dúvida penetrou em sua mente. Jan não gostaria da mensagem de Allesandra, isso era certo. E ele suspeitava que Allesandra também não iria gostar da resposta de Jan.
Você está ficando velho demais para isso... Esse pensamento continuava a vir à tona, cada vez mais. Sergei estava cansado, e a ideia de passar vários dias em uma carruagem na estrada, da surra que seu corpo levaria da viagem, e do desconforto das estalagens e camas estranhas no caminho...
Velho demais...
— Cuide-se, Varina. Tome cuidado e, por favor, lembre-se do que falei sobre Nico.
Com uma careta, Sergei empurrou a cadeira e se levantou. Ele pegou sua bengala, que estava apoiada na mesa. Varina levantou-se com o embaixador, dando um passo em sua direção e abraçando-o. Com uma mão, Sergei retribuiu o gesto.
— E você, cuide-se — disse Varina. — E cuidado com as cortesãs, embaixador. Eu soube que, em Brezno, elas não são tão... discretas como somos aqui.
Não serão as cortesãs com quem me envolverei...
— Infelizmente, quando elas olham para mim, não querem outra coisa que não sair correndo — disse Sergei, tocando o nariz.
Ele abraçou Varina com força mais uma vez, e depois se afastou.
— Eu a visitarei assim que retornar. Prometo.
Brie ca’Ostheim
Kriege não deveria estar no quarto de vestir de maneira alguma, mas tinha o hábito de fugir das babás que cuidavam dele. Brie teria que falar com elas mais tarde.
Ela acordou quando ouviu a porta de serviço do quarto de vestir ranger ao ser aberta. Ouviu os passos de Kriege sobre o tapete. Brie saiu de mansinho da cama e entrou no quarto de vestir que ela e Jan compartilhavam. Kriege estava em pé diante na penteadeira de Jan, com as mãos ocupadas com alguma coisa que seu corpo escondia. Ela sorriu satisfeita, esfregando os olhos para espantar o sono.
— Kriege — perguntou Brie —, o que você está fazendo?
Kriege deu meia-volta, assustado, e ela viu a adaga na mão do menino, com a lâmina fora da bainha e os gumes de aço firenzciano escuro reluzindo. A boca de Kriege fez um “Ó” de surpresa, e seu rosto ficou vermelho quando se deu conta de que ainda segurava a arma.
— Kriege, abaixe isso. Com cuidado. Seu vatarh ficaria muito irritado se visse você com isso.
Os olhos de nove anos de idade se arregalaram. Brie viu seu lábio inferior começar a tremer.
— Eu não estou irritada com você, Kriege. Apenas abaixe isso.
Ele obedeceu, um pouco rápido demais, de forma que a adaga bateu na madeira e sacudiu as caixas ali. Brie deslizou para frente rapidamente, pegou a arma e a colocou de volta na bainha usada. Kriege observou seus movimentos: ele observava tudo que tinha a ver com coisas marciais — quanto a isso, o menino era diferente de seu vatarh, e mais parecido com o vatarh de Brie, que era obcecado por armas brancas e possuía uma coleção de espadas e facas que causava inveja até mesmo a museus. O verdadeiro nome de Kriege era Jan — em homenagem a seu vatarh e a seu vavatarh; ele tinha adquirido o apelido de “Kriege” (guerreiro) ainda muito cedo por sua personalidade teimosa e birrenta quando bebê. O nome tinha pegado; ele era “Kriege” para todos no palácio. E agora parecia que tinha a intenção de honrar o apelido.
A própria Brie herdara o fascínio do vatarh por armas; na verdade, ela chamara a atenção do marido pela primeira vez quando demonstrou sua habilidade com espadas em um evento palaciano em que compareceu com seu vatarh, duelou e derrotou um chevaritt que dera uma resposta depreciativa a um comentário que Brie tinha feito sobre sua arma. Ela geralmente levava uma arma escondida no corpo, ainda.
Mas esta não era a arma dela; era de Jan. Brie devolveu a adaga à caixa de pau-rosa onde Jan a guardava quando não estava em seu cinto, e se agachou em frente a Kriege. Os cachos castanhos do menino caíram sobre sua testa quando ele abaixou a cabeça, e ela ergueu o queixo do filho com a mão, sorrindo para ele.
— Você sabe que não deveria estar aqui, não é?
Ele assentiu, uma vez, em silêncio.
— E você sabe que não deveria mexer nas coisas do seu vatarh, não é?
Outro gesto com a cabeça.
— Desculpe — respondeu ele.
— Do que você se desculpa?
A voz surgiu por trás dos dois; Brie olhou para trás e viu Jan parado na porta do próprio quarto, ainda de camisola, com o cabelo despenteado. Ele bocejou com sonolência e esfregou o rosto barbado.
Brie hesitou, mas Kriege já tinha passado por ela, abraçando as pernas de seu vatarh.
— Vatarh, era a sua adaga. Eu queria vê-la...
Jan olhou para Brie, ainda agachada diante da penteadeira. Ela levantou os ombros para o marido, balançando a cabeça.
— Minha adaga, é? Bem, venha cá...
Ele levou Kriege pela mão até a penteadeira. Abriu a caixa de pau-rosa e tirou a arma e sua bainha suja e manchada. O pomo no fim do cabo era decorado por pedras semipreciosas — Brie suspeitava de que tinha sido isso o que atraíra Kriege em primeiro lugar —, e o cabo em si era feito de madeira sólida de acácia-negra. A lâmina tinha dois gumes que se estreitavam em um ponto preciso e mortal. Uma arma elegante. Com uma história elegante.
Jan segurou a adaga, embainhada, na mão.
— Era isto o que você estava procurando?
Kriege assentiu enfaticamente.
— O que você sabe sobre essa faca?
— Eu sei que o senhor sempre a usa, vatarh. Eu a vejo no seu cinto quase todos os dias. E sei que ela é antiga.
Jan sorriu para Brie sobre a cabeça de Kriege. Ela respondeu para o filho.
— E é muito antiga. Foi feita para seu trivatarh, Karin, quando ele se tornou hïrzg, há quase 70 anos, e ele a deu para seu bivatarh, Jan, quando ele era jovem, e Jan a deu para... — ela parou, olhando para Jan, que levantou os ombros — ... sua mamatarh Allesandra.
Brie não mencionou que Allesandra usou a adaga para matar o mago ocidental Mahri. Supostamente, tanto Karin quanto o primeiro Jan também mataram alguém com a mesma arma. Seu Jan também tinha encontrado um motivo para alimentar seu aço com o sangue de um inimigo — quando sua espada fora quebrada no meio da batalha contra o exército de Tennshah.
— E Allesandra deu para seu vatarh.
Os olhos de Kriege foram ficando cada vez mais arregalados conforme Brie contava a história da arma.
— O senhor vai me dar a adaga um dia também, vatarh? — ele perguntou para Jan, depois fez uma expressão apreensiva e uma careta de desdém. — Ou a estúpida da Elissa vai ficar com ela porque é a mais velha?
Brie conteve a risada enquanto Jan abriu a boca, e a fechou novamente.
— Ninguém vai ganhar a adaga até que estejam muito mais velhos — ele respondeu, finalmente. — Ela não é um brinquedo.
— Eu quero uma faca só minha — insistiu Kriege. — Tenho idade suficiente. Eu não vou me cortar. Serei bem cuidadoso.
— Tenho certeza que sim — disse Jan.
Ele respirou fundo e olhou mais uma vez para Brie, que balançou a cabeça levemente. Não, ela murmurou.
— Vamos fazer assim — o hïrzg disse para o filho. — Mandarei Rance conversar com o mestre de armas da Garde, para ver se ele pode lhe ensinar como manusear corretamente uma faca. Se ele me disser que você compreendeu e aprendeu todas as lições, então talvez no seu aniversário nós possamos conversar sobre algo que você possa usar em eventos de estado.
— Ah, obrigado, vatarh!
Kriege exclamou e abraçou Jan novamente. E se afastou, dizendo.
— Eu vou contar para Elissa e Caelor. Eles vão morrer de inveja!
O menino saiu correndo do quarto, chamando os irmãos.
— Não. — Jan disse, erguendo a mão quando Brie começou a falar. — Eu sei o que você vai dizer. Eu sei. Elissa estará aqui em poucos minutos, exigindo saber por que não pode ter uma faca também, e Caelor virá logo atrás dela.
— E o que você dirá a eles?
— Que Caelor precisa esperar até que tenha a idade de Kriege.
— E Elissa?
— Acho que ter aulas para aprender a manusear uma arma seria bom para ela. É uma habilidade que ela pode vir a precisar um dia. — Jan guardou a adaga de volta na caixa e fechou sua tampa. — Não concorda?
Essa é uma das muitas habilidades que ela precisará aprender, Brie poderia ter respondido, ao se lembrar de Mavel co’Kella, que a esta altura estava a caminho de seus parentes em Miscoli. Brie tinha certeza de que Jan sabia o que tinha acontecido e quem a tinha mandado embora, apesar de que nenhum dos dois tenha falado a respeito. Ele tinha vindo ao quarto de Brie na noite passada, o que indicava que ninguém tinha entrado na cama de Jan ontem.
— Às vezes — respondeu Brie —, não se pode ter tudo que se quer. Nem mesmo o hïrzg.
Jan lançou um olhar severo para a esposa ao ouvir isso, e ela acrescentou.
— Ou a hïrzgin. Caso esse seja o destino dela.
— É verdade. Mas mesmo assim acho que será bom para Elissa... e que ela tenha aquelas aulas com Kriege. Eles podem começar a se relacionar melhor.
Jan ergueu a cabeça. Ambos ouviram o bater de pés no corredor, seguidos pelos chamados sonolentos e em vão da babá atrás deles (sim, ela teria que falar com a mulher, e talvez substituí-la), e, logo depois, a voz de Elissa.
— Vatarh! Onde está o senhor, vatarh?
Ele suspirou, Brie colocou a mão sobre a de Jan.
— Ela é sua filha. Assim como você, quando quer alguma coisa, ela dá um jeito de conseguir. Você não pode culpá-la por isso.
Ele teria respondido, mas Elissa irrompeu no quarto pela porta de serviço no segundo seguinte, com o irmão caçula, Caelor, vindo logo atrás.
— Vatarh, não é justo! — exclamou a menina ao bater com o pé no chão.
— Vou deixá-lo responder — falou Brie para Jan, rindo. — Vou chamar a camareira para me ajudar a vestir. Preciso ter uma conversa com a babá...
Varina ca’Pallo
— Aqui está — disse Pierre Gabrelli entregando o dispositivo para Varina — Espero que funcione para você — ele acrescentou com um sorriso irônico.
Ela segurou o objeto em suas mãos, admirada.
— Pierre, isto é lindo...
O sorriso do homem se ampliou.
Ela montou sozinha a maior parte das versões experimentais do objeto, garimpando peças aqui e ali na cidade e depois juntando tudo. Seus próprios dispositivos eram funcionais, mas feios e desajeitados de manusear. Pierre era ferreiro e artesão, assim como numetodo. O que ele tinha dado a Varina não era uma cópia crua da ideia que ela tinha em mente, mas uma obra de arte.
Varina manuseou a “chispeira”, como decidira chamá-la, para examinar todos os lados, maravilhada. O dispositivo era deliciosamente pesado e sólido e, no entanto, balanceado o suficiente para ser empunhado com uma mão. Um tubo de metal reto e octogonal — mais espesso desta vez — estendia-se a um palmo do cabo curvo de madeira. Os canos de Varina eram lisos, sem adorno; este era gravado com desenhos de vinhas e folhas enroscadas, o metal era escovado e os desenhos tinham sido traçados em preto fosco. Onde o cano encontrava a madeira, as folhas se lançavam para fora, encaixando perfeitamente em nichos na madeira entalhada para receber o padrão floreado. E a madeira: Pierre pegou várias espécies de madeira, laminou todas juntas, e a variedade de grãs criou um padrão adorável e atraente sob o verniz reluzente. O tambor que carregaria a pólvora não era mais um dispositivo bruto parafusado tortamente no topo: aqui estava encaixado em seu próprio nicho no cabo, e Pierre tinha incluído uma tampa de metal para protegê-lo da chuva e fechá-lo. A roda de aço finamente salientada e ligeiramente sulcada no tambor era cromada e polida; um pequeno cão sobre ele tinha o mesmo desenho de vinhas e folhas do cano, com uma peça delicada de pirita presa nos mordentes. Um guarda-mato — também no formato de folha e cromado — envolvia o mecanismo de disparo.
Ao olhar fixamente para o objeto, Varina esqueceu-se por um momento da dor que pairara como uma sombra negra sobre ela há dias. Por um momento, havia luz em seu mundo.
— Tenho medo de testar isso — ela disse para Pierre. — Odiaria estragá-lo.
— Foi totalmente feito de acordo com suas especificações, que eram, devo dizer, engenhosas; eu só acrescentei a decoração para deixá-lo bonito. Vá em frente, puxe o cão para trás. Coloque o polegar na folha e pressione para trás...
Varina obedeceu: ela ouviu os mecanismos clicarem suavemente quando a pirita se afastou do tambor, ouviu a mola presa à engrenagem ranger ao ser estendida, sentiu o gatilho deslizar para frente e travar. Varina colocou o dedo em volta do gatilho e o apertou: ele voltou imediatamente dando um estalo; a engrenagem girou furiosamente; o cão de pirita bateu contra o aro da roda, e ela viu fagulhas saírem voando do tambor.
Varina podia imaginar o resto: as fagulhas acendendo a areia negra no tambor; a explosão propagando uma bola de chumbo saída do buraco redondo feito no cano...
Pelo menos, esta era a teoria. A última versão feita por ela, bem mais crua, quase funcionou, como ela tinha contado a Karl. Quase — ela ainda carregava as cicatrizes dessa experiência. Ou o cano do dispositivo tinha ficado fino demais, ou o metal tinha algum defeito, ou o buraco tinha sido feito ligeiramente torto. A explosão da areia negra fez o cano se romper, espalhando uma chuva de fragmentos de metal no ambiente, um dos quais tinha aberto um corte profundo no braço de Varina — mais dois palmos para cima e teria acertado seu rosto, mais um palmo para o lado e poderia ter penetrado seu peito. Ela podia ter ficado cega ou morrido — isto foi o que Varina não contou para Karl.
Ao pensar em seu nome, a tristeza ameaçara voltar, e ela forçou-se a sorrir para o ferreiro e fingir.
— Pierre, eu devia ter pedido para você fazer isso há tempos. Ela é bem mais elegante do que as engenhocas que eu fiz sozinha. Todo esse trabalho lindo. É só que... e se ela se quebrar como a última?
— Então a senhora me diz o que preciso fazer para a próxima funcionar melhor, não é? — Ele sorriu novamente. — Ande. Teste. Estou morrendo de vontade de ver.
Pierre arregalou os olhos subitamente ao se dar conta do que disse.
— A’morce, eu...
Varina sorriu e tocou a mão do ferreiro. Ela meneou a cabeça.
— Eu não sei.
Até agora, Varina tinha conduzido todas as experiências sozinha. Os outros numetodos sabiam que ela estava fazendo experimentos com alguma espécie de dispositivo para disparar areia negra, mas ninguém — nem mesmo Karl — sabia dos detalhes.
— Pierre... isso é perigoso. Se...
Desculpas. Apenas desculpas. Varina não queria que Pierre estivesse presente; ela notou pelas rugas de expressão em seu rosto que ele compreendeu.
Ele franziu a testa. Deu de ombros.
— Como quiser, a’morce — respondeu Pierre.
Ele se dirigiu até a porta do aposento; Varina quase o chamou de volta, sentindo-se culpada, mas a letargia que tomara conta dela nos últimos dias a tinha deixado lenta e desanimada, e ela não o chamou.
A porta se fechou quando Pierre saiu.
Varina estava no porão da Casa dos Numetodos na Margem Sul, um dos vários laboratórios de lá. Seus laboratórios. Foi aqui que Varina, há anos, desvendou a fórmula de produção da areia negra dos tehuantinos. Foi aqui também que ela trabalhou no desenvolvimento da magia ocidental: a cansativa habilidade de encantar um objeto para armazenar um feitiço. Varina tinha passado muitas longas horas aqui. Horas demais, ela pensava, às vezes. Às vezes parecia que Varina tinha passado toda a sua vida aqui. Sozinha, na maior parte do tempo. Cada marca, cada arranhão na mobília, cada pincelada de tinta nas paredes lembrava a Varina do passado.
Ela tinha organizado o laboratório com cuidado: em uma das extremidades do cômodo havia um boneco de pano, vestido com um conjunto velho e amassado de armaduras de placas dadas pelo comandante co’Ingres. Na outra extremidade, Varina tinha posto uma mesa com um torno pesado de madeira. Uma das coisas que ela tinha aprendido no decorrer desse experimento era que o dispositivo dava um coice quando a pólvora era acendida. Durante uma das experiências, Varina machucara o pulso quando uma das versões da chispeira ricocheteou fortemente em sua mão ao disparar. Desde então, ela passara a usar o torno para segurar as várias encarnações das chispeiras e um barbante amarrado ao gatilho para acioná-lo — esse esquema provavelmente a salvou de ferimentos mais graves quando o cano explodiu na última vez.
Varina levou a chispeira de Pierre até a mesa. Com cuidado, ela encheu o recipiente com areia negra delicadamente. Ela tinha preparado “cartuchos” de papel com mais areia negra e uma bola de chumbo, que ela enfiou no cano. Dobrou um pano em volta do cano — “é tão bonito que não quero arranhá-lo no torno”, ela teria dito para Pierre, caso ele estivesse ali — e fechou o tambor do dispositivo, depois de garantir que ele estava apontado diretamente para o peito do boneco. Ela puxou o cão de pirita, amarrou um barbante ao gatilho e foi para trás da mesa, com o barbante na mão.
O cano da chispeira apontava de maneira ameaçadora para o boneco de armadura. Varina puxou o barbante.
A engrenagem girou, faíscas voaram. Ouviu-se um estouro alto, e uma fumaça branca saiu detrás do cano e do tambor. Na outra ponta do laboratório, ela ouviu um nítido estalo metálico.
Varina abanou a mão em meio à fumaça cáustica. Deu uma espiada no boneco: no meio da placa peitoral, apareceu um buraco escuro. Ela arrastou os pés até lá o mais rápido que pôde, inclinando-se para examinar a armadura. Havia um buraco tão largo quanto seu dedo indicador, com as bordas rasgadas e voltadas para dentro. Ela meteu o dedo no buraco — não conseguiu sentir o fundo, e o buraco ficava maior conforme ela penetrava no recheio do boneco. Em algum lugar ali no fundo, havia pedaços da bola de chumbo enterrados. Varina percebeu que estava prendendo a respiração.
Um golpe de espada teria sido aparado pela armadura. A flecha de um arco teria ricocheteado. A seta de uma besta talvez tivesse penetrado, mas não tão fundo.
Funcionou. Se fosse um garda, estaria no chão, sangrando terrivelmente ou talvez morto...
Varina podia imaginar a cena, e essa não era uma visão agradável; ela já tinha visto muita gente morrer em batalha. Varina endireitou o corpo. Voltou para a mesa e examinou a chispeira no torno. Ela parecia inteira e incólume, seu cano ainda estava reto e intacto, exceto por uma mancha de fuligem negra na ponta. Também havia marcas de fuligem em volta do tambor, mas, tirando isso, a arma parecia estar ilesa. Varina abriu o torno e tirou o dispositivo. Então, ela o segurou com o braço estendido e apontou seu cano para o boneco.
Bem, minha velha, o próximo passo é óbvio, se você quiser dá-lo... Isso tinha soado como Karl, rindo ao repreendê-la. A lembrança trouxera lágrimas aos seus olhos, e ela teve que parar por um momento para conter o choro. Varina pousou a chispeira na mesa e, depois de alguns instantes, começou a encher novamente o tambor com mais areia negra e enfiar outro cartucho de papel no cano. Ela pegou a arma e puxou o cão de pirita para engatilhá-lo. Suas mãos tremeram um pouco ao apontar a arma. Varina estendeu a outra mão para estabilizá-la enquanto olhava pelo cano. Ela se perguntou, por um segundo, se estava sendo precipitada e imprudente, se deveria esperar e repetir a experiência como tinha feito minutos atrás, mas no mesmo momento em que a ideia lhe veio à cabeça, ela apertou o gatilho e fechou os olhos.
A resposta da chispeira foi terrível, e a arma deu um pulo em sua mão, embora não tão forte quanto ela se lembrava. Varina abaixou a arma e espiou o boneco. Sim, havia um segundo buraco na armadura, este do outro lado da placa peitoral, mais alto.
Alguém bateu na porta do laboratório.
— A’morce, a senhora está bem? — chamou uma voz vaga.
— Sim — respondeu ela. — Estou bem, está tudo bem.
Varina sentou-se na única cadeira do aposento, com a chispeira aninhada em seu colo. Estava quente, e uma fina coluna de fumaça subia do cano. Varina olhou fixamente para ela: sua criação.
Qualquer um pode manusear isto. Só é preciso um pouco de habilidade e alguns momentos para aprender. Com isso, qualquer um pode matar uma pessoa à distância, mesmo um garda de armadura. Ela sempre tivera a capacidade de imaginar possibilidades; Karl sempre dissera que era isso que a tornava uma boa pesquisadora para os numetodos. “Você tem imaginação”, ele dizia. “Consegue enxergar possibilidades onde ninguém mais as vê. Esta é a melhor magia que se pode ter.”
A linha de pesquisa que produzira a chispeira tinha sido o resultado dessa capacidade — ela vinha experimentando uma nova mistura de areia negra há alguns anos. Varina colocou uma pequena quantidade dessa areia negra no fundo de um recipiente estreito de metal, tampado por um pilão de pedra; ela não tinha notado que o pilão estava rachado e que tinha deixado para trás um pedaço do pilão dentro do recipiente. Varina usou um feitiço de fogo para acender a areia negra... e o fragmento do pilão foi impulsionado pela boca do recipiente, batendo no teto do laboratório. O sulco na viga de madeira ainda estava lá, em cima da mesa. Ela percebeu, então, que a areia negra podia ser usada para outros fins que não os da simples destruição dispersa.
Um exército de soldados com chispeiras... Varina podia imaginá-lo, e a visão fez suas mãos tremerem.
Isso podia mudar a guerra. Isso mudaria a guerra. Completamente. Assim como a própria areia negra estava começando a tornar os ténis-guerreiros desnecessários, a habilidade no manuseio de espadas pesadas também já não era mais importante, não quando tudo o que era necessário era de força para puxar um gatilho e de olhos para mirar pelo cano.
Qualquer um podia ser um guerreiro. Qualquer um podia fazer justiça.
Qualquer um podia se vingar. Ou matar um cão raivoso.
Qualquer um podia matar desnecessariamente. Pelo pior ou mais trivial dos motivos.
Qualquer um. Até mesmo ela.
O que eu fiz desta vez, Karl?
Varina piscou. Sua mão acariciou o verniz sedoso do cabo. Que ironia: um instrumento tão belamente esculpido e dedicado inteiramente à destruição.
Finalmente, ela se levantou da cadeira e foi até a mesa. Tampou o frasco de areia negra e recolheu os cartuchos de papel que havia preparado. Varina colocou o frasco, os cartuchos e a chispeira em uma bolsa de couro e pendurou no ombro. Apagou as lanternas que iluminavam o laboratório, abriu a porta e trancou novamente ao sair.
Com a bolsa pesada no ombro e as mãos ainda se ecoando a sensação da chispeira ao disparar, Varina subiu a escada.
Jan ca’Ostheim
— Nossas tropas estavam tranquilamente a um dia de marcha além das fronteiras de Il Trebbio, antes que tivéssemos qualquer sinal de termos sido vistos. Tivemos uma pequena escaramuça com uma companhia de chevarittai dos Domínios. Dois deles foram mortos por nossos ténis-guerreiros, e os chevarittai deram meia-volta e fugiram depois disso; nenhum dos nossos homens foi gravemente ferido. Dadas as nossas últimas conversas, depois passar um dia ali eu recuei o batalhão pela fronteira. Com tudo que descobrimos nos últimos meses, hïrzg Jan, parece que as fronteiras dos Domínios são um tanto quanto porosas, e Il Trebbio certamente é um dos pontos mais fracos. A kraljica Allesandra não tem forças suficientes...
Armen ca’Damont, starkkapitän da Garde Civile firenzciana, parou de ler o relatório para Jan quando a porta do aposento foi aberta repentinamente, batendo com força nos aparadores. Um trio de crianças entrou no rastro da interrupção, seguido de longe por uma das criadas com uma criança menor nos braços.
— Vatarh!
Kriege, o filho mais velho de Jan, foi o primeiro a entrar. Ele bateu o pé e olhou com raiva para a irmã, que vinha atrás de si. Caelor, um ano mais novo que Kriege, parou ao lado do irmão, concordou enfaticamente com a cabeça e lançou o mesmo olhar.
— Nós estávamos brincando de chevarittai, e Elissa trapaceou! Não é justo!
A babá entrou correndo, com uma aparência nervosa, e fez uma reverência desajeitada para Jan e ca’Damont, com Eria, a caçula de Jan, agora nos braços.
— Sinto muitíssimo, hïrzg — disse a mulher sem erguer o olhar. — As crianças estavam brincando, e eu vestia a pequena Eria, quando houve uma discussão e eles correram para encontrá-lo...
— Tudo bem — respondeu Jan sorrindo para ca’Damont. — Não se preocupe. Agora, Kriege, que história é essa de trapaça?
— Elissa trapaceou — repetiu Kriege, fazendo uma careta tão feia que parecia cômica. — Trapaceou, sim.
— Elissa? — disse Jan em tom severo ao mover o olhar na direção da filha.
Outra criança talvez olhasse para o chão. Jan sabia que Caelor teria olhado, ainda que com censura, e até mesmo Kriege afastava o olhar agora. Mas Elissa devolvia o olhar calmamente, fitou uma vez o rosto magro de ca’Damont, marcado e desfigurado pelas memórias de velhas batalhas, e depois se fixou em Jan. Ela penteou para trás os fios castanhos-dourados que escaparam das tranças que caíam nos olhos.
— Eu não trapaceei, vatarh — respondeu Elissa. — Não mesmo.
— Trapaceou, sim — interrompeu Kriege, batendo o pé novamente. — Ela mentiu.
Elissa nem se incomodou em olhar para o irmão. Seu olhar permanecia fixo em Jan.
— Eu realmente menti, vatarh — admitiu ela. — Eu disse para Kriege que o ajudaria se ele atacasse o fortim de Caelor com seus soldados.
— Ela disse que usaria os ténis-guerreiros no próximo turno para me ajudar — interrompeu Kriege novamente. — E não ajudou. Em vez disso, quando chegou o turno dela, Elissa me atacou e eu perdi todos os meus fortins e a maior parte dos chevarittai. Ela trapaceou.
Jan voltou a olhar para ca’Damont, que continha um sorriso.
— Isso é verdade, Elissa?
A menina assentiu.
— Sim — respondeu em tom sério. — Veja bem, Caelor tinha a maior parte dos fortins e soldados que sobraram no tabuleiro, e Kriege e eu tínhamos mais ou menos o mesmo número. Eu sabia que não venceria Caelor sozinha, portanto, disse para Kriege que o ajudaria porque sabia que Caelor acabaria com vários soldados dele e perderia homens suficientes, de maneira que não poderia me atacar, e então, quando fosse meu turno, eu poderia tomar a maior parte dos fortins de Kriege e capturar soldados suficientes para provavelmente ganhar o jogo.
Elissa olhou para os irmãos.
— E teria ganhado também, se Kriege não tivesse ficado furioso e derrubado todas as peças no chão.
O riso abafado de ca’Damont era audível, e ele virou o rosto com cicatrizes por um momento. Jan teve que lutar para conter seu próprio divertimento, embora a graça fosse moderada pela similaridade entre Elissa e Allesandra, a mamatarh da menina. Jan podia imaginá-la fazendo a mesma coisa quando criança; era o que ele a tinha visto fazer quando adulta.
— Então... — disse Jan para a filha —, você ofereceu ao seu irmão uma aliança que não pretendia cumprir para que pudesse ganhar? Estou certo?
Ela assentiu. Jan olhou para os dois meninos e disse.
— Acho que sua irmã acabou de ensinar uma lição excelente a vocês. Na guerra, às vezes a palavra de uma pessoa não é suficiente. Às vezes seu inimigo mentirá para vocês com o intuito de ganhar vantagem. E há mais coisas na guerra do que deslocar soldados. Vocês dois devem se lembrar disso.
— Mas ela trapaceou! — insistiu Kriege, batendo o pé mais uma vez.
Jan cofiou a barba, tentando não rir.
— O que você acha, starkkapitän? — perguntou ele para ca’Damont. — Devo punir Elissa por sua trapaça?
— Não, meu hïrzg — respondeu ca’Damont.
Jan viu o rosto de Elissa relaxar ligeiramente — então a menina estava preocupada com o que ele poderia fazer. O starkkapitän continuou.
— Mas eu diria que ela também aprendeu uma lição nesta situação, a de que quando alguém dá a sua palavra, a outra parte poderá ficar aborrecida se essa palavra não for cumprida, e às vezes sua reação pode impedir que se obtenha a vantagem que se esperava ganhar. Agora ninguém vai saber qual de vocês teria vencido o jogo.
Jan deu um tapinha no ombro de ca’Damont.
— Pronto, viram só? — disse o hïrzg para os filhos. — Vocês ouviram do próprio starkkapitän. Ele entende mais de guerra do que qualquer um de nós. Espero que tenham aprendido bem, pois quando um de vocês for hïrzg...
— Rezemos a Cénzi para que isso não aconteça ainda por muitas décadas, meu marido.
A voz ergueu a cabeça de Jan, que viu Brie parada no umbral, rindo da cena. Ele foi em sua direção, deu-lhe um beijo e um abraço breve. Brie cheirava a jasmim e água doce, e seu cabelo — que um dia fora da mesma cor que o de Elissa, mas que agora ficava escuro — era macio mesmo preso nas tranças firmes de Tennshah, tão populares nos dias de hoje. Se sua silhueta tinha ficado mais pesada depois de dar à luz a seus filhos, bem, isso era como as cicatrizes no rosto de ca’Damont; um sinal dos sacrifícios que ela fizera.
Rance tinha contado para Jan que foi Brie quem mandara Mavel co’Kella embora e o porquê. Após a irritação inicial, ele ficou feliz: isso poupou-lhe o trabalho de fazer o mesmo.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Brie, que olhou para as crianças, para a criada que segurava Eria e para a babá. — Rance me disse que você ainda estava em reunião, temos que estar no templo para a bênção do Dia do Retorno em uma virada da ampulheta.
Ela balançou a cabeça, embora a expressão no rosto fosse paciente e calma.
— E nenhum de nossos filhos está arrumado ainda.
— Desculpe-me, hïrzgin — falou a babá ao fazer uma mesura. — A culpa é minha. Eu vou arrumar as crianças. Elissa, Kriege, Caelor, venham comigo agora. Rápido...
Brie abraçou cada um ao saírem (Kriege ainda de cara feia e vermelho de raiva, Elissa com um sorrisinho de triunfo, Caelor sempre circunspecto e pensativo).
— Também devo me retirar — disse ca’Damont, fazendo uma reverência para Brie e Jan, e se dirigiu ao hïrzg. — Eu mandarei meu escriba preparar um relatório completo para o senhor hoje à tarde. E verei o que o embaixador ca’Rudka tem a dizer quando chegar. Tenho certeza de que ele receberá a notícia a caminho daqui. Hïrzg, hïrzgin...
O starkkapitän fez uma mesura e se ausentou. Quando as portas da câmara se fecharam, Brie foi até Jan, o abraçou novamente e ergueu a cabeça para ser beijada. Ela recuou um pouco nos braços dele e puxou o colarinho da camisa.
— Você vai usar isto na cerimônia?
— Estou considerando, sim. É confortável.
— Mas você fica tão bonito naquela sua camisa vermelha nova.
Jan sorriu para Brie.
— Então talvez eu mude para a vermelha, só para lhe agradar.
Ela o beijou novamente.
— Armen não teve problemas em Il Trebbio?
— Menos do que eu esperava, na verdade.
Brie assentiu, encostando a cabeça no ombro dele.
— As crianças nunca viram a mamatarh, Jan. Eles apenas a veem como aquela mulher horrível de Nessântico que às vezes envia presentes. Eu acho que você devia considerar o que Sergei quer oferecer por ela.
— Ela é a responsável pelo afastamento — respondeu Jan. — E Rance concorda que não deve haver acordo algum com os Domínios. Se ela queria paz, não deveria ter apoiado Stor ca’Vikej na Magyaria Ocidental e não deveria ter permitido que o filho dele andasse à vontade pela corte dos Domínios. Ela fez a fama, agora que se deite na cama; se achou desconfortável, bem, ela é a única responsável.
— Eu sei — sussurrou Brie. — Eu sei. Mas ainda assim... As crianças devem conhecer seus parentes, e não considerá-los inimigos.
— Então que ela abra mão completamente do Trono do Sol, em vez de deixar que Sergei proponha essa tolice de me nomear a’kralji.
— Você a colocou no trono, meu amor.
A censura não tinha sido tão dura quanto poderia, e Brie tocou o rosto dele delicadamente para abrandá-la.
— Eu sei, você fez o que achou que era certo na ocasião.
— Eu era jovem e tolo — disse Jan, que abriu os braços e soltou Brie. — Não quero falar sobre isso, não agora.
Ele pegou a mão da esposa e a beijou.
— Deixe-me mandar os camareiros encontrar esta camisa vermelha que você gosta tanto, e iremos ao templo fazer nossa aparição...
Jan ouviu um suspiro contido, mas Brie sorriu para o marido, passou a mão em seu peito e parou exatamente no cinto.
— Não os chame ainda — disse Brie, que ficou na ponta dos pés para beijá-lo, enquanto deixava a mão onde estava. — Ainda há tempo, não, amor?
Ele riu.
— Quanto tempo quisermos. Eles não podem começar sem nós, não é?
Jan beijou Brie novamente, com mais urgência. Ele sentiu o corpo da esposa ceder ao dele, e isso espantou todos os outros pensamentos, por um instante.
Rochelle Botelli
A cerimônia começou tarde, uma vez que a comitiva real chegou atrasada ao templo. Rochelle, em meio à confusão de pessoas comuns, sem status, encontrou alívio no abrigo de uma das meias colunas do interior, na parede dos fundos, encostando-se ali com os olhos semicerrados, com as narinas queimando com o fedor de incenso e os ouvidos cheios do cântico das preces e da cantoria do coro. Ela ouviu os ca’ e co’ sentados ficarem de pé quando as trompas soaram seu chamado lamentoso do domo do templo e as grandes portas principais se abrirem para dar passagem ao hïrzg e sua família. A luz radiante do sol entrou na escuridão parcial do templo. Rochelle abriu totalmente os olhos e subiu na base da meia coluna, para olhar sobre as cabeças da congregação.
A procissão era liderada pelo archigos Karrol e vários o’ténis, envoltos pela bruma de fumaça aromática dos incensórios, com quatro ténis-luminosos cantando e levando lanternas com chamas amarelas ainda mais intensas que o sol. O archigos andava devagar, com um o’téni de cada lado, caso ele tropeçasse — Karrol tinha mais de sete décadas de idade, e embora ainda tivesse a mente afiada de sempre, nos últimos anos sua saúde física começara a declinar, e seus assistentes estavam sempre atentos quando ele subia degraus e escadas, ou quando, como hoje, o ritual exigia que o archigos andasse uma distância considerável, embora ele se apoiasse no cajado do archigos que levava na mão direita, com o globo cravejado e partido de Cénzi na ponta. Karrol vestia um robe verde enfeitado com fio dourado, os desenhos reluziam na claridade que o banhava, o longo cabelo branco parecia brilhar sob a coroa pontiaguda. Ele ergueu sua mão livre para saudar a multidão, e a boca curvou-se em um sorriso sob a barba.
O starkkapitän Armen ca’Damont e sua família vieram a seguir, seguidos dos integrantes do Conselho dos Ca’ com suas famílias. Rochelle ficou na ponta dos pés para ver melhor Jan quando ele entrou. Ela lembrava-se da matarh — nos momentos cada vez mais raros de lucidez antes que fosse completamente dominada pelas vozes em sua cabeça — falando de Jan, dizendo que ele era bonito, o jeito que a abraçava, a promessa de que a amaria para sempre.
Que Jan era seu vatarh.
A matarh de Rochelle amou Jan até a morte, assim como odiou a kraljica Allesandra por ter separado os dois.
Rochelle já tinha visto quadros do hïrzg e olhado fixamente para a imagem, à procura de alguma semelhança com as feições que ela via quando se olhava em metal escovado ou água parada. Talvez o nariz fino e comprido? Ou as maçãs do rosto acentuadas? A pele, mais escura e facilmente bronzeada no sol; será que indicava as Magyarias e o sul, onde o hïrzg nasceu? Será que esses traços tinham vindo do vatarh de Rochelle, ou da vavatarh?
Ela nunca o vira assim tão perto, ao vivo — a uma distância tão curta quando Jan entrou no tempo. Rochelle espiou ansiosamente na direção do hïrzg.
Ele era bonito: tinha uma barba fina e escura que envolvia sua mandíbula firme, um nariz fino e comprido (sim, parecido com o dela), uma pele tão escura que se destacava entre os firenzcianos no templo; olhos escuros e intensos; cabelo cacheado e tão escuro que era quase preto, embora o sol revelasse mechas vermelhas e cor de bronze.
Parecia com o cabelo dela. Como o rosto que Rochelle às vezes via devolvendo o olhar.
Sim, ele podia ser mesmo seu vatarh. As histórias que sua matarh lhe contara podiam ser verdade. Rochelle ficou aflita quando o hïrzg olhou em volta, quando seu olhar passou momentaneamente por ela. Ela ergueu a mão; e ele pareceu acenar ligeiramente com a cabeça para ela.
Ao lado dele estava a hïrzgin Brie. Rochelle viu a mão de Jan tocar sua cintura ao se aproximar e cochichar alguma coisa em seu ouvido. A hïrzgin riu, e Rochelle viu o carinho nos olhos da mulher ao encarar o marido. O vatarh de Rochelle. E atrás...
Atrás deles estavam os filhos. Rochelle sabia seus nomes; todo mundo em Firenzcia sabia. Ela olhou fixamente para as crianças, seus meios-irmãos. Sentiu vontade de chamá-los. “Eu deveria estar ali, com ele”, dissera sua matarh, “com você como a filha mais velha, aquela que Jan mimaria, que sempre faria com que ele desse aquele sorriso. Jan tinha um sorriso tão maravilhoso...”.
Rochelle sorriu para Jan, mas ele não estava mais olhando na sua direção, ele agora havia passado por ela, percorrendo a passos largos a nave do templo em direção ao coro, onde o archigos Karrol o esperava. O hïrzg cumprimentou os ca’ e co’ nos bancos voltados para a frente.
Rochelle imaginou-se andando com ele. Imaginou-se recebendo uma onda de aplausos. Imaginou que Jan desmanchava seu cabelo em vez do de Elissa.
“Esse era o meu nome: quando o conheci, quando éramos amantes. Era o nome que eu usava na época — Elissa. Ele batizou sua primogênita em minha homenagem. Ele...”.
A família — a família que poderia, que deveria ter sido dela — estava distante agora, entrava nos assentos vazios diante do Alto Púlpito em frente ao templo, sob o domo e as figuras pintadas que olhavam para a assembleia lá do alto, em seus afrescos. Os e’ténis no fundo do templo entoavam cânticos, a energia do Ilmodo fechou as enormes portas de bronze, e Rochelle deixou-se cair do poleiro para o chão. Andando agilmente e em silêncio, ela saiu de mansinho antes que as portas se fechassem.
Rochelle entrou correndo nas zonas mais antigas e pobres da cidade, onde morava. Este era outro conselho da matarh: “Viver entre os ricos deixa a pessoa visível demais. Este foi o erro que cometi com seu vatarh...”. Ela ouviu as trompas do templo soarem a Segunda Chamada e a bênção do Dia do Retorno ao entrar cada vez mais nas vielas estreitas e tortuosas que se enrolavam em torno dos morros de Brezno, com pressa porque estava atrasada para um compromisso.
Alguém queria contratar a Pedra Branca: Josef co’Kella, pertencente a uma família em ascensão que parecia estar envolvida em vários negócios na cidade. Rochelle imaginou que desculpa o homem teria usado para evitar sua presença no templo na manhã de hoje.
Ele já deveria estar esperando do lado de fora da Faísca Azul, uma taverna na alameda Reta — um nome apropriado, pois subia em linha reta pela encosta íngreme do morro Hïrzgai, que abrigava as ruínas do primeiro palácio, queimado e abandonado há três séculos. A Faísca Azul ficava localizada no meio da subida do morro; Rochelle tinha escolhido o lugar porque podia chegar tanto por cima quanto por baixo da alameda, o que lhe dava uma visão de onde era possível determinar se era seguro se aproximar ou se ela deveria passar pela taverna; na última semana, desde que cumprira o contrato com o goltschlager ci’Braun, os utilinos e a Garde Brezno vinham fazendo perguntas e incursões estranhas, prendendo determinadas mulheres pela cidade: mulheres que quase sempre tinham praticamente a mesma idade que sua matarh teria se estivesse viva, mulheres que tinham a mesma compleição física da sua matarh. Era óbvio para Rochelle que eles estavam caçando a Pedra Branca. Era possível que co’Kella fosse a isca de uma armadilha para capturá-la.
Ela se perguntou, mais uma vez, se deveria sequer se encontrar com o homem, mesmo que ele não fosse nada além de um cliente em potencial. O sujeito era um co’, o que significava que Rochelle podia cobrar caro pelo serviço, mas sua matarh a tinha alertado havia muito tempo de que a Pedra Branca deveria cumprir dois, no máximo três, contratos na mesma cidade antes de se mudar. Ela queria ficar em Brezno, agora que tinha visto Jan. Queria saber mais a respeito dele, queria conhecê-lo melhor. Queria encontrá-lo. Seria melhor deixar a Pedra Branca de lado; Rochelle tinha moedas suficientes na bolsa.
Mas a verdade é que ela não queria deixá-la de lado. Era empolgante ser a Pedra Branca, caçar e, consequentemente, matar.
Mais um contrato. Só isso.
Rochelle já tinha visto co’Kella, usando — como ordenado — uma bashta vermelha e um chapéu com uma pena azul. Ele parecia pouco à vontade, observando a todos que passavam enquanto entrava e saía da porta da taverna. Rochelle olhou para ambos os lados da rua; nenhum utilino, nem gardai da Garde Brezno; não havia ninguém por perto fingindo estar fazendo qualquer outra coisa em um lugar onde pudesse vigiar facilmente o homem. O que não significava que não havia gardai escondidos nos prédios nos arredores à espreita, mas até o momento tudo parecia seguro e normal. Ela continuou andando na direção do homem, sem olhar para ele deliberadamente enquanto se aproximava, fingindo estar interessada nas mercadorias das vitrines. Em sua visão periférica, Rochelle notou que co’Kella a examinava com o olhar, afastando o rosto em seguida. Ela passou pelo sujeito e colocou a mão no cabo da faca sob o manto.
— Venha comigo, vajiki co’Kella — sussurrou Rochelle ao passar por ele.
Ela continuou subindo a alameda, lentamente. O homem ficou visivelmente espantado. Em seguida, se moveu e se virou para caminhar ao lado de Rochelle.
— Você é...?
— Eu sou quem você esperava — respondeu ela.
Rochelle olhou para trás: ninguém surgiu dos prédios em volta; nenhum utilino deu um apito de alerta; nenhum esquadrão da Garde Brezno apareceu. Ela relaxou um pouco, embora continuasse a espiar para ver se os dois estavam sendo seguidos — havia um grande emaranhado de travessas que afluíam da alameda Reta, Rochelle pensou que poderia despistar possíveis perseguidores ali, se precisasse. Ela manteve a mão no cabo da faca, caso o próprio co’Kella tentasse atacá-la, mas as mãos do homem estavam visíveis e ele não parecia ter uma espada.
— Qual o seu nome? — perguntou co’Kella.
Rochelle riu.
— Você não precisa saber meu nome, vajiki. Não estamos fazendo negócio, e mesmo que estivéssemos, este é um negócio do tipo que dispensa nomes. Já basta que eu saiba o seu, e não é comigo, afinal de contas, que você quer conversar.
— Então você não é... Claro que não, é tão jovem...
— Não, eu não sou a pessoa que você quer contratar — respondeu ela em tom firme. — Eu sei como entrar em contato com ela, se é isso o que você quer saber. E isso é tudo. Mas nem mesmo eu sei dizer qual a sua aparência ou quem ela é.
Co’Kella parou. Rochelle virou a cabeça para olhar para ele.
— Continue andando, vajiki, a não ser que tenha mudado de ideia.
O homem pareceu sentir um calafrio, depois deu um passo para acompanhá-la novamente.
— Ótimo — disse ela. — Então me diga, quem é a pessoa?
— Quem é a pessoa? — perguntou co’Kella estupidamente, estremecendo novamente. — Ah, isso. Eu preferia não dizer. Apenas para... a pessoa com quem você entrará em contato por mim.
Os dois chegaram a uma das transversais. Rochelle parou.
— Então estamos conversados. Bom dia, vajiki.
Ela começou a virar para a esquerda, se afastando da alameda.
— Não, espere! — berrou co’Kella quando Rochelle deu as costas.
Ela parou e se permitiu abrir um sorriso. Tão típico. Rochelle voltou a subir a alameda, sem dizer nada, e co’Kella a seguiu apressadamente, próximo ao seu cotovelo.
— Eu... eu digo para você. É Rance ci’Lawli.
Ela não conseguiu conter totalmente a surpresa em sua voz.
— Ci’Lawli? O assistente-chefe do hïrzg?
Ele assentiu.
— O próprio.
Você não devia fazer isso. Matar alguém tão próximo ao hïrzg. Ainda assim... seria preciso estar perto ou dentro do palácio, onde teria que estar perto de seu vatarh e da família dele... Rochelle sentiu um pulsar dentro de si, que a fez queimar com um anseio louco que ela não sabia definir.
— Por que ci’Lawli?
Ele torceu o nariz.
— Como você disse, vajica, não há necessidade de nomes, nem de histórias aqui. Eu contarei à Pe... — Ele se interrompeu. — À pessoa que você conhece, se ela se importar.
Rochelle deu de ombros.
— Como queira.
Ela pegou o braço de co’Kella, como se fossem dois namorados passeando pela alameda, e puxou o homem para si. Rochelle sussurrou em seu ouvido: um local, um dia e o valor em solas de ouro.
Co’Kella se afastou dela.
— Tanto assim?
— Tanto assim — ela respondeu. — Esteja lá com as solas se estiver interessado, vajiki, e você a encontrará.
Varina ca’Pallo
Ela sabia que não devia ter feito isso, sabia que Sergei ficaria irritado quando descobrisse — e sabia que ele descobriria. Mas ela esperava que fosse mais tarde, quando fosse tarde demais.
Um dos gardai designados para proteger Varina, a pedido de Sergei, tinha deixado escapar o endereço da casa, no Velho Distrito, que tinha sido invadida pela Garde Kralji. Ela se certificou de que seus compromissos no dia seguinte a fizessem passar pela casa e pediu para o condutor da carruagem parar. O garda (que não era o mesmo que lhe dera o endereço) parecia preocupado quando Varina abriu a porta da carruagem e desceu.
— Vajica ca’Pallo, eu não aconselharia...
— Então não aconselhe — ela interrompeu.
O garda ergueu as sobrancelhas. A reação à reprimenda poderia ter agradado outra pessoa, mas apenas fez Varina se sentir culpada. Ainda assim, ela continuou tentando abrandar o tom.
— Eu só quero ver o lugar onde os morellis moravam. Só dar uma olhada; você pode vir comigo, se quiser.
— O comandante vai pedir a minha cabeça por isso.
— Eu direi ao comandante que não lhe dei escolha.
O garda não pareceu convencido, mas conduziu Varina até a porta da casa. Ela deixou que ele entrasse primeiro. Teve a impressão de que podia sentir olhos os vigiando, os encarando de algum lugar. Sem tentar ocultar o gesto, Varina tirou uma pequena caixa de dentro do manto; entalhada finamente em carvalho envernizado, um trabalho primoroso, a obra de um mestre. Ela pousou a caixa no peitoril da janela mais próxima da porta, sentindo o frio do Scáth Cumhacht agarrado à madeira. Em seguida, rapidamente, seguiu o garda e entrou na casa.
Varina passou pouco tempo ali, já que o que viera fazer já tinha sido feito. Ainda assim, tentou imaginar Nico ali, sua voz e a presença nos cômodos, ou dormindo em uma das camas. Havia ícones religiosos da fé concénziana por todos os lugares da casa, e alguém com algum talento artístico havia pintado o globo partido de Cénzi na parede lateral de um dos quartos, enquanto que na parede oposta as formas demoníacas dos semideuses, os moitidi, paródias distorcidas e deformadas da humanidade, a espreitavam. Varina sentiu um arrepio ao olhar para eles, imaginando como alguém poderia dormir ali, sob esses olhares perversos, sorrisos cruéis e as mãos em forma de garras dos moitidi. Até mesmo o garda balançou a cabeça ao olhar para eles.
— Eles têm uma visão estranha da Fé, esses morellis — comentou o homem.
Os dedos do garda seguravam o cabo da espada com firmeza, como se estivesse com medo de que uma das figuras pintadas pulasse em cima dele.
— Dizem que o archigos Karrol nutre alguma simpatia por eles, embora eu jure que não entendo.
— Eu também não. Não consigo imaginar que o Nico que conheci... — Varina se interrompeu. — Estou pronta para ir.
— Ótimo — respondeu o garda, um pouco rápido demais. — Essa pintura me dá calafrios. É uma coisa feia.
Eles saíram depressa, e o garda fechou a porta atrás deles. Varina se posicionou cuidadosamente entre o homem e o peitoril da janela onde a caixa estava pousada, para garantir que ele não a visse. O condutor da carruagem era de seu corpo de funcionários; ele não diria nada.
O garda abriu a porta da carruagem para ela; Varina entrou, o garda fechou a porta e subiu para o assento ao lado do condutor. A pequena portinhola acima de sua cabeça foi erguida, e Varina viu o rosto do condutor voltado para ela, lá de cima.
— Para casa — ordenou Varina.
O homem assentiu e fechou a portinhola novamente. A carruagem entrou em movimento com um tranco.
Varina olhou para fora quando o veículo partiu. Ela podia ver a caixa no peitoril e o brilho da madeira dourada sob o sol vespertino.
— A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você. — Essas foram as primeiras palavras que ele disse para Varina, sorrindo para ela.
Em sua mente, Nico continuava a ser, de certa forma, a criança que Varina conheceu. Sim, ela sabia que o menino tinha entrado na idade adulta aos 15 anos. Varina tinha acompanhado sua carreira desde que ele reapareceu, de maneira inesperada e repentina, como um téni em ascensão no Templo do Archigos em Brezno, um acólito cuja habilidade com o Ilmodo, cujo carisma e força da personalidade impressionavam a todos que o conheciam. Ela — assim como Karl — tinham tentado entrar em contato com Nico, através de cartas enviadas por meio de Sergei em suas viagens frequentes a Brezno, mas estas seguiram sem resposta. Sergei conseguira falar com ele lá, mas Nico tinha deixado claro que não tinha interesse em entrar em contato nem com Karl, nem com Varina.
— Ele disse assim — falou Sergei ao voltar. — “Diga aos dois hereges que eles são um anátema para mim. Eles ridicularizam Cénzi e, portanto, me ridicularizam. Diga a eles que, quando eles virem os erros em suas convicções, então talvez nós tenhamos alguma coisa a dizer uns aos outros. Até lá, eles estão mortos para mim, tão mortos como se já estivessem em seus túmulos, com suas almas se contorcendo com o tormento dos retalhadores de almas.” E aí ele riu, como se achasse graça na ideia.
Apesar da decepção, Varina continuou a acompanhar a carreira de Nico. Ficara preocupada quando ele e seus seguidores desafiaram diretamente a autoridade do archigos, fazendo com que Nico perdesse o título de téni e fosse proibido de usar o Ilmodo para sempre, sob risco de perder as mãos e a língua.
Então Nico foi embora de Brezno, perambulando por algum tempo e continuando a pregar sua interpretação ortodoxa do Toustour e da Divolonté — os textos sagrados da fé concénziana — até, finalmente, chegar a Nessântico. Agora ele estava perante Varina, e ela ainda podia ver o rosto redondo do menino no semblante barbado, fino e devoto diante de si, com seu olhar forte e intenso.
“A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você.” Em todos esses anos, durante todo esse tempo, foi assim que ele começou. Varina sentiu o peso da chispeira na bolsa presa ao cinto.
— Por que eles ficariam desapontados? — perguntou ela.
Varina gesticulou na taverna do Velho Distrito onde os dois se sentavam. Em volta deles, os clientes conversavam entre si e bebiam. Um grupo de músicos afinava os instrumento em um canto. O barulho emprestava privacidade aos dois na cabine. Nico estava sentado de frente para ela, com as mãos entrelaçadas sobre a superfície arranhada da mesa de madeira rústica entre os dois, quase como se estivesse rezando. Ele vestia preto, o que fazia seu rosto pálido parecer quase espectral em comparação, mesmo com a luz fraca da taverna e da única vela na mesa.
— Por que não há nenhum gardai aqui para prendê-lo? — indagou ela. — Você acha que eu te odeio tanto assim, Nico? Eu não odeio. De maneira alguma. Nem Karl odiava.
— Então por que o esquema elaborado? — perguntou Nico. — Deixar uma caixa encantada... Devo admitir que foi inteligente e certamente chamou minha atenção, embora meu amigo Ancel não tinha dado atenção ao aviso de não abri-la. Ele me disse que pensou que suas mãos fossem empolar, e que a madeira ficara muito quente.
Nico meneou a cabeça, estalando a língua como se estivesse repreendendo uma criança.
— Você realmente deveria ser mais cuidadosa com a dádiva que Cénzi lhe deu, Varina.
Ela respirou fundo.
— Você matou pessoas, Nico. Meus amigos e colegas. Karl já estava morto; você não podia mais machucá-lo. Mas os outros... eles eram pessoas, com maridos, esposas e filhos. E você tirou a vida deles.
— Ah, isso. — Ele franziu a testa momentaneamente. — Está escrito no Toustour: “... se lutarem contra você, mate-os; esta é a recompensa dos incrédulos. Lute com eles até que não haja perseguição, e até que a única religião seja a de Cénzi”. Sinto muito pelo sofrimento que causei às famílias dos que morreram. Sinto muito, de verdade, eu rezei para Cénzi por eles.
As desculpas de Nico pareceram genuinamente sinceras, e lágrimas nascentes brilharam na base de seus olhos. Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, como se estivesse escutando uma voz invisível vinda do alto. Então seu queixo se abaixou novamente, e quando ele abriu os olhos, eles estavam secos.
— Mas, se eu sinto que alguns numetodos tenham sido mortos para serem julgados por Cénzi por sua heresia? Não, não sinto.
— O Toustour também diz: “... ó, seres humanos! Nós os criamos e dividimos em nações e tribos para que vocês conheçam uns aos outros, não para que se desprezem”.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso.
— Eu não esperava que uma numetoda citasse um texto no qual ela não acredita.
— Eu acredito, como qualquer numetodo, que o conhecimento é o que levará à compreensão. Isso inclui conhecer aqueles que lhe consideram um inimigo e entender o que eles acreditam e por que acreditam. Eu li o Toustour inteiro, e a Divolonté também, e tive conversas longas e interessantes com a archigos Ana, com o archigos Kenne e com a a’téni ca’Paim.
— Você leu o Toustour, mas evidentemente não conseguiu enxergar a verdade no texto.
— Qualquer um pode escrever um livro. Eu sou uma numetoda. Preciso de provas. Preciso de provas irrefutáveis. Eu preciso ver hipóteses testadas e resultados repetidos. Só então posso me permitir acreditar. — Varina suspirou. — Mas nenhum de nós vai conseguir convencer o outro, não é?
— Não. — Ele abriu as mãos, com as palmas para cima, sobre a mesa. — Embora eu deva admitir que vocês, numetodos, podem ser úteis ocasionalmente: a areia negra dos tehuantinos, por exemplo. É um tanto quanto irônico, se você pensar a respeito: se eu e minha gente tivéssemos permissão para usar o Ilmodo, então não teríamos precisado usar a areia negra, e seus amigos provavelmente ainda estariam vivos. O Ilmodo, pelo menos, pode ser uma arma precisa.
Varina ficou vermelha, e sua mão acariciou o cabo da chispeira carregada e engatilhada na bolsa do cinto.
— Então por que eu estou aqui, Varina — continuou ele —, se você não está planejando me entregar para a Garde Kralji e me jogar na Bastida?
— Eu queria vê-lo novamente, Nico — respondeu ela.
O dedo de Varina envolveu o guarda-mato de metal do gatilho.
— Eu queria ouvi-lo — a língua de metal frio no dedo se aqueceu com o toque — porque eu preciso saber...
Só um puxão do músculo. É o que basta.
— ... se eu sou o monstro que a Fé pinta? — concluiu Nico para Varina.
Seria tão fácil: embaixo da mesa, retirar a chispeira sorrateiramente e apontar o cano de metal na direção de Nico; puxar o mecanismo do gatilho para girar a engrenagem e soltar faíscas que tocariam a areia negra no tambor fechado. Um instante depois e... Os buracos na armadura; o que isto faria com um corpo desprotegido?
— Ninguém pensa em si mesmo como um monstro — Nico dizia. — Alguns podem julgar o ato de uma pessoa como maldade, mas essas pessoas pensam que estão fazendo o que é necessário para corrigir o que consideram pecado. Eu não sou diferente. Não, eu não sou um monstro.
Ele sorriu para Varina, e seu rosto e olhos ficaram radiantes, de uma maneira que fez com que ela se lembrasse do antigo Nico, da criança.
— Nem você é, Varina. Não importa o que possa estar pensando em fazer comigo.
Seu dedo recuou. Ela tirou a mão da bolsa.
— Nico...
— Varina — ele disse antes que ela pudesse organizar seus pensamentos caóticos —, você fez o que achou melhor para mim durante o Saque de Nessântico. Eu reconheço isso e sempre lhe serei grato por seus esforços, mesmo que você não saiba que estava seguindo a vontade de Cénzi. Quando rezo para Cénzi, peço a Ele perdão por você e Karl. Rezo para que Cénzi levante a cegueira dos seus olhos para que você possa enxergar Sua glória e ir até Ele.
Nico saiu da cabine e parou ao lado dela. Tocou no ombro de Varina levemente e recolheu a mão. Seus olhos estavam tomados por uma tristeza serena.
— Estamos em lados opostos nesta situação. Eu não queria que fosse assim, mas é. Infelizmente, não pode haver reconciliação entre nós. Pelo que você fez, eu sempre te amarei. Porque você também é uma criação de Cénzi, eu sempre te amarei. E por causa do caminho que você escolheu, eu sempre serei seu inimigo.
A tristeza no rosto de Nico aumentou.
— E é bem mais fácil odiar um inimigo desconhecido do que um conhecido. Portanto, adeus, Varina.
Nico fez, sem nenhuma ironia aparente, o sinal de Cénzi e virou-lhe as costas. O cão raivoso... Eu podia detê-lo agora. Ela cerrou o punho direito; tentou ouvir a voz de Karl, mas não ouviu nada. Nico começou a se afastar devagar.
É agora, ou será tarde demais...
Varina permaneceu imóvel na cadeira, olhando fixamente para o tecido preto nas costas de Nico conforme ele caminhava entre os clientes da taverna até a porta.
Nico abriu a porta e saiu. De algum lugar na rua, ela ouviu um cachorro latindo. Parecia debochar de Varina.
CONTINUA
ENCARNAÇÕES
Nico Morel
Varina ca’Pallo
Allesandra ca’Vörl
Niente
Sergei ca’Rudka
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Nico Morel
A explosão da areia negra foi mais poderosa e atordoante do que Nico tinha esperado.
A concussão atingiu seu peito como o punho de Cénzi. Ela agitou os trapos do boneco golpeando a cabeça de papier mâché com tanta força que nenhum deles conseguiu segurá-la no lugar. O boneco desmoronou enquanto as pessoas gritavam e pedaços do esquife funerário do embaixador começaram a cair em volta delas.
— Vão embora! — berrou Nico para seus seguidores. — Espalhem-se! Rápido!
A multidão já fugia; os gardai estavam confusos e atordoados. Os morellis evaporaram na multidão e sumiram em poucos instantes. Nico esperou alguns segundos, encarando a destruição. Havia várias pessoas caídas, a maioria numetodos que estavam em volta do esquife — ele não sentia compaixão alguma pelas mortes e ferimentos sofridos por eles. Ainda assim, alguns espectadores tinham sido feridos pelos estilhaços.
— Sinto muito — Nico sussurrou para um deles, uma mulher com um corte na têmpora que sangrava bastante. — Ninguém tinha a intenção de machucá-la. Cénzi lhe abençoará pelo sangue derramado hoje aqui e por sua dor.
Ele sentiu Liana puxar sua manga.
— Temos que ir — disse ela com urgência.
Nico ergueu os olhos. O embaixador ca’Rudka estava se levantando desajeitadamente da estrutura retorcida da carruagem que seguia o esquife; a espora herege de ca’Pallo, Varina, já tinha saído e observava horrorizada a destruição do esquife. Os cavalos que puxavam a carruagem da kraljica dispararam, e o condutor tentava detê-los mais abaixo no pátio, com gardai correndo atrás deles. A explosão derrubou o condutor da a’téni do assento e encerrou seu cântico; sua carruagem estava intacta e intocada, bem atrás do resto.
Nico sorriu ao ver isso — ele não queria que a a’téni ca’Paim se ferisse.
Onde estivera deitado o corpo de Karl, havia um buraco negro nos paralelepípedos, com estilhaços espalhados por todo lado, a uma dezena de passos de distância.
— Obrigado, Cénzi — ele rezou, fazendo o sinal rapidamente. — Obrigado por me permitir fazer a Sua vontade.
Ele se perguntou se Varina perceberia a ironia em usar a areia negra — uma invenção dos hereges ocidentais, recriada por Karl e Varina — contra eles.
Nico meneou a cabeça quando Liana puxou sua manga novamente. Ela segurava sua barriga inchada.
— Você está bem? — ele perguntou, subitamente preocupado que Liana estivesse ferida.
— Eu estou bem, mas você precisa ir embora. Agora!
Nico meneou a cabeça negativamente.
— Vá em frente — disse calmamente, em voz baixa. — Eu encontro você na casa.
Liana hesitou, e Nico acenou com a mão para ela.
— Vá! — repetiu ele.
Dessa vez, Liana obedeceu e foi embora correndo desajeitadamente por causa da gravidez avançada.
Nico voltou-se para o caos. Ele observou os gardai por detrás da cobertura de pessoas que também ficaram para trás, hipnotizadas pela visão de toda a destruição. Ele ouviu o Velho Nariz de Prata berrar enquanto tentava organizar o resgate. Mal conseguia conter a alegria que sentia, embora tentasse, pois esse era apenas seu orgulho tolo repuxando os cantos de sua boca. Finalmente, ele se afastou lenta e calmamente, em paz — como se tivesse saído para uma simples caminhada matinal.
Eles só conseguiriam pegá-lo se esta fosse a vontade de Cénzi, e se Ele assim o desejasse, então Nico se conformaria com Sua decisão. Cénzi estava acima da autoridade da kraljica ou do archigos. Sozinhos, os dois não podiam fazer nada contra Nico.
Portanto, Nico se afastou sem pressa, com uma expressão solene no rosto. Cénzi o segurava em Suas mãos protetoras.
Quando ele chegou ao esconderijo que os morellis tinham estabelecido no Velho Distrito, uma virada da ampulheta ou mais depois, Nico encontrou uma comemoração em curso. Ancel deu um tapa em seus ombros; Liana o abraçou desesperadamente enquanto os demais reunidos no ambiente gritavam e sorriam.
— Um punhado deles mortos, é o que dizem os rumores — comentou Ancel. — E o corpo do degenerado do ca’Pallo espalhado em pedaços pelo pátio do templo para os ténis limparem; isso ensinará a a’téni a agradar aos hereges. Que pena que a explosão poupou a esposa de ca’Pallo e o Velho Nariz de Prata.
Estranhamente, a alegria no rosto de Ancel azedou o bom humor de Nico. Ele olhou para seus seguidores, para o prazer que sentiam, e Cénzi manifestou-se em Nico. Ele franziu a testa, sua expressão ficou séria.
— Por que estão rindo? Por que que estão sorrindo? — perguntou Nico para eles.
O desprezo em sua voz calou a comemoração na boca de todos. A sala ficou rapidamente silenciosa. Liana soltou Nico; Ancel deu um passo para trás, com o rosto subitamente abatido.
— Sinto muito, Absoluto — disse Ancel ao abrir os braços em um gesto de desculpas. — Nós não fizemos o que Cénzi pediu?
— Fizemos — respondeu Nico. — E só tivemos êxito porque temos as mãos de Cénzi sobre nós. Será que devemos comemorar isso? Sim, mandamos vários hereges para Ele julgar, mas tiramos matarhs e vatarhs de crianças, destruímos suas famílias. Levamos sofrimento àqueles próximos aos hereges, e muitos deles não eram nossos inimigos. Muitos eram fiéis. Devemos ficar contentes por tê-los prejudicado, por ter-lhes causado sofrimento?
— Eu não pensei... — Ancel começou a dizer, mas foi interrompido por um gesto de Nico.
— Não, você não pensou. Nenhum de vocês pensou. Nem mesmo eu. — Ele respirou fundo e sentiu as palavras de Cénzi preencherem sua mente. — Estamos falando de vidas. Estamos falando de pessoas que são pouco diferentes de nós. Sim, são hereges. Sim, eles envenenam os Domínios e a fé concénziana com sua presença. Sim, são nossos inimigos. Mas são pessoas, apesar de tudo, e quando lhes causamos sofrimento, trazemos sofrimento para nós mesmos, ao mesmo tempo.
Nico sentiu lágrimas quentes brotando de seus olhos, e não se importou que escorressem por seu rosto sob os olhares de seus discípulos.
— Eu não lamento uma xícara quebrada. Eu não sofro se a tira da minha sandália se parte. Mas eu choro sim pelos numetodos. Choro porque eles não conseguiram enxergar a verdade. Choro porque não pude convencê-los a seguir a verdade. Choro por que me foi dada a tarefa de ser seu executor. Choro porque me dói ver o desperdício de seu grande potencial.
Ele, então, sentiu-se enlevado por Cénzi, e enxugou as lágrimas de olhos com sua manga enquanto a raiva ia embora.
— Ancel, desculpe-me. Não estou com raiva de você. Não estou. Você é meu braço direito e agiu bem hoje. Todos vocês agiram, e devemos ficar contentes por termos conseguido demonstrar o poder de Cénzi para aqueles que controlam os Domínios e a Fé. Fomos bons servos hoje. Mas é nosso dever sermos sempre bons servos, estarmos prontos para agir quando o Mestre nos chamar para fazer a Sua vontade, independentemente do que Ele nos peça.
Nico abriu os braços, deu um passo na direção de Ancel e o abraçou. Ele beijou a bochecha do homem.
— Você sabe disso. Sei que você sabe, e não cabia a mim repreendê-lo. Você me perdoa, meu amigo?
Ancel fez uma careta e soltou um suspiro pelo nariz. Ele assentiu, e Nico agarrou sua cabeça e beijou sua testa. Ele deu um tapinha nas costas do homem. Sorriu para todos os discípulos. Liana abraçou Nico novamente, pressionando sua barriga e seu filho contra a barriga dele.
— Todos nós agimos bem hoje — Nico disse para eles, seu olhar pairou sobre as pessoas reunidas na sala. — Vocês todos são abençoados.
Varina ca’Pallo
Seus ouvidos zumbiam, Varina mal podia ouvir as vozes que se dirigiam a ela através do retinir. Isso, ao menos, já era um progresso: imediatamente após a explosão, ela se viu inteiramente surda. Varina tinha sido levada para o prédio mais próximo — um dos edifícios de administração dos Domínios que dominavam a Ilha a’Kralji. Foram enviados curandeiros; gardai entravam e saíam fazendo perguntas a ela e Sergei. Até o comandante co’Ingres veio visitá-la, e as notícias que ele trouxe eram péssimas. A kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim estavam abaladas, mas ilesas, porém, dos doze numetodos que acompanhavam o esquife de Karl — todos amigos, a maioria integrantes de longa data do grupo —, cinco morreram e mais três estavam gravemente feridos. Mesmo que sobrevivessem, eles ficariam com sequelas do dia de hoje pelo resto de suas vidas.
Varina chorou por eles mais do que chorou por Karl, que estava além do sofrimento.
Talbot estava entre os numetodos que acompanhavam o esquife; felizmente, seus ferimentos tinham sido leves.
Varina franziu a testa para se concentrar em Sergei, que se debruçava sobre ela de forma solícita. Varina pôde notar seu reflexo distorcido no nariz de prata; seu rosto estava arranhado, uma longa linha de sangue seco cortava sua testa, e em sua bochecha direita havia uma mancha escura de um hematoma inchado.
— A surdez deve ser temporária, me disseram os curandeiros — dizia Sergei.
Ela teve que se concentrar nos lábios do embaixador para compreendê-lo.
— É uma boa notícia para nós dois; minha audição já sofreu o bastante nesses últimos anos. Também me disseram que nenhum dos seus ferimentos deve ser grave, embora você vá ficar dolorida por vários dias. Não parece que tenha ossos quebrados, embora você deva avisá-los caso sinta alguma dor interna aguda ou caso os cortes comecem a ficar vermelhos ou podres.
— Foi Nico quem fez isso? — ela perguntou.
Sergei fez uma careta.
— Sim. Ele e os morellis. Um dos gardai jura ter visto Nico no grupo que conduzia o boneco.
— Por que ele faria isso? Karl e eu nunca... nunca...
Varina mordeu o lábio inferior, e as lágrimas ameaçaram surgir novamente à menção do nome dele.
— Com sorte, você terá a oportunidade de perguntar ao homem em pessoa, quando o encontrarmos — falou Sergei. — E eles o encontrarão. Eu já disse ao comandante co’Ingres que coordenarei pessoalmente a busca por Morel caso ele não tenha sido capturado quando eu voltar de Brezno.
— Você ainda vai? Está bem?
— Sou velho e durão; é preciso mais que um pouco de areia negra para me deter. Eu já comecei uma investigação sobre a maneira como eles adquiriram a areia negra; suspeito de que alguém do arsenal seja um simpatizante morelli. Mas com as recentes incursões na fronteira, eu tenho que ir... — seu sorriso desmoronou com o próprio peso, Sergei pousou sua mão sobre o ombro dela. — Eu sinto muitíssimo, Varina. Isso jamais deveria ter acontecido. Karl merecia muito mais do que isso.
O choro tomou conta dela, e ela não conseguiu responder. Sergei deu um tapinha em seu ombro, mas seu olhar estava voltado para outro lugar.
— O corpo... de Karl? — ela finalmente conseguiu falar.
— O corpo de Karl — respondeu Sergei, e pela contração de seu maxilar, Varina percebeu que ele não estava lhe contando tudo — foi recuperado e já está na pira no Palácio da Kraljica. A Garde Kralji foi posicionada em volta dela, e também há vários numetodos lá, que dizem que não irão embora até que a pira seja acesa.
— Eu preciso ir até lá, então.
Varina começou a se levantar. Ela sentiu os músculos protestarem com o movimento, mas conseguiu se sentar. O quarto rodou ao seu redor e depois se assentou.
— Varina, a kraljica Allesandra disse que ela mesma acenderia a pira. Os curandeiros disseram que você deveria ficar...
— Eu preciso ir até lá — repetiu ela, com mais firmeza.
Sergei suspirou e assentiu.
— Eu disse para a kraljica que essa seria a sua resposta. Eu a acompanharei até lá...
— Varina... — A kraljica Allesandra a abraçou assim que ela desceu da carruagem, depois de Sergei. — Eu sinto muito. Sou a culpada por esta atrocidade. Nós obviamente não tomamos todas as precauções que deveríamos, e isso é responsabilidade minha.
Varina negou com a cabeça.
— Não foi culpa sua — respondeu ela simplesmente.
Atrás dos cortesãos e chevarittai que flanqueavam Allesandra, Varina viu Mason ce’Fieur, um amigo numetodo que era um de seus alunos no grupo. Ele acenou para ela com uma expressão grave.
— Com licença, kraljica — disse Varina para a kraljica e se dirigiu até Mason.
Os dois se abraçaram.
— A’morce numetodo — cumprimentou ele.
O uso do título pegou Varina de surpresa. Karl tinha sido o líder nominal do grupo desde que ela começou a fazer parte dele. Varina nunca considerou que o título pudesse passar para ela com o falecimento dele, mas aparentemente passou.
— Todos nós estávamos lhe esperando — disse Mason.
Ela olhou para a pira. Havia ca’ e co’ em roupas elegantes — aduladores do palácio que queriam ser vistos pela kraljica —, mas também havia numetodos da cidade, a maioria ce’ ou de status inferiores: duzentas pessoas ou mais, rostos que ela reconhecia, gente com quem trabalhou e a quem ensinou. Eles estavam ali agora, silenciosos e pacientes.
A pira tinha a altura de três pessoas, e o cheiro de óleo era forte no pátio entre as alas do palácio tomadas por andaimes. No topo da pilha piramidal de lenha fora colocado um caixão fechado de madeira — não mais o corpo envolvido na bandeira de Paeti. Varina apertou os lábios com a visão, seu estômago revirou, enviando ácido para a sua garganta. Ela engoliu em seco, uma vez.
— Vamos fazer isso logo. Em breve, teremos que acender mais piras para o restante de nossos companheiros que caíram.
Com Sergei à sua esquerda, kraljica à sua direita, e as fileiras de numetodos atrás dela, Varina avançou até a base da pira. Ela ergueu o olhar para o caixão e por um momento teve que fazer uma pausa, sobrepujada pelas lembranças de Karl. Seu estômago revirou novamente, e Varina fechou os olhos brevemente.
Ela abriu os olhos novamente quando encontrou, em sua mente, o feitiço que havia preparado na noite anterior. Estava em sua cabeça como um ovo prestes a explodir, e Varina o acariciou com seus pensamentos. Este era o método dos numetodos: como os ténis, eles usavam uma combinação de palavras e gestos para dar forma ao feitiço — uma fórmula que devia ser seguida. Como com os ténis, o esforço de invocar feitiços tinha um custo de exaustão e fraqueza. Ao contrário dos ténis, os numetodos não invocavam Cénzi ou atribuíam seu poder a qualquer divindade; ao contrário dos ténis, eles não precisavam lançar o feitiço imediatamente após o término do encantamento. Os numetodos sabiam como manter o feitiço em suas mentes, como lançá-lo com uma palavra e um único gesto muito tempo depois. Eles, portanto, podiam “pagar antecipadamente” a fraqueza que acompanhava a invocação do feitiço e não eram afetados depois. Os numetodos podiam lançar um feitiço preparado com um simples gesto ou pronúncia.
Varina fez isso agora. Diante da pira, ela abriu o feitiço.
— Tine — disse Varina na língua de Paeti, a terra natal de Karl.
Fogo. Varina fez um gesto como se jogasse uma pedra na base da pira. Um sol irrompeu no centro da pirâmide, branco-amarelado e tão quente que seu deslocamento de ar tremulante golpeou os espectadores como o vento de um furacão. A lenha banhada em óleo pegou fogo com um estrondo, e as chamas saltaram no ar, com tornados de fagulhas rodopiantes diante delas. Uma coluna de fumaça veio a seguir, levada pela brisa na direção dos telhados distantes do palácio, onde foi dispersada pelo vento e espalhada na direção do Velho Templo e do rio A’Sele, a oeste.
O fogo furioso agora lambia o caixão que continha os restos mortais de Karl. Enquanto Varina assistia, as chamas subiram pelas laterais até obscurecer a caixa de madeira com o fogo e encobri-la com fumaça.
— Adeus, meu amor — sussurrou Varina. — Eu sempre sentirei sua falta.
As lágrimas desciam por seu rosto sem pudor e secavam rapidamente pelo calor da pira. Alguém a estava abraçando, e ela não sabia se era Sergei, a kraljica ou Mason.
Não importava. Ela assistiu aos restos mortais de Karl alçarem à eternidade em uma espiral.
Varina ficou ali até o fogo na pira entrar em colapso, muitos minutos depois, e virar uma pilha de cinzas e carvão tão morta e carbonizada quanto ela mesma.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra observou Sergei andar de um lado para o outro em frente ao quadro da kraljica Marguerite. O olhar severo do retrato parecia, para Allesandra, acompanhar o avanço manco do embaixador, de lá para cá. O comandante co’Ingres sequer o observava; seu olhar estava fixo e resoluto no pequeno fogo da lareira, aceso com a intenção de tirar do ambiente o frio noturno. A a’téni ca’Paim estava sentada ao lado da mesa de doces, com um prato cheio em seu colo largo.
Allesandra não tinha apetite. A carnificina que a kraljica testemunhara durante a procissão fúnebre lhe tirara a fome. Suas mãos ainda tremiam ao lembrar. Tão covardemente, o uso da areia negra. Uma morte tão horrível... Ainda havia um leve zumbido em seus ouvidos provocado pela explosão.
— Não podemos permitir outro incidente como este, kraljica — declarou Sergei ao passar pelo quadro novamente. — A mensagem que isso transmite à população; a mensagem que transmite aos fiéis... Não podemos permitir.
— Não havia magia téni envolvida no incidente — declarou a a’téni ca’Paim em tom severo. — Morel sabe quais são as consequências de usar o Ilmodo. É por isso que usou a areia negra; embora um de seus seguidores provavelmente tenha acendido a areia negra com um feitiço quando o esquife passou sobre ela.
— Esta é exatamente a questão — respondeu Sergei. — Ele conseguiu perturbar um ritual solene dos Domínios sem o Ilmodo. Sem magia. O uso da areia negra foi uma mensagem: de que a Fé é inútil e fraca, que os Domínios podem ser reféns de qualquer um que consiga criar areia negra; que os numetodos são mais perigosos do que qualquer téni. Isto é pior do que se ele tivesse usado o Ilmodo.
O rosto de ca’Paim contorceu-se em uma careta de desdém.
— A Fé não é fraca — respondeu ela com firmeza. — Ela está mais forte do que há décadas. O archigos Karrol cuidou disso.
Allesandra notou que ca’Paim fingiu não ouvir o audível fungar de desdém dado por Sergei diante daquela declaração.
— Você acha que Morel não é inteligente o bastante para compreender o simbolismo de suas ações? — perguntou Allesandra para a a’téni. — Ficou claro o suficiente para mim. Aquele boneco blasfemo de Cénzi estava encarando o esquife diretamente quando a areia negra explodiu. Acho que Morel teria usado o Ilmodo para obter o mesmo efeito, mas ele estava obedecendo às leis da fé concénziana. Peço desculpas, a’téni ca’Paim, mas o homem acredita seguir os preceitos do Toustour e da Divolonté bem mais à risca do que qualquer a’téni e o archigos Karrol.
— A mensagem de Morel pode ser interpretada de várias maneiras por pessoas diferentes, kraljica — insistiu Sergei —, e isso é um problema ainda maior. Sim, para a Fé ele está dizendo: “vejam só, eu obedeci suas regras, embora as considere completamente tolas”. Para os numetodos, Morel diz: “eu considero suas crenças desprezíveis e hereges”. Mas acho que a população em geral, que não é nem téni, nem numetodo, interpreta uma declaração completamente diferente. Acho que alguns deles podem olhar para o que aconteceu e pensar: “eu posso fazer aquilo. Ora, qualquer um pode fazer aquilo”. Isso é perigoso. Não é no que queremos que as pessoas acreditem, especialmente as que podem ter motivos para se opor a nós.
Ca’Paim atacou um docinho e o mastigou furiosamente. Co’Ingres assistia à dança das chamas.
— Então o que você sugere que eu faça, Sergei? — perguntou Allesandra.
— Precisamos encontrar Morel. Temos que executá-lo publicamente, com violência — respondeu Sergei. — Então sua resposta à mensagem dele será: “se alguém tentar isso, morre.”
— É isso o que Varina me dirá para fazer? — indagou a kraljica.
— Não — admitiu Sergei. — Não é. Mas eu sou seu conselheiro, não a a’morce dos numetodos. Minha lealdade é à senhora, kraljica; a Nessântico e aos Domínios, como sempre. Eu digo o que será mais útil a essa fidelidade. Precisamos cuidar de Nico Morel e seus seguidores com rigor.
— Eu concordo completamente com o embaixador — disse ca’Paim ao se levantar, ainda segurando o prato de doces. — Meu pessoal irá ajudá-lo como for possível. Eu posso começar interrogando os suspeitos de ter afinidades com os morellis...
Ela fez o sinal de Cénzi com uma mão só para Allesandra e os demais.
— Será que Talbot poderia mandar alguém embrulhar isso para mim, kraljica? — perguntou ca’Paim ao erguer o prato. — Eu odiaria desperdiçá-los...
A a’téni ca’Paim foi embora com um pacote de doces, acompanhada pelo comandante co’Ingres. Talbot — que insistiu em voltar ao trabalho, apesar dos cortes e arranhões que recebeu — mandou um trio de criadas limpar as mesas e levar as bandejas de volta às cozinhas.
Sergei não fez menção de ir embora. Allesandra observou o embaixador, cuja atenção parecia estar voltada para os criados enquanto realizavam suas tarefas, com uma mão atrás das costas e a outra apoiada na bengala de punho prateado que quase combinava com seu nariz. Pouco tempo depois, a última criada fez uma mesura e fechou a porta ao sair.
— O que foi, Sergei? — perguntou Allesandra então. — Estou esperando Erik ca’Vikej chegar para almoçar em meia virada. Ele quer conversar a respeito da possível reação do governo exilado da Magyaria Ocidental ao problema dos morellis.
Sergei voltou-se para kraljica. Ela viu os olhos do embaixador fecharem brevemente e seus lábios franzirem, como se o gesto o incomodasse — ou como se a menção ao nome de ca’Vikej o aborrecesse.
— A senhora está brincando com fogo e areia negra, kraljica. Como embaixador dos Domínios na Coalizão, devo aconselhá-la a não dar a impressão de que apoia abertamente o homem.
Ele pareceu engolir algo mais que poderia ter dito, e Allesandra perguntou-se se Sergei percebia que outros sentimentos ela nutria por Erik.
— Como embaixador dos Domínios na Coalizão, eu espero que você me apoie, do modo como eu disser para fazê-lo — respondeu Allesandra com rispidez.
Sergei abaixou a cabeça, principalmente, suspeitou a kraljica, para que ela não pudesse ver seus olhos.
— Perdoe-me, kraljica; este é, obviamente, o meu dever. Verei seu filho em poucos dias, mas gostaria de oferecer-lhe um ramo de oliva em vez de uma espada desembainhada.
Allesandra já fazia que não com a cabeça antes que ele terminasse de falar.
— Você está se tornando previsível, Sergei, e mole com a velhice.
— Então a senhora decidiu que é contra a minha proposta de reconciliação com ele?
— Eu agradeço o esforço que você dedicou a isso, Sergei. E a boa intenção.
— Mas?
— Eu não tenho intenção de ceder para que meu filho possa tomar o Trono do Sol.
Tap, tap... Sergei deu alguns passos arrastados em direção a Allesandra. Seu rosto enrugado tinha uma expressão sincera, e ela pôde ver o reflexo do fogo da lareira em seu nariz polido.
— A senhora não estaria cedendo, kraljica, apenas nomeando seu filho como seu sucessor na sua morte.
A risada que ela soltou soou mais como uma tosse.
— Eu não consigo ver a diferença, Sergei. Se eu nomear Jan como herdeiro, perco meu poder como kraljica. A cada proclamação que eu fizer, todos passarão a olhar na direção a leste, para Brezno e para o hïrzg, a fim de ver se ele concorda. O Conselho dos Ca’ aqui ficará mais preocupado em ver como suas decisões são consideradas por Jan do que por mim. Eu pretendo ter uma vida ainda muito longa, Sergei. O que você me disse no outro dia, que eu ainda tenho décadas para me igualar à kraljica Marguerite?
Allesandra se levantou — deixe que ele note que nossa conversa acabou. Ela falou em um tom distante e severo, como se desse uma ordem para Talbot.
— Bem, eu pretendo fazer exatamente isso. E você me apoiará ou outra pessoa será meu embaixador.
A kraljica observou seu rosto, embora a expressão de Sergei raramente revelasse seus pensamentos mais íntimos. Não revelou agora. Ele fez uma reverência um pouco desajeitada e dura, mas seu rosto estava impassível e seus olhos pareciam não ter nada além de respeito por Allesandra.
— Eu sempre servirei a Nessântico e a quem estiver sentado no Trono do Sol — respondeu Sergei. — Sempre.
Ela quase riu novamente — dito com tanta cautela.
— Então diga ao meu filho que ele brinca com fogo e areia negra, como você disse, com suas recentes incursões na fronteira, e que minha paciência está se esgotando. Diga-lhe que espero que parem imediatamente, ou serei forçada a responder na mesma moeda. Lembre a Jan que a Magyaria Ocidental só lhe pertence porque não enviei a Garde Civile inteira para apoiar Stor ca’Vikej, um erro que não repetirei.
O rosto de Sergei não revelou nada ao fazer uma reverência.
— Como a kraljica desejar — respondeu ele.
— Ótimo. Mandarei Talbot fazer uma lista de exigências para a sua reunião, e minhas respostas às possíveis questões que você ouvirá do hïrzg.
O hïrzg. Não “meu filho”. Allesandra teve uma súbita lembrança de Jan: de segurá-lo como bebê, de vê-lo mamar em seu peito e do prazer íntimo e intenso de sentir o leite vir; das primeiras palavras; dos primeiros passos trôpegos; das ocasiões em que ele veio até ela chorando por causa de algum machucado ou de uma ofensa em que ela o abraçava e consolava. Quando foi que isso mudou? Por que deixei que acontecesse? Ela respirou fundo. Sergei observava Allesandra, com os olhos mucosos voltados para seu rosto.
— Estamos encerrados — falou ela. — Mandarei Talbot com minhas instruções.
— Sim, kraljica.
Allesandra odiou a compaixão que Sergei deixou transparecer em seu rosto, odiou que ele tivesse percebido o vazio dentro dela, que a fazia chorar sozinha à noite, que atormentava seus sonhos. O embaixador fez uma mesura ao sair, mas a kraljica já não estava prestando atenção nele. Era Jan quem ela via agora, como ele era da última vez que ela o viu. Allesandra imaginou como ele seria agora, como seriam seus netos, a quem ela nunca tinha abraçado, beijado ou embalado no colo. Tanta coisa que você deixou de viver. Tanta coisa que perdeu. Sua visão oscilou, as paredes cobertas por tapeçarias se tornaram brevemente líquidas, e ela se perguntou se Sergei estaria certo. Talvez fosse o momento.
Houve uma batida suave na porta, e Allesandra piscou, enxugando os olhos rapidamente com a manga.
— Entre — disse ela.
Talbot enfiou a cabeça na porta.
— O embaixador disse que a senhora precisava de mim, kraljica.
Ela fungou.
— Sim. Entre, mas primeiro mande um dos criados trazer pergaminho e tinta. E se o vajiki ca’Vikej chegar, diga-lhe que o receberei em breve.
— Eu fiquei horrorizado quando soube, preocupado que a senhora tivesse se ferido...
Erik andava de um lado para o outro em frente às janelas do aposento. O almoço fumegava na mesa, intocado. Sentada na cadeira à mesa, Allesandra observava ca’Vikej fixamente: a preocupação em seu rosto, a maneira como seus músculos se contraíam no crânio careca.
A preocupação que ele sente por você é real. Não é fingida, não é baseada em seus próprios interesses: é genuína. Ela esperava que estivesse certa quanto a isso. Allesandra também se deu conta de que tomara uma decisão, espontânea e não solicitada. Uma decisão envolta em sua própria solidão, no afastamento de Jan, no erro que ela cometera com o vatarh de Erik, na dor intensa que sentia quando estava com Varina, na raiva dirigida aos morellis. Allesandra esperava que sua decisão fosse a certa.
— Eu estou bem, Erik. Fiquei abalada, mas não ferida. O ataque não foi direcionado a mim.
Ele balançou a cabeça enfaticamente.
— Se a senhora tivesse se ferido, eu mesmo teria saído e encontrado esse Nico Morel, e... — Ele parou e se afastou das janelas a fim de olhar para Allesandra; seu rosto e voz abrandaram. — Minhas desculpas, kraljica. É que fiquei tão preocupado...
— Eu estou bem — ela repetiu. — E aqui, enquanto estivermos sozinhos, eu prefiro que você me chame de Allesandra.
— Allesandra — disse Erik, como se saboreasse a palavra. Ele sorriu. — Obrigado. Mas não menospreze esses morellis. Eles são um perigo para você, quer você acredite ou não. São fanáticos que ameaçam qualquer um que não acredite no que eles acreditam.
— Você é um fanático, Erik? — perguntou a kraljica com delicadeza e apontou para a cadeira à sua direita.
Ca’Vikej sentou-se antes de responder.
— Sobre a Magyaria Ocidental, você quer dizer?
Ele pegou a taça de vinho, e sacudiu o líquido rubro.
— Não, não quanto a isso. Em política, eu sou mais pragmático do que meu vatarh. Acredito que a Magyaria Ocidental estaria melhor sendo parte dos Domínios. Acredito que eu seria um bom gyula, se Cénzi desejar que isso aconteça. Estou disposto a trabalhar tão duro quanto for necessário para tornar isso possível, mas também sei que às vezes sacrifícios e concessões precisam ser feitos para se alcançar um objetivo, e que às vezes o melhor resultado não é aquele que se gostaria de ver. Então, não, eu não sou um fanático, mas um realista.
Erik ergueu a taça e a pousou novamente.
— Isto não quer dizer que não existam coisas com as quais eu me importe muito ou que eu não seja um homem passional, kralji... — Ele respirou fundo. — Allesandra. Quando chego a amar alguma coisa ou alguém...
A mão esquerda de Erik abandonou a taça e pousou na toalha de mesa de linho. A kraljica estendeu sua própria mão e pousou na dele. Allesandra o ouviu respirar fundo. Seus belos olhos claros sustentaram o olhar dela, sem pestanejar, quase como um desafio. Ele abriu os dedos e os entrelaçou aos de Allesandra.
— Eu sou passional. — ela disse em voz baixa. — Nessântico e os Domínios são minhas paixões. E também sou perigosa por causa disso. Portanto, esta... — Allesandra apertou levemente os dedos de Erik — ... não seria uma decisão a ser tomada levianamente. Ou, se você preferir, podemos comer o jantar que está posto diante de nós.
Erik assentiu, ergueu sua mão, ainda segurando a de Allesandra, até sua boca e beijou as costas da mão dela. Ela sentiu sua respiração quente em sua pele, o toque dos lábios, suave e excitante.
— Você está com fome, Allesandra? — perguntou Erik.
É isso que você quer... Foi por isso que você o chamou aqui hoje...
— Estou — ela respondeu.
A kraljica levantou-se da cadeira, ainda segurando a mão dele, e o levou embora.
Niente
As águas da baía de Munereo estavam cheias de navios ancorados tão próximos uns dos outros que parecia ser possível uma pessoa cruzar a grande baía a pé sem se molhar. Suas velas estavam recolhidas e amarradas nos mastros, e as embarcações estavam amontoadas sob um céu baixo com nuvens que corriam para o oeste. Ocasionais raios solares empoeirados perfuravam as nuvens e deslizavam sobre a baía, brilhando nas ondas distantes e nos panos brancos amarrados em seus mastros.
Niente nunca tinha visto tantos navios reunidos em um só lugar, e só uma vez, anteriormente, tinha visto tantos guerreiros tehuantinos reunidos.
Ele ouviu um grito ao seu lado, conforme seu filho, Atl, se aproximava.
— Pela teta esquerda de Axat — ele sussurrou a blasfêmia que ecoou alto no ar frio da manhã —, isto é uma novidade no mundo.
— Certamente que sim — respondeu Niente para o jovem.
Ele piscou, e tentou, sem sucesso, limpar a imagem borrada — mesmo a visão do olho remanescente começava a falhar. Os dois estavam sobre um morro do lado de fora das muralhas da cidade, não muito longe da estrada principal que levava ao porto. A estrada estava repleta de soldados que marchavam em direção aos barcos. As poucas centenas de nahualli e os feiticeiros que acompanhariam a força invasora estavam reunidos em seu próprio grupo, um pouco mais abaixo no morro, próximo à estrada. Eles estariam entre os últimos a subir a bordo das embarcações, imediatamente antes do tecuhtli Citlali e seus guerreiros supremos.
Atrás de Niente e Atl, as espessas muralhas de Munereo ainda estavam esburacadas e manchadas pelos vestígios da batalha travada ali há uma década e meia, quando as forças dos Domínios tinham sido derrotadas pelo exército do tecuhtli Zolin, o antecessor de Citlali. Niente tinha participado dessa batalha, tinha visto a areia negra rugir e as pedras voarem, e tinha ajudado a sacrificar os líderes orientais derrotados em nome de Axat. Também tinha navegado mar adentro ao lado do tecuhtli Zoli desse mesmo porto até os próprios Domínios.
Há tanto tempo. Parecia ter sido em outra vida para Niente.
Uma vida que ele agora era forçado a revisitar, se quisesse alcançar a visão vislumbrada na tigela premonitória. Quantos destes guerreiros morrerão por causa disso? Quantas almas serão enviadas para o submundo por causa do que estou fazendo? Axat, por favor, diga-me que eu sou capaz de realizar isso, que valerá a pena carregar essa culpa em minha alma. Ajude-me.
— Taat?
Niente saiu do devaneio.
— O quê?
— Pensei que o senhor tinha dito alguma coisa.
— Não — ele respondeu.
Pelo menos, espero que não. Ninguém pode saber dessa visão. Não ainda.
— Eu só pigarreei; o ar desta manhã está afetando meus pulmões. — Niente apontou na direção dos navios e da baía. — Amanhã, navegaremos na direção do sol quando ele nascer.
— E haverá bons ventos — afirmou Atl.
A confiança em sua voz fez Niente se voltar para o filho, estreitando os olhos.
— Você sabe disso? — perguntou ele.
Atl sorriu brevemente, como o toque do sol através das nuvens sobre os navios lá embaixo.
— Sim.
— Atl... — Niente ia dizer, mas o filho ergueu uma mão.
— Pare, taat. Deixe-me terminar por você. “Olhe para mim. Veja como Axat me marcou. Deixe a premonição para algum outro nahualli. Axat é cruel com aqueles a quem Ela dá a Visão.” Eu já ouvi isso tudo. Muitas vezes.
— Você devia olhar para mim — insistiu Niente.
Ele tocou seu olho branco e cego, massageou os músculos flácidos do lado esquerdo do rosto, os sulcos da pele morta e cheia de cicatrizes: uma máscara de horror.
— É assim que você quer ficar?
O olhar de Atl varreu o rosto de Niente e se afastou mais uma vez.
— Isso levou muitos anos, taat — ele respondeu. — E o juramento dos nahualli nos obriga a fazer o que Axat exigir de nós. E sua premonição também lhe deu isso.
Atl apontou para o bracelete dourado no braço de Niente.
— Você não deve fazer isso — insistiu Niente. — Atl, estou falando sério. Quando eu morrer, faça como quiser, mas enquanto eu estiver vivo, enquanto for seu taat e o nahual...
Ele pousou sua mão no ombro de Atl. O contraste entre suas peles o assustou: a dele era flácida, dolorosamente seca e tomada por incontáveis rugas; a de Atl era lisa e bronzeada.
— Não invoque Axat — terminou Niente. — Esta tarefa é minha. É o meu fardo.
— Não precisa ser só seu.
— Sim, precisa.
As palavras de Niente saíram mais ríspidas do que ele tinha intenção, fazendo com que Atl virasse o rosto, como se tivesse levado um tapa. Os olhos do jovem estavam entreabertos, e ele disparou um olhar de pura fúria para Niente antes de virar a cabeça ligeiramente para encarar deliberadamente a baía. “Cuide dele”, dissera Xaria antes de os dois irem embora. “Atl ama, respeita e admira você. Seu filho quer tanto que você se orgulhe dele — e eu me preocupo que Atl faça alguma tolice tentando...”
Xaria não compreendia. Nem Atl, e Niente não podia contar para nenhum dos dois. Ele não podia permitir que o filho usasse os feitiços premonitórios, não por causa do preço que eles cobravam — embora isso fosse significativo — mas porque sabia que Atl tinha o mesmo Dom que ele, e Niente não podia deixar que Atl visse o que ele viu na tigela. Não podia. Se Atl visse o que ele viu, Niente podia perder o Longo Caminho. Os vislumbres do futuro de Axat eram volúveis e facilmente mutáveis.
— Sinto muito — ele disse para Atl —, mas isso é importante.
— Tenho certeza que sim, porque o nahual está sempre certo, não é?
Dito isto, Atl fez uma mesura debochada para o taat e seguiu na direção dos outros nahualli, no mesmo instante em que Niente esticou o braço na direção dele. O nahual piscou; com o olho remanescente, ele viu Atl entrar no grupo.
Ele podia sentir os olhares de todos os nahualli voltados para ele morro acima, imaginando se Atl em breve desafiaria seu taat como nahual, imaginando se talvez devessem desafiá-lo primeiro.
Seus olhares eram avaliadores, desafiadores, destituídos de misericórdia ou compaixão.
Sergei ca’Rudka
Da rua onde se encontrava, Sergei observava o esquadrão do comandante co’Ingres se reunir em volta do prédio gasto e degradado do Velho Distrito sob a cinzenta aurora. O fedor dos açougues da rua tomou suas narinas. Havia quatro homens na frente, outros três em volta da porta dos fundos, e dois em cada espaço entre a casa e seus vizinhos. Também havia um quarteto de ténis-guerreiros cedidos pela a’téni ca’Paim — reunidos em volta da porta da frente, já entoando os cânticos de proteção.
A manhã estava fria, e Sergei fechou mais a capa em volta de seus ombros. A rua estava vazia — havia um utilino postado nas encruzilhadas próximas para impedir que as pessoas entrassem, e multidões se reuniram atrás deles para assistir. Os vizinhos que notaram a Garde Kralji avançando permaneceram prudentemente em suas casas. Sergei podia ver a oscilação ocasional de um rosto nas cortinas, embora não tivesse visto movimento algum na casa em que estavam prestes a entrar.
Isso fez Sergei torcer os lábios em uma careta. A informação veio de um bom informante e foi “verificada” pela interrogação de dois suspeitos de serem simpatizantes dos morellis na Bastida. Sergei tinha esperança de que esta batida capturasse Nico Morel. No entanto...
— Agora! — co’Ingres gritou e acenou com a mão.
Um dos ténis-guerreiros gesticulou, e a porta da casa explodiu em lascas de madeira, acompanhada de um estrondo alto e uma fumaça escura. A Garde Kralji entrou correndo, brandindo espadas e ordenando que qualquer pessoa no interior se rendesse.
Sergei não ouviu respostas aos gritos. Fez uma careta e começou a atravessar a rua, batendo com a bengala nos paralelepípedos — o comandante co’Ingres seguiu o passo cadenciado e cauteloso de Sergei —, no mesmo momento em que o o’offizier no comando do esquadrão apareceu na porta, negou com a cabeça.
— Sinto muito, embaixador, comandante — falou ele, dando passagem para que Sergei entrasse na casa.
Seus joelhos estalaram conforme ele subia pela soleira elevada. Ele ouviu o ruído alto das botas dos gardai vasculhando os ambientes no segundo andar batendo no assoalho.
— Aparentemente não há ninguém aqui — disse o’offizier.
— Não. Eles sabiam que viríamos — respondeu Sergei.
O cômodo em que eles estavam tinha pouquíssima mobília: uma mesa cuja superfície arranhada era pouco escondida por uma toalha quadrada e manchada; algumas cadeiras bambas com assentos de vime que precisavam de revestimento novo. Parecia que, se os morellis morassem aqui, viviam com pouco luxo. Sergei foi até a lareira no outro aposento e agachou, resmungando com a dor em suas pernas. Ele estendeu a mão sobre as cinzas: sentiu o calor que ainda emanava dos carvões abaixo. O embaixador ficou de pé novamente.
— Eles estiveram aqui ontem à noite. Alguém os avisou.
Sergei coçou a pele perto da narina direita falsa. No consolo sobre a lareira, havia apenas um pergaminho dobrado com capricho, com algo escrito na frente. Sergei aproximou-se para ler: era seu próprio nome, escrito em letra elegante e cuidadosa. Ele bufou pelo nariz metálico.
— Embaixador? — Co’Ingres espiava sobre o ombro de Sergei. — Ah, então nosso informante estava certo.
— Certo a respeito da localização. Errado quanto ao momento — ele respondeu.
Sergei pegou o papel do consolo e abriu o pergaminho duro.
Sergei — sinto muito ter perdido sua visita. Cénzi me diz que um dia eu e você devemos conversar. Mas não hoje. Não até eu ter cumprido todas as tarefas que Ele me passou. Gostaria de pensar que talvez agora você entenda que estou apenas fazendo Seu trabalho, mas suspeito que seus olhos, assim como os da kraljica e da a’téni, estão cegos. Sinto muito por isso, rezarei para que Cénzi lhe dê a visão. Estava assinado simplesmente “Nico”.
— Não encontraremos nada aqui — disse Sergei para co’Ingres. — Mande seus homens vasculharem o lugar exaustivamente, caso tenham perdido algum detalhe importante, mas não vão encontrar nada. Os morellis têm seu próprio informante, seja na Garde Kralji ou, mais provavelmente, dentro da Fé. Nós os perdemos.
Ele cutucou as cinzas na lareira com a ponta da bengala até ver uma brasa vermelha. Deixou o bilhete cair sobre os carvões. As pontas do papel escureceram, linhas vermelhas correram sobre o pergaminho antes de ele pegar fogo.
— Não deixarei que isso aconteça uma segunda vez — falou Sergei: para co’Ingres, para o papel, para o fantasma de Nico.
O papel virou cinza seca, e seus fragmentos subiram pela chaminé. Sergei ergueu os ombros para ajeitar a capa. Bateu com a bengala uma vez com força no piso da casa e saiu.
— Teremos sucesso da próxima vez — disse Sergei. — Eu juro.
Ele observou Varina dar de ombros na luz que passava entre as cortinas de renda da janela. Os desenhos da renda pontilhavam seu rosto e ombros com luz salpicada e deixavam seus olhos nas sombras.
— Eu sei que não é o que você quer ouvir — respondeu ela —, mas parte de mim está feliz por Nico ter escapado de você, Sergei. Acho que Karl teria se sentido da mesma forma.
O bule de chá sobre a mesa entre eles fez barulho quando Sergei se ajeitou na cadeira.
— Sua compaixão é admirável, e é o que faz a todos, incluindo Karl, amarem você.
— Mas?
Varina pousou a xícara de chá. As sombras das rendas percorreram as costas das suas mãos.
Agora foi Sergei quem deu de ombros.
— Compaixão nem sempre é bom para o Estado.
— Você teria dito isso na época em que os numetodos eram chamados de hereges e condenados à morte? — retrucou Varina suavemente.
Ela olhou lá fora, pela janela cortinada e voltou a olhar para Sergei.
— Você teria dito isso quando o kraljiki Audric e o Conselho dos Ca’ chamaram você de traidor?
Sergei estendeu suas mãos em frente ao corpo como se fosse deter um ataque. Ele lembrava-se muitíssimo bem do tempo que tinha passado na Bastida após ter sido condenado por Audric: de como tinha sentido medo de que fizessem com ele o que ele tinha feito com tantos outros, de como Karl e Varina o tinham salvado desse destino, colocando suas próprias vidas e liberdade em risco.
— Eu me rendo — falou o embaixador. — A dama tomou o campo de batalha.
Varina quase sorriu ao ouvir isso. A expressão foi momentânea, mas Sergei sorriu de volta — era a primeira vez que a via mostrar um traço de divertimento desde a doença fatal de Karl. O embaixador estendeu o braço e deu um tapinha na mão de Varina; a pele flácida em volta de seus ossos fez as mãos dela parecerem jovens, em comparação.
— O menino teve uma vida difícil — argumentou ela. — Ele foi tirado de sua pobre matarh por aquela louca horrorosa, a Pedra Branca. Que tipo de vida o menino poderia ter tido? Não fazemos ideia dos horrores pelos quais ele pode ter passado com ela.
— Concordo, não há como sabermos. No entanto, ele não é mais um menino, mas um homem que tem que ser responsabilizado por seus atos — disse Sergei.
E ergueu novamente as mãos ao ver que Varina se preparava para responder.
— Eu sei, eu sei. “A criança molda o homem”. Eu conheço o ditado, e sim, há verdade nessas palavras, mas ainda assim... — Sergei balançou a cabeça. — ... Nico Morel não é o menino que conhecemos, Varina, não importa o quanto você gostaria que isso fosse verdade. A última ação dele matou cinco amigos nossos e feriu muitos outros.
— Eu sei — ela respondeu tristemente. — E não estou dizendo que ele não deve ser punido por isso. Nem considero Nico o monstro que você pinta, mesmo depois do que ele disse, mesmo depois do que fez ao...
Varina parou. Sergei ouviu a hesitação em sua voz e viu seus olhos umedecerem, e soube o que ela não diria. Varina fungou e recuperou o controle.
— Mas compaixão... Você está errado quanto a isso, Sergei. Está errado a respeito do que estou sentindo. Um cachorro raivoso não pode ser culpado por sua raiva, mas deve ser detido pelo bem de todos. Eu compreendo, Sergei. Mas se o cão for meu, então é meu dever detê-lo. Meu.
Seu tom era fervoroso, e Sergei ficou intrigado com a urgência que ouviu em sua voz.
— Só me prometa que, se, por alguma razão, você souber de alguma sobre Nico, irá avisar o comandante co’Ingres imediatamente — pediu o embaixador. — Ele prometeu que a protegeria enquanto eu estiver em Brezno, mas me preocupo com os morellis, especialmente após o funeral de Karl. Só Cénzi sabe o que eles são capazes de fazer. Detê-lo sozinha seria arriscado. Pelo que a a’téni ca’Paim me falou, a habilidade de Nico com o Ilmodo é absolutamente assustadora, se ele escolher usá-la. Prometa-me que tomará cuidado. Prometa-me que não fará esforço algum para contatá-lo. Esse cão raivoso em particular ameaça a todos na cidade; deixe que a cidade o detenha.
Outro sorriso, este bem mais fraco que o anterior.
— Você pareceu o Karl falando agora. Eu sempre acreditei que a cautela era superestimada — disse Varina, e seu sorriso de repente se ampliou. — E você, Sergei... vai tomar cuidado?
— O hïrzg Jan, embora isso provavelmente demonstre sua falta de bom senso, parece gostar de mim, apesar do relacionamento frio entre ele e sua matarh. De qualquer maneira, eu sou apenas o mensageiro da kraljica Allesandra.
E às vezes o mensageiro é culpado quando a mensagem não é o que eles querem escutar... Sergei sorriu mesmo quando a dúvida penetrou em sua mente. Jan não gostaria da mensagem de Allesandra, isso era certo. E ele suspeitava que Allesandra também não iria gostar da resposta de Jan.
Você está ficando velho demais para isso... Esse pensamento continuava a vir à tona, cada vez mais. Sergei estava cansado, e a ideia de passar vários dias em uma carruagem na estrada, da surra que seu corpo levaria da viagem, e do desconforto das estalagens e camas estranhas no caminho...
Velho demais...
— Cuide-se, Varina. Tome cuidado e, por favor, lembre-se do que falei sobre Nico.
Com uma careta, Sergei empurrou a cadeira e se levantou. Ele pegou sua bengala, que estava apoiada na mesa. Varina levantou-se com o embaixador, dando um passo em sua direção e abraçando-o. Com uma mão, Sergei retribuiu o gesto.
— E você, cuide-se — disse Varina. — E cuidado com as cortesãs, embaixador. Eu soube que, em Brezno, elas não são tão... discretas como somos aqui.
Não serão as cortesãs com quem me envolverei...
— Infelizmente, quando elas olham para mim, não querem outra coisa que não sair correndo — disse Sergei, tocando o nariz.
Ele abraçou Varina com força mais uma vez, e depois se afastou.
— Eu a visitarei assim que retornar. Prometo.
Brie ca’Ostheim
Kriege não deveria estar no quarto de vestir de maneira alguma, mas tinha o hábito de fugir das babás que cuidavam dele. Brie teria que falar com elas mais tarde.
Ela acordou quando ouviu a porta de serviço do quarto de vestir ranger ao ser aberta. Ouviu os passos de Kriege sobre o tapete. Brie saiu de mansinho da cama e entrou no quarto de vestir que ela e Jan compartilhavam. Kriege estava em pé diante na penteadeira de Jan, com as mãos ocupadas com alguma coisa que seu corpo escondia. Ela sorriu satisfeita, esfregando os olhos para espantar o sono.
— Kriege — perguntou Brie —, o que você está fazendo?
Kriege deu meia-volta, assustado, e ela viu a adaga na mão do menino, com a lâmina fora da bainha e os gumes de aço firenzciano escuro reluzindo. A boca de Kriege fez um “Ó” de surpresa, e seu rosto ficou vermelho quando se deu conta de que ainda segurava a arma.
— Kriege, abaixe isso. Com cuidado. Seu vatarh ficaria muito irritado se visse você com isso.
Os olhos de nove anos de idade se arregalaram. Brie viu seu lábio inferior começar a tremer.
— Eu não estou irritada com você, Kriege. Apenas abaixe isso.
Ele obedeceu, um pouco rápido demais, de forma que a adaga bateu na madeira e sacudiu as caixas ali. Brie deslizou para frente rapidamente, pegou a arma e a colocou de volta na bainha usada. Kriege observou seus movimentos: ele observava tudo que tinha a ver com coisas marciais — quanto a isso, o menino era diferente de seu vatarh, e mais parecido com o vatarh de Brie, que era obcecado por armas brancas e possuía uma coleção de espadas e facas que causava inveja até mesmo a museus. O verdadeiro nome de Kriege era Jan — em homenagem a seu vatarh e a seu vavatarh; ele tinha adquirido o apelido de “Kriege” (guerreiro) ainda muito cedo por sua personalidade teimosa e birrenta quando bebê. O nome tinha pegado; ele era “Kriege” para todos no palácio. E agora parecia que tinha a intenção de honrar o apelido.
A própria Brie herdara o fascínio do vatarh por armas; na verdade, ela chamara a atenção do marido pela primeira vez quando demonstrou sua habilidade com espadas em um evento palaciano em que compareceu com seu vatarh, duelou e derrotou um chevaritt que dera uma resposta depreciativa a um comentário que Brie tinha feito sobre sua arma. Ela geralmente levava uma arma escondida no corpo, ainda.
Mas esta não era a arma dela; era de Jan. Brie devolveu a adaga à caixa de pau-rosa onde Jan a guardava quando não estava em seu cinto, e se agachou em frente a Kriege. Os cachos castanhos do menino caíram sobre sua testa quando ele abaixou a cabeça, e ela ergueu o queixo do filho com a mão, sorrindo para ele.
— Você sabe que não deveria estar aqui, não é?
Ele assentiu, uma vez, em silêncio.
— E você sabe que não deveria mexer nas coisas do seu vatarh, não é?
Outro gesto com a cabeça.
— Desculpe — respondeu ele.
— Do que você se desculpa?
A voz surgiu por trás dos dois; Brie olhou para trás e viu Jan parado na porta do próprio quarto, ainda de camisola, com o cabelo despenteado. Ele bocejou com sonolência e esfregou o rosto barbado.
Brie hesitou, mas Kriege já tinha passado por ela, abraçando as pernas de seu vatarh.
— Vatarh, era a sua adaga. Eu queria vê-la...
Jan olhou para Brie, ainda agachada diante da penteadeira. Ela levantou os ombros para o marido, balançando a cabeça.
— Minha adaga, é? Bem, venha cá...
Ele levou Kriege pela mão até a penteadeira. Abriu a caixa de pau-rosa e tirou a arma e sua bainha suja e manchada. O pomo no fim do cabo era decorado por pedras semipreciosas — Brie suspeitava de que tinha sido isso o que atraíra Kriege em primeiro lugar —, e o cabo em si era feito de madeira sólida de acácia-negra. A lâmina tinha dois gumes que se estreitavam em um ponto preciso e mortal. Uma arma elegante. Com uma história elegante.
Jan segurou a adaga, embainhada, na mão.
— Era isto o que você estava procurando?
Kriege assentiu enfaticamente.
— O que você sabe sobre essa faca?
— Eu sei que o senhor sempre a usa, vatarh. Eu a vejo no seu cinto quase todos os dias. E sei que ela é antiga.
Jan sorriu para Brie sobre a cabeça de Kriege. Ela respondeu para o filho.
— E é muito antiga. Foi feita para seu trivatarh, Karin, quando ele se tornou hïrzg, há quase 70 anos, e ele a deu para seu bivatarh, Jan, quando ele era jovem, e Jan a deu para... — ela parou, olhando para Jan, que levantou os ombros — ... sua mamatarh Allesandra.
Brie não mencionou que Allesandra usou a adaga para matar o mago ocidental Mahri. Supostamente, tanto Karin quanto o primeiro Jan também mataram alguém com a mesma arma. Seu Jan também tinha encontrado um motivo para alimentar seu aço com o sangue de um inimigo — quando sua espada fora quebrada no meio da batalha contra o exército de Tennshah.
— E Allesandra deu para seu vatarh.
Os olhos de Kriege foram ficando cada vez mais arregalados conforme Brie contava a história da arma.
— O senhor vai me dar a adaga um dia também, vatarh? — ele perguntou para Jan, depois fez uma expressão apreensiva e uma careta de desdém. — Ou a estúpida da Elissa vai ficar com ela porque é a mais velha?
Brie conteve a risada enquanto Jan abriu a boca, e a fechou novamente.
— Ninguém vai ganhar a adaga até que estejam muito mais velhos — ele respondeu, finalmente. — Ela não é um brinquedo.
— Eu quero uma faca só minha — insistiu Kriege. — Tenho idade suficiente. Eu não vou me cortar. Serei bem cuidadoso.
— Tenho certeza que sim — disse Jan.
Ele respirou fundo e olhou mais uma vez para Brie, que balançou a cabeça levemente. Não, ela murmurou.
— Vamos fazer assim — o hïrzg disse para o filho. — Mandarei Rance conversar com o mestre de armas da Garde, para ver se ele pode lhe ensinar como manusear corretamente uma faca. Se ele me disser que você compreendeu e aprendeu todas as lições, então talvez no seu aniversário nós possamos conversar sobre algo que você possa usar em eventos de estado.
— Ah, obrigado, vatarh!
Kriege exclamou e abraçou Jan novamente. E se afastou, dizendo.
— Eu vou contar para Elissa e Caelor. Eles vão morrer de inveja!
O menino saiu correndo do quarto, chamando os irmãos.
— Não. — Jan disse, erguendo a mão quando Brie começou a falar. — Eu sei o que você vai dizer. Eu sei. Elissa estará aqui em poucos minutos, exigindo saber por que não pode ter uma faca também, e Caelor virá logo atrás dela.
— E o que você dirá a eles?
— Que Caelor precisa esperar até que tenha a idade de Kriege.
— E Elissa?
— Acho que ter aulas para aprender a manusear uma arma seria bom para ela. É uma habilidade que ela pode vir a precisar um dia. — Jan guardou a adaga de volta na caixa e fechou sua tampa. — Não concorda?
Essa é uma das muitas habilidades que ela precisará aprender, Brie poderia ter respondido, ao se lembrar de Mavel co’Kella, que a esta altura estava a caminho de seus parentes em Miscoli. Brie tinha certeza de que Jan sabia o que tinha acontecido e quem a tinha mandado embora, apesar de que nenhum dos dois tenha falado a respeito. Ele tinha vindo ao quarto de Brie na noite passada, o que indicava que ninguém tinha entrado na cama de Jan ontem.
— Às vezes — respondeu Brie —, não se pode ter tudo que se quer. Nem mesmo o hïrzg.
Jan lançou um olhar severo para a esposa ao ouvir isso, e ela acrescentou.
— Ou a hïrzgin. Caso esse seja o destino dela.
— É verdade. Mas mesmo assim acho que será bom para Elissa... e que ela tenha aquelas aulas com Kriege. Eles podem começar a se relacionar melhor.
Jan ergueu a cabeça. Ambos ouviram o bater de pés no corredor, seguidos pelos chamados sonolentos e em vão da babá atrás deles (sim, ela teria que falar com a mulher, e talvez substituí-la), e, logo depois, a voz de Elissa.
— Vatarh! Onde está o senhor, vatarh?
Ele suspirou, Brie colocou a mão sobre a de Jan.
— Ela é sua filha. Assim como você, quando quer alguma coisa, ela dá um jeito de conseguir. Você não pode culpá-la por isso.
Ele teria respondido, mas Elissa irrompeu no quarto pela porta de serviço no segundo seguinte, com o irmão caçula, Caelor, vindo logo atrás.
— Vatarh, não é justo! — exclamou a menina ao bater com o pé no chão.
— Vou deixá-lo responder — falou Brie para Jan, rindo. — Vou chamar a camareira para me ajudar a vestir. Preciso ter uma conversa com a babá...
Varina ca’Pallo
— Aqui está — disse Pierre Gabrelli entregando o dispositivo para Varina — Espero que funcione para você — ele acrescentou com um sorriso irônico.
Ela segurou o objeto em suas mãos, admirada.
— Pierre, isto é lindo...
O sorriso do homem se ampliou.
Ela montou sozinha a maior parte das versões experimentais do objeto, garimpando peças aqui e ali na cidade e depois juntando tudo. Seus próprios dispositivos eram funcionais, mas feios e desajeitados de manusear. Pierre era ferreiro e artesão, assim como numetodo. O que ele tinha dado a Varina não era uma cópia crua da ideia que ela tinha em mente, mas uma obra de arte.
Varina manuseou a “chispeira”, como decidira chamá-la, para examinar todos os lados, maravilhada. O dispositivo era deliciosamente pesado e sólido e, no entanto, balanceado o suficiente para ser empunhado com uma mão. Um tubo de metal reto e octogonal — mais espesso desta vez — estendia-se a um palmo do cabo curvo de madeira. Os canos de Varina eram lisos, sem adorno; este era gravado com desenhos de vinhas e folhas enroscadas, o metal era escovado e os desenhos tinham sido traçados em preto fosco. Onde o cano encontrava a madeira, as folhas se lançavam para fora, encaixando perfeitamente em nichos na madeira entalhada para receber o padrão floreado. E a madeira: Pierre pegou várias espécies de madeira, laminou todas juntas, e a variedade de grãs criou um padrão adorável e atraente sob o verniz reluzente. O tambor que carregaria a pólvora não era mais um dispositivo bruto parafusado tortamente no topo: aqui estava encaixado em seu próprio nicho no cabo, e Pierre tinha incluído uma tampa de metal para protegê-lo da chuva e fechá-lo. A roda de aço finamente salientada e ligeiramente sulcada no tambor era cromada e polida; um pequeno cão sobre ele tinha o mesmo desenho de vinhas e folhas do cano, com uma peça delicada de pirita presa nos mordentes. Um guarda-mato — também no formato de folha e cromado — envolvia o mecanismo de disparo.
Ao olhar fixamente para o objeto, Varina esqueceu-se por um momento da dor que pairara como uma sombra negra sobre ela há dias. Por um momento, havia luz em seu mundo.
— Tenho medo de testar isso — ela disse para Pierre. — Odiaria estragá-lo.
— Foi totalmente feito de acordo com suas especificações, que eram, devo dizer, engenhosas; eu só acrescentei a decoração para deixá-lo bonito. Vá em frente, puxe o cão para trás. Coloque o polegar na folha e pressione para trás...
Varina obedeceu: ela ouviu os mecanismos clicarem suavemente quando a pirita se afastou do tambor, ouviu a mola presa à engrenagem ranger ao ser estendida, sentiu o gatilho deslizar para frente e travar. Varina colocou o dedo em volta do gatilho e o apertou: ele voltou imediatamente dando um estalo; a engrenagem girou furiosamente; o cão de pirita bateu contra o aro da roda, e ela viu fagulhas saírem voando do tambor.
Varina podia imaginar o resto: as fagulhas acendendo a areia negra no tambor; a explosão propagando uma bola de chumbo saída do buraco redondo feito no cano...
Pelo menos, esta era a teoria. A última versão feita por ela, bem mais crua, quase funcionou, como ela tinha contado a Karl. Quase — ela ainda carregava as cicatrizes dessa experiência. Ou o cano do dispositivo tinha ficado fino demais, ou o metal tinha algum defeito, ou o buraco tinha sido feito ligeiramente torto. A explosão da areia negra fez o cano se romper, espalhando uma chuva de fragmentos de metal no ambiente, um dos quais tinha aberto um corte profundo no braço de Varina — mais dois palmos para cima e teria acertado seu rosto, mais um palmo para o lado e poderia ter penetrado seu peito. Ela podia ter ficado cega ou morrido — isto foi o que Varina não contou para Karl.
Ao pensar em seu nome, a tristeza ameaçara voltar, e ela forçou-se a sorrir para o ferreiro e fingir.
— Pierre, eu devia ter pedido para você fazer isso há tempos. Ela é bem mais elegante do que as engenhocas que eu fiz sozinha. Todo esse trabalho lindo. É só que... e se ela se quebrar como a última?
— Então a senhora me diz o que preciso fazer para a próxima funcionar melhor, não é? — Ele sorriu novamente. — Ande. Teste. Estou morrendo de vontade de ver.
Pierre arregalou os olhos subitamente ao se dar conta do que disse.
— A’morce, eu...
Varina sorriu e tocou a mão do ferreiro. Ela meneou a cabeça.
— Eu não sei.
Até agora, Varina tinha conduzido todas as experiências sozinha. Os outros numetodos sabiam que ela estava fazendo experimentos com alguma espécie de dispositivo para disparar areia negra, mas ninguém — nem mesmo Karl — sabia dos detalhes.
— Pierre... isso é perigoso. Se...
Desculpas. Apenas desculpas. Varina não queria que Pierre estivesse presente; ela notou pelas rugas de expressão em seu rosto que ele compreendeu.
Ele franziu a testa. Deu de ombros.
— Como quiser, a’morce — respondeu Pierre.
Ele se dirigiu até a porta do aposento; Varina quase o chamou de volta, sentindo-se culpada, mas a letargia que tomara conta dela nos últimos dias a tinha deixado lenta e desanimada, e ela não o chamou.
A porta se fechou quando Pierre saiu.
Varina estava no porão da Casa dos Numetodos na Margem Sul, um dos vários laboratórios de lá. Seus laboratórios. Foi aqui que Varina, há anos, desvendou a fórmula de produção da areia negra dos tehuantinos. Foi aqui também que ela trabalhou no desenvolvimento da magia ocidental: a cansativa habilidade de encantar um objeto para armazenar um feitiço. Varina tinha passado muitas longas horas aqui. Horas demais, ela pensava, às vezes. Às vezes parecia que Varina tinha passado toda a sua vida aqui. Sozinha, na maior parte do tempo. Cada marca, cada arranhão na mobília, cada pincelada de tinta nas paredes lembrava a Varina do passado.
Ela tinha organizado o laboratório com cuidado: em uma das extremidades do cômodo havia um boneco de pano, vestido com um conjunto velho e amassado de armaduras de placas dadas pelo comandante co’Ingres. Na outra extremidade, Varina tinha posto uma mesa com um torno pesado de madeira. Uma das coisas que ela tinha aprendido no decorrer desse experimento era que o dispositivo dava um coice quando a pólvora era acendida. Durante uma das experiências, Varina machucara o pulso quando uma das versões da chispeira ricocheteou fortemente em sua mão ao disparar. Desde então, ela passara a usar o torno para segurar as várias encarnações das chispeiras e um barbante amarrado ao gatilho para acioná-lo — esse esquema provavelmente a salvou de ferimentos mais graves quando o cano explodiu na última vez.
Varina levou a chispeira de Pierre até a mesa. Com cuidado, ela encheu o recipiente com areia negra delicadamente. Ela tinha preparado “cartuchos” de papel com mais areia negra e uma bola de chumbo, que ela enfiou no cano. Dobrou um pano em volta do cano — “é tão bonito que não quero arranhá-lo no torno”, ela teria dito para Pierre, caso ele estivesse ali — e fechou o tambor do dispositivo, depois de garantir que ele estava apontado diretamente para o peito do boneco. Ela puxou o cão de pirita, amarrou um barbante ao gatilho e foi para trás da mesa, com o barbante na mão.
O cano da chispeira apontava de maneira ameaçadora para o boneco de armadura. Varina puxou o barbante.
A engrenagem girou, faíscas voaram. Ouviu-se um estouro alto, e uma fumaça branca saiu detrás do cano e do tambor. Na outra ponta do laboratório, ela ouviu um nítido estalo metálico.
Varina abanou a mão em meio à fumaça cáustica. Deu uma espiada no boneco: no meio da placa peitoral, apareceu um buraco escuro. Ela arrastou os pés até lá o mais rápido que pôde, inclinando-se para examinar a armadura. Havia um buraco tão largo quanto seu dedo indicador, com as bordas rasgadas e voltadas para dentro. Ela meteu o dedo no buraco — não conseguiu sentir o fundo, e o buraco ficava maior conforme ela penetrava no recheio do boneco. Em algum lugar ali no fundo, havia pedaços da bola de chumbo enterrados. Varina percebeu que estava prendendo a respiração.
Um golpe de espada teria sido aparado pela armadura. A flecha de um arco teria ricocheteado. A seta de uma besta talvez tivesse penetrado, mas não tão fundo.
Funcionou. Se fosse um garda, estaria no chão, sangrando terrivelmente ou talvez morto...
Varina podia imaginar a cena, e essa não era uma visão agradável; ela já tinha visto muita gente morrer em batalha. Varina endireitou o corpo. Voltou para a mesa e examinou a chispeira no torno. Ela parecia inteira e incólume, seu cano ainda estava reto e intacto, exceto por uma mancha de fuligem negra na ponta. Também havia marcas de fuligem em volta do tambor, mas, tirando isso, a arma parecia estar ilesa. Varina abriu o torno e tirou o dispositivo. Então, ela o segurou com o braço estendido e apontou seu cano para o boneco.
Bem, minha velha, o próximo passo é óbvio, se você quiser dá-lo... Isso tinha soado como Karl, rindo ao repreendê-la. A lembrança trouxera lágrimas aos seus olhos, e ela teve que parar por um momento para conter o choro. Varina pousou a chispeira na mesa e, depois de alguns instantes, começou a encher novamente o tambor com mais areia negra e enfiar outro cartucho de papel no cano. Ela pegou a arma e puxou o cão de pirita para engatilhá-lo. Suas mãos tremeram um pouco ao apontar a arma. Varina estendeu a outra mão para estabilizá-la enquanto olhava pelo cano. Ela se perguntou, por um segundo, se estava sendo precipitada e imprudente, se deveria esperar e repetir a experiência como tinha feito minutos atrás, mas no mesmo momento em que a ideia lhe veio à cabeça, ela apertou o gatilho e fechou os olhos.
A resposta da chispeira foi terrível, e a arma deu um pulo em sua mão, embora não tão forte quanto ela se lembrava. Varina abaixou a arma e espiou o boneco. Sim, havia um segundo buraco na armadura, este do outro lado da placa peitoral, mais alto.
Alguém bateu na porta do laboratório.
— A’morce, a senhora está bem? — chamou uma voz vaga.
— Sim — respondeu ela. — Estou bem, está tudo bem.
Varina sentou-se na única cadeira do aposento, com a chispeira aninhada em seu colo. Estava quente, e uma fina coluna de fumaça subia do cano. Varina olhou fixamente para ela: sua criação.
Qualquer um pode manusear isto. Só é preciso um pouco de habilidade e alguns momentos para aprender. Com isso, qualquer um pode matar uma pessoa à distância, mesmo um garda de armadura. Ela sempre tivera a capacidade de imaginar possibilidades; Karl sempre dissera que era isso que a tornava uma boa pesquisadora para os numetodos. “Você tem imaginação”, ele dizia. “Consegue enxergar possibilidades onde ninguém mais as vê. Esta é a melhor magia que se pode ter.”
A linha de pesquisa que produzira a chispeira tinha sido o resultado dessa capacidade — ela vinha experimentando uma nova mistura de areia negra há alguns anos. Varina colocou uma pequena quantidade dessa areia negra no fundo de um recipiente estreito de metal, tampado por um pilão de pedra; ela não tinha notado que o pilão estava rachado e que tinha deixado para trás um pedaço do pilão dentro do recipiente. Varina usou um feitiço de fogo para acender a areia negra... e o fragmento do pilão foi impulsionado pela boca do recipiente, batendo no teto do laboratório. O sulco na viga de madeira ainda estava lá, em cima da mesa. Ela percebeu, então, que a areia negra podia ser usada para outros fins que não os da simples destruição dispersa.
Um exército de soldados com chispeiras... Varina podia imaginá-lo, e a visão fez suas mãos tremerem.
Isso podia mudar a guerra. Isso mudaria a guerra. Completamente. Assim como a própria areia negra estava começando a tornar os ténis-guerreiros desnecessários, a habilidade no manuseio de espadas pesadas também já não era mais importante, não quando tudo o que era necessário era de força para puxar um gatilho e de olhos para mirar pelo cano.
Qualquer um podia ser um guerreiro. Qualquer um podia fazer justiça.
Qualquer um podia se vingar. Ou matar um cão raivoso.
Qualquer um podia matar desnecessariamente. Pelo pior ou mais trivial dos motivos.
Qualquer um. Até mesmo ela.
O que eu fiz desta vez, Karl?
Varina piscou. Sua mão acariciou o verniz sedoso do cabo. Que ironia: um instrumento tão belamente esculpido e dedicado inteiramente à destruição.
Finalmente, ela se levantou da cadeira e foi até a mesa. Tampou o frasco de areia negra e recolheu os cartuchos de papel que havia preparado. Varina colocou o frasco, os cartuchos e a chispeira em uma bolsa de couro e pendurou no ombro. Apagou as lanternas que iluminavam o laboratório, abriu a porta e trancou novamente ao sair.
Com a bolsa pesada no ombro e as mãos ainda se ecoando a sensação da chispeira ao disparar, Varina subiu a escada.
Jan ca’Ostheim
— Nossas tropas estavam tranquilamente a um dia de marcha além das fronteiras de Il Trebbio, antes que tivéssemos qualquer sinal de termos sido vistos. Tivemos uma pequena escaramuça com uma companhia de chevarittai dos Domínios. Dois deles foram mortos por nossos ténis-guerreiros, e os chevarittai deram meia-volta e fugiram depois disso; nenhum dos nossos homens foi gravemente ferido. Dadas as nossas últimas conversas, depois passar um dia ali eu recuei o batalhão pela fronteira. Com tudo que descobrimos nos últimos meses, hïrzg Jan, parece que as fronteiras dos Domínios são um tanto quanto porosas, e Il Trebbio certamente é um dos pontos mais fracos. A kraljica Allesandra não tem forças suficientes...
Armen ca’Damont, starkkapitän da Garde Civile firenzciana, parou de ler o relatório para Jan quando a porta do aposento foi aberta repentinamente, batendo com força nos aparadores. Um trio de crianças entrou no rastro da interrupção, seguido de longe por uma das criadas com uma criança menor nos braços.
— Vatarh!
Kriege, o filho mais velho de Jan, foi o primeiro a entrar. Ele bateu o pé e olhou com raiva para a irmã, que vinha atrás de si. Caelor, um ano mais novo que Kriege, parou ao lado do irmão, concordou enfaticamente com a cabeça e lançou o mesmo olhar.
— Nós estávamos brincando de chevarittai, e Elissa trapaceou! Não é justo!
A babá entrou correndo, com uma aparência nervosa, e fez uma reverência desajeitada para Jan e ca’Damont, com Eria, a caçula de Jan, agora nos braços.
— Sinto muitíssimo, hïrzg — disse a mulher sem erguer o olhar. — As crianças estavam brincando, e eu vestia a pequena Eria, quando houve uma discussão e eles correram para encontrá-lo...
— Tudo bem — respondeu Jan sorrindo para ca’Damont. — Não se preocupe. Agora, Kriege, que história é essa de trapaça?
— Elissa trapaceou — repetiu Kriege, fazendo uma careta tão feia que parecia cômica. — Trapaceou, sim.
— Elissa? — disse Jan em tom severo ao mover o olhar na direção da filha.
Outra criança talvez olhasse para o chão. Jan sabia que Caelor teria olhado, ainda que com censura, e até mesmo Kriege afastava o olhar agora. Mas Elissa devolvia o olhar calmamente, fitou uma vez o rosto magro de ca’Damont, marcado e desfigurado pelas memórias de velhas batalhas, e depois se fixou em Jan. Ela penteou para trás os fios castanhos-dourados que escaparam das tranças que caíam nos olhos.
— Eu não trapaceei, vatarh — respondeu Elissa. — Não mesmo.
— Trapaceou, sim — interrompeu Kriege, batendo o pé novamente. — Ela mentiu.
Elissa nem se incomodou em olhar para o irmão. Seu olhar permanecia fixo em Jan.
— Eu realmente menti, vatarh — admitiu ela. — Eu disse para Kriege que o ajudaria se ele atacasse o fortim de Caelor com seus soldados.
— Ela disse que usaria os ténis-guerreiros no próximo turno para me ajudar — interrompeu Kriege novamente. — E não ajudou. Em vez disso, quando chegou o turno dela, Elissa me atacou e eu perdi todos os meus fortins e a maior parte dos chevarittai. Ela trapaceou.
Jan voltou a olhar para ca’Damont, que continha um sorriso.
— Isso é verdade, Elissa?
A menina assentiu.
— Sim — respondeu em tom sério. — Veja bem, Caelor tinha a maior parte dos fortins e soldados que sobraram no tabuleiro, e Kriege e eu tínhamos mais ou menos o mesmo número. Eu sabia que não venceria Caelor sozinha, portanto, disse para Kriege que o ajudaria porque sabia que Caelor acabaria com vários soldados dele e perderia homens suficientes, de maneira que não poderia me atacar, e então, quando fosse meu turno, eu poderia tomar a maior parte dos fortins de Kriege e capturar soldados suficientes para provavelmente ganhar o jogo.
Elissa olhou para os irmãos.
— E teria ganhado também, se Kriege não tivesse ficado furioso e derrubado todas as peças no chão.
O riso abafado de ca’Damont era audível, e ele virou o rosto com cicatrizes por um momento. Jan teve que lutar para conter seu próprio divertimento, embora a graça fosse moderada pela similaridade entre Elissa e Allesandra, a mamatarh da menina. Jan podia imaginá-la fazendo a mesma coisa quando criança; era o que ele a tinha visto fazer quando adulta.
— Então... — disse Jan para a filha —, você ofereceu ao seu irmão uma aliança que não pretendia cumprir para que pudesse ganhar? Estou certo?
Ela assentiu. Jan olhou para os dois meninos e disse.
— Acho que sua irmã acabou de ensinar uma lição excelente a vocês. Na guerra, às vezes a palavra de uma pessoa não é suficiente. Às vezes seu inimigo mentirá para vocês com o intuito de ganhar vantagem. E há mais coisas na guerra do que deslocar soldados. Vocês dois devem se lembrar disso.
— Mas ela trapaceou! — insistiu Kriege, batendo o pé mais uma vez.
Jan cofiou a barba, tentando não rir.
— O que você acha, starkkapitän? — perguntou ele para ca’Damont. — Devo punir Elissa por sua trapaça?
— Não, meu hïrzg — respondeu ca’Damont.
Jan viu o rosto de Elissa relaxar ligeiramente — então a menina estava preocupada com o que ele poderia fazer. O starkkapitän continuou.
— Mas eu diria que ela também aprendeu uma lição nesta situação, a de que quando alguém dá a sua palavra, a outra parte poderá ficar aborrecida se essa palavra não for cumprida, e às vezes sua reação pode impedir que se obtenha a vantagem que se esperava ganhar. Agora ninguém vai saber qual de vocês teria vencido o jogo.
Jan deu um tapinha no ombro de ca’Damont.
— Pronto, viram só? — disse o hïrzg para os filhos. — Vocês ouviram do próprio starkkapitän. Ele entende mais de guerra do que qualquer um de nós. Espero que tenham aprendido bem, pois quando um de vocês for hïrzg...
— Rezemos a Cénzi para que isso não aconteça ainda por muitas décadas, meu marido.
A voz ergueu a cabeça de Jan, que viu Brie parada no umbral, rindo da cena. Ele foi em sua direção, deu-lhe um beijo e um abraço breve. Brie cheirava a jasmim e água doce, e seu cabelo — que um dia fora da mesma cor que o de Elissa, mas que agora ficava escuro — era macio mesmo preso nas tranças firmes de Tennshah, tão populares nos dias de hoje. Se sua silhueta tinha ficado mais pesada depois de dar à luz a seus filhos, bem, isso era como as cicatrizes no rosto de ca’Damont; um sinal dos sacrifícios que ela fizera.
Rance tinha contado para Jan que foi Brie quem mandara Mavel co’Kella embora e o porquê. Após a irritação inicial, ele ficou feliz: isso poupou-lhe o trabalho de fazer o mesmo.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Brie, que olhou para as crianças, para a criada que segurava Eria e para a babá. — Rance me disse que você ainda estava em reunião, temos que estar no templo para a bênção do Dia do Retorno em uma virada da ampulheta.
Ela balançou a cabeça, embora a expressão no rosto fosse paciente e calma.
— E nenhum de nossos filhos está arrumado ainda.
— Desculpe-me, hïrzgin — falou a babá ao fazer uma mesura. — A culpa é minha. Eu vou arrumar as crianças. Elissa, Kriege, Caelor, venham comigo agora. Rápido...
Brie abraçou cada um ao saírem (Kriege ainda de cara feia e vermelho de raiva, Elissa com um sorrisinho de triunfo, Caelor sempre circunspecto e pensativo).
— Também devo me retirar — disse ca’Damont, fazendo uma reverência para Brie e Jan, e se dirigiu ao hïrzg. — Eu mandarei meu escriba preparar um relatório completo para o senhor hoje à tarde. E verei o que o embaixador ca’Rudka tem a dizer quando chegar. Tenho certeza de que ele receberá a notícia a caminho daqui. Hïrzg, hïrzgin...
O starkkapitän fez uma mesura e se ausentou. Quando as portas da câmara se fecharam, Brie foi até Jan, o abraçou novamente e ergueu a cabeça para ser beijada. Ela recuou um pouco nos braços dele e puxou o colarinho da camisa.
— Você vai usar isto na cerimônia?
— Estou considerando, sim. É confortável.
— Mas você fica tão bonito naquela sua camisa vermelha nova.
Jan sorriu para Brie.
— Então talvez eu mude para a vermelha, só para lhe agradar.
Ela o beijou novamente.
— Armen não teve problemas em Il Trebbio?
— Menos do que eu esperava, na verdade.
Brie assentiu, encostando a cabeça no ombro dele.
— As crianças nunca viram a mamatarh, Jan. Eles apenas a veem como aquela mulher horrível de Nessântico que às vezes envia presentes. Eu acho que você devia considerar o que Sergei quer oferecer por ela.
— Ela é a responsável pelo afastamento — respondeu Jan. — E Rance concorda que não deve haver acordo algum com os Domínios. Se ela queria paz, não deveria ter apoiado Stor ca’Vikej na Magyaria Ocidental e não deveria ter permitido que o filho dele andasse à vontade pela corte dos Domínios. Ela fez a fama, agora que se deite na cama; se achou desconfortável, bem, ela é a única responsável.
— Eu sei — sussurrou Brie. — Eu sei. Mas ainda assim... As crianças devem conhecer seus parentes, e não considerá-los inimigos.
— Então que ela abra mão completamente do Trono do Sol, em vez de deixar que Sergei proponha essa tolice de me nomear a’kralji.
— Você a colocou no trono, meu amor.
A censura não tinha sido tão dura quanto poderia, e Brie tocou o rosto dele delicadamente para abrandá-la.
— Eu sei, você fez o que achou que era certo na ocasião.
— Eu era jovem e tolo — disse Jan, que abriu os braços e soltou Brie. — Não quero falar sobre isso, não agora.
Ele pegou a mão da esposa e a beijou.
— Deixe-me mandar os camareiros encontrar esta camisa vermelha que você gosta tanto, e iremos ao templo fazer nossa aparição...
Jan ouviu um suspiro contido, mas Brie sorriu para o marido, passou a mão em seu peito e parou exatamente no cinto.
— Não os chame ainda — disse Brie, que ficou na ponta dos pés para beijá-lo, enquanto deixava a mão onde estava. — Ainda há tempo, não, amor?
Ele riu.
— Quanto tempo quisermos. Eles não podem começar sem nós, não é?
Jan beijou Brie novamente, com mais urgência. Ele sentiu o corpo da esposa ceder ao dele, e isso espantou todos os outros pensamentos, por um instante.
Rochelle Botelli
A cerimônia começou tarde, uma vez que a comitiva real chegou atrasada ao templo. Rochelle, em meio à confusão de pessoas comuns, sem status, encontrou alívio no abrigo de uma das meias colunas do interior, na parede dos fundos, encostando-se ali com os olhos semicerrados, com as narinas queimando com o fedor de incenso e os ouvidos cheios do cântico das preces e da cantoria do coro. Ela ouviu os ca’ e co’ sentados ficarem de pé quando as trompas soaram seu chamado lamentoso do domo do templo e as grandes portas principais se abrirem para dar passagem ao hïrzg e sua família. A luz radiante do sol entrou na escuridão parcial do templo. Rochelle abriu totalmente os olhos e subiu na base da meia coluna, para olhar sobre as cabeças da congregação.
A procissão era liderada pelo archigos Karrol e vários o’ténis, envoltos pela bruma de fumaça aromática dos incensórios, com quatro ténis-luminosos cantando e levando lanternas com chamas amarelas ainda mais intensas que o sol. O archigos andava devagar, com um o’téni de cada lado, caso ele tropeçasse — Karrol tinha mais de sete décadas de idade, e embora ainda tivesse a mente afiada de sempre, nos últimos anos sua saúde física começara a declinar, e seus assistentes estavam sempre atentos quando ele subia degraus e escadas, ou quando, como hoje, o ritual exigia que o archigos andasse uma distância considerável, embora ele se apoiasse no cajado do archigos que levava na mão direita, com o globo cravejado e partido de Cénzi na ponta. Karrol vestia um robe verde enfeitado com fio dourado, os desenhos reluziam na claridade que o banhava, o longo cabelo branco parecia brilhar sob a coroa pontiaguda. Ele ergueu sua mão livre para saudar a multidão, e a boca curvou-se em um sorriso sob a barba.
O starkkapitän Armen ca’Damont e sua família vieram a seguir, seguidos dos integrantes do Conselho dos Ca’ com suas famílias. Rochelle ficou na ponta dos pés para ver melhor Jan quando ele entrou. Ela lembrava-se da matarh — nos momentos cada vez mais raros de lucidez antes que fosse completamente dominada pelas vozes em sua cabeça — falando de Jan, dizendo que ele era bonito, o jeito que a abraçava, a promessa de que a amaria para sempre.
Que Jan era seu vatarh.
A matarh de Rochelle amou Jan até a morte, assim como odiou a kraljica Allesandra por ter separado os dois.
Rochelle já tinha visto quadros do hïrzg e olhado fixamente para a imagem, à procura de alguma semelhança com as feições que ela via quando se olhava em metal escovado ou água parada. Talvez o nariz fino e comprido? Ou as maçãs do rosto acentuadas? A pele, mais escura e facilmente bronzeada no sol; será que indicava as Magyarias e o sul, onde o hïrzg nasceu? Será que esses traços tinham vindo do vatarh de Rochelle, ou da vavatarh?
Ela nunca o vira assim tão perto, ao vivo — a uma distância tão curta quando Jan entrou no tempo. Rochelle espiou ansiosamente na direção do hïrzg.
Ele era bonito: tinha uma barba fina e escura que envolvia sua mandíbula firme, um nariz fino e comprido (sim, parecido com o dela), uma pele tão escura que se destacava entre os firenzcianos no templo; olhos escuros e intensos; cabelo cacheado e tão escuro que era quase preto, embora o sol revelasse mechas vermelhas e cor de bronze.
Parecia com o cabelo dela. Como o rosto que Rochelle às vezes via devolvendo o olhar.
Sim, ele podia ser mesmo seu vatarh. As histórias que sua matarh lhe contara podiam ser verdade. Rochelle ficou aflita quando o hïrzg olhou em volta, quando seu olhar passou momentaneamente por ela. Ela ergueu a mão; e ele pareceu acenar ligeiramente com a cabeça para ela.
Ao lado dele estava a hïrzgin Brie. Rochelle viu a mão de Jan tocar sua cintura ao se aproximar e cochichar alguma coisa em seu ouvido. A hïrzgin riu, e Rochelle viu o carinho nos olhos da mulher ao encarar o marido. O vatarh de Rochelle. E atrás...
Atrás deles estavam os filhos. Rochelle sabia seus nomes; todo mundo em Firenzcia sabia. Ela olhou fixamente para as crianças, seus meios-irmãos. Sentiu vontade de chamá-los. “Eu deveria estar ali, com ele”, dissera sua matarh, “com você como a filha mais velha, aquela que Jan mimaria, que sempre faria com que ele desse aquele sorriso. Jan tinha um sorriso tão maravilhoso...”.
Rochelle sorriu para Jan, mas ele não estava mais olhando na sua direção, ele agora havia passado por ela, percorrendo a passos largos a nave do templo em direção ao coro, onde o archigos Karrol o esperava. O hïrzg cumprimentou os ca’ e co’ nos bancos voltados para a frente.
Rochelle imaginou-se andando com ele. Imaginou-se recebendo uma onda de aplausos. Imaginou que Jan desmanchava seu cabelo em vez do de Elissa.
“Esse era o meu nome: quando o conheci, quando éramos amantes. Era o nome que eu usava na época — Elissa. Ele batizou sua primogênita em minha homenagem. Ele...”.
A família — a família que poderia, que deveria ter sido dela — estava distante agora, entrava nos assentos vazios diante do Alto Púlpito em frente ao templo, sob o domo e as figuras pintadas que olhavam para a assembleia lá do alto, em seus afrescos. Os e’ténis no fundo do templo entoavam cânticos, a energia do Ilmodo fechou as enormes portas de bronze, e Rochelle deixou-se cair do poleiro para o chão. Andando agilmente e em silêncio, ela saiu de mansinho antes que as portas se fechassem.
Rochelle entrou correndo nas zonas mais antigas e pobres da cidade, onde morava. Este era outro conselho da matarh: “Viver entre os ricos deixa a pessoa visível demais. Este foi o erro que cometi com seu vatarh...”. Ela ouviu as trompas do templo soarem a Segunda Chamada e a bênção do Dia do Retorno ao entrar cada vez mais nas vielas estreitas e tortuosas que se enrolavam em torno dos morros de Brezno, com pressa porque estava atrasada para um compromisso.
Alguém queria contratar a Pedra Branca: Josef co’Kella, pertencente a uma família em ascensão que parecia estar envolvida em vários negócios na cidade. Rochelle imaginou que desculpa o homem teria usado para evitar sua presença no templo na manhã de hoje.
Ele já deveria estar esperando do lado de fora da Faísca Azul, uma taverna na alameda Reta — um nome apropriado, pois subia em linha reta pela encosta íngreme do morro Hïrzgai, que abrigava as ruínas do primeiro palácio, queimado e abandonado há três séculos. A Faísca Azul ficava localizada no meio da subida do morro; Rochelle tinha escolhido o lugar porque podia chegar tanto por cima quanto por baixo da alameda, o que lhe dava uma visão de onde era possível determinar se era seguro se aproximar ou se ela deveria passar pela taverna; na última semana, desde que cumprira o contrato com o goltschlager ci’Braun, os utilinos e a Garde Brezno vinham fazendo perguntas e incursões estranhas, prendendo determinadas mulheres pela cidade: mulheres que quase sempre tinham praticamente a mesma idade que sua matarh teria se estivesse viva, mulheres que tinham a mesma compleição física da sua matarh. Era óbvio para Rochelle que eles estavam caçando a Pedra Branca. Era possível que co’Kella fosse a isca de uma armadilha para capturá-la.
Ela se perguntou, mais uma vez, se deveria sequer se encontrar com o homem, mesmo que ele não fosse nada além de um cliente em potencial. O sujeito era um co’, o que significava que Rochelle podia cobrar caro pelo serviço, mas sua matarh a tinha alertado havia muito tempo de que a Pedra Branca deveria cumprir dois, no máximo três, contratos na mesma cidade antes de se mudar. Ela queria ficar em Brezno, agora que tinha visto Jan. Queria saber mais a respeito dele, queria conhecê-lo melhor. Queria encontrá-lo. Seria melhor deixar a Pedra Branca de lado; Rochelle tinha moedas suficientes na bolsa.
Mas a verdade é que ela não queria deixá-la de lado. Era empolgante ser a Pedra Branca, caçar e, consequentemente, matar.
Mais um contrato. Só isso.
Rochelle já tinha visto co’Kella, usando — como ordenado — uma bashta vermelha e um chapéu com uma pena azul. Ele parecia pouco à vontade, observando a todos que passavam enquanto entrava e saía da porta da taverna. Rochelle olhou para ambos os lados da rua; nenhum utilino, nem gardai da Garde Brezno; não havia ninguém por perto fingindo estar fazendo qualquer outra coisa em um lugar onde pudesse vigiar facilmente o homem. O que não significava que não havia gardai escondidos nos prédios nos arredores à espreita, mas até o momento tudo parecia seguro e normal. Ela continuou andando na direção do homem, sem olhar para ele deliberadamente enquanto se aproximava, fingindo estar interessada nas mercadorias das vitrines. Em sua visão periférica, Rochelle notou que co’Kella a examinava com o olhar, afastando o rosto em seguida. Ela passou pelo sujeito e colocou a mão no cabo da faca sob o manto.
— Venha comigo, vajiki co’Kella — sussurrou Rochelle ao passar por ele.
Ela continuou subindo a alameda, lentamente. O homem ficou visivelmente espantado. Em seguida, se moveu e se virou para caminhar ao lado de Rochelle.
— Você é...?
— Eu sou quem você esperava — respondeu ela.
Rochelle olhou para trás: ninguém surgiu dos prédios em volta; nenhum utilino deu um apito de alerta; nenhum esquadrão da Garde Brezno apareceu. Ela relaxou um pouco, embora continuasse a espiar para ver se os dois estavam sendo seguidos — havia um grande emaranhado de travessas que afluíam da alameda Reta, Rochelle pensou que poderia despistar possíveis perseguidores ali, se precisasse. Ela manteve a mão no cabo da faca, caso o próprio co’Kella tentasse atacá-la, mas as mãos do homem estavam visíveis e ele não parecia ter uma espada.
— Qual o seu nome? — perguntou co’Kella.
Rochelle riu.
— Você não precisa saber meu nome, vajiki. Não estamos fazendo negócio, e mesmo que estivéssemos, este é um negócio do tipo que dispensa nomes. Já basta que eu saiba o seu, e não é comigo, afinal de contas, que você quer conversar.
— Então você não é... Claro que não, é tão jovem...
— Não, eu não sou a pessoa que você quer contratar — respondeu ela em tom firme. — Eu sei como entrar em contato com ela, se é isso o que você quer saber. E isso é tudo. Mas nem mesmo eu sei dizer qual a sua aparência ou quem ela é.
Co’Kella parou. Rochelle virou a cabeça para olhar para ele.
— Continue andando, vajiki, a não ser que tenha mudado de ideia.
O homem pareceu sentir um calafrio, depois deu um passo para acompanhá-la novamente.
— Ótimo — disse ela. — Então me diga, quem é a pessoa?
— Quem é a pessoa? — perguntou co’Kella estupidamente, estremecendo novamente. — Ah, isso. Eu preferia não dizer. Apenas para... a pessoa com quem você entrará em contato por mim.
Os dois chegaram a uma das transversais. Rochelle parou.
— Então estamos conversados. Bom dia, vajiki.
Ela começou a virar para a esquerda, se afastando da alameda.
— Não, espere! — berrou co’Kella quando Rochelle deu as costas.
Ela parou e se permitiu abrir um sorriso. Tão típico. Rochelle voltou a subir a alameda, sem dizer nada, e co’Kella a seguiu apressadamente, próximo ao seu cotovelo.
— Eu... eu digo para você. É Rance ci’Lawli.
Ela não conseguiu conter totalmente a surpresa em sua voz.
— Ci’Lawli? O assistente-chefe do hïrzg?
Ele assentiu.
— O próprio.
Você não devia fazer isso. Matar alguém tão próximo ao hïrzg. Ainda assim... seria preciso estar perto ou dentro do palácio, onde teria que estar perto de seu vatarh e da família dele... Rochelle sentiu um pulsar dentro de si, que a fez queimar com um anseio louco que ela não sabia definir.
— Por que ci’Lawli?
Ele torceu o nariz.
— Como você disse, vajica, não há necessidade de nomes, nem de histórias aqui. Eu contarei à Pe... — Ele se interrompeu. — À pessoa que você conhece, se ela se importar.
Rochelle deu de ombros.
— Como queira.
Ela pegou o braço de co’Kella, como se fossem dois namorados passeando pela alameda, e puxou o homem para si. Rochelle sussurrou em seu ouvido: um local, um dia e o valor em solas de ouro.
Co’Kella se afastou dela.
— Tanto assim?
— Tanto assim — ela respondeu. — Esteja lá com as solas se estiver interessado, vajiki, e você a encontrará.
Varina ca’Pallo
Ela sabia que não devia ter feito isso, sabia que Sergei ficaria irritado quando descobrisse — e sabia que ele descobriria. Mas ela esperava que fosse mais tarde, quando fosse tarde demais.
Um dos gardai designados para proteger Varina, a pedido de Sergei, tinha deixado escapar o endereço da casa, no Velho Distrito, que tinha sido invadida pela Garde Kralji. Ela se certificou de que seus compromissos no dia seguinte a fizessem passar pela casa e pediu para o condutor da carruagem parar. O garda (que não era o mesmo que lhe dera o endereço) parecia preocupado quando Varina abriu a porta da carruagem e desceu.
— Vajica ca’Pallo, eu não aconselharia...
— Então não aconselhe — ela interrompeu.
O garda ergueu as sobrancelhas. A reação à reprimenda poderia ter agradado outra pessoa, mas apenas fez Varina se sentir culpada. Ainda assim, ela continuou tentando abrandar o tom.
— Eu só quero ver o lugar onde os morellis moravam. Só dar uma olhada; você pode vir comigo, se quiser.
— O comandante vai pedir a minha cabeça por isso.
— Eu direi ao comandante que não lhe dei escolha.
O garda não pareceu convencido, mas conduziu Varina até a porta da casa. Ela deixou que ele entrasse primeiro. Teve a impressão de que podia sentir olhos os vigiando, os encarando de algum lugar. Sem tentar ocultar o gesto, Varina tirou uma pequena caixa de dentro do manto; entalhada finamente em carvalho envernizado, um trabalho primoroso, a obra de um mestre. Ela pousou a caixa no peitoril da janela mais próxima da porta, sentindo o frio do Scáth Cumhacht agarrado à madeira. Em seguida, rapidamente, seguiu o garda e entrou na casa.
Varina passou pouco tempo ali, já que o que viera fazer já tinha sido feito. Ainda assim, tentou imaginar Nico ali, sua voz e a presença nos cômodos, ou dormindo em uma das camas. Havia ícones religiosos da fé concénziana por todos os lugares da casa, e alguém com algum talento artístico havia pintado o globo partido de Cénzi na parede lateral de um dos quartos, enquanto que na parede oposta as formas demoníacas dos semideuses, os moitidi, paródias distorcidas e deformadas da humanidade, a espreitavam. Varina sentiu um arrepio ao olhar para eles, imaginando como alguém poderia dormir ali, sob esses olhares perversos, sorrisos cruéis e as mãos em forma de garras dos moitidi. Até mesmo o garda balançou a cabeça ao olhar para eles.
— Eles têm uma visão estranha da Fé, esses morellis — comentou o homem.
Os dedos do garda seguravam o cabo da espada com firmeza, como se estivesse com medo de que uma das figuras pintadas pulasse em cima dele.
— Dizem que o archigos Karrol nutre alguma simpatia por eles, embora eu jure que não entendo.
— Eu também não. Não consigo imaginar que o Nico que conheci... — Varina se interrompeu. — Estou pronta para ir.
— Ótimo — respondeu o garda, um pouco rápido demais. — Essa pintura me dá calafrios. É uma coisa feia.
Eles saíram depressa, e o garda fechou a porta atrás deles. Varina se posicionou cuidadosamente entre o homem e o peitoril da janela onde a caixa estava pousada, para garantir que ele não a visse. O condutor da carruagem era de seu corpo de funcionários; ele não diria nada.
O garda abriu a porta da carruagem para ela; Varina entrou, o garda fechou a porta e subiu para o assento ao lado do condutor. A pequena portinhola acima de sua cabeça foi erguida, e Varina viu o rosto do condutor voltado para ela, lá de cima.
— Para casa — ordenou Varina.
O homem assentiu e fechou a portinhola novamente. A carruagem entrou em movimento com um tranco.
Varina olhou para fora quando o veículo partiu. Ela podia ver a caixa no peitoril e o brilho da madeira dourada sob o sol vespertino.
— A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você. — Essas foram as primeiras palavras que ele disse para Varina, sorrindo para ela.
Em sua mente, Nico continuava a ser, de certa forma, a criança que Varina conheceu. Sim, ela sabia que o menino tinha entrado na idade adulta aos 15 anos. Varina tinha acompanhado sua carreira desde que ele reapareceu, de maneira inesperada e repentina, como um téni em ascensão no Templo do Archigos em Brezno, um acólito cuja habilidade com o Ilmodo, cujo carisma e força da personalidade impressionavam a todos que o conheciam. Ela — assim como Karl — tinham tentado entrar em contato com Nico, através de cartas enviadas por meio de Sergei em suas viagens frequentes a Brezno, mas estas seguiram sem resposta. Sergei conseguira falar com ele lá, mas Nico tinha deixado claro que não tinha interesse em entrar em contato nem com Karl, nem com Varina.
— Ele disse assim — falou Sergei ao voltar. — “Diga aos dois hereges que eles são um anátema para mim. Eles ridicularizam Cénzi e, portanto, me ridicularizam. Diga a eles que, quando eles virem os erros em suas convicções, então talvez nós tenhamos alguma coisa a dizer uns aos outros. Até lá, eles estão mortos para mim, tão mortos como se já estivessem em seus túmulos, com suas almas se contorcendo com o tormento dos retalhadores de almas.” E aí ele riu, como se achasse graça na ideia.
Apesar da decepção, Varina continuou a acompanhar a carreira de Nico. Ficara preocupada quando ele e seus seguidores desafiaram diretamente a autoridade do archigos, fazendo com que Nico perdesse o título de téni e fosse proibido de usar o Ilmodo para sempre, sob risco de perder as mãos e a língua.
Então Nico foi embora de Brezno, perambulando por algum tempo e continuando a pregar sua interpretação ortodoxa do Toustour e da Divolonté — os textos sagrados da fé concénziana — até, finalmente, chegar a Nessântico. Agora ele estava perante Varina, e ela ainda podia ver o rosto redondo do menino no semblante barbado, fino e devoto diante de si, com seu olhar forte e intenso.
“A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você.” Em todos esses anos, durante todo esse tempo, foi assim que ele começou. Varina sentiu o peso da chispeira na bolsa presa ao cinto.
— Por que eles ficariam desapontados? — perguntou ela.
Varina gesticulou na taverna do Velho Distrito onde os dois se sentavam. Em volta deles, os clientes conversavam entre si e bebiam. Um grupo de músicos afinava os instrumento em um canto. O barulho emprestava privacidade aos dois na cabine. Nico estava sentado de frente para ela, com as mãos entrelaçadas sobre a superfície arranhada da mesa de madeira rústica entre os dois, quase como se estivesse rezando. Ele vestia preto, o que fazia seu rosto pálido parecer quase espectral em comparação, mesmo com a luz fraca da taverna e da única vela na mesa.
— Por que não há nenhum gardai aqui para prendê-lo? — indagou ela. — Você acha que eu te odeio tanto assim, Nico? Eu não odeio. De maneira alguma. Nem Karl odiava.
— Então por que o esquema elaborado? — perguntou Nico. — Deixar uma caixa encantada... Devo admitir que foi inteligente e certamente chamou minha atenção, embora meu amigo Ancel não tinha dado atenção ao aviso de não abri-la. Ele me disse que pensou que suas mãos fossem empolar, e que a madeira ficara muito quente.
Nico meneou a cabeça, estalando a língua como se estivesse repreendendo uma criança.
— Você realmente deveria ser mais cuidadosa com a dádiva que Cénzi lhe deu, Varina.
Ela respirou fundo.
— Você matou pessoas, Nico. Meus amigos e colegas. Karl já estava morto; você não podia mais machucá-lo. Mas os outros... eles eram pessoas, com maridos, esposas e filhos. E você tirou a vida deles.
— Ah, isso. — Ele franziu a testa momentaneamente. — Está escrito no Toustour: “... se lutarem contra você, mate-os; esta é a recompensa dos incrédulos. Lute com eles até que não haja perseguição, e até que a única religião seja a de Cénzi”. Sinto muito pelo sofrimento que causei às famílias dos que morreram. Sinto muito, de verdade, eu rezei para Cénzi por eles.
As desculpas de Nico pareceram genuinamente sinceras, e lágrimas nascentes brilharam na base de seus olhos. Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, como se estivesse escutando uma voz invisível vinda do alto. Então seu queixo se abaixou novamente, e quando ele abriu os olhos, eles estavam secos.
— Mas, se eu sinto que alguns numetodos tenham sido mortos para serem julgados por Cénzi por sua heresia? Não, não sinto.
— O Toustour também diz: “... ó, seres humanos! Nós os criamos e dividimos em nações e tribos para que vocês conheçam uns aos outros, não para que se desprezem”.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso.
— Eu não esperava que uma numetoda citasse um texto no qual ela não acredita.
— Eu acredito, como qualquer numetodo, que o conhecimento é o que levará à compreensão. Isso inclui conhecer aqueles que lhe consideram um inimigo e entender o que eles acreditam e por que acreditam. Eu li o Toustour inteiro, e a Divolonté também, e tive conversas longas e interessantes com a archigos Ana, com o archigos Kenne e com a a’téni ca’Paim.
— Você leu o Toustour, mas evidentemente não conseguiu enxergar a verdade no texto.
— Qualquer um pode escrever um livro. Eu sou uma numetoda. Preciso de provas. Preciso de provas irrefutáveis. Eu preciso ver hipóteses testadas e resultados repetidos. Só então posso me permitir acreditar. — Varina suspirou. — Mas nenhum de nós vai conseguir convencer o outro, não é?
— Não. — Ele abriu as mãos, com as palmas para cima, sobre a mesa. — Embora eu deva admitir que vocês, numetodos, podem ser úteis ocasionalmente: a areia negra dos tehuantinos, por exemplo. É um tanto quanto irônico, se você pensar a respeito: se eu e minha gente tivéssemos permissão para usar o Ilmodo, então não teríamos precisado usar a areia negra, e seus amigos provavelmente ainda estariam vivos. O Ilmodo, pelo menos, pode ser uma arma precisa.
Varina ficou vermelha, e sua mão acariciou o cabo da chispeira carregada e engatilhada na bolsa do cinto.
— Então por que eu estou aqui, Varina — continuou ele —, se você não está planejando me entregar para a Garde Kralji e me jogar na Bastida?
— Eu queria vê-lo novamente, Nico — respondeu ela.
O dedo de Varina envolveu o guarda-mato de metal do gatilho.
— Eu queria ouvi-lo — a língua de metal frio no dedo se aqueceu com o toque — porque eu preciso saber...
Só um puxão do músculo. É o que basta.
— ... se eu sou o monstro que a Fé pinta? — concluiu Nico para Varina.
Seria tão fácil: embaixo da mesa, retirar a chispeira sorrateiramente e apontar o cano de metal na direção de Nico; puxar o mecanismo do gatilho para girar a engrenagem e soltar faíscas que tocariam a areia negra no tambor fechado. Um instante depois e... Os buracos na armadura; o que isto faria com um corpo desprotegido?
— Ninguém pensa em si mesmo como um monstro — Nico dizia. — Alguns podem julgar o ato de uma pessoa como maldade, mas essas pessoas pensam que estão fazendo o que é necessário para corrigir o que consideram pecado. Eu não sou diferente. Não, eu não sou um monstro.
Ele sorriu para Varina, e seu rosto e olhos ficaram radiantes, de uma maneira que fez com que ela se lembrasse do antigo Nico, da criança.
— Nem você é, Varina. Não importa o que possa estar pensando em fazer comigo.
Seu dedo recuou. Ela tirou a mão da bolsa.
— Nico...
— Varina — ele disse antes que ela pudesse organizar seus pensamentos caóticos —, você fez o que achou melhor para mim durante o Saque de Nessântico. Eu reconheço isso e sempre lhe serei grato por seus esforços, mesmo que você não saiba que estava seguindo a vontade de Cénzi. Quando rezo para Cénzi, peço a Ele perdão por você e Karl. Rezo para que Cénzi levante a cegueira dos seus olhos para que você possa enxergar Sua glória e ir até Ele.
Nico saiu da cabine e parou ao lado dela. Tocou no ombro de Varina levemente e recolheu a mão. Seus olhos estavam tomados por uma tristeza serena.
— Estamos em lados opostos nesta situação. Eu não queria que fosse assim, mas é. Infelizmente, não pode haver reconciliação entre nós. Pelo que você fez, eu sempre te amarei. Porque você também é uma criação de Cénzi, eu sempre te amarei. E por causa do caminho que você escolheu, eu sempre serei seu inimigo.
A tristeza no rosto de Nico aumentou.
— E é bem mais fácil odiar um inimigo desconhecido do que um conhecido. Portanto, adeus, Varina.
Nico fez, sem nenhuma ironia aparente, o sinal de Cénzi e virou-lhe as costas. O cão raivoso... Eu podia detê-lo agora. Ela cerrou o punho direito; tentou ouvir a voz de Karl, mas não ouviu nada. Nico começou a se afastar devagar.
É agora, ou será tarde demais...
Varina permaneceu imóvel na cadeira, olhando fixamente para o tecido preto nas costas de Nico conforme ele caminhava entre os clientes da taverna até a porta.
Nico abriu a porta e saiu. De algum lugar na rua, ela ouviu um cachorro latindo. Parecia debochar de Varina.
CONTINUA
ENCARNAÇÕES
Nico Morel
Varina ca’Pallo
Allesandra ca’Vörl
Niente
Sergei ca’Rudka
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Nico Morel
A explosão da areia negra foi mais poderosa e atordoante do que Nico tinha esperado.
A concussão atingiu seu peito como o punho de Cénzi. Ela agitou os trapos do boneco golpeando a cabeça de papier mâché com tanta força que nenhum deles conseguiu segurá-la no lugar. O boneco desmoronou enquanto as pessoas gritavam e pedaços do esquife funerário do embaixador começaram a cair em volta delas.
— Vão embora! — berrou Nico para seus seguidores. — Espalhem-se! Rápido!
A multidão já fugia; os gardai estavam confusos e atordoados. Os morellis evaporaram na multidão e sumiram em poucos instantes. Nico esperou alguns segundos, encarando a destruição. Havia várias pessoas caídas, a maioria numetodos que estavam em volta do esquife — ele não sentia compaixão alguma pelas mortes e ferimentos sofridos por eles. Ainda assim, alguns espectadores tinham sido feridos pelos estilhaços.
— Sinto muito — Nico sussurrou para um deles, uma mulher com um corte na têmpora que sangrava bastante. — Ninguém tinha a intenção de machucá-la. Cénzi lhe abençoará pelo sangue derramado hoje aqui e por sua dor.
Ele sentiu Liana puxar sua manga.
— Temos que ir — disse ela com urgência.
Nico ergueu os olhos. O embaixador ca’Rudka estava se levantando desajeitadamente da estrutura retorcida da carruagem que seguia o esquife; a espora herege de ca’Pallo, Varina, já tinha saído e observava horrorizada a destruição do esquife. Os cavalos que puxavam a carruagem da kraljica dispararam, e o condutor tentava detê-los mais abaixo no pátio, com gardai correndo atrás deles. A explosão derrubou o condutor da a’téni do assento e encerrou seu cântico; sua carruagem estava intacta e intocada, bem atrás do resto.
Nico sorriu ao ver isso — ele não queria que a a’téni ca’Paim se ferisse.
Onde estivera deitado o corpo de Karl, havia um buraco negro nos paralelepípedos, com estilhaços espalhados por todo lado, a uma dezena de passos de distância.
— Obrigado, Cénzi — ele rezou, fazendo o sinal rapidamente. — Obrigado por me permitir fazer a Sua vontade.
Ele se perguntou se Varina perceberia a ironia em usar a areia negra — uma invenção dos hereges ocidentais, recriada por Karl e Varina — contra eles.
Nico meneou a cabeça quando Liana puxou sua manga novamente. Ela segurava sua barriga inchada.
— Você está bem? — ele perguntou, subitamente preocupado que Liana estivesse ferida.
— Eu estou bem, mas você precisa ir embora. Agora!
Nico meneou a cabeça negativamente.
— Vá em frente — disse calmamente, em voz baixa. — Eu encontro você na casa.
Liana hesitou, e Nico acenou com a mão para ela.
— Vá! — repetiu ele.
Dessa vez, Liana obedeceu e foi embora correndo desajeitadamente por causa da gravidez avançada.
Nico voltou-se para o caos. Ele observou os gardai por detrás da cobertura de pessoas que também ficaram para trás, hipnotizadas pela visão de toda a destruição. Ele ouviu o Velho Nariz de Prata berrar enquanto tentava organizar o resgate. Mal conseguia conter a alegria que sentia, embora tentasse, pois esse era apenas seu orgulho tolo repuxando os cantos de sua boca. Finalmente, ele se afastou lenta e calmamente, em paz — como se tivesse saído para uma simples caminhada matinal.
Eles só conseguiriam pegá-lo se esta fosse a vontade de Cénzi, e se Ele assim o desejasse, então Nico se conformaria com Sua decisão. Cénzi estava acima da autoridade da kraljica ou do archigos. Sozinhos, os dois não podiam fazer nada contra Nico.
Portanto, Nico se afastou sem pressa, com uma expressão solene no rosto. Cénzi o segurava em Suas mãos protetoras.
Quando ele chegou ao esconderijo que os morellis tinham estabelecido no Velho Distrito, uma virada da ampulheta ou mais depois, Nico encontrou uma comemoração em curso. Ancel deu um tapa em seus ombros; Liana o abraçou desesperadamente enquanto os demais reunidos no ambiente gritavam e sorriam.
— Um punhado deles mortos, é o que dizem os rumores — comentou Ancel. — E o corpo do degenerado do ca’Pallo espalhado em pedaços pelo pátio do templo para os ténis limparem; isso ensinará a a’téni a agradar aos hereges. Que pena que a explosão poupou a esposa de ca’Pallo e o Velho Nariz de Prata.
Estranhamente, a alegria no rosto de Ancel azedou o bom humor de Nico. Ele olhou para seus seguidores, para o prazer que sentiam, e Cénzi manifestou-se em Nico. Ele franziu a testa, sua expressão ficou séria.
— Por que estão rindo? Por que que estão sorrindo? — perguntou Nico para eles.
O desprezo em sua voz calou a comemoração na boca de todos. A sala ficou rapidamente silenciosa. Liana soltou Nico; Ancel deu um passo para trás, com o rosto subitamente abatido.
— Sinto muito, Absoluto — disse Ancel ao abrir os braços em um gesto de desculpas. — Nós não fizemos o que Cénzi pediu?
— Fizemos — respondeu Nico. — E só tivemos êxito porque temos as mãos de Cénzi sobre nós. Será que devemos comemorar isso? Sim, mandamos vários hereges para Ele julgar, mas tiramos matarhs e vatarhs de crianças, destruímos suas famílias. Levamos sofrimento àqueles próximos aos hereges, e muitos deles não eram nossos inimigos. Muitos eram fiéis. Devemos ficar contentes por tê-los prejudicado, por ter-lhes causado sofrimento?
— Eu não pensei... — Ancel começou a dizer, mas foi interrompido por um gesto de Nico.
— Não, você não pensou. Nenhum de vocês pensou. Nem mesmo eu. — Ele respirou fundo e sentiu as palavras de Cénzi preencherem sua mente. — Estamos falando de vidas. Estamos falando de pessoas que são pouco diferentes de nós. Sim, são hereges. Sim, eles envenenam os Domínios e a fé concénziana com sua presença. Sim, são nossos inimigos. Mas são pessoas, apesar de tudo, e quando lhes causamos sofrimento, trazemos sofrimento para nós mesmos, ao mesmo tempo.
Nico sentiu lágrimas quentes brotando de seus olhos, e não se importou que escorressem por seu rosto sob os olhares de seus discípulos.
— Eu não lamento uma xícara quebrada. Eu não sofro se a tira da minha sandália se parte. Mas eu choro sim pelos numetodos. Choro porque eles não conseguiram enxergar a verdade. Choro porque não pude convencê-los a seguir a verdade. Choro por que me foi dada a tarefa de ser seu executor. Choro porque me dói ver o desperdício de seu grande potencial.
Ele, então, sentiu-se enlevado por Cénzi, e enxugou as lágrimas de olhos com sua manga enquanto a raiva ia embora.
— Ancel, desculpe-me. Não estou com raiva de você. Não estou. Você é meu braço direito e agiu bem hoje. Todos vocês agiram, e devemos ficar contentes por termos conseguido demonstrar o poder de Cénzi para aqueles que controlam os Domínios e a Fé. Fomos bons servos hoje. Mas é nosso dever sermos sempre bons servos, estarmos prontos para agir quando o Mestre nos chamar para fazer a Sua vontade, independentemente do que Ele nos peça.
Nico abriu os braços, deu um passo na direção de Ancel e o abraçou. Ele beijou a bochecha do homem.
— Você sabe disso. Sei que você sabe, e não cabia a mim repreendê-lo. Você me perdoa, meu amigo?
Ancel fez uma careta e soltou um suspiro pelo nariz. Ele assentiu, e Nico agarrou sua cabeça e beijou sua testa. Ele deu um tapinha nas costas do homem. Sorriu para todos os discípulos. Liana abraçou Nico novamente, pressionando sua barriga e seu filho contra a barriga dele.
— Todos nós agimos bem hoje — Nico disse para eles, seu olhar pairou sobre as pessoas reunidas na sala. — Vocês todos são abençoados.
Varina ca’Pallo
Seus ouvidos zumbiam, Varina mal podia ouvir as vozes que se dirigiam a ela através do retinir. Isso, ao menos, já era um progresso: imediatamente após a explosão, ela se viu inteiramente surda. Varina tinha sido levada para o prédio mais próximo — um dos edifícios de administração dos Domínios que dominavam a Ilha a’Kralji. Foram enviados curandeiros; gardai entravam e saíam fazendo perguntas a ela e Sergei. Até o comandante co’Ingres veio visitá-la, e as notícias que ele trouxe eram péssimas. A kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim estavam abaladas, mas ilesas, porém, dos doze numetodos que acompanhavam o esquife de Karl — todos amigos, a maioria integrantes de longa data do grupo —, cinco morreram e mais três estavam gravemente feridos. Mesmo que sobrevivessem, eles ficariam com sequelas do dia de hoje pelo resto de suas vidas.
Varina chorou por eles mais do que chorou por Karl, que estava além do sofrimento.
Talbot estava entre os numetodos que acompanhavam o esquife; felizmente, seus ferimentos tinham sido leves.
Varina franziu a testa para se concentrar em Sergei, que se debruçava sobre ela de forma solícita. Varina pôde notar seu reflexo distorcido no nariz de prata; seu rosto estava arranhado, uma longa linha de sangue seco cortava sua testa, e em sua bochecha direita havia uma mancha escura de um hematoma inchado.
— A surdez deve ser temporária, me disseram os curandeiros — dizia Sergei.
Ela teve que se concentrar nos lábios do embaixador para compreendê-lo.
— É uma boa notícia para nós dois; minha audição já sofreu o bastante nesses últimos anos. Também me disseram que nenhum dos seus ferimentos deve ser grave, embora você vá ficar dolorida por vários dias. Não parece que tenha ossos quebrados, embora você deva avisá-los caso sinta alguma dor interna aguda ou caso os cortes comecem a ficar vermelhos ou podres.
— Foi Nico quem fez isso? — ela perguntou.
Sergei fez uma careta.
— Sim. Ele e os morellis. Um dos gardai jura ter visto Nico no grupo que conduzia o boneco.
— Por que ele faria isso? Karl e eu nunca... nunca...
Varina mordeu o lábio inferior, e as lágrimas ameaçaram surgir novamente à menção do nome dele.
— Com sorte, você terá a oportunidade de perguntar ao homem em pessoa, quando o encontrarmos — falou Sergei. — E eles o encontrarão. Eu já disse ao comandante co’Ingres que coordenarei pessoalmente a busca por Morel caso ele não tenha sido capturado quando eu voltar de Brezno.
— Você ainda vai? Está bem?
— Sou velho e durão; é preciso mais que um pouco de areia negra para me deter. Eu já comecei uma investigação sobre a maneira como eles adquiriram a areia negra; suspeito de que alguém do arsenal seja um simpatizante morelli. Mas com as recentes incursões na fronteira, eu tenho que ir... — seu sorriso desmoronou com o próprio peso, Sergei pousou sua mão sobre o ombro dela. — Eu sinto muitíssimo, Varina. Isso jamais deveria ter acontecido. Karl merecia muito mais do que isso.
O choro tomou conta dela, e ela não conseguiu responder. Sergei deu um tapinha em seu ombro, mas seu olhar estava voltado para outro lugar.
— O corpo... de Karl? — ela finalmente conseguiu falar.
— O corpo de Karl — respondeu Sergei, e pela contração de seu maxilar, Varina percebeu que ele não estava lhe contando tudo — foi recuperado e já está na pira no Palácio da Kraljica. A Garde Kralji foi posicionada em volta dela, e também há vários numetodos lá, que dizem que não irão embora até que a pira seja acesa.
— Eu preciso ir até lá, então.
Varina começou a se levantar. Ela sentiu os músculos protestarem com o movimento, mas conseguiu se sentar. O quarto rodou ao seu redor e depois se assentou.
— Varina, a kraljica Allesandra disse que ela mesma acenderia a pira. Os curandeiros disseram que você deveria ficar...
— Eu preciso ir até lá — repetiu ela, com mais firmeza.
Sergei suspirou e assentiu.
— Eu disse para a kraljica que essa seria a sua resposta. Eu a acompanharei até lá...
— Varina... — A kraljica Allesandra a abraçou assim que ela desceu da carruagem, depois de Sergei. — Eu sinto muito. Sou a culpada por esta atrocidade. Nós obviamente não tomamos todas as precauções que deveríamos, e isso é responsabilidade minha.
Varina negou com a cabeça.
— Não foi culpa sua — respondeu ela simplesmente.
Atrás dos cortesãos e chevarittai que flanqueavam Allesandra, Varina viu Mason ce’Fieur, um amigo numetodo que era um de seus alunos no grupo. Ele acenou para ela com uma expressão grave.
— Com licença, kraljica — disse Varina para a kraljica e se dirigiu até Mason.
Os dois se abraçaram.
— A’morce numetodo — cumprimentou ele.
O uso do título pegou Varina de surpresa. Karl tinha sido o líder nominal do grupo desde que ela começou a fazer parte dele. Varina nunca considerou que o título pudesse passar para ela com o falecimento dele, mas aparentemente passou.
— Todos nós estávamos lhe esperando — disse Mason.
Ela olhou para a pira. Havia ca’ e co’ em roupas elegantes — aduladores do palácio que queriam ser vistos pela kraljica —, mas também havia numetodos da cidade, a maioria ce’ ou de status inferiores: duzentas pessoas ou mais, rostos que ela reconhecia, gente com quem trabalhou e a quem ensinou. Eles estavam ali agora, silenciosos e pacientes.
A pira tinha a altura de três pessoas, e o cheiro de óleo era forte no pátio entre as alas do palácio tomadas por andaimes. No topo da pilha piramidal de lenha fora colocado um caixão fechado de madeira — não mais o corpo envolvido na bandeira de Paeti. Varina apertou os lábios com a visão, seu estômago revirou, enviando ácido para a sua garganta. Ela engoliu em seco, uma vez.
— Vamos fazer isso logo. Em breve, teremos que acender mais piras para o restante de nossos companheiros que caíram.
Com Sergei à sua esquerda, kraljica à sua direita, e as fileiras de numetodos atrás dela, Varina avançou até a base da pira. Ela ergueu o olhar para o caixão e por um momento teve que fazer uma pausa, sobrepujada pelas lembranças de Karl. Seu estômago revirou novamente, e Varina fechou os olhos brevemente.
Ela abriu os olhos novamente quando encontrou, em sua mente, o feitiço que havia preparado na noite anterior. Estava em sua cabeça como um ovo prestes a explodir, e Varina o acariciou com seus pensamentos. Este era o método dos numetodos: como os ténis, eles usavam uma combinação de palavras e gestos para dar forma ao feitiço — uma fórmula que devia ser seguida. Como com os ténis, o esforço de invocar feitiços tinha um custo de exaustão e fraqueza. Ao contrário dos ténis, os numetodos não invocavam Cénzi ou atribuíam seu poder a qualquer divindade; ao contrário dos ténis, eles não precisavam lançar o feitiço imediatamente após o término do encantamento. Os numetodos sabiam como manter o feitiço em suas mentes, como lançá-lo com uma palavra e um único gesto muito tempo depois. Eles, portanto, podiam “pagar antecipadamente” a fraqueza que acompanhava a invocação do feitiço e não eram afetados depois. Os numetodos podiam lançar um feitiço preparado com um simples gesto ou pronúncia.
Varina fez isso agora. Diante da pira, ela abriu o feitiço.
— Tine — disse Varina na língua de Paeti, a terra natal de Karl.
Fogo. Varina fez um gesto como se jogasse uma pedra na base da pira. Um sol irrompeu no centro da pirâmide, branco-amarelado e tão quente que seu deslocamento de ar tremulante golpeou os espectadores como o vento de um furacão. A lenha banhada em óleo pegou fogo com um estrondo, e as chamas saltaram no ar, com tornados de fagulhas rodopiantes diante delas. Uma coluna de fumaça veio a seguir, levada pela brisa na direção dos telhados distantes do palácio, onde foi dispersada pelo vento e espalhada na direção do Velho Templo e do rio A’Sele, a oeste.
O fogo furioso agora lambia o caixão que continha os restos mortais de Karl. Enquanto Varina assistia, as chamas subiram pelas laterais até obscurecer a caixa de madeira com o fogo e encobri-la com fumaça.
— Adeus, meu amor — sussurrou Varina. — Eu sempre sentirei sua falta.
As lágrimas desciam por seu rosto sem pudor e secavam rapidamente pelo calor da pira. Alguém a estava abraçando, e ela não sabia se era Sergei, a kraljica ou Mason.
Não importava. Ela assistiu aos restos mortais de Karl alçarem à eternidade em uma espiral.
Varina ficou ali até o fogo na pira entrar em colapso, muitos minutos depois, e virar uma pilha de cinzas e carvão tão morta e carbonizada quanto ela mesma.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra observou Sergei andar de um lado para o outro em frente ao quadro da kraljica Marguerite. O olhar severo do retrato parecia, para Allesandra, acompanhar o avanço manco do embaixador, de lá para cá. O comandante co’Ingres sequer o observava; seu olhar estava fixo e resoluto no pequeno fogo da lareira, aceso com a intenção de tirar do ambiente o frio noturno. A a’téni ca’Paim estava sentada ao lado da mesa de doces, com um prato cheio em seu colo largo.
Allesandra não tinha apetite. A carnificina que a kraljica testemunhara durante a procissão fúnebre lhe tirara a fome. Suas mãos ainda tremiam ao lembrar. Tão covardemente, o uso da areia negra. Uma morte tão horrível... Ainda havia um leve zumbido em seus ouvidos provocado pela explosão.
— Não podemos permitir outro incidente como este, kraljica — declarou Sergei ao passar pelo quadro novamente. — A mensagem que isso transmite à população; a mensagem que transmite aos fiéis... Não podemos permitir.
— Não havia magia téni envolvida no incidente — declarou a a’téni ca’Paim em tom severo. — Morel sabe quais são as consequências de usar o Ilmodo. É por isso que usou a areia negra; embora um de seus seguidores provavelmente tenha acendido a areia negra com um feitiço quando o esquife passou sobre ela.
— Esta é exatamente a questão — respondeu Sergei. — Ele conseguiu perturbar um ritual solene dos Domínios sem o Ilmodo. Sem magia. O uso da areia negra foi uma mensagem: de que a Fé é inútil e fraca, que os Domínios podem ser reféns de qualquer um que consiga criar areia negra; que os numetodos são mais perigosos do que qualquer téni. Isto é pior do que se ele tivesse usado o Ilmodo.
O rosto de ca’Paim contorceu-se em uma careta de desdém.
— A Fé não é fraca — respondeu ela com firmeza. — Ela está mais forte do que há décadas. O archigos Karrol cuidou disso.
Allesandra notou que ca’Paim fingiu não ouvir o audível fungar de desdém dado por Sergei diante daquela declaração.
— Você acha que Morel não é inteligente o bastante para compreender o simbolismo de suas ações? — perguntou Allesandra para a a’téni. — Ficou claro o suficiente para mim. Aquele boneco blasfemo de Cénzi estava encarando o esquife diretamente quando a areia negra explodiu. Acho que Morel teria usado o Ilmodo para obter o mesmo efeito, mas ele estava obedecendo às leis da fé concénziana. Peço desculpas, a’téni ca’Paim, mas o homem acredita seguir os preceitos do Toustour e da Divolonté bem mais à risca do que qualquer a’téni e o archigos Karrol.
— A mensagem de Morel pode ser interpretada de várias maneiras por pessoas diferentes, kraljica — insistiu Sergei —, e isso é um problema ainda maior. Sim, para a Fé ele está dizendo: “vejam só, eu obedeci suas regras, embora as considere completamente tolas”. Para os numetodos, Morel diz: “eu considero suas crenças desprezíveis e hereges”. Mas acho que a população em geral, que não é nem téni, nem numetodo, interpreta uma declaração completamente diferente. Acho que alguns deles podem olhar para o que aconteceu e pensar: “eu posso fazer aquilo. Ora, qualquer um pode fazer aquilo”. Isso é perigoso. Não é no que queremos que as pessoas acreditem, especialmente as que podem ter motivos para se opor a nós.
Ca’Paim atacou um docinho e o mastigou furiosamente. Co’Ingres assistia à dança das chamas.
— Então o que você sugere que eu faça, Sergei? — perguntou Allesandra.
— Precisamos encontrar Morel. Temos que executá-lo publicamente, com violência — respondeu Sergei. — Então sua resposta à mensagem dele será: “se alguém tentar isso, morre.”
— É isso o que Varina me dirá para fazer? — indagou a kraljica.
— Não — admitiu Sergei. — Não é. Mas eu sou seu conselheiro, não a a’morce dos numetodos. Minha lealdade é à senhora, kraljica; a Nessântico e aos Domínios, como sempre. Eu digo o que será mais útil a essa fidelidade. Precisamos cuidar de Nico Morel e seus seguidores com rigor.
— Eu concordo completamente com o embaixador — disse ca’Paim ao se levantar, ainda segurando o prato de doces. — Meu pessoal irá ajudá-lo como for possível. Eu posso começar interrogando os suspeitos de ter afinidades com os morellis...
Ela fez o sinal de Cénzi com uma mão só para Allesandra e os demais.
— Será que Talbot poderia mandar alguém embrulhar isso para mim, kraljica? — perguntou ca’Paim ao erguer o prato. — Eu odiaria desperdiçá-los...
A a’téni ca’Paim foi embora com um pacote de doces, acompanhada pelo comandante co’Ingres. Talbot — que insistiu em voltar ao trabalho, apesar dos cortes e arranhões que recebeu — mandou um trio de criadas limpar as mesas e levar as bandejas de volta às cozinhas.
Sergei não fez menção de ir embora. Allesandra observou o embaixador, cuja atenção parecia estar voltada para os criados enquanto realizavam suas tarefas, com uma mão atrás das costas e a outra apoiada na bengala de punho prateado que quase combinava com seu nariz. Pouco tempo depois, a última criada fez uma mesura e fechou a porta ao sair.
— O que foi, Sergei? — perguntou Allesandra então. — Estou esperando Erik ca’Vikej chegar para almoçar em meia virada. Ele quer conversar a respeito da possível reação do governo exilado da Magyaria Ocidental ao problema dos morellis.
Sergei voltou-se para kraljica. Ela viu os olhos do embaixador fecharem brevemente e seus lábios franzirem, como se o gesto o incomodasse — ou como se a menção ao nome de ca’Vikej o aborrecesse.
— A senhora está brincando com fogo e areia negra, kraljica. Como embaixador dos Domínios na Coalizão, devo aconselhá-la a não dar a impressão de que apoia abertamente o homem.
Ele pareceu engolir algo mais que poderia ter dito, e Allesandra perguntou-se se Sergei percebia que outros sentimentos ela nutria por Erik.
— Como embaixador dos Domínios na Coalizão, eu espero que você me apoie, do modo como eu disser para fazê-lo — respondeu Allesandra com rispidez.
Sergei abaixou a cabeça, principalmente, suspeitou a kraljica, para que ela não pudesse ver seus olhos.
— Perdoe-me, kraljica; este é, obviamente, o meu dever. Verei seu filho em poucos dias, mas gostaria de oferecer-lhe um ramo de oliva em vez de uma espada desembainhada.
Allesandra já fazia que não com a cabeça antes que ele terminasse de falar.
— Você está se tornando previsível, Sergei, e mole com a velhice.
— Então a senhora decidiu que é contra a minha proposta de reconciliação com ele?
— Eu agradeço o esforço que você dedicou a isso, Sergei. E a boa intenção.
— Mas?
— Eu não tenho intenção de ceder para que meu filho possa tomar o Trono do Sol.
Tap, tap... Sergei deu alguns passos arrastados em direção a Allesandra. Seu rosto enrugado tinha uma expressão sincera, e ela pôde ver o reflexo do fogo da lareira em seu nariz polido.
— A senhora não estaria cedendo, kraljica, apenas nomeando seu filho como seu sucessor na sua morte.
A risada que ela soltou soou mais como uma tosse.
— Eu não consigo ver a diferença, Sergei. Se eu nomear Jan como herdeiro, perco meu poder como kraljica. A cada proclamação que eu fizer, todos passarão a olhar na direção a leste, para Brezno e para o hïrzg, a fim de ver se ele concorda. O Conselho dos Ca’ aqui ficará mais preocupado em ver como suas decisões são consideradas por Jan do que por mim. Eu pretendo ter uma vida ainda muito longa, Sergei. O que você me disse no outro dia, que eu ainda tenho décadas para me igualar à kraljica Marguerite?
Allesandra se levantou — deixe que ele note que nossa conversa acabou. Ela falou em um tom distante e severo, como se desse uma ordem para Talbot.
— Bem, eu pretendo fazer exatamente isso. E você me apoiará ou outra pessoa será meu embaixador.
A kraljica observou seu rosto, embora a expressão de Sergei raramente revelasse seus pensamentos mais íntimos. Não revelou agora. Ele fez uma reverência um pouco desajeitada e dura, mas seu rosto estava impassível e seus olhos pareciam não ter nada além de respeito por Allesandra.
— Eu sempre servirei a Nessântico e a quem estiver sentado no Trono do Sol — respondeu Sergei. — Sempre.
Ela quase riu novamente — dito com tanta cautela.
— Então diga ao meu filho que ele brinca com fogo e areia negra, como você disse, com suas recentes incursões na fronteira, e que minha paciência está se esgotando. Diga-lhe que espero que parem imediatamente, ou serei forçada a responder na mesma moeda. Lembre a Jan que a Magyaria Ocidental só lhe pertence porque não enviei a Garde Civile inteira para apoiar Stor ca’Vikej, um erro que não repetirei.
O rosto de Sergei não revelou nada ao fazer uma reverência.
— Como a kraljica desejar — respondeu ele.
— Ótimo. Mandarei Talbot fazer uma lista de exigências para a sua reunião, e minhas respostas às possíveis questões que você ouvirá do hïrzg.
O hïrzg. Não “meu filho”. Allesandra teve uma súbita lembrança de Jan: de segurá-lo como bebê, de vê-lo mamar em seu peito e do prazer íntimo e intenso de sentir o leite vir; das primeiras palavras; dos primeiros passos trôpegos; das ocasiões em que ele veio até ela chorando por causa de algum machucado ou de uma ofensa em que ela o abraçava e consolava. Quando foi que isso mudou? Por que deixei que acontecesse? Ela respirou fundo. Sergei observava Allesandra, com os olhos mucosos voltados para seu rosto.
— Estamos encerrados — falou ela. — Mandarei Talbot com minhas instruções.
— Sim, kraljica.
Allesandra odiou a compaixão que Sergei deixou transparecer em seu rosto, odiou que ele tivesse percebido o vazio dentro dela, que a fazia chorar sozinha à noite, que atormentava seus sonhos. O embaixador fez uma mesura ao sair, mas a kraljica já não estava prestando atenção nele. Era Jan quem ela via agora, como ele era da última vez que ela o viu. Allesandra imaginou como ele seria agora, como seriam seus netos, a quem ela nunca tinha abraçado, beijado ou embalado no colo. Tanta coisa que você deixou de viver. Tanta coisa que perdeu. Sua visão oscilou, as paredes cobertas por tapeçarias se tornaram brevemente líquidas, e ela se perguntou se Sergei estaria certo. Talvez fosse o momento.
Houve uma batida suave na porta, e Allesandra piscou, enxugando os olhos rapidamente com a manga.
— Entre — disse ela.
Talbot enfiou a cabeça na porta.
— O embaixador disse que a senhora precisava de mim, kraljica.
Ela fungou.
— Sim. Entre, mas primeiro mande um dos criados trazer pergaminho e tinta. E se o vajiki ca’Vikej chegar, diga-lhe que o receberei em breve.
— Eu fiquei horrorizado quando soube, preocupado que a senhora tivesse se ferido...
Erik andava de um lado para o outro em frente às janelas do aposento. O almoço fumegava na mesa, intocado. Sentada na cadeira à mesa, Allesandra observava ca’Vikej fixamente: a preocupação em seu rosto, a maneira como seus músculos se contraíam no crânio careca.
A preocupação que ele sente por você é real. Não é fingida, não é baseada em seus próprios interesses: é genuína. Ela esperava que estivesse certa quanto a isso. Allesandra também se deu conta de que tomara uma decisão, espontânea e não solicitada. Uma decisão envolta em sua própria solidão, no afastamento de Jan, no erro que ela cometera com o vatarh de Erik, na dor intensa que sentia quando estava com Varina, na raiva dirigida aos morellis. Allesandra esperava que sua decisão fosse a certa.
— Eu estou bem, Erik. Fiquei abalada, mas não ferida. O ataque não foi direcionado a mim.
Ele balançou a cabeça enfaticamente.
— Se a senhora tivesse se ferido, eu mesmo teria saído e encontrado esse Nico Morel, e... — Ele parou e se afastou das janelas a fim de olhar para Allesandra; seu rosto e voz abrandaram. — Minhas desculpas, kraljica. É que fiquei tão preocupado...
— Eu estou bem — ela repetiu. — E aqui, enquanto estivermos sozinhos, eu prefiro que você me chame de Allesandra.
— Allesandra — disse Erik, como se saboreasse a palavra. Ele sorriu. — Obrigado. Mas não menospreze esses morellis. Eles são um perigo para você, quer você acredite ou não. São fanáticos que ameaçam qualquer um que não acredite no que eles acreditam.
— Você é um fanático, Erik? — perguntou a kraljica com delicadeza e apontou para a cadeira à sua direita.
Ca’Vikej sentou-se antes de responder.
— Sobre a Magyaria Ocidental, você quer dizer?
Ele pegou a taça de vinho, e sacudiu o líquido rubro.
— Não, não quanto a isso. Em política, eu sou mais pragmático do que meu vatarh. Acredito que a Magyaria Ocidental estaria melhor sendo parte dos Domínios. Acredito que eu seria um bom gyula, se Cénzi desejar que isso aconteça. Estou disposto a trabalhar tão duro quanto for necessário para tornar isso possível, mas também sei que às vezes sacrifícios e concessões precisam ser feitos para se alcançar um objetivo, e que às vezes o melhor resultado não é aquele que se gostaria de ver. Então, não, eu não sou um fanático, mas um realista.
Erik ergueu a taça e a pousou novamente.
— Isto não quer dizer que não existam coisas com as quais eu me importe muito ou que eu não seja um homem passional, kralji... — Ele respirou fundo. — Allesandra. Quando chego a amar alguma coisa ou alguém...
A mão esquerda de Erik abandonou a taça e pousou na toalha de mesa de linho. A kraljica estendeu sua própria mão e pousou na dele. Allesandra o ouviu respirar fundo. Seus belos olhos claros sustentaram o olhar dela, sem pestanejar, quase como um desafio. Ele abriu os dedos e os entrelaçou aos de Allesandra.
— Eu sou passional. — ela disse em voz baixa. — Nessântico e os Domínios são minhas paixões. E também sou perigosa por causa disso. Portanto, esta... — Allesandra apertou levemente os dedos de Erik — ... não seria uma decisão a ser tomada levianamente. Ou, se você preferir, podemos comer o jantar que está posto diante de nós.
Erik assentiu, ergueu sua mão, ainda segurando a de Allesandra, até sua boca e beijou as costas da mão dela. Ela sentiu sua respiração quente em sua pele, o toque dos lábios, suave e excitante.
— Você está com fome, Allesandra? — perguntou Erik.
É isso que você quer... Foi por isso que você o chamou aqui hoje...
— Estou — ela respondeu.
A kraljica levantou-se da cadeira, ainda segurando a mão dele, e o levou embora.
Niente
As águas da baía de Munereo estavam cheias de navios ancorados tão próximos uns dos outros que parecia ser possível uma pessoa cruzar a grande baía a pé sem se molhar. Suas velas estavam recolhidas e amarradas nos mastros, e as embarcações estavam amontoadas sob um céu baixo com nuvens que corriam para o oeste. Ocasionais raios solares empoeirados perfuravam as nuvens e deslizavam sobre a baía, brilhando nas ondas distantes e nos panos brancos amarrados em seus mastros.
Niente nunca tinha visto tantos navios reunidos em um só lugar, e só uma vez, anteriormente, tinha visto tantos guerreiros tehuantinos reunidos.
Ele ouviu um grito ao seu lado, conforme seu filho, Atl, se aproximava.
— Pela teta esquerda de Axat — ele sussurrou a blasfêmia que ecoou alto no ar frio da manhã —, isto é uma novidade no mundo.
— Certamente que sim — respondeu Niente para o jovem.
Ele piscou, e tentou, sem sucesso, limpar a imagem borrada — mesmo a visão do olho remanescente começava a falhar. Os dois estavam sobre um morro do lado de fora das muralhas da cidade, não muito longe da estrada principal que levava ao porto. A estrada estava repleta de soldados que marchavam em direção aos barcos. As poucas centenas de nahualli e os feiticeiros que acompanhariam a força invasora estavam reunidos em seu próprio grupo, um pouco mais abaixo no morro, próximo à estrada. Eles estariam entre os últimos a subir a bordo das embarcações, imediatamente antes do tecuhtli Citlali e seus guerreiros supremos.
Atrás de Niente e Atl, as espessas muralhas de Munereo ainda estavam esburacadas e manchadas pelos vestígios da batalha travada ali há uma década e meia, quando as forças dos Domínios tinham sido derrotadas pelo exército do tecuhtli Zolin, o antecessor de Citlali. Niente tinha participado dessa batalha, tinha visto a areia negra rugir e as pedras voarem, e tinha ajudado a sacrificar os líderes orientais derrotados em nome de Axat. Também tinha navegado mar adentro ao lado do tecuhtli Zoli desse mesmo porto até os próprios Domínios.
Há tanto tempo. Parecia ter sido em outra vida para Niente.
Uma vida que ele agora era forçado a revisitar, se quisesse alcançar a visão vislumbrada na tigela premonitória. Quantos destes guerreiros morrerão por causa disso? Quantas almas serão enviadas para o submundo por causa do que estou fazendo? Axat, por favor, diga-me que eu sou capaz de realizar isso, que valerá a pena carregar essa culpa em minha alma. Ajude-me.
— Taat?
Niente saiu do devaneio.
— O quê?
— Pensei que o senhor tinha dito alguma coisa.
— Não — ele respondeu.
Pelo menos, espero que não. Ninguém pode saber dessa visão. Não ainda.
— Eu só pigarreei; o ar desta manhã está afetando meus pulmões. — Niente apontou na direção dos navios e da baía. — Amanhã, navegaremos na direção do sol quando ele nascer.
— E haverá bons ventos — afirmou Atl.
A confiança em sua voz fez Niente se voltar para o filho, estreitando os olhos.
— Você sabe disso? — perguntou ele.
Atl sorriu brevemente, como o toque do sol através das nuvens sobre os navios lá embaixo.
— Sim.
— Atl... — Niente ia dizer, mas o filho ergueu uma mão.
— Pare, taat. Deixe-me terminar por você. “Olhe para mim. Veja como Axat me marcou. Deixe a premonição para algum outro nahualli. Axat é cruel com aqueles a quem Ela dá a Visão.” Eu já ouvi isso tudo. Muitas vezes.
— Você devia olhar para mim — insistiu Niente.
Ele tocou seu olho branco e cego, massageou os músculos flácidos do lado esquerdo do rosto, os sulcos da pele morta e cheia de cicatrizes: uma máscara de horror.
— É assim que você quer ficar?
O olhar de Atl varreu o rosto de Niente e se afastou mais uma vez.
— Isso levou muitos anos, taat — ele respondeu. — E o juramento dos nahualli nos obriga a fazer o que Axat exigir de nós. E sua premonição também lhe deu isso.
Atl apontou para o bracelete dourado no braço de Niente.
— Você não deve fazer isso — insistiu Niente. — Atl, estou falando sério. Quando eu morrer, faça como quiser, mas enquanto eu estiver vivo, enquanto for seu taat e o nahual...
Ele pousou sua mão no ombro de Atl. O contraste entre suas peles o assustou: a dele era flácida, dolorosamente seca e tomada por incontáveis rugas; a de Atl era lisa e bronzeada.
— Não invoque Axat — terminou Niente. — Esta tarefa é minha. É o meu fardo.
— Não precisa ser só seu.
— Sim, precisa.
As palavras de Niente saíram mais ríspidas do que ele tinha intenção, fazendo com que Atl virasse o rosto, como se tivesse levado um tapa. Os olhos do jovem estavam entreabertos, e ele disparou um olhar de pura fúria para Niente antes de virar a cabeça ligeiramente para encarar deliberadamente a baía. “Cuide dele”, dissera Xaria antes de os dois irem embora. “Atl ama, respeita e admira você. Seu filho quer tanto que você se orgulhe dele — e eu me preocupo que Atl faça alguma tolice tentando...”
Xaria não compreendia. Nem Atl, e Niente não podia contar para nenhum dos dois. Ele não podia permitir que o filho usasse os feitiços premonitórios, não por causa do preço que eles cobravam — embora isso fosse significativo — mas porque sabia que Atl tinha o mesmo Dom que ele, e Niente não podia deixar que Atl visse o que ele viu na tigela. Não podia. Se Atl visse o que ele viu, Niente podia perder o Longo Caminho. Os vislumbres do futuro de Axat eram volúveis e facilmente mutáveis.
— Sinto muito — ele disse para Atl —, mas isso é importante.
— Tenho certeza que sim, porque o nahual está sempre certo, não é?
Dito isto, Atl fez uma mesura debochada para o taat e seguiu na direção dos outros nahualli, no mesmo instante em que Niente esticou o braço na direção dele. O nahual piscou; com o olho remanescente, ele viu Atl entrar no grupo.
Ele podia sentir os olhares de todos os nahualli voltados para ele morro acima, imaginando se Atl em breve desafiaria seu taat como nahual, imaginando se talvez devessem desafiá-lo primeiro.
Seus olhares eram avaliadores, desafiadores, destituídos de misericórdia ou compaixão.
Sergei ca’Rudka
Da rua onde se encontrava, Sergei observava o esquadrão do comandante co’Ingres se reunir em volta do prédio gasto e degradado do Velho Distrito sob a cinzenta aurora. O fedor dos açougues da rua tomou suas narinas. Havia quatro homens na frente, outros três em volta da porta dos fundos, e dois em cada espaço entre a casa e seus vizinhos. Também havia um quarteto de ténis-guerreiros cedidos pela a’téni ca’Paim — reunidos em volta da porta da frente, já entoando os cânticos de proteção.
A manhã estava fria, e Sergei fechou mais a capa em volta de seus ombros. A rua estava vazia — havia um utilino postado nas encruzilhadas próximas para impedir que as pessoas entrassem, e multidões se reuniram atrás deles para assistir. Os vizinhos que notaram a Garde Kralji avançando permaneceram prudentemente em suas casas. Sergei podia ver a oscilação ocasional de um rosto nas cortinas, embora não tivesse visto movimento algum na casa em que estavam prestes a entrar.
Isso fez Sergei torcer os lábios em uma careta. A informação veio de um bom informante e foi “verificada” pela interrogação de dois suspeitos de serem simpatizantes dos morellis na Bastida. Sergei tinha esperança de que esta batida capturasse Nico Morel. No entanto...
— Agora! — co’Ingres gritou e acenou com a mão.
Um dos ténis-guerreiros gesticulou, e a porta da casa explodiu em lascas de madeira, acompanhada de um estrondo alto e uma fumaça escura. A Garde Kralji entrou correndo, brandindo espadas e ordenando que qualquer pessoa no interior se rendesse.
Sergei não ouviu respostas aos gritos. Fez uma careta e começou a atravessar a rua, batendo com a bengala nos paralelepípedos — o comandante co’Ingres seguiu o passo cadenciado e cauteloso de Sergei —, no mesmo momento em que o o’offizier no comando do esquadrão apareceu na porta, negou com a cabeça.
— Sinto muito, embaixador, comandante — falou ele, dando passagem para que Sergei entrasse na casa.
Seus joelhos estalaram conforme ele subia pela soleira elevada. Ele ouviu o ruído alto das botas dos gardai vasculhando os ambientes no segundo andar batendo no assoalho.
— Aparentemente não há ninguém aqui — disse o’offizier.
— Não. Eles sabiam que viríamos — respondeu Sergei.
O cômodo em que eles estavam tinha pouquíssima mobília: uma mesa cuja superfície arranhada era pouco escondida por uma toalha quadrada e manchada; algumas cadeiras bambas com assentos de vime que precisavam de revestimento novo. Parecia que, se os morellis morassem aqui, viviam com pouco luxo. Sergei foi até a lareira no outro aposento e agachou, resmungando com a dor em suas pernas. Ele estendeu a mão sobre as cinzas: sentiu o calor que ainda emanava dos carvões abaixo. O embaixador ficou de pé novamente.
— Eles estiveram aqui ontem à noite. Alguém os avisou.
Sergei coçou a pele perto da narina direita falsa. No consolo sobre a lareira, havia apenas um pergaminho dobrado com capricho, com algo escrito na frente. Sergei aproximou-se para ler: era seu próprio nome, escrito em letra elegante e cuidadosa. Ele bufou pelo nariz metálico.
— Embaixador? — Co’Ingres espiava sobre o ombro de Sergei. — Ah, então nosso informante estava certo.
— Certo a respeito da localização. Errado quanto ao momento — ele respondeu.
Sergei pegou o papel do consolo e abriu o pergaminho duro.
Sergei — sinto muito ter perdido sua visita. Cénzi me diz que um dia eu e você devemos conversar. Mas não hoje. Não até eu ter cumprido todas as tarefas que Ele me passou. Gostaria de pensar que talvez agora você entenda que estou apenas fazendo Seu trabalho, mas suspeito que seus olhos, assim como os da kraljica e da a’téni, estão cegos. Sinto muito por isso, rezarei para que Cénzi lhe dê a visão. Estava assinado simplesmente “Nico”.
— Não encontraremos nada aqui — disse Sergei para co’Ingres. — Mande seus homens vasculharem o lugar exaustivamente, caso tenham perdido algum detalhe importante, mas não vão encontrar nada. Os morellis têm seu próprio informante, seja na Garde Kralji ou, mais provavelmente, dentro da Fé. Nós os perdemos.
Ele cutucou as cinzas na lareira com a ponta da bengala até ver uma brasa vermelha. Deixou o bilhete cair sobre os carvões. As pontas do papel escureceram, linhas vermelhas correram sobre o pergaminho antes de ele pegar fogo.
— Não deixarei que isso aconteça uma segunda vez — falou Sergei: para co’Ingres, para o papel, para o fantasma de Nico.
O papel virou cinza seca, e seus fragmentos subiram pela chaminé. Sergei ergueu os ombros para ajeitar a capa. Bateu com a bengala uma vez com força no piso da casa e saiu.
— Teremos sucesso da próxima vez — disse Sergei. — Eu juro.
Ele observou Varina dar de ombros na luz que passava entre as cortinas de renda da janela. Os desenhos da renda pontilhavam seu rosto e ombros com luz salpicada e deixavam seus olhos nas sombras.
— Eu sei que não é o que você quer ouvir — respondeu ela —, mas parte de mim está feliz por Nico ter escapado de você, Sergei. Acho que Karl teria se sentido da mesma forma.
O bule de chá sobre a mesa entre eles fez barulho quando Sergei se ajeitou na cadeira.
— Sua compaixão é admirável, e é o que faz a todos, incluindo Karl, amarem você.
— Mas?
Varina pousou a xícara de chá. As sombras das rendas percorreram as costas das suas mãos.
Agora foi Sergei quem deu de ombros.
— Compaixão nem sempre é bom para o Estado.
— Você teria dito isso na época em que os numetodos eram chamados de hereges e condenados à morte? — retrucou Varina suavemente.
Ela olhou lá fora, pela janela cortinada e voltou a olhar para Sergei.
— Você teria dito isso quando o kraljiki Audric e o Conselho dos Ca’ chamaram você de traidor?
Sergei estendeu suas mãos em frente ao corpo como se fosse deter um ataque. Ele lembrava-se muitíssimo bem do tempo que tinha passado na Bastida após ter sido condenado por Audric: de como tinha sentido medo de que fizessem com ele o que ele tinha feito com tantos outros, de como Karl e Varina o tinham salvado desse destino, colocando suas próprias vidas e liberdade em risco.
— Eu me rendo — falou o embaixador. — A dama tomou o campo de batalha.
Varina quase sorriu ao ouvir isso. A expressão foi momentânea, mas Sergei sorriu de volta — era a primeira vez que a via mostrar um traço de divertimento desde a doença fatal de Karl. O embaixador estendeu o braço e deu um tapinha na mão de Varina; a pele flácida em volta de seus ossos fez as mãos dela parecerem jovens, em comparação.
— O menino teve uma vida difícil — argumentou ela. — Ele foi tirado de sua pobre matarh por aquela louca horrorosa, a Pedra Branca. Que tipo de vida o menino poderia ter tido? Não fazemos ideia dos horrores pelos quais ele pode ter passado com ela.
— Concordo, não há como sabermos. No entanto, ele não é mais um menino, mas um homem que tem que ser responsabilizado por seus atos — disse Sergei.
E ergueu novamente as mãos ao ver que Varina se preparava para responder.
— Eu sei, eu sei. “A criança molda o homem”. Eu conheço o ditado, e sim, há verdade nessas palavras, mas ainda assim... — Sergei balançou a cabeça. — ... Nico Morel não é o menino que conhecemos, Varina, não importa o quanto você gostaria que isso fosse verdade. A última ação dele matou cinco amigos nossos e feriu muitos outros.
— Eu sei — ela respondeu tristemente. — E não estou dizendo que ele não deve ser punido por isso. Nem considero Nico o monstro que você pinta, mesmo depois do que ele disse, mesmo depois do que fez ao...
Varina parou. Sergei ouviu a hesitação em sua voz e viu seus olhos umedecerem, e soube o que ela não diria. Varina fungou e recuperou o controle.
— Mas compaixão... Você está errado quanto a isso, Sergei. Está errado a respeito do que estou sentindo. Um cachorro raivoso não pode ser culpado por sua raiva, mas deve ser detido pelo bem de todos. Eu compreendo, Sergei. Mas se o cão for meu, então é meu dever detê-lo. Meu.
Seu tom era fervoroso, e Sergei ficou intrigado com a urgência que ouviu em sua voz.
— Só me prometa que, se, por alguma razão, você souber de alguma sobre Nico, irá avisar o comandante co’Ingres imediatamente — pediu o embaixador. — Ele prometeu que a protegeria enquanto eu estiver em Brezno, mas me preocupo com os morellis, especialmente após o funeral de Karl. Só Cénzi sabe o que eles são capazes de fazer. Detê-lo sozinha seria arriscado. Pelo que a a’téni ca’Paim me falou, a habilidade de Nico com o Ilmodo é absolutamente assustadora, se ele escolher usá-la. Prometa-me que tomará cuidado. Prometa-me que não fará esforço algum para contatá-lo. Esse cão raivoso em particular ameaça a todos na cidade; deixe que a cidade o detenha.
Outro sorriso, este bem mais fraco que o anterior.
— Você pareceu o Karl falando agora. Eu sempre acreditei que a cautela era superestimada — disse Varina, e seu sorriso de repente se ampliou. — E você, Sergei... vai tomar cuidado?
— O hïrzg Jan, embora isso provavelmente demonstre sua falta de bom senso, parece gostar de mim, apesar do relacionamento frio entre ele e sua matarh. De qualquer maneira, eu sou apenas o mensageiro da kraljica Allesandra.
E às vezes o mensageiro é culpado quando a mensagem não é o que eles querem escutar... Sergei sorriu mesmo quando a dúvida penetrou em sua mente. Jan não gostaria da mensagem de Allesandra, isso era certo. E ele suspeitava que Allesandra também não iria gostar da resposta de Jan.
Você está ficando velho demais para isso... Esse pensamento continuava a vir à tona, cada vez mais. Sergei estava cansado, e a ideia de passar vários dias em uma carruagem na estrada, da surra que seu corpo levaria da viagem, e do desconforto das estalagens e camas estranhas no caminho...
Velho demais...
— Cuide-se, Varina. Tome cuidado e, por favor, lembre-se do que falei sobre Nico.
Com uma careta, Sergei empurrou a cadeira e se levantou. Ele pegou sua bengala, que estava apoiada na mesa. Varina levantou-se com o embaixador, dando um passo em sua direção e abraçando-o. Com uma mão, Sergei retribuiu o gesto.
— E você, cuide-se — disse Varina. — E cuidado com as cortesãs, embaixador. Eu soube que, em Brezno, elas não são tão... discretas como somos aqui.
Não serão as cortesãs com quem me envolverei...
— Infelizmente, quando elas olham para mim, não querem outra coisa que não sair correndo — disse Sergei, tocando o nariz.
Ele abraçou Varina com força mais uma vez, e depois se afastou.
— Eu a visitarei assim que retornar. Prometo.
Brie ca’Ostheim
Kriege não deveria estar no quarto de vestir de maneira alguma, mas tinha o hábito de fugir das babás que cuidavam dele. Brie teria que falar com elas mais tarde.
Ela acordou quando ouviu a porta de serviço do quarto de vestir ranger ao ser aberta. Ouviu os passos de Kriege sobre o tapete. Brie saiu de mansinho da cama e entrou no quarto de vestir que ela e Jan compartilhavam. Kriege estava em pé diante na penteadeira de Jan, com as mãos ocupadas com alguma coisa que seu corpo escondia. Ela sorriu satisfeita, esfregando os olhos para espantar o sono.
— Kriege — perguntou Brie —, o que você está fazendo?
Kriege deu meia-volta, assustado, e ela viu a adaga na mão do menino, com a lâmina fora da bainha e os gumes de aço firenzciano escuro reluzindo. A boca de Kriege fez um “Ó” de surpresa, e seu rosto ficou vermelho quando se deu conta de que ainda segurava a arma.
— Kriege, abaixe isso. Com cuidado. Seu vatarh ficaria muito irritado se visse você com isso.
Os olhos de nove anos de idade se arregalaram. Brie viu seu lábio inferior começar a tremer.
— Eu não estou irritada com você, Kriege. Apenas abaixe isso.
Ele obedeceu, um pouco rápido demais, de forma que a adaga bateu na madeira e sacudiu as caixas ali. Brie deslizou para frente rapidamente, pegou a arma e a colocou de volta na bainha usada. Kriege observou seus movimentos: ele observava tudo que tinha a ver com coisas marciais — quanto a isso, o menino era diferente de seu vatarh, e mais parecido com o vatarh de Brie, que era obcecado por armas brancas e possuía uma coleção de espadas e facas que causava inveja até mesmo a museus. O verdadeiro nome de Kriege era Jan — em homenagem a seu vatarh e a seu vavatarh; ele tinha adquirido o apelido de “Kriege” (guerreiro) ainda muito cedo por sua personalidade teimosa e birrenta quando bebê. O nome tinha pegado; ele era “Kriege” para todos no palácio. E agora parecia que tinha a intenção de honrar o apelido.
A própria Brie herdara o fascínio do vatarh por armas; na verdade, ela chamara a atenção do marido pela primeira vez quando demonstrou sua habilidade com espadas em um evento palaciano em que compareceu com seu vatarh, duelou e derrotou um chevaritt que dera uma resposta depreciativa a um comentário que Brie tinha feito sobre sua arma. Ela geralmente levava uma arma escondida no corpo, ainda.
Mas esta não era a arma dela; era de Jan. Brie devolveu a adaga à caixa de pau-rosa onde Jan a guardava quando não estava em seu cinto, e se agachou em frente a Kriege. Os cachos castanhos do menino caíram sobre sua testa quando ele abaixou a cabeça, e ela ergueu o queixo do filho com a mão, sorrindo para ele.
— Você sabe que não deveria estar aqui, não é?
Ele assentiu, uma vez, em silêncio.
— E você sabe que não deveria mexer nas coisas do seu vatarh, não é?
Outro gesto com a cabeça.
— Desculpe — respondeu ele.
— Do que você se desculpa?
A voz surgiu por trás dos dois; Brie olhou para trás e viu Jan parado na porta do próprio quarto, ainda de camisola, com o cabelo despenteado. Ele bocejou com sonolência e esfregou o rosto barbado.
Brie hesitou, mas Kriege já tinha passado por ela, abraçando as pernas de seu vatarh.
— Vatarh, era a sua adaga. Eu queria vê-la...
Jan olhou para Brie, ainda agachada diante da penteadeira. Ela levantou os ombros para o marido, balançando a cabeça.
— Minha adaga, é? Bem, venha cá...
Ele levou Kriege pela mão até a penteadeira. Abriu a caixa de pau-rosa e tirou a arma e sua bainha suja e manchada. O pomo no fim do cabo era decorado por pedras semipreciosas — Brie suspeitava de que tinha sido isso o que atraíra Kriege em primeiro lugar —, e o cabo em si era feito de madeira sólida de acácia-negra. A lâmina tinha dois gumes que se estreitavam em um ponto preciso e mortal. Uma arma elegante. Com uma história elegante.
Jan segurou a adaga, embainhada, na mão.
— Era isto o que você estava procurando?
Kriege assentiu enfaticamente.
— O que você sabe sobre essa faca?
— Eu sei que o senhor sempre a usa, vatarh. Eu a vejo no seu cinto quase todos os dias. E sei que ela é antiga.
Jan sorriu para Brie sobre a cabeça de Kriege. Ela respondeu para o filho.
— E é muito antiga. Foi feita para seu trivatarh, Karin, quando ele se tornou hïrzg, há quase 70 anos, e ele a deu para seu bivatarh, Jan, quando ele era jovem, e Jan a deu para... — ela parou, olhando para Jan, que levantou os ombros — ... sua mamatarh Allesandra.
Brie não mencionou que Allesandra usou a adaga para matar o mago ocidental Mahri. Supostamente, tanto Karin quanto o primeiro Jan também mataram alguém com a mesma arma. Seu Jan também tinha encontrado um motivo para alimentar seu aço com o sangue de um inimigo — quando sua espada fora quebrada no meio da batalha contra o exército de Tennshah.
— E Allesandra deu para seu vatarh.
Os olhos de Kriege foram ficando cada vez mais arregalados conforme Brie contava a história da arma.
— O senhor vai me dar a adaga um dia também, vatarh? — ele perguntou para Jan, depois fez uma expressão apreensiva e uma careta de desdém. — Ou a estúpida da Elissa vai ficar com ela porque é a mais velha?
Brie conteve a risada enquanto Jan abriu a boca, e a fechou novamente.
— Ninguém vai ganhar a adaga até que estejam muito mais velhos — ele respondeu, finalmente. — Ela não é um brinquedo.
— Eu quero uma faca só minha — insistiu Kriege. — Tenho idade suficiente. Eu não vou me cortar. Serei bem cuidadoso.
— Tenho certeza que sim — disse Jan.
Ele respirou fundo e olhou mais uma vez para Brie, que balançou a cabeça levemente. Não, ela murmurou.
— Vamos fazer assim — o hïrzg disse para o filho. — Mandarei Rance conversar com o mestre de armas da Garde, para ver se ele pode lhe ensinar como manusear corretamente uma faca. Se ele me disser que você compreendeu e aprendeu todas as lições, então talvez no seu aniversário nós possamos conversar sobre algo que você possa usar em eventos de estado.
— Ah, obrigado, vatarh!
Kriege exclamou e abraçou Jan novamente. E se afastou, dizendo.
— Eu vou contar para Elissa e Caelor. Eles vão morrer de inveja!
O menino saiu correndo do quarto, chamando os irmãos.
— Não. — Jan disse, erguendo a mão quando Brie começou a falar. — Eu sei o que você vai dizer. Eu sei. Elissa estará aqui em poucos minutos, exigindo saber por que não pode ter uma faca também, e Caelor virá logo atrás dela.
— E o que você dirá a eles?
— Que Caelor precisa esperar até que tenha a idade de Kriege.
— E Elissa?
— Acho que ter aulas para aprender a manusear uma arma seria bom para ela. É uma habilidade que ela pode vir a precisar um dia. — Jan guardou a adaga de volta na caixa e fechou sua tampa. — Não concorda?
Essa é uma das muitas habilidades que ela precisará aprender, Brie poderia ter respondido, ao se lembrar de Mavel co’Kella, que a esta altura estava a caminho de seus parentes em Miscoli. Brie tinha certeza de que Jan sabia o que tinha acontecido e quem a tinha mandado embora, apesar de que nenhum dos dois tenha falado a respeito. Ele tinha vindo ao quarto de Brie na noite passada, o que indicava que ninguém tinha entrado na cama de Jan ontem.
— Às vezes — respondeu Brie —, não se pode ter tudo que se quer. Nem mesmo o hïrzg.
Jan lançou um olhar severo para a esposa ao ouvir isso, e ela acrescentou.
— Ou a hïrzgin. Caso esse seja o destino dela.
— É verdade. Mas mesmo assim acho que será bom para Elissa... e que ela tenha aquelas aulas com Kriege. Eles podem começar a se relacionar melhor.
Jan ergueu a cabeça. Ambos ouviram o bater de pés no corredor, seguidos pelos chamados sonolentos e em vão da babá atrás deles (sim, ela teria que falar com a mulher, e talvez substituí-la), e, logo depois, a voz de Elissa.
— Vatarh! Onde está o senhor, vatarh?
Ele suspirou, Brie colocou a mão sobre a de Jan.
— Ela é sua filha. Assim como você, quando quer alguma coisa, ela dá um jeito de conseguir. Você não pode culpá-la por isso.
Ele teria respondido, mas Elissa irrompeu no quarto pela porta de serviço no segundo seguinte, com o irmão caçula, Caelor, vindo logo atrás.
— Vatarh, não é justo! — exclamou a menina ao bater com o pé no chão.
— Vou deixá-lo responder — falou Brie para Jan, rindo. — Vou chamar a camareira para me ajudar a vestir. Preciso ter uma conversa com a babá...
Varina ca’Pallo
— Aqui está — disse Pierre Gabrelli entregando o dispositivo para Varina — Espero que funcione para você — ele acrescentou com um sorriso irônico.
Ela segurou o objeto em suas mãos, admirada.
— Pierre, isto é lindo...
O sorriso do homem se ampliou.
Ela montou sozinha a maior parte das versões experimentais do objeto, garimpando peças aqui e ali na cidade e depois juntando tudo. Seus próprios dispositivos eram funcionais, mas feios e desajeitados de manusear. Pierre era ferreiro e artesão, assim como numetodo. O que ele tinha dado a Varina não era uma cópia crua da ideia que ela tinha em mente, mas uma obra de arte.
Varina manuseou a “chispeira”, como decidira chamá-la, para examinar todos os lados, maravilhada. O dispositivo era deliciosamente pesado e sólido e, no entanto, balanceado o suficiente para ser empunhado com uma mão. Um tubo de metal reto e octogonal — mais espesso desta vez — estendia-se a um palmo do cabo curvo de madeira. Os canos de Varina eram lisos, sem adorno; este era gravado com desenhos de vinhas e folhas enroscadas, o metal era escovado e os desenhos tinham sido traçados em preto fosco. Onde o cano encontrava a madeira, as folhas se lançavam para fora, encaixando perfeitamente em nichos na madeira entalhada para receber o padrão floreado. E a madeira: Pierre pegou várias espécies de madeira, laminou todas juntas, e a variedade de grãs criou um padrão adorável e atraente sob o verniz reluzente. O tambor que carregaria a pólvora não era mais um dispositivo bruto parafusado tortamente no topo: aqui estava encaixado em seu próprio nicho no cabo, e Pierre tinha incluído uma tampa de metal para protegê-lo da chuva e fechá-lo. A roda de aço finamente salientada e ligeiramente sulcada no tambor era cromada e polida; um pequeno cão sobre ele tinha o mesmo desenho de vinhas e folhas do cano, com uma peça delicada de pirita presa nos mordentes. Um guarda-mato — também no formato de folha e cromado — envolvia o mecanismo de disparo.
Ao olhar fixamente para o objeto, Varina esqueceu-se por um momento da dor que pairara como uma sombra negra sobre ela há dias. Por um momento, havia luz em seu mundo.
— Tenho medo de testar isso — ela disse para Pierre. — Odiaria estragá-lo.
— Foi totalmente feito de acordo com suas especificações, que eram, devo dizer, engenhosas; eu só acrescentei a decoração para deixá-lo bonito. Vá em frente, puxe o cão para trás. Coloque o polegar na folha e pressione para trás...
Varina obedeceu: ela ouviu os mecanismos clicarem suavemente quando a pirita se afastou do tambor, ouviu a mola presa à engrenagem ranger ao ser estendida, sentiu o gatilho deslizar para frente e travar. Varina colocou o dedo em volta do gatilho e o apertou: ele voltou imediatamente dando um estalo; a engrenagem girou furiosamente; o cão de pirita bateu contra o aro da roda, e ela viu fagulhas saírem voando do tambor.
Varina podia imaginar o resto: as fagulhas acendendo a areia negra no tambor; a explosão propagando uma bola de chumbo saída do buraco redondo feito no cano...
Pelo menos, esta era a teoria. A última versão feita por ela, bem mais crua, quase funcionou, como ela tinha contado a Karl. Quase — ela ainda carregava as cicatrizes dessa experiência. Ou o cano do dispositivo tinha ficado fino demais, ou o metal tinha algum defeito, ou o buraco tinha sido feito ligeiramente torto. A explosão da areia negra fez o cano se romper, espalhando uma chuva de fragmentos de metal no ambiente, um dos quais tinha aberto um corte profundo no braço de Varina — mais dois palmos para cima e teria acertado seu rosto, mais um palmo para o lado e poderia ter penetrado seu peito. Ela podia ter ficado cega ou morrido — isto foi o que Varina não contou para Karl.
Ao pensar em seu nome, a tristeza ameaçara voltar, e ela forçou-se a sorrir para o ferreiro e fingir.
— Pierre, eu devia ter pedido para você fazer isso há tempos. Ela é bem mais elegante do que as engenhocas que eu fiz sozinha. Todo esse trabalho lindo. É só que... e se ela se quebrar como a última?
— Então a senhora me diz o que preciso fazer para a próxima funcionar melhor, não é? — Ele sorriu novamente. — Ande. Teste. Estou morrendo de vontade de ver.
Pierre arregalou os olhos subitamente ao se dar conta do que disse.
— A’morce, eu...
Varina sorriu e tocou a mão do ferreiro. Ela meneou a cabeça.
— Eu não sei.
Até agora, Varina tinha conduzido todas as experiências sozinha. Os outros numetodos sabiam que ela estava fazendo experimentos com alguma espécie de dispositivo para disparar areia negra, mas ninguém — nem mesmo Karl — sabia dos detalhes.
— Pierre... isso é perigoso. Se...
Desculpas. Apenas desculpas. Varina não queria que Pierre estivesse presente; ela notou pelas rugas de expressão em seu rosto que ele compreendeu.
Ele franziu a testa. Deu de ombros.
— Como quiser, a’morce — respondeu Pierre.
Ele se dirigiu até a porta do aposento; Varina quase o chamou de volta, sentindo-se culpada, mas a letargia que tomara conta dela nos últimos dias a tinha deixado lenta e desanimada, e ela não o chamou.
A porta se fechou quando Pierre saiu.
Varina estava no porão da Casa dos Numetodos na Margem Sul, um dos vários laboratórios de lá. Seus laboratórios. Foi aqui que Varina, há anos, desvendou a fórmula de produção da areia negra dos tehuantinos. Foi aqui também que ela trabalhou no desenvolvimento da magia ocidental: a cansativa habilidade de encantar um objeto para armazenar um feitiço. Varina tinha passado muitas longas horas aqui. Horas demais, ela pensava, às vezes. Às vezes parecia que Varina tinha passado toda a sua vida aqui. Sozinha, na maior parte do tempo. Cada marca, cada arranhão na mobília, cada pincelada de tinta nas paredes lembrava a Varina do passado.
Ela tinha organizado o laboratório com cuidado: em uma das extremidades do cômodo havia um boneco de pano, vestido com um conjunto velho e amassado de armaduras de placas dadas pelo comandante co’Ingres. Na outra extremidade, Varina tinha posto uma mesa com um torno pesado de madeira. Uma das coisas que ela tinha aprendido no decorrer desse experimento era que o dispositivo dava um coice quando a pólvora era acendida. Durante uma das experiências, Varina machucara o pulso quando uma das versões da chispeira ricocheteou fortemente em sua mão ao disparar. Desde então, ela passara a usar o torno para segurar as várias encarnações das chispeiras e um barbante amarrado ao gatilho para acioná-lo — esse esquema provavelmente a salvou de ferimentos mais graves quando o cano explodiu na última vez.
Varina levou a chispeira de Pierre até a mesa. Com cuidado, ela encheu o recipiente com areia negra delicadamente. Ela tinha preparado “cartuchos” de papel com mais areia negra e uma bola de chumbo, que ela enfiou no cano. Dobrou um pano em volta do cano — “é tão bonito que não quero arranhá-lo no torno”, ela teria dito para Pierre, caso ele estivesse ali — e fechou o tambor do dispositivo, depois de garantir que ele estava apontado diretamente para o peito do boneco. Ela puxou o cão de pirita, amarrou um barbante ao gatilho e foi para trás da mesa, com o barbante na mão.
O cano da chispeira apontava de maneira ameaçadora para o boneco de armadura. Varina puxou o barbante.
A engrenagem girou, faíscas voaram. Ouviu-se um estouro alto, e uma fumaça branca saiu detrás do cano e do tambor. Na outra ponta do laboratório, ela ouviu um nítido estalo metálico.
Varina abanou a mão em meio à fumaça cáustica. Deu uma espiada no boneco: no meio da placa peitoral, apareceu um buraco escuro. Ela arrastou os pés até lá o mais rápido que pôde, inclinando-se para examinar a armadura. Havia um buraco tão largo quanto seu dedo indicador, com as bordas rasgadas e voltadas para dentro. Ela meteu o dedo no buraco — não conseguiu sentir o fundo, e o buraco ficava maior conforme ela penetrava no recheio do boneco. Em algum lugar ali no fundo, havia pedaços da bola de chumbo enterrados. Varina percebeu que estava prendendo a respiração.
Um golpe de espada teria sido aparado pela armadura. A flecha de um arco teria ricocheteado. A seta de uma besta talvez tivesse penetrado, mas não tão fundo.
Funcionou. Se fosse um garda, estaria no chão, sangrando terrivelmente ou talvez morto...
Varina podia imaginar a cena, e essa não era uma visão agradável; ela já tinha visto muita gente morrer em batalha. Varina endireitou o corpo. Voltou para a mesa e examinou a chispeira no torno. Ela parecia inteira e incólume, seu cano ainda estava reto e intacto, exceto por uma mancha de fuligem negra na ponta. Também havia marcas de fuligem em volta do tambor, mas, tirando isso, a arma parecia estar ilesa. Varina abriu o torno e tirou o dispositivo. Então, ela o segurou com o braço estendido e apontou seu cano para o boneco.
Bem, minha velha, o próximo passo é óbvio, se você quiser dá-lo... Isso tinha soado como Karl, rindo ao repreendê-la. A lembrança trouxera lágrimas aos seus olhos, e ela teve que parar por um momento para conter o choro. Varina pousou a chispeira na mesa e, depois de alguns instantes, começou a encher novamente o tambor com mais areia negra e enfiar outro cartucho de papel no cano. Ela pegou a arma e puxou o cão de pirita para engatilhá-lo. Suas mãos tremeram um pouco ao apontar a arma. Varina estendeu a outra mão para estabilizá-la enquanto olhava pelo cano. Ela se perguntou, por um segundo, se estava sendo precipitada e imprudente, se deveria esperar e repetir a experiência como tinha feito minutos atrás, mas no mesmo momento em que a ideia lhe veio à cabeça, ela apertou o gatilho e fechou os olhos.
A resposta da chispeira foi terrível, e a arma deu um pulo em sua mão, embora não tão forte quanto ela se lembrava. Varina abaixou a arma e espiou o boneco. Sim, havia um segundo buraco na armadura, este do outro lado da placa peitoral, mais alto.
Alguém bateu na porta do laboratório.
— A’morce, a senhora está bem? — chamou uma voz vaga.
— Sim — respondeu ela. — Estou bem, está tudo bem.
Varina sentou-se na única cadeira do aposento, com a chispeira aninhada em seu colo. Estava quente, e uma fina coluna de fumaça subia do cano. Varina olhou fixamente para ela: sua criação.
Qualquer um pode manusear isto. Só é preciso um pouco de habilidade e alguns momentos para aprender. Com isso, qualquer um pode matar uma pessoa à distância, mesmo um garda de armadura. Ela sempre tivera a capacidade de imaginar possibilidades; Karl sempre dissera que era isso que a tornava uma boa pesquisadora para os numetodos. “Você tem imaginação”, ele dizia. “Consegue enxergar possibilidades onde ninguém mais as vê. Esta é a melhor magia que se pode ter.”
A linha de pesquisa que produzira a chispeira tinha sido o resultado dessa capacidade — ela vinha experimentando uma nova mistura de areia negra há alguns anos. Varina colocou uma pequena quantidade dessa areia negra no fundo de um recipiente estreito de metal, tampado por um pilão de pedra; ela não tinha notado que o pilão estava rachado e que tinha deixado para trás um pedaço do pilão dentro do recipiente. Varina usou um feitiço de fogo para acender a areia negra... e o fragmento do pilão foi impulsionado pela boca do recipiente, batendo no teto do laboratório. O sulco na viga de madeira ainda estava lá, em cima da mesa. Ela percebeu, então, que a areia negra podia ser usada para outros fins que não os da simples destruição dispersa.
Um exército de soldados com chispeiras... Varina podia imaginá-lo, e a visão fez suas mãos tremerem.
Isso podia mudar a guerra. Isso mudaria a guerra. Completamente. Assim como a própria areia negra estava começando a tornar os ténis-guerreiros desnecessários, a habilidade no manuseio de espadas pesadas também já não era mais importante, não quando tudo o que era necessário era de força para puxar um gatilho e de olhos para mirar pelo cano.
Qualquer um podia ser um guerreiro. Qualquer um podia fazer justiça.
Qualquer um podia se vingar. Ou matar um cão raivoso.
Qualquer um podia matar desnecessariamente. Pelo pior ou mais trivial dos motivos.
Qualquer um. Até mesmo ela.
O que eu fiz desta vez, Karl?
Varina piscou. Sua mão acariciou o verniz sedoso do cabo. Que ironia: um instrumento tão belamente esculpido e dedicado inteiramente à destruição.
Finalmente, ela se levantou da cadeira e foi até a mesa. Tampou o frasco de areia negra e recolheu os cartuchos de papel que havia preparado. Varina colocou o frasco, os cartuchos e a chispeira em uma bolsa de couro e pendurou no ombro. Apagou as lanternas que iluminavam o laboratório, abriu a porta e trancou novamente ao sair.
Com a bolsa pesada no ombro e as mãos ainda se ecoando a sensação da chispeira ao disparar, Varina subiu a escada.
Jan ca’Ostheim
— Nossas tropas estavam tranquilamente a um dia de marcha além das fronteiras de Il Trebbio, antes que tivéssemos qualquer sinal de termos sido vistos. Tivemos uma pequena escaramuça com uma companhia de chevarittai dos Domínios. Dois deles foram mortos por nossos ténis-guerreiros, e os chevarittai deram meia-volta e fugiram depois disso; nenhum dos nossos homens foi gravemente ferido. Dadas as nossas últimas conversas, depois passar um dia ali eu recuei o batalhão pela fronteira. Com tudo que descobrimos nos últimos meses, hïrzg Jan, parece que as fronteiras dos Domínios são um tanto quanto porosas, e Il Trebbio certamente é um dos pontos mais fracos. A kraljica Allesandra não tem forças suficientes...
Armen ca’Damont, starkkapitän da Garde Civile firenzciana, parou de ler o relatório para Jan quando a porta do aposento foi aberta repentinamente, batendo com força nos aparadores. Um trio de crianças entrou no rastro da interrupção, seguido de longe por uma das criadas com uma criança menor nos braços.
— Vatarh!
Kriege, o filho mais velho de Jan, foi o primeiro a entrar. Ele bateu o pé e olhou com raiva para a irmã, que vinha atrás de si. Caelor, um ano mais novo que Kriege, parou ao lado do irmão, concordou enfaticamente com a cabeça e lançou o mesmo olhar.
— Nós estávamos brincando de chevarittai, e Elissa trapaceou! Não é justo!
A babá entrou correndo, com uma aparência nervosa, e fez uma reverência desajeitada para Jan e ca’Damont, com Eria, a caçula de Jan, agora nos braços.
— Sinto muitíssimo, hïrzg — disse a mulher sem erguer o olhar. — As crianças estavam brincando, e eu vestia a pequena Eria, quando houve uma discussão e eles correram para encontrá-lo...
— Tudo bem — respondeu Jan sorrindo para ca’Damont. — Não se preocupe. Agora, Kriege, que história é essa de trapaça?
— Elissa trapaceou — repetiu Kriege, fazendo uma careta tão feia que parecia cômica. — Trapaceou, sim.
— Elissa? — disse Jan em tom severo ao mover o olhar na direção da filha.
Outra criança talvez olhasse para o chão. Jan sabia que Caelor teria olhado, ainda que com censura, e até mesmo Kriege afastava o olhar agora. Mas Elissa devolvia o olhar calmamente, fitou uma vez o rosto magro de ca’Damont, marcado e desfigurado pelas memórias de velhas batalhas, e depois se fixou em Jan. Ela penteou para trás os fios castanhos-dourados que escaparam das tranças que caíam nos olhos.
— Eu não trapaceei, vatarh — respondeu Elissa. — Não mesmo.
— Trapaceou, sim — interrompeu Kriege, batendo o pé novamente. — Ela mentiu.
Elissa nem se incomodou em olhar para o irmão. Seu olhar permanecia fixo em Jan.
— Eu realmente menti, vatarh — admitiu ela. — Eu disse para Kriege que o ajudaria se ele atacasse o fortim de Caelor com seus soldados.
— Ela disse que usaria os ténis-guerreiros no próximo turno para me ajudar — interrompeu Kriege novamente. — E não ajudou. Em vez disso, quando chegou o turno dela, Elissa me atacou e eu perdi todos os meus fortins e a maior parte dos chevarittai. Ela trapaceou.
Jan voltou a olhar para ca’Damont, que continha um sorriso.
— Isso é verdade, Elissa?
A menina assentiu.
— Sim — respondeu em tom sério. — Veja bem, Caelor tinha a maior parte dos fortins e soldados que sobraram no tabuleiro, e Kriege e eu tínhamos mais ou menos o mesmo número. Eu sabia que não venceria Caelor sozinha, portanto, disse para Kriege que o ajudaria porque sabia que Caelor acabaria com vários soldados dele e perderia homens suficientes, de maneira que não poderia me atacar, e então, quando fosse meu turno, eu poderia tomar a maior parte dos fortins de Kriege e capturar soldados suficientes para provavelmente ganhar o jogo.
Elissa olhou para os irmãos.
— E teria ganhado também, se Kriege não tivesse ficado furioso e derrubado todas as peças no chão.
O riso abafado de ca’Damont era audível, e ele virou o rosto com cicatrizes por um momento. Jan teve que lutar para conter seu próprio divertimento, embora a graça fosse moderada pela similaridade entre Elissa e Allesandra, a mamatarh da menina. Jan podia imaginá-la fazendo a mesma coisa quando criança; era o que ele a tinha visto fazer quando adulta.
— Então... — disse Jan para a filha —, você ofereceu ao seu irmão uma aliança que não pretendia cumprir para que pudesse ganhar? Estou certo?
Ela assentiu. Jan olhou para os dois meninos e disse.
— Acho que sua irmã acabou de ensinar uma lição excelente a vocês. Na guerra, às vezes a palavra de uma pessoa não é suficiente. Às vezes seu inimigo mentirá para vocês com o intuito de ganhar vantagem. E há mais coisas na guerra do que deslocar soldados. Vocês dois devem se lembrar disso.
— Mas ela trapaceou! — insistiu Kriege, batendo o pé mais uma vez.
Jan cofiou a barba, tentando não rir.
— O que você acha, starkkapitän? — perguntou ele para ca’Damont. — Devo punir Elissa por sua trapaça?
— Não, meu hïrzg — respondeu ca’Damont.
Jan viu o rosto de Elissa relaxar ligeiramente — então a menina estava preocupada com o que ele poderia fazer. O starkkapitän continuou.
— Mas eu diria que ela também aprendeu uma lição nesta situação, a de que quando alguém dá a sua palavra, a outra parte poderá ficar aborrecida se essa palavra não for cumprida, e às vezes sua reação pode impedir que se obtenha a vantagem que se esperava ganhar. Agora ninguém vai saber qual de vocês teria vencido o jogo.
Jan deu um tapinha no ombro de ca’Damont.
— Pronto, viram só? — disse o hïrzg para os filhos. — Vocês ouviram do próprio starkkapitän. Ele entende mais de guerra do que qualquer um de nós. Espero que tenham aprendido bem, pois quando um de vocês for hïrzg...
— Rezemos a Cénzi para que isso não aconteça ainda por muitas décadas, meu marido.
A voz ergueu a cabeça de Jan, que viu Brie parada no umbral, rindo da cena. Ele foi em sua direção, deu-lhe um beijo e um abraço breve. Brie cheirava a jasmim e água doce, e seu cabelo — que um dia fora da mesma cor que o de Elissa, mas que agora ficava escuro — era macio mesmo preso nas tranças firmes de Tennshah, tão populares nos dias de hoje. Se sua silhueta tinha ficado mais pesada depois de dar à luz a seus filhos, bem, isso era como as cicatrizes no rosto de ca’Damont; um sinal dos sacrifícios que ela fizera.
Rance tinha contado para Jan que foi Brie quem mandara Mavel co’Kella embora e o porquê. Após a irritação inicial, ele ficou feliz: isso poupou-lhe o trabalho de fazer o mesmo.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Brie, que olhou para as crianças, para a criada que segurava Eria e para a babá. — Rance me disse que você ainda estava em reunião, temos que estar no templo para a bênção do Dia do Retorno em uma virada da ampulheta.
Ela balançou a cabeça, embora a expressão no rosto fosse paciente e calma.
— E nenhum de nossos filhos está arrumado ainda.
— Desculpe-me, hïrzgin — falou a babá ao fazer uma mesura. — A culpa é minha. Eu vou arrumar as crianças. Elissa, Kriege, Caelor, venham comigo agora. Rápido...
Brie abraçou cada um ao saírem (Kriege ainda de cara feia e vermelho de raiva, Elissa com um sorrisinho de triunfo, Caelor sempre circunspecto e pensativo).
— Também devo me retirar — disse ca’Damont, fazendo uma reverência para Brie e Jan, e se dirigiu ao hïrzg. — Eu mandarei meu escriba preparar um relatório completo para o senhor hoje à tarde. E verei o que o embaixador ca’Rudka tem a dizer quando chegar. Tenho certeza de que ele receberá a notícia a caminho daqui. Hïrzg, hïrzgin...
O starkkapitän fez uma mesura e se ausentou. Quando as portas da câmara se fecharam, Brie foi até Jan, o abraçou novamente e ergueu a cabeça para ser beijada. Ela recuou um pouco nos braços dele e puxou o colarinho da camisa.
— Você vai usar isto na cerimônia?
— Estou considerando, sim. É confortável.
— Mas você fica tão bonito naquela sua camisa vermelha nova.
Jan sorriu para Brie.
— Então talvez eu mude para a vermelha, só para lhe agradar.
Ela o beijou novamente.
— Armen não teve problemas em Il Trebbio?
— Menos do que eu esperava, na verdade.
Brie assentiu, encostando a cabeça no ombro dele.
— As crianças nunca viram a mamatarh, Jan. Eles apenas a veem como aquela mulher horrível de Nessântico que às vezes envia presentes. Eu acho que você devia considerar o que Sergei quer oferecer por ela.
— Ela é a responsável pelo afastamento — respondeu Jan. — E Rance concorda que não deve haver acordo algum com os Domínios. Se ela queria paz, não deveria ter apoiado Stor ca’Vikej na Magyaria Ocidental e não deveria ter permitido que o filho dele andasse à vontade pela corte dos Domínios. Ela fez a fama, agora que se deite na cama; se achou desconfortável, bem, ela é a única responsável.
— Eu sei — sussurrou Brie. — Eu sei. Mas ainda assim... As crianças devem conhecer seus parentes, e não considerá-los inimigos.
— Então que ela abra mão completamente do Trono do Sol, em vez de deixar que Sergei proponha essa tolice de me nomear a’kralji.
— Você a colocou no trono, meu amor.
A censura não tinha sido tão dura quanto poderia, e Brie tocou o rosto dele delicadamente para abrandá-la.
— Eu sei, você fez o que achou que era certo na ocasião.
— Eu era jovem e tolo — disse Jan, que abriu os braços e soltou Brie. — Não quero falar sobre isso, não agora.
Ele pegou a mão da esposa e a beijou.
— Deixe-me mandar os camareiros encontrar esta camisa vermelha que você gosta tanto, e iremos ao templo fazer nossa aparição...
Jan ouviu um suspiro contido, mas Brie sorriu para o marido, passou a mão em seu peito e parou exatamente no cinto.
— Não os chame ainda — disse Brie, que ficou na ponta dos pés para beijá-lo, enquanto deixava a mão onde estava. — Ainda há tempo, não, amor?
Ele riu.
— Quanto tempo quisermos. Eles não podem começar sem nós, não é?
Jan beijou Brie novamente, com mais urgência. Ele sentiu o corpo da esposa ceder ao dele, e isso espantou todos os outros pensamentos, por um instante.
Rochelle Botelli
A cerimônia começou tarde, uma vez que a comitiva real chegou atrasada ao templo. Rochelle, em meio à confusão de pessoas comuns, sem status, encontrou alívio no abrigo de uma das meias colunas do interior, na parede dos fundos, encostando-se ali com os olhos semicerrados, com as narinas queimando com o fedor de incenso e os ouvidos cheios do cântico das preces e da cantoria do coro. Ela ouviu os ca’ e co’ sentados ficarem de pé quando as trompas soaram seu chamado lamentoso do domo do templo e as grandes portas principais se abrirem para dar passagem ao hïrzg e sua família. A luz radiante do sol entrou na escuridão parcial do templo. Rochelle abriu totalmente os olhos e subiu na base da meia coluna, para olhar sobre as cabeças da congregação.
A procissão era liderada pelo archigos Karrol e vários o’ténis, envoltos pela bruma de fumaça aromática dos incensórios, com quatro ténis-luminosos cantando e levando lanternas com chamas amarelas ainda mais intensas que o sol. O archigos andava devagar, com um o’téni de cada lado, caso ele tropeçasse — Karrol tinha mais de sete décadas de idade, e embora ainda tivesse a mente afiada de sempre, nos últimos anos sua saúde física começara a declinar, e seus assistentes estavam sempre atentos quando ele subia degraus e escadas, ou quando, como hoje, o ritual exigia que o archigos andasse uma distância considerável, embora ele se apoiasse no cajado do archigos que levava na mão direita, com o globo cravejado e partido de Cénzi na ponta. Karrol vestia um robe verde enfeitado com fio dourado, os desenhos reluziam na claridade que o banhava, o longo cabelo branco parecia brilhar sob a coroa pontiaguda. Ele ergueu sua mão livre para saudar a multidão, e a boca curvou-se em um sorriso sob a barba.
O starkkapitän Armen ca’Damont e sua família vieram a seguir, seguidos dos integrantes do Conselho dos Ca’ com suas famílias. Rochelle ficou na ponta dos pés para ver melhor Jan quando ele entrou. Ela lembrava-se da matarh — nos momentos cada vez mais raros de lucidez antes que fosse completamente dominada pelas vozes em sua cabeça — falando de Jan, dizendo que ele era bonito, o jeito que a abraçava, a promessa de que a amaria para sempre.
Que Jan era seu vatarh.
A matarh de Rochelle amou Jan até a morte, assim como odiou a kraljica Allesandra por ter separado os dois.
Rochelle já tinha visto quadros do hïrzg e olhado fixamente para a imagem, à procura de alguma semelhança com as feições que ela via quando se olhava em metal escovado ou água parada. Talvez o nariz fino e comprido? Ou as maçãs do rosto acentuadas? A pele, mais escura e facilmente bronzeada no sol; será que indicava as Magyarias e o sul, onde o hïrzg nasceu? Será que esses traços tinham vindo do vatarh de Rochelle, ou da vavatarh?
Ela nunca o vira assim tão perto, ao vivo — a uma distância tão curta quando Jan entrou no tempo. Rochelle espiou ansiosamente na direção do hïrzg.
Ele era bonito: tinha uma barba fina e escura que envolvia sua mandíbula firme, um nariz fino e comprido (sim, parecido com o dela), uma pele tão escura que se destacava entre os firenzcianos no templo; olhos escuros e intensos; cabelo cacheado e tão escuro que era quase preto, embora o sol revelasse mechas vermelhas e cor de bronze.
Parecia com o cabelo dela. Como o rosto que Rochelle às vezes via devolvendo o olhar.
Sim, ele podia ser mesmo seu vatarh. As histórias que sua matarh lhe contara podiam ser verdade. Rochelle ficou aflita quando o hïrzg olhou em volta, quando seu olhar passou momentaneamente por ela. Ela ergueu a mão; e ele pareceu acenar ligeiramente com a cabeça para ela.
Ao lado dele estava a hïrzgin Brie. Rochelle viu a mão de Jan tocar sua cintura ao se aproximar e cochichar alguma coisa em seu ouvido. A hïrzgin riu, e Rochelle viu o carinho nos olhos da mulher ao encarar o marido. O vatarh de Rochelle. E atrás...
Atrás deles estavam os filhos. Rochelle sabia seus nomes; todo mundo em Firenzcia sabia. Ela olhou fixamente para as crianças, seus meios-irmãos. Sentiu vontade de chamá-los. “Eu deveria estar ali, com ele”, dissera sua matarh, “com você como a filha mais velha, aquela que Jan mimaria, que sempre faria com que ele desse aquele sorriso. Jan tinha um sorriso tão maravilhoso...”.
Rochelle sorriu para Jan, mas ele não estava mais olhando na sua direção, ele agora havia passado por ela, percorrendo a passos largos a nave do templo em direção ao coro, onde o archigos Karrol o esperava. O hïrzg cumprimentou os ca’ e co’ nos bancos voltados para a frente.
Rochelle imaginou-se andando com ele. Imaginou-se recebendo uma onda de aplausos. Imaginou que Jan desmanchava seu cabelo em vez do de Elissa.
“Esse era o meu nome: quando o conheci, quando éramos amantes. Era o nome que eu usava na época — Elissa. Ele batizou sua primogênita em minha homenagem. Ele...”.
A família — a família que poderia, que deveria ter sido dela — estava distante agora, entrava nos assentos vazios diante do Alto Púlpito em frente ao templo, sob o domo e as figuras pintadas que olhavam para a assembleia lá do alto, em seus afrescos. Os e’ténis no fundo do templo entoavam cânticos, a energia do Ilmodo fechou as enormes portas de bronze, e Rochelle deixou-se cair do poleiro para o chão. Andando agilmente e em silêncio, ela saiu de mansinho antes que as portas se fechassem.
Rochelle entrou correndo nas zonas mais antigas e pobres da cidade, onde morava. Este era outro conselho da matarh: “Viver entre os ricos deixa a pessoa visível demais. Este foi o erro que cometi com seu vatarh...”. Ela ouviu as trompas do templo soarem a Segunda Chamada e a bênção do Dia do Retorno ao entrar cada vez mais nas vielas estreitas e tortuosas que se enrolavam em torno dos morros de Brezno, com pressa porque estava atrasada para um compromisso.
Alguém queria contratar a Pedra Branca: Josef co’Kella, pertencente a uma família em ascensão que parecia estar envolvida em vários negócios na cidade. Rochelle imaginou que desculpa o homem teria usado para evitar sua presença no templo na manhã de hoje.
Ele já deveria estar esperando do lado de fora da Faísca Azul, uma taverna na alameda Reta — um nome apropriado, pois subia em linha reta pela encosta íngreme do morro Hïrzgai, que abrigava as ruínas do primeiro palácio, queimado e abandonado há três séculos. A Faísca Azul ficava localizada no meio da subida do morro; Rochelle tinha escolhido o lugar porque podia chegar tanto por cima quanto por baixo da alameda, o que lhe dava uma visão de onde era possível determinar se era seguro se aproximar ou se ela deveria passar pela taverna; na última semana, desde que cumprira o contrato com o goltschlager ci’Braun, os utilinos e a Garde Brezno vinham fazendo perguntas e incursões estranhas, prendendo determinadas mulheres pela cidade: mulheres que quase sempre tinham praticamente a mesma idade que sua matarh teria se estivesse viva, mulheres que tinham a mesma compleição física da sua matarh. Era óbvio para Rochelle que eles estavam caçando a Pedra Branca. Era possível que co’Kella fosse a isca de uma armadilha para capturá-la.
Ela se perguntou, mais uma vez, se deveria sequer se encontrar com o homem, mesmo que ele não fosse nada além de um cliente em potencial. O sujeito era um co’, o que significava que Rochelle podia cobrar caro pelo serviço, mas sua matarh a tinha alertado havia muito tempo de que a Pedra Branca deveria cumprir dois, no máximo três, contratos na mesma cidade antes de se mudar. Ela queria ficar em Brezno, agora que tinha visto Jan. Queria saber mais a respeito dele, queria conhecê-lo melhor. Queria encontrá-lo. Seria melhor deixar a Pedra Branca de lado; Rochelle tinha moedas suficientes na bolsa.
Mas a verdade é que ela não queria deixá-la de lado. Era empolgante ser a Pedra Branca, caçar e, consequentemente, matar.
Mais um contrato. Só isso.
Rochelle já tinha visto co’Kella, usando — como ordenado — uma bashta vermelha e um chapéu com uma pena azul. Ele parecia pouco à vontade, observando a todos que passavam enquanto entrava e saía da porta da taverna. Rochelle olhou para ambos os lados da rua; nenhum utilino, nem gardai da Garde Brezno; não havia ninguém por perto fingindo estar fazendo qualquer outra coisa em um lugar onde pudesse vigiar facilmente o homem. O que não significava que não havia gardai escondidos nos prédios nos arredores à espreita, mas até o momento tudo parecia seguro e normal. Ela continuou andando na direção do homem, sem olhar para ele deliberadamente enquanto se aproximava, fingindo estar interessada nas mercadorias das vitrines. Em sua visão periférica, Rochelle notou que co’Kella a examinava com o olhar, afastando o rosto em seguida. Ela passou pelo sujeito e colocou a mão no cabo da faca sob o manto.
— Venha comigo, vajiki co’Kella — sussurrou Rochelle ao passar por ele.
Ela continuou subindo a alameda, lentamente. O homem ficou visivelmente espantado. Em seguida, se moveu e se virou para caminhar ao lado de Rochelle.
— Você é...?
— Eu sou quem você esperava — respondeu ela.
Rochelle olhou para trás: ninguém surgiu dos prédios em volta; nenhum utilino deu um apito de alerta; nenhum esquadrão da Garde Brezno apareceu. Ela relaxou um pouco, embora continuasse a espiar para ver se os dois estavam sendo seguidos — havia um grande emaranhado de travessas que afluíam da alameda Reta, Rochelle pensou que poderia despistar possíveis perseguidores ali, se precisasse. Ela manteve a mão no cabo da faca, caso o próprio co’Kella tentasse atacá-la, mas as mãos do homem estavam visíveis e ele não parecia ter uma espada.
— Qual o seu nome? — perguntou co’Kella.
Rochelle riu.
— Você não precisa saber meu nome, vajiki. Não estamos fazendo negócio, e mesmo que estivéssemos, este é um negócio do tipo que dispensa nomes. Já basta que eu saiba o seu, e não é comigo, afinal de contas, que você quer conversar.
— Então você não é... Claro que não, é tão jovem...
— Não, eu não sou a pessoa que você quer contratar — respondeu ela em tom firme. — Eu sei como entrar em contato com ela, se é isso o que você quer saber. E isso é tudo. Mas nem mesmo eu sei dizer qual a sua aparência ou quem ela é.
Co’Kella parou. Rochelle virou a cabeça para olhar para ele.
— Continue andando, vajiki, a não ser que tenha mudado de ideia.
O homem pareceu sentir um calafrio, depois deu um passo para acompanhá-la novamente.
— Ótimo — disse ela. — Então me diga, quem é a pessoa?
— Quem é a pessoa? — perguntou co’Kella estupidamente, estremecendo novamente. — Ah, isso. Eu preferia não dizer. Apenas para... a pessoa com quem você entrará em contato por mim.
Os dois chegaram a uma das transversais. Rochelle parou.
— Então estamos conversados. Bom dia, vajiki.
Ela começou a virar para a esquerda, se afastando da alameda.
— Não, espere! — berrou co’Kella quando Rochelle deu as costas.
Ela parou e se permitiu abrir um sorriso. Tão típico. Rochelle voltou a subir a alameda, sem dizer nada, e co’Kella a seguiu apressadamente, próximo ao seu cotovelo.
— Eu... eu digo para você. É Rance ci’Lawli.
Ela não conseguiu conter totalmente a surpresa em sua voz.
— Ci’Lawli? O assistente-chefe do hïrzg?
Ele assentiu.
— O próprio.
Você não devia fazer isso. Matar alguém tão próximo ao hïrzg. Ainda assim... seria preciso estar perto ou dentro do palácio, onde teria que estar perto de seu vatarh e da família dele... Rochelle sentiu um pulsar dentro de si, que a fez queimar com um anseio louco que ela não sabia definir.
— Por que ci’Lawli?
Ele torceu o nariz.
— Como você disse, vajica, não há necessidade de nomes, nem de histórias aqui. Eu contarei à Pe... — Ele se interrompeu. — À pessoa que você conhece, se ela se importar.
Rochelle deu de ombros.
— Como queira.
Ela pegou o braço de co’Kella, como se fossem dois namorados passeando pela alameda, e puxou o homem para si. Rochelle sussurrou em seu ouvido: um local, um dia e o valor em solas de ouro.
Co’Kella se afastou dela.
— Tanto assim?
— Tanto assim — ela respondeu. — Esteja lá com as solas se estiver interessado, vajiki, e você a encontrará.
Varina ca’Pallo
Ela sabia que não devia ter feito isso, sabia que Sergei ficaria irritado quando descobrisse — e sabia que ele descobriria. Mas ela esperava que fosse mais tarde, quando fosse tarde demais.
Um dos gardai designados para proteger Varina, a pedido de Sergei, tinha deixado escapar o endereço da casa, no Velho Distrito, que tinha sido invadida pela Garde Kralji. Ela se certificou de que seus compromissos no dia seguinte a fizessem passar pela casa e pediu para o condutor da carruagem parar. O garda (que não era o mesmo que lhe dera o endereço) parecia preocupado quando Varina abriu a porta da carruagem e desceu.
— Vajica ca’Pallo, eu não aconselharia...
— Então não aconselhe — ela interrompeu.
O garda ergueu as sobrancelhas. A reação à reprimenda poderia ter agradado outra pessoa, mas apenas fez Varina se sentir culpada. Ainda assim, ela continuou tentando abrandar o tom.
— Eu só quero ver o lugar onde os morellis moravam. Só dar uma olhada; você pode vir comigo, se quiser.
— O comandante vai pedir a minha cabeça por isso.
— Eu direi ao comandante que não lhe dei escolha.
O garda não pareceu convencido, mas conduziu Varina até a porta da casa. Ela deixou que ele entrasse primeiro. Teve a impressão de que podia sentir olhos os vigiando, os encarando de algum lugar. Sem tentar ocultar o gesto, Varina tirou uma pequena caixa de dentro do manto; entalhada finamente em carvalho envernizado, um trabalho primoroso, a obra de um mestre. Ela pousou a caixa no peitoril da janela mais próxima da porta, sentindo o frio do Scáth Cumhacht agarrado à madeira. Em seguida, rapidamente, seguiu o garda e entrou na casa.
Varina passou pouco tempo ali, já que o que viera fazer já tinha sido feito. Ainda assim, tentou imaginar Nico ali, sua voz e a presença nos cômodos, ou dormindo em uma das camas. Havia ícones religiosos da fé concénziana por todos os lugares da casa, e alguém com algum talento artístico havia pintado o globo partido de Cénzi na parede lateral de um dos quartos, enquanto que na parede oposta as formas demoníacas dos semideuses, os moitidi, paródias distorcidas e deformadas da humanidade, a espreitavam. Varina sentiu um arrepio ao olhar para eles, imaginando como alguém poderia dormir ali, sob esses olhares perversos, sorrisos cruéis e as mãos em forma de garras dos moitidi. Até mesmo o garda balançou a cabeça ao olhar para eles.
— Eles têm uma visão estranha da Fé, esses morellis — comentou o homem.
Os dedos do garda seguravam o cabo da espada com firmeza, como se estivesse com medo de que uma das figuras pintadas pulasse em cima dele.
— Dizem que o archigos Karrol nutre alguma simpatia por eles, embora eu jure que não entendo.
— Eu também não. Não consigo imaginar que o Nico que conheci... — Varina se interrompeu. — Estou pronta para ir.
— Ótimo — respondeu o garda, um pouco rápido demais. — Essa pintura me dá calafrios. É uma coisa feia.
Eles saíram depressa, e o garda fechou a porta atrás deles. Varina se posicionou cuidadosamente entre o homem e o peitoril da janela onde a caixa estava pousada, para garantir que ele não a visse. O condutor da carruagem era de seu corpo de funcionários; ele não diria nada.
O garda abriu a porta da carruagem para ela; Varina entrou, o garda fechou a porta e subiu para o assento ao lado do condutor. A pequena portinhola acima de sua cabeça foi erguida, e Varina viu o rosto do condutor voltado para ela, lá de cima.
— Para casa — ordenou Varina.
O homem assentiu e fechou a portinhola novamente. A carruagem entrou em movimento com um tranco.
Varina olhou para fora quando o veículo partiu. Ela podia ver a caixa no peitoril e o brilho da madeira dourada sob o sol vespertino.
— A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você. — Essas foram as primeiras palavras que ele disse para Varina, sorrindo para ela.
Em sua mente, Nico continuava a ser, de certa forma, a criança que Varina conheceu. Sim, ela sabia que o menino tinha entrado na idade adulta aos 15 anos. Varina tinha acompanhado sua carreira desde que ele reapareceu, de maneira inesperada e repentina, como um téni em ascensão no Templo do Archigos em Brezno, um acólito cuja habilidade com o Ilmodo, cujo carisma e força da personalidade impressionavam a todos que o conheciam. Ela — assim como Karl — tinham tentado entrar em contato com Nico, através de cartas enviadas por meio de Sergei em suas viagens frequentes a Brezno, mas estas seguiram sem resposta. Sergei conseguira falar com ele lá, mas Nico tinha deixado claro que não tinha interesse em entrar em contato nem com Karl, nem com Varina.
— Ele disse assim — falou Sergei ao voltar. — “Diga aos dois hereges que eles são um anátema para mim. Eles ridicularizam Cénzi e, portanto, me ridicularizam. Diga a eles que, quando eles virem os erros em suas convicções, então talvez nós tenhamos alguma coisa a dizer uns aos outros. Até lá, eles estão mortos para mim, tão mortos como se já estivessem em seus túmulos, com suas almas se contorcendo com o tormento dos retalhadores de almas.” E aí ele riu, como se achasse graça na ideia.
Apesar da decepção, Varina continuou a acompanhar a carreira de Nico. Ficara preocupada quando ele e seus seguidores desafiaram diretamente a autoridade do archigos, fazendo com que Nico perdesse o título de téni e fosse proibido de usar o Ilmodo para sempre, sob risco de perder as mãos e a língua.
Então Nico foi embora de Brezno, perambulando por algum tempo e continuando a pregar sua interpretação ortodoxa do Toustour e da Divolonté — os textos sagrados da fé concénziana — até, finalmente, chegar a Nessântico. Agora ele estava perante Varina, e ela ainda podia ver o rosto redondo do menino no semblante barbado, fino e devoto diante de si, com seu olhar forte e intenso.
“A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você.” Em todos esses anos, durante todo esse tempo, foi assim que ele começou. Varina sentiu o peso da chispeira na bolsa presa ao cinto.
— Por que eles ficariam desapontados? — perguntou ela.
Varina gesticulou na taverna do Velho Distrito onde os dois se sentavam. Em volta deles, os clientes conversavam entre si e bebiam. Um grupo de músicos afinava os instrumento em um canto. O barulho emprestava privacidade aos dois na cabine. Nico estava sentado de frente para ela, com as mãos entrelaçadas sobre a superfície arranhada da mesa de madeira rústica entre os dois, quase como se estivesse rezando. Ele vestia preto, o que fazia seu rosto pálido parecer quase espectral em comparação, mesmo com a luz fraca da taverna e da única vela na mesa.
— Por que não há nenhum gardai aqui para prendê-lo? — indagou ela. — Você acha que eu te odeio tanto assim, Nico? Eu não odeio. De maneira alguma. Nem Karl odiava.
— Então por que o esquema elaborado? — perguntou Nico. — Deixar uma caixa encantada... Devo admitir que foi inteligente e certamente chamou minha atenção, embora meu amigo Ancel não tinha dado atenção ao aviso de não abri-la. Ele me disse que pensou que suas mãos fossem empolar, e que a madeira ficara muito quente.
Nico meneou a cabeça, estalando a língua como se estivesse repreendendo uma criança.
— Você realmente deveria ser mais cuidadosa com a dádiva que Cénzi lhe deu, Varina.
Ela respirou fundo.
— Você matou pessoas, Nico. Meus amigos e colegas. Karl já estava morto; você não podia mais machucá-lo. Mas os outros... eles eram pessoas, com maridos, esposas e filhos. E você tirou a vida deles.
— Ah, isso. — Ele franziu a testa momentaneamente. — Está escrito no Toustour: “... se lutarem contra você, mate-os; esta é a recompensa dos incrédulos. Lute com eles até que não haja perseguição, e até que a única religião seja a de Cénzi”. Sinto muito pelo sofrimento que causei às famílias dos que morreram. Sinto muito, de verdade, eu rezei para Cénzi por eles.
As desculpas de Nico pareceram genuinamente sinceras, e lágrimas nascentes brilharam na base de seus olhos. Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, como se estivesse escutando uma voz invisível vinda do alto. Então seu queixo se abaixou novamente, e quando ele abriu os olhos, eles estavam secos.
— Mas, se eu sinto que alguns numetodos tenham sido mortos para serem julgados por Cénzi por sua heresia? Não, não sinto.
— O Toustour também diz: “... ó, seres humanos! Nós os criamos e dividimos em nações e tribos para que vocês conheçam uns aos outros, não para que se desprezem”.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso.
— Eu não esperava que uma numetoda citasse um texto no qual ela não acredita.
— Eu acredito, como qualquer numetodo, que o conhecimento é o que levará à compreensão. Isso inclui conhecer aqueles que lhe consideram um inimigo e entender o que eles acreditam e por que acreditam. Eu li o Toustour inteiro, e a Divolonté também, e tive conversas longas e interessantes com a archigos Ana, com o archigos Kenne e com a a’téni ca’Paim.
— Você leu o Toustour, mas evidentemente não conseguiu enxergar a verdade no texto.
— Qualquer um pode escrever um livro. Eu sou uma numetoda. Preciso de provas. Preciso de provas irrefutáveis. Eu preciso ver hipóteses testadas e resultados repetidos. Só então posso me permitir acreditar. — Varina suspirou. — Mas nenhum de nós vai conseguir convencer o outro, não é?
— Não. — Ele abriu as mãos, com as palmas para cima, sobre a mesa. — Embora eu deva admitir que vocês, numetodos, podem ser úteis ocasionalmente: a areia negra dos tehuantinos, por exemplo. É um tanto quanto irônico, se você pensar a respeito: se eu e minha gente tivéssemos permissão para usar o Ilmodo, então não teríamos precisado usar a areia negra, e seus amigos provavelmente ainda estariam vivos. O Ilmodo, pelo menos, pode ser uma arma precisa.
Varina ficou vermelha, e sua mão acariciou o cabo da chispeira carregada e engatilhada na bolsa do cinto.
— Então por que eu estou aqui, Varina — continuou ele —, se você não está planejando me entregar para a Garde Kralji e me jogar na Bastida?
— Eu queria vê-lo novamente, Nico — respondeu ela.
O dedo de Varina envolveu o guarda-mato de metal do gatilho.
— Eu queria ouvi-lo — a língua de metal frio no dedo se aqueceu com o toque — porque eu preciso saber...
Só um puxão do músculo. É o que basta.
— ... se eu sou o monstro que a Fé pinta? — concluiu Nico para Varina.
Seria tão fácil: embaixo da mesa, retirar a chispeira sorrateiramente e apontar o cano de metal na direção de Nico; puxar o mecanismo do gatilho para girar a engrenagem e soltar faíscas que tocariam a areia negra no tambor fechado. Um instante depois e... Os buracos na armadura; o que isto faria com um corpo desprotegido?
— Ninguém pensa em si mesmo como um monstro — Nico dizia. — Alguns podem julgar o ato de uma pessoa como maldade, mas essas pessoas pensam que estão fazendo o que é necessário para corrigir o que consideram pecado. Eu não sou diferente. Não, eu não sou um monstro.
Ele sorriu para Varina, e seu rosto e olhos ficaram radiantes, de uma maneira que fez com que ela se lembrasse do antigo Nico, da criança.
— Nem você é, Varina. Não importa o que possa estar pensando em fazer comigo.
Seu dedo recuou. Ela tirou a mão da bolsa.
— Nico...
— Varina — ele disse antes que ela pudesse organizar seus pensamentos caóticos —, você fez o que achou melhor para mim durante o Saque de Nessântico. Eu reconheço isso e sempre lhe serei grato por seus esforços, mesmo que você não saiba que estava seguindo a vontade de Cénzi. Quando rezo para Cénzi, peço a Ele perdão por você e Karl. Rezo para que Cénzi levante a cegueira dos seus olhos para que você possa enxergar Sua glória e ir até Ele.
Nico saiu da cabine e parou ao lado dela. Tocou no ombro de Varina levemente e recolheu a mão. Seus olhos estavam tomados por uma tristeza serena.
— Estamos em lados opostos nesta situação. Eu não queria que fosse assim, mas é. Infelizmente, não pode haver reconciliação entre nós. Pelo que você fez, eu sempre te amarei. Porque você também é uma criação de Cénzi, eu sempre te amarei. E por causa do caminho que você escolheu, eu sempre serei seu inimigo.
A tristeza no rosto de Nico aumentou.
— E é bem mais fácil odiar um inimigo desconhecido do que um conhecido. Portanto, adeus, Varina.
Nico fez, sem nenhuma ironia aparente, o sinal de Cénzi e virou-lhe as costas. O cão raivoso... Eu podia detê-lo agora. Ela cerrou o punho direito; tentou ouvir a voz de Karl, mas não ouviu nada. Nico começou a se afastar devagar.
É agora, ou será tarde demais...
Varina permaneceu imóvel na cadeira, olhando fixamente para o tecido preto nas costas de Nico conforme ele caminhava entre os clientes da taverna até a porta.
Nico abriu a porta e saiu. De algum lugar na rua, ela ouviu um cachorro latindo. Parecia debochar de Varina.
CONTINUA
ENCARNAÇÕES
Nico Morel
Varina ca’Pallo
Allesandra ca’Vörl
Niente
Sergei ca’Rudka
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Nico Morel
A explosão da areia negra foi mais poderosa e atordoante do que Nico tinha esperado.
A concussão atingiu seu peito como o punho de Cénzi. Ela agitou os trapos do boneco golpeando a cabeça de papier mâché com tanta força que nenhum deles conseguiu segurá-la no lugar. O boneco desmoronou enquanto as pessoas gritavam e pedaços do esquife funerário do embaixador começaram a cair em volta delas.
— Vão embora! — berrou Nico para seus seguidores. — Espalhem-se! Rápido!
A multidão já fugia; os gardai estavam confusos e atordoados. Os morellis evaporaram na multidão e sumiram em poucos instantes. Nico esperou alguns segundos, encarando a destruição. Havia várias pessoas caídas, a maioria numetodos que estavam em volta do esquife — ele não sentia compaixão alguma pelas mortes e ferimentos sofridos por eles. Ainda assim, alguns espectadores tinham sido feridos pelos estilhaços.
— Sinto muito — Nico sussurrou para um deles, uma mulher com um corte na têmpora que sangrava bastante. — Ninguém tinha a intenção de machucá-la. Cénzi lhe abençoará pelo sangue derramado hoje aqui e por sua dor.
Ele sentiu Liana puxar sua manga.
— Temos que ir — disse ela com urgência.
Nico ergueu os olhos. O embaixador ca’Rudka estava se levantando desajeitadamente da estrutura retorcida da carruagem que seguia o esquife; a espora herege de ca’Pallo, Varina, já tinha saído e observava horrorizada a destruição do esquife. Os cavalos que puxavam a carruagem da kraljica dispararam, e o condutor tentava detê-los mais abaixo no pátio, com gardai correndo atrás deles. A explosão derrubou o condutor da a’téni do assento e encerrou seu cântico; sua carruagem estava intacta e intocada, bem atrás do resto.
Nico sorriu ao ver isso — ele não queria que a a’téni ca’Paim se ferisse.
Onde estivera deitado o corpo de Karl, havia um buraco negro nos paralelepípedos, com estilhaços espalhados por todo lado, a uma dezena de passos de distância.
— Obrigado, Cénzi — ele rezou, fazendo o sinal rapidamente. — Obrigado por me permitir fazer a Sua vontade.
Ele se perguntou se Varina perceberia a ironia em usar a areia negra — uma invenção dos hereges ocidentais, recriada por Karl e Varina — contra eles.
Nico meneou a cabeça quando Liana puxou sua manga novamente. Ela segurava sua barriga inchada.
— Você está bem? — ele perguntou, subitamente preocupado que Liana estivesse ferida.
— Eu estou bem, mas você precisa ir embora. Agora!
Nico meneou a cabeça negativamente.
— Vá em frente — disse calmamente, em voz baixa. — Eu encontro você na casa.
Liana hesitou, e Nico acenou com a mão para ela.
— Vá! — repetiu ele.
Dessa vez, Liana obedeceu e foi embora correndo desajeitadamente por causa da gravidez avançada.
Nico voltou-se para o caos. Ele observou os gardai por detrás da cobertura de pessoas que também ficaram para trás, hipnotizadas pela visão de toda a destruição. Ele ouviu o Velho Nariz de Prata berrar enquanto tentava organizar o resgate. Mal conseguia conter a alegria que sentia, embora tentasse, pois esse era apenas seu orgulho tolo repuxando os cantos de sua boca. Finalmente, ele se afastou lenta e calmamente, em paz — como se tivesse saído para uma simples caminhada matinal.
Eles só conseguiriam pegá-lo se esta fosse a vontade de Cénzi, e se Ele assim o desejasse, então Nico se conformaria com Sua decisão. Cénzi estava acima da autoridade da kraljica ou do archigos. Sozinhos, os dois não podiam fazer nada contra Nico.
Portanto, Nico se afastou sem pressa, com uma expressão solene no rosto. Cénzi o segurava em Suas mãos protetoras.
Quando ele chegou ao esconderijo que os morellis tinham estabelecido no Velho Distrito, uma virada da ampulheta ou mais depois, Nico encontrou uma comemoração em curso. Ancel deu um tapa em seus ombros; Liana o abraçou desesperadamente enquanto os demais reunidos no ambiente gritavam e sorriam.
— Um punhado deles mortos, é o que dizem os rumores — comentou Ancel. — E o corpo do degenerado do ca’Pallo espalhado em pedaços pelo pátio do templo para os ténis limparem; isso ensinará a a’téni a agradar aos hereges. Que pena que a explosão poupou a esposa de ca’Pallo e o Velho Nariz de Prata.
Estranhamente, a alegria no rosto de Ancel azedou o bom humor de Nico. Ele olhou para seus seguidores, para o prazer que sentiam, e Cénzi manifestou-se em Nico. Ele franziu a testa, sua expressão ficou séria.
— Por que estão rindo? Por que que estão sorrindo? — perguntou Nico para eles.
O desprezo em sua voz calou a comemoração na boca de todos. A sala ficou rapidamente silenciosa. Liana soltou Nico; Ancel deu um passo para trás, com o rosto subitamente abatido.
— Sinto muito, Absoluto — disse Ancel ao abrir os braços em um gesto de desculpas. — Nós não fizemos o que Cénzi pediu?
— Fizemos — respondeu Nico. — E só tivemos êxito porque temos as mãos de Cénzi sobre nós. Será que devemos comemorar isso? Sim, mandamos vários hereges para Ele julgar, mas tiramos matarhs e vatarhs de crianças, destruímos suas famílias. Levamos sofrimento àqueles próximos aos hereges, e muitos deles não eram nossos inimigos. Muitos eram fiéis. Devemos ficar contentes por tê-los prejudicado, por ter-lhes causado sofrimento?
— Eu não pensei... — Ancel começou a dizer, mas foi interrompido por um gesto de Nico.
— Não, você não pensou. Nenhum de vocês pensou. Nem mesmo eu. — Ele respirou fundo e sentiu as palavras de Cénzi preencherem sua mente. — Estamos falando de vidas. Estamos falando de pessoas que são pouco diferentes de nós. Sim, são hereges. Sim, eles envenenam os Domínios e a fé concénziana com sua presença. Sim, são nossos inimigos. Mas são pessoas, apesar de tudo, e quando lhes causamos sofrimento, trazemos sofrimento para nós mesmos, ao mesmo tempo.
Nico sentiu lágrimas quentes brotando de seus olhos, e não se importou que escorressem por seu rosto sob os olhares de seus discípulos.
— Eu não lamento uma xícara quebrada. Eu não sofro se a tira da minha sandália se parte. Mas eu choro sim pelos numetodos. Choro porque eles não conseguiram enxergar a verdade. Choro porque não pude convencê-los a seguir a verdade. Choro por que me foi dada a tarefa de ser seu executor. Choro porque me dói ver o desperdício de seu grande potencial.
Ele, então, sentiu-se enlevado por Cénzi, e enxugou as lágrimas de olhos com sua manga enquanto a raiva ia embora.
— Ancel, desculpe-me. Não estou com raiva de você. Não estou. Você é meu braço direito e agiu bem hoje. Todos vocês agiram, e devemos ficar contentes por termos conseguido demonstrar o poder de Cénzi para aqueles que controlam os Domínios e a Fé. Fomos bons servos hoje. Mas é nosso dever sermos sempre bons servos, estarmos prontos para agir quando o Mestre nos chamar para fazer a Sua vontade, independentemente do que Ele nos peça.
Nico abriu os braços, deu um passo na direção de Ancel e o abraçou. Ele beijou a bochecha do homem.
— Você sabe disso. Sei que você sabe, e não cabia a mim repreendê-lo. Você me perdoa, meu amigo?
Ancel fez uma careta e soltou um suspiro pelo nariz. Ele assentiu, e Nico agarrou sua cabeça e beijou sua testa. Ele deu um tapinha nas costas do homem. Sorriu para todos os discípulos. Liana abraçou Nico novamente, pressionando sua barriga e seu filho contra a barriga dele.
— Todos nós agimos bem hoje — Nico disse para eles, seu olhar pairou sobre as pessoas reunidas na sala. — Vocês todos são abençoados.
Varina ca’Pallo
Seus ouvidos zumbiam, Varina mal podia ouvir as vozes que se dirigiam a ela através do retinir. Isso, ao menos, já era um progresso: imediatamente após a explosão, ela se viu inteiramente surda. Varina tinha sido levada para o prédio mais próximo — um dos edifícios de administração dos Domínios que dominavam a Ilha a’Kralji. Foram enviados curandeiros; gardai entravam e saíam fazendo perguntas a ela e Sergei. Até o comandante co’Ingres veio visitá-la, e as notícias que ele trouxe eram péssimas. A kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim estavam abaladas, mas ilesas, porém, dos doze numetodos que acompanhavam o esquife de Karl — todos amigos, a maioria integrantes de longa data do grupo —, cinco morreram e mais três estavam gravemente feridos. Mesmo que sobrevivessem, eles ficariam com sequelas do dia de hoje pelo resto de suas vidas.
Varina chorou por eles mais do que chorou por Karl, que estava além do sofrimento.
Talbot estava entre os numetodos que acompanhavam o esquife; felizmente, seus ferimentos tinham sido leves.
Varina franziu a testa para se concentrar em Sergei, que se debruçava sobre ela de forma solícita. Varina pôde notar seu reflexo distorcido no nariz de prata; seu rosto estava arranhado, uma longa linha de sangue seco cortava sua testa, e em sua bochecha direita havia uma mancha escura de um hematoma inchado.
— A surdez deve ser temporária, me disseram os curandeiros — dizia Sergei.
Ela teve que se concentrar nos lábios do embaixador para compreendê-lo.
— É uma boa notícia para nós dois; minha audição já sofreu o bastante nesses últimos anos. Também me disseram que nenhum dos seus ferimentos deve ser grave, embora você vá ficar dolorida por vários dias. Não parece que tenha ossos quebrados, embora você deva avisá-los caso sinta alguma dor interna aguda ou caso os cortes comecem a ficar vermelhos ou podres.
— Foi Nico quem fez isso? — ela perguntou.
Sergei fez uma careta.
— Sim. Ele e os morellis. Um dos gardai jura ter visto Nico no grupo que conduzia o boneco.
— Por que ele faria isso? Karl e eu nunca... nunca...
Varina mordeu o lábio inferior, e as lágrimas ameaçaram surgir novamente à menção do nome dele.
— Com sorte, você terá a oportunidade de perguntar ao homem em pessoa, quando o encontrarmos — falou Sergei. — E eles o encontrarão. Eu já disse ao comandante co’Ingres que coordenarei pessoalmente a busca por Morel caso ele não tenha sido capturado quando eu voltar de Brezno.
— Você ainda vai? Está bem?
— Sou velho e durão; é preciso mais que um pouco de areia negra para me deter. Eu já comecei uma investigação sobre a maneira como eles adquiriram a areia negra; suspeito de que alguém do arsenal seja um simpatizante morelli. Mas com as recentes incursões na fronteira, eu tenho que ir... — seu sorriso desmoronou com o próprio peso, Sergei pousou sua mão sobre o ombro dela. — Eu sinto muitíssimo, Varina. Isso jamais deveria ter acontecido. Karl merecia muito mais do que isso.
O choro tomou conta dela, e ela não conseguiu responder. Sergei deu um tapinha em seu ombro, mas seu olhar estava voltado para outro lugar.
— O corpo... de Karl? — ela finalmente conseguiu falar.
— O corpo de Karl — respondeu Sergei, e pela contração de seu maxilar, Varina percebeu que ele não estava lhe contando tudo — foi recuperado e já está na pira no Palácio da Kraljica. A Garde Kralji foi posicionada em volta dela, e também há vários numetodos lá, que dizem que não irão embora até que a pira seja acesa.
— Eu preciso ir até lá, então.
Varina começou a se levantar. Ela sentiu os músculos protestarem com o movimento, mas conseguiu se sentar. O quarto rodou ao seu redor e depois se assentou.
— Varina, a kraljica Allesandra disse que ela mesma acenderia a pira. Os curandeiros disseram que você deveria ficar...
— Eu preciso ir até lá — repetiu ela, com mais firmeza.
Sergei suspirou e assentiu.
— Eu disse para a kraljica que essa seria a sua resposta. Eu a acompanharei até lá...
— Varina... — A kraljica Allesandra a abraçou assim que ela desceu da carruagem, depois de Sergei. — Eu sinto muito. Sou a culpada por esta atrocidade. Nós obviamente não tomamos todas as precauções que deveríamos, e isso é responsabilidade minha.
Varina negou com a cabeça.
— Não foi culpa sua — respondeu ela simplesmente.
Atrás dos cortesãos e chevarittai que flanqueavam Allesandra, Varina viu Mason ce’Fieur, um amigo numetodo que era um de seus alunos no grupo. Ele acenou para ela com uma expressão grave.
— Com licença, kraljica — disse Varina para a kraljica e se dirigiu até Mason.
Os dois se abraçaram.
— A’morce numetodo — cumprimentou ele.
O uso do título pegou Varina de surpresa. Karl tinha sido o líder nominal do grupo desde que ela começou a fazer parte dele. Varina nunca considerou que o título pudesse passar para ela com o falecimento dele, mas aparentemente passou.
— Todos nós estávamos lhe esperando — disse Mason.
Ela olhou para a pira. Havia ca’ e co’ em roupas elegantes — aduladores do palácio que queriam ser vistos pela kraljica —, mas também havia numetodos da cidade, a maioria ce’ ou de status inferiores: duzentas pessoas ou mais, rostos que ela reconhecia, gente com quem trabalhou e a quem ensinou. Eles estavam ali agora, silenciosos e pacientes.
A pira tinha a altura de três pessoas, e o cheiro de óleo era forte no pátio entre as alas do palácio tomadas por andaimes. No topo da pilha piramidal de lenha fora colocado um caixão fechado de madeira — não mais o corpo envolvido na bandeira de Paeti. Varina apertou os lábios com a visão, seu estômago revirou, enviando ácido para a sua garganta. Ela engoliu em seco, uma vez.
— Vamos fazer isso logo. Em breve, teremos que acender mais piras para o restante de nossos companheiros que caíram.
Com Sergei à sua esquerda, kraljica à sua direita, e as fileiras de numetodos atrás dela, Varina avançou até a base da pira. Ela ergueu o olhar para o caixão e por um momento teve que fazer uma pausa, sobrepujada pelas lembranças de Karl. Seu estômago revirou novamente, e Varina fechou os olhos brevemente.
Ela abriu os olhos novamente quando encontrou, em sua mente, o feitiço que havia preparado na noite anterior. Estava em sua cabeça como um ovo prestes a explodir, e Varina o acariciou com seus pensamentos. Este era o método dos numetodos: como os ténis, eles usavam uma combinação de palavras e gestos para dar forma ao feitiço — uma fórmula que devia ser seguida. Como com os ténis, o esforço de invocar feitiços tinha um custo de exaustão e fraqueza. Ao contrário dos ténis, os numetodos não invocavam Cénzi ou atribuíam seu poder a qualquer divindade; ao contrário dos ténis, eles não precisavam lançar o feitiço imediatamente após o término do encantamento. Os numetodos sabiam como manter o feitiço em suas mentes, como lançá-lo com uma palavra e um único gesto muito tempo depois. Eles, portanto, podiam “pagar antecipadamente” a fraqueza que acompanhava a invocação do feitiço e não eram afetados depois. Os numetodos podiam lançar um feitiço preparado com um simples gesto ou pronúncia.
Varina fez isso agora. Diante da pira, ela abriu o feitiço.
— Tine — disse Varina na língua de Paeti, a terra natal de Karl.
Fogo. Varina fez um gesto como se jogasse uma pedra na base da pira. Um sol irrompeu no centro da pirâmide, branco-amarelado e tão quente que seu deslocamento de ar tremulante golpeou os espectadores como o vento de um furacão. A lenha banhada em óleo pegou fogo com um estrondo, e as chamas saltaram no ar, com tornados de fagulhas rodopiantes diante delas. Uma coluna de fumaça veio a seguir, levada pela brisa na direção dos telhados distantes do palácio, onde foi dispersada pelo vento e espalhada na direção do Velho Templo e do rio A’Sele, a oeste.
O fogo furioso agora lambia o caixão que continha os restos mortais de Karl. Enquanto Varina assistia, as chamas subiram pelas laterais até obscurecer a caixa de madeira com o fogo e encobri-la com fumaça.
— Adeus, meu amor — sussurrou Varina. — Eu sempre sentirei sua falta.
As lágrimas desciam por seu rosto sem pudor e secavam rapidamente pelo calor da pira. Alguém a estava abraçando, e ela não sabia se era Sergei, a kraljica ou Mason.
Não importava. Ela assistiu aos restos mortais de Karl alçarem à eternidade em uma espiral.
Varina ficou ali até o fogo na pira entrar em colapso, muitos minutos depois, e virar uma pilha de cinzas e carvão tão morta e carbonizada quanto ela mesma.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra observou Sergei andar de um lado para o outro em frente ao quadro da kraljica Marguerite. O olhar severo do retrato parecia, para Allesandra, acompanhar o avanço manco do embaixador, de lá para cá. O comandante co’Ingres sequer o observava; seu olhar estava fixo e resoluto no pequeno fogo da lareira, aceso com a intenção de tirar do ambiente o frio noturno. A a’téni ca’Paim estava sentada ao lado da mesa de doces, com um prato cheio em seu colo largo.
Allesandra não tinha apetite. A carnificina que a kraljica testemunhara durante a procissão fúnebre lhe tirara a fome. Suas mãos ainda tremiam ao lembrar. Tão covardemente, o uso da areia negra. Uma morte tão horrível... Ainda havia um leve zumbido em seus ouvidos provocado pela explosão.
— Não podemos permitir outro incidente como este, kraljica — declarou Sergei ao passar pelo quadro novamente. — A mensagem que isso transmite à população; a mensagem que transmite aos fiéis... Não podemos permitir.
— Não havia magia téni envolvida no incidente — declarou a a’téni ca’Paim em tom severo. — Morel sabe quais são as consequências de usar o Ilmodo. É por isso que usou a areia negra; embora um de seus seguidores provavelmente tenha acendido a areia negra com um feitiço quando o esquife passou sobre ela.
— Esta é exatamente a questão — respondeu Sergei. — Ele conseguiu perturbar um ritual solene dos Domínios sem o Ilmodo. Sem magia. O uso da areia negra foi uma mensagem: de que a Fé é inútil e fraca, que os Domínios podem ser reféns de qualquer um que consiga criar areia negra; que os numetodos são mais perigosos do que qualquer téni. Isto é pior do que se ele tivesse usado o Ilmodo.
O rosto de ca’Paim contorceu-se em uma careta de desdém.
— A Fé não é fraca — respondeu ela com firmeza. — Ela está mais forte do que há décadas. O archigos Karrol cuidou disso.
Allesandra notou que ca’Paim fingiu não ouvir o audível fungar de desdém dado por Sergei diante daquela declaração.
— Você acha que Morel não é inteligente o bastante para compreender o simbolismo de suas ações? — perguntou Allesandra para a a’téni. — Ficou claro o suficiente para mim. Aquele boneco blasfemo de Cénzi estava encarando o esquife diretamente quando a areia negra explodiu. Acho que Morel teria usado o Ilmodo para obter o mesmo efeito, mas ele estava obedecendo às leis da fé concénziana. Peço desculpas, a’téni ca’Paim, mas o homem acredita seguir os preceitos do Toustour e da Divolonté bem mais à risca do que qualquer a’téni e o archigos Karrol.
— A mensagem de Morel pode ser interpretada de várias maneiras por pessoas diferentes, kraljica — insistiu Sergei —, e isso é um problema ainda maior. Sim, para a Fé ele está dizendo: “vejam só, eu obedeci suas regras, embora as considere completamente tolas”. Para os numetodos, Morel diz: “eu considero suas crenças desprezíveis e hereges”. Mas acho que a população em geral, que não é nem téni, nem numetodo, interpreta uma declaração completamente diferente. Acho que alguns deles podem olhar para o que aconteceu e pensar: “eu posso fazer aquilo. Ora, qualquer um pode fazer aquilo”. Isso é perigoso. Não é no que queremos que as pessoas acreditem, especialmente as que podem ter motivos para se opor a nós.
Ca’Paim atacou um docinho e o mastigou furiosamente. Co’Ingres assistia à dança das chamas.
— Então o que você sugere que eu faça, Sergei? — perguntou Allesandra.
— Precisamos encontrar Morel. Temos que executá-lo publicamente, com violência — respondeu Sergei. — Então sua resposta à mensagem dele será: “se alguém tentar isso, morre.”
— É isso o que Varina me dirá para fazer? — indagou a kraljica.
— Não — admitiu Sergei. — Não é. Mas eu sou seu conselheiro, não a a’morce dos numetodos. Minha lealdade é à senhora, kraljica; a Nessântico e aos Domínios, como sempre. Eu digo o que será mais útil a essa fidelidade. Precisamos cuidar de Nico Morel e seus seguidores com rigor.
— Eu concordo completamente com o embaixador — disse ca’Paim ao se levantar, ainda segurando o prato de doces. — Meu pessoal irá ajudá-lo como for possível. Eu posso começar interrogando os suspeitos de ter afinidades com os morellis...
Ela fez o sinal de Cénzi com uma mão só para Allesandra e os demais.
— Será que Talbot poderia mandar alguém embrulhar isso para mim, kraljica? — perguntou ca’Paim ao erguer o prato. — Eu odiaria desperdiçá-los...
A a’téni ca’Paim foi embora com um pacote de doces, acompanhada pelo comandante co’Ingres. Talbot — que insistiu em voltar ao trabalho, apesar dos cortes e arranhões que recebeu — mandou um trio de criadas limpar as mesas e levar as bandejas de volta às cozinhas.
Sergei não fez menção de ir embora. Allesandra observou o embaixador, cuja atenção parecia estar voltada para os criados enquanto realizavam suas tarefas, com uma mão atrás das costas e a outra apoiada na bengala de punho prateado que quase combinava com seu nariz. Pouco tempo depois, a última criada fez uma mesura e fechou a porta ao sair.
— O que foi, Sergei? — perguntou Allesandra então. — Estou esperando Erik ca’Vikej chegar para almoçar em meia virada. Ele quer conversar a respeito da possível reação do governo exilado da Magyaria Ocidental ao problema dos morellis.
Sergei voltou-se para kraljica. Ela viu os olhos do embaixador fecharem brevemente e seus lábios franzirem, como se o gesto o incomodasse — ou como se a menção ao nome de ca’Vikej o aborrecesse.
— A senhora está brincando com fogo e areia negra, kraljica. Como embaixador dos Domínios na Coalizão, devo aconselhá-la a não dar a impressão de que apoia abertamente o homem.
Ele pareceu engolir algo mais que poderia ter dito, e Allesandra perguntou-se se Sergei percebia que outros sentimentos ela nutria por Erik.
— Como embaixador dos Domínios na Coalizão, eu espero que você me apoie, do modo como eu disser para fazê-lo — respondeu Allesandra com rispidez.
Sergei abaixou a cabeça, principalmente, suspeitou a kraljica, para que ela não pudesse ver seus olhos.
— Perdoe-me, kraljica; este é, obviamente, o meu dever. Verei seu filho em poucos dias, mas gostaria de oferecer-lhe um ramo de oliva em vez de uma espada desembainhada.
Allesandra já fazia que não com a cabeça antes que ele terminasse de falar.
— Você está se tornando previsível, Sergei, e mole com a velhice.
— Então a senhora decidiu que é contra a minha proposta de reconciliação com ele?
— Eu agradeço o esforço que você dedicou a isso, Sergei. E a boa intenção.
— Mas?
— Eu não tenho intenção de ceder para que meu filho possa tomar o Trono do Sol.
Tap, tap... Sergei deu alguns passos arrastados em direção a Allesandra. Seu rosto enrugado tinha uma expressão sincera, e ela pôde ver o reflexo do fogo da lareira em seu nariz polido.
— A senhora não estaria cedendo, kraljica, apenas nomeando seu filho como seu sucessor na sua morte.
A risada que ela soltou soou mais como uma tosse.
— Eu não consigo ver a diferença, Sergei. Se eu nomear Jan como herdeiro, perco meu poder como kraljica. A cada proclamação que eu fizer, todos passarão a olhar na direção a leste, para Brezno e para o hïrzg, a fim de ver se ele concorda. O Conselho dos Ca’ aqui ficará mais preocupado em ver como suas decisões são consideradas por Jan do que por mim. Eu pretendo ter uma vida ainda muito longa, Sergei. O que você me disse no outro dia, que eu ainda tenho décadas para me igualar à kraljica Marguerite?
Allesandra se levantou — deixe que ele note que nossa conversa acabou. Ela falou em um tom distante e severo, como se desse uma ordem para Talbot.
— Bem, eu pretendo fazer exatamente isso. E você me apoiará ou outra pessoa será meu embaixador.
A kraljica observou seu rosto, embora a expressão de Sergei raramente revelasse seus pensamentos mais íntimos. Não revelou agora. Ele fez uma reverência um pouco desajeitada e dura, mas seu rosto estava impassível e seus olhos pareciam não ter nada além de respeito por Allesandra.
— Eu sempre servirei a Nessântico e a quem estiver sentado no Trono do Sol — respondeu Sergei. — Sempre.
Ela quase riu novamente — dito com tanta cautela.
— Então diga ao meu filho que ele brinca com fogo e areia negra, como você disse, com suas recentes incursões na fronteira, e que minha paciência está se esgotando. Diga-lhe que espero que parem imediatamente, ou serei forçada a responder na mesma moeda. Lembre a Jan que a Magyaria Ocidental só lhe pertence porque não enviei a Garde Civile inteira para apoiar Stor ca’Vikej, um erro que não repetirei.
O rosto de Sergei não revelou nada ao fazer uma reverência.
— Como a kraljica desejar — respondeu ele.
— Ótimo. Mandarei Talbot fazer uma lista de exigências para a sua reunião, e minhas respostas às possíveis questões que você ouvirá do hïrzg.
O hïrzg. Não “meu filho”. Allesandra teve uma súbita lembrança de Jan: de segurá-lo como bebê, de vê-lo mamar em seu peito e do prazer íntimo e intenso de sentir o leite vir; das primeiras palavras; dos primeiros passos trôpegos; das ocasiões em que ele veio até ela chorando por causa de algum machucado ou de uma ofensa em que ela o abraçava e consolava. Quando foi que isso mudou? Por que deixei que acontecesse? Ela respirou fundo. Sergei observava Allesandra, com os olhos mucosos voltados para seu rosto.
— Estamos encerrados — falou ela. — Mandarei Talbot com minhas instruções.
— Sim, kraljica.
Allesandra odiou a compaixão que Sergei deixou transparecer em seu rosto, odiou que ele tivesse percebido o vazio dentro dela, que a fazia chorar sozinha à noite, que atormentava seus sonhos. O embaixador fez uma mesura ao sair, mas a kraljica já não estava prestando atenção nele. Era Jan quem ela via agora, como ele era da última vez que ela o viu. Allesandra imaginou como ele seria agora, como seriam seus netos, a quem ela nunca tinha abraçado, beijado ou embalado no colo. Tanta coisa que você deixou de viver. Tanta coisa que perdeu. Sua visão oscilou, as paredes cobertas por tapeçarias se tornaram brevemente líquidas, e ela se perguntou se Sergei estaria certo. Talvez fosse o momento.
Houve uma batida suave na porta, e Allesandra piscou, enxugando os olhos rapidamente com a manga.
— Entre — disse ela.
Talbot enfiou a cabeça na porta.
— O embaixador disse que a senhora precisava de mim, kraljica.
Ela fungou.
— Sim. Entre, mas primeiro mande um dos criados trazer pergaminho e tinta. E se o vajiki ca’Vikej chegar, diga-lhe que o receberei em breve.
— Eu fiquei horrorizado quando soube, preocupado que a senhora tivesse se ferido...
Erik andava de um lado para o outro em frente às janelas do aposento. O almoço fumegava na mesa, intocado. Sentada na cadeira à mesa, Allesandra observava ca’Vikej fixamente: a preocupação em seu rosto, a maneira como seus músculos se contraíam no crânio careca.
A preocupação que ele sente por você é real. Não é fingida, não é baseada em seus próprios interesses: é genuína. Ela esperava que estivesse certa quanto a isso. Allesandra também se deu conta de que tomara uma decisão, espontânea e não solicitada. Uma decisão envolta em sua própria solidão, no afastamento de Jan, no erro que ela cometera com o vatarh de Erik, na dor intensa que sentia quando estava com Varina, na raiva dirigida aos morellis. Allesandra esperava que sua decisão fosse a certa.
— Eu estou bem, Erik. Fiquei abalada, mas não ferida. O ataque não foi direcionado a mim.
Ele balançou a cabeça enfaticamente.
— Se a senhora tivesse se ferido, eu mesmo teria saído e encontrado esse Nico Morel, e... — Ele parou e se afastou das janelas a fim de olhar para Allesandra; seu rosto e voz abrandaram. — Minhas desculpas, kraljica. É que fiquei tão preocupado...
— Eu estou bem — ela repetiu. — E aqui, enquanto estivermos sozinhos, eu prefiro que você me chame de Allesandra.
— Allesandra — disse Erik, como se saboreasse a palavra. Ele sorriu. — Obrigado. Mas não menospreze esses morellis. Eles são um perigo para você, quer você acredite ou não. São fanáticos que ameaçam qualquer um que não acredite no que eles acreditam.
— Você é um fanático, Erik? — perguntou a kraljica com delicadeza e apontou para a cadeira à sua direita.
Ca’Vikej sentou-se antes de responder.
— Sobre a Magyaria Ocidental, você quer dizer?
Ele pegou a taça de vinho, e sacudiu o líquido rubro.
— Não, não quanto a isso. Em política, eu sou mais pragmático do que meu vatarh. Acredito que a Magyaria Ocidental estaria melhor sendo parte dos Domínios. Acredito que eu seria um bom gyula, se Cénzi desejar que isso aconteça. Estou disposto a trabalhar tão duro quanto for necessário para tornar isso possível, mas também sei que às vezes sacrifícios e concessões precisam ser feitos para se alcançar um objetivo, e que às vezes o melhor resultado não é aquele que se gostaria de ver. Então, não, eu não sou um fanático, mas um realista.
Erik ergueu a taça e a pousou novamente.
— Isto não quer dizer que não existam coisas com as quais eu me importe muito ou que eu não seja um homem passional, kralji... — Ele respirou fundo. — Allesandra. Quando chego a amar alguma coisa ou alguém...
A mão esquerda de Erik abandonou a taça e pousou na toalha de mesa de linho. A kraljica estendeu sua própria mão e pousou na dele. Allesandra o ouviu respirar fundo. Seus belos olhos claros sustentaram o olhar dela, sem pestanejar, quase como um desafio. Ele abriu os dedos e os entrelaçou aos de Allesandra.
— Eu sou passional. — ela disse em voz baixa. — Nessântico e os Domínios são minhas paixões. E também sou perigosa por causa disso. Portanto, esta... — Allesandra apertou levemente os dedos de Erik — ... não seria uma decisão a ser tomada levianamente. Ou, se você preferir, podemos comer o jantar que está posto diante de nós.
Erik assentiu, ergueu sua mão, ainda segurando a de Allesandra, até sua boca e beijou as costas da mão dela. Ela sentiu sua respiração quente em sua pele, o toque dos lábios, suave e excitante.
— Você está com fome, Allesandra? — perguntou Erik.
É isso que você quer... Foi por isso que você o chamou aqui hoje...
— Estou — ela respondeu.
A kraljica levantou-se da cadeira, ainda segurando a mão dele, e o levou embora.
Niente
As águas da baía de Munereo estavam cheias de navios ancorados tão próximos uns dos outros que parecia ser possível uma pessoa cruzar a grande baía a pé sem se molhar. Suas velas estavam recolhidas e amarradas nos mastros, e as embarcações estavam amontoadas sob um céu baixo com nuvens que corriam para o oeste. Ocasionais raios solares empoeirados perfuravam as nuvens e deslizavam sobre a baía, brilhando nas ondas distantes e nos panos brancos amarrados em seus mastros.
Niente nunca tinha visto tantos navios reunidos em um só lugar, e só uma vez, anteriormente, tinha visto tantos guerreiros tehuantinos reunidos.
Ele ouviu um grito ao seu lado, conforme seu filho, Atl, se aproximava.
— Pela teta esquerda de Axat — ele sussurrou a blasfêmia que ecoou alto no ar frio da manhã —, isto é uma novidade no mundo.
— Certamente que sim — respondeu Niente para o jovem.
Ele piscou, e tentou, sem sucesso, limpar a imagem borrada — mesmo a visão do olho remanescente começava a falhar. Os dois estavam sobre um morro do lado de fora das muralhas da cidade, não muito longe da estrada principal que levava ao porto. A estrada estava repleta de soldados que marchavam em direção aos barcos. As poucas centenas de nahualli e os feiticeiros que acompanhariam a força invasora estavam reunidos em seu próprio grupo, um pouco mais abaixo no morro, próximo à estrada. Eles estariam entre os últimos a subir a bordo das embarcações, imediatamente antes do tecuhtli Citlali e seus guerreiros supremos.
Atrás de Niente e Atl, as espessas muralhas de Munereo ainda estavam esburacadas e manchadas pelos vestígios da batalha travada ali há uma década e meia, quando as forças dos Domínios tinham sido derrotadas pelo exército do tecuhtli Zolin, o antecessor de Citlali. Niente tinha participado dessa batalha, tinha visto a areia negra rugir e as pedras voarem, e tinha ajudado a sacrificar os líderes orientais derrotados em nome de Axat. Também tinha navegado mar adentro ao lado do tecuhtli Zoli desse mesmo porto até os próprios Domínios.
Há tanto tempo. Parecia ter sido em outra vida para Niente.
Uma vida que ele agora era forçado a revisitar, se quisesse alcançar a visão vislumbrada na tigela premonitória. Quantos destes guerreiros morrerão por causa disso? Quantas almas serão enviadas para o submundo por causa do que estou fazendo? Axat, por favor, diga-me que eu sou capaz de realizar isso, que valerá a pena carregar essa culpa em minha alma. Ajude-me.
— Taat?
Niente saiu do devaneio.
— O quê?
— Pensei que o senhor tinha dito alguma coisa.
— Não — ele respondeu.
Pelo menos, espero que não. Ninguém pode saber dessa visão. Não ainda.
— Eu só pigarreei; o ar desta manhã está afetando meus pulmões. — Niente apontou na direção dos navios e da baía. — Amanhã, navegaremos na direção do sol quando ele nascer.
— E haverá bons ventos — afirmou Atl.
A confiança em sua voz fez Niente se voltar para o filho, estreitando os olhos.
— Você sabe disso? — perguntou ele.
Atl sorriu brevemente, como o toque do sol através das nuvens sobre os navios lá embaixo.
— Sim.
— Atl... — Niente ia dizer, mas o filho ergueu uma mão.
— Pare, taat. Deixe-me terminar por você. “Olhe para mim. Veja como Axat me marcou. Deixe a premonição para algum outro nahualli. Axat é cruel com aqueles a quem Ela dá a Visão.” Eu já ouvi isso tudo. Muitas vezes.
— Você devia olhar para mim — insistiu Niente.
Ele tocou seu olho branco e cego, massageou os músculos flácidos do lado esquerdo do rosto, os sulcos da pele morta e cheia de cicatrizes: uma máscara de horror.
— É assim que você quer ficar?
O olhar de Atl varreu o rosto de Niente e se afastou mais uma vez.
— Isso levou muitos anos, taat — ele respondeu. — E o juramento dos nahualli nos obriga a fazer o que Axat exigir de nós. E sua premonição também lhe deu isso.
Atl apontou para o bracelete dourado no braço de Niente.
— Você não deve fazer isso — insistiu Niente. — Atl, estou falando sério. Quando eu morrer, faça como quiser, mas enquanto eu estiver vivo, enquanto for seu taat e o nahual...
Ele pousou sua mão no ombro de Atl. O contraste entre suas peles o assustou: a dele era flácida, dolorosamente seca e tomada por incontáveis rugas; a de Atl era lisa e bronzeada.
— Não invoque Axat — terminou Niente. — Esta tarefa é minha. É o meu fardo.
— Não precisa ser só seu.
— Sim, precisa.
As palavras de Niente saíram mais ríspidas do que ele tinha intenção, fazendo com que Atl virasse o rosto, como se tivesse levado um tapa. Os olhos do jovem estavam entreabertos, e ele disparou um olhar de pura fúria para Niente antes de virar a cabeça ligeiramente para encarar deliberadamente a baía. “Cuide dele”, dissera Xaria antes de os dois irem embora. “Atl ama, respeita e admira você. Seu filho quer tanto que você se orgulhe dele — e eu me preocupo que Atl faça alguma tolice tentando...”
Xaria não compreendia. Nem Atl, e Niente não podia contar para nenhum dos dois. Ele não podia permitir que o filho usasse os feitiços premonitórios, não por causa do preço que eles cobravam — embora isso fosse significativo — mas porque sabia que Atl tinha o mesmo Dom que ele, e Niente não podia deixar que Atl visse o que ele viu na tigela. Não podia. Se Atl visse o que ele viu, Niente podia perder o Longo Caminho. Os vislumbres do futuro de Axat eram volúveis e facilmente mutáveis.
— Sinto muito — ele disse para Atl —, mas isso é importante.
— Tenho certeza que sim, porque o nahual está sempre certo, não é?
Dito isto, Atl fez uma mesura debochada para o taat e seguiu na direção dos outros nahualli, no mesmo instante em que Niente esticou o braço na direção dele. O nahual piscou; com o olho remanescente, ele viu Atl entrar no grupo.
Ele podia sentir os olhares de todos os nahualli voltados para ele morro acima, imaginando se Atl em breve desafiaria seu taat como nahual, imaginando se talvez devessem desafiá-lo primeiro.
Seus olhares eram avaliadores, desafiadores, destituídos de misericórdia ou compaixão.
Sergei ca’Rudka
Da rua onde se encontrava, Sergei observava o esquadrão do comandante co’Ingres se reunir em volta do prédio gasto e degradado do Velho Distrito sob a cinzenta aurora. O fedor dos açougues da rua tomou suas narinas. Havia quatro homens na frente, outros três em volta da porta dos fundos, e dois em cada espaço entre a casa e seus vizinhos. Também havia um quarteto de ténis-guerreiros cedidos pela a’téni ca’Paim — reunidos em volta da porta da frente, já entoando os cânticos de proteção.
A manhã estava fria, e Sergei fechou mais a capa em volta de seus ombros. A rua estava vazia — havia um utilino postado nas encruzilhadas próximas para impedir que as pessoas entrassem, e multidões se reuniram atrás deles para assistir. Os vizinhos que notaram a Garde Kralji avançando permaneceram prudentemente em suas casas. Sergei podia ver a oscilação ocasional de um rosto nas cortinas, embora não tivesse visto movimento algum na casa em que estavam prestes a entrar.
Isso fez Sergei torcer os lábios em uma careta. A informação veio de um bom informante e foi “verificada” pela interrogação de dois suspeitos de serem simpatizantes dos morellis na Bastida. Sergei tinha esperança de que esta batida capturasse Nico Morel. No entanto...
— Agora! — co’Ingres gritou e acenou com a mão.
Um dos ténis-guerreiros gesticulou, e a porta da casa explodiu em lascas de madeira, acompanhada de um estrondo alto e uma fumaça escura. A Garde Kralji entrou correndo, brandindo espadas e ordenando que qualquer pessoa no interior se rendesse.
Sergei não ouviu respostas aos gritos. Fez uma careta e começou a atravessar a rua, batendo com a bengala nos paralelepípedos — o comandante co’Ingres seguiu o passo cadenciado e cauteloso de Sergei —, no mesmo momento em que o o’offizier no comando do esquadrão apareceu na porta, negou com a cabeça.
— Sinto muito, embaixador, comandante — falou ele, dando passagem para que Sergei entrasse na casa.
Seus joelhos estalaram conforme ele subia pela soleira elevada. Ele ouviu o ruído alto das botas dos gardai vasculhando os ambientes no segundo andar batendo no assoalho.
— Aparentemente não há ninguém aqui — disse o’offizier.
— Não. Eles sabiam que viríamos — respondeu Sergei.
O cômodo em que eles estavam tinha pouquíssima mobília: uma mesa cuja superfície arranhada era pouco escondida por uma toalha quadrada e manchada; algumas cadeiras bambas com assentos de vime que precisavam de revestimento novo. Parecia que, se os morellis morassem aqui, viviam com pouco luxo. Sergei foi até a lareira no outro aposento e agachou, resmungando com a dor em suas pernas. Ele estendeu a mão sobre as cinzas: sentiu o calor que ainda emanava dos carvões abaixo. O embaixador ficou de pé novamente.
— Eles estiveram aqui ontem à noite. Alguém os avisou.
Sergei coçou a pele perto da narina direita falsa. No consolo sobre a lareira, havia apenas um pergaminho dobrado com capricho, com algo escrito na frente. Sergei aproximou-se para ler: era seu próprio nome, escrito em letra elegante e cuidadosa. Ele bufou pelo nariz metálico.
— Embaixador? — Co’Ingres espiava sobre o ombro de Sergei. — Ah, então nosso informante estava certo.
— Certo a respeito da localização. Errado quanto ao momento — ele respondeu.
Sergei pegou o papel do consolo e abriu o pergaminho duro.
Sergei — sinto muito ter perdido sua visita. Cénzi me diz que um dia eu e você devemos conversar. Mas não hoje. Não até eu ter cumprido todas as tarefas que Ele me passou. Gostaria de pensar que talvez agora você entenda que estou apenas fazendo Seu trabalho, mas suspeito que seus olhos, assim como os da kraljica e da a’téni, estão cegos. Sinto muito por isso, rezarei para que Cénzi lhe dê a visão. Estava assinado simplesmente “Nico”.
— Não encontraremos nada aqui — disse Sergei para co’Ingres. — Mande seus homens vasculharem o lugar exaustivamente, caso tenham perdido algum detalhe importante, mas não vão encontrar nada. Os morellis têm seu próprio informante, seja na Garde Kralji ou, mais provavelmente, dentro da Fé. Nós os perdemos.
Ele cutucou as cinzas na lareira com a ponta da bengala até ver uma brasa vermelha. Deixou o bilhete cair sobre os carvões. As pontas do papel escureceram, linhas vermelhas correram sobre o pergaminho antes de ele pegar fogo.
— Não deixarei que isso aconteça uma segunda vez — falou Sergei: para co’Ingres, para o papel, para o fantasma de Nico.
O papel virou cinza seca, e seus fragmentos subiram pela chaminé. Sergei ergueu os ombros para ajeitar a capa. Bateu com a bengala uma vez com força no piso da casa e saiu.
— Teremos sucesso da próxima vez — disse Sergei. — Eu juro.
Ele observou Varina dar de ombros na luz que passava entre as cortinas de renda da janela. Os desenhos da renda pontilhavam seu rosto e ombros com luz salpicada e deixavam seus olhos nas sombras.
— Eu sei que não é o que você quer ouvir — respondeu ela —, mas parte de mim está feliz por Nico ter escapado de você, Sergei. Acho que Karl teria se sentido da mesma forma.
O bule de chá sobre a mesa entre eles fez barulho quando Sergei se ajeitou na cadeira.
— Sua compaixão é admirável, e é o que faz a todos, incluindo Karl, amarem você.
— Mas?
Varina pousou a xícara de chá. As sombras das rendas percorreram as costas das suas mãos.
Agora foi Sergei quem deu de ombros.
— Compaixão nem sempre é bom para o Estado.
— Você teria dito isso na época em que os numetodos eram chamados de hereges e condenados à morte? — retrucou Varina suavemente.
Ela olhou lá fora, pela janela cortinada e voltou a olhar para Sergei.
— Você teria dito isso quando o kraljiki Audric e o Conselho dos Ca’ chamaram você de traidor?
Sergei estendeu suas mãos em frente ao corpo como se fosse deter um ataque. Ele lembrava-se muitíssimo bem do tempo que tinha passado na Bastida após ter sido condenado por Audric: de como tinha sentido medo de que fizessem com ele o que ele tinha feito com tantos outros, de como Karl e Varina o tinham salvado desse destino, colocando suas próprias vidas e liberdade em risco.
— Eu me rendo — falou o embaixador. — A dama tomou o campo de batalha.
Varina quase sorriu ao ouvir isso. A expressão foi momentânea, mas Sergei sorriu de volta — era a primeira vez que a via mostrar um traço de divertimento desde a doença fatal de Karl. O embaixador estendeu o braço e deu um tapinha na mão de Varina; a pele flácida em volta de seus ossos fez as mãos dela parecerem jovens, em comparação.
— O menino teve uma vida difícil — argumentou ela. — Ele foi tirado de sua pobre matarh por aquela louca horrorosa, a Pedra Branca. Que tipo de vida o menino poderia ter tido? Não fazemos ideia dos horrores pelos quais ele pode ter passado com ela.
— Concordo, não há como sabermos. No entanto, ele não é mais um menino, mas um homem que tem que ser responsabilizado por seus atos — disse Sergei.
E ergueu novamente as mãos ao ver que Varina se preparava para responder.
— Eu sei, eu sei. “A criança molda o homem”. Eu conheço o ditado, e sim, há verdade nessas palavras, mas ainda assim... — Sergei balançou a cabeça. — ... Nico Morel não é o menino que conhecemos, Varina, não importa o quanto você gostaria que isso fosse verdade. A última ação dele matou cinco amigos nossos e feriu muitos outros.
— Eu sei — ela respondeu tristemente. — E não estou dizendo que ele não deve ser punido por isso. Nem considero Nico o monstro que você pinta, mesmo depois do que ele disse, mesmo depois do que fez ao...
Varina parou. Sergei ouviu a hesitação em sua voz e viu seus olhos umedecerem, e soube o que ela não diria. Varina fungou e recuperou o controle.
— Mas compaixão... Você está errado quanto a isso, Sergei. Está errado a respeito do que estou sentindo. Um cachorro raivoso não pode ser culpado por sua raiva, mas deve ser detido pelo bem de todos. Eu compreendo, Sergei. Mas se o cão for meu, então é meu dever detê-lo. Meu.
Seu tom era fervoroso, e Sergei ficou intrigado com a urgência que ouviu em sua voz.
— Só me prometa que, se, por alguma razão, você souber de alguma sobre Nico, irá avisar o comandante co’Ingres imediatamente — pediu o embaixador. — Ele prometeu que a protegeria enquanto eu estiver em Brezno, mas me preocupo com os morellis, especialmente após o funeral de Karl. Só Cénzi sabe o que eles são capazes de fazer. Detê-lo sozinha seria arriscado. Pelo que a a’téni ca’Paim me falou, a habilidade de Nico com o Ilmodo é absolutamente assustadora, se ele escolher usá-la. Prometa-me que tomará cuidado. Prometa-me que não fará esforço algum para contatá-lo. Esse cão raivoso em particular ameaça a todos na cidade; deixe que a cidade o detenha.
Outro sorriso, este bem mais fraco que o anterior.
— Você pareceu o Karl falando agora. Eu sempre acreditei que a cautela era superestimada — disse Varina, e seu sorriso de repente se ampliou. — E você, Sergei... vai tomar cuidado?
— O hïrzg Jan, embora isso provavelmente demonstre sua falta de bom senso, parece gostar de mim, apesar do relacionamento frio entre ele e sua matarh. De qualquer maneira, eu sou apenas o mensageiro da kraljica Allesandra.
E às vezes o mensageiro é culpado quando a mensagem não é o que eles querem escutar... Sergei sorriu mesmo quando a dúvida penetrou em sua mente. Jan não gostaria da mensagem de Allesandra, isso era certo. E ele suspeitava que Allesandra também não iria gostar da resposta de Jan.
Você está ficando velho demais para isso... Esse pensamento continuava a vir à tona, cada vez mais. Sergei estava cansado, e a ideia de passar vários dias em uma carruagem na estrada, da surra que seu corpo levaria da viagem, e do desconforto das estalagens e camas estranhas no caminho...
Velho demais...
— Cuide-se, Varina. Tome cuidado e, por favor, lembre-se do que falei sobre Nico.
Com uma careta, Sergei empurrou a cadeira e se levantou. Ele pegou sua bengala, que estava apoiada na mesa. Varina levantou-se com o embaixador, dando um passo em sua direção e abraçando-o. Com uma mão, Sergei retribuiu o gesto.
— E você, cuide-se — disse Varina. — E cuidado com as cortesãs, embaixador. Eu soube que, em Brezno, elas não são tão... discretas como somos aqui.
Não serão as cortesãs com quem me envolverei...
— Infelizmente, quando elas olham para mim, não querem outra coisa que não sair correndo — disse Sergei, tocando o nariz.
Ele abraçou Varina com força mais uma vez, e depois se afastou.
— Eu a visitarei assim que retornar. Prometo.
Brie ca’Ostheim
Kriege não deveria estar no quarto de vestir de maneira alguma, mas tinha o hábito de fugir das babás que cuidavam dele. Brie teria que falar com elas mais tarde.
Ela acordou quando ouviu a porta de serviço do quarto de vestir ranger ao ser aberta. Ouviu os passos de Kriege sobre o tapete. Brie saiu de mansinho da cama e entrou no quarto de vestir que ela e Jan compartilhavam. Kriege estava em pé diante na penteadeira de Jan, com as mãos ocupadas com alguma coisa que seu corpo escondia. Ela sorriu satisfeita, esfregando os olhos para espantar o sono.
— Kriege — perguntou Brie —, o que você está fazendo?
Kriege deu meia-volta, assustado, e ela viu a adaga na mão do menino, com a lâmina fora da bainha e os gumes de aço firenzciano escuro reluzindo. A boca de Kriege fez um “Ó” de surpresa, e seu rosto ficou vermelho quando se deu conta de que ainda segurava a arma.
— Kriege, abaixe isso. Com cuidado. Seu vatarh ficaria muito irritado se visse você com isso.
Os olhos de nove anos de idade se arregalaram. Brie viu seu lábio inferior começar a tremer.
— Eu não estou irritada com você, Kriege. Apenas abaixe isso.
Ele obedeceu, um pouco rápido demais, de forma que a adaga bateu na madeira e sacudiu as caixas ali. Brie deslizou para frente rapidamente, pegou a arma e a colocou de volta na bainha usada. Kriege observou seus movimentos: ele observava tudo que tinha a ver com coisas marciais — quanto a isso, o menino era diferente de seu vatarh, e mais parecido com o vatarh de Brie, que era obcecado por armas brancas e possuía uma coleção de espadas e facas que causava inveja até mesmo a museus. O verdadeiro nome de Kriege era Jan — em homenagem a seu vatarh e a seu vavatarh; ele tinha adquirido o apelido de “Kriege” (guerreiro) ainda muito cedo por sua personalidade teimosa e birrenta quando bebê. O nome tinha pegado; ele era “Kriege” para todos no palácio. E agora parecia que tinha a intenção de honrar o apelido.
A própria Brie herdara o fascínio do vatarh por armas; na verdade, ela chamara a atenção do marido pela primeira vez quando demonstrou sua habilidade com espadas em um evento palaciano em que compareceu com seu vatarh, duelou e derrotou um chevaritt que dera uma resposta depreciativa a um comentário que Brie tinha feito sobre sua arma. Ela geralmente levava uma arma escondida no corpo, ainda.
Mas esta não era a arma dela; era de Jan. Brie devolveu a adaga à caixa de pau-rosa onde Jan a guardava quando não estava em seu cinto, e se agachou em frente a Kriege. Os cachos castanhos do menino caíram sobre sua testa quando ele abaixou a cabeça, e ela ergueu o queixo do filho com a mão, sorrindo para ele.
— Você sabe que não deveria estar aqui, não é?
Ele assentiu, uma vez, em silêncio.
— E você sabe que não deveria mexer nas coisas do seu vatarh, não é?
Outro gesto com a cabeça.
— Desculpe — respondeu ele.
— Do que você se desculpa?
A voz surgiu por trás dos dois; Brie olhou para trás e viu Jan parado na porta do próprio quarto, ainda de camisola, com o cabelo despenteado. Ele bocejou com sonolência e esfregou o rosto barbado.
Brie hesitou, mas Kriege já tinha passado por ela, abraçando as pernas de seu vatarh.
— Vatarh, era a sua adaga. Eu queria vê-la...
Jan olhou para Brie, ainda agachada diante da penteadeira. Ela levantou os ombros para o marido, balançando a cabeça.
— Minha adaga, é? Bem, venha cá...
Ele levou Kriege pela mão até a penteadeira. Abriu a caixa de pau-rosa e tirou a arma e sua bainha suja e manchada. O pomo no fim do cabo era decorado por pedras semipreciosas — Brie suspeitava de que tinha sido isso o que atraíra Kriege em primeiro lugar —, e o cabo em si era feito de madeira sólida de acácia-negra. A lâmina tinha dois gumes que se estreitavam em um ponto preciso e mortal. Uma arma elegante. Com uma história elegante.
Jan segurou a adaga, embainhada, na mão.
— Era isto o que você estava procurando?
Kriege assentiu enfaticamente.
— O que você sabe sobre essa faca?
— Eu sei que o senhor sempre a usa, vatarh. Eu a vejo no seu cinto quase todos os dias. E sei que ela é antiga.
Jan sorriu para Brie sobre a cabeça de Kriege. Ela respondeu para o filho.
— E é muito antiga. Foi feita para seu trivatarh, Karin, quando ele se tornou hïrzg, há quase 70 anos, e ele a deu para seu bivatarh, Jan, quando ele era jovem, e Jan a deu para... — ela parou, olhando para Jan, que levantou os ombros — ... sua mamatarh Allesandra.
Brie não mencionou que Allesandra usou a adaga para matar o mago ocidental Mahri. Supostamente, tanto Karin quanto o primeiro Jan também mataram alguém com a mesma arma. Seu Jan também tinha encontrado um motivo para alimentar seu aço com o sangue de um inimigo — quando sua espada fora quebrada no meio da batalha contra o exército de Tennshah.
— E Allesandra deu para seu vatarh.
Os olhos de Kriege foram ficando cada vez mais arregalados conforme Brie contava a história da arma.
— O senhor vai me dar a adaga um dia também, vatarh? — ele perguntou para Jan, depois fez uma expressão apreensiva e uma careta de desdém. — Ou a estúpida da Elissa vai ficar com ela porque é a mais velha?
Brie conteve a risada enquanto Jan abriu a boca, e a fechou novamente.
— Ninguém vai ganhar a adaga até que estejam muito mais velhos — ele respondeu, finalmente. — Ela não é um brinquedo.
— Eu quero uma faca só minha — insistiu Kriege. — Tenho idade suficiente. Eu não vou me cortar. Serei bem cuidadoso.
— Tenho certeza que sim — disse Jan.
Ele respirou fundo e olhou mais uma vez para Brie, que balançou a cabeça levemente. Não, ela murmurou.
— Vamos fazer assim — o hïrzg disse para o filho. — Mandarei Rance conversar com o mestre de armas da Garde, para ver se ele pode lhe ensinar como manusear corretamente uma faca. Se ele me disser que você compreendeu e aprendeu todas as lições, então talvez no seu aniversário nós possamos conversar sobre algo que você possa usar em eventos de estado.
— Ah, obrigado, vatarh!
Kriege exclamou e abraçou Jan novamente. E se afastou, dizendo.
— Eu vou contar para Elissa e Caelor. Eles vão morrer de inveja!
O menino saiu correndo do quarto, chamando os irmãos.
— Não. — Jan disse, erguendo a mão quando Brie começou a falar. — Eu sei o que você vai dizer. Eu sei. Elissa estará aqui em poucos minutos, exigindo saber por que não pode ter uma faca também, e Caelor virá logo atrás dela.
— E o que você dirá a eles?
— Que Caelor precisa esperar até que tenha a idade de Kriege.
— E Elissa?
— Acho que ter aulas para aprender a manusear uma arma seria bom para ela. É uma habilidade que ela pode vir a precisar um dia. — Jan guardou a adaga de volta na caixa e fechou sua tampa. — Não concorda?
Essa é uma das muitas habilidades que ela precisará aprender, Brie poderia ter respondido, ao se lembrar de Mavel co’Kella, que a esta altura estava a caminho de seus parentes em Miscoli. Brie tinha certeza de que Jan sabia o que tinha acontecido e quem a tinha mandado embora, apesar de que nenhum dos dois tenha falado a respeito. Ele tinha vindo ao quarto de Brie na noite passada, o que indicava que ninguém tinha entrado na cama de Jan ontem.
— Às vezes — respondeu Brie —, não se pode ter tudo que se quer. Nem mesmo o hïrzg.
Jan lançou um olhar severo para a esposa ao ouvir isso, e ela acrescentou.
— Ou a hïrzgin. Caso esse seja o destino dela.
— É verdade. Mas mesmo assim acho que será bom para Elissa... e que ela tenha aquelas aulas com Kriege. Eles podem começar a se relacionar melhor.
Jan ergueu a cabeça. Ambos ouviram o bater de pés no corredor, seguidos pelos chamados sonolentos e em vão da babá atrás deles (sim, ela teria que falar com a mulher, e talvez substituí-la), e, logo depois, a voz de Elissa.
— Vatarh! Onde está o senhor, vatarh?
Ele suspirou, Brie colocou a mão sobre a de Jan.
— Ela é sua filha. Assim como você, quando quer alguma coisa, ela dá um jeito de conseguir. Você não pode culpá-la por isso.
Ele teria respondido, mas Elissa irrompeu no quarto pela porta de serviço no segundo seguinte, com o irmão caçula, Caelor, vindo logo atrás.
— Vatarh, não é justo! — exclamou a menina ao bater com o pé no chão.
— Vou deixá-lo responder — falou Brie para Jan, rindo. — Vou chamar a camareira para me ajudar a vestir. Preciso ter uma conversa com a babá...
Varina ca’Pallo
— Aqui está — disse Pierre Gabrelli entregando o dispositivo para Varina — Espero que funcione para você — ele acrescentou com um sorriso irônico.
Ela segurou o objeto em suas mãos, admirada.
— Pierre, isto é lindo...
O sorriso do homem se ampliou.
Ela montou sozinha a maior parte das versões experimentais do objeto, garimpando peças aqui e ali na cidade e depois juntando tudo. Seus próprios dispositivos eram funcionais, mas feios e desajeitados de manusear. Pierre era ferreiro e artesão, assim como numetodo. O que ele tinha dado a Varina não era uma cópia crua da ideia que ela tinha em mente, mas uma obra de arte.
Varina manuseou a “chispeira”, como decidira chamá-la, para examinar todos os lados, maravilhada. O dispositivo era deliciosamente pesado e sólido e, no entanto, balanceado o suficiente para ser empunhado com uma mão. Um tubo de metal reto e octogonal — mais espesso desta vez — estendia-se a um palmo do cabo curvo de madeira. Os canos de Varina eram lisos, sem adorno; este era gravado com desenhos de vinhas e folhas enroscadas, o metal era escovado e os desenhos tinham sido traçados em preto fosco. Onde o cano encontrava a madeira, as folhas se lançavam para fora, encaixando perfeitamente em nichos na madeira entalhada para receber o padrão floreado. E a madeira: Pierre pegou várias espécies de madeira, laminou todas juntas, e a variedade de grãs criou um padrão adorável e atraente sob o verniz reluzente. O tambor que carregaria a pólvora não era mais um dispositivo bruto parafusado tortamente no topo: aqui estava encaixado em seu próprio nicho no cabo, e Pierre tinha incluído uma tampa de metal para protegê-lo da chuva e fechá-lo. A roda de aço finamente salientada e ligeiramente sulcada no tambor era cromada e polida; um pequeno cão sobre ele tinha o mesmo desenho de vinhas e folhas do cano, com uma peça delicada de pirita presa nos mordentes. Um guarda-mato — também no formato de folha e cromado — envolvia o mecanismo de disparo.
Ao olhar fixamente para o objeto, Varina esqueceu-se por um momento da dor que pairara como uma sombra negra sobre ela há dias. Por um momento, havia luz em seu mundo.
— Tenho medo de testar isso — ela disse para Pierre. — Odiaria estragá-lo.
— Foi totalmente feito de acordo com suas especificações, que eram, devo dizer, engenhosas; eu só acrescentei a decoração para deixá-lo bonito. Vá em frente, puxe o cão para trás. Coloque o polegar na folha e pressione para trás...
Varina obedeceu: ela ouviu os mecanismos clicarem suavemente quando a pirita se afastou do tambor, ouviu a mola presa à engrenagem ranger ao ser estendida, sentiu o gatilho deslizar para frente e travar. Varina colocou o dedo em volta do gatilho e o apertou: ele voltou imediatamente dando um estalo; a engrenagem girou furiosamente; o cão de pirita bateu contra o aro da roda, e ela viu fagulhas saírem voando do tambor.
Varina podia imaginar o resto: as fagulhas acendendo a areia negra no tambor; a explosão propagando uma bola de chumbo saída do buraco redondo feito no cano...
Pelo menos, esta era a teoria. A última versão feita por ela, bem mais crua, quase funcionou, como ela tinha contado a Karl. Quase — ela ainda carregava as cicatrizes dessa experiência. Ou o cano do dispositivo tinha ficado fino demais, ou o metal tinha algum defeito, ou o buraco tinha sido feito ligeiramente torto. A explosão da areia negra fez o cano se romper, espalhando uma chuva de fragmentos de metal no ambiente, um dos quais tinha aberto um corte profundo no braço de Varina — mais dois palmos para cima e teria acertado seu rosto, mais um palmo para o lado e poderia ter penetrado seu peito. Ela podia ter ficado cega ou morrido — isto foi o que Varina não contou para Karl.
Ao pensar em seu nome, a tristeza ameaçara voltar, e ela forçou-se a sorrir para o ferreiro e fingir.
— Pierre, eu devia ter pedido para você fazer isso há tempos. Ela é bem mais elegante do que as engenhocas que eu fiz sozinha. Todo esse trabalho lindo. É só que... e se ela se quebrar como a última?
— Então a senhora me diz o que preciso fazer para a próxima funcionar melhor, não é? — Ele sorriu novamente. — Ande. Teste. Estou morrendo de vontade de ver.
Pierre arregalou os olhos subitamente ao se dar conta do que disse.
— A’morce, eu...
Varina sorriu e tocou a mão do ferreiro. Ela meneou a cabeça.
— Eu não sei.
Até agora, Varina tinha conduzido todas as experiências sozinha. Os outros numetodos sabiam que ela estava fazendo experimentos com alguma espécie de dispositivo para disparar areia negra, mas ninguém — nem mesmo Karl — sabia dos detalhes.
— Pierre... isso é perigoso. Se...
Desculpas. Apenas desculpas. Varina não queria que Pierre estivesse presente; ela notou pelas rugas de expressão em seu rosto que ele compreendeu.
Ele franziu a testa. Deu de ombros.
— Como quiser, a’morce — respondeu Pierre.
Ele se dirigiu até a porta do aposento; Varina quase o chamou de volta, sentindo-se culpada, mas a letargia que tomara conta dela nos últimos dias a tinha deixado lenta e desanimada, e ela não o chamou.
A porta se fechou quando Pierre saiu.
Varina estava no porão da Casa dos Numetodos na Margem Sul, um dos vários laboratórios de lá. Seus laboratórios. Foi aqui que Varina, há anos, desvendou a fórmula de produção da areia negra dos tehuantinos. Foi aqui também que ela trabalhou no desenvolvimento da magia ocidental: a cansativa habilidade de encantar um objeto para armazenar um feitiço. Varina tinha passado muitas longas horas aqui. Horas demais, ela pensava, às vezes. Às vezes parecia que Varina tinha passado toda a sua vida aqui. Sozinha, na maior parte do tempo. Cada marca, cada arranhão na mobília, cada pincelada de tinta nas paredes lembrava a Varina do passado.
Ela tinha organizado o laboratório com cuidado: em uma das extremidades do cômodo havia um boneco de pano, vestido com um conjunto velho e amassado de armaduras de placas dadas pelo comandante co’Ingres. Na outra extremidade, Varina tinha posto uma mesa com um torno pesado de madeira. Uma das coisas que ela tinha aprendido no decorrer desse experimento era que o dispositivo dava um coice quando a pólvora era acendida. Durante uma das experiências, Varina machucara o pulso quando uma das versões da chispeira ricocheteou fortemente em sua mão ao disparar. Desde então, ela passara a usar o torno para segurar as várias encarnações das chispeiras e um barbante amarrado ao gatilho para acioná-lo — esse esquema provavelmente a salvou de ferimentos mais graves quando o cano explodiu na última vez.
Varina levou a chispeira de Pierre até a mesa. Com cuidado, ela encheu o recipiente com areia negra delicadamente. Ela tinha preparado “cartuchos” de papel com mais areia negra e uma bola de chumbo, que ela enfiou no cano. Dobrou um pano em volta do cano — “é tão bonito que não quero arranhá-lo no torno”, ela teria dito para Pierre, caso ele estivesse ali — e fechou o tambor do dispositivo, depois de garantir que ele estava apontado diretamente para o peito do boneco. Ela puxou o cão de pirita, amarrou um barbante ao gatilho e foi para trás da mesa, com o barbante na mão.
O cano da chispeira apontava de maneira ameaçadora para o boneco de armadura. Varina puxou o barbante.
A engrenagem girou, faíscas voaram. Ouviu-se um estouro alto, e uma fumaça branca saiu detrás do cano e do tambor. Na outra ponta do laboratório, ela ouviu um nítido estalo metálico.
Varina abanou a mão em meio à fumaça cáustica. Deu uma espiada no boneco: no meio da placa peitoral, apareceu um buraco escuro. Ela arrastou os pés até lá o mais rápido que pôde, inclinando-se para examinar a armadura. Havia um buraco tão largo quanto seu dedo indicador, com as bordas rasgadas e voltadas para dentro. Ela meteu o dedo no buraco — não conseguiu sentir o fundo, e o buraco ficava maior conforme ela penetrava no recheio do boneco. Em algum lugar ali no fundo, havia pedaços da bola de chumbo enterrados. Varina percebeu que estava prendendo a respiração.
Um golpe de espada teria sido aparado pela armadura. A flecha de um arco teria ricocheteado. A seta de uma besta talvez tivesse penetrado, mas não tão fundo.
Funcionou. Se fosse um garda, estaria no chão, sangrando terrivelmente ou talvez morto...
Varina podia imaginar a cena, e essa não era uma visão agradável; ela já tinha visto muita gente morrer em batalha. Varina endireitou o corpo. Voltou para a mesa e examinou a chispeira no torno. Ela parecia inteira e incólume, seu cano ainda estava reto e intacto, exceto por uma mancha de fuligem negra na ponta. Também havia marcas de fuligem em volta do tambor, mas, tirando isso, a arma parecia estar ilesa. Varina abriu o torno e tirou o dispositivo. Então, ela o segurou com o braço estendido e apontou seu cano para o boneco.
Bem, minha velha, o próximo passo é óbvio, se você quiser dá-lo... Isso tinha soado como Karl, rindo ao repreendê-la. A lembrança trouxera lágrimas aos seus olhos, e ela teve que parar por um momento para conter o choro. Varina pousou a chispeira na mesa e, depois de alguns instantes, começou a encher novamente o tambor com mais areia negra e enfiar outro cartucho de papel no cano. Ela pegou a arma e puxou o cão de pirita para engatilhá-lo. Suas mãos tremeram um pouco ao apontar a arma. Varina estendeu a outra mão para estabilizá-la enquanto olhava pelo cano. Ela se perguntou, por um segundo, se estava sendo precipitada e imprudente, se deveria esperar e repetir a experiência como tinha feito minutos atrás, mas no mesmo momento em que a ideia lhe veio à cabeça, ela apertou o gatilho e fechou os olhos.
A resposta da chispeira foi terrível, e a arma deu um pulo em sua mão, embora não tão forte quanto ela se lembrava. Varina abaixou a arma e espiou o boneco. Sim, havia um segundo buraco na armadura, este do outro lado da placa peitoral, mais alto.
Alguém bateu na porta do laboratório.
— A’morce, a senhora está bem? — chamou uma voz vaga.
— Sim — respondeu ela. — Estou bem, está tudo bem.
Varina sentou-se na única cadeira do aposento, com a chispeira aninhada em seu colo. Estava quente, e uma fina coluna de fumaça subia do cano. Varina olhou fixamente para ela: sua criação.
Qualquer um pode manusear isto. Só é preciso um pouco de habilidade e alguns momentos para aprender. Com isso, qualquer um pode matar uma pessoa à distância, mesmo um garda de armadura. Ela sempre tivera a capacidade de imaginar possibilidades; Karl sempre dissera que era isso que a tornava uma boa pesquisadora para os numetodos. “Você tem imaginação”, ele dizia. “Consegue enxergar possibilidades onde ninguém mais as vê. Esta é a melhor magia que se pode ter.”
A linha de pesquisa que produzira a chispeira tinha sido o resultado dessa capacidade — ela vinha experimentando uma nova mistura de areia negra há alguns anos. Varina colocou uma pequena quantidade dessa areia negra no fundo de um recipiente estreito de metal, tampado por um pilão de pedra; ela não tinha notado que o pilão estava rachado e que tinha deixado para trás um pedaço do pilão dentro do recipiente. Varina usou um feitiço de fogo para acender a areia negra... e o fragmento do pilão foi impulsionado pela boca do recipiente, batendo no teto do laboratório. O sulco na viga de madeira ainda estava lá, em cima da mesa. Ela percebeu, então, que a areia negra podia ser usada para outros fins que não os da simples destruição dispersa.
Um exército de soldados com chispeiras... Varina podia imaginá-lo, e a visão fez suas mãos tremerem.
Isso podia mudar a guerra. Isso mudaria a guerra. Completamente. Assim como a própria areia negra estava começando a tornar os ténis-guerreiros desnecessários, a habilidade no manuseio de espadas pesadas também já não era mais importante, não quando tudo o que era necessário era de força para puxar um gatilho e de olhos para mirar pelo cano.
Qualquer um podia ser um guerreiro. Qualquer um podia fazer justiça.
Qualquer um podia se vingar. Ou matar um cão raivoso.
Qualquer um podia matar desnecessariamente. Pelo pior ou mais trivial dos motivos.
Qualquer um. Até mesmo ela.
O que eu fiz desta vez, Karl?
Varina piscou. Sua mão acariciou o verniz sedoso do cabo. Que ironia: um instrumento tão belamente esculpido e dedicado inteiramente à destruição.
Finalmente, ela se levantou da cadeira e foi até a mesa. Tampou o frasco de areia negra e recolheu os cartuchos de papel que havia preparado. Varina colocou o frasco, os cartuchos e a chispeira em uma bolsa de couro e pendurou no ombro. Apagou as lanternas que iluminavam o laboratório, abriu a porta e trancou novamente ao sair.
Com a bolsa pesada no ombro e as mãos ainda se ecoando a sensação da chispeira ao disparar, Varina subiu a escada.
Jan ca’Ostheim
— Nossas tropas estavam tranquilamente a um dia de marcha além das fronteiras de Il Trebbio, antes que tivéssemos qualquer sinal de termos sido vistos. Tivemos uma pequena escaramuça com uma companhia de chevarittai dos Domínios. Dois deles foram mortos por nossos ténis-guerreiros, e os chevarittai deram meia-volta e fugiram depois disso; nenhum dos nossos homens foi gravemente ferido. Dadas as nossas últimas conversas, depois passar um dia ali eu recuei o batalhão pela fronteira. Com tudo que descobrimos nos últimos meses, hïrzg Jan, parece que as fronteiras dos Domínios são um tanto quanto porosas, e Il Trebbio certamente é um dos pontos mais fracos. A kraljica Allesandra não tem forças suficientes...
Armen ca’Damont, starkkapitän da Garde Civile firenzciana, parou de ler o relatório para Jan quando a porta do aposento foi aberta repentinamente, batendo com força nos aparadores. Um trio de crianças entrou no rastro da interrupção, seguido de longe por uma das criadas com uma criança menor nos braços.
— Vatarh!
Kriege, o filho mais velho de Jan, foi o primeiro a entrar. Ele bateu o pé e olhou com raiva para a irmã, que vinha atrás de si. Caelor, um ano mais novo que Kriege, parou ao lado do irmão, concordou enfaticamente com a cabeça e lançou o mesmo olhar.
— Nós estávamos brincando de chevarittai, e Elissa trapaceou! Não é justo!
A babá entrou correndo, com uma aparência nervosa, e fez uma reverência desajeitada para Jan e ca’Damont, com Eria, a caçula de Jan, agora nos braços.
— Sinto muitíssimo, hïrzg — disse a mulher sem erguer o olhar. — As crianças estavam brincando, e eu vestia a pequena Eria, quando houve uma discussão e eles correram para encontrá-lo...
— Tudo bem — respondeu Jan sorrindo para ca’Damont. — Não se preocupe. Agora, Kriege, que história é essa de trapaça?
— Elissa trapaceou — repetiu Kriege, fazendo uma careta tão feia que parecia cômica. — Trapaceou, sim.
— Elissa? — disse Jan em tom severo ao mover o olhar na direção da filha.
Outra criança talvez olhasse para o chão. Jan sabia que Caelor teria olhado, ainda que com censura, e até mesmo Kriege afastava o olhar agora. Mas Elissa devolvia o olhar calmamente, fitou uma vez o rosto magro de ca’Damont, marcado e desfigurado pelas memórias de velhas batalhas, e depois se fixou em Jan. Ela penteou para trás os fios castanhos-dourados que escaparam das tranças que caíam nos olhos.
— Eu não trapaceei, vatarh — respondeu Elissa. — Não mesmo.
— Trapaceou, sim — interrompeu Kriege, batendo o pé novamente. — Ela mentiu.
Elissa nem se incomodou em olhar para o irmão. Seu olhar permanecia fixo em Jan.
— Eu realmente menti, vatarh — admitiu ela. — Eu disse para Kriege que o ajudaria se ele atacasse o fortim de Caelor com seus soldados.
— Ela disse que usaria os ténis-guerreiros no próximo turno para me ajudar — interrompeu Kriege novamente. — E não ajudou. Em vez disso, quando chegou o turno dela, Elissa me atacou e eu perdi todos os meus fortins e a maior parte dos chevarittai. Ela trapaceou.
Jan voltou a olhar para ca’Damont, que continha um sorriso.
— Isso é verdade, Elissa?
A menina assentiu.
— Sim — respondeu em tom sério. — Veja bem, Caelor tinha a maior parte dos fortins e soldados que sobraram no tabuleiro, e Kriege e eu tínhamos mais ou menos o mesmo número. Eu sabia que não venceria Caelor sozinha, portanto, disse para Kriege que o ajudaria porque sabia que Caelor acabaria com vários soldados dele e perderia homens suficientes, de maneira que não poderia me atacar, e então, quando fosse meu turno, eu poderia tomar a maior parte dos fortins de Kriege e capturar soldados suficientes para provavelmente ganhar o jogo.
Elissa olhou para os irmãos.
— E teria ganhado também, se Kriege não tivesse ficado furioso e derrubado todas as peças no chão.
O riso abafado de ca’Damont era audível, e ele virou o rosto com cicatrizes por um momento. Jan teve que lutar para conter seu próprio divertimento, embora a graça fosse moderada pela similaridade entre Elissa e Allesandra, a mamatarh da menina. Jan podia imaginá-la fazendo a mesma coisa quando criança; era o que ele a tinha visto fazer quando adulta.
— Então... — disse Jan para a filha —, você ofereceu ao seu irmão uma aliança que não pretendia cumprir para que pudesse ganhar? Estou certo?
Ela assentiu. Jan olhou para os dois meninos e disse.
— Acho que sua irmã acabou de ensinar uma lição excelente a vocês. Na guerra, às vezes a palavra de uma pessoa não é suficiente. Às vezes seu inimigo mentirá para vocês com o intuito de ganhar vantagem. E há mais coisas na guerra do que deslocar soldados. Vocês dois devem se lembrar disso.
— Mas ela trapaceou! — insistiu Kriege, batendo o pé mais uma vez.
Jan cofiou a barba, tentando não rir.
— O que você acha, starkkapitän? — perguntou ele para ca’Damont. — Devo punir Elissa por sua trapaça?
— Não, meu hïrzg — respondeu ca’Damont.
Jan viu o rosto de Elissa relaxar ligeiramente — então a menina estava preocupada com o que ele poderia fazer. O starkkapitän continuou.
— Mas eu diria que ela também aprendeu uma lição nesta situação, a de que quando alguém dá a sua palavra, a outra parte poderá ficar aborrecida se essa palavra não for cumprida, e às vezes sua reação pode impedir que se obtenha a vantagem que se esperava ganhar. Agora ninguém vai saber qual de vocês teria vencido o jogo.
Jan deu um tapinha no ombro de ca’Damont.
— Pronto, viram só? — disse o hïrzg para os filhos. — Vocês ouviram do próprio starkkapitän. Ele entende mais de guerra do que qualquer um de nós. Espero que tenham aprendido bem, pois quando um de vocês for hïrzg...
— Rezemos a Cénzi para que isso não aconteça ainda por muitas décadas, meu marido.
A voz ergueu a cabeça de Jan, que viu Brie parada no umbral, rindo da cena. Ele foi em sua direção, deu-lhe um beijo e um abraço breve. Brie cheirava a jasmim e água doce, e seu cabelo — que um dia fora da mesma cor que o de Elissa, mas que agora ficava escuro — era macio mesmo preso nas tranças firmes de Tennshah, tão populares nos dias de hoje. Se sua silhueta tinha ficado mais pesada depois de dar à luz a seus filhos, bem, isso era como as cicatrizes no rosto de ca’Damont; um sinal dos sacrifícios que ela fizera.
Rance tinha contado para Jan que foi Brie quem mandara Mavel co’Kella embora e o porquê. Após a irritação inicial, ele ficou feliz: isso poupou-lhe o trabalho de fazer o mesmo.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Brie, que olhou para as crianças, para a criada que segurava Eria e para a babá. — Rance me disse que você ainda estava em reunião, temos que estar no templo para a bênção do Dia do Retorno em uma virada da ampulheta.
Ela balançou a cabeça, embora a expressão no rosto fosse paciente e calma.
— E nenhum de nossos filhos está arrumado ainda.
— Desculpe-me, hïrzgin — falou a babá ao fazer uma mesura. — A culpa é minha. Eu vou arrumar as crianças. Elissa, Kriege, Caelor, venham comigo agora. Rápido...
Brie abraçou cada um ao saírem (Kriege ainda de cara feia e vermelho de raiva, Elissa com um sorrisinho de triunfo, Caelor sempre circunspecto e pensativo).
— Também devo me retirar — disse ca’Damont, fazendo uma reverência para Brie e Jan, e se dirigiu ao hïrzg. — Eu mandarei meu escriba preparar um relatório completo para o senhor hoje à tarde. E verei o que o embaixador ca’Rudka tem a dizer quando chegar. Tenho certeza de que ele receberá a notícia a caminho daqui. Hïrzg, hïrzgin...
O starkkapitän fez uma mesura e se ausentou. Quando as portas da câmara se fecharam, Brie foi até Jan, o abraçou novamente e ergueu a cabeça para ser beijada. Ela recuou um pouco nos braços dele e puxou o colarinho da camisa.
— Você vai usar isto na cerimônia?
— Estou considerando, sim. É confortável.
— Mas você fica tão bonito naquela sua camisa vermelha nova.
Jan sorriu para Brie.
— Então talvez eu mude para a vermelha, só para lhe agradar.
Ela o beijou novamente.
— Armen não teve problemas em Il Trebbio?
— Menos do que eu esperava, na verdade.
Brie assentiu, encostando a cabeça no ombro dele.
— As crianças nunca viram a mamatarh, Jan. Eles apenas a veem como aquela mulher horrível de Nessântico que às vezes envia presentes. Eu acho que você devia considerar o que Sergei quer oferecer por ela.
— Ela é a responsável pelo afastamento — respondeu Jan. — E Rance concorda que não deve haver acordo algum com os Domínios. Se ela queria paz, não deveria ter apoiado Stor ca’Vikej na Magyaria Ocidental e não deveria ter permitido que o filho dele andasse à vontade pela corte dos Domínios. Ela fez a fama, agora que se deite na cama; se achou desconfortável, bem, ela é a única responsável.
— Eu sei — sussurrou Brie. — Eu sei. Mas ainda assim... As crianças devem conhecer seus parentes, e não considerá-los inimigos.
— Então que ela abra mão completamente do Trono do Sol, em vez de deixar que Sergei proponha essa tolice de me nomear a’kralji.
— Você a colocou no trono, meu amor.
A censura não tinha sido tão dura quanto poderia, e Brie tocou o rosto dele delicadamente para abrandá-la.
— Eu sei, você fez o que achou que era certo na ocasião.
— Eu era jovem e tolo — disse Jan, que abriu os braços e soltou Brie. — Não quero falar sobre isso, não agora.
Ele pegou a mão da esposa e a beijou.
— Deixe-me mandar os camareiros encontrar esta camisa vermelha que você gosta tanto, e iremos ao templo fazer nossa aparição...
Jan ouviu um suspiro contido, mas Brie sorriu para o marido, passou a mão em seu peito e parou exatamente no cinto.
— Não os chame ainda — disse Brie, que ficou na ponta dos pés para beijá-lo, enquanto deixava a mão onde estava. — Ainda há tempo, não, amor?
Ele riu.
— Quanto tempo quisermos. Eles não podem começar sem nós, não é?
Jan beijou Brie novamente, com mais urgência. Ele sentiu o corpo da esposa ceder ao dele, e isso espantou todos os outros pensamentos, por um instante.
Rochelle Botelli
A cerimônia começou tarde, uma vez que a comitiva real chegou atrasada ao templo. Rochelle, em meio à confusão de pessoas comuns, sem status, encontrou alívio no abrigo de uma das meias colunas do interior, na parede dos fundos, encostando-se ali com os olhos semicerrados, com as narinas queimando com o fedor de incenso e os ouvidos cheios do cântico das preces e da cantoria do coro. Ela ouviu os ca’ e co’ sentados ficarem de pé quando as trompas soaram seu chamado lamentoso do domo do templo e as grandes portas principais se abrirem para dar passagem ao hïrzg e sua família. A luz radiante do sol entrou na escuridão parcial do templo. Rochelle abriu totalmente os olhos e subiu na base da meia coluna, para olhar sobre as cabeças da congregação.
A procissão era liderada pelo archigos Karrol e vários o’ténis, envoltos pela bruma de fumaça aromática dos incensórios, com quatro ténis-luminosos cantando e levando lanternas com chamas amarelas ainda mais intensas que o sol. O archigos andava devagar, com um o’téni de cada lado, caso ele tropeçasse — Karrol tinha mais de sete décadas de idade, e embora ainda tivesse a mente afiada de sempre, nos últimos anos sua saúde física começara a declinar, e seus assistentes estavam sempre atentos quando ele subia degraus e escadas, ou quando, como hoje, o ritual exigia que o archigos andasse uma distância considerável, embora ele se apoiasse no cajado do archigos que levava na mão direita, com o globo cravejado e partido de Cénzi na ponta. Karrol vestia um robe verde enfeitado com fio dourado, os desenhos reluziam na claridade que o banhava, o longo cabelo branco parecia brilhar sob a coroa pontiaguda. Ele ergueu sua mão livre para saudar a multidão, e a boca curvou-se em um sorriso sob a barba.
O starkkapitän Armen ca’Damont e sua família vieram a seguir, seguidos dos integrantes do Conselho dos Ca’ com suas famílias. Rochelle ficou na ponta dos pés para ver melhor Jan quando ele entrou. Ela lembrava-se da matarh — nos momentos cada vez mais raros de lucidez antes que fosse completamente dominada pelas vozes em sua cabeça — falando de Jan, dizendo que ele era bonito, o jeito que a abraçava, a promessa de que a amaria para sempre.
Que Jan era seu vatarh.
A matarh de Rochelle amou Jan até a morte, assim como odiou a kraljica Allesandra por ter separado os dois.
Rochelle já tinha visto quadros do hïrzg e olhado fixamente para a imagem, à procura de alguma semelhança com as feições que ela via quando se olhava em metal escovado ou água parada. Talvez o nariz fino e comprido? Ou as maçãs do rosto acentuadas? A pele, mais escura e facilmente bronzeada no sol; será que indicava as Magyarias e o sul, onde o hïrzg nasceu? Será que esses traços tinham vindo do vatarh de Rochelle, ou da vavatarh?
Ela nunca o vira assim tão perto, ao vivo — a uma distância tão curta quando Jan entrou no tempo. Rochelle espiou ansiosamente na direção do hïrzg.
Ele era bonito: tinha uma barba fina e escura que envolvia sua mandíbula firme, um nariz fino e comprido (sim, parecido com o dela), uma pele tão escura que se destacava entre os firenzcianos no templo; olhos escuros e intensos; cabelo cacheado e tão escuro que era quase preto, embora o sol revelasse mechas vermelhas e cor de bronze.
Parecia com o cabelo dela. Como o rosto que Rochelle às vezes via devolvendo o olhar.
Sim, ele podia ser mesmo seu vatarh. As histórias que sua matarh lhe contara podiam ser verdade. Rochelle ficou aflita quando o hïrzg olhou em volta, quando seu olhar passou momentaneamente por ela. Ela ergueu a mão; e ele pareceu acenar ligeiramente com a cabeça para ela.
Ao lado dele estava a hïrzgin Brie. Rochelle viu a mão de Jan tocar sua cintura ao se aproximar e cochichar alguma coisa em seu ouvido. A hïrzgin riu, e Rochelle viu o carinho nos olhos da mulher ao encarar o marido. O vatarh de Rochelle. E atrás...
Atrás deles estavam os filhos. Rochelle sabia seus nomes; todo mundo em Firenzcia sabia. Ela olhou fixamente para as crianças, seus meios-irmãos. Sentiu vontade de chamá-los. “Eu deveria estar ali, com ele”, dissera sua matarh, “com você como a filha mais velha, aquela que Jan mimaria, que sempre faria com que ele desse aquele sorriso. Jan tinha um sorriso tão maravilhoso...”.
Rochelle sorriu para Jan, mas ele não estava mais olhando na sua direção, ele agora havia passado por ela, percorrendo a passos largos a nave do templo em direção ao coro, onde o archigos Karrol o esperava. O hïrzg cumprimentou os ca’ e co’ nos bancos voltados para a frente.
Rochelle imaginou-se andando com ele. Imaginou-se recebendo uma onda de aplausos. Imaginou que Jan desmanchava seu cabelo em vez do de Elissa.
“Esse era o meu nome: quando o conheci, quando éramos amantes. Era o nome que eu usava na época — Elissa. Ele batizou sua primogênita em minha homenagem. Ele...”.
A família — a família que poderia, que deveria ter sido dela — estava distante agora, entrava nos assentos vazios diante do Alto Púlpito em frente ao templo, sob o domo e as figuras pintadas que olhavam para a assembleia lá do alto, em seus afrescos. Os e’ténis no fundo do templo entoavam cânticos, a energia do Ilmodo fechou as enormes portas de bronze, e Rochelle deixou-se cair do poleiro para o chão. Andando agilmente e em silêncio, ela saiu de mansinho antes que as portas se fechassem.
Rochelle entrou correndo nas zonas mais antigas e pobres da cidade, onde morava. Este era outro conselho da matarh: “Viver entre os ricos deixa a pessoa visível demais. Este foi o erro que cometi com seu vatarh...”. Ela ouviu as trompas do templo soarem a Segunda Chamada e a bênção do Dia do Retorno ao entrar cada vez mais nas vielas estreitas e tortuosas que se enrolavam em torno dos morros de Brezno, com pressa porque estava atrasada para um compromisso.
Alguém queria contratar a Pedra Branca: Josef co’Kella, pertencente a uma família em ascensão que parecia estar envolvida em vários negócios na cidade. Rochelle imaginou que desculpa o homem teria usado para evitar sua presença no templo na manhã de hoje.
Ele já deveria estar esperando do lado de fora da Faísca Azul, uma taverna na alameda Reta — um nome apropriado, pois subia em linha reta pela encosta íngreme do morro Hïrzgai, que abrigava as ruínas do primeiro palácio, queimado e abandonado há três séculos. A Faísca Azul ficava localizada no meio da subida do morro; Rochelle tinha escolhido o lugar porque podia chegar tanto por cima quanto por baixo da alameda, o que lhe dava uma visão de onde era possível determinar se era seguro se aproximar ou se ela deveria passar pela taverna; na última semana, desde que cumprira o contrato com o goltschlager ci’Braun, os utilinos e a Garde Brezno vinham fazendo perguntas e incursões estranhas, prendendo determinadas mulheres pela cidade: mulheres que quase sempre tinham praticamente a mesma idade que sua matarh teria se estivesse viva, mulheres que tinham a mesma compleição física da sua matarh. Era óbvio para Rochelle que eles estavam caçando a Pedra Branca. Era possível que co’Kella fosse a isca de uma armadilha para capturá-la.
Ela se perguntou, mais uma vez, se deveria sequer se encontrar com o homem, mesmo que ele não fosse nada além de um cliente em potencial. O sujeito era um co’, o que significava que Rochelle podia cobrar caro pelo serviço, mas sua matarh a tinha alertado havia muito tempo de que a Pedra Branca deveria cumprir dois, no máximo três, contratos na mesma cidade antes de se mudar. Ela queria ficar em Brezno, agora que tinha visto Jan. Queria saber mais a respeito dele, queria conhecê-lo melhor. Queria encontrá-lo. Seria melhor deixar a Pedra Branca de lado; Rochelle tinha moedas suficientes na bolsa.
Mas a verdade é que ela não queria deixá-la de lado. Era empolgante ser a Pedra Branca, caçar e, consequentemente, matar.
Mais um contrato. Só isso.
Rochelle já tinha visto co’Kella, usando — como ordenado — uma bashta vermelha e um chapéu com uma pena azul. Ele parecia pouco à vontade, observando a todos que passavam enquanto entrava e saía da porta da taverna. Rochelle olhou para ambos os lados da rua; nenhum utilino, nem gardai da Garde Brezno; não havia ninguém por perto fingindo estar fazendo qualquer outra coisa em um lugar onde pudesse vigiar facilmente o homem. O que não significava que não havia gardai escondidos nos prédios nos arredores à espreita, mas até o momento tudo parecia seguro e normal. Ela continuou andando na direção do homem, sem olhar para ele deliberadamente enquanto se aproximava, fingindo estar interessada nas mercadorias das vitrines. Em sua visão periférica, Rochelle notou que co’Kella a examinava com o olhar, afastando o rosto em seguida. Ela passou pelo sujeito e colocou a mão no cabo da faca sob o manto.
— Venha comigo, vajiki co’Kella — sussurrou Rochelle ao passar por ele.
Ela continuou subindo a alameda, lentamente. O homem ficou visivelmente espantado. Em seguida, se moveu e se virou para caminhar ao lado de Rochelle.
— Você é...?
— Eu sou quem você esperava — respondeu ela.
Rochelle olhou para trás: ninguém surgiu dos prédios em volta; nenhum utilino deu um apito de alerta; nenhum esquadrão da Garde Brezno apareceu. Ela relaxou um pouco, embora continuasse a espiar para ver se os dois estavam sendo seguidos — havia um grande emaranhado de travessas que afluíam da alameda Reta, Rochelle pensou que poderia despistar possíveis perseguidores ali, se precisasse. Ela manteve a mão no cabo da faca, caso o próprio co’Kella tentasse atacá-la, mas as mãos do homem estavam visíveis e ele não parecia ter uma espada.
— Qual o seu nome? — perguntou co’Kella.
Rochelle riu.
— Você não precisa saber meu nome, vajiki. Não estamos fazendo negócio, e mesmo que estivéssemos, este é um negócio do tipo que dispensa nomes. Já basta que eu saiba o seu, e não é comigo, afinal de contas, que você quer conversar.
— Então você não é... Claro que não, é tão jovem...
— Não, eu não sou a pessoa que você quer contratar — respondeu ela em tom firme. — Eu sei como entrar em contato com ela, se é isso o que você quer saber. E isso é tudo. Mas nem mesmo eu sei dizer qual a sua aparência ou quem ela é.
Co’Kella parou. Rochelle virou a cabeça para olhar para ele.
— Continue andando, vajiki, a não ser que tenha mudado de ideia.
O homem pareceu sentir um calafrio, depois deu um passo para acompanhá-la novamente.
— Ótimo — disse ela. — Então me diga, quem é a pessoa?
— Quem é a pessoa? — perguntou co’Kella estupidamente, estremecendo novamente. — Ah, isso. Eu preferia não dizer. Apenas para... a pessoa com quem você entrará em contato por mim.
Os dois chegaram a uma das transversais. Rochelle parou.
— Então estamos conversados. Bom dia, vajiki.
Ela começou a virar para a esquerda, se afastando da alameda.
— Não, espere! — berrou co’Kella quando Rochelle deu as costas.
Ela parou e se permitiu abrir um sorriso. Tão típico. Rochelle voltou a subir a alameda, sem dizer nada, e co’Kella a seguiu apressadamente, próximo ao seu cotovelo.
— Eu... eu digo para você. É Rance ci’Lawli.
Ela não conseguiu conter totalmente a surpresa em sua voz.
— Ci’Lawli? O assistente-chefe do hïrzg?
Ele assentiu.
— O próprio.
Você não devia fazer isso. Matar alguém tão próximo ao hïrzg. Ainda assim... seria preciso estar perto ou dentro do palácio, onde teria que estar perto de seu vatarh e da família dele... Rochelle sentiu um pulsar dentro de si, que a fez queimar com um anseio louco que ela não sabia definir.
— Por que ci’Lawli?
Ele torceu o nariz.
— Como você disse, vajica, não há necessidade de nomes, nem de histórias aqui. Eu contarei à Pe... — Ele se interrompeu. — À pessoa que você conhece, se ela se importar.
Rochelle deu de ombros.
— Como queira.
Ela pegou o braço de co’Kella, como se fossem dois namorados passeando pela alameda, e puxou o homem para si. Rochelle sussurrou em seu ouvido: um local, um dia e o valor em solas de ouro.
Co’Kella se afastou dela.
— Tanto assim?
— Tanto assim — ela respondeu. — Esteja lá com as solas se estiver interessado, vajiki, e você a encontrará.
Varina ca’Pallo
Ela sabia que não devia ter feito isso, sabia que Sergei ficaria irritado quando descobrisse — e sabia que ele descobriria. Mas ela esperava que fosse mais tarde, quando fosse tarde demais.
Um dos gardai designados para proteger Varina, a pedido de Sergei, tinha deixado escapar o endereço da casa, no Velho Distrito, que tinha sido invadida pela Garde Kralji. Ela se certificou de que seus compromissos no dia seguinte a fizessem passar pela casa e pediu para o condutor da carruagem parar. O garda (que não era o mesmo que lhe dera o endereço) parecia preocupado quando Varina abriu a porta da carruagem e desceu.
— Vajica ca’Pallo, eu não aconselharia...
— Então não aconselhe — ela interrompeu.
O garda ergueu as sobrancelhas. A reação à reprimenda poderia ter agradado outra pessoa, mas apenas fez Varina se sentir culpada. Ainda assim, ela continuou tentando abrandar o tom.
— Eu só quero ver o lugar onde os morellis moravam. Só dar uma olhada; você pode vir comigo, se quiser.
— O comandante vai pedir a minha cabeça por isso.
— Eu direi ao comandante que não lhe dei escolha.
O garda não pareceu convencido, mas conduziu Varina até a porta da casa. Ela deixou que ele entrasse primeiro. Teve a impressão de que podia sentir olhos os vigiando, os encarando de algum lugar. Sem tentar ocultar o gesto, Varina tirou uma pequena caixa de dentro do manto; entalhada finamente em carvalho envernizado, um trabalho primoroso, a obra de um mestre. Ela pousou a caixa no peitoril da janela mais próxima da porta, sentindo o frio do Scáth Cumhacht agarrado à madeira. Em seguida, rapidamente, seguiu o garda e entrou na casa.
Varina passou pouco tempo ali, já que o que viera fazer já tinha sido feito. Ainda assim, tentou imaginar Nico ali, sua voz e a presença nos cômodos, ou dormindo em uma das camas. Havia ícones religiosos da fé concénziana por todos os lugares da casa, e alguém com algum talento artístico havia pintado o globo partido de Cénzi na parede lateral de um dos quartos, enquanto que na parede oposta as formas demoníacas dos semideuses, os moitidi, paródias distorcidas e deformadas da humanidade, a espreitavam. Varina sentiu um arrepio ao olhar para eles, imaginando como alguém poderia dormir ali, sob esses olhares perversos, sorrisos cruéis e as mãos em forma de garras dos moitidi. Até mesmo o garda balançou a cabeça ao olhar para eles.
— Eles têm uma visão estranha da Fé, esses morellis — comentou o homem.
Os dedos do garda seguravam o cabo da espada com firmeza, como se estivesse com medo de que uma das figuras pintadas pulasse em cima dele.
— Dizem que o archigos Karrol nutre alguma simpatia por eles, embora eu jure que não entendo.
— Eu também não. Não consigo imaginar que o Nico que conheci... — Varina se interrompeu. — Estou pronta para ir.
— Ótimo — respondeu o garda, um pouco rápido demais. — Essa pintura me dá calafrios. É uma coisa feia.
Eles saíram depressa, e o garda fechou a porta atrás deles. Varina se posicionou cuidadosamente entre o homem e o peitoril da janela onde a caixa estava pousada, para garantir que ele não a visse. O condutor da carruagem era de seu corpo de funcionários; ele não diria nada.
O garda abriu a porta da carruagem para ela; Varina entrou, o garda fechou a porta e subiu para o assento ao lado do condutor. A pequena portinhola acima de sua cabeça foi erguida, e Varina viu o rosto do condutor voltado para ela, lá de cima.
— Para casa — ordenou Varina.
O homem assentiu e fechou a portinhola novamente. A carruagem entrou em movimento com um tranco.
Varina olhou para fora quando o veículo partiu. Ela podia ver a caixa no peitoril e o brilho da madeira dourada sob o sol vespertino.
— A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você. — Essas foram as primeiras palavras que ele disse para Varina, sorrindo para ela.
Em sua mente, Nico continuava a ser, de certa forma, a criança que Varina conheceu. Sim, ela sabia que o menino tinha entrado na idade adulta aos 15 anos. Varina tinha acompanhado sua carreira desde que ele reapareceu, de maneira inesperada e repentina, como um téni em ascensão no Templo do Archigos em Brezno, um acólito cuja habilidade com o Ilmodo, cujo carisma e força da personalidade impressionavam a todos que o conheciam. Ela — assim como Karl — tinham tentado entrar em contato com Nico, através de cartas enviadas por meio de Sergei em suas viagens frequentes a Brezno, mas estas seguiram sem resposta. Sergei conseguira falar com ele lá, mas Nico tinha deixado claro que não tinha interesse em entrar em contato nem com Karl, nem com Varina.
— Ele disse assim — falou Sergei ao voltar. — “Diga aos dois hereges que eles são um anátema para mim. Eles ridicularizam Cénzi e, portanto, me ridicularizam. Diga a eles que, quando eles virem os erros em suas convicções, então talvez nós tenhamos alguma coisa a dizer uns aos outros. Até lá, eles estão mortos para mim, tão mortos como se já estivessem em seus túmulos, com suas almas se contorcendo com o tormento dos retalhadores de almas.” E aí ele riu, como se achasse graça na ideia.
Apesar da decepção, Varina continuou a acompanhar a carreira de Nico. Ficara preocupada quando ele e seus seguidores desafiaram diretamente a autoridade do archigos, fazendo com que Nico perdesse o título de téni e fosse proibido de usar o Ilmodo para sempre, sob risco de perder as mãos e a língua.
Então Nico foi embora de Brezno, perambulando por algum tempo e continuando a pregar sua interpretação ortodoxa do Toustour e da Divolonté — os textos sagrados da fé concénziana — até, finalmente, chegar a Nessântico. Agora ele estava perante Varina, e ela ainda podia ver o rosto redondo do menino no semblante barbado, fino e devoto diante de si, com seu olhar forte e intenso.
“A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você.” Em todos esses anos, durante todo esse tempo, foi assim que ele começou. Varina sentiu o peso da chispeira na bolsa presa ao cinto.
— Por que eles ficariam desapontados? — perguntou ela.
Varina gesticulou na taverna do Velho Distrito onde os dois se sentavam. Em volta deles, os clientes conversavam entre si e bebiam. Um grupo de músicos afinava os instrumento em um canto. O barulho emprestava privacidade aos dois na cabine. Nico estava sentado de frente para ela, com as mãos entrelaçadas sobre a superfície arranhada da mesa de madeira rústica entre os dois, quase como se estivesse rezando. Ele vestia preto, o que fazia seu rosto pálido parecer quase espectral em comparação, mesmo com a luz fraca da taverna e da única vela na mesa.
— Por que não há nenhum gardai aqui para prendê-lo? — indagou ela. — Você acha que eu te odeio tanto assim, Nico? Eu não odeio. De maneira alguma. Nem Karl odiava.
— Então por que o esquema elaborado? — perguntou Nico. — Deixar uma caixa encantada... Devo admitir que foi inteligente e certamente chamou minha atenção, embora meu amigo Ancel não tinha dado atenção ao aviso de não abri-la. Ele me disse que pensou que suas mãos fossem empolar, e que a madeira ficara muito quente.
Nico meneou a cabeça, estalando a língua como se estivesse repreendendo uma criança.
— Você realmente deveria ser mais cuidadosa com a dádiva que Cénzi lhe deu, Varina.
Ela respirou fundo.
— Você matou pessoas, Nico. Meus amigos e colegas. Karl já estava morto; você não podia mais machucá-lo. Mas os outros... eles eram pessoas, com maridos, esposas e filhos. E você tirou a vida deles.
— Ah, isso. — Ele franziu a testa momentaneamente. — Está escrito no Toustour: “... se lutarem contra você, mate-os; esta é a recompensa dos incrédulos. Lute com eles até que não haja perseguição, e até que a única religião seja a de Cénzi”. Sinto muito pelo sofrimento que causei às famílias dos que morreram. Sinto muito, de verdade, eu rezei para Cénzi por eles.
As desculpas de Nico pareceram genuinamente sinceras, e lágrimas nascentes brilharam na base de seus olhos. Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, como se estivesse escutando uma voz invisível vinda do alto. Então seu queixo se abaixou novamente, e quando ele abriu os olhos, eles estavam secos.
— Mas, se eu sinto que alguns numetodos tenham sido mortos para serem julgados por Cénzi por sua heresia? Não, não sinto.
— O Toustour também diz: “... ó, seres humanos! Nós os criamos e dividimos em nações e tribos para que vocês conheçam uns aos outros, não para que se desprezem”.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso.
— Eu não esperava que uma numetoda citasse um texto no qual ela não acredita.
— Eu acredito, como qualquer numetodo, que o conhecimento é o que levará à compreensão. Isso inclui conhecer aqueles que lhe consideram um inimigo e entender o que eles acreditam e por que acreditam. Eu li o Toustour inteiro, e a Divolonté também, e tive conversas longas e interessantes com a archigos Ana, com o archigos Kenne e com a a’téni ca’Paim.
— Você leu o Toustour, mas evidentemente não conseguiu enxergar a verdade no texto.
— Qualquer um pode escrever um livro. Eu sou uma numetoda. Preciso de provas. Preciso de provas irrefutáveis. Eu preciso ver hipóteses testadas e resultados repetidos. Só então posso me permitir acreditar. — Varina suspirou. — Mas nenhum de nós vai conseguir convencer o outro, não é?
— Não. — Ele abriu as mãos, com as palmas para cima, sobre a mesa. — Embora eu deva admitir que vocês, numetodos, podem ser úteis ocasionalmente: a areia negra dos tehuantinos, por exemplo. É um tanto quanto irônico, se você pensar a respeito: se eu e minha gente tivéssemos permissão para usar o Ilmodo, então não teríamos precisado usar a areia negra, e seus amigos provavelmente ainda estariam vivos. O Ilmodo, pelo menos, pode ser uma arma precisa.
Varina ficou vermelha, e sua mão acariciou o cabo da chispeira carregada e engatilhada na bolsa do cinto.
— Então por que eu estou aqui, Varina — continuou ele —, se você não está planejando me entregar para a Garde Kralji e me jogar na Bastida?
— Eu queria vê-lo novamente, Nico — respondeu ela.
O dedo de Varina envolveu o guarda-mato de metal do gatilho.
— Eu queria ouvi-lo — a língua de metal frio no dedo se aqueceu com o toque — porque eu preciso saber...
Só um puxão do músculo. É o que basta.
— ... se eu sou o monstro que a Fé pinta? — concluiu Nico para Varina.
Seria tão fácil: embaixo da mesa, retirar a chispeira sorrateiramente e apontar o cano de metal na direção de Nico; puxar o mecanismo do gatilho para girar a engrenagem e soltar faíscas que tocariam a areia negra no tambor fechado. Um instante depois e... Os buracos na armadura; o que isto faria com um corpo desprotegido?
— Ninguém pensa em si mesmo como um monstro — Nico dizia. — Alguns podem julgar o ato de uma pessoa como maldade, mas essas pessoas pensam que estão fazendo o que é necessário para corrigir o que consideram pecado. Eu não sou diferente. Não, eu não sou um monstro.
Ele sorriu para Varina, e seu rosto e olhos ficaram radiantes, de uma maneira que fez com que ela se lembrasse do antigo Nico, da criança.
— Nem você é, Varina. Não importa o que possa estar pensando em fazer comigo.
Seu dedo recuou. Ela tirou a mão da bolsa.
— Nico...
— Varina — ele disse antes que ela pudesse organizar seus pensamentos caóticos —, você fez o que achou melhor para mim durante o Saque de Nessântico. Eu reconheço isso e sempre lhe serei grato por seus esforços, mesmo que você não saiba que estava seguindo a vontade de Cénzi. Quando rezo para Cénzi, peço a Ele perdão por você e Karl. Rezo para que Cénzi levante a cegueira dos seus olhos para que você possa enxergar Sua glória e ir até Ele.
Nico saiu da cabine e parou ao lado dela. Tocou no ombro de Varina levemente e recolheu a mão. Seus olhos estavam tomados por uma tristeza serena.
— Estamos em lados opostos nesta situação. Eu não queria que fosse assim, mas é. Infelizmente, não pode haver reconciliação entre nós. Pelo que você fez, eu sempre te amarei. Porque você também é uma criação de Cénzi, eu sempre te amarei. E por causa do caminho que você escolheu, eu sempre serei seu inimigo.
A tristeza no rosto de Nico aumentou.
— E é bem mais fácil odiar um inimigo desconhecido do que um conhecido. Portanto, adeus, Varina.
Nico fez, sem nenhuma ironia aparente, o sinal de Cénzi e virou-lhe as costas. O cão raivoso... Eu podia detê-lo agora. Ela cerrou o punho direito; tentou ouvir a voz de Karl, mas não ouviu nada. Nico começou a se afastar devagar.
É agora, ou será tarde demais...
Varina permaneceu imóvel na cadeira, olhando fixamente para o tecido preto nas costas de Nico conforme ele caminhava entre os clientes da taverna até a porta.
Nico abriu a porta e saiu. De algum lugar na rua, ela ouviu um cachorro latindo. Parecia debochar de Varina.
CONTINUA
ENCARNAÇÕES
Nico Morel
Varina ca’Pallo
Allesandra ca’Vörl
Niente
Sergei ca’Rudka
Brie ca’Ostheim
Varina ca’Pallo
Jan ca’Ostheim
Rochelle Botelli
Varina ca’Pallo
Nico Morel
A explosão da areia negra foi mais poderosa e atordoante do que Nico tinha esperado.
A concussão atingiu seu peito como o punho de Cénzi. Ela agitou os trapos do boneco golpeando a cabeça de papier mâché com tanta força que nenhum deles conseguiu segurá-la no lugar. O boneco desmoronou enquanto as pessoas gritavam e pedaços do esquife funerário do embaixador começaram a cair em volta delas.
— Vão embora! — berrou Nico para seus seguidores. — Espalhem-se! Rápido!
A multidão já fugia; os gardai estavam confusos e atordoados. Os morellis evaporaram na multidão e sumiram em poucos instantes. Nico esperou alguns segundos, encarando a destruição. Havia várias pessoas caídas, a maioria numetodos que estavam em volta do esquife — ele não sentia compaixão alguma pelas mortes e ferimentos sofridos por eles. Ainda assim, alguns espectadores tinham sido feridos pelos estilhaços.
— Sinto muito — Nico sussurrou para um deles, uma mulher com um corte na têmpora que sangrava bastante. — Ninguém tinha a intenção de machucá-la. Cénzi lhe abençoará pelo sangue derramado hoje aqui e por sua dor.
Ele sentiu Liana puxar sua manga.
— Temos que ir — disse ela com urgência.
Nico ergueu os olhos. O embaixador ca’Rudka estava se levantando desajeitadamente da estrutura retorcida da carruagem que seguia o esquife; a espora herege de ca’Pallo, Varina, já tinha saído e observava horrorizada a destruição do esquife. Os cavalos que puxavam a carruagem da kraljica dispararam, e o condutor tentava detê-los mais abaixo no pátio, com gardai correndo atrás deles. A explosão derrubou o condutor da a’téni do assento e encerrou seu cântico; sua carruagem estava intacta e intocada, bem atrás do resto.
Nico sorriu ao ver isso — ele não queria que a a’téni ca’Paim se ferisse.
Onde estivera deitado o corpo de Karl, havia um buraco negro nos paralelepípedos, com estilhaços espalhados por todo lado, a uma dezena de passos de distância.
— Obrigado, Cénzi — ele rezou, fazendo o sinal rapidamente. — Obrigado por me permitir fazer a Sua vontade.
Ele se perguntou se Varina perceberia a ironia em usar a areia negra — uma invenção dos hereges ocidentais, recriada por Karl e Varina — contra eles.
Nico meneou a cabeça quando Liana puxou sua manga novamente. Ela segurava sua barriga inchada.
— Você está bem? — ele perguntou, subitamente preocupado que Liana estivesse ferida.
— Eu estou bem, mas você precisa ir embora. Agora!
Nico meneou a cabeça negativamente.
— Vá em frente — disse calmamente, em voz baixa. — Eu encontro você na casa.
Liana hesitou, e Nico acenou com a mão para ela.
— Vá! — repetiu ele.
Dessa vez, Liana obedeceu e foi embora correndo desajeitadamente por causa da gravidez avançada.
Nico voltou-se para o caos. Ele observou os gardai por detrás da cobertura de pessoas que também ficaram para trás, hipnotizadas pela visão de toda a destruição. Ele ouviu o Velho Nariz de Prata berrar enquanto tentava organizar o resgate. Mal conseguia conter a alegria que sentia, embora tentasse, pois esse era apenas seu orgulho tolo repuxando os cantos de sua boca. Finalmente, ele se afastou lenta e calmamente, em paz — como se tivesse saído para uma simples caminhada matinal.
Eles só conseguiriam pegá-lo se esta fosse a vontade de Cénzi, e se Ele assim o desejasse, então Nico se conformaria com Sua decisão. Cénzi estava acima da autoridade da kraljica ou do archigos. Sozinhos, os dois não podiam fazer nada contra Nico.
Portanto, Nico se afastou sem pressa, com uma expressão solene no rosto. Cénzi o segurava em Suas mãos protetoras.
Quando ele chegou ao esconderijo que os morellis tinham estabelecido no Velho Distrito, uma virada da ampulheta ou mais depois, Nico encontrou uma comemoração em curso. Ancel deu um tapa em seus ombros; Liana o abraçou desesperadamente enquanto os demais reunidos no ambiente gritavam e sorriam.
— Um punhado deles mortos, é o que dizem os rumores — comentou Ancel. — E o corpo do degenerado do ca’Pallo espalhado em pedaços pelo pátio do templo para os ténis limparem; isso ensinará a a’téni a agradar aos hereges. Que pena que a explosão poupou a esposa de ca’Pallo e o Velho Nariz de Prata.
Estranhamente, a alegria no rosto de Ancel azedou o bom humor de Nico. Ele olhou para seus seguidores, para o prazer que sentiam, e Cénzi manifestou-se em Nico. Ele franziu a testa, sua expressão ficou séria.
— Por que estão rindo? Por que que estão sorrindo? — perguntou Nico para eles.
O desprezo em sua voz calou a comemoração na boca de todos. A sala ficou rapidamente silenciosa. Liana soltou Nico; Ancel deu um passo para trás, com o rosto subitamente abatido.
— Sinto muito, Absoluto — disse Ancel ao abrir os braços em um gesto de desculpas. — Nós não fizemos o que Cénzi pediu?
— Fizemos — respondeu Nico. — E só tivemos êxito porque temos as mãos de Cénzi sobre nós. Será que devemos comemorar isso? Sim, mandamos vários hereges para Ele julgar, mas tiramos matarhs e vatarhs de crianças, destruímos suas famílias. Levamos sofrimento àqueles próximos aos hereges, e muitos deles não eram nossos inimigos. Muitos eram fiéis. Devemos ficar contentes por tê-los prejudicado, por ter-lhes causado sofrimento?
— Eu não pensei... — Ancel começou a dizer, mas foi interrompido por um gesto de Nico.
— Não, você não pensou. Nenhum de vocês pensou. Nem mesmo eu. — Ele respirou fundo e sentiu as palavras de Cénzi preencherem sua mente. — Estamos falando de vidas. Estamos falando de pessoas que são pouco diferentes de nós. Sim, são hereges. Sim, eles envenenam os Domínios e a fé concénziana com sua presença. Sim, são nossos inimigos. Mas são pessoas, apesar de tudo, e quando lhes causamos sofrimento, trazemos sofrimento para nós mesmos, ao mesmo tempo.
Nico sentiu lágrimas quentes brotando de seus olhos, e não se importou que escorressem por seu rosto sob os olhares de seus discípulos.
— Eu não lamento uma xícara quebrada. Eu não sofro se a tira da minha sandália se parte. Mas eu choro sim pelos numetodos. Choro porque eles não conseguiram enxergar a verdade. Choro porque não pude convencê-los a seguir a verdade. Choro por que me foi dada a tarefa de ser seu executor. Choro porque me dói ver o desperdício de seu grande potencial.
Ele, então, sentiu-se enlevado por Cénzi, e enxugou as lágrimas de olhos com sua manga enquanto a raiva ia embora.
— Ancel, desculpe-me. Não estou com raiva de você. Não estou. Você é meu braço direito e agiu bem hoje. Todos vocês agiram, e devemos ficar contentes por termos conseguido demonstrar o poder de Cénzi para aqueles que controlam os Domínios e a Fé. Fomos bons servos hoje. Mas é nosso dever sermos sempre bons servos, estarmos prontos para agir quando o Mestre nos chamar para fazer a Sua vontade, independentemente do que Ele nos peça.
Nico abriu os braços, deu um passo na direção de Ancel e o abraçou. Ele beijou a bochecha do homem.
— Você sabe disso. Sei que você sabe, e não cabia a mim repreendê-lo. Você me perdoa, meu amigo?
Ancel fez uma careta e soltou um suspiro pelo nariz. Ele assentiu, e Nico agarrou sua cabeça e beijou sua testa. Ele deu um tapinha nas costas do homem. Sorriu para todos os discípulos. Liana abraçou Nico novamente, pressionando sua barriga e seu filho contra a barriga dele.
— Todos nós agimos bem hoje — Nico disse para eles, seu olhar pairou sobre as pessoas reunidas na sala. — Vocês todos são abençoados.
Varina ca’Pallo
Seus ouvidos zumbiam, Varina mal podia ouvir as vozes que se dirigiam a ela através do retinir. Isso, ao menos, já era um progresso: imediatamente após a explosão, ela se viu inteiramente surda. Varina tinha sido levada para o prédio mais próximo — um dos edifícios de administração dos Domínios que dominavam a Ilha a’Kralji. Foram enviados curandeiros; gardai entravam e saíam fazendo perguntas a ela e Sergei. Até o comandante co’Ingres veio visitá-la, e as notícias que ele trouxe eram péssimas. A kraljica Allesandra e a a’téni ca’Paim estavam abaladas, mas ilesas, porém, dos doze numetodos que acompanhavam o esquife de Karl — todos amigos, a maioria integrantes de longa data do grupo —, cinco morreram e mais três estavam gravemente feridos. Mesmo que sobrevivessem, eles ficariam com sequelas do dia de hoje pelo resto de suas vidas.
Varina chorou por eles mais do que chorou por Karl, que estava além do sofrimento.
Talbot estava entre os numetodos que acompanhavam o esquife; felizmente, seus ferimentos tinham sido leves.
Varina franziu a testa para se concentrar em Sergei, que se debruçava sobre ela de forma solícita. Varina pôde notar seu reflexo distorcido no nariz de prata; seu rosto estava arranhado, uma longa linha de sangue seco cortava sua testa, e em sua bochecha direita havia uma mancha escura de um hematoma inchado.
— A surdez deve ser temporária, me disseram os curandeiros — dizia Sergei.
Ela teve que se concentrar nos lábios do embaixador para compreendê-lo.
— É uma boa notícia para nós dois; minha audição já sofreu o bastante nesses últimos anos. Também me disseram que nenhum dos seus ferimentos deve ser grave, embora você vá ficar dolorida por vários dias. Não parece que tenha ossos quebrados, embora você deva avisá-los caso sinta alguma dor interna aguda ou caso os cortes comecem a ficar vermelhos ou podres.
— Foi Nico quem fez isso? — ela perguntou.
Sergei fez uma careta.
— Sim. Ele e os morellis. Um dos gardai jura ter visto Nico no grupo que conduzia o boneco.
— Por que ele faria isso? Karl e eu nunca... nunca...
Varina mordeu o lábio inferior, e as lágrimas ameaçaram surgir novamente à menção do nome dele.
— Com sorte, você terá a oportunidade de perguntar ao homem em pessoa, quando o encontrarmos — falou Sergei. — E eles o encontrarão. Eu já disse ao comandante co’Ingres que coordenarei pessoalmente a busca por Morel caso ele não tenha sido capturado quando eu voltar de Brezno.
— Você ainda vai? Está bem?
— Sou velho e durão; é preciso mais que um pouco de areia negra para me deter. Eu já comecei uma investigação sobre a maneira como eles adquiriram a areia negra; suspeito de que alguém do arsenal seja um simpatizante morelli. Mas com as recentes incursões na fronteira, eu tenho que ir... — seu sorriso desmoronou com o próprio peso, Sergei pousou sua mão sobre o ombro dela. — Eu sinto muitíssimo, Varina. Isso jamais deveria ter acontecido. Karl merecia muito mais do que isso.
O choro tomou conta dela, e ela não conseguiu responder. Sergei deu um tapinha em seu ombro, mas seu olhar estava voltado para outro lugar.
— O corpo... de Karl? — ela finalmente conseguiu falar.
— O corpo de Karl — respondeu Sergei, e pela contração de seu maxilar, Varina percebeu que ele não estava lhe contando tudo — foi recuperado e já está na pira no Palácio da Kraljica. A Garde Kralji foi posicionada em volta dela, e também há vários numetodos lá, que dizem que não irão embora até que a pira seja acesa.
— Eu preciso ir até lá, então.
Varina começou a se levantar. Ela sentiu os músculos protestarem com o movimento, mas conseguiu se sentar. O quarto rodou ao seu redor e depois se assentou.
— Varina, a kraljica Allesandra disse que ela mesma acenderia a pira. Os curandeiros disseram que você deveria ficar...
— Eu preciso ir até lá — repetiu ela, com mais firmeza.
Sergei suspirou e assentiu.
— Eu disse para a kraljica que essa seria a sua resposta. Eu a acompanharei até lá...
— Varina... — A kraljica Allesandra a abraçou assim que ela desceu da carruagem, depois de Sergei. — Eu sinto muito. Sou a culpada por esta atrocidade. Nós obviamente não tomamos todas as precauções que deveríamos, e isso é responsabilidade minha.
Varina negou com a cabeça.
— Não foi culpa sua — respondeu ela simplesmente.
Atrás dos cortesãos e chevarittai que flanqueavam Allesandra, Varina viu Mason ce’Fieur, um amigo numetodo que era um de seus alunos no grupo. Ele acenou para ela com uma expressão grave.
— Com licença, kraljica — disse Varina para a kraljica e se dirigiu até Mason.
Os dois se abraçaram.
— A’morce numetodo — cumprimentou ele.
O uso do título pegou Varina de surpresa. Karl tinha sido o líder nominal do grupo desde que ela começou a fazer parte dele. Varina nunca considerou que o título pudesse passar para ela com o falecimento dele, mas aparentemente passou.
— Todos nós estávamos lhe esperando — disse Mason.
Ela olhou para a pira. Havia ca’ e co’ em roupas elegantes — aduladores do palácio que queriam ser vistos pela kraljica —, mas também havia numetodos da cidade, a maioria ce’ ou de status inferiores: duzentas pessoas ou mais, rostos que ela reconhecia, gente com quem trabalhou e a quem ensinou. Eles estavam ali agora, silenciosos e pacientes.
A pira tinha a altura de três pessoas, e o cheiro de óleo era forte no pátio entre as alas do palácio tomadas por andaimes. No topo da pilha piramidal de lenha fora colocado um caixão fechado de madeira — não mais o corpo envolvido na bandeira de Paeti. Varina apertou os lábios com a visão, seu estômago revirou, enviando ácido para a sua garganta. Ela engoliu em seco, uma vez.
— Vamos fazer isso logo. Em breve, teremos que acender mais piras para o restante de nossos companheiros que caíram.
Com Sergei à sua esquerda, kraljica à sua direita, e as fileiras de numetodos atrás dela, Varina avançou até a base da pira. Ela ergueu o olhar para o caixão e por um momento teve que fazer uma pausa, sobrepujada pelas lembranças de Karl. Seu estômago revirou novamente, e Varina fechou os olhos brevemente.
Ela abriu os olhos novamente quando encontrou, em sua mente, o feitiço que havia preparado na noite anterior. Estava em sua cabeça como um ovo prestes a explodir, e Varina o acariciou com seus pensamentos. Este era o método dos numetodos: como os ténis, eles usavam uma combinação de palavras e gestos para dar forma ao feitiço — uma fórmula que devia ser seguida. Como com os ténis, o esforço de invocar feitiços tinha um custo de exaustão e fraqueza. Ao contrário dos ténis, os numetodos não invocavam Cénzi ou atribuíam seu poder a qualquer divindade; ao contrário dos ténis, eles não precisavam lançar o feitiço imediatamente após o término do encantamento. Os numetodos sabiam como manter o feitiço em suas mentes, como lançá-lo com uma palavra e um único gesto muito tempo depois. Eles, portanto, podiam “pagar antecipadamente” a fraqueza que acompanhava a invocação do feitiço e não eram afetados depois. Os numetodos podiam lançar um feitiço preparado com um simples gesto ou pronúncia.
Varina fez isso agora. Diante da pira, ela abriu o feitiço.
— Tine — disse Varina na língua de Paeti, a terra natal de Karl.
Fogo. Varina fez um gesto como se jogasse uma pedra na base da pira. Um sol irrompeu no centro da pirâmide, branco-amarelado e tão quente que seu deslocamento de ar tremulante golpeou os espectadores como o vento de um furacão. A lenha banhada em óleo pegou fogo com um estrondo, e as chamas saltaram no ar, com tornados de fagulhas rodopiantes diante delas. Uma coluna de fumaça veio a seguir, levada pela brisa na direção dos telhados distantes do palácio, onde foi dispersada pelo vento e espalhada na direção do Velho Templo e do rio A’Sele, a oeste.
O fogo furioso agora lambia o caixão que continha os restos mortais de Karl. Enquanto Varina assistia, as chamas subiram pelas laterais até obscurecer a caixa de madeira com o fogo e encobri-la com fumaça.
— Adeus, meu amor — sussurrou Varina. — Eu sempre sentirei sua falta.
As lágrimas desciam por seu rosto sem pudor e secavam rapidamente pelo calor da pira. Alguém a estava abraçando, e ela não sabia se era Sergei, a kraljica ou Mason.
Não importava. Ela assistiu aos restos mortais de Karl alçarem à eternidade em uma espiral.
Varina ficou ali até o fogo na pira entrar em colapso, muitos minutos depois, e virar uma pilha de cinzas e carvão tão morta e carbonizada quanto ela mesma.
Allesandra ca’Vörl
Allesandra observou Sergei andar de um lado para o outro em frente ao quadro da kraljica Marguerite. O olhar severo do retrato parecia, para Allesandra, acompanhar o avanço manco do embaixador, de lá para cá. O comandante co’Ingres sequer o observava; seu olhar estava fixo e resoluto no pequeno fogo da lareira, aceso com a intenção de tirar do ambiente o frio noturno. A a’téni ca’Paim estava sentada ao lado da mesa de doces, com um prato cheio em seu colo largo.
Allesandra não tinha apetite. A carnificina que a kraljica testemunhara durante a procissão fúnebre lhe tirara a fome. Suas mãos ainda tremiam ao lembrar. Tão covardemente, o uso da areia negra. Uma morte tão horrível... Ainda havia um leve zumbido em seus ouvidos provocado pela explosão.
— Não podemos permitir outro incidente como este, kraljica — declarou Sergei ao passar pelo quadro novamente. — A mensagem que isso transmite à população; a mensagem que transmite aos fiéis... Não podemos permitir.
— Não havia magia téni envolvida no incidente — declarou a a’téni ca’Paim em tom severo. — Morel sabe quais são as consequências de usar o Ilmodo. É por isso que usou a areia negra; embora um de seus seguidores provavelmente tenha acendido a areia negra com um feitiço quando o esquife passou sobre ela.
— Esta é exatamente a questão — respondeu Sergei. — Ele conseguiu perturbar um ritual solene dos Domínios sem o Ilmodo. Sem magia. O uso da areia negra foi uma mensagem: de que a Fé é inútil e fraca, que os Domínios podem ser reféns de qualquer um que consiga criar areia negra; que os numetodos são mais perigosos do que qualquer téni. Isto é pior do que se ele tivesse usado o Ilmodo.
O rosto de ca’Paim contorceu-se em uma careta de desdém.
— A Fé não é fraca — respondeu ela com firmeza. — Ela está mais forte do que há décadas. O archigos Karrol cuidou disso.
Allesandra notou que ca’Paim fingiu não ouvir o audível fungar de desdém dado por Sergei diante daquela declaração.
— Você acha que Morel não é inteligente o bastante para compreender o simbolismo de suas ações? — perguntou Allesandra para a a’téni. — Ficou claro o suficiente para mim. Aquele boneco blasfemo de Cénzi estava encarando o esquife diretamente quando a areia negra explodiu. Acho que Morel teria usado o Ilmodo para obter o mesmo efeito, mas ele estava obedecendo às leis da fé concénziana. Peço desculpas, a’téni ca’Paim, mas o homem acredita seguir os preceitos do Toustour e da Divolonté bem mais à risca do que qualquer a’téni e o archigos Karrol.
— A mensagem de Morel pode ser interpretada de várias maneiras por pessoas diferentes, kraljica — insistiu Sergei —, e isso é um problema ainda maior. Sim, para a Fé ele está dizendo: “vejam só, eu obedeci suas regras, embora as considere completamente tolas”. Para os numetodos, Morel diz: “eu considero suas crenças desprezíveis e hereges”. Mas acho que a população em geral, que não é nem téni, nem numetodo, interpreta uma declaração completamente diferente. Acho que alguns deles podem olhar para o que aconteceu e pensar: “eu posso fazer aquilo. Ora, qualquer um pode fazer aquilo”. Isso é perigoso. Não é no que queremos que as pessoas acreditem, especialmente as que podem ter motivos para se opor a nós.
Ca’Paim atacou um docinho e o mastigou furiosamente. Co’Ingres assistia à dança das chamas.
— Então o que você sugere que eu faça, Sergei? — perguntou Allesandra.
— Precisamos encontrar Morel. Temos que executá-lo publicamente, com violência — respondeu Sergei. — Então sua resposta à mensagem dele será: “se alguém tentar isso, morre.”
— É isso o que Varina me dirá para fazer? — indagou a kraljica.
— Não — admitiu Sergei. — Não é. Mas eu sou seu conselheiro, não a a’morce dos numetodos. Minha lealdade é à senhora, kraljica; a Nessântico e aos Domínios, como sempre. Eu digo o que será mais útil a essa fidelidade. Precisamos cuidar de Nico Morel e seus seguidores com rigor.
— Eu concordo completamente com o embaixador — disse ca’Paim ao se levantar, ainda segurando o prato de doces. — Meu pessoal irá ajudá-lo como for possível. Eu posso começar interrogando os suspeitos de ter afinidades com os morellis...
Ela fez o sinal de Cénzi com uma mão só para Allesandra e os demais.
— Será que Talbot poderia mandar alguém embrulhar isso para mim, kraljica? — perguntou ca’Paim ao erguer o prato. — Eu odiaria desperdiçá-los...
A a’téni ca’Paim foi embora com um pacote de doces, acompanhada pelo comandante co’Ingres. Talbot — que insistiu em voltar ao trabalho, apesar dos cortes e arranhões que recebeu — mandou um trio de criadas limpar as mesas e levar as bandejas de volta às cozinhas.
Sergei não fez menção de ir embora. Allesandra observou o embaixador, cuja atenção parecia estar voltada para os criados enquanto realizavam suas tarefas, com uma mão atrás das costas e a outra apoiada na bengala de punho prateado que quase combinava com seu nariz. Pouco tempo depois, a última criada fez uma mesura e fechou a porta ao sair.
— O que foi, Sergei? — perguntou Allesandra então. — Estou esperando Erik ca’Vikej chegar para almoçar em meia virada. Ele quer conversar a respeito da possível reação do governo exilado da Magyaria Ocidental ao problema dos morellis.
Sergei voltou-se para kraljica. Ela viu os olhos do embaixador fecharem brevemente e seus lábios franzirem, como se o gesto o incomodasse — ou como se a menção ao nome de ca’Vikej o aborrecesse.
— A senhora está brincando com fogo e areia negra, kraljica. Como embaixador dos Domínios na Coalizão, devo aconselhá-la a não dar a impressão de que apoia abertamente o homem.
Ele pareceu engolir algo mais que poderia ter dito, e Allesandra perguntou-se se Sergei percebia que outros sentimentos ela nutria por Erik.
— Como embaixador dos Domínios na Coalizão, eu espero que você me apoie, do modo como eu disser para fazê-lo — respondeu Allesandra com rispidez.
Sergei abaixou a cabeça, principalmente, suspeitou a kraljica, para que ela não pudesse ver seus olhos.
— Perdoe-me, kraljica; este é, obviamente, o meu dever. Verei seu filho em poucos dias, mas gostaria de oferecer-lhe um ramo de oliva em vez de uma espada desembainhada.
Allesandra já fazia que não com a cabeça antes que ele terminasse de falar.
— Você está se tornando previsível, Sergei, e mole com a velhice.
— Então a senhora decidiu que é contra a minha proposta de reconciliação com ele?
— Eu agradeço o esforço que você dedicou a isso, Sergei. E a boa intenção.
— Mas?
— Eu não tenho intenção de ceder para que meu filho possa tomar o Trono do Sol.
Tap, tap... Sergei deu alguns passos arrastados em direção a Allesandra. Seu rosto enrugado tinha uma expressão sincera, e ela pôde ver o reflexo do fogo da lareira em seu nariz polido.
— A senhora não estaria cedendo, kraljica, apenas nomeando seu filho como seu sucessor na sua morte.
A risada que ela soltou soou mais como uma tosse.
— Eu não consigo ver a diferença, Sergei. Se eu nomear Jan como herdeiro, perco meu poder como kraljica. A cada proclamação que eu fizer, todos passarão a olhar na direção a leste, para Brezno e para o hïrzg, a fim de ver se ele concorda. O Conselho dos Ca’ aqui ficará mais preocupado em ver como suas decisões são consideradas por Jan do que por mim. Eu pretendo ter uma vida ainda muito longa, Sergei. O que você me disse no outro dia, que eu ainda tenho décadas para me igualar à kraljica Marguerite?
Allesandra se levantou — deixe que ele note que nossa conversa acabou. Ela falou em um tom distante e severo, como se desse uma ordem para Talbot.
— Bem, eu pretendo fazer exatamente isso. E você me apoiará ou outra pessoa será meu embaixador.
A kraljica observou seu rosto, embora a expressão de Sergei raramente revelasse seus pensamentos mais íntimos. Não revelou agora. Ele fez uma reverência um pouco desajeitada e dura, mas seu rosto estava impassível e seus olhos pareciam não ter nada além de respeito por Allesandra.
— Eu sempre servirei a Nessântico e a quem estiver sentado no Trono do Sol — respondeu Sergei. — Sempre.
Ela quase riu novamente — dito com tanta cautela.
— Então diga ao meu filho que ele brinca com fogo e areia negra, como você disse, com suas recentes incursões na fronteira, e que minha paciência está se esgotando. Diga-lhe que espero que parem imediatamente, ou serei forçada a responder na mesma moeda. Lembre a Jan que a Magyaria Ocidental só lhe pertence porque não enviei a Garde Civile inteira para apoiar Stor ca’Vikej, um erro que não repetirei.
O rosto de Sergei não revelou nada ao fazer uma reverência.
— Como a kraljica desejar — respondeu ele.
— Ótimo. Mandarei Talbot fazer uma lista de exigências para a sua reunião, e minhas respostas às possíveis questões que você ouvirá do hïrzg.
O hïrzg. Não “meu filho”. Allesandra teve uma súbita lembrança de Jan: de segurá-lo como bebê, de vê-lo mamar em seu peito e do prazer íntimo e intenso de sentir o leite vir; das primeiras palavras; dos primeiros passos trôpegos; das ocasiões em que ele veio até ela chorando por causa de algum machucado ou de uma ofensa em que ela o abraçava e consolava. Quando foi que isso mudou? Por que deixei que acontecesse? Ela respirou fundo. Sergei observava Allesandra, com os olhos mucosos voltados para seu rosto.
— Estamos encerrados — falou ela. — Mandarei Talbot com minhas instruções.
— Sim, kraljica.
Allesandra odiou a compaixão que Sergei deixou transparecer em seu rosto, odiou que ele tivesse percebido o vazio dentro dela, que a fazia chorar sozinha à noite, que atormentava seus sonhos. O embaixador fez uma mesura ao sair, mas a kraljica já não estava prestando atenção nele. Era Jan quem ela via agora, como ele era da última vez que ela o viu. Allesandra imaginou como ele seria agora, como seriam seus netos, a quem ela nunca tinha abraçado, beijado ou embalado no colo. Tanta coisa que você deixou de viver. Tanta coisa que perdeu. Sua visão oscilou, as paredes cobertas por tapeçarias se tornaram brevemente líquidas, e ela se perguntou se Sergei estaria certo. Talvez fosse o momento.
Houve uma batida suave na porta, e Allesandra piscou, enxugando os olhos rapidamente com a manga.
— Entre — disse ela.
Talbot enfiou a cabeça na porta.
— O embaixador disse que a senhora precisava de mim, kraljica.
Ela fungou.
— Sim. Entre, mas primeiro mande um dos criados trazer pergaminho e tinta. E se o vajiki ca’Vikej chegar, diga-lhe que o receberei em breve.
— Eu fiquei horrorizado quando soube, preocupado que a senhora tivesse se ferido...
Erik andava de um lado para o outro em frente às janelas do aposento. O almoço fumegava na mesa, intocado. Sentada na cadeira à mesa, Allesandra observava ca’Vikej fixamente: a preocupação em seu rosto, a maneira como seus músculos se contraíam no crânio careca.
A preocupação que ele sente por você é real. Não é fingida, não é baseada em seus próprios interesses: é genuína. Ela esperava que estivesse certa quanto a isso. Allesandra também se deu conta de que tomara uma decisão, espontânea e não solicitada. Uma decisão envolta em sua própria solidão, no afastamento de Jan, no erro que ela cometera com o vatarh de Erik, na dor intensa que sentia quando estava com Varina, na raiva dirigida aos morellis. Allesandra esperava que sua decisão fosse a certa.
— Eu estou bem, Erik. Fiquei abalada, mas não ferida. O ataque não foi direcionado a mim.
Ele balançou a cabeça enfaticamente.
— Se a senhora tivesse se ferido, eu mesmo teria saído e encontrado esse Nico Morel, e... — Ele parou e se afastou das janelas a fim de olhar para Allesandra; seu rosto e voz abrandaram. — Minhas desculpas, kraljica. É que fiquei tão preocupado...
— Eu estou bem — ela repetiu. — E aqui, enquanto estivermos sozinhos, eu prefiro que você me chame de Allesandra.
— Allesandra — disse Erik, como se saboreasse a palavra. Ele sorriu. — Obrigado. Mas não menospreze esses morellis. Eles são um perigo para você, quer você acredite ou não. São fanáticos que ameaçam qualquer um que não acredite no que eles acreditam.
— Você é um fanático, Erik? — perguntou a kraljica com delicadeza e apontou para a cadeira à sua direita.
Ca’Vikej sentou-se antes de responder.
— Sobre a Magyaria Ocidental, você quer dizer?
Ele pegou a taça de vinho, e sacudiu o líquido rubro.
— Não, não quanto a isso. Em política, eu sou mais pragmático do que meu vatarh. Acredito que a Magyaria Ocidental estaria melhor sendo parte dos Domínios. Acredito que eu seria um bom gyula, se Cénzi desejar que isso aconteça. Estou disposto a trabalhar tão duro quanto for necessário para tornar isso possível, mas também sei que às vezes sacrifícios e concessões precisam ser feitos para se alcançar um objetivo, e que às vezes o melhor resultado não é aquele que se gostaria de ver. Então, não, eu não sou um fanático, mas um realista.
Erik ergueu a taça e a pousou novamente.
— Isto não quer dizer que não existam coisas com as quais eu me importe muito ou que eu não seja um homem passional, kralji... — Ele respirou fundo. — Allesandra. Quando chego a amar alguma coisa ou alguém...
A mão esquerda de Erik abandonou a taça e pousou na toalha de mesa de linho. A kraljica estendeu sua própria mão e pousou na dele. Allesandra o ouviu respirar fundo. Seus belos olhos claros sustentaram o olhar dela, sem pestanejar, quase como um desafio. Ele abriu os dedos e os entrelaçou aos de Allesandra.
— Eu sou passional. — ela disse em voz baixa. — Nessântico e os Domínios são minhas paixões. E também sou perigosa por causa disso. Portanto, esta... — Allesandra apertou levemente os dedos de Erik — ... não seria uma decisão a ser tomada levianamente. Ou, se você preferir, podemos comer o jantar que está posto diante de nós.
Erik assentiu, ergueu sua mão, ainda segurando a de Allesandra, até sua boca e beijou as costas da mão dela. Ela sentiu sua respiração quente em sua pele, o toque dos lábios, suave e excitante.
— Você está com fome, Allesandra? — perguntou Erik.
É isso que você quer... Foi por isso que você o chamou aqui hoje...
— Estou — ela respondeu.
A kraljica levantou-se da cadeira, ainda segurando a mão dele, e o levou embora.
Niente
As águas da baía de Munereo estavam cheias de navios ancorados tão próximos uns dos outros que parecia ser possível uma pessoa cruzar a grande baía a pé sem se molhar. Suas velas estavam recolhidas e amarradas nos mastros, e as embarcações estavam amontoadas sob um céu baixo com nuvens que corriam para o oeste. Ocasionais raios solares empoeirados perfuravam as nuvens e deslizavam sobre a baía, brilhando nas ondas distantes e nos panos brancos amarrados em seus mastros.
Niente nunca tinha visto tantos navios reunidos em um só lugar, e só uma vez, anteriormente, tinha visto tantos guerreiros tehuantinos reunidos.
Ele ouviu um grito ao seu lado, conforme seu filho, Atl, se aproximava.
— Pela teta esquerda de Axat — ele sussurrou a blasfêmia que ecoou alto no ar frio da manhã —, isto é uma novidade no mundo.
— Certamente que sim — respondeu Niente para o jovem.
Ele piscou, e tentou, sem sucesso, limpar a imagem borrada — mesmo a visão do olho remanescente começava a falhar. Os dois estavam sobre um morro do lado de fora das muralhas da cidade, não muito longe da estrada principal que levava ao porto. A estrada estava repleta de soldados que marchavam em direção aos barcos. As poucas centenas de nahualli e os feiticeiros que acompanhariam a força invasora estavam reunidos em seu próprio grupo, um pouco mais abaixo no morro, próximo à estrada. Eles estariam entre os últimos a subir a bordo das embarcações, imediatamente antes do tecuhtli Citlali e seus guerreiros supremos.
Atrás de Niente e Atl, as espessas muralhas de Munereo ainda estavam esburacadas e manchadas pelos vestígios da batalha travada ali há uma década e meia, quando as forças dos Domínios tinham sido derrotadas pelo exército do tecuhtli Zolin, o antecessor de Citlali. Niente tinha participado dessa batalha, tinha visto a areia negra rugir e as pedras voarem, e tinha ajudado a sacrificar os líderes orientais derrotados em nome de Axat. Também tinha navegado mar adentro ao lado do tecuhtli Zoli desse mesmo porto até os próprios Domínios.
Há tanto tempo. Parecia ter sido em outra vida para Niente.
Uma vida que ele agora era forçado a revisitar, se quisesse alcançar a visão vislumbrada na tigela premonitória. Quantos destes guerreiros morrerão por causa disso? Quantas almas serão enviadas para o submundo por causa do que estou fazendo? Axat, por favor, diga-me que eu sou capaz de realizar isso, que valerá a pena carregar essa culpa em minha alma. Ajude-me.
— Taat?
Niente saiu do devaneio.
— O quê?
— Pensei que o senhor tinha dito alguma coisa.
— Não — ele respondeu.
Pelo menos, espero que não. Ninguém pode saber dessa visão. Não ainda.
— Eu só pigarreei; o ar desta manhã está afetando meus pulmões. — Niente apontou na direção dos navios e da baía. — Amanhã, navegaremos na direção do sol quando ele nascer.
— E haverá bons ventos — afirmou Atl.
A confiança em sua voz fez Niente se voltar para o filho, estreitando os olhos.
— Você sabe disso? — perguntou ele.
Atl sorriu brevemente, como o toque do sol através das nuvens sobre os navios lá embaixo.
— Sim.
— Atl... — Niente ia dizer, mas o filho ergueu uma mão.
— Pare, taat. Deixe-me terminar por você. “Olhe para mim. Veja como Axat me marcou. Deixe a premonição para algum outro nahualli. Axat é cruel com aqueles a quem Ela dá a Visão.” Eu já ouvi isso tudo. Muitas vezes.
— Você devia olhar para mim — insistiu Niente.
Ele tocou seu olho branco e cego, massageou os músculos flácidos do lado esquerdo do rosto, os sulcos da pele morta e cheia de cicatrizes: uma máscara de horror.
— É assim que você quer ficar?
O olhar de Atl varreu o rosto de Niente e se afastou mais uma vez.
— Isso levou muitos anos, taat — ele respondeu. — E o juramento dos nahualli nos obriga a fazer o que Axat exigir de nós. E sua premonição também lhe deu isso.
Atl apontou para o bracelete dourado no braço de Niente.
— Você não deve fazer isso — insistiu Niente. — Atl, estou falando sério. Quando eu morrer, faça como quiser, mas enquanto eu estiver vivo, enquanto for seu taat e o nahual...
Ele pousou sua mão no ombro de Atl. O contraste entre suas peles o assustou: a dele era flácida, dolorosamente seca e tomada por incontáveis rugas; a de Atl era lisa e bronzeada.
— Não invoque Axat — terminou Niente. — Esta tarefa é minha. É o meu fardo.
— Não precisa ser só seu.
— Sim, precisa.
As palavras de Niente saíram mais ríspidas do que ele tinha intenção, fazendo com que Atl virasse o rosto, como se tivesse levado um tapa. Os olhos do jovem estavam entreabertos, e ele disparou um olhar de pura fúria para Niente antes de virar a cabeça ligeiramente para encarar deliberadamente a baía. “Cuide dele”, dissera Xaria antes de os dois irem embora. “Atl ama, respeita e admira você. Seu filho quer tanto que você se orgulhe dele — e eu me preocupo que Atl faça alguma tolice tentando...”
Xaria não compreendia. Nem Atl, e Niente não podia contar para nenhum dos dois. Ele não podia permitir que o filho usasse os feitiços premonitórios, não por causa do preço que eles cobravam — embora isso fosse significativo — mas porque sabia que Atl tinha o mesmo Dom que ele, e Niente não podia deixar que Atl visse o que ele viu na tigela. Não podia. Se Atl visse o que ele viu, Niente podia perder o Longo Caminho. Os vislumbres do futuro de Axat eram volúveis e facilmente mutáveis.
— Sinto muito — ele disse para Atl —, mas isso é importante.
— Tenho certeza que sim, porque o nahual está sempre certo, não é?
Dito isto, Atl fez uma mesura debochada para o taat e seguiu na direção dos outros nahualli, no mesmo instante em que Niente esticou o braço na direção dele. O nahual piscou; com o olho remanescente, ele viu Atl entrar no grupo.
Ele podia sentir os olhares de todos os nahualli voltados para ele morro acima, imaginando se Atl em breve desafiaria seu taat como nahual, imaginando se talvez devessem desafiá-lo primeiro.
Seus olhares eram avaliadores, desafiadores, destituídos de misericórdia ou compaixão.
Sergei ca’Rudka
Da rua onde se encontrava, Sergei observava o esquadrão do comandante co’Ingres se reunir em volta do prédio gasto e degradado do Velho Distrito sob a cinzenta aurora. O fedor dos açougues da rua tomou suas narinas. Havia quatro homens na frente, outros três em volta da porta dos fundos, e dois em cada espaço entre a casa e seus vizinhos. Também havia um quarteto de ténis-guerreiros cedidos pela a’téni ca’Paim — reunidos em volta da porta da frente, já entoando os cânticos de proteção.
A manhã estava fria, e Sergei fechou mais a capa em volta de seus ombros. A rua estava vazia — havia um utilino postado nas encruzilhadas próximas para impedir que as pessoas entrassem, e multidões se reuniram atrás deles para assistir. Os vizinhos que notaram a Garde Kralji avançando permaneceram prudentemente em suas casas. Sergei podia ver a oscilação ocasional de um rosto nas cortinas, embora não tivesse visto movimento algum na casa em que estavam prestes a entrar.
Isso fez Sergei torcer os lábios em uma careta. A informação veio de um bom informante e foi “verificada” pela interrogação de dois suspeitos de serem simpatizantes dos morellis na Bastida. Sergei tinha esperança de que esta batida capturasse Nico Morel. No entanto...
— Agora! — co’Ingres gritou e acenou com a mão.
Um dos ténis-guerreiros gesticulou, e a porta da casa explodiu em lascas de madeira, acompanhada de um estrondo alto e uma fumaça escura. A Garde Kralji entrou correndo, brandindo espadas e ordenando que qualquer pessoa no interior se rendesse.
Sergei não ouviu respostas aos gritos. Fez uma careta e começou a atravessar a rua, batendo com a bengala nos paralelepípedos — o comandante co’Ingres seguiu o passo cadenciado e cauteloso de Sergei —, no mesmo momento em que o o’offizier no comando do esquadrão apareceu na porta, negou com a cabeça.
— Sinto muito, embaixador, comandante — falou ele, dando passagem para que Sergei entrasse na casa.
Seus joelhos estalaram conforme ele subia pela soleira elevada. Ele ouviu o ruído alto das botas dos gardai vasculhando os ambientes no segundo andar batendo no assoalho.
— Aparentemente não há ninguém aqui — disse o’offizier.
— Não. Eles sabiam que viríamos — respondeu Sergei.
O cômodo em que eles estavam tinha pouquíssima mobília: uma mesa cuja superfície arranhada era pouco escondida por uma toalha quadrada e manchada; algumas cadeiras bambas com assentos de vime que precisavam de revestimento novo. Parecia que, se os morellis morassem aqui, viviam com pouco luxo. Sergei foi até a lareira no outro aposento e agachou, resmungando com a dor em suas pernas. Ele estendeu a mão sobre as cinzas: sentiu o calor que ainda emanava dos carvões abaixo. O embaixador ficou de pé novamente.
— Eles estiveram aqui ontem à noite. Alguém os avisou.
Sergei coçou a pele perto da narina direita falsa. No consolo sobre a lareira, havia apenas um pergaminho dobrado com capricho, com algo escrito na frente. Sergei aproximou-se para ler: era seu próprio nome, escrito em letra elegante e cuidadosa. Ele bufou pelo nariz metálico.
— Embaixador? — Co’Ingres espiava sobre o ombro de Sergei. — Ah, então nosso informante estava certo.
— Certo a respeito da localização. Errado quanto ao momento — ele respondeu.
Sergei pegou o papel do consolo e abriu o pergaminho duro.
Sergei — sinto muito ter perdido sua visita. Cénzi me diz que um dia eu e você devemos conversar. Mas não hoje. Não até eu ter cumprido todas as tarefas que Ele me passou. Gostaria de pensar que talvez agora você entenda que estou apenas fazendo Seu trabalho, mas suspeito que seus olhos, assim como os da kraljica e da a’téni, estão cegos. Sinto muito por isso, rezarei para que Cénzi lhe dê a visão. Estava assinado simplesmente “Nico”.
— Não encontraremos nada aqui — disse Sergei para co’Ingres. — Mande seus homens vasculharem o lugar exaustivamente, caso tenham perdido algum detalhe importante, mas não vão encontrar nada. Os morellis têm seu próprio informante, seja na Garde Kralji ou, mais provavelmente, dentro da Fé. Nós os perdemos.
Ele cutucou as cinzas na lareira com a ponta da bengala até ver uma brasa vermelha. Deixou o bilhete cair sobre os carvões. As pontas do papel escureceram, linhas vermelhas correram sobre o pergaminho antes de ele pegar fogo.
— Não deixarei que isso aconteça uma segunda vez — falou Sergei: para co’Ingres, para o papel, para o fantasma de Nico.
O papel virou cinza seca, e seus fragmentos subiram pela chaminé. Sergei ergueu os ombros para ajeitar a capa. Bateu com a bengala uma vez com força no piso da casa e saiu.
— Teremos sucesso da próxima vez — disse Sergei. — Eu juro.
Ele observou Varina dar de ombros na luz que passava entre as cortinas de renda da janela. Os desenhos da renda pontilhavam seu rosto e ombros com luz salpicada e deixavam seus olhos nas sombras.
— Eu sei que não é o que você quer ouvir — respondeu ela —, mas parte de mim está feliz por Nico ter escapado de você, Sergei. Acho que Karl teria se sentido da mesma forma.
O bule de chá sobre a mesa entre eles fez barulho quando Sergei se ajeitou na cadeira.
— Sua compaixão é admirável, e é o que faz a todos, incluindo Karl, amarem você.
— Mas?
Varina pousou a xícara de chá. As sombras das rendas percorreram as costas das suas mãos.
Agora foi Sergei quem deu de ombros.
— Compaixão nem sempre é bom para o Estado.
— Você teria dito isso na época em que os numetodos eram chamados de hereges e condenados à morte? — retrucou Varina suavemente.
Ela olhou lá fora, pela janela cortinada e voltou a olhar para Sergei.
— Você teria dito isso quando o kraljiki Audric e o Conselho dos Ca’ chamaram você de traidor?
Sergei estendeu suas mãos em frente ao corpo como se fosse deter um ataque. Ele lembrava-se muitíssimo bem do tempo que tinha passado na Bastida após ter sido condenado por Audric: de como tinha sentido medo de que fizessem com ele o que ele tinha feito com tantos outros, de como Karl e Varina o tinham salvado desse destino, colocando suas próprias vidas e liberdade em risco.
— Eu me rendo — falou o embaixador. — A dama tomou o campo de batalha.
Varina quase sorriu ao ouvir isso. A expressão foi momentânea, mas Sergei sorriu de volta — era a primeira vez que a via mostrar um traço de divertimento desde a doença fatal de Karl. O embaixador estendeu o braço e deu um tapinha na mão de Varina; a pele flácida em volta de seus ossos fez as mãos dela parecerem jovens, em comparação.
— O menino teve uma vida difícil — argumentou ela. — Ele foi tirado de sua pobre matarh por aquela louca horrorosa, a Pedra Branca. Que tipo de vida o menino poderia ter tido? Não fazemos ideia dos horrores pelos quais ele pode ter passado com ela.
— Concordo, não há como sabermos. No entanto, ele não é mais um menino, mas um homem que tem que ser responsabilizado por seus atos — disse Sergei.
E ergueu novamente as mãos ao ver que Varina se preparava para responder.
— Eu sei, eu sei. “A criança molda o homem”. Eu conheço o ditado, e sim, há verdade nessas palavras, mas ainda assim... — Sergei balançou a cabeça. — ... Nico Morel não é o menino que conhecemos, Varina, não importa o quanto você gostaria que isso fosse verdade. A última ação dele matou cinco amigos nossos e feriu muitos outros.
— Eu sei — ela respondeu tristemente. — E não estou dizendo que ele não deve ser punido por isso. Nem considero Nico o monstro que você pinta, mesmo depois do que ele disse, mesmo depois do que fez ao...
Varina parou. Sergei ouviu a hesitação em sua voz e viu seus olhos umedecerem, e soube o que ela não diria. Varina fungou e recuperou o controle.
— Mas compaixão... Você está errado quanto a isso, Sergei. Está errado a respeito do que estou sentindo. Um cachorro raivoso não pode ser culpado por sua raiva, mas deve ser detido pelo bem de todos. Eu compreendo, Sergei. Mas se o cão for meu, então é meu dever detê-lo. Meu.
Seu tom era fervoroso, e Sergei ficou intrigado com a urgência que ouviu em sua voz.
— Só me prometa que, se, por alguma razão, você souber de alguma sobre Nico, irá avisar o comandante co’Ingres imediatamente — pediu o embaixador. — Ele prometeu que a protegeria enquanto eu estiver em Brezno, mas me preocupo com os morellis, especialmente após o funeral de Karl. Só Cénzi sabe o que eles são capazes de fazer. Detê-lo sozinha seria arriscado. Pelo que a a’téni ca’Paim me falou, a habilidade de Nico com o Ilmodo é absolutamente assustadora, se ele escolher usá-la. Prometa-me que tomará cuidado. Prometa-me que não fará esforço algum para contatá-lo. Esse cão raivoso em particular ameaça a todos na cidade; deixe que a cidade o detenha.
Outro sorriso, este bem mais fraco que o anterior.
— Você pareceu o Karl falando agora. Eu sempre acreditei que a cautela era superestimada — disse Varina, e seu sorriso de repente se ampliou. — E você, Sergei... vai tomar cuidado?
— O hïrzg Jan, embora isso provavelmente demonstre sua falta de bom senso, parece gostar de mim, apesar do relacionamento frio entre ele e sua matarh. De qualquer maneira, eu sou apenas o mensageiro da kraljica Allesandra.
E às vezes o mensageiro é culpado quando a mensagem não é o que eles querem escutar... Sergei sorriu mesmo quando a dúvida penetrou em sua mente. Jan não gostaria da mensagem de Allesandra, isso era certo. E ele suspeitava que Allesandra também não iria gostar da resposta de Jan.
Você está ficando velho demais para isso... Esse pensamento continuava a vir à tona, cada vez mais. Sergei estava cansado, e a ideia de passar vários dias em uma carruagem na estrada, da surra que seu corpo levaria da viagem, e do desconforto das estalagens e camas estranhas no caminho...
Velho demais...
— Cuide-se, Varina. Tome cuidado e, por favor, lembre-se do que falei sobre Nico.
Com uma careta, Sergei empurrou a cadeira e se levantou. Ele pegou sua bengala, que estava apoiada na mesa. Varina levantou-se com o embaixador, dando um passo em sua direção e abraçando-o. Com uma mão, Sergei retribuiu o gesto.
— E você, cuide-se — disse Varina. — E cuidado com as cortesãs, embaixador. Eu soube que, em Brezno, elas não são tão... discretas como somos aqui.
Não serão as cortesãs com quem me envolverei...
— Infelizmente, quando elas olham para mim, não querem outra coisa que não sair correndo — disse Sergei, tocando o nariz.
Ele abraçou Varina com força mais uma vez, e depois se afastou.
— Eu a visitarei assim que retornar. Prometo.
Brie ca’Ostheim
Kriege não deveria estar no quarto de vestir de maneira alguma, mas tinha o hábito de fugir das babás que cuidavam dele. Brie teria que falar com elas mais tarde.
Ela acordou quando ouviu a porta de serviço do quarto de vestir ranger ao ser aberta. Ouviu os passos de Kriege sobre o tapete. Brie saiu de mansinho da cama e entrou no quarto de vestir que ela e Jan compartilhavam. Kriege estava em pé diante na penteadeira de Jan, com as mãos ocupadas com alguma coisa que seu corpo escondia. Ela sorriu satisfeita, esfregando os olhos para espantar o sono.
— Kriege — perguntou Brie —, o que você está fazendo?
Kriege deu meia-volta, assustado, e ela viu a adaga na mão do menino, com a lâmina fora da bainha e os gumes de aço firenzciano escuro reluzindo. A boca de Kriege fez um “Ó” de surpresa, e seu rosto ficou vermelho quando se deu conta de que ainda segurava a arma.
— Kriege, abaixe isso. Com cuidado. Seu vatarh ficaria muito irritado se visse você com isso.
Os olhos de nove anos de idade se arregalaram. Brie viu seu lábio inferior começar a tremer.
— Eu não estou irritada com você, Kriege. Apenas abaixe isso.
Ele obedeceu, um pouco rápido demais, de forma que a adaga bateu na madeira e sacudiu as caixas ali. Brie deslizou para frente rapidamente, pegou a arma e a colocou de volta na bainha usada. Kriege observou seus movimentos: ele observava tudo que tinha a ver com coisas marciais — quanto a isso, o menino era diferente de seu vatarh, e mais parecido com o vatarh de Brie, que era obcecado por armas brancas e possuía uma coleção de espadas e facas que causava inveja até mesmo a museus. O verdadeiro nome de Kriege era Jan — em homenagem a seu vatarh e a seu vavatarh; ele tinha adquirido o apelido de “Kriege” (guerreiro) ainda muito cedo por sua personalidade teimosa e birrenta quando bebê. O nome tinha pegado; ele era “Kriege” para todos no palácio. E agora parecia que tinha a intenção de honrar o apelido.
A própria Brie herdara o fascínio do vatarh por armas; na verdade, ela chamara a atenção do marido pela primeira vez quando demonstrou sua habilidade com espadas em um evento palaciano em que compareceu com seu vatarh, duelou e derrotou um chevaritt que dera uma resposta depreciativa a um comentário que Brie tinha feito sobre sua arma. Ela geralmente levava uma arma escondida no corpo, ainda.
Mas esta não era a arma dela; era de Jan. Brie devolveu a adaga à caixa de pau-rosa onde Jan a guardava quando não estava em seu cinto, e se agachou em frente a Kriege. Os cachos castanhos do menino caíram sobre sua testa quando ele abaixou a cabeça, e ela ergueu o queixo do filho com a mão, sorrindo para ele.
— Você sabe que não deveria estar aqui, não é?
Ele assentiu, uma vez, em silêncio.
— E você sabe que não deveria mexer nas coisas do seu vatarh, não é?
Outro gesto com a cabeça.
— Desculpe — respondeu ele.
— Do que você se desculpa?
A voz surgiu por trás dos dois; Brie olhou para trás e viu Jan parado na porta do próprio quarto, ainda de camisola, com o cabelo despenteado. Ele bocejou com sonolência e esfregou o rosto barbado.
Brie hesitou, mas Kriege já tinha passado por ela, abraçando as pernas de seu vatarh.
— Vatarh, era a sua adaga. Eu queria vê-la...
Jan olhou para Brie, ainda agachada diante da penteadeira. Ela levantou os ombros para o marido, balançando a cabeça.
— Minha adaga, é? Bem, venha cá...
Ele levou Kriege pela mão até a penteadeira. Abriu a caixa de pau-rosa e tirou a arma e sua bainha suja e manchada. O pomo no fim do cabo era decorado por pedras semipreciosas — Brie suspeitava de que tinha sido isso o que atraíra Kriege em primeiro lugar —, e o cabo em si era feito de madeira sólida de acácia-negra. A lâmina tinha dois gumes que se estreitavam em um ponto preciso e mortal. Uma arma elegante. Com uma história elegante.
Jan segurou a adaga, embainhada, na mão.
— Era isto o que você estava procurando?
Kriege assentiu enfaticamente.
— O que você sabe sobre essa faca?
— Eu sei que o senhor sempre a usa, vatarh. Eu a vejo no seu cinto quase todos os dias. E sei que ela é antiga.
Jan sorriu para Brie sobre a cabeça de Kriege. Ela respondeu para o filho.
— E é muito antiga. Foi feita para seu trivatarh, Karin, quando ele se tornou hïrzg, há quase 70 anos, e ele a deu para seu bivatarh, Jan, quando ele era jovem, e Jan a deu para... — ela parou, olhando para Jan, que levantou os ombros — ... sua mamatarh Allesandra.
Brie não mencionou que Allesandra usou a adaga para matar o mago ocidental Mahri. Supostamente, tanto Karin quanto o primeiro Jan também mataram alguém com a mesma arma. Seu Jan também tinha encontrado um motivo para alimentar seu aço com o sangue de um inimigo — quando sua espada fora quebrada no meio da batalha contra o exército de Tennshah.
— E Allesandra deu para seu vatarh.
Os olhos de Kriege foram ficando cada vez mais arregalados conforme Brie contava a história da arma.
— O senhor vai me dar a adaga um dia também, vatarh? — ele perguntou para Jan, depois fez uma expressão apreensiva e uma careta de desdém. — Ou a estúpida da Elissa vai ficar com ela porque é a mais velha?
Brie conteve a risada enquanto Jan abriu a boca, e a fechou novamente.
— Ninguém vai ganhar a adaga até que estejam muito mais velhos — ele respondeu, finalmente. — Ela não é um brinquedo.
— Eu quero uma faca só minha — insistiu Kriege. — Tenho idade suficiente. Eu não vou me cortar. Serei bem cuidadoso.
— Tenho certeza que sim — disse Jan.
Ele respirou fundo e olhou mais uma vez para Brie, que balançou a cabeça levemente. Não, ela murmurou.
— Vamos fazer assim — o hïrzg disse para o filho. — Mandarei Rance conversar com o mestre de armas da Garde, para ver se ele pode lhe ensinar como manusear corretamente uma faca. Se ele me disser que você compreendeu e aprendeu todas as lições, então talvez no seu aniversário nós possamos conversar sobre algo que você possa usar em eventos de estado.
— Ah, obrigado, vatarh!
Kriege exclamou e abraçou Jan novamente. E se afastou, dizendo.
— Eu vou contar para Elissa e Caelor. Eles vão morrer de inveja!
O menino saiu correndo do quarto, chamando os irmãos.
— Não. — Jan disse, erguendo a mão quando Brie começou a falar. — Eu sei o que você vai dizer. Eu sei. Elissa estará aqui em poucos minutos, exigindo saber por que não pode ter uma faca também, e Caelor virá logo atrás dela.
— E o que você dirá a eles?
— Que Caelor precisa esperar até que tenha a idade de Kriege.
— E Elissa?
— Acho que ter aulas para aprender a manusear uma arma seria bom para ela. É uma habilidade que ela pode vir a precisar um dia. — Jan guardou a adaga de volta na caixa e fechou sua tampa. — Não concorda?
Essa é uma das muitas habilidades que ela precisará aprender, Brie poderia ter respondido, ao se lembrar de Mavel co’Kella, que a esta altura estava a caminho de seus parentes em Miscoli. Brie tinha certeza de que Jan sabia o que tinha acontecido e quem a tinha mandado embora, apesar de que nenhum dos dois tenha falado a respeito. Ele tinha vindo ao quarto de Brie na noite passada, o que indicava que ninguém tinha entrado na cama de Jan ontem.
— Às vezes — respondeu Brie —, não se pode ter tudo que se quer. Nem mesmo o hïrzg.
Jan lançou um olhar severo para a esposa ao ouvir isso, e ela acrescentou.
— Ou a hïrzgin. Caso esse seja o destino dela.
— É verdade. Mas mesmo assim acho que será bom para Elissa... e que ela tenha aquelas aulas com Kriege. Eles podem começar a se relacionar melhor.
Jan ergueu a cabeça. Ambos ouviram o bater de pés no corredor, seguidos pelos chamados sonolentos e em vão da babá atrás deles (sim, ela teria que falar com a mulher, e talvez substituí-la), e, logo depois, a voz de Elissa.
— Vatarh! Onde está o senhor, vatarh?
Ele suspirou, Brie colocou a mão sobre a de Jan.
— Ela é sua filha. Assim como você, quando quer alguma coisa, ela dá um jeito de conseguir. Você não pode culpá-la por isso.
Ele teria respondido, mas Elissa irrompeu no quarto pela porta de serviço no segundo seguinte, com o irmão caçula, Caelor, vindo logo atrás.
— Vatarh, não é justo! — exclamou a menina ao bater com o pé no chão.
— Vou deixá-lo responder — falou Brie para Jan, rindo. — Vou chamar a camareira para me ajudar a vestir. Preciso ter uma conversa com a babá...
Varina ca’Pallo
— Aqui está — disse Pierre Gabrelli entregando o dispositivo para Varina — Espero que funcione para você — ele acrescentou com um sorriso irônico.
Ela segurou o objeto em suas mãos, admirada.
— Pierre, isto é lindo...
O sorriso do homem se ampliou.
Ela montou sozinha a maior parte das versões experimentais do objeto, garimpando peças aqui e ali na cidade e depois juntando tudo. Seus próprios dispositivos eram funcionais, mas feios e desajeitados de manusear. Pierre era ferreiro e artesão, assim como numetodo. O que ele tinha dado a Varina não era uma cópia crua da ideia que ela tinha em mente, mas uma obra de arte.
Varina manuseou a “chispeira”, como decidira chamá-la, para examinar todos os lados, maravilhada. O dispositivo era deliciosamente pesado e sólido e, no entanto, balanceado o suficiente para ser empunhado com uma mão. Um tubo de metal reto e octogonal — mais espesso desta vez — estendia-se a um palmo do cabo curvo de madeira. Os canos de Varina eram lisos, sem adorno; este era gravado com desenhos de vinhas e folhas enroscadas, o metal era escovado e os desenhos tinham sido traçados em preto fosco. Onde o cano encontrava a madeira, as folhas se lançavam para fora, encaixando perfeitamente em nichos na madeira entalhada para receber o padrão floreado. E a madeira: Pierre pegou várias espécies de madeira, laminou todas juntas, e a variedade de grãs criou um padrão adorável e atraente sob o verniz reluzente. O tambor que carregaria a pólvora não era mais um dispositivo bruto parafusado tortamente no topo: aqui estava encaixado em seu próprio nicho no cabo, e Pierre tinha incluído uma tampa de metal para protegê-lo da chuva e fechá-lo. A roda de aço finamente salientada e ligeiramente sulcada no tambor era cromada e polida; um pequeno cão sobre ele tinha o mesmo desenho de vinhas e folhas do cano, com uma peça delicada de pirita presa nos mordentes. Um guarda-mato — também no formato de folha e cromado — envolvia o mecanismo de disparo.
Ao olhar fixamente para o objeto, Varina esqueceu-se por um momento da dor que pairara como uma sombra negra sobre ela há dias. Por um momento, havia luz em seu mundo.
— Tenho medo de testar isso — ela disse para Pierre. — Odiaria estragá-lo.
— Foi totalmente feito de acordo com suas especificações, que eram, devo dizer, engenhosas; eu só acrescentei a decoração para deixá-lo bonito. Vá em frente, puxe o cão para trás. Coloque o polegar na folha e pressione para trás...
Varina obedeceu: ela ouviu os mecanismos clicarem suavemente quando a pirita se afastou do tambor, ouviu a mola presa à engrenagem ranger ao ser estendida, sentiu o gatilho deslizar para frente e travar. Varina colocou o dedo em volta do gatilho e o apertou: ele voltou imediatamente dando um estalo; a engrenagem girou furiosamente; o cão de pirita bateu contra o aro da roda, e ela viu fagulhas saírem voando do tambor.
Varina podia imaginar o resto: as fagulhas acendendo a areia negra no tambor; a explosão propagando uma bola de chumbo saída do buraco redondo feito no cano...
Pelo menos, esta era a teoria. A última versão feita por ela, bem mais crua, quase funcionou, como ela tinha contado a Karl. Quase — ela ainda carregava as cicatrizes dessa experiência. Ou o cano do dispositivo tinha ficado fino demais, ou o metal tinha algum defeito, ou o buraco tinha sido feito ligeiramente torto. A explosão da areia negra fez o cano se romper, espalhando uma chuva de fragmentos de metal no ambiente, um dos quais tinha aberto um corte profundo no braço de Varina — mais dois palmos para cima e teria acertado seu rosto, mais um palmo para o lado e poderia ter penetrado seu peito. Ela podia ter ficado cega ou morrido — isto foi o que Varina não contou para Karl.
Ao pensar em seu nome, a tristeza ameaçara voltar, e ela forçou-se a sorrir para o ferreiro e fingir.
— Pierre, eu devia ter pedido para você fazer isso há tempos. Ela é bem mais elegante do que as engenhocas que eu fiz sozinha. Todo esse trabalho lindo. É só que... e se ela se quebrar como a última?
— Então a senhora me diz o que preciso fazer para a próxima funcionar melhor, não é? — Ele sorriu novamente. — Ande. Teste. Estou morrendo de vontade de ver.
Pierre arregalou os olhos subitamente ao se dar conta do que disse.
— A’morce, eu...
Varina sorriu e tocou a mão do ferreiro. Ela meneou a cabeça.
— Eu não sei.
Até agora, Varina tinha conduzido todas as experiências sozinha. Os outros numetodos sabiam que ela estava fazendo experimentos com alguma espécie de dispositivo para disparar areia negra, mas ninguém — nem mesmo Karl — sabia dos detalhes.
— Pierre... isso é perigoso. Se...
Desculpas. Apenas desculpas. Varina não queria que Pierre estivesse presente; ela notou pelas rugas de expressão em seu rosto que ele compreendeu.
Ele franziu a testa. Deu de ombros.
— Como quiser, a’morce — respondeu Pierre.
Ele se dirigiu até a porta do aposento; Varina quase o chamou de volta, sentindo-se culpada, mas a letargia que tomara conta dela nos últimos dias a tinha deixado lenta e desanimada, e ela não o chamou.
A porta se fechou quando Pierre saiu.
Varina estava no porão da Casa dos Numetodos na Margem Sul, um dos vários laboratórios de lá. Seus laboratórios. Foi aqui que Varina, há anos, desvendou a fórmula de produção da areia negra dos tehuantinos. Foi aqui também que ela trabalhou no desenvolvimento da magia ocidental: a cansativa habilidade de encantar um objeto para armazenar um feitiço. Varina tinha passado muitas longas horas aqui. Horas demais, ela pensava, às vezes. Às vezes parecia que Varina tinha passado toda a sua vida aqui. Sozinha, na maior parte do tempo. Cada marca, cada arranhão na mobília, cada pincelada de tinta nas paredes lembrava a Varina do passado.
Ela tinha organizado o laboratório com cuidado: em uma das extremidades do cômodo havia um boneco de pano, vestido com um conjunto velho e amassado de armaduras de placas dadas pelo comandante co’Ingres. Na outra extremidade, Varina tinha posto uma mesa com um torno pesado de madeira. Uma das coisas que ela tinha aprendido no decorrer desse experimento era que o dispositivo dava um coice quando a pólvora era acendida. Durante uma das experiências, Varina machucara o pulso quando uma das versões da chispeira ricocheteou fortemente em sua mão ao disparar. Desde então, ela passara a usar o torno para segurar as várias encarnações das chispeiras e um barbante amarrado ao gatilho para acioná-lo — esse esquema provavelmente a salvou de ferimentos mais graves quando o cano explodiu na última vez.
Varina levou a chispeira de Pierre até a mesa. Com cuidado, ela encheu o recipiente com areia negra delicadamente. Ela tinha preparado “cartuchos” de papel com mais areia negra e uma bola de chumbo, que ela enfiou no cano. Dobrou um pano em volta do cano — “é tão bonito que não quero arranhá-lo no torno”, ela teria dito para Pierre, caso ele estivesse ali — e fechou o tambor do dispositivo, depois de garantir que ele estava apontado diretamente para o peito do boneco. Ela puxou o cão de pirita, amarrou um barbante ao gatilho e foi para trás da mesa, com o barbante na mão.
O cano da chispeira apontava de maneira ameaçadora para o boneco de armadura. Varina puxou o barbante.
A engrenagem girou, faíscas voaram. Ouviu-se um estouro alto, e uma fumaça branca saiu detrás do cano e do tambor. Na outra ponta do laboratório, ela ouviu um nítido estalo metálico.
Varina abanou a mão em meio à fumaça cáustica. Deu uma espiada no boneco: no meio da placa peitoral, apareceu um buraco escuro. Ela arrastou os pés até lá o mais rápido que pôde, inclinando-se para examinar a armadura. Havia um buraco tão largo quanto seu dedo indicador, com as bordas rasgadas e voltadas para dentro. Ela meteu o dedo no buraco — não conseguiu sentir o fundo, e o buraco ficava maior conforme ela penetrava no recheio do boneco. Em algum lugar ali no fundo, havia pedaços da bola de chumbo enterrados. Varina percebeu que estava prendendo a respiração.
Um golpe de espada teria sido aparado pela armadura. A flecha de um arco teria ricocheteado. A seta de uma besta talvez tivesse penetrado, mas não tão fundo.
Funcionou. Se fosse um garda, estaria no chão, sangrando terrivelmente ou talvez morto...
Varina podia imaginar a cena, e essa não era uma visão agradável; ela já tinha visto muita gente morrer em batalha. Varina endireitou o corpo. Voltou para a mesa e examinou a chispeira no torno. Ela parecia inteira e incólume, seu cano ainda estava reto e intacto, exceto por uma mancha de fuligem negra na ponta. Também havia marcas de fuligem em volta do tambor, mas, tirando isso, a arma parecia estar ilesa. Varina abriu o torno e tirou o dispositivo. Então, ela o segurou com o braço estendido e apontou seu cano para o boneco.
Bem, minha velha, o próximo passo é óbvio, se você quiser dá-lo... Isso tinha soado como Karl, rindo ao repreendê-la. A lembrança trouxera lágrimas aos seus olhos, e ela teve que parar por um momento para conter o choro. Varina pousou a chispeira na mesa e, depois de alguns instantes, começou a encher novamente o tambor com mais areia negra e enfiar outro cartucho de papel no cano. Ela pegou a arma e puxou o cão de pirita para engatilhá-lo. Suas mãos tremeram um pouco ao apontar a arma. Varina estendeu a outra mão para estabilizá-la enquanto olhava pelo cano. Ela se perguntou, por um segundo, se estava sendo precipitada e imprudente, se deveria esperar e repetir a experiência como tinha feito minutos atrás, mas no mesmo momento em que a ideia lhe veio à cabeça, ela apertou o gatilho e fechou os olhos.
A resposta da chispeira foi terrível, e a arma deu um pulo em sua mão, embora não tão forte quanto ela se lembrava. Varina abaixou a arma e espiou o boneco. Sim, havia um segundo buraco na armadura, este do outro lado da placa peitoral, mais alto.
Alguém bateu na porta do laboratório.
— A’morce, a senhora está bem? — chamou uma voz vaga.
— Sim — respondeu ela. — Estou bem, está tudo bem.
Varina sentou-se na única cadeira do aposento, com a chispeira aninhada em seu colo. Estava quente, e uma fina coluna de fumaça subia do cano. Varina olhou fixamente para ela: sua criação.
Qualquer um pode manusear isto. Só é preciso um pouco de habilidade e alguns momentos para aprender. Com isso, qualquer um pode matar uma pessoa à distância, mesmo um garda de armadura. Ela sempre tivera a capacidade de imaginar possibilidades; Karl sempre dissera que era isso que a tornava uma boa pesquisadora para os numetodos. “Você tem imaginação”, ele dizia. “Consegue enxergar possibilidades onde ninguém mais as vê. Esta é a melhor magia que se pode ter.”
A linha de pesquisa que produzira a chispeira tinha sido o resultado dessa capacidade — ela vinha experimentando uma nova mistura de areia negra há alguns anos. Varina colocou uma pequena quantidade dessa areia negra no fundo de um recipiente estreito de metal, tampado por um pilão de pedra; ela não tinha notado que o pilão estava rachado e que tinha deixado para trás um pedaço do pilão dentro do recipiente. Varina usou um feitiço de fogo para acender a areia negra... e o fragmento do pilão foi impulsionado pela boca do recipiente, batendo no teto do laboratório. O sulco na viga de madeira ainda estava lá, em cima da mesa. Ela percebeu, então, que a areia negra podia ser usada para outros fins que não os da simples destruição dispersa.
Um exército de soldados com chispeiras... Varina podia imaginá-lo, e a visão fez suas mãos tremerem.
Isso podia mudar a guerra. Isso mudaria a guerra. Completamente. Assim como a própria areia negra estava começando a tornar os ténis-guerreiros desnecessários, a habilidade no manuseio de espadas pesadas também já não era mais importante, não quando tudo o que era necessário era de força para puxar um gatilho e de olhos para mirar pelo cano.
Qualquer um podia ser um guerreiro. Qualquer um podia fazer justiça.
Qualquer um podia se vingar. Ou matar um cão raivoso.
Qualquer um podia matar desnecessariamente. Pelo pior ou mais trivial dos motivos.
Qualquer um. Até mesmo ela.
O que eu fiz desta vez, Karl?
Varina piscou. Sua mão acariciou o verniz sedoso do cabo. Que ironia: um instrumento tão belamente esculpido e dedicado inteiramente à destruição.
Finalmente, ela se levantou da cadeira e foi até a mesa. Tampou o frasco de areia negra e recolheu os cartuchos de papel que havia preparado. Varina colocou o frasco, os cartuchos e a chispeira em uma bolsa de couro e pendurou no ombro. Apagou as lanternas que iluminavam o laboratório, abriu a porta e trancou novamente ao sair.
Com a bolsa pesada no ombro e as mãos ainda se ecoando a sensação da chispeira ao disparar, Varina subiu a escada.
Jan ca’Ostheim
— Nossas tropas estavam tranquilamente a um dia de marcha além das fronteiras de Il Trebbio, antes que tivéssemos qualquer sinal de termos sido vistos. Tivemos uma pequena escaramuça com uma companhia de chevarittai dos Domínios. Dois deles foram mortos por nossos ténis-guerreiros, e os chevarittai deram meia-volta e fugiram depois disso; nenhum dos nossos homens foi gravemente ferido. Dadas as nossas últimas conversas, depois passar um dia ali eu recuei o batalhão pela fronteira. Com tudo que descobrimos nos últimos meses, hïrzg Jan, parece que as fronteiras dos Domínios são um tanto quanto porosas, e Il Trebbio certamente é um dos pontos mais fracos. A kraljica Allesandra não tem forças suficientes...
Armen ca’Damont, starkkapitän da Garde Civile firenzciana, parou de ler o relatório para Jan quando a porta do aposento foi aberta repentinamente, batendo com força nos aparadores. Um trio de crianças entrou no rastro da interrupção, seguido de longe por uma das criadas com uma criança menor nos braços.
— Vatarh!
Kriege, o filho mais velho de Jan, foi o primeiro a entrar. Ele bateu o pé e olhou com raiva para a irmã, que vinha atrás de si. Caelor, um ano mais novo que Kriege, parou ao lado do irmão, concordou enfaticamente com a cabeça e lançou o mesmo olhar.
— Nós estávamos brincando de chevarittai, e Elissa trapaceou! Não é justo!
A babá entrou correndo, com uma aparência nervosa, e fez uma reverência desajeitada para Jan e ca’Damont, com Eria, a caçula de Jan, agora nos braços.
— Sinto muitíssimo, hïrzg — disse a mulher sem erguer o olhar. — As crianças estavam brincando, e eu vestia a pequena Eria, quando houve uma discussão e eles correram para encontrá-lo...
— Tudo bem — respondeu Jan sorrindo para ca’Damont. — Não se preocupe. Agora, Kriege, que história é essa de trapaça?
— Elissa trapaceou — repetiu Kriege, fazendo uma careta tão feia que parecia cômica. — Trapaceou, sim.
— Elissa? — disse Jan em tom severo ao mover o olhar na direção da filha.
Outra criança talvez olhasse para o chão. Jan sabia que Caelor teria olhado, ainda que com censura, e até mesmo Kriege afastava o olhar agora. Mas Elissa devolvia o olhar calmamente, fitou uma vez o rosto magro de ca’Damont, marcado e desfigurado pelas memórias de velhas batalhas, e depois se fixou em Jan. Ela penteou para trás os fios castanhos-dourados que escaparam das tranças que caíam nos olhos.
— Eu não trapaceei, vatarh — respondeu Elissa. — Não mesmo.
— Trapaceou, sim — interrompeu Kriege, batendo o pé novamente. — Ela mentiu.
Elissa nem se incomodou em olhar para o irmão. Seu olhar permanecia fixo em Jan.
— Eu realmente menti, vatarh — admitiu ela. — Eu disse para Kriege que o ajudaria se ele atacasse o fortim de Caelor com seus soldados.
— Ela disse que usaria os ténis-guerreiros no próximo turno para me ajudar — interrompeu Kriege novamente. — E não ajudou. Em vez disso, quando chegou o turno dela, Elissa me atacou e eu perdi todos os meus fortins e a maior parte dos chevarittai. Ela trapaceou.
Jan voltou a olhar para ca’Damont, que continha um sorriso.
— Isso é verdade, Elissa?
A menina assentiu.
— Sim — respondeu em tom sério. — Veja bem, Caelor tinha a maior parte dos fortins e soldados que sobraram no tabuleiro, e Kriege e eu tínhamos mais ou menos o mesmo número. Eu sabia que não venceria Caelor sozinha, portanto, disse para Kriege que o ajudaria porque sabia que Caelor acabaria com vários soldados dele e perderia homens suficientes, de maneira que não poderia me atacar, e então, quando fosse meu turno, eu poderia tomar a maior parte dos fortins de Kriege e capturar soldados suficientes para provavelmente ganhar o jogo.
Elissa olhou para os irmãos.
— E teria ganhado também, se Kriege não tivesse ficado furioso e derrubado todas as peças no chão.
O riso abafado de ca’Damont era audível, e ele virou o rosto com cicatrizes por um momento. Jan teve que lutar para conter seu próprio divertimento, embora a graça fosse moderada pela similaridade entre Elissa e Allesandra, a mamatarh da menina. Jan podia imaginá-la fazendo a mesma coisa quando criança; era o que ele a tinha visto fazer quando adulta.
— Então... — disse Jan para a filha —, você ofereceu ao seu irmão uma aliança que não pretendia cumprir para que pudesse ganhar? Estou certo?
Ela assentiu. Jan olhou para os dois meninos e disse.
— Acho que sua irmã acabou de ensinar uma lição excelente a vocês. Na guerra, às vezes a palavra de uma pessoa não é suficiente. Às vezes seu inimigo mentirá para vocês com o intuito de ganhar vantagem. E há mais coisas na guerra do que deslocar soldados. Vocês dois devem se lembrar disso.
— Mas ela trapaceou! — insistiu Kriege, batendo o pé mais uma vez.
Jan cofiou a barba, tentando não rir.
— O que você acha, starkkapitän? — perguntou ele para ca’Damont. — Devo punir Elissa por sua trapaça?
— Não, meu hïrzg — respondeu ca’Damont.
Jan viu o rosto de Elissa relaxar ligeiramente — então a menina estava preocupada com o que ele poderia fazer. O starkkapitän continuou.
— Mas eu diria que ela também aprendeu uma lição nesta situação, a de que quando alguém dá a sua palavra, a outra parte poderá ficar aborrecida se essa palavra não for cumprida, e às vezes sua reação pode impedir que se obtenha a vantagem que se esperava ganhar. Agora ninguém vai saber qual de vocês teria vencido o jogo.
Jan deu um tapinha no ombro de ca’Damont.
— Pronto, viram só? — disse o hïrzg para os filhos. — Vocês ouviram do próprio starkkapitän. Ele entende mais de guerra do que qualquer um de nós. Espero que tenham aprendido bem, pois quando um de vocês for hïrzg...
— Rezemos a Cénzi para que isso não aconteça ainda por muitas décadas, meu marido.
A voz ergueu a cabeça de Jan, que viu Brie parada no umbral, rindo da cena. Ele foi em sua direção, deu-lhe um beijo e um abraço breve. Brie cheirava a jasmim e água doce, e seu cabelo — que um dia fora da mesma cor que o de Elissa, mas que agora ficava escuro — era macio mesmo preso nas tranças firmes de Tennshah, tão populares nos dias de hoje. Se sua silhueta tinha ficado mais pesada depois de dar à luz a seus filhos, bem, isso era como as cicatrizes no rosto de ca’Damont; um sinal dos sacrifícios que ela fizera.
Rance tinha contado para Jan que foi Brie quem mandara Mavel co’Kella embora e o porquê. Após a irritação inicial, ele ficou feliz: isso poupou-lhe o trabalho de fazer o mesmo.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Brie, que olhou para as crianças, para a criada que segurava Eria e para a babá. — Rance me disse que você ainda estava em reunião, temos que estar no templo para a bênção do Dia do Retorno em uma virada da ampulheta.
Ela balançou a cabeça, embora a expressão no rosto fosse paciente e calma.
— E nenhum de nossos filhos está arrumado ainda.
— Desculpe-me, hïrzgin — falou a babá ao fazer uma mesura. — A culpa é minha. Eu vou arrumar as crianças. Elissa, Kriege, Caelor, venham comigo agora. Rápido...
Brie abraçou cada um ao saírem (Kriege ainda de cara feia e vermelho de raiva, Elissa com um sorrisinho de triunfo, Caelor sempre circunspecto e pensativo).
— Também devo me retirar — disse ca’Damont, fazendo uma reverência para Brie e Jan, e se dirigiu ao hïrzg. — Eu mandarei meu escriba preparar um relatório completo para o senhor hoje à tarde. E verei o que o embaixador ca’Rudka tem a dizer quando chegar. Tenho certeza de que ele receberá a notícia a caminho daqui. Hïrzg, hïrzgin...
O starkkapitän fez uma mesura e se ausentou. Quando as portas da câmara se fecharam, Brie foi até Jan, o abraçou novamente e ergueu a cabeça para ser beijada. Ela recuou um pouco nos braços dele e puxou o colarinho da camisa.
— Você vai usar isto na cerimônia?
— Estou considerando, sim. É confortável.
— Mas você fica tão bonito naquela sua camisa vermelha nova.
Jan sorriu para Brie.
— Então talvez eu mude para a vermelha, só para lhe agradar.
Ela o beijou novamente.
— Armen não teve problemas em Il Trebbio?
— Menos do que eu esperava, na verdade.
Brie assentiu, encostando a cabeça no ombro dele.
— As crianças nunca viram a mamatarh, Jan. Eles apenas a veem como aquela mulher horrível de Nessântico que às vezes envia presentes. Eu acho que você devia considerar o que Sergei quer oferecer por ela.
— Ela é a responsável pelo afastamento — respondeu Jan. — E Rance concorda que não deve haver acordo algum com os Domínios. Se ela queria paz, não deveria ter apoiado Stor ca’Vikej na Magyaria Ocidental e não deveria ter permitido que o filho dele andasse à vontade pela corte dos Domínios. Ela fez a fama, agora que se deite na cama; se achou desconfortável, bem, ela é a única responsável.
— Eu sei — sussurrou Brie. — Eu sei. Mas ainda assim... As crianças devem conhecer seus parentes, e não considerá-los inimigos.
— Então que ela abra mão completamente do Trono do Sol, em vez de deixar que Sergei proponha essa tolice de me nomear a’kralji.
— Você a colocou no trono, meu amor.
A censura não tinha sido tão dura quanto poderia, e Brie tocou o rosto dele delicadamente para abrandá-la.
— Eu sei, você fez o que achou que era certo na ocasião.
— Eu era jovem e tolo — disse Jan, que abriu os braços e soltou Brie. — Não quero falar sobre isso, não agora.
Ele pegou a mão da esposa e a beijou.
— Deixe-me mandar os camareiros encontrar esta camisa vermelha que você gosta tanto, e iremos ao templo fazer nossa aparição...
Jan ouviu um suspiro contido, mas Brie sorriu para o marido, passou a mão em seu peito e parou exatamente no cinto.
— Não os chame ainda — disse Brie, que ficou na ponta dos pés para beijá-lo, enquanto deixava a mão onde estava. — Ainda há tempo, não, amor?
Ele riu.
— Quanto tempo quisermos. Eles não podem começar sem nós, não é?
Jan beijou Brie novamente, com mais urgência. Ele sentiu o corpo da esposa ceder ao dele, e isso espantou todos os outros pensamentos, por um instante.
Rochelle Botelli
A cerimônia começou tarde, uma vez que a comitiva real chegou atrasada ao templo. Rochelle, em meio à confusão de pessoas comuns, sem status, encontrou alívio no abrigo de uma das meias colunas do interior, na parede dos fundos, encostando-se ali com os olhos semicerrados, com as narinas queimando com o fedor de incenso e os ouvidos cheios do cântico das preces e da cantoria do coro. Ela ouviu os ca’ e co’ sentados ficarem de pé quando as trompas soaram seu chamado lamentoso do domo do templo e as grandes portas principais se abrirem para dar passagem ao hïrzg e sua família. A luz radiante do sol entrou na escuridão parcial do templo. Rochelle abriu totalmente os olhos e subiu na base da meia coluna, para olhar sobre as cabeças da congregação.
A procissão era liderada pelo archigos Karrol e vários o’ténis, envoltos pela bruma de fumaça aromática dos incensórios, com quatro ténis-luminosos cantando e levando lanternas com chamas amarelas ainda mais intensas que o sol. O archigos andava devagar, com um o’téni de cada lado, caso ele tropeçasse — Karrol tinha mais de sete décadas de idade, e embora ainda tivesse a mente afiada de sempre, nos últimos anos sua saúde física começara a declinar, e seus assistentes estavam sempre atentos quando ele subia degraus e escadas, ou quando, como hoje, o ritual exigia que o archigos andasse uma distância considerável, embora ele se apoiasse no cajado do archigos que levava na mão direita, com o globo cravejado e partido de Cénzi na ponta. Karrol vestia um robe verde enfeitado com fio dourado, os desenhos reluziam na claridade que o banhava, o longo cabelo branco parecia brilhar sob a coroa pontiaguda. Ele ergueu sua mão livre para saudar a multidão, e a boca curvou-se em um sorriso sob a barba.
O starkkapitän Armen ca’Damont e sua família vieram a seguir, seguidos dos integrantes do Conselho dos Ca’ com suas famílias. Rochelle ficou na ponta dos pés para ver melhor Jan quando ele entrou. Ela lembrava-se da matarh — nos momentos cada vez mais raros de lucidez antes que fosse completamente dominada pelas vozes em sua cabeça — falando de Jan, dizendo que ele era bonito, o jeito que a abraçava, a promessa de que a amaria para sempre.
Que Jan era seu vatarh.
A matarh de Rochelle amou Jan até a morte, assim como odiou a kraljica Allesandra por ter separado os dois.
Rochelle já tinha visto quadros do hïrzg e olhado fixamente para a imagem, à procura de alguma semelhança com as feições que ela via quando se olhava em metal escovado ou água parada. Talvez o nariz fino e comprido? Ou as maçãs do rosto acentuadas? A pele, mais escura e facilmente bronzeada no sol; será que indicava as Magyarias e o sul, onde o hïrzg nasceu? Será que esses traços tinham vindo do vatarh de Rochelle, ou da vavatarh?
Ela nunca o vira assim tão perto, ao vivo — a uma distância tão curta quando Jan entrou no tempo. Rochelle espiou ansiosamente na direção do hïrzg.
Ele era bonito: tinha uma barba fina e escura que envolvia sua mandíbula firme, um nariz fino e comprido (sim, parecido com o dela), uma pele tão escura que se destacava entre os firenzcianos no templo; olhos escuros e intensos; cabelo cacheado e tão escuro que era quase preto, embora o sol revelasse mechas vermelhas e cor de bronze.
Parecia com o cabelo dela. Como o rosto que Rochelle às vezes via devolvendo o olhar.
Sim, ele podia ser mesmo seu vatarh. As histórias que sua matarh lhe contara podiam ser verdade. Rochelle ficou aflita quando o hïrzg olhou em volta, quando seu olhar passou momentaneamente por ela. Ela ergueu a mão; e ele pareceu acenar ligeiramente com a cabeça para ela.
Ao lado dele estava a hïrzgin Brie. Rochelle viu a mão de Jan tocar sua cintura ao se aproximar e cochichar alguma coisa em seu ouvido. A hïrzgin riu, e Rochelle viu o carinho nos olhos da mulher ao encarar o marido. O vatarh de Rochelle. E atrás...
Atrás deles estavam os filhos. Rochelle sabia seus nomes; todo mundo em Firenzcia sabia. Ela olhou fixamente para as crianças, seus meios-irmãos. Sentiu vontade de chamá-los. “Eu deveria estar ali, com ele”, dissera sua matarh, “com você como a filha mais velha, aquela que Jan mimaria, que sempre faria com que ele desse aquele sorriso. Jan tinha um sorriso tão maravilhoso...”.
Rochelle sorriu para Jan, mas ele não estava mais olhando na sua direção, ele agora havia passado por ela, percorrendo a passos largos a nave do templo em direção ao coro, onde o archigos Karrol o esperava. O hïrzg cumprimentou os ca’ e co’ nos bancos voltados para a frente.
Rochelle imaginou-se andando com ele. Imaginou-se recebendo uma onda de aplausos. Imaginou que Jan desmanchava seu cabelo em vez do de Elissa.
“Esse era o meu nome: quando o conheci, quando éramos amantes. Era o nome que eu usava na época — Elissa. Ele batizou sua primogênita em minha homenagem. Ele...”.
A família — a família que poderia, que deveria ter sido dela — estava distante agora, entrava nos assentos vazios diante do Alto Púlpito em frente ao templo, sob o domo e as figuras pintadas que olhavam para a assembleia lá do alto, em seus afrescos. Os e’ténis no fundo do templo entoavam cânticos, a energia do Ilmodo fechou as enormes portas de bronze, e Rochelle deixou-se cair do poleiro para o chão. Andando agilmente e em silêncio, ela saiu de mansinho antes que as portas se fechassem.
Rochelle entrou correndo nas zonas mais antigas e pobres da cidade, onde morava. Este era outro conselho da matarh: “Viver entre os ricos deixa a pessoa visível demais. Este foi o erro que cometi com seu vatarh...”. Ela ouviu as trompas do templo soarem a Segunda Chamada e a bênção do Dia do Retorno ao entrar cada vez mais nas vielas estreitas e tortuosas que se enrolavam em torno dos morros de Brezno, com pressa porque estava atrasada para um compromisso.
Alguém queria contratar a Pedra Branca: Josef co’Kella, pertencente a uma família em ascensão que parecia estar envolvida em vários negócios na cidade. Rochelle imaginou que desculpa o homem teria usado para evitar sua presença no templo na manhã de hoje.
Ele já deveria estar esperando do lado de fora da Faísca Azul, uma taverna na alameda Reta — um nome apropriado, pois subia em linha reta pela encosta íngreme do morro Hïrzgai, que abrigava as ruínas do primeiro palácio, queimado e abandonado há três séculos. A Faísca Azul ficava localizada no meio da subida do morro; Rochelle tinha escolhido o lugar porque podia chegar tanto por cima quanto por baixo da alameda, o que lhe dava uma visão de onde era possível determinar se era seguro se aproximar ou se ela deveria passar pela taverna; na última semana, desde que cumprira o contrato com o goltschlager ci’Braun, os utilinos e a Garde Brezno vinham fazendo perguntas e incursões estranhas, prendendo determinadas mulheres pela cidade: mulheres que quase sempre tinham praticamente a mesma idade que sua matarh teria se estivesse viva, mulheres que tinham a mesma compleição física da sua matarh. Era óbvio para Rochelle que eles estavam caçando a Pedra Branca. Era possível que co’Kella fosse a isca de uma armadilha para capturá-la.
Ela se perguntou, mais uma vez, se deveria sequer se encontrar com o homem, mesmo que ele não fosse nada além de um cliente em potencial. O sujeito era um co’, o que significava que Rochelle podia cobrar caro pelo serviço, mas sua matarh a tinha alertado havia muito tempo de que a Pedra Branca deveria cumprir dois, no máximo três, contratos na mesma cidade antes de se mudar. Ela queria ficar em Brezno, agora que tinha visto Jan. Queria saber mais a respeito dele, queria conhecê-lo melhor. Queria encontrá-lo. Seria melhor deixar a Pedra Branca de lado; Rochelle tinha moedas suficientes na bolsa.
Mas a verdade é que ela não queria deixá-la de lado. Era empolgante ser a Pedra Branca, caçar e, consequentemente, matar.
Mais um contrato. Só isso.
Rochelle já tinha visto co’Kella, usando — como ordenado — uma bashta vermelha e um chapéu com uma pena azul. Ele parecia pouco à vontade, observando a todos que passavam enquanto entrava e saía da porta da taverna. Rochelle olhou para ambos os lados da rua; nenhum utilino, nem gardai da Garde Brezno; não havia ninguém por perto fingindo estar fazendo qualquer outra coisa em um lugar onde pudesse vigiar facilmente o homem. O que não significava que não havia gardai escondidos nos prédios nos arredores à espreita, mas até o momento tudo parecia seguro e normal. Ela continuou andando na direção do homem, sem olhar para ele deliberadamente enquanto se aproximava, fingindo estar interessada nas mercadorias das vitrines. Em sua visão periférica, Rochelle notou que co’Kella a examinava com o olhar, afastando o rosto em seguida. Ela passou pelo sujeito e colocou a mão no cabo da faca sob o manto.
— Venha comigo, vajiki co’Kella — sussurrou Rochelle ao passar por ele.
Ela continuou subindo a alameda, lentamente. O homem ficou visivelmente espantado. Em seguida, se moveu e se virou para caminhar ao lado de Rochelle.
— Você é...?
— Eu sou quem você esperava — respondeu ela.
Rochelle olhou para trás: ninguém surgiu dos prédios em volta; nenhum utilino deu um apito de alerta; nenhum esquadrão da Garde Brezno apareceu. Ela relaxou um pouco, embora continuasse a espiar para ver se os dois estavam sendo seguidos — havia um grande emaranhado de travessas que afluíam da alameda Reta, Rochelle pensou que poderia despistar possíveis perseguidores ali, se precisasse. Ela manteve a mão no cabo da faca, caso o próprio co’Kella tentasse atacá-la, mas as mãos do homem estavam visíveis e ele não parecia ter uma espada.
— Qual o seu nome? — perguntou co’Kella.
Rochelle riu.
— Você não precisa saber meu nome, vajiki. Não estamos fazendo negócio, e mesmo que estivéssemos, este é um negócio do tipo que dispensa nomes. Já basta que eu saiba o seu, e não é comigo, afinal de contas, que você quer conversar.
— Então você não é... Claro que não, é tão jovem...
— Não, eu não sou a pessoa que você quer contratar — respondeu ela em tom firme. — Eu sei como entrar em contato com ela, se é isso o que você quer saber. E isso é tudo. Mas nem mesmo eu sei dizer qual a sua aparência ou quem ela é.
Co’Kella parou. Rochelle virou a cabeça para olhar para ele.
— Continue andando, vajiki, a não ser que tenha mudado de ideia.
O homem pareceu sentir um calafrio, depois deu um passo para acompanhá-la novamente.
— Ótimo — disse ela. — Então me diga, quem é a pessoa?
— Quem é a pessoa? — perguntou co’Kella estupidamente, estremecendo novamente. — Ah, isso. Eu preferia não dizer. Apenas para... a pessoa com quem você entrará em contato por mim.
Os dois chegaram a uma das transversais. Rochelle parou.
— Então estamos conversados. Bom dia, vajiki.
Ela começou a virar para a esquerda, se afastando da alameda.
— Não, espere! — berrou co’Kella quando Rochelle deu as costas.
Ela parou e se permitiu abrir um sorriso. Tão típico. Rochelle voltou a subir a alameda, sem dizer nada, e co’Kella a seguiu apressadamente, próximo ao seu cotovelo.
— Eu... eu digo para você. É Rance ci’Lawli.
Ela não conseguiu conter totalmente a surpresa em sua voz.
— Ci’Lawli? O assistente-chefe do hïrzg?
Ele assentiu.
— O próprio.
Você não devia fazer isso. Matar alguém tão próximo ao hïrzg. Ainda assim... seria preciso estar perto ou dentro do palácio, onde teria que estar perto de seu vatarh e da família dele... Rochelle sentiu um pulsar dentro de si, que a fez queimar com um anseio louco que ela não sabia definir.
— Por que ci’Lawli?
Ele torceu o nariz.
— Como você disse, vajica, não há necessidade de nomes, nem de histórias aqui. Eu contarei à Pe... — Ele se interrompeu. — À pessoa que você conhece, se ela se importar.
Rochelle deu de ombros.
— Como queira.
Ela pegou o braço de co’Kella, como se fossem dois namorados passeando pela alameda, e puxou o homem para si. Rochelle sussurrou em seu ouvido: um local, um dia e o valor em solas de ouro.
Co’Kella se afastou dela.
— Tanto assim?
— Tanto assim — ela respondeu. — Esteja lá com as solas se estiver interessado, vajiki, e você a encontrará.
Varina ca’Pallo
Ela sabia que não devia ter feito isso, sabia que Sergei ficaria irritado quando descobrisse — e sabia que ele descobriria. Mas ela esperava que fosse mais tarde, quando fosse tarde demais.
Um dos gardai designados para proteger Varina, a pedido de Sergei, tinha deixado escapar o endereço da casa, no Velho Distrito, que tinha sido invadida pela Garde Kralji. Ela se certificou de que seus compromissos no dia seguinte a fizessem passar pela casa e pediu para o condutor da carruagem parar. O garda (que não era o mesmo que lhe dera o endereço) parecia preocupado quando Varina abriu a porta da carruagem e desceu.
— Vajica ca’Pallo, eu não aconselharia...
— Então não aconselhe — ela interrompeu.
O garda ergueu as sobrancelhas. A reação à reprimenda poderia ter agradado outra pessoa, mas apenas fez Varina se sentir culpada. Ainda assim, ela continuou tentando abrandar o tom.
— Eu só quero ver o lugar onde os morellis moravam. Só dar uma olhada; você pode vir comigo, se quiser.
— O comandante vai pedir a minha cabeça por isso.
— Eu direi ao comandante que não lhe dei escolha.
O garda não pareceu convencido, mas conduziu Varina até a porta da casa. Ela deixou que ele entrasse primeiro. Teve a impressão de que podia sentir olhos os vigiando, os encarando de algum lugar. Sem tentar ocultar o gesto, Varina tirou uma pequena caixa de dentro do manto; entalhada finamente em carvalho envernizado, um trabalho primoroso, a obra de um mestre. Ela pousou a caixa no peitoril da janela mais próxima da porta, sentindo o frio do Scáth Cumhacht agarrado à madeira. Em seguida, rapidamente, seguiu o garda e entrou na casa.
Varina passou pouco tempo ali, já que o que viera fazer já tinha sido feito. Ainda assim, tentou imaginar Nico ali, sua voz e a presença nos cômodos, ou dormindo em uma das camas. Havia ícones religiosos da fé concénziana por todos os lugares da casa, e alguém com algum talento artístico havia pintado o globo partido de Cénzi na parede lateral de um dos quartos, enquanto que na parede oposta as formas demoníacas dos semideuses, os moitidi, paródias distorcidas e deformadas da humanidade, a espreitavam. Varina sentiu um arrepio ao olhar para eles, imaginando como alguém poderia dormir ali, sob esses olhares perversos, sorrisos cruéis e as mãos em forma de garras dos moitidi. Até mesmo o garda balançou a cabeça ao olhar para eles.
— Eles têm uma visão estranha da Fé, esses morellis — comentou o homem.
Os dedos do garda seguravam o cabo da espada com firmeza, como se estivesse com medo de que uma das figuras pintadas pulasse em cima dele.
— Dizem que o archigos Karrol nutre alguma simpatia por eles, embora eu jure que não entendo.
— Eu também não. Não consigo imaginar que o Nico que conheci... — Varina se interrompeu. — Estou pronta para ir.
— Ótimo — respondeu o garda, um pouco rápido demais. — Essa pintura me dá calafrios. É uma coisa feia.
Eles saíram depressa, e o garda fechou a porta atrás deles. Varina se posicionou cuidadosamente entre o homem e o peitoril da janela onde a caixa estava pousada, para garantir que ele não a visse. O condutor da carruagem era de seu corpo de funcionários; ele não diria nada.
O garda abriu a porta da carruagem para ela; Varina entrou, o garda fechou a porta e subiu para o assento ao lado do condutor. A pequena portinhola acima de sua cabeça foi erguida, e Varina viu o rosto do condutor voltado para ela, lá de cima.
— Para casa — ordenou Varina.
O homem assentiu e fechou a portinhola novamente. A carruagem entrou em movimento com um tranco.
Varina olhou para fora quando o veículo partiu. Ela podia ver a caixa no peitoril e o brilho da madeira dourada sob o sol vespertino.
— A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você. — Essas foram as primeiras palavras que ele disse para Varina, sorrindo para ela.
Em sua mente, Nico continuava a ser, de certa forma, a criança que Varina conheceu. Sim, ela sabia que o menino tinha entrado na idade adulta aos 15 anos. Varina tinha acompanhado sua carreira desde que ele reapareceu, de maneira inesperada e repentina, como um téni em ascensão no Templo do Archigos em Brezno, um acólito cuja habilidade com o Ilmodo, cujo carisma e força da personalidade impressionavam a todos que o conheciam. Ela — assim como Karl — tinham tentado entrar em contato com Nico, através de cartas enviadas por meio de Sergei em suas viagens frequentes a Brezno, mas estas seguiram sem resposta. Sergei conseguira falar com ele lá, mas Nico tinha deixado claro que não tinha interesse em entrar em contato nem com Karl, nem com Varina.
— Ele disse assim — falou Sergei ao voltar. — “Diga aos dois hereges que eles são um anátema para mim. Eles ridicularizam Cénzi e, portanto, me ridicularizam. Diga a eles que, quando eles virem os erros em suas convicções, então talvez nós tenhamos alguma coisa a dizer uns aos outros. Até lá, eles estão mortos para mim, tão mortos como se já estivessem em seus túmulos, com suas almas se contorcendo com o tormento dos retalhadores de almas.” E aí ele riu, como se achasse graça na ideia.
Apesar da decepção, Varina continuou a acompanhar a carreira de Nico. Ficara preocupada quando ele e seus seguidores desafiaram diretamente a autoridade do archigos, fazendo com que Nico perdesse o título de téni e fosse proibido de usar o Ilmodo para sempre, sob risco de perder as mãos e a língua.
Então Nico foi embora de Brezno, perambulando por algum tempo e continuando a pregar sua interpretação ortodoxa do Toustour e da Divolonté — os textos sagrados da fé concénziana — até, finalmente, chegar a Nessântico. Agora ele estava perante Varina, e ela ainda podia ver o rosto redondo do menino no semblante barbado, fino e devoto diante de si, com seu olhar forte e intenso.
“A kraljica e o embaixador ca’Rudka ficariam terrivelmente desapontados com você.” Em todos esses anos, durante todo esse tempo, foi assim que ele começou. Varina sentiu o peso da chispeira na bolsa presa ao cinto.
— Por que eles ficariam desapontados? — perguntou ela.
Varina gesticulou na taverna do Velho Distrito onde os dois se sentavam. Em volta deles, os clientes conversavam entre si e bebiam. Um grupo de músicos afinava os instrumento em um canto. O barulho emprestava privacidade aos dois na cabine. Nico estava sentado de frente para ela, com as mãos entrelaçadas sobre a superfície arranhada da mesa de madeira rústica entre os dois, quase como se estivesse rezando. Ele vestia preto, o que fazia seu rosto pálido parecer quase espectral em comparação, mesmo com a luz fraca da taverna e da única vela na mesa.
— Por que não há nenhum gardai aqui para prendê-lo? — indagou ela. — Você acha que eu te odeio tanto assim, Nico? Eu não odeio. De maneira alguma. Nem Karl odiava.
— Então por que o esquema elaborado? — perguntou Nico. — Deixar uma caixa encantada... Devo admitir que foi inteligente e certamente chamou minha atenção, embora meu amigo Ancel não tinha dado atenção ao aviso de não abri-la. Ele me disse que pensou que suas mãos fossem empolar, e que a madeira ficara muito quente.
Nico meneou a cabeça, estalando a língua como se estivesse repreendendo uma criança.
— Você realmente deveria ser mais cuidadosa com a dádiva que Cénzi lhe deu, Varina.
Ela respirou fundo.
— Você matou pessoas, Nico. Meus amigos e colegas. Karl já estava morto; você não podia mais machucá-lo. Mas os outros... eles eram pessoas, com maridos, esposas e filhos. E você tirou a vida deles.
— Ah, isso. — Ele franziu a testa momentaneamente. — Está escrito no Toustour: “... se lutarem contra você, mate-os; esta é a recompensa dos incrédulos. Lute com eles até que não haja perseguição, e até que a única religião seja a de Cénzi”. Sinto muito pelo sofrimento que causei às famílias dos que morreram. Sinto muito, de verdade, eu rezei para Cénzi por eles.
As desculpas de Nico pareceram genuinamente sinceras, e lágrimas nascentes brilharam na base de seus olhos. Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, como se estivesse escutando uma voz invisível vinda do alto. Então seu queixo se abaixou novamente, e quando ele abriu os olhos, eles estavam secos.
— Mas, se eu sinto que alguns numetodos tenham sido mortos para serem julgados por Cénzi por sua heresia? Não, não sinto.
— O Toustour também diz: “... ó, seres humanos! Nós os criamos e dividimos em nações e tribos para que vocês conheçam uns aos outros, não para que se desprezem”.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso.
— Eu não esperava que uma numetoda citasse um texto no qual ela não acredita.
— Eu acredito, como qualquer numetodo, que o conhecimento é o que levará à compreensão. Isso inclui conhecer aqueles que lhe consideram um inimigo e entender o que eles acreditam e por que acreditam. Eu li o Toustour inteiro, e a Divolonté também, e tive conversas longas e interessantes com a archigos Ana, com o archigos Kenne e com a a’téni ca’Paim.
— Você leu o Toustour, mas evidentemente não conseguiu enxergar a verdade no texto.
— Qualquer um pode escrever um livro. Eu sou uma numetoda. Preciso de provas. Preciso de provas irrefutáveis. Eu preciso ver hipóteses testadas e resultados repetidos. Só então posso me permitir acreditar. — Varina suspirou. — Mas nenhum de nós vai conseguir convencer o outro, não é?
— Não. — Ele abriu as mãos, com as palmas para cima, sobre a mesa. — Embora eu deva admitir que vocês, numetodos, podem ser úteis ocasionalmente: a areia negra dos tehuantinos, por exemplo. É um tanto quanto irônico, se você pensar a respeito: se eu e minha gente tivéssemos permissão para usar o Ilmodo, então não teríamos precisado usar a areia negra, e seus amigos provavelmente ainda estariam vivos. O Ilmodo, pelo menos, pode ser uma arma precisa.
Varina ficou vermelha, e sua mão acariciou o cabo da chispeira carregada e engatilhada na bolsa do cinto.
— Então por que eu estou aqui, Varina — continuou ele —, se você não está planejando me entregar para a Garde Kralji e me jogar na Bastida?
— Eu queria vê-lo novamente, Nico — respondeu ela.
O dedo de Varina envolveu o guarda-mato de metal do gatilho.
— Eu queria ouvi-lo — a língua de metal frio no dedo se aqueceu com o toque — porque eu preciso saber...
Só um puxão do músculo. É o que basta.
— ... se eu sou o monstro que a Fé pinta? — concluiu Nico para Varina.
Seria tão fácil: embaixo da mesa, retirar a chispeira sorrateiramente e apontar o cano de metal na direção de Nico; puxar o mecanismo do gatilho para girar a engrenagem e soltar faíscas que tocariam a areia negra no tambor fechado. Um instante depois e... Os buracos na armadura; o que isto faria com um corpo desprotegido?
— Ninguém pensa em si mesmo como um monstro — Nico dizia. — Alguns podem julgar o ato de uma pessoa como maldade, mas essas pessoas pensam que estão fazendo o que é necessário para corrigir o que consideram pecado. Eu não sou diferente. Não, eu não sou um monstro.
Ele sorriu para Varina, e seu rosto e olhos ficaram radiantes, de uma maneira que fez com que ela se lembrasse do antigo Nico, da criança.
— Nem você é, Varina. Não importa o que possa estar pensando em fazer comigo.
Seu dedo recuou. Ela tirou a mão da bolsa.
— Nico...
— Varina — ele disse antes que ela pudesse organizar seus pensamentos caóticos —, você fez o que achou melhor para mim durante o Saque de Nessântico. Eu reconheço isso e sempre lhe serei grato por seus esforços, mesmo que você não saiba que estava seguindo a vontade de Cénzi. Quando rezo para Cénzi, peço a Ele perdão por você e Karl. Rezo para que Cénzi levante a cegueira dos seus olhos para que você possa enxergar Sua glória e ir até Ele.
Nico saiu da cabine e parou ao lado dela. Tocou no ombro de Varina levemente e recolheu a mão. Seus olhos estavam tomados por uma tristeza serena.
— Estamos em lados opostos nesta situação. Eu não queria que fosse assim, mas é. Infelizmente, não pode haver reconciliação entre nós. Pelo que você fez, eu sempre te amarei. Porque você também é uma criação de Cénzi, eu sempre te amarei. E por causa do caminho que você escolheu, eu sempre serei seu inimigo.
A tristeza no rosto de Nico aumentou.
— E é bem mais fácil odiar um inimigo desconhecido do que um conhecido. Portanto, adeus, Varina.
Nico fez, sem nenhuma ironia aparente, o sinal de Cénzi e virou-lhe as costas. O cão raivoso... Eu podia detê-lo agora. Ela cerrou o punho direito; tentou ouvir a voz de Karl, mas não ouviu nada. Nico começou a se afastar devagar.
É agora, ou será tarde demais...
Varina permaneceu imóvel na cadeira, olhando fixamente para o tecido preto nas costas de Nico conforme ele caminhava entre os clientes da taverna até a porta.
Nico abriu a porta e saiu. De algum lugar na rua, ela ouviu um cachorro latindo. Parecia debochar de Varina.