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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MAGIA DO ANOITECER / S. L. Farrell
A MAGIA DO ANOITECER / S. L. Farrell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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SE UMA CIDADE TIVESSE SEXO, Nessântico seria mulher...
Antigamente, ela era jovem e cheia de vitalidade: a cidade, a mulher. Durante sua ascensão, transformou-se na mais famosa, mais bonita e mais poderosa de sua espécie.
Agora, ela olhou para si mesma e imaginou — como alguém que se vislumbra inesperadamente em um espelho e fica assustado e incomodado pelo reflexo — se esses atributos ainda carregavam verdade.
Ah, ela sabia que a juventude era passageira e efêmera. Afinal, as pessoas que moravam entre suas muralhas levavam vidas curtas e difíceis. Para elas, o rosto refletido mudava implacavelmente a cada dia que passava, até surgir a manhã em que perceberiam que a imagem no espelho estaria enrugada e cansada, que os cabelos grisalhos nas têmporas se espalhariam e ficariam mais brancos. Elas talvez sintam suas juntas reclamando durante um movimento que antigamente não exigia qualquer esforço ou pensamento, ou talvez descubram que agora as feridas levariam semanas em vez de dias para sarar, ou que a doença permaneceria como um convidado indesejado — ou pior, que mudaria de “persistente” para “crônica”.
O frio da mortalidade penetrou lentamente em seus ossos mortais como gelo.

Mortalidade: Nessântico também sentia esta condição. Os habitantes da cidade escondiam as rugas e dobras com a cosmética da arquitetura. Vejam, ela poderia dizer: lá está o grande domo de co’Brunelli para o Velho Tempo — há 15 anos sendo construído neste momento —, que, quando terminado, será o maior domo sem suportes do já mundo conhecido. Aquele lá na Ilha A’Kralji é o lindo e ornamentado Teatro A’Kralji de ca’Casseli, capaz de abrigar uma plateia de duas mil pessoas, com acústica tão excelente que todo mundo pode ouvir o mais baixo sussurro no palco; ali, a Grande Biblioteca da margem sul, que começou a ser construída no reinado do kraljiki Justi e que contém as maiores obras intelectuais da humanidade. Ouçam: aquela é a doce música de ce’Miella, cujas composições rivalizam com as melodias magníficas do mestre Darkmavis. Vejam as pinturas e os murais cheios de símbolos de ce’Vaggio, cuja habilidade de retratar figuras geralmente é comparada àquela do trágico mestre ci’Recroix. Há uma vida tão vibrante aqui no interior de Nessântico: todas as peças e danças, as celebrações e a alegria.
Tudo aqui é igual ao que sempre foi; não, tudo é melhor.

 

 

 

 

 

 

No entanto, ela mudou, e sabia disso. Havia sinais e portentos. No Velho Distrito, há não muito tempo, havia uma mulher que nasceu com as patas de uma tarântula e (diziam os rumores) que podia matar com um único olhar de seus olhos multifacetados. Houve a praga de milhares de sapos verdes nos Brejos há duas primaveras, tão intensa que eles cobriram as passagens próximas com uma massa agitada que tinha um palmo de profundidade. Nos esgotos da margem norte, diziam que havia uma criatura à espreita, com cabeça de dragão, corpo de touro e pés e mãos de humano, e que se alimentava de ratos que cresciam do tamanho de lobos.

Havia os sinais reais e indiscutíveis também. Os Domínios foram rachados, aquela forte aliança forjada lentamente ao longo dos séculos. Após um malfadado ataque a Nessântico, depois do assassinato da kraljica Marguerite, a cidade de Brezno tornou-se sua rival, à medida que Firenzcia tomava várias terras vizinhas ao seu redor: uma Coalizão sob o comando do hïrzg Jan ca’Vörl.

A fé concénziana também fora cindida, e não era mais o que tinha sido. A archigos Ana ocupava o templo na margem sul, era verdade, mas outra pessoa dizia-se archigos em Brezno. Dentro de Nessântico, os hereges numetodos adquiriam novos partidários, e não era incomum ver alguém conjurar um feitiço sem vestir um robe verde ou apelar primeiro para Cénzi.

Sinais e portentos. Mudança. Quanto mais velha ficava Nessântico, mais difíceis ficavam as mudanças para ela.

Pega em seu próprio outono indesejado, Nessântico — a cidade, a mulher — encarava o reflexo nas águas escuras do rio A’Sele e imaginava...

E, como muitos em sua posição, Nessântico negava o que via.

 


                   RESPOSTAS 

 

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

O VATARH DE Allesandra ca’Vörl era o sol ao redor de quem ela orbitava desde que se entendia por gente. Agora aquele sol finalmente estava se pondo.

A mensagem chegara de Brezno através de um mensageiro rápido, ela olhava fixamente para as palavras escritas em uma caligrafia legível e apressada. — Seu vatarh está morrendo. Se a senhora quiser vê-lo, apresse-se. Essa foi toda a mensagem. Estava assinada pelo archigos Semini de Brezno e selada pelo seu sinete.

O vatarh está morrendo... O grande hïrzg Jan de Firenzcia, em homenagem a quem ela batizara seu único filho, estava falecendo. As palavras acenderam um fogo amargo em seu estômago; elas nadaram na página com as lágrimas salgadas que surgiram espontaneamente em seus olhos. Allesandra ficou sentada ali — à elegante escrivaninha, no gabinete opulento perto do palácio do gyula em Malacki — e viu uma gotícula cair no papel e borrar a tinta das palavras.

Ela odiava que o vatarh ainda a abalasse tanto; odiava se importar. Allesandra deveria odiá-lo, mas não conseguia. Não importava o quanto tentasse ao longo dos anos, ela não conseguia.

Pode-se amaldiçoar o sol pelo calor escaldante ou por sua ausência, mas sem o sol não haveria vida.

— Eu o odeio — declarou ela para a archigos Ana. Havia dois anos que Ana tirara Allesandra de seu vatarh para mantê-la como refém. Dois anos, e ele ainda não tinha pagado o resgate para trazê-la de volta. Ela tinha 13 anos, na iminência da menarca, e fora abandonada pelo vatarh. O que originalmente era ansiedade e decepção, aos poucos se transformara em raiva dentro dela. Pelo menos era o que Allesandra acreditava.

— Não, você não o odeia — falou Ana baixinho enquanto acariciava o cabelo de Allesandra. As duas estavam na sacada de seus aposentos no complexo do templo em Nessântico e olhavam para a confusão de ténis vestidos de verde que corriam com suas tarefas lá embaixo. — Não de verdade. Se ele pagasse o resgate amanhã, você ficaria radiante e pronta para correr de volta para seu vatarh. Olhe para dentro de si, Allesandra. Olhe sinceramente. Não é verdade?

— Bem, ele deve me odiar — retrucou ela — ou teria pagado.

Ana abraçou-a com força então. — Ele vai pagar. Vai sim. É que... Allesandra, seu vatarh queria se sentar no Trono do Sol. Ele sempre foi um homem orgulhoso, e uma vez que eu levei você embora, seu vatarh jamais foi capaz de realizar seu sonho. Você é uma lembrança de tudo o que ele perdeu. E isto é culpa minha. Não é sua. Não é sua de forma alguma.

O vatarh não pagou. Não por dez longos anos. Era Fynn, o novo filho que sua matarh, Greta, deu ao hïrzg que gozava do carinho do vatarh, que aprendera a guerrear, e fora nomeado o novo a’hïrzg — o título que deveria ter sido dela.

Em vez do vatarh e da matarh, era a archigos Ana que se tornara sua responsável, que a orientara durante a puberdade e adolescência, que confortara Allesandra em suas primeiras paixões, que ensinara os modos da sociedade ca’ e co’, que a acompanhara em bailes e festas, que a tratara não como uma prisioneira, mas como uma sobrinha que tinha se tornado sua responsabilidade criar.

— Eu amo você, tantzia — disse Allesandra para Ana. Ela passara a chamar a archigos de “tia”. O kraljiki Justi recebera a notícia de que um tratado entre os Domínios e a “Coalizão” Firenzciana estava para ser assinado em Passe a’Fiume, e, como parte das negociações, o hïrzg Jan finalmente pagara o resgate de sua filha. Ela passara uma década em Nessântico, praticamente metade de sua vida. Agora, aos 21 anos, ela deveria retornar à vida que perdera há tanto tempo, e estava assustada pela perspectiva. Antigamente, isso era tudo o que ela queria. Agora...

Parte de Allesandra queria ficar aqui. Aqui, onde ela sabia que era amada.

Ana abraçou-a com mais força. Allesandra era mais alta do que a archigos agora, e Ana teve que ficar na ponta dos pés para beijar sua testa. — Eu também amo você, Allesandra, e sentirei a sua falta, mas chegou a hora de ir para casa. Saiba que eu sempre estarei aqui para você. Sempre. Você faz parte do meu coração, minha querida. Eternamente.

Allesandra tinha esperanças de poder banhar-se ao sol do amor de seu vatarh novamente. Sim, ela tinha ouvido falar que o novo a’hïrzg Fynn era o filho que o hïrzg Jan sempre desejou: habilidoso com o cavalo, com a espada, com a diplomacia. Ela sabia que o irmão estava sendo preparado para a carreira na Garde Firenzcia. Mas ela também fora um dia o orgulho de seu vatarh. Com certeza poderia voltar a ser.

Mas Allesandra soube assim que o vatarh olhou para ela, do outro lado da tenda de negociação em Passe a’Fiume, que isso não aconteceria. No olhar de predador de Jan havia uma aversão que ardia lentamente. Ele avaliou Allesandra como se olhasse para uma estranha — e ela era realmente uma estranha para o vatarh: uma jovem agora, não mais a menina que Jan perdera. Ele pegou as mãos dela, aceitou a mesura como faria com qualquer ca’ e co’ e passou a filha para o archigos Semini um momento depois.

Fynn estava ao lado dele — agora com a idade que Allesandra tinha ao ser capturada — e avaliou a irmã mais velha como faria com um rival qualquer.

Allesandra procurou o olhar de Ana através da tenda, e a mulher deu um sorriso triste e um aceno de despedida. Havia lágrimas nos olhos de Ana, que brilharam ao sol que passava pela lona fina da tenda. A archigos, pelo menos, fora fiel à própria palavra. Ela escrevera regularmente para Allesandra. Negociara com o vatarh para que tivesse a permissão de comparecer ao casamento de Allesandra com Pauli ca’Xielt, o filho do gyula da Magyaria Ocidental, e, portanto, um matrimônio politicamente vantajoso para o hïrzg, e um enlace sem amor para Allesandra.

Ana tinha até mesmo estado presente, em segredo, no nascimento do filho de Allesandra, há quase 16 anos agora. A archigos Ana — a archigos falsa e herege de acordo com Firenzcia, a quem Allesandra era obrigada a odiar como uma boa cidadã da Coalizão — abençoara e batizara a criança com o nome que Allesandra lhe dera: Jan. E o fizera sem uma crítica ou um comentário. Fizera com um sorriso gentil e um beijo.

Até mesmo batizar a criança em homenagem ao vatarh não mudou nada. Isso não o aproximara de Allesandra — na maior parte do tempo, o hïrzg Jan ignorava seu neto e homônimo. Jan ficava na companhia do hïrzg Jan cerca de duas vezes ao ano, quando ele e Allesandra o visitavam em ocasiões de estado, e raramente o hïrzg falava diretamente com o neto.

Agora... agora seu vatarh estava morrendo e Allesandra não conseguia evitar chorar por ele. Ou talvez não conseguisse evitar chorar por si mesma. Com raiva, ela atacou a umidade nas bochechas com a manga. — Aeri! — Allesandra chamou o secretário. — Venha aqui! Tenho que ir para Brezno.

Allesandra irrompeu no quarto do hïrzg e jogou longe a capa suja de viagem. O cabelo estava despenteado pelo vento, e as roupas cheiravam a cavalo. Ela empurrou os criados que tentaram ajudá-la e se dirigiu para a cama. Os chevarittai e vários parentes reunidos ali afastaram-se para deixar que ela se aproximasse; Allesandra sentiu os olhares de avaliação às suas costas. Ela olhou fixamente para o rosto murcho e encarquilhado no travesseiro e mal o reconheceu.

— Ele está...? — perguntou Allesandra bruscamente, mas então ela ouviu o barulho causado pela respiração cheia de catarro do hïrzg e viu o lento movimento do peito sob as cobertas. O quarto cheirava a doença, apesar das velas perfumadas. — Fora! — falou ela para todos, gesticulando. — Digam a Fynn que eu vim, mas deixem-me sozinha com meu vatarh. Fora!

Eles dispersaram-se, como Allesandra sabia que fariam. Ninguém tentou protestar, embora os curandeiros dirigissem olhares de desaprovação sob frontes cautelosamente franzidas, e ela pôde ouvir os sussurros enquanto as pessoas saíam. “Não é de admirar que o marido fique longe dela... Um bode tem melhores maneiras... Ela tem a arrogância de Nessântico...”.

Allesandra bateu a porta na cara deles.

Então, finalmente, ao olhar para o rosto encovado e cinzento do vatarh, ela permitiu-se chorar, ajoelhada ao lado da cama, segurando as mãos frias e debilitadas. — Eu amei o senhor, vatarh — falou Allesandra. Sozinha com ele, a verdade era possível. — Eu amei. Mesmo depois que o senhor me abandonou, mesmo depois que o senhor deu a Fynn todo o carinho que eu queria, eu ainda o amei. Eu poderia ter sido a herdeira que o senhor merecia. Ainda posso ser, se tiver a chance.

Allesandra ouviu o arrastar de botas na porta e ficou de pé. Secou os olhos com a manga da tashta e fungou assim que Fynn empurrou a porta para abri-la. Ele irrompeu no quarto; Fynn nunca simplesmente entrava em um aposento. — Irmã, noto que as notícias chegaram até você.

Allesandra cruzou os braços. Ela não deixaria que o irmão notasse como havia ficado abalada ao ver o vatarh em seu leito de morte. Deu de ombros. — Eu ainda tenho fontes aqui em Brezno, mesmo que meu irmão deixe de mandar um mensageiro.

— Eu esqueci, mas imaginei que você saberia, de qualquer maneira. — O sorriso que ele deu era mais uma careta de desprezo, contorcida pela longa cicatriz enrugada que ia do canto do olho direito atravessando o lábio até o queixo: a marca de uma cimitarra de Tennshah. Fynn, aos 24 anos, tinha o corpo esbelto e forte de um soldado profissional, uma forma física que caía bem nas calças e blusas soltas que usava. Esse estilo de vestir de Tennshah tinha virado moda em Firenzcia desde as guerras de fronteira, há seis anos, quando Fynn enfrentou as forças do t’sha e empurrou os limites de Firenzcia quase 165 quilômetros para o leste, e ganhou a cicatriz comprida que maculava o belo rosto.

Foi durante essa guerra que Fynn conquistou plenamente o carinho do vatarh e acabou com qualquer esperança persistente de Allesandra de que pudesse vir a se tornar a hïrzgin.

— Os curandeiros disseram que o fim virá em algum momento do dia de hoje ou possivelmente à noite se ele continuar a lutar; o vatarh nunca desistiu facilmente, não é? Mas os retalhadores de almas virão atrás dele desta vez. Não há mais dúvida alguma quanto a isso. — Fynn abaixou os olhos na direção da figura na cama quando o hïrzg estremeceu novamente ao respirar. O olhar do jovem era carinhoso e triste, e, no entanto, também era avaliador, como se calculasse quanto tempo levaria até que ele pudesse retirar o anel com sinete das mãos unidas e colocá-lo no próprio dedo; até que pudesse colocar a coroa fina de ouro de hïrzg nos cachos da própria cabeça. — Não há nada que eu ou você possamos fazer, irmã, além de rezar para que Cénzi receba a alma do vatarh com carinho. Fora isso... — Fynn deu de ombros. — Como está meu sobrinho Jan?

— Você o verá em breve — falou Allesandra. — Ele está a caminho de Brezno atrás de mim e deve chegar amanhã.

— E seu marido? O querido Pauli?

Allesandra torceu o nariz. — Se você está tentando me provocar, Fynn, não vai funcionar. Eu sugeri que Pauli permanecesse em Malacki e cuidasse dos negócios de estado. E quanto a você? Já encontrou alguém para casar ou ainda prefere a companhia de soldados e cavalos?

O sorriso demorou a surgir, e era vacilante quando apareceu. — Agora quem provoca quem? O vatarh e eu ainda não tomamos uma decisão quanto a isso, e agora parece que a decisão será somente minha, embora eu certamente ouvirei quaisquer sugestões que você tenha. — Fynn abriu os braços e Allesandra relutantemente permitiu que ele a abraçasse. Nenhum dos dois deu um abraço apertado, mas apenas envolveram um ao outro, como se abraçassem um espinheiro, e o gesto acabou em um piscar de olhos. — Allesandra, eu sei que sempre houve uma distância entre nós, e espero que possamos trabalhar em conjunto quando... — ele hesitou, e Allesandra observou o peito de Fynn inchar após respirar fundo — ... quando eu for o hïrzg. Precisarei de seus conselhos, irmã.

— E eu os darei a você — ela aproximou-se e cautelosamente beijou o ar a um dedo de distância da bochecha marcada pela cicatriz —, irmãozinho.

— Eu queria que nós realmente pudéssemos ter sido irmãozinho e irmãzona. Eu queria ter conhecido você naquela época.

— Eu também — disse Allesandra para Fynn. E eu queria que estas fossem mais do que palavras vazias e educadas que ambos dizemos porque sabemos que são o que a etiqueta exige. — Ficaria aqui comigo agora? Deixe o vatarh perceber que estamos juntos pelo menos uma vez.

Ela sentiu sua hesitação e perguntou-se se Fynn iria recusar. Porém, após um instante, o irmão deu de ombros. — Por uma virada da ampulheta ou menos, nós podemos rezar por ele. Juntos.

 

Jan ca’Vörl

— EU TENHO QUE CAVALGAR o mais rápido possível para Brezno — falou a matarh de Jan para ele. — Eu dei ordens para os criados arrumarem o que temos nos quartos em malas para viagem. Quero que você venha atrás assim que eles aprontarem as carruagens. E, Jan, veja se consegue convencer seu vatarh a vir com você. — Ela deu um beijo na testa do filho, com mais intensidade do que em anos, e abraçou-o. — Eu amo você — sussurrou. — Espero que saiba disso.

— Eu sei. — Jan afastou-se e sorriu para a matarh. — E eu espero que a senhora saiba disso.

Ela sorriu e deu um último abraço no filho antes de subir no cavalo mantido pelos dois chevarittai que iriam acompanhá-la. Jan observou o trio se afastar pela estrada da propriedade a galope.

Isto foi há dois dias. Sua matarh devia ter chegado a Brezno ontem. Jan recostou a cabeça nas almofadas da carruagem e viu a paisagem do sul de Firenzcia passar sob a luz dourado-esverdeada do fim da tarde. O condutor dissera que eles parariam no próximo vilarejo à noite e chegariam a Brezno ao meio-dia de amanhã. Jan imaginou o que ele encontraria lá.

Ele estava sozinho na carruagem.

Jan pedira ao vatarh Pauli para vir com ele, como a matarh solicitara. Os criados disseram que Pauli estava em seus aposentos na propriedade, em uma ala separada dos aposentos de Allesandra. O assistente chefe de Pauli entrou para anunciar o filho e retornou com as sobrancelhas arqueadas. — Seu vatarh disse que pode ceder alguns momentos — falou o homem ao acompanhar Jan em uma das salas de recepção depois do corredor principal.

Jan ouviu os risinhos abafados de duas mulheres vindo de um quarto que dava para a sala de recepção. A porta foi aberta em meio a risada rouca de um homem. O vatarh vestia um robe, o cabelo estava desgrenhado e revolto, a barba encontrava-se por fazer. Ele cheirava a perfume e vinho. — Um instante — disse Pauli para Jan. Ele tocou os lábios com um dedo antes de cambalear um pouco até a porta que levava ao quarto abrindo-a ligeiramente. — Shh! — falou alto. — Estou tentando levar uma conversa sobre minha esposa com meu filho. — O que foi recebido com uma risada estridente.

— Diga ao garoto para se juntar a nós. — Jan ouviu uma delas gritar, e sentiu o rosto ficar vermelho com o comentário, enquanto Pauli apontava o dedo na direção da mulher que não podia ser vista.

— Vocês duas são umas safadas encantadoras — disse Pauli para elas. Jan imaginou as mulheres: com perucas e ruge no rosto, seminuas ou talvez completamente nuas, como um dos quadros das deusas moitidis que decoravam os salões. — Voltarei em um instante — continuou Pauli. — Bebam mais vinho, moças.

Ele fechou a porta e apoiou-se pesadamente contra ela. — Desculpe. Eu estou com... companhia. Então, o que a megera queria? Ah, é melhor você dizer por mim para a sua matarh que o a’gyula da Magyaria Ocidental tem coisas melhores para fazer do que ir a Brezno porque alguém pode ou não estar morrendo. Quando o velho desgraçado finalmente der seu último suspiro, sem dúvida eu serei enviado ao funeral como nosso representante, e isso ocorrerá em breve. — As palavras saíram arrastadas. Ele pestanejou lentamente e arrotou. — Você também não precisa ir, garoto. Por que não fica aqui? Nós dois podemos nos divertir, hein? Tenho certeza de que estas moças têm amigas...

Jan balançou a cabeça. — Eu prometi para a matarh que pediria ao senhor que viesse, e foi o que fiz. Eu parto hoje à noite; os criados estão quase terminando de arrumar as carruagens.

— Ah sim — disse Pauli. — Você é um filho tão bom e obediente, não é? O orgulho e alegria de sua matarh. — Ele afastou-se da porta e cambaleou enquanto apontava um dedo para Jan, que andava de um lado para o outro. — Você não quer ser como ela. Sua matarh não ficará satisfeita enquanto não dominar o mundo inteiro. Ela é uma vadia ambiciosa com um coração duro como pedra.

Jan já tinha ouvido Pauli insultar sua matarh mil vezes, e a cada ano que passava mais. Antes ele sempre rangia os dentes, fingia não escutar ou murmurava uma reclamação que Pauli ignoraria. Agora... o rubor que surgia no rosto de Jan tornou-se vermelho como lava. Ele cruzou o aposento acarpetado com três passos ligeiros, levou a mão para trás e deu um tapa na cara do vatarh. Pauli cambaleou contra a porta, que se abriu e fez com que ele desmoronasse ali, sobre um tapete trançado. Jan viu duas mulheres dentro do quarto — realmente seminuas sobre a cama do vatarh. Elas cobriram os seios com os lençóis e gritaram. Sem acreditar, Pauli levou a mão ao rosto; sobre a barba fina, Jan pôde ver a marca dos dedos na bochecha do vatarh.

Ele imaginou por um instante o que faria se Pauli se levantasse, mas o vatarh apenas pestanejou novamente e riu como se tivesse levado um susto.

— Bem, você não precisava fazer isso — disse Pauli.

— O senhor pode pensar o que bem entender da matarh. Eu não me importo. Porém, de agora em diante, vatarh, guarde suas opiniões para o senhor ou trocaremos mais do que palavras. — Dito isso, antes que Pauli conseguisse se levantar do tapete ou responder, Jan virou-se e apressou-se a sair da sala.

Ele se sentiu estranhamente alegre. A mão formigava. Pelo resto do dia, Jan esperou ser chamado à presença do vatarh — assim que o vinho tivesse ido embora da cabeça do homem. Porém, até ser informado de que as carruagens estavam prontas e à espera, Jan não tinha ouvido nada. Ele ergueu os olhos para as janelas da ala do vatarh ao entrar na carruagem principal, enquanto os criados que viajariam com ele subiam nas outras. Jan pensou ter vislumbrado uma silhueta observando da janela e levantou a mão — a mão que batera no vatarh.

Outra silhueta, uma forma feminina, aproximou-se do vatarh por trás, e a cortina fechou-se novamente. Jan entrou na carruagem. — Vamos — falou para o condutor. — Temos uma longa jornada à frente.

Ele olhou mais uma vez pela janela da carruagem. Pela maior parte da jornada, Jan ficou remoendo o que aconteceu. Ele tinha quase 16 anos. Era quase um homem. Até já tivera sua primeira amante: uma garota ce’ que fizera parte do corpo de funcionários da casa, embora a matarh de Jan tivesse mandado a menina embora quando percebeu que eles se tornaram íntimos. Ela também deu um longo sermão sobre o que esperava dele. — Mas o vatarh... — Jan começara a falar, e Allesandra interrompeu o protesto com um golpe forte da mão.

— Pare aí, Jan. Seu vatarh é preguiçoso e libertino, e, desculpe a grosseria, ele geralmente pensa com o que tem entre as pernas, não com a cabeça. Você é melhor do que ele, Jan. Vai ser importante neste mundo, se escolher não ser o filho de seu vatarh. Eu sei disso. Prometo a você.

Ela não dissera tudo que poderia ter dito, e ambos sabiam disso. Pauli podia ser o vatarh de Jan, mas para ele isto era apenas outro título, e não uma ocupação. Era a matarh quem Jan via todo dia, que brincava com ele quando era pequeno, que ia vê-lo todas as noites após as babás o colocarem na cama. Seu vatarh... Ele era uma figura alta que às vezes mexia no cabelo de Jan ou dava presentes extravagantes que pareciam mais um pagamento pela ausência do que presentes de verdade.

Seu vatarh era o a’gyula da Magyaria Ocidental, filho do atual gyula, o governante que Jan via com tanta frequência quanto o outro vavatarh, o hïrzg. As pessoas faziam mesuras na presença de Pauli, riam e sorriam quando falavam com ele. Mas Jan ouvia os sussurros dos funcionários e dos convidados quando eles pensavam que ninguém escutava.

Sua mão direita pulsava, como se lembrasse do tapa na cara do vatarh. Jan olhou para a mão à luz do fim do dia: uma mão de adulto agora. O tapa na cara do vatarh fez com que ele rompesse com a infância para sempre.

Jan não seria como seu vatarh. Ao menos isso ele se prometeu. Jan teria a própria personalidade. Independente.

 

Varina ci’Pallo

VARINA ESTAVA AO LADO de Karl na elegante sala de recepção da archigos, mas — como quase sempre era o caso quando Ana se encontrava no mesmo ambiente — ela parecia invisível a ele. Toda a atenção de Karl estava voltada para a archigos. Varina queria se virar e dar um tapa na cara dele. Você não enxerga o que está diante da sua cara? Você é tão distraído assim?

Parecia que ele era. Karl sempre fora abstraído e sempre seria quando Ana estivesse envolvida. Ao longo dos anos, Varina chegou a essa conclusão. Talvez tivesse sido diferente se a própria Varina não gostasse e admirasse a archigos, se não considerasse a mulher uma amiga. Ainda assim...

— Você tem certeza disso? — perguntou Karl para Ana. Ele olhava para um pergaminho dado pela archigos e batia com o indicador nas palavras escritas ali. — Ele está morto? — Não havia traço algum de tristeza em sua voz; na verdade, Karl sorria ao devolver o papel para a archigos.

Ana franziu a testa. Se Karl considerou boas as notícias, era óbvio para Varina que a opinião de Ana era mais ambígua. — O hïrzg Jan está morrendo — falou a archigos. — E suspeito que ele provavelmente já morreu a esta altura, se a informação for correta. O téni que enviou esta mensagem tem o toque da cura; ele saberia dizer se o homem está além da salvação.

— Até que enfim o velho urubu morreu — disse Karl. Ele olhou ao redor da sala, pensativo, mas não para Varina. — Você já falou com Allesandra? Ela vai contestar o direito de Fynn ao trono?

— Não sei. — Ana pareceu suspirar. Ela nunca fora bonita; na melhor das hipóteses, quando jovem, Ana fora uma mulher singela. Até mesmo ela teria admitido isso. Agora, ao chegar à meia-idade, Ana tornou-se uma figura matrona, mas havia algo de impressionante, confiável e cativante a seu respeito. Varina conseguia entender a atração e a devoção de Karl pela mulher, mesmo que parte dela se ressentisse com isso. A reputação de Ana só cresceu ao longo dos anos. As pessoas riam do kraljiki Justi pelas costas, e a situação não parecia ser diferente com seu filho, Audric, e havia aqueles na Fé que consideravam heréticas a tolerância e a franqueza de Ana, mas o povo de Nessântico e dos Domínios parecia adorar sua archigos e ter afeição por ela. Varina já tinha visto as multidões em volta do templo sempre que Ana ia dar uma Admoestação e já tinha ouvido a aclamação quando a carruagem da archigos passava pela Avi a’Parete.

— Se Allesandra estivesse no trono de Firenzcia, eu me sentiria melhor a respeito disso tudo — continuou Ana. — Sentiria que haveria esperança de que os Domínios pudessem ser restaurados. Se Allesandra fosse a hïrzgin... — Outro suspiro. Ana olhou sobre seus ombros, na direção do enorme ornamento de globo partido que se destacava no outro canto da sala: dourado e cravejado de joias, com esculturas dos moitidis, os semideuses que eram filhos de Cénzi, se contorcendo de agonia na base. A voz era quase um sussurro, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse escutá-la secretamente. — Então eu poderia considerar abrir negociações com Semini ca’Cellibrecca, para ver se a fé concénziana também poderia ser reunificada.

Varina fez uma expressão de aflição, e Ana dirigiu um olhar compreensivo a ela. — Eu sei, Varina. Garanto que a segurança dos numetodos não será negociável, mesmo que eu estivesse disposta a abdicar do título de archigos em favor de Semini. Eu não permitiria que as perseguições se repetissem.

— Você não pode confiar que ca’Cellibrecca manterá essas promessas — falou Varina. — Ele é praticamente filho de seu vatarh por casamento.

— Ca’Cellibrecca estaria obrigado a cumprir uma promessa pública, assim como seus votos a Cénzi.

— Você tem mais fé nele do que eu — respondeu Varina. O que fez Ana sorrir.

— É estranho ouvir um numetodo falar de fé — disse a archigos. Ela tocou o ombro de Varina sob a tashta e deu uma risada amigável. — Mas entendo sua preocupação e seu ceticismo. Peço que confie em mim; se a situação chegar a este ponto, eu garanto que você, Karl e seu povo serão protegidos.

— Será que a situação chegará a esse ponto? — interrompeu Karl, que observou as mãos de Ana como se quisesse que ela o tocasse. — Acha que há chances, Ana?

Ela olhou para o papel em sua mão como se procurasse uma resposta ali, depois se virou para pousar o pergaminho em uma mesa próxima. Ele emitiu um pequeno ruído; estranho, pensou Varina, para algo com tão pesada importância. — Eu não sei — falou Ana. — Allesandra e o irmão não se toleram. Dado o tempo que Allesandra esteve aqui comigo enquanto ambos cresciam, eles são mais estranhos do que irmãos, e o jeito com que o hïrzg Jan tratou Allesandra quando ele de fato pagou o resgate por ela... — Ana balançou a cabeça. — Mas eu não sei mais o que Allesandra quer ou quais seriam seus desejos e ambições. Eu achei que soubesse antigamente, mas...

— Você foi uma matarh para ela — disse Karl, Ana riu novamente.

— Não, não fui isso. Talvez uma irmã mais velha ou uma tantzia. Tentei ser alguém com quem ela pudesse estar segura, porque a pobre criança ficou completamente sozinha aqui por tempo demais. Não consigo imaginar como isso pode tê-la magoado.

— Você foi maravilhosa com ela — insistiu Karl. Varina observou Karl estender a mão para pegar a de Ana. Doía ver o gesto. — Foi sim.

— Obrigada, mas eu sempre imagino se poderia ter feito mais, ou melhor — disse Ana, que afastou lentamente suas mãos das de Karl. — Fiz o que pude. Isto é tudo que Cénzi pode pedir, creio eu. — Ana sorriu. — Vamos ver o que acontece, não é? Manterei vocês dois informados assim que souber de mais notícias.

— Você ainda está disponível para jantar amanhã? — perguntou Karl para Ana.

O olhar da archigos deslizou de Karl para Varina e de volta para Karl. — Sim, após a Terceira Chamada. Gostaria de se juntar a nós, Varina?

Ela sentiu o olhar de Karl. — Não — disse Varina, às pressas. — Não posso, archigos. Tenho uma reunião com Mika e uma aula para dar... — Desculpas demais, mas Karl assentiu com a cabeça. A satisfação dele diante da resposta de Varina foi como o corte de uma pequena navalha.

— Amanhã à noite, então — disse Karl. — Aguardo ansiosamente o jantar. Talvez fosse melhor nós irmos embora, Varina. Tenho certeza de que a archigos tem outros compromissos... — Ele inclinou a cabeça na direção de Ana e começou a andar na direção da porta. Varina virou-se para segui-lo, mas Ana chamou-a quando eles deram as costas.

— Varina, um momento? Karl, eu a mando imediatamente, prometo.

Karl olhou para trás, intrigado, mas fez uma mesura novamente e caminhou em direção às portas. Os dois enormes painéis eram entalhados com baixos-relevos dos moitidis em batalha, com espadas que se sobrepunham e colidiam na junção. Karl puxou as portas e os combatentes se separaram. Varina esperou até que a madeira escura e envernizada se fechasse enquanto ele saia e os moitidis novamente estivessem em guerra.

— Archigos?

— Eu queria um momento com você, Varina, porque estou preocupada — falou Ana. — Você parece tão cansada e abatida. Magra. Eu sei o quanto você anda envolvida com sua... pesquisa. Está se lembrando de comer?

Varina tocou seu rosto. Ela sabia o que Ana dizia. Tinha visto o rosto no espelhinho que mantinha sobre a penteadeira. As pontas dos dedos percorreram o traçado das novas rugas que surgiram nos últimos meses e sentiram a aspereza dos cabelos grisalhos nas têmporas. Ela tinha medo de se olhar no espelho a maioria das manhãs; o rosto refletido era o de uma estranha mais velha que Varina mal reconhecia. — Eu estou bem — respondeu automaticamente.

— Está mesmo? — perguntou Ana novamente. — Estas “experiências” que Karl diz que você está fazendo para tentar recriar o que Mahri podia fazer... — Ela balançou a cabeça. — Eu me preocupo com você, Varina. E Karl também.

“E Karl também...”, ela queria poder acreditar nessas palavras. — Eu estou bem — repetiu Varina.

— Eu poderia usar o Ilmodo, se você quisesse. Isso pode ajudar, se você estiver sofrendo.

— Você desobedeceria a Divolonté e me curaria? Uma ateísta? Archigos! — Varina sorriu para Ana, que devolveu o gesto.

— Eu confio a você meus segredos — disse Ana. — E a oferta continua de pé, se algum dia sentir necessidade.

— Obrigada, archigos. Não me esquecerei disso. — Ela apontou com a cabeça para os moitidis em guerra silenciosa. — É melhor eu alcançar Karl.

— Sim, é melhor. — Ana começou a fazer o sinal de Cénzi para Varina, depois se deteve. — Eu posso falar com ele.

— Archigos?

— Eu tenho olhos. Quando vejo você com ele...

Varina riu. — Você é a única que ele enxerga, archigos.

— E eu sou comprometida com Cénzi. Com ninguém mais. Não estou destinada a este tipo de relacionamento nesta vida. Eu disse isso a ele. Aprecio a amizade de Karl e tudo que ele fez por mim e por Nessântico. Eu o amo muito, mais do que um dia amei outra pessoa. Mas o que ele quer... — A cabeça acenou lentamente de um lado para outro enquanto Ana cerrava os lábios. — Você deveria dizer a ele como você se sente.

— Se eu preciso dizer a ele, então é óbvio que o sentimento não é mútuo — respondeu Varina. Ela conseguiu dar um sorriso forçado. — E estou comprometida com meu trabalho, como você é comprometida com Cénzi.

Ana deu um passo à frente e um rápido abraço em Varina. — Então Karl é um tolo por não ver como somos parecidas.

 

Audric ca’Dakwi

NEM MESMO UM KRALJIKI podia evitar ter aulas ou fazer provas para raspar qualquer essência de conhecimento grudada no interior do crânio.

Audric estava diante do Trono do Sol com as mãos entrelaçadas nas costas, voltado para seu professor, mestre ci’Blaylock. Atrás do mestre magro, frágil e sujo de giz, a plateia olhava Audric com sorrisos de incentivo: alguns chevarittai enfeitados com Medalhas de Sangue, os ca’ e co’, os cortesãos de sempre, Sigourney ca’Ludovici, e alguns outros integrantes do Conselho dos Ca’... todos aqueles que queriam que Audric notasse seu comparecimento ao exame trimestral do jovem kraljiki. Com 14 anos, Audric estava bem ciente da atenção bajuladora que recebia por conta de seu título e linhagem.

Eles não estavam aqui pelo exame; estavam aqui para serem vistos. Por ele. E apenas por ele.

Audric sentia prazer ao pensar nisto.

— Ano 471 — entoou ci’Blaylock ao erguer os olhos do púlpito carregado de papiros onde estava. — A linhagem dos kralji.

Uma pergunta fácil. Sem desafio algum. — Kraljica Marguerite ca’Ludovici — respondeu Audric rapidamente e com firmeza. Ele tossiu, então, como fazia frequentemente, e acrescentou — Também conhecida como a Généra a’Pace.

E também minha mamatarh... O retrato de Marguerite ficava pendurado no quarto de Audric. A obra era de um realismo perturbador e foi pintada pelo falecido mestre artista Edouard ci’Recroix, que também criara o grande painel de uma família de camponeses que enfeitava o próprio salão do Trono do Sol. Marguerite observava o neto toda noite, enquanto ele dormia, e dava o mesmo meio sorriso cansado e estranho toda manhã quando Audric acordava. Muitas vezes ele quis ter tido a oportunidade de conhecê-la de verdade, ele certamente já tinha ouvido muitas histórias a respeito da mamatarh. Às vezes Audric imaginava se todas elas eram verdade: na memória do povo de Nessântico, a kraljica Marguerite governou durante uma Era de Ouro, uma era de luz do sol, comparada às políticas tempestuosas do presente.

A corte sorriu e aplaudiu com educação a resposta. A maior parte da alegria era indubitavelmente motivada pelo fato de que eles finalmente se aproximavam do fim do exame, conforme o mestre ci’Blaylock descia a escada da história. Eles começaram há quase meia-virada da ampulheta, no ano 413, com o kraljiki Henri VI, o primeiro ano da linhagem ca’Ludovici, da qual o próprio Audric descendia; os espectadores ficaram de pé o tempo todo, desde então; afinal, ninguém se senta na presença do kraljiki sem permissão. Audric sabia as respostas das próximas perguntas que faltavam; e como não saberia, sendo elas tão envolvidas com a vida de sua família? Um suspiro praticamente inaudível veio da corte, juntamente com o farfalhar de tecido conforme as pessoas trocavam os pés de apoio. — Correto — disse ci’Blaylock, bufando. Ele tinha pele negra, como muitos que vinham da província de Navarro. O mestre molhou a ponta da pena no pote de nanquim do púlpito e fez uma demorada marca no papiro aberto. O traçado da pena era sonoro. As sobrancelhas brancas tremulavam sobre os olhos opacos de catarata. — Ano 485. A linhagem dos archigi.

Tosse. — Archigos Kasim ca’Velarina. — Tosse.

Mais aplausos educados, e outro mergulho e traçado da pena. — Correto. Ano 503. A linhagem dos archigi.

Audric respirou fundo e tossiu novamente. — Archigos Dhosti ca’Millac, o Anão. — Aplausos. Traço da pena. Audric ouviu as portas do fundo do salão serem abertas; o regente Sergei ca’Rudka entrou a passos largos e rápidos na direção de Audric. Apesar da idade, o regente movia-se com energia e uma postura ereta. Os cortesãos, com um olhar cauteloso, afastaram-se rapidamente para abrir caminho. O nariz artificial de prata de Sergei alternava entre brilhar e se ofuscar sob os fracos feixes de luz do sol que entravam pelas janelas.

— Correto — entoou ci’Blaylock. — Ano 521. A linhagem dos kralji.

Esta era fácil: esse foi o ano em que o vatarh de Audric assumiu o Trono do Sol, após o assassinato de Marguerite. Audric respirou fundo novamente, mas o esforço rendeu outro espasmo momentâneo de tosse preenchida pelo horrível som de líquido nos pulmões. Passada a tosse, ele empertigou-se e pigarreou. — Kraljiki Justi ca’Dakwi — disse ele para ci’Blaylock e os cortesãos. — O Grande Guerreiro — acrescentou. Esta foi a alcunha que Justi deu a si mesmo. Audric tinha ouvido as outras alcunhas dadas a Justi, que as pessoas sussurravam quando achavam que ninguém as estava escutando. Justi, o Perneta; Justi, o Incompetente; Justi, o Grande Fracasso.

Ninguém teria se atrevido a dizer essas alcunhas na cara do kraljiki quando Justi era vivo. Audric olhou para os sorrisos estampados nas caras dos ca’ e co’ e imaginou por quais alcunhas ele era chamado quando não estava presente para escutar.

Audric, o Enfermo. Audric, o Fantoche do Regente.

Novamente os espectadores aplaudiram. Sergei, de braços cruzados, não se juntou a eles. Ele observava logo atrás do mestre ci’Blaylock, que parecia sentir a pressão da presença do homem. Ele deu uma olhadela sobre seus ombros, viu o regente e tremeu visivelmente. — Hum... — O velho balançou a cabeça, olhou para o papiro, mergulhou um dedo sujo de nanquim no papel. — Ano 521. A linhagem dos archigi.

Esta era uma resposta mais longa, mas ainda fácil. — Archigos Orlandi ca’Cellibrecca, o Grande Traidor e primeiro falso archigos de Brezno. — Audric tossiu novamente e fez uma pausa para pigarrear. — Então, no mesmo ano, depois que ca’Cellibrecca traiu a fé concénziana e o kraljiki Justi em Passe a’Fiume: archigos Ana ca’Seranta, a mais jovem téni a ser nomeada archigos da história.

Ana, que ainda mantinha o título de archigos. Ana, que Audric amava como se fosse a matarh que ele jamais conhecera. Audric sorriu ao mencionar seu nome, e o aplauso que se seguiu foi genuíno — a archigos Ana era muito amada, com sinceridade, pelo povo de Nessântico.

— Correto — falou ci’Blaylock. — Também no ano 521. Guerra e política.

— A rebelião do hïrzg Jan ca’Vörl — respondeu Audric rapidamente. As guturais sílabas firenzcianas provocaram um espasmo em seus pulmões novamente. Foram necessárias várias respirações para que a tosse parasse e ele conseguisse falar novamente. — O hïrzg foi derrotado pelo kraljiki Justi na Batalha dos Brejos — disse Audric com a voz rouca, finalmente.

— Excelente! — A voz não era de ci’Blaylock, mas sim de Sergei, que aplaudiu alto e caminhou até ficar ao lado de Audric. Os cortesãos uniram-se aos aplausos com atraso e incerteza. Audric notou que Sigourney ca’Ludovici não aplaudiu, apenas cruzou os braços e o olhou intensamente. — Mestre ci’Blaylock, tenho certeza de que o senhor já ouviu o suficiente para fazer seu julgamento — continuou Sergei.

Ci’Blaylock franziu a testa. — Regente, eu não termi... — Ele parou, e Audric viu o mestre encarar a expressão fechada do regente. Ci’Blaylock pousou a pena e começou a enrolar o papiro da prova. — Sim, foi muito satisfatório. Muito bem, kraljiki, como sempre.

— Ótimo — disse Sergei. — Agora, se todos os senhores nos dão licença...

A dispensa do regente foi abrupta, mas efetiva. O mestre ci’Blaylock reuniu os papiros e mancou na direção da porta mais próxima; os cortesãos recuaram como filetes de neblina em uma manhã de sol e sorriram até virar as costas. Audric ouviu as frenéticas especulações sussurradas ao saírem do salão. Sigourney, no entanto, fez uma pausa. — É algo que o Conselho dos Ca’ deva saber? — perguntou ela para Sergei. Sigourney não olhava para Audric; era como se ele não fosse importante o suficiente para ser notado.

Sergei balançou a cabeça. — Não no momento, conselheira ca’Ludovici. Se for o caso, fique tranquila que a senhora será avisada imediatamente.

Sigourney torceu o nariz diante da resposta, mas acenou com a cabeça para Sergei e fez a mesura apropriada para Audric antes de sair do salão. Apenas alguns criados permaneceram, parados em silêncio perto das paredes de pedra cobertas por tapeçarias, enquanto dois e’ténis — sacerdotes da fé concénziana — sussurravam preces ao acender lamparinas para diminuir a luz difusa. Na parede próxima ao Trono do Sol, os rostos da família de camponeses no quadro de ci’Recroix pareciam tremer sob a luz do fogo mágico.

— Obrigado, Sergei — disse Audric. Ele tossiu e cobriu a boca com a mão fechada. — Mas você podia ter vindo meia-virada da ampulheta mais cedo e me poupado de todo esse martírio.

Sergei deu um sorriso irônico. — E encarar a fúria do mestre ci’Blaylock? Nem pensar. — Ele fez uma pausa, e as rugas em volta do nariz de metal adquiriram uma expressão séria. — Eu teria estado aqui mais cedo para ouvir sua prova, kraljiki, mas acabei de receber uma mensagem de um contato em Firenzcia. Há notícias que acho que o senhor deve ouvir antes do Conselho: o hïrzg Jan de Firenzcia está em seu leito de morte. Não esperam que ele sobreviva além desta semana. Pode ser que já esteja morto, pois a mensagem é de dias atrás.

— Então o a’hïrzg Fynn se tornará o novo hïrzg? Ou Allesandra irá se contrapor à ascensão do irmão?

O sorriso irônico de Sergei voltou momentaneamente. — Ah, então o senhor presta mesmo atenção nos meus relatórios. Que bom. Isto é bem mais importante do que as aulas do mestre ci’Blaylock. — Ele meneou a cabeça. — Duvido que Allesandra vá protestar. Ela não tem apoio suficiente entre os ca’ e co’ de Firenzcia para contestar o testamento do hïrzg Jan.

— Qual dos dois nós preferiríamos?

— Nossa preferência seria por Allesandra, kraljiki. Após uma década ou mais que ela passou aqui, à espera que o hïrzg Jan pagasse seu resgate, nós a conhecemos muito mais. A archigos Ana sempre teve um bom relacionamento com ela, e Allesandra é bem mais favorável aos Domínios. Se ela se tornasse a hïrzgin... bem, talvez houvesse alguma esperança de reconciliação entre os Domínios e a Coalizão. Poderia até mesmo haver uma pequena possibilidade de que conseguíssemos voltar a como as coisas eram na época de sua mamatarh, com o senhor no Trono do Sol sob os Domínios reunificados. Mas com Fynn como hïrzg... — Sergei meneou a cabeça outra vez. — Fynn puxou ao vatarh, tão belicoso e teimoso quanto ele. Se Fynn for hïrzg, teremos de vigiar nossa fronteira oriental com atenção, o que significa ter menos recursos à disposição para a guerra nos Hellins, infelizmente.

Audric curvou-se com outro acesso de tosse, e Sergei colocou a mão com gentileza em seu ombro. — Sua tosse está piorando novamente, kraljiki. Mandarei os curandeiros fazerem outra poção para o senhor, e talvez a archigos Ana faça uma visita amanhã, depois da cerimônia do Dia do Retorno. É um pouco cedo, mas com as chuvas do mês passado...

— Eu estou melhor agora — disse Audric. — É apenas o ar úmido aqui no salão. — A e’téni mais próxima interrompeu o cântico, as mãos ficaram paralisadas em meio à moldagem do Ilmodo – a energia que abastecia sua magia. Ela era uma jovem moça não muito mais velha que Audric e ficou vermelha quando se vira notada pelo kraljiki, rapidamente afastou o olhar e recomeçou o cântico: a lamparina presa no alto da parede foi acesa quando as mãos realizaram o gestual do Ilmodo abaixo dela.

O peito de Audric começava a doer com o esforço da tosse. Ele odiava ficar doente, mas parecia estar sempre assim desde que se entendia por gente. Se uma doença fosse contraída pelo corpo de funcionários do palácio, certamente ele pegaria; Audric sofria constantemente de acessos de tosse e de uma dificuldade para respirar. Qualquer esforço físico rapidamente deixava o kraljiki exausto e ofegante. Entretanto, de alguma maneira Cénzi o protegera de um surto de febre do sol aos quatro anos de idade, embora a doença tenha levado sua irmã mais velha, Marguerite, batizada em homenagem à famosa mamatarh e preparada para ser a kraljica quando o vatarh deles morresse. O funeral oficial da irmã — uma cerimônia longa e triste — foi uma de suas primeiras memórias.

Deveria ser Marguerite aqui, agora, não ele. Audric tinha esperanças de que isso significasse que Cénzi tinha um plano para ele.

Ele respirou fundo e desta vez prendeu a tosse que ameaçava surgir. — Pronto, viu só? É só o ar úmido e ter que responder a todas aquelas malditas perguntas do mestre.

— Ao menos as perguntas do mestre têm respostas definitivas. As soluções para um kraljiki raramente são claras, como o senhor já sabe. — Sergei colocou o braço em volta de Audric, que se apoiou no abraço do homem. “Confie em ca’Rudka como seu regente”, sussurrara seu vatarh deitado na cama durante aquele último dia. “Confie nele como você confiaria em mim...”

A verdade era que Audric nunca confiou totalmente em seu vatarh, cujo temperamento e favoritismo eram, na melhor das hipóteses, inconstantes. Mas Sergei... Audric achava que o homem tinha sido a última boa escolha de seu vatarh. Sim, ele podia sofrer cada vez mais nas mãos do regente conforme se aproximava da maioridade, podia se irritar com as pessoas às vezes tratando Sergei como se ele fosse o kraljiki, mas Audric não podia ter pedido um aliado mais leal nos ventos caóticos da corte do kraljiki.

Não importava o que os cortesãos murmuravam a respeito do regente. Não importava o que o homem fazia nas masmorras da Bastida ou com as grandes horizontales que ele às vezes levava para a cama.

— Imagino que devemos redigir um comunicado pela morte do hïrzg — falou Audric. — E que devemos ouvir dez conselheiros diferentes pedindo que respondam de vinte maneiras diferentes. E mais dez assessores que nos dirão o que precisamos fazer a respeito dos Hellins no oeste.

Sergei riu. Seu braço estreitou-se em volta do ombro de Audric, depois soltou o kraljiki e esfregou o nariz de prata como se tivesse sentido uma coceira. — Sem dúvida. Eu diria que o senhor aprendeu muito bem todas suas lições, kraljiki.

 

Sergei ca’Rudka

SUA AUGUSTA PRESENÇA, o kraljiki Audric, curvou-se em sua cadeira elevada e estofada ao lado de Sergei e tossiu tão desesperadamente que o regente inclinou seu corpo na direção do garoto. — O senhor precisa de um pouco do xarope do curandeiro, kraljiki? Eu mando um dos criados trazer aqui... — Ele começou a gesticular, mas Audric pegou seu braço.

— Espere, Sergei. Vai passar — disse Audric ao tomar fôlego três vezes. Espere, Sergei (fôlego). Vai (fôlego) passar... O mero esforço de segurar o braço de Sergei deixou o garoto visivelmente cansado.

Sergei esfregou a superfície reluzente do nariz falso grudado em seu rosto; o original fora perdido há décadas em uma luta de espada na juventude. — O senhor prefere retornar ao palácio, kraljiki? A fumaça dos incensários e o incenso não devem fazer bem para seus pulmões, e a archigos entenderá. De qualquer maneira, ela visitará o senhor assim que terminar aqui.

— Nós ficaremos, Sergei. É aqui que devo estar. — Nós ficaremos (fôlego) Sergei (fôlego, tosse, fôlego). É aqui (fôlego) que devo (fôlego) estar...

Sergei concordou com a cabeça. Quanto a isso, o garoto estava certo. Os dois estavam sentados na sacada real do Templo da Archigos, na margem sul do rio A’Sele, em Nessântico. Embaixo, o piso principal do templo estava lotado de devotos para o Dia do Retorno. A archigos Ana estava com vários a’ténis no coro do templo. Seu cabelo, com mechas grisalhas nas têmporas, reluzia sob a luz das lamparinas mágicas, a voz forte e possante recitava os trechos do Toustour. O Dia do Retorno era a cerimônia do solstício da primavera, que preparava os fiéis para o eventual retorno de Cénzi ao mundo que Ele criara. Comparecer era dever do kraljiki Audric, e era por isso que o templo estava com todos os cantos absolutamente lotados de chevarittai, dos ca’ e co’, de famílias de menor status que conseguiram se enfiar nos espaços que sobraram; todo mundo estava lá para ver o jovem kraljiki e talvez também para ser visto por ele: atrás de um pedido, de uma requisição, ou talvez porque o kraljiki ainda não fosse comprometido com ninguém, apesar dos insistentes rumores de que o regente tinha a intenção de fazer um arranjo com uma das grandes famílias dos Domínios.

Eles também deviam ter notado as tosses fortes e secas do kraljiki, que pontuavam a leitura da archigos Ana. Até mesmo ela parou uma vez no meio da recitação para erguer o olhar com preocupação e solidariedade na direção da sacada. A archigos acenou com a cabeça de maneira praticamente imperceptível para Sergei, e o regente soube que ela correria para o palácio depois da cerimônia. Sergei inclinou o corpo novamente e sussurrou no ouvido do garoto. — A archigos prometeu fazer uma visita após terminarmos aqui e rezar pelo senhor. Ela sempre o ajuda, eu sei. O senhor conseguirá aguentar essa crise sabendo que se sentirá melhor em breve.

Audric concordou com a cabeça, de olhos arregalados, e conteve outra tosse com um lenço perfumado. Sergei perguntou-se se Audric sabia — tanto quanto ele — que a razão pela qual as “preces” da archigos o ajudavam tanto era que Ana usava suas habilidades com a magia do Ilmodo para curar os pulmões arruinados de Audric, o que ia contra as leis da Divolonté que governavam a fé concénziana. Era algo que Ana fazia desde pouco depois do nascimento de Audric, quando ficou claro que a vida do menino estava em perigo. Ela fizera praticamente a mesma coisa pela mamatarh de Audric, a tão lastimada kraljica Marguerite, em seus últimos dias, mantendo a soberana viva quando ela teria morrido sem interferência.

Fazia um mês desde a última visita da archigos Ana com este objetivo; era óbvio que a doença do garoto retornou mais uma vez, como sempre fazia, inevitavelmente. Audric dobrou o lenço e guardou novamente na bashta; Sergei viu manchinhas vermelhas no linho. Não falou nada, mas decidiu que mandaria um recado para Ana dizendo que, em vez de ela ir ao palácio, eles a encontrariam imediatamente depois da missa, nos aposentos da archigos. O garoto precisava de cuidados rapidamente.

Sergei recostou-se na cadeira quando a archigos Ana foi até o Alto Púlpito para proferir a Admoestação para o público, enquanto o coro na galeria começava um hino de Darkmavis. Os ca’ e co’ agitaram-se em suas roupas elegantes. Sergei viu Karl ca’Vliomani acenar com a mão para ele perto da lateral do templo — ca’Vliomani, embaixador da Ilha de Paeti e da facção dos numetodos, não era um fiel, mas Sergei sabia que o embaixador e a archigos Ana tinham sido, se não amantes de fato, ao menos amigos e confidentes desde antes da Batalha dos Brejos, há 24 anos. Durante aquele combate, a jovem archigos Ana usou tanto a magia dos numetodos quanto a própria para tirar a a’hïrzg Allesandra de Firenzcia de seu vatarh e mantê-la como refém contra a retirada do hïrzg. O plano funcionou, embora Firenzcia e os países vizinhos tenham se separado dos Domínios como resultado das hostilidades e tenham formado a Coalizão Firenzciana.

Sergei viu-se considerando, novamente, se a derrota das forças firenzcianas nas mãos de Ana foi realmente o triunfo que todos eles pensavam, se não teria sido melhor para os Domínios que o hïrzg Jan tivesse tomado a cidade e se tornado kraljiki. Se isso tivesse ocorrido, tanto Ana quanto o próprio Sergei estariam mortos, mas muito provavelmente haveria apenas os Domínios, e nenhuma Coalizão rival. Haveria apenas uma fé concénziana. Se isso tivesse ocorrido, o então novo kraljiki teria lidado plenamente com o levante dos ocidentais em Hellins com todos os recursos da Garde Civile, e sem ter que se preocupar com o que poderia acontecer no leste.

Se isso tivesse ocorrido, Justi então, o Tolo Perneta, jamais teria se tornado kraljiki e Audric nunca teria sido seu herdeiro, e Nessântico prosperaria em vez de definhar.

Sergei, francamente, nunca esperou que a archigos Ana fosse capaz de manter o título — ela fora muito jovem e inocente, mas o fogo da Batalha dos Brejos forjou o espírito de aço dentro dela. Ana provou ser mais forte do que qualquer a’téni que pudesse ter tentado tomar seu lugar, mais forte do que o archigos rival em Brezno, e certamente mais forte do que o kraljiki Justi, que acreditou que poderia controlar a Fé através dela.

No fim das contas, Jan não foi capaz de dominar nada: nem Ana, nem a Fé, nem os Domínios. Enquanto Ana fora bem-sucedida de maneira surpreendente como archigos, Justi fora uma catástrofe como kraljiki.

Justi, o Perneta, gastou em duas décadas o que sua matarh e os kralji antes dela levaram mais de cinco séculos para criar, e coube a nós pagar por sua incompetência com os Domínios e a Fé rompidos em facções orientais e ocidentais. E agora os problemas nos Hellins complicam a questão, ao mesmo tempo em que temos um menino no Trono do Sol que pode não viver para gerar um herdeiro.

Sergei suspirou e fechou os olhos enquanto ouvia o coral. Ele iria à Bastida amanhã de manhã e aplacaria suas preocupações com dor. Encontraria alívio nos gritos. Sim, isto seria ótimo. Os acordes finais flutuavam reluzentes na mente do regente, e ele ouviu a archigos subir os degraus do Alto Púlpito.

Sergei se lembraria do momento seguinte pelo resto da vida.

Uma luz violenta e impossível surgiu, como se Cénzi tivesse mandado um raio dos céus através do domo dourado acima. A luz intensa penetrou as pálpebras fechadas de Sergei; um trovão rugiu em seus ouvidos, e uma onda de choque bateu em seu peito. Por instinto, o regente jogou-se sobre Audric, derrubou o garoto no chão da sacada e cobriu o corpo do kraljiki com o próprio corpo. As velhas juntas reclamaram pelo movimento repentino e pelo abuso. Ele ouviu a respiração ofegante de Audric; também ouviu gritos e lamentos vindos de baixo, cortados pelo berro abalado e horrorizado de Karl ca’Vliomani, que ecoou mais alto do que todos eles: — Ana! Ana! Nãoooooo!

— Kraljiki! Regente! — Mãos puxaram e levantaram Sergei, um quarteto da Garde Kralji, cujo dever era proteger o kraljiki e o regente. Uma nuvem de poeira surgiu dentro do templo, e Sergei piscou em meio à poeira; ele mesmo quase não conseguia respirar. O regente ouviu a tosse desesperada de Audric. O templo fedia a enxofre.

— Você e você, escoltem o kraljiki para fora daqui e de volta para o palácio, imediatamente — disse Sergei ao apontar os dedos para os gardai. — Vocês dois, venham comigo.

Sergei desceu correndo a escada da sacada, flanqueado por gardai com espadas desembainhadas e empurrando quem estivesse no caminho. As pessoas gritavam e berravam, ele ouviu os gemidos e ganidos estridentes dos feridos. O regente foi forçado a mancar, pois o joelho direito estava ferido e inchou rapidamente; ele levou muito tempo para descer a escada enquanto agarrava o corrimão a cada degrau. Lá embaixo, tudo era confusão.

— Regente! Aqui! — Aris co’Falla, o comandante da Garde Kralji, fez um gesto acima das cabeças para Sergei enquanto os gardai empurravam a multidão. O barulho de dor e sofrimento era enorme, e o regente notou vários rostos e braços ensanguentados. A fachada do templo estava cheia de pedras quebradas e madeira estilhaçada; ele notou vários corpos nos escombros.

Um dos corpos usava o robe da archigos. Sergei perdeu o fôlego, que foi substituído por uma raiva fria. — Comandante, o que aconteceu aqui?

Co’Falla balançou a cabeça. — Eu não sei, regente. Não ainda. Eu assistia à cerimônia próximo à saída do templo. Quando a archigos chegou ao Alto Púlpito... Eu nunca tinha visto algo assim, regente. Foi alguma espécie de feitiço, tenho quase certeza, mas algo que um téni-guerreiro faria. O clarão, o barulho, a pedra e a madeira e... — Ele franziu a testa. — ... outras coisas voaram para todos os lados. A explosão pareceu ter vindo debaixo do Alto Púlpito. Há pelo menos meia dúzia de mortos, e muitos mais feridos, alguns gravemente...

O regente gemeu pela dor no joelho ao se ajoelhar ao lado do corpo de Ana. O rosto estava praticamente irreconhecível, ela perdera a metade inferior do corpo completamente e o braço direito. Sergei soube imediatamente que Ana estava morta, que não havia esperança ali. Uma estranha poeira negra cobria o chão em volta dela. Ele virou o rosto e viu Karl ca’Vliomani sendo contido pelos gardai, com o rosto em pânico e a bashta coberta de pó. Sergei ficou de pé devagar e fez uma careta quando os joelhos estalaram. — Cubra a archigos e os outros corpos — falou o regente para co’Falla. — Tire todo mundo do templo, a não ser os ténis e os gardai. Mande chamar o comandante co’Ulcai da Garde Civile se precisar de mais ajuda. — Ele estremeceu ao respirar. — E deixe o embaixador vir até mim.

Co’Falla meneou a cabeça e deu as ordens. Ca’Vliomani disparou imediatamente na direção do corpo de Ana, Sergei interceptou o embaixador. — Não — ele disse para Karl ao agarrar seus ombros. — Ela morreu, Karl. Não há nada que você possa fazer. Nada.

Ele sentiu o homem desmoronar e ouviu um soluço. — Sergei, eu tenho que vê-la. Por favor. Eu preciso saber. — Seu olhar estava abalado, e subitamente Karl ca’Vliomani pareceu décadas mais velho. O sotaque de Paeti, que o embaixador jamais perdeu, apesar dos anos em Nessântico, ficou mais forte do que nunca nesse momento.

— Não, você não precisa, meu amigo — insistiu Sergei. — Por favor, me ouça. Você não quer que esta seja a última imagem que tem dela. Você não quer isso. De verdade. Eu digo isso pelo seu bem.

Então ca’Vliomani começou a chorar, e Sergei segurou o embaixador enquanto os gardai se movimentavam em volta deles, conforme os ténis do templo — calados pelo choque e horror — cuidavam dos mortos e feridos, e a poeira negra assentava-se sobre eles e ao redor deles, e o rugido do feitiço ecoava eternamente nos ouvidos de Sergei.

Ele achava que jamais se esqueceria daquele som e perguntou-se o que ele anunciava: para si próprio, para Audric, para a fé concénziana, para Nessântico.

 

Nico Morel

NICO TOMOU UM PEQUENO GOLE DO CHÁ que sua matarh colocara diante dele, com a caneca de madeira nas duas mãos pequenas. — Matarh, por que alguém iria querer matar a archigos Ana?

— Eu não sei, Nico — respondeu ela, que colocou uma fatia de pão e alguns pedaços de queijo diante do filho, na mesa arranhada perto da janela. A mulher afastou as mechas do cabelo castanho de sua testa e olhou pelas persianas abertas para a rua estreita do lado de fora. — Eu não sei — repetiu. — Só torço...

— A senhora torce para que, matarh?

Ela balançou a cabeça. — Por nada, Nico. Ande, coma.

Eles compareceram à cerimônia do Dia do Retorno no Parque do Templo, à distância de uma longa caminhada de seu apartamento no Velho Distrito. Nico sempre gostava quando eles iam ao Parque do Templo, pois o espaço verde e aberto contrastava bastante com as ruas sujas e apinhadas de gente do labirinto do Velho Distrito. Bem na hora em que saíam do parque, eles ouviram as trompas começarem a soar, e então os rumores se espalharam pela multidão como fogo em um campo seco de verão: a archigos tinha sido morta. Por magia, diziam alguns. Magia terrível, como a que os hereges numetodos sabiam fazer, ou talvez um téni-guerreiro.

Nico chorou um pouco, porque todo mundo chorava, e sua matarh pareceu preocupada. Eles voltaram correndo para casa.

Certa vez, a matarh de Nico atravessou a Pontica Mordei na direção da a Ilha A’Kralji com o filho, e eles viram o terreno do palácio do regente e do Velho Templo, o primeiro construído em Nessântico. Nico ficou maravilhado com o novo domo que estava sendo construído no topo do Velho Templo, com as fileiras de andaimes que alçavam os trabalhadores tão alto no céu, de maneira impossível. Nico ficou tonto só de vê-los.

Depois, eles passaram pela Pontica a’Brezi Nippoli na direção da margem sul, onde a maioria dos ca’ e co’ viviam. Nico atravessou com sua matarh o grande complexo do Templo da Archigos e viu a archigos em pessoa: uma figura minúscula de verde em uma das janelas dos prédios ligados ao enorme templo que acenava para a multidão na praça.

Agora ela estava morta. Algo fácil de imaginar. A morte era totalmente comum; Nico costumava vê-la nas ruas, e a viu visitar a sua própria família. A matarh disse que Ana era a archigos desde quando ela era um bebê, e a matarh tinha 28 anos — praticamente uma anciã, portanto, não chegava a ser uma surpresa que a archigos morresse. Nico mal se lembrava de sua mamatarh, que morreu quando ele tinha cinco anos. Talvez ela fosse tão velha quanto a archigos Ana. Nico lembrava-se muito do irmão mais velho, que morreu de febre do sul há quatro anos. A matarh disse que houve outro irmão, ainda mais velho, que também morreu, mas Nico não se lembrava dele. Havia Fiona, a irmã que nascera primeiro — Nico não sabia se ela ainda estava viva, embora sempre tenha imaginado que estivesse; ela fugira aos 12 anos, há quase três anos agora. Talis vivia com eles — Talis vivia com a matarh desde que Nico se entendia por gente, mas Fiona dissera a ele que nem sempre foi assim, que houve outro homem antes de Talis, que era o vatarh de Fiona e de seus irmãos. Ela dissera que Talis era o vatarh de Nico, mas que nunca quis ser chamado assim.

Nico sentia saudade de Fiona. Ele às vezes imaginava que a irmã tinha ido para outra cidade e ficado rica. Gostava de pensar assim, às vezes. Sonhava com o retorno de Fiona a Nessântico com um ce’ ou até mesmo um ci’ antes do nome, e ele abriria a porta para vê-la sorrindo com uma tashta limpa e muito colorida. — Nico — diria a irmã. — Você, a matarh e Talis vão morar comigo...

Talvez Nico saísse de casa quando tivesse 12 anos também, daqui a dois anos. Nico notou as rugas marcadas no rosto da matarh enquanto ela olhava para a rua lá fora. O cabelo nas têmporas tinha mechas grisalhas. — A senhora está esperando por Talis? — perguntou ele.

Nico viu a testa franzida, depois o sorriso quando ela se virou para ele. — Apenas coma, querido. Não se preocupe com Talis. Ele vai chegar em breve.

Nico concordou com a cabeça enquanto roía a crosta dura do pão quase velho e tentava evitar o molar solto no fundo da boca que ameaçava cair, o último dos dentes de leite. Ele não estava preocupado com Talis, apenas com o dente. Não queria perdê-lo, uma vez que, se perdesse, a matarh mandaria que ele esmagasse o dente com um martelo até virar pó, e isso era muito trabalhoso. Quando Nico terminasse, ela o ajudaria a salpicar o pó em um pouco de pão umedecido com leite, e os dois colocariam o pão do lado de fora da janela ao lado de sua cama. À noite, ele ouviria os ratos e camundongos comerem a oferenda e correrem de um lado para o outro lá fora. De manhã, o prato estaria vazio; a matarh dizia que isso significava que seus novos dentes cresceriam tão fortes quanto os dentes de um rato.

Nico já tinha visto o que os ratos conseguiam fazer com os dentes. Eles podiam arrancar a carne de um gato morto em poucas horas. Nico torcia para que seus dentes ficassem fortes assim. Ele meteu o indicador na boca e mexeu no dente, sentiu que balançava facilmente para trás e para frente nas gengivas. Se puxasse com força, o dente sairia...

— Serafina?

Nico ouviu Talis chamar sua matarh. Ela correu até ele e os dois se abraçaram logo após Talis fechar a porta ao entrar.

— Eu estava preocupada — disse sua matarh. — Quando soube...

— Shh... — falou Talis ao dar um beijo na testa de Serafina. Seu olhar estava voltado para Nico, que observava os dois. — Ei, Nico. Sua matarh levou você ao Parque do Templo hoje?

— Sim — respondeu Nico. O menino se aproximou dos dois e se esgueirou em sua matarh, de maneira que ela passasse o braço por ele. Nico torceu o nariz e ergueu os olhos para o homem. — Você está com um cheiro esquisito, Talis.

— Nico... — A matarh começou a falar, mas Talis riu e mexeu no cabelo de Nico. O menino odiava que ele fizesse isso.

— Tudo bem, Serafina — disse Talis. — Não se pode culpar o menino por ser honesto. — Ele não falava como as outras pessoas do Velho Distrito; Talis pronunciava as palavras de um modo esquisito, como se a língua não gostasse do sabor das sílabas, então ele as cuspia o mais rápido possível em vez de falar com calma, como a maioria das pessoas fazia. Talis agachou-se próximo a Nico e disse — Eu passei por um incêndio a caminho daqui. Havia muita fumaça preta. Os ténis-bombeiros apagaram o fogo, contudo.

Nico assentiu com a cabeça, embora achasse que Talis não cheirava exatamente à fumaça. O odor era mais intenso e pungente. — A archigos Ana morreu, Talis — falou o menino.

— Foi o que eu ouvi — respondeu Talis. — O regente vai varrer a cidade à procura de um bode expiatório para culpar. É hora de os estrangeiros não chamarem atenção se quiserem continuar a salvo. — Ele parecia falar mais para a matarh de Nico do que para o menino, os olhos erguidos na direção dela.

— Talis... — A matarh sussurrou o nome da mesma maneira que às vezes dizia o de Nico quando o menino estava doente ou tinha se machucado. Talis ficou de pé novamente e a abraçou. — Vai ficar tudo bem, Sera. — Nico ouviu Talis sussurrar para ela. — Eu prometo.

Enquanto ouvia Talis, Nico empurrou o dente solto com a língua. Ele escutou um estalinho e sentiu gosto de sangue.

— Matarh, meu dente caiu...

 

Allesandra ca’Vörl

— MATARH?

Allesandra ouviu o chamado, seguido por uma batida hesitante na porta. Seu filho, Jan, estava parado na porta aberta. Aos 15 anos, quase 16, ele era magricelo e desajeitado. Somente nos últimos meses o corpo começara a se transformar no de um jovem, com uma bela penugem no queixo e debaixo dos braços. Ele ainda era bem mais baixo do que as meninas da mesma idade, muitas das quais tiveram a primeira menarca no ano anterior. Batizado com o nome do vatarh de Allesandra, ela enxergava algumas características dele no filho, mas também havia um forte traço da família ca’Xielt — a família de Pauli. Jan tinha a cor da pele mais escura dos magyarianos, os olhos negros e o cabelo encaracolado quase preto de seu vatarh. Ela duvidava que algum dia o filho teria a musculatura mais parruda dos ca’Belgradin, como a de seu onczio Fynn, que o vavatarh Karin e o vatarh Jan de Allesandra também possuíram.

Ela, às vezes, tinha dificuldade em imaginar o filho galopando loucamente para entrar em combate — embora Jan cavalgasse tão bem quanto qualquer pessoa e possuísse a visão aguçada que um arqueiro invejaria. Ainda assim, ele geralmente parecia mais à vontade com pergaminhos e livros do que com espadas. E, apesar da linhagem paterna, apesar do ato (por puro dever) que o produziu, apesar do mau humor e da raiva mal contida que pareciam consumi-lo ultimamente, Allesandra amava o filho mais do que pensou ser possível amar alguém.

E ela temeu, especialmente no ano anterior, que estivesse perdendo Jan, que ele pudesse estar cedendo à influência de Pauli. Ele esteve ausente na maior parte da vida do filho, mas talvez essa fosse a sua vantagem: era mais fácil não gostar do vatarh ou da matarh que estava sempre corrigindo; admirar aquele ou aquela que deixava fazer o que quisesse. Houve aquele incidente com a funcionária, e Allesandra precisou mandá-la embora — aquilo foi bem parecido com Pauli.

— Entre, querido — chamou Allesandra.

Jan aquiesceu sem sorrir, foi até a penteadeira onde ela estava sentada e encostou os lábios no topo da cabeça da matarh, um beijo discretíssimo, enquanto as mulheres que ajudavam Allesandra a se vestir se afastavam em silêncio. — O onczio Fynn mandou que eu buscasse a senhora — falou Jan. — Evidentemente chegou o momento. — Uma pausa. — E evidentemente eu sou pouco mais do que um criado para ele. Apenas um traste magyariano que serve para levar recados.

— Jan! — disse Allesandra com rispidez. Ela apontou para as aias com o olhar. Todas eram magyarianas ocidentais, parte da comitiva que veio de Malacki com Jan.

Ele deu de ombros, sem se importar. — A senhora vem, matarh, ou vai me mandar de volta para Fynn com sua própria resposta, como se eu fosse um bom menininho de recados?

Você não pode responder aqui do jeito que quer. Não onde tudo o que nós dissermos possa virar fofoca na corte hoje à noite. — Estou quase pronta, Jan. — Allesandra gesticulou. — Vamos descer juntos, uma vez que você já está aqui. — As aias voltaram, uma escovou o cabelo dela, outra colocou no pescoço
o colar de pérolas que antigamente fora de sua matarh Greta, e mais uma ajustou as dobras da tashta. Allesandra passou outro colar para a aia: um globo partido em uma corrente elegante, com continentes de ouro, mares do mais puro lápis-lazúli, e a fenda cheia de rubis nas profundezas: o globo de Cénzi. A archigos Ana dera o colar para Allesandra quando ela teve a primeira menarca, em Nessântico.

— Isto antigamente pertencia ao archigos Dhosti — dissera Ana para ela. — Ele deu para mim; agora eu dou para você. — Allesandra tocou o globo enquanto a criada o prendia em seu pescoço e lembrou-se de Ana: o som da voz, seu cheiro.

— Todo mundo vive me dizendo que o onczio Fynn dará um belo hïrzg — disse Jan, e a lembrança foi interrompida.

— Eu sei. — Allesandra começou a dizer. E por que você esperaria outra coisa?, ela queria acrescentar. Jan entendia muito bem a etiqueta da corte para saber disso.

Evidentemente ele viu o comentário implícito no rosto da matarh. — Eu não tinha terminado. Eu ia dizer que a senhora daria uma hïrzgin melhor. Era a senhora que deveria usar a coroa e o anel, matarh.

— Quieto — falou Allesandra novamente para Jan, embora com mais gentileza desta vez. As aias eram dela, era verdade, mas nunca se sabia. Segredos podiam ser comprados ou arrancados pelo amor ou pela dor. — Nós não estamos em casa, Jan. Você tem que se lembrar disso. Especialmente aqui...

A expressão mal-humorada de Jan foi desfeita por um momento, e ele pareceu tão arrependido que toda a irritação de Allesandra passou. Ela fez um carinho no braço do filho. Era assim com Jan nos últimos tempos: cara fechada em um instante e sorrisos afetuosos no próximo. No entanto, as caras fechadas apareciam mais frequentemente conforme a criança amorosa dentro dele recuava cada vez mais fundo no interior da nova carapaça adolescente. — Tudo bem, Jan. Apenas... bem, você tem que tomar muito cuidado enquanto estivermos aqui. Sempre. — E especialmente com Fynn. Ela tirou a ideia da cabeça. Diria para Jan mais tarde. Em particular. Allesandra ficou de pé e as criadas foram embora, como folhas no outono. Ela abraçou Jan: ele permitiu o gesto, e nada mais, os próprios braços mal se mexeram. — Tudo bem, vamos descer agora. Lembre-se de que você é o filho do a’gyula da Magyaria Ocidental, e também o filho da atual a’hïrzg de Firenzcia.

Fynn dera o título a Allesandra ontem, após a morte do vatarh: o título que deveria ter sido dela desde o início, que a teria tornado hïrzgin. Ela sabia que até mesmo este presente era temporário, que Fynn nomearia outra pessoa como a’hïrzg com o tempo: o próprio filho, talvez, se algum dia ele se casasse e produzisse um herdeiro, ou algum protegido da corte. Allesandra seria a herdeira de Fynn até ele encontrar alguém de quem gostasse mais.

— Matarh — interrompeu Jan. Ele bufou bem alto, e a cara fechada voltou. — Eu conheço o sermão. “Os olhos e ouvidos dos ca’ e co’ estarão em você.” Eu sei. A senhora não precisa me dizer. De novo.

Allesandra gostaria de poder acreditar nisso. — Tudo bem — falou baixinho. — Vamos descer então e ficar com o novo hïrzg enquanto sepultamos seu vavatarh.

Com a morte do hïrzg Jan, foi proclamado o obrigatório mês de luto e marcadas uma dúzia de cerimônias necessárias. O novo hïrzg, Fynn, presidiria vários rituais nas próximas semanas: alguns apenas para os ca’ e co’, outros para o benefício moral do público. O Besteigung formal, o ritual final, aconteceria no fim do mês, no Templo de Brezno, presidido pelo archigos Semini — marcado assim para dar tempo de os líderes dos outros países da Coalizão Firenzciana chegarem a Brezno para prestar homenagem ao novo hïrzg. Allesandra já havia sido informada de que o a’gyula Pauli chegaria para o Besteigung, pelo menos — ela já estava apreensiva pela chegada do marido.

E hoje à noite... hoje à noite era o Confinamento.

Os kralji queimavam os mortos; os hïrzgai os enterravam. O corpo do hïrzg Jan seria enterrado na catacumba dos ca’Belgradins, onde várias gerações de seus ancestrais estavam sepultadas, e um punhado ou mais destes antecessores dividiram com Jan a coroa dourada que agora estava na cabeça de Fynn. Fynn aguardava Allesandra e Jan nos próprios aposentos; dali, eles desceriam para as catacumbas abaixo do piso térreo do Palácio de Brezno. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos e outros nobres de Firenzcia já esperavam por eles lá.

Os salões do palácio estavam em silêncio, os criados que Jan e Allesandra viram pararam o que faziam e curvaram-se calados com os olhos abaixados conforme eles passavam. Dois gardai parados do lado de fora dos aposentos de Fynn abriram as portas quando eles se aproximaram. Allesandra ouviu vozes vindo do interior quando ela e o filho entraram.

— ... acabo de receber notícias de Gairdi. Isto vai complicar a situação. Não sabemos exatamente o quanto, ainda... — O archigos Semini ca’Cellibrecca parou no meio da frase assim que Allesandra e Jan entraram na sala. O homem sempre trouxera a imagem de um urso à mente de Allesandra, desde quando ela era uma criança, e ele, um jovem téni-guerreiro em ascensão: mesmo quando moço, Semini era enorme, peludo e perigoso. A barba negra agora estava salpicada de branco, e a massa de cabelo encaracolado recuava na testa como uma maré lenta, mas ele ainda era parrudo e musculoso. O archigos fez o sinal de Cénzi para Jan e Allesandra, com as mãos entrelaçadas na testa, enquanto sua esposa, Francesca, fazia o mesmo atrás dele. Disseram para Alle-sandra que antigamente Francesca era linda; na verdade, havia rumores de que ela um dia fora amante de Justi, o Perneta, mas Allesandra não a conhecia na época. Agora Francesca era uma matrona corcunda sem vários dentes, com o corpo arrasado pelos rigores de uma dezena de gestações ao longo dos anos. A personalidade era tão amarga quanto o rosto.

Fynn levantou-se da cadeira.

— Irmã — disse ele enquanto pegava as mãos de Allesandra ao ficar diante dela. Fynn sorria, parecia quase exultante. — Semini acabou de trazer notícias interessantes de Nessântico. A archigos Ana foi assassinada.

Allesandra engasgou, sem conseguir esconder sua reação. As mãos se dirigiram para o pingente com o globo partido no pescoço, então ela se forçou a abaixá-las. A sensação era de que não conseguiria respirar. — Assassinada? Por quem...? — Allesandra parou e olhou para Semini, que também sorria, quase presunçoso, pensou ela, e depois se voltou para o irmão. — Fomos nós? — perguntou. A voz saiu afiada como uma adaga. Ela sentiu Jan colocar a mão em seu ombro por trás ao sentir sua angústia.

Fynn deu um muxoxo de desdém e perguntou — Isso faria diferença?

— Sim — disse Allesandra para ele. — Apenas um tolo pensaria o contrário. — As palavras saíram antes que ela conseguisse impedi-las. E bem depois que acabei de alertar Jan...

Fynn fechou a cara diante do insulto implícito. A mão de Jan apertou o ombro de Allesandra. Semini pigarreou alto antes que Fynn pudesse falar.

— Isso não foi obra do hïrzg, Allesandra. — Semini respondeu rapidamente enquanto balançava a cabeça e abanava a mão com desdém. — Firenzcia pode estar em desacordo com a Fé em Nessântico, mas o hïrzg não participa de assassinatos. Nem a Fé.

Ela olhou de Semini para Francesca. A mulher afastou o olhar rapidamente, mas não tentou esconder a satisfação no rosto. O prazer com a notícia era óbvio. A mulher tinha tanto calor humano quanto o inverno de Boail. Allesandra perguntou-se se algum dia Semini gostou dela ou se o casamento entre os dois era tão sem amor e premeditado quanto o seu, apesar dos vários filhos do casal. Allesandra não conseguia imaginar se submeter ao prazer de Pauli com tanta frequência. — Temos certeza de que esta informação é verdadeira? — perguntou ela para o archigos.

— Ela veio até mim por três fontes diferentes, uma em que confio implicitamente, o comerciante Gairdi, e todas concordam nos detalhes básicos — falou Semini. — A archigos Ana realizava a missa do Dia do Retorno quando houve uma explosão. “Como o feitiço de um téni-guerreiro”, todos dizem, o que quer dizer que foi alguém usando o Ilmodo. Isso está claro.

— O que também quer dizer que eles podem se voltar para o leste, em nossa direção — disse Fynn. Ele parecia ávido pela ideia, como se estivesse ansioso para convocar o exército de Firenzcia para a batalha. Isso seria a cara dele; Allesandra ficaria terrivelmente surpresa se o reinado de Fynn fosse pacífico.

— Ou eles se voltarão para o oeste — argumentou Allesandra, e Fynn olhou para a irmã como se ela fosse um inseto chato e insistente. — Nessântico também tem inimigos lá, e os ocidentais também podem usar o Ilmodo, mesmo que o chamem por outro nome, como os numetodos.

— Os ocidentais? Como os numetodos, eles são hereges que merecem a morte — disparou Semini. — Eles abusam da dádiva de Cénzi, que é destinada apenas aos ténis, e um dia nós os faremos pagar pelo insulto, se Nessântico não fizer isso.

Fynn grunhiu em acordo com a opinião, e Allesandra viu o filho Jan também aquiescer com a cabeça — isso também era a influência do maldito vatarh do menino, ou pelo menos do téni magyariano que Pauli insistiu que educasse o filho deles, apesar das reservas de Allesandra. Ela cerrou os lábios.

Ana está morta. Ela colocou os dedos no colar do globo partido, sentindo sua superfície lisa e cravejada. O toque trouxe novamente a memória do rosto de Ana, do sorriso assimétrico que surgia nos lábios da mulher quando algo a divertia, das rugas severas que apareciam em volta dos olhos quando ficava irritada. Allesandra passou uma década com Ana; captora, amiga e matarh postiça, tudo ao mesmo tempo para ela durante os longos anos que passou como refém de Nessântico. Os sentimentos de Allesandra para com Ana eram tão complexos e contraditórios quanto o relacionamento entre as duas. Eles eram quase tão conflitantes quanto os sentimentos com relação ao vatarh, que a deixara em Nessântico enquanto Fynn se tornava o a’hïrzg e seu favorito.

Allesandra queria chorar por causa da notícia, de tristeza por alguém que a tratou bem, com gentileza, quando não havia obrigação alguma para que agisse assim. Mas ela não podia chorar. Não aqui. Não na frente de pessoas que odiavam a mulher. Aqui, Allesandra teria que fingir.

Mais tarde. Mais tarde eu choro por ela como se deve...

— Eu esperava um pouco mais de reação de você, irmã — disse Fynn. — Afinal, aquela mulher abominável e o impostor perneta mantiveram você como prisioneira. O vatarh praguejava sempre que alguém falava o nome dela e dizia que Ana não era diferente de uma bruxa.

Fynn observava Allesandra, e ambos sabiam o que ele deixou de fora no comentário: que o hïrzg Jan poderia ter pagado o resgate por ela a qualquer momento durante aqueles anos, e que, se ele o tivesse feito, provavelmente a coroa dourada estaria na cabeça de Allesandra, não na de Fynn. — Você não ficará aqui nem meio ano — disse Ana para Allesandra naqueles primeiros meses. — O kraljiki Justi cobrou um resgate justo, e seu vatarh irá pagá-lo. Em breve...

Mas, por algum motivo, o hïrzg Jan não pagou.

Allesandra fez uma expressão impassível. Você não vai chorar. Não vai deixar que eles vejam seu sofrimento. Não era difícil; era o que ela fazia frequentemente, e dava certo na maioria das vezes. Allesandra sabia como os ca’ e co’ a chamavam pelas costas: a Megera de Pedra. — A morte de Ana ca’Seranta é importante. Eu agradeço ao archigos Semini por nos trazer a notícia, e nós devemos, nós temos que decidir o que isso significa para Firenzcia, mas ainda levaremos semanas para conhecer todas as consequências. E neste momento o vatarh espera por nós. Eu sugiro que cuidemos dele primeiro.

 

As Tumbas dos Hïrzgai eram catacumbas abaixo do Palácio de Brezno, não eram como os níveis inferiores da mais nova propriedade privada fora da cidade conhecida como Encosta do Cervo, que fora construída na época do hïrzg Karin. Uma escada comprida e larga descia para as Tumbas, e uma crosta de nitrato cobria as paredes suadas e crescia como pústula branca nas faces dos murais pintados ali há dois séculos e restaurados uma dezena de vezes desde então: a umidade sempre vencia os pigmentos. Um ar frio, quase fétido, subia lá de baixo, como se os avisasse que o reino dos mortos se aproximava. As tochas acesas nos suportes preveniam a escuridão, mas tornavam as sombras da ocasional passagem lateral mais escuras e misteriosas em contraste. Uma dezena de gerações de hïrzgai esperava por eles lá embaixo, com suas várias esposas e muitos dos descendentes diretos. O irmão mais velho de Allesandra, Toma, fora enterrado ali quando ela era apenas um bebê, e sua matarh, Greta, estava deitada ao lado dele há 19 anos agora. Com o tempo, a própria Allesandra poderia se juntar à família, embora passar a eternidade ao lado da matarh Greta não fosse uma ideia agradável.

A procissão desceu pela escadaria em um silêncio pomposo: em frente os e’ténis com lamparinas acesas por fogo mágico, depois o hïrzg Fynn acompanhado pelo archigos Semini e Francesca, e Allesandra e Jan alguns passos atrás deles, seguidos por um último grupo de criados e e’ténis. Conforme eles se aproximavam da entrada ricamente entalhada em direção às catacumbas, decoradas com baixos-relevos de feitos históricos dos hïrzgai, Allesandra pôde ouvir sussurros, o farfalhar de tecido e um espirro ou tosse ocasionais: os ca’ e co’ foram convidados para testemunhar as cerimônias. Era a elite de Firenzcia, a maioria composta por parentes de Fynn e Allesandra: famílias que haviam sido misturadas com a deles, ou aqueles que serviram por décadas ao hïrzg Jan.

Luzes mágicas e de tochas banhavam os corpos enroscados de criaturas fantásticas entalhados nas paredes, as sisudas feições esculpidas dos hïrzgai e os corpos massacrados dos inimigos aos seus pés. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos entraram em posição de sentido, as lanças (com lâminas cobertas por panos vermelhos) bateram contra as lustrosas armaduras de gala. Os outros ca’ e co’ fizeram mesuras e os sussurros caíram no silêncio quando o novo hïrzg entrou na câmara enorme. Allesandra notou os olhares deslizarem de Fynn para ela, e também para Jan. O filho notou a atenção; ela sentiu Jan respirar fundo e empertigar o corpo. Allesandra acenou para eles — um movimento mínimo da cabeça, um sorriso quase imperceptível.

Olhe para ela, tão fria quanto esta câmara... Era o que alguns deles deveriam estar pensando. Com certeza ela está contente de ver o velho Jan morto depois de ele deixá-la com o kraljiki e a falsa archigos por tanto tempo. Ela provavelmente deseja que Fynn também estivesse lá com o vatarh para que ela pudesse ser a hïrzgin.

Nenhum deles conhecia Allesandra. Nenhum deles conhecia seus verdadeiros pensamentos. Com efeito, ela mesma não tinha certeza se sabia. Allesandra ainda estava abalada com a notícia sobre Ana, e se demonstrava sinais de tristeza, era pela archigos, não pelo vatarh.

O caixão que continha os restos do hïrzg Jan estava perto da entrada da câmara de confinamento, ao lado da enorme pedra redonda que selaria o nicho.
O caixão estava coberto por uma tapeçaria que representava sua vitória sobre o t’sha no lago Cresci. Não havia nada que celebrasse Passe a’Fiume ou o ataque tolo e ousado contra Nessântico há uma década: aqueles dias em que Allesandra cavalgara com ele, quando olhava o vatarh com adoração, quando ele prometera dar para ela a cidade de Nessântico.

Em vez disso, Nessântico tirou Allesandra de seu vatarh e deu a Fynn o lugar de braço direito de Jan.

Fynn prestou continência aos lanceiros, que relaxaram sua postura, e disse — Eu gostaria de agradecer a todos por estarem aqui. Eu sei que o vatarh olha lá de cima, dos braços de Cénzi, e agradece esse tributo a ele. E também sei que o vatarh nos perdoaria por não ficarmos muito tempo aqui quando lareiras e comidas quentes esperam por nós lá em cima. — Fynn recebeu risos discretos ao dizer isso e sorriu. — Archigos, por obséquio...

Semini dirigiu-se rapidamente à frente com os ténis e abençoou o caixão. Ele chamou Allesandra e Jan com um gesto quando os ténis começaram a entoar a oração. Os dois foram até o caixão e colocaram as mãos na tapeçaria. — Eu queria que você tivesse tido a chance de conhecê-lo melhor — sussurrou ela para Jan e colocou a mão em cima da mão do filho enquanto os ténis entoavam. — Ele não foi sempre tão furioso e rude quanto nos últimos anos.

— A senhora me disse isso — falou Jan. — Várias vezes. Mas, ainda assim, não é a memória dele que levarei comigo, não é? — Ela olhou para o filho; ele olhou com uma cara feia para o caixão.

— Falaremos a respeito disso depois — disse Allesandra.

— Não duvido, matarh.

Allesandra conteve a resposta que teria dado; ela não falaria nada aqui. As pessoas já olhavam com curiosidade, imaginavam que segredos os dois estariam sussurrando e o porquê da rispidez na voz de seu filho. Allesandra ergueu a mão e deu um passo para trás para permitir que Fynn se aproximasse.

Ela imaginou o que o irmão estaria pensando ao ficar parado ali, com a mão no caixão e a cabeça baixa.

Após alguns minutos, Fynn também se afastou. Ele acenou com a cabeça para os lanceiros; quatro vieram à frente para pegar o caixão. Com expressões soturnas, eles ergueram e enfiaram o caixão no nicho que o aguardava. A pedra roçou na madeira, e o som ecoou. Os quatro deram passos para trás, e outro quarteto empurrou com os ombros o selo de pedra, que gemeu e resistiu enquanto rolava devagar. A enorme roda de pedra avançou por um sulco aberto no chão na direção da enorme fenda onde se assentaria e ficaria. A pedra era entalhada com glifos em firenzciano antigo, uma língua falada hoje apenas por estudiosos, tão grossa quanto o braço de uma pessoa e com metade da altura de um homem. Quando a grande roda chegou ao fim do sulco e entrou na brecha onde deveria ficar, houve um enorme som de rachadura. Uma fenda cortou a face entalhada da roda e um terço da parte de cima desmoronou. Allesandra sabia que deveria ter dado um alerta, mas tudo acabou antes que qualquer um deles pudesse se mexer ou reagir. A massa de pedra esmagou completamente um lanceiro embaixo dela e as pernas de outro soldado ao cair no chão.

Os gritos do lanceiro preso eram agudos e estridentes, e sangue espesso escorreu debaixo da pedra.

Isso é um sinal... Ela não conseguiu evitar o pensamento enquanto o restante dos lanceiros avançou e os ca’ e co’, ténis e criados corriam para ajudar ou encaravam paralisados o horror no fundo da câmara. Jan estava entre aqueles que tentavam desesperadamente levantar a lápide, e Fynn gritava ordens inúteis no caos.

Foi o vatarh que fez isso. De alguma forma, ele fez isso. Ele não descansa em paz...

 

Enéas co’Kinnear

ELE IA MORRER aqui nos Hellins.

A sensação de um destino horrível tomou conta de Enéas enquanto ele estava com as forças dos Domínios no cume de um morro não muito longe das cercanias de Munereo. As tropas observavam os estandartes de formato estranho dos ocidentais se aproximarem vindos da direção do lago Malik, e Enéas escutava o início dos cânticos dos ténis-guerreiros em preparação para a batalha. O a’offizier Meric ca’Matin estava com ele, assim como os outros offiziers do batalhão e vários pajens prontos para levar mensagens entre as companhias. As cornetas e bandeiras estavam de prontidão para transmitir ordens. A uma centena de passos encosta abaixo, as fileiras do exército dos Domínios estavam reunidas, inquietas e nervosas.

Enéas esteve em meia dúzia de batalhas e incontáveis escaramuças e confrontos nos últimos anos. Esta sensação de ruína iminente era algo que nunca havia sentido antes. Ele sentiu o suor descer pelo rosto debaixo do elmo grosso de ferro, e não era apenas o sol que causava a transpiração. Enéas queria gritar em negação para o céu, mas não podia. Não aqui. Não na frente de suas tropas. Em vez disso, abaixou a cabeça e rezou.

Ó, Grande Cénzi, por que o Senhor manda esta premonição para mim? O que o Senhor está me dizendo?

Enéas era um o’offizier da Garde Civile dos Domínios. Seu comandante de campo, o a’offizier ca’Matin, dissera justamente ontem que tinha feito a recomendação de que Enéas fosse sagrado chevaritt, que o documento já estava cruzando o Strettosei a caminho de Nessântico. Seu vatarh ficaria orgulhoso — há 25 anos, o vatarh de Enéas serviu com o regente ca’Rudka em Passe a’Fiume e ficou severamente queimado, perdeu um braço e um olho durante aquele cerco horrível. A Garde Civile dera a condecoração e a pensão que ele merecia, e embora a família tenha sido promovida de ce’Kinnear para ci’Kinnear como consequência, seu vatarh sempre falava que poderia ter se tornado um chevaritt se não tivesse sido ferido, que aquelas aspirações foram arrancadas pelo fogo mágico firenzciano que o desfigurou e encerrou sua carreira.

Enéas nunca quis ser um chevaritt ou um offizier. Teria preferido seguir a carreira de um téni da fé concénziana do que aquela que encontrou na Garde Civile. Ele sentia o chamado de Cénzi desde que era um menino; na verdade, Enéas pediu aos pais que o mandassem para o templo como um acólito. Porém, seu vatarh insistiu que trilhasse o caminho marcial. — Somos apenas ci’, e mal conseguimos nos manter assim — dissera o vatarh. — Nossa família não tem as solas para mandá-lo para os ténis. Isso é uma coisa para os ca’ e co’, que podem bancar. Você entrará para a Garde, como eu. Vai fazer como eu fiz...

Enéas saiu-se melhor que seu vatarh. “Falsoténi” era como seus homens o chamavam por sua religiosidade, por seguir rigidamente as regras da Divolonté, e pela insistência em que seus comandados comparecessem aos rituais no Templo de Munereo nos Dias da Observância, como era devido. Mas seus comandados também alegavam que o próprio Cénzi protegia Enéas — e que, através de Éneas, eles próprios eram protegidos. Na Batalha das Colinas perto do lago Malik, como um e’offizier, em sua segunda batalha de verdade, ele foi o único offizier sobrevivente de sua companhia, quando os homens foram massacrados por uma força ocidental bem superior. Enéas conseguiu surpreender os ocidentais ao fingir uma retirada, depois marchou com o restante das tropas pelos pântanos para atacar o inimigo por um flanco desprotegido pelos nahualli — os terríveis feiticeiros ocidentais, aqueles que chamavam o Ilmodo de X’in Ka.

Hereges, eles eram. Falsos ténis que adoravam falsos deuses. Pensar nos nahualli enfurecia Enéas.

Ele conseguiu infligir grandes baixas no flanco dos ocidentais e manter a posição até a chegada de reforços. Como recompensa por suas ações, Enéas foi promovido a o’offizier; poucos meses depois, após a Campanha dos Brejos Profundos, o a’offizier ca’Matin disse que a Gardes a’Liste promovera sua família a co’.

Quando o período de serviço militar terminasse, daqui a um ano, após voltar para Nessântico, Enéas prometeu a Cénzi que daria baixa na Garde Civile e se ofereceria para o treino como téni, mesmo que ele fosse muito mais velho do que os acólitos usuais. Enéas tinha certeza de que isso era o que Cénzi queria dele.

A Guerra dos Hellins vinha sendo boa para Enéas, embora não para os Domínios.

Ao menos vinha sendo assim até essa sombra surgir. Esse arrepio na espinha.

Não é uma premonição. É apenas medo...

Ele sentiu medo antes. Todo soldado sentia medo, a não ser que fosse um completo tolo, mas Enéas nunca tinha sido tocado pelo sentimento dessa forma. O medo estremecia os ossos na carne; fazia o sangue zunir nos ouvidos. O medo transformava as entranhas em água podre e marrom. O medo fazia a arma tremer na mão. Mas Enéas não estremeceu, o estômago estava calmo, e a ponta da espada não tremeu em sua mão.

Aquilo não era medo — ou nenhum tipo de medo que tivesse sentido antes. Aquilo o preocupava mais que tudo.

O que é isso que o Senhor me manda, Cénzi? Diga-me, para que eu possa Lhe servir como o Senhor quiser...

— O’offizier co’Kinnear! — vociferou o a’offizier ca’Matin, e Enéas balançou a cabeça para afastar os pensamentos. Ele prestou continência ao offizier superior, que já estava montado no cavalo de guerra. — Preciso que o senhor entre com seus homens no flanco direito do inimigo; empurre-os para dentro do vale para que os ténis-guerreiros cuidem deles. Não devemos nos preocupar com os nahualli; os batedores disseram que eles ainda estão lá atrás, perto do Tecuhtli no lago Malik. Compreendido?

Enéas concordou com a cabeça.

— Ótimo — falou ca’Matin. — Então vamos começar. Pajem, diga aos corneteiros para anunciar o avanço. — O garoto a quem o a’offizier se dirigiu correu para a colina onde as trompas e bandeiras de sinalização estavam concentradas enquanto ca’Matin cumprimentava Enéas com o sinal de Cénzi, que ele devolveu solenemente e com devoção. — Que a fortuna de Cénzi esteja com o senhor, Enéas — disse o a’offizier.

— E com todos nós — respondeu Enéas com fervor.

Ca’Matin puxou as rédeas e foi embora a meio galope, o poderoso cavalo de guerra atravessou a grama alta com cuidado na direção do centro das fileiras onde os estandartes dos Domínios tremulavam com a brisa da tarde.

As cornetas soaram então, estridentes e altas. O chamado pairou diante deles em desafio aos ocidentais, e o som de armas batendo contra armaduras ecoou rapidamente. Enéas pegou as rédeas do próprio cavalo de guerra das mãos de um pajem à espera e montou. Seus e’offiziers olharam para ele com expectativa. — Façam suas pazes com Cénzi — disse o o’offizier. — É chegado o momento.

Enéas ergueu a mão para sinalizar na direção do flanco direito e dos morros íngremes ali.

Um bramido respondeu ao o’offizier, o grito de mil gargantas. Eles começaram a se mover, primeiro lentamente, depois mais rápido, até correrem impetuosamente na direção das lanças do inimigo. Enquanto investiam, o fogo mágico dos ténis-guerreiros na retaguarda passava estridente por cima da cabeça de Enéas e de suas tropas, acertando as fileiras da vanguarda das forças ocidentais e abrindo buracos nas fileiras irregulares. Não pareceu haver uma resposta dos nahualli; Enéas achou que isso faria o medo desagradável ir embora, mas a sensação permaneceu.

Éneas e seus homens avançaram pelas brechas fumegantes. O choque de aço contra aço ecoou dos flancos dos morros verdejantes, assim como os gritos dos feridos que caíram debaixo dos cascos dos cavalos de guerra que eles montavam. Éneas atacou uma lança curta que foi estocada em sua direção, afastou a ponta serrada com um golpe e cortou com o sabre a mão que empunhava a arma. O sangue jorrou e o rosto selvagem abaixo dele caiu. O cavalo avançou, e Enéas atacou os ocidentais de ambos os lados, protegidos por placas peitorais de bambu e tecido grosso com pequenos anéis de latão costurados. Eles usavam elmos decorados com plumas de pássaros muito coloridos, a pele avermelhada era pintada com faixas laranjas e amarelas, que faziam os rostos parecerem com crânios, ou era tatuada com linhas rubro-negras. Eram oponentes ferozes, os ocidentais, e nenhum soldado dos Domínios que os encarou ousava menosprezar suas habilidades e bravura. No entanto, eles tinham dado espaço agora — o que era estranho — e recuaram na direção da massa principal do exército. Enéas viu uma escuridão debaixo dos pés calçados com sandálias dos inimigos: o solo diretamente em frente a ele parecia um círculo de areia, mas aquela areia era tão negra quanto restos de lenha queimada.

A inquietação que afligiu Enéas antes da batalha aumentou e tornou-se um frio mortal dentro dos pulmões, de maneira que ele teve dificuldade para respirar e a espada pareceu como um peso de chumbo nas mãos. Ele obrigou o cavalo a entrar na areia e, ao fazer isso, berrou: um grito sem palavras para banir a sensação com barulho e fúria.

Éneas teve como resposta um som que nunca tinha ouvido antes.

O som... era como se um dos moitidis da terra — os filhos indignos de Cénzi — tivesse soltado um grito forte e sobrenatural, e fez com que Enéas girasse a cabeça para esquerda, na direção de sua origem. Um fogo laranja e uma fumaça negra e desagradável foram cuspidos do chão. Punhados de terra caíram em volta do o’offizier como uma chuva sólida que respingou sobre ele, e com a terra... e com a terra havia pedaços de corpos. Uma mão, ainda segurando uma espada quebrada, quicou no pescoço do cavalo de Enéas e caiu no chão. Ele olhou para o objeto ensanguentado. Então ouviu os gritos, com atraso.

— São os nahualli! Feitiçaria! — gritou Enéas para avisar as tropas, para a mão horrível que caiu do céu.

O o’offizier recebeu como resposta um rugido ainda mais alto que o primeiro, uma explosão cuja luz o cegou e a força arrancou seu corpo da sela e do cavalo. Um semideus ergueu Enéas — ele pareceu levitar por um instante ou dois: isso... isso é a premonição e o aviso de Cénzi... — e jogou o o’offizier de volta para a terra como se estivesse com nojo.

A terra levantou-se para recebê-lo.

Ele não se lembrou de mais nada depois disso.

 

Karl ca’Vliomani

KARL SEGUROU FIRME O COLAR na mão: uma concha de pedra cinza e polida que ele dera para Ana há muito tempo. O colar estivera no pescoço da archigos quando ela morreu; Sergei dera o objeto para ele. Havia manchas do sangue de Ana nos sulcos profundos. Karl apertou os dedos em volta da concha e sentiu as bordas duras forçarem a palma da mão. A dor não importava; significava que ele ainda conseguia sentir algo além do vazio que o tomava agora.

Quem fez isso? Por que matariam Ana?

Karl perdeu muitas pessoas de que gostava ao longo dos anos. O embaixador era tomado pelo sofrimento, tristeza e, às vezes, raiva diante da morte delas. Karl acordava à noite com a certeza de que tinha ouvido suas vozes ou pensando “ah, hoje tenho que visitá-lo ou visitá-la...”, apenas para lembrar que a pessoa em mente foi embora para sempre, de maneira irrevogável.

Isso... isso era pior do que qualquer uma daquelas mortes. Isso era uma facada no coração, e ele sentiu o sangramento por dentro.

Será que consigo sobreviver a isso? Perdi minha melhor amiga, a mulher que eu amo...

Karl estava sentado na frente do templo, com o regente Sergei e o kraljiki Audric à sua esquerda, e o recém-empossado archigos Kenne e os a’ténis da Fé à sua direita. Kenne foi amigo e aliado de Ana desde o início, quando ambos fizeram parte da equipe do archigos Dhosti. Agora, parecendo duas décadas mais velho do que sua idade de verdade, de cabelos brancos e mãos que tremiam com uma eterna paralisia, Kenne parecia extremamente pouco à vontade com a responsabilidade confiada a ele. O archigos debruçou-se sobre Karl e deu um tapinha em sua mão. Disse algo que o embaixador não conseguiu ouvir contra o canto do coro: “Longo lamento”, do compositor ce’Miella. As palavras que Kenne realmente falou não importavam: Karl concordou com a cabeça porque sabia que era a reação esperada.

No banco diretamente atrás deles, no meio dos ca’ e co’, estavam Varina e Mika ci’Gilan; como Varina, Mika também era um amigo de longa data de Karl e Ana. Ele era o líder local da facção dos numetodos em Nessântico e dirigia a pesquisa da seita aqui. A mão de Varina tocou o ombro de Karl; sem olhar para trás, o embaixador a cobriu com a própria mão antes de deixá-la cair no colo como se estivesse morta. Os dedos de Varina apertaram o ombro de Karl, e sua mão permaneceu ali.

O gesto tinha a intenção de confortá-lo, ele sabia, mas era simplesmente um peso morto.

Quem fez isso? Karl ouviu uma dezena de rumores. Previsivelmente, alguns culpavam os numetodos. Outros, Firenzcia. Alguns apontavam a facção da fé concénziana de Brezno. A história mais absurda dizia que o assassino, conhecido como a Pedra Branca, era o responsável, que havia uma pedrinha branca no olho esquerdo de Ana quando ela foi encontrada, a assinatura da Pedra Branca.

O último rumor certamente não era verdade. Porém, os outros... Karl não sabia, mas jurou que descobriria.

Às vezes ele invejava o consolo da fé que Ana tinha. Karl e ela até mesmo conversaram a respeito disso na noite em que ele descobriu que Kaitlin estava morta: a mulher com quem Karl havia se casado e que dera à luz seus dois filhos na Ilha de Paeti. Ela recusou-se terminantemente a vir a Nessântico com o marido. Kaitlin sabia da profunda amizade entre ele e Ana; assim como Karl também tinha certeza de que a esposa sabia que — apesar das promessas e garantias dele — havia mais do que amizade ali, pelo menos para o embaixador numetodo.

Ele nunca fora capaz de mentir facilmente para Kaitlin. Karl dizia para si mesmo que amava a esposa, mas também nunca fora realmente capaz de mentir para si mesmo.

Na noite em que recebeu a terrível carta de Paeti com a informação de que Kaitlin tinha adoecido e morrido, ele ficou arrasado. Karl nunca soube exatamente como Ana soube da notícia, mas ela o visitou naquela noite. A archigos o alimentou, o abraçou, deixou que gritasse, gemesse, berrasse e sofresse. Mais que isso, ela jamais tentou oferecer para Karl o consolo da fé como teria feito com qualquer um de seus seguidores. Ela jamais mencionou Cénzi, não até ele mencionar enquanto secava as lágrimas com a manga da bashta...

— Eu invejo você — disse Karl.

Os dois estavam sentados ao lado das chamas que ela acendera na lareira. O chá fervia lentamente em uma chaleira. A madeira estava molhada; ela assobiava e estalava sob o ataque das chamas e cuspia jatos rodopiantes de cinzas de tom vermelho-alaranjado chaminé acima.

Ana ergueu uma sobrancelha na direção de Karl.

— Você acredita que Cénzi leva as almas daqueles que morrem — falou o embaixador. — Você acredita que os mortos continuam a existir dentro Dele, e que é possível um dia encontrá-los novamente. Eu... — Lágrimas ameaçaram cair novamente, e foram contidas à força por Karl. — Eu não tenho essa esperança.

— Ter fé não leva a dor embora — disse Ana. — Ou leva muito pouco. Nada pode aliviar o sofrimento e a perda que todos nós sentimos: nem a fé, nem o Ilmodo. O tempo, talvez, consiga dar jeito, e, ainda assim, apenas diminui a tristeza. — Ela enrolou a manga do robe na mão, pegou a chaleira no suporte e serviu a bebida nas xícaras. Passou para Karl o jarro de mel. — Eu ainda me lembro da minha matarh. Às vezes, tudo volta à mente, tudo que senti quando ela morreu, como se tivesse acontecido ontem. — Ana passou os dedos na bochecha de Karl, que sentiu a maciez contra a barba por fazer. — Isso vai acontecer com você também, infelizmente.

— Então para que serve a sua fé, Ana?

Ela sorriu, como se estivesse à espera da pergunta. — Fé não é um bem. A pessoa não a compra porque ela vai fazer isto ou aquilo. A pessoa acredita ou não, e a crença oferece o que oferece. Você não tem fé, meu amor; Cénzi sabe que eu lhe daria fé se pudesse. Eu certamente conversei o bastante com você a respeito disso ao longo dos anos. Vocês, numetodos... vocês tentam envolver o mundo em razão e lógica e, portanto, a fé vira pó sempre que vocês a tocam, porque tentam impor racionalidade sobre ela. Você vai fazer isso com Kaitlin também, vai tentar encontrar razões e lógica na morte dela. — Ana tocou Karl novamente. — Não há razão para ela ter morrido, Karl. Não há lógica nisso. Apenas aconteceu, e não teve nada a ver com você ou com seus sentimentos por ela, ou com o que aconteceu entre vocês dois.

— Nem com a vontade de Cénzi?

Ela empinou o queixo e deu um sorriso triste para Karl. O rosto de Ana foi banhado pela luz quente e amarela da lareira. — Nem mesmo isso. É rara a pessoa com quem Cénzi se importa a ponto de mudar o resultado dos dados rolados pelo moitidi do destino. Era a hora de sua Kaitlin. Só isso. Não é culpa sua, Karl. Não é.

Isto aconteceu há nove anos. Ele viajou de volta para Paeti a fim de ver a sepultura de Kaitlin e estar com os filhos. Karl até trouxe Nilles e Colin para Nessântico quando retornou no ano seguinte. Nilles ficou dois anos com o vatarh, Colin ficou quatro, até que eles atingiram a maioridade, aos 16 anos. Com o tempo, ambos deixaram a cidade para retornar à Ilha de Paeti. Nilles já tinha dado uma neta a Karl — com três anos agora — que ele ainda precisava conhecer.

Karl ficou aqui porque seu trabalho era nos Domínios, dizia ele para qualquer um que perguntasse. Porém, na verdade, era porque Ana estava aqui. Havia aqueles que sabiam disso, mas não eram muitos e fingiam não ver.

A mão de Varina apertou o ombro de Karl novamente e se afastou.

Karl olhou fixamente para o corpo de Ana, embrulhado em uma mortalha no altar de pedra, e para a falange de seis ténis-bombeiros reunidos em um círculo em volta dela. O cadáver estava enrolado sob camadas de uma seda verde bordada com linhas metálicas douradas, que reluziam sob a luz multicolorida do vitral das janelas do templo; incensários fumegavam pelo altar e envolviam os raios de luz com fumaça aromática. Karl não conseguia acreditar que era Ana embrulhada em exposição ali. Não acreditaria. Era outra pessoa qualquer. A memória que ele tinha da luz, do bramido impactante, do corpo sendo dilacerado, do sangue, da poeira negra... Era falsa. Tinha que ser falsa. Mesmo o pensamento era doloroso demais para suportar.

A morte de Kaitlin, de sua família, de todos os outros que faleceram ao longo das décadas: nenhuma doeu como esta. Nenhuma.

Alguém matou a pessoa que Karl mais amava no mundo, acabou com uma mulher que lutou mais do que qualquer um desde a kraljica Marguerite para manter a paz nos Domínios, que acreditava em reconciliação antes de confronto, que tinha o potencial de reunir as duas metades partidas dos Domínios e da fé concénziana. Não haveria paz para Karl até que soubesse quem fez isso e até que essa pessoa estivesse morta. Se houvesse vida além da morte, como Ana acreditava, então Karl deixaria que a alma do assassino fosse condenada a cuidar de Ana pela eternidade. Se houvesse deuses, se Cénzi realmente existisse, se houvesse justiça após a morte, então era isso que deveria acontecer.

Ele teria fé nisso: uma fé sombria, implacável e intransigente.

O archigos Kenne deu um tapinha na mão de Karl e sussurrou mais palavras que ele não conseguiu ouvir. O ombro do regente Sergei estava pressionado contra o esquerdo do embaixador. O kraljiki Audric ofegou do outro lado do regente, sua respiração difícil era mais alta que o cântico dos ténis. Karl ouviu Varina chorar baixinho no banco atrás dele.

Os ténis-bombeiros agitaram-se em volta do corpo embrulhado em pano verde. As mãos moveram-se na dança do Ilmodo, as vozes ergueram-se em uníssono em um cântico que lutou contra as vozes etéreas do coro. Eles espalmaram bem as mãos como em uma benção, e a chama feroz do fogo mágico irrompeu em volta do corpo de Ana. A onda de calor das chamas mágicas passou por eles, selvagem e implacável. Não havia fagulhas, nem pira alimentando as labaredas: enquanto os corpos dos kralji e dos ca’ e co’ queimavam em chamas alimentadas por madeira e óleo, os ténis queimavam seus próprios mortos com o Ilmodo — rápida e furiosamente. O fogo do Ilmodo consumiu o corpo no espaço de alguns instantes, o tecido verde metálico ficou preto instantaneamente, o brilho do calor era tão intenso que o corpo de Ana parecia se mexer ali dentro. Enquanto Karl observava, conforme seu corpo recostou-se por instinto contra o ataque violento do calor, Ana foi levada.

As chamas morreram abruptamente quando o coro encerrou a canção. O ar frio voltou a correr em volta deles, um vento que desmanchou penteados e tremulou roupas. Agora no altar não havia nada além de cinzas e alguns fragmentos de ossos.

A prisão mortal de Ana sumiu.

— Ela voltou para as mãos de Cénzi agora — falou o archigos Kenne para Karl. — Ele dará consolo para Ana.

E eu darei algo melhor que consolo para ela. Ele aquiesceu em silêncio para o archigos. Darei vingança.

 

Allesandra ca’Vörl

— NÃO FOI um sinal.

Fynn socou com força o braço da cadeira. Os criados postados ao longo da parede, de prontidão para servir o jantar, tremeram com o som. A longa cicatriz que descia pelo lado direito do rosto ficou branca contra o rosto corado. — Eu não me importo com o que dizem. O que aconteceu foi um terrível acidente. Nada mais. Não foi um sinal.

— Claro que você está certo, irmão — falou Allesandra, para acalmá-lo. Ela fez uma pausa por um instante e gesticulou para os criados magyarianos: os dois irmãos ceavam nos aposentos de Allesandra no palácio. Os criados se aproximaram e serviram sopa nas tigelas e encheram as taças de vinho. Fynn estava sentado à cabeceira; Allesandra, ao pé da mesa. O archigos Semini e a esposa estavam à direita de Fynn; seu filho, Jan, à esquerda.

A própria Allesandra tinha ouvido alguns dos rumores. O hïrzg Jan está irritado que Fynn tomou a coroa, e não sua filha... A alma do hïrzg não consegue descansar... Ouvi da parte de um criado do palácio que seu fantasma ainda anda pelos salões à noite, gemendo e gritando como se estivesse furioso... Havia dezenas de histórias que surgiam por toda Brezno, deturpadas dependendo dos interesses de quem as espalhasse, e que ficavam maiores e mais absurdas a cada vez que eram contadas. Cénzi manda um aviso ao hïrzg de que os Domínios e a Fé devem se unir novamente... As almas de todos aqueles que o hïrzg matou — os numetodos, os nessânticos, os tennsha — o perseguem e não permitem que ele descanse... Dizem que, quando o selo de pedra caiu, aqueles na câmara ouviram a voz do velho hïrzg amaldiçoar Firenzcia...

A sopa foi servida e o silêncio durou tempo demais. Allesandra ouviu a respiração dos criados e o barulho distante e abafado do cozinheiro e dos funcionários da cozinha no andar debaixo. — Eu soube que o outro lanceiro também morreu — ela comentou quando ficou claro que ninguém mais estava disposto a começar uma conversa.

Fynn olhou feio para a irmã do outro lado da mesa e falou — Isso foi uma benção de Cénzi. O homem jamais teria voltado a andar. O curandeiro disse que a espinha estava quebrada; se eu fosse ele, preferiria morrer a viver o resto da vida como um aleijado inútil.

— Tenho certeza de que ele tinha a mesma opinião que você, irmão. — Ela manteve o tom de voz cautelosamente neutro. — E tenho certeza de que o archigos fez o possível para aliviar seu sofrimento. — Outra pausa. — Até onde a Divolonté permite, é claro — acrescentou.

Francesca deixou a colher bater na mesa ao ouvir isso. — A senhora pode ter sido maculada pelas crenças da falsa archigos durante seus anos com ela, a’hïrzg — declarou ela com frieza —, mas eu lhe garanto que meu marido não se maculou. Ele jamais...

— Francesca! — A bronca de Semini fez Francesca fechar a boca como uma carpa agonizante na margem de um rio. Ele olhou fixamente para a esposa, depois levou as mãos entrelaçadas à testa ao se voltar para Allesandra. Semini sustentou o olhar da a’hïrzg. Allesandra sempre achou que o archigos tinha belos olhos: poderosos e encantadores. Também notou que, quando ela estava em um ambiente, Semini geralmente prestava atenção nela. Isso nunca incomodou Allesandra, que gostava da atenção dele. A a’hïrzg pensou, na época em que seu vatarh finalmente pagou o resgate por ela, que o hïrzg Jan poderia tê-la casado com Semini, se o archigos já não estivesse comprometido com Francesca. Este teria sido um casamento poderoso, que permitiria reunir os poderes políticos e religiosos do estado, e Semini poderia ter sido alguém que ela viesse a amar, também. Mesmo agora... Allesandra afastou essa ideia rapidamente. Ela teve amantes durante o casamento, sim, como sabia que Pauli também tinha, mas sempre com cautela. Um caso com o archigos... isso seria difícil de esconder.

— Eu peço desculpas, a’hïrzg — disse Semini. — Às vezes, hã, a devoção da minha esposa pela Fé faz com que ela fale com muita grosseria. Eu realmente dei ao pobre lanceiro o consolo que pude, a pedido do hïrzg. — Ele então se dirigiu a Fynn. — Meu hïrzg, o senhor não deveria se preocupar com as fofocas da ralé. Na verdade, eu deixarei claro na minha próxima Admoestação que aqueles que acreditam que existem portentos nesse acidente horrível estão enganados, e que esses rumores absurdos são simplesmente mentiras. Já mandei começarem a investigar quem está espalhando essa fofoca sórdida. Eu diria que, se a Garde Hïrzg levasse alguns deles sob custódia, especialmente alguns do baixo escalão, e... hã, os convencesse a desmentir publicamente antes de serem executados por traição, isto certamente serviria de lição para os outros. Acho que veríamos que toda essa conversa sobre o que aconteceu no enterro de seu vatarh desapareceria tão rápido quanto neve em Daritria.

Francesca concordava com a cabeça ao ouvir as palavras do marido. — Nós devemos tratar essas pessoas da mesma maneira que trataríamos os numetodos — aquiesceu ela. — Da mesma forma que os numetodos são traidores da Fé, esses fofoqueiros são traidores de nosso hïrzg. Alguns corpos balançando na forca calarão a boca do populacho. — Ela olhou para Allesandra. — A senhora não concorda, a’hïrzg? — perguntou Francesca com voz gentil e ávida demais. A mulher chegou mesmo a se debruçar sobre a mesa, o que enfatizou a corcunda.

— Acho que é perigoso igualar fofocas com heresias, vajica ca’Cellibrecca — ela começava a dizer com cautela, mas Jan a interrompeu.

— Se você punir as pessoas por boataria, vai convencê-las de que os rumores são verdadeiros — disse o filho de Allesandra, as primeiras palavras que Jan disse desde que se sentaram à mesa, e deu de ombros quando os demais olharam para ele. — Bem, é verdade — insistiu. — Se o senhor der o sermão que sugere, archigos, estará apenas atraindo mais atenção para o que aconteceu, o que fará as pessoas acreditarem ainda mais nos rumores. É melhor não dizer, nem fazer nada; todo esse falatório vai passar por conta própria quando nada mais acontecer. Toda vez que um de nós repete a fofoca, mesmo que para negá-la ou refutá-la, nós fazemos com que pareça mais real e mais importante do que ela é.

Allesandra acompanhou o olhar de Jan deslizar de Semini para os demais à mesa. O archigos estava furioso, com as sobrancelhas baixas como nuvens carregadas sobre aqueles olhos cativantes; Francesca estava boquiaberta, como se estivesse atordoada e sem palavras diante da insolência do garoto; ela soltou uma tosse de desdém e abanou uma mão parecida com uma garra na direção de Jan, como se afastasse a praga de um mendigo. Fynn encarava a toalha de mesa diante dele. — É melhor não dizer e não fazer nada — repetiu Jan no silêncio, com a voz mais fraca e vacilante agora — ou o que aconteceu vai virar um sinal. Todos os senhores transformarão o boato em um sinal.

Allesandra tocou no braço do filho: foi o que ela teria dito, embora de uma maneira menos diplomática. — Muito bem dito — sussurrou Allesandra para Jan. Ele talvez tivesse sorrido momentaneamente; era difícil dizer.

— Então, se você fosse o hïrzg, não faria nada? — falou Francesca. — Então agradeçamos a Cénzi por você não ser, criança.

O que fez Jan erguer a cabeça novamente e responder — Se eu fosse o hïrzg, pensaria que esses rumores não valem o meu tempo. Há eventos mais importantes que eu consideraria, como a morte da archigos Ana, ou a guerra nos Hellins que consome os recursos e a atenção de Nessântico, e o que tudo isso significa para Firenzcia e a Coalizão.

Francesca olhou com desdém novamente. Ela voltou a atenção para a sopa, como se o comentário de Jan não merecesse ser levado em consideração. Semini balançava a cabeça e olhava feio para Allesandra como se ela fosse diretamente responsável pela impertinência de Jan.

Allesandra imaginou que Fynn estivesse irritado sob a carranca que fazia, mas o irmão a surpreendeu e quebrou o silêncio incômodo. — Eu acho que o jovem está certo — disse Fynn, que deu para Jan um sorriso distorcido pela cicatriz no rosto. — Eu odeio pensar em ouvir os boatos por outro instante sequer, mas... você está certo, sobrinho. Se não fizermos nada, a boataria sumirá em uma semana, talvez até mesmo em alguns dias. Talvez eu devesse tornar você meu novo conselheiro, hein?

Jan ficou radiante com o elogio de Fynn enquanto Francesca se recostou abruptamente com a testa franzida. Semini tentou parecer despreocupado. — Você criou um jovem inteligente, irmã — falou Fynn para Allesandra. — Ele é tão ousado quanto eu gostaria que meu próprio filho fosse. Devo conversar mais com você, Jan, e sinto muito por não conhecê-lo tão bem quanto um onczio deveria. Vamos começar a retificar isso amanhã. Vamos caçar depois das reuniões da tarde, eu e você. Que tal?

— Sim! — disparou Jan, de repente criança novamente, recebendo um presente inesperado. Então ele pareceu perceber como soou jovem e concordou solenemente com a cabeça. — Eu gostaria muito, onczio Fynn — falou com a voz grave. — Matarh?

— O hïrzg é muito gentil — disse Allesandra sorrindo enquanto a suspeita martelava em sua cabeça. Primeiro o vatarh, agora Fynn. O que o desgraçado pensa que vai ganhar com isso? Será que está apenas tentando me aborrecer ao roubar a afeição de Jan? Estou perdendo meu filho, e quanto mais forte tento me agarrar a ele, mais rápido ele vai escapar... — Parece uma ideia maravilhosa — falou ela para Jan.

 

A Pedra Branca

HAVIA ASSASSINATOS FÁCEIS, e havia os difíceis. Este foi um dos fáceis.

O alvo era Honori co’Belgradi, um comerciante de mercadorias das Magyarias, e um mulherengo que cometera o erro de dormir com a esposa da pessoa errada: a esposa do cliente da Pedra Branca.

— Eu vi o sujeito cobrir minha mulher — disse o homem para Pedra Branca com a voz trêmula de raiva diante da lembrança. — Eu o vi possuir minha esposa como um animal, e eu a ouvi chamar seu nome no momento de desejo. E agora... agora ela está grávida, e eu não sei se a criança é minha ou... — Ele se interrompeu, com a cabeça baixa. — Mas vou garantir que ele não faça isso com nenhum outro marido, vou garantir que a criança jamais seja capaz de chamá-lo de vatarh...

Relacionamentos e desejo eram responsáveis por metade do trabalho da Pedra Branca. Ganância e poder respondiam pelo resto. Jamais faltou gente à procura da Pedra Branca; se a pessoa precisava encontrá-la, ela achava um jeito.

Honori co’Belgradi era um sujeito com hábitos, e hábitos geravam uma presa fácil. Pedra observou o comerciante por três dias, e o ritual do homem jamais variava por mais que uma marca da ampulheta. Ele fechava a loja em Ville Serne, uma cidade a meio dia de cavalgada ao sul de Brezno, depois ia a uma taverna na esquina da próxima rua. Ficava por lá até por quatro viradas da ampulheta, após a Terceira Chamada, e então se dirigia aos aposentos onde a mulher — a esposa do cliente da Pedra — esperava pela aventura noturna.

A caminho daqueles aposentos, Honori passava pelo beco onde a Pedra esperava agora. Ela já era capaz de ouvir os passos no ar fresco da noite. — Honori co’Belgradi — chamou a Pedra quando a silhueta do homem passou pela boca do beco. O comerciante parou com uma expressão cautelosa, depois olhou com muito interesse quando a Pedra ficou sob a luz das lâmpadas mágicas da rua.

— Você me conhece? — perguntou co’Belgradi, e a Pedra deu um sorriso gentil.

— Conheço. E queria conhecer melhor, meu amigo. Você e eu, nós temos um negócio para acertar.

— O que quer dizer? — indagou co’Belgradi quando a Pedra se aproximou. Tão fácil... A apenas um passo de distância. A uma facada de distância, e co’Belgradi inclinou a cabeça, intrigado.

— Assim — respondeu a Pedra. Ela olhou para a rua, viu que ninguém observava, e deu um tapinha no ombro de co’Belgradi, como se o homem fosse um amigo que não via há anos. Ao mesmo tempo, a mão com a adaga envenenada cravou a arma com força debaixo das costelas do comerciante em direção ao coração. Co’Belgradi soltou um grito sufocado pelo sangue, e de repente o corpo ficou pesado contra a compleição atlética do assassino. A Pedra meio arrastou, meio carregou o moribundo co’Belgradi para dentro do beco e deitou o corpo rapidamente no chão. Os olhos do comerciante estavam abertos, ela tirou duas pedras de um bolso na capa: ambas brancas sob a luz fraca do beco, embora uma estivesse lisa e polida como se fosse muito manuseada. O assassino colocou as pedras sobre os olhos abertos de co’Belgradi e pressionou fundo dentro das órbitas. A pedra do olho esquerdo foi deixada ali; já a pedra reluzente, branca e lisa que estava sobre o olho direito (o olho do ego, aquele que guardava a imagem do rosto que o olho viu no último momento), esta a Pedra Branca pegou novamente e recolocou em uma bolsinha de couro pendurada no pescoço.

— E agora eu possuo você para sempre — sussurrou a aparição conhecida como a Pedra Branca.

Um instante depois, não havia mais ninguém vivo no beco, apenas um cadáver com uma pedrinha sobre o olho esquerdo: um contrato cumprido.


??? SUBSTITUIÇÕES ???

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Jan ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ESTA ERA UMA daquelas noites ruins.

Cada tomada individual de fôlego era uma luta. Audric tinha que forçar o ar velho e inútil para fora dos pulmões, e o peito doía a cada inalação, mas ele nunca conseguia aspirar ar suficiente. O kraljiki sentou-se na cama; sentiu que, se ficasse deitado, poderia sufocar. Os curandeiros do palácio agitaram-se em volta dele, com expressões de muita preocupação nos rostos — ainda que por medo do que poderia acontecer com eles se o kraljiki morresse sob seus cuidados —, mas Audric prestou pouca atenção neles, a não ser quando tentavam fazer com que tomasse uma poção ou inalasse a fumaça de alguma erva desagradável. Os braços estavam marcados por novas casquinhas; os curandeiros quase o deixaram sem sangue, e um deles estava abrindo um novo corte, mas Audric sequer fez uma careta. Seaton e Marlon, os camareiros de Audric, entravam e saíam correndo do quarto para pegar o que quer que os curandeiros pedissem a eles.

Toda a atenção de Audric estava voltada para a guerra com o fôlego. O mundo fora reduzido à batalha por cada inalação, pela tentativa de aspirar ar suficiente para os pulmões a fim de permanecer consciente. Os limites da visão ficaram escuros; ele apenas conseguia enxergar o que estava diretamente à sua frente. Sentia pouca coisa a não ser a eterna dor no peito.

Audric prestou atenção ao quadro da kraljica Marguerite sobre a lareira ao pé da cama. A mamatarh devolvia o olhar, o rosto pintado era completamente realista, como se a moldura dourada fosse uma janela por trás da qual a kraljica estivesse sentada. Ele podia jurar que a viu se mover ligeiramente contra o pano de fundo do Trono do Sol, que o próprio trono pintado reluzia com a luz do Ilmodo como o verdadeiro fazia sempre que Audric se sentava nele.

A archigos Ana nunca dera mais do que um olhar amargo para o quadro, que sempre parecia capturar o olhar de outros visitantes ao quarto de Audric. Uma vez, ele perguntou para a archigos por que ela dava tão pouca atenção à obra-prima. A archigos apenas balançou a cabeça e disse — Tem coisa demais de sua mamatarh naquele quadro. Eu sofro por vê-la presa ali. — Então Ana franziu a testa. — Porém, seu vatarh adorava a pintura, por seus próprios motivos.

Marguerite encarava Audric agora com seu olhar penetrante e avaliador. Ele esperou que o acesso passasse. A crise passaria; sempre passara. Precisava passar. A boca de Audric moveu-se em silêncio ao rezar para Cénzi para que o acesso passasse, para que o gigante invisível montado em seu peito e que amassava seus pulmões se levantasse lentamente e fosse embora, e que ele pudesse respirar facilmente outra vez.

Isso aconteceria. Precisava acontecer.

Sua mamatarh parecia acenar com a cabeça, como se concordasse.

Enquanto encarava o quadro, Audric mais ouviu do que viu o regente ca’Rudka irromper no quarto e afastar os curandeiros. Ele debruçou-se sobre a cama e afastou a fumaça desagradável dos incensários. — Tirem essas coisas daqui — rosnou Sergei. — A archigos Ana disse que a fumaça piora a respiração do kraljiki em vez de melhorar. E saiam daqui vocês também. — Os curandeiros afastaram-se entre murmúrios, dedos ensanguentados e barulho de frascos, e deixaram o regente sozinho com Audric. Não, não sozinho... Havia outra pessoa com ele. Relutantemente, Audric tirou o olhar do quadro e cerrou os olhos na escuridão.

O esforço provocou um gemido.

— Archigos... Kenne... — Cada palavra saiu depois de um fôlego, acompanhada por uma arfada agitada de ar; ele não conseguia fazer melhor do que isso.

— Kraljiki — falou o archigos. — Por favor, não se mexa. Eu vim rezar com o senhor. — Audric viu o archigos Kenne olhar com preocupação para o regente. — A archigos Ana tinha uma... relação especial com Cénzi que infelizmente poucos ténis conseguem igualar, mas farei o que for possível. Deite-se com o máximo de conforto que conseguir. Feche os olhos e não pense em nada além da respiração. Concentre-se apenas nisso...

A respiração estava rápida e ofegante. Ele sentiu o solavanco brusco do coração contra o espaço restrito das costelas. Só conseguiu tomar um gole mínimo do precioso ar. Audric fechou os olhos quando o archigos começou a rezar. A archigos Ana, quando o visitava, também rezava e colocava as mãos com delicadeza em seu peito. Era como se Audric pudesse senti-la dentro dele. O kraljiki ouvia a voz de Ana dentro da cabeça e sentia o poder do Ilmodo queimar no peito, consumir os bloqueios e permitir que ele respirasse plenamente outra vez. Ana envolvia Audric naquele calor interior, sua voz entoava e ao mesmo tempo falava dentro de sua cabeça. — Você vai ficar bem, Audric. Cénzi está com você agora, e Ele fará sua saúde melhorar novamente. Apenas respire devagar: respire fundo e bem. Isso, assim... — Dentro de poucos minutos, ele respiraria naturalmente e com facilidade mais uma vez, um alívio que, no início, durava meses, mas recentemente durava apenas algumas semanas.

Agora, com Kenne, Audric só ouvia as preces meio sussurradas pelo homem com os ouvidos. Não havia nada dentro. Não havia calor que se espalhava pelo peito. Havia apenas as preces de um velho, ditas por uma voz vacilante do lado de fora de Audric. Não havia sensação do Ilmodo, nem sinal do poder de Cénzi — ou talvez houvesse, só que era tão fraco que Audric mal conseguia sentir. Talvez houvesse calor, talvez a expansão e a contração dos pulmões estivessem um pouco mais fáceis. Audric tentou respirar fundo, mas o esforço provocou uma tosse seca e espasmódica que fez com que dobrasse o corpo na cama. Ele abriu os olhos, e viu Marguerite franzir a testa no quadro. Audric viu as gotículas de sangue que espirraram sobre o lençol.

— Você tem que lutar contra isso, Audric. Se você morrer, nossa linhagem morre, e com ela nosso sonho para Nessântico e os Domínios... — Ele viu os lábios pintados de Marguerite se moverem, ouviu a voz que sempre imaginou que ela tivesse. — Você tem que lutar contra isso. Eu vou ajudar você...

Sergei correu rapidamente para o lado de Audric, que sentiu a mão forte do regente em suas costas e ouviu sua voz chamar Marlon com rispidez. Deram um pano molhado em água fria para o kraljiki. Audric pegou com gratidão e levou o pano aos lábios. Sentiu o gosto doce da água. E sim, ele conseguia respirar um pouco melhor. — Obrigado, regente — falou o kraljiki. — Estou muito... melhor agora... archigos. — A própria voz soou distante e abafada, como se alguém meio que cobrisse seus ouvidos. Era a voz de Marguerite que soava mais claramente.

— Escute o que digo, Audric. Eu vou ajudar você. Escute a sua mamatarh...

O archigos Kenne assentiu com a cabeça, mas Audric apenas viu a dúvida nos olhos do homem. — Sinto muito, kraljiki. A archigos Ana... Eu sei que ela podia fazer mais pelo senhor.

Audric esticou o braço para tocar a mão do homem. A pele de Kenne era fria e seca como papel velho. — Eu vou ficar bem — disse o kraljiki. — Acho que... encontrei a solução.

O retrato de Marguerite dirigiu um sorriso sutil para o neto, e ele devolveu o gesto.

— Você não pode morrer porque tem muita coisa a fazer...

— Eu não posso morrer porque tenho muita coisa a fazer — falou Audric para ele, para os dois. Foi tanto uma promessa quanto uma ameaça.

 

Varina ci’Pallo

À ÉPOCA EM QUE ELA se juntou aos numetodos, quando era apenas uma humilde iniciada na sociedade deles e tinha acabado de conhecer Mika e Karl, a Casa dos Numetodos era um local decadente no centro do Velho Distrito, oculto pela pobreza e sujeira dos prédios do entorno.

Agora, a Casa dos Numetodos ocupava um belo prédio na margem sul, com um jardim, piso lustroso do lado de fora e portões que davam para a Avi a’Parete — um presente da archigos Ana e (com mais relutância) do kraljiki Justi pela ajuda dos numetodos em acabar com o cerco firenzciano à cidade em 521. As acomodações mais espaçosas e luxuosas ajudaram a tornar os numetodos mais aceitáveis para os ca’ e co’, mas também os deixou mais visíveis. No passado, eles reuniam-se em segredo, e a maioria dos integrantes mantinha a afiliação em segredo. Isso acabou. Varina não tinha dúvidas de que todos aqueles que cruzavam os portões eram observados pelo utilino e pela Garde Kralji, que constantemente patrulhavam a Avi, e de que a informação era transmitida ao comandante — e dele seguia para Sergei ca’Rudka, o Conselho dos ca’ e do kraljiki.

Os numetodos eram conhecidos — o que não era problema, desde que suas crenças fossem toleradas. Porém, com a morte de Ana, Varina não tinha mais certeza de quanto tempo essa situação duraria. Seus receios a levaram de volta à pesquisa...

Apesar dos rumores paranoicos entre os fiéis conservadores, grande parte da pesquisa dos numetodos não tinha nada a ver com magia: eles realizavam experiências de física e biologia; criavam belos e elegantes teoremas matemáticos; pesquisavam medicina; exploravam alquimia; examinavam livros empoeirados e cavavam antigos sítios arqueológicos para recriar a história. Mas, para Varina, era a magia que a fascinava. O que a intrigava em particular era como a Fé, os numetodos e os ocidentais abordavam a conjuração de feitiços.

Os numetodos provaram há muito tempo — apesar da negação irritada e por vezes violenta da fé concénziana — que a energia do Segundo Mundo não precisava de crença em deus algum. Podia ser chamada de “Ilmodo”, “Scáth Cumhacht” ou “X’in Ka.” Não importava. Essa compreensão dissolveu quaisquer resquícios de fé que Varina tivesse quando se juntou aos numetodos.

“Conhecimento e compreensão podem ser moldados somente pela razão e lógica; só que não é algo fácil ou simples. As pessoas criam deuses para explicar o mundo de modo que não tenhamos a responsabilidade de descobrir as coisas por nós mesmos.” Foi o que ela ouviu Karl dizer em uma palestra há anos, quando ela considerou se juntar aos numetodos pela primeira vez. “A magia é uma manifestação tão religiosa quanto o fato de que um objeto solto da mão cairá no chão.”

Sim, tanto os ténis da fé concénziana quanto os ocidentais usavam cânticos e gestuais para criar a estrutura do feitiço, e, no entanto, cada um deles tinha uma “crença” diferente como base, que permitia que dominassem a energia da magia. O que os numetodos perceberam foi que os cânticos e gestuais usados pelos feiticeiros eram apenas uma “fórmula”. Uma receita. Nada mais. Falar essa sequência de sílabas com aquele conjunto de movimentos daria nesse resultado.

Mas os ocidentais... Varina não conheceu Mahri, o Maluco, mas Karl e Ana conheceram, e as histórias dos nahualli ocidentais dos Hellins apenas confirmavam o que eles disseram sobre Mahri. Os nahualli eram capazes de colocar os feitiços dentro de objetos, que depois podiam ser disparados por uma palavra, um gesto ou uma ação. Nem os ténis, nem os numetodos conseguiam fazer isso. Os feiticeiros ocidentais invocavam os próprios deuses para os feitiços, assim como os ténis faziam com os seus, mas Varina tinha certeza de que os deuses ocidentais eram tão imaginários e desnecessários quanto Cénzi e seu moitidi.

Se ela conseguisse aprender os métodos dos ocidentais, se fosse capaz de encontrar a fórmula das palavras e gestos corretos para colocar o Scáth Cumhacht dentro de um objeto inanimado, então ela poderia começar a replicar o que Mahri foi capaz de fazer. Ela vinha trabalhando nisso, de tempos em tempos, há anos. Agora a preocupação movia Varina mais do que nunca: preocupação com o significado da morte de Ana para os numetodos; com a imensa tristeza de Karl, que abalava Varina como se fosse sua.

Se ela não conseguia entender por que as pessoas faziam coisas tão terríveis umas com as outras, pelo menos tentaria compreender isso.

Varina estava em um cômodo quase sem mobília, nos níveis inferiores da Casa. Na mesa diante dela havia uma bola de vidro que Varina comprara de um vendedor no Mercado do Rio, pousada em um ninho de pano para que não rolasse. A bola era feita inabilmente: havia uma linha de pequenas bolhas de ar no interior e o vidro ao redor dela estava manchado e marrom, mas Varina não se importava — ela tinha sido barata. Varina entoou e mexeu as mãos: um simples e fácil feitiço de luz, um dos primeiros truques ensinados a um iniciado numetodo. Moldar o feitiço de luz não exigia esforço, mas colocá-lo dentro do vidro era bem, bem mais difícil. Era como empurrar um fio de cabelo por uma parede de pedra. Ela sentiu a fadiga minar sua força. Varina ignorou a sensação e concentrou-se na bola de vidro à sua frente, tentou imaginar o poder do Scáth Cumhacht entrando no vidro da mesma forma que ela teria colocado a energia dentro da própria mente, visualizou a luz potencial depositada em volta daquelas bolhas bem no fundo do vidro e colocou uma palavra ali que acionaria o feitiço.

O encantamento terminou; Varina abriu os olhos. Seus músculos tremiam como se ela tivesse corrido quilômetros ou levantado pesos por uma virada da ampulheta. Ela teve que fazer um esforço para continuar de pé. A bola estava apoiada na mesa, e Varina permitiu-se dar um sorrisinho. Agora, se...

A bola começou a vibrar sem ser tocada. Varina deu um passo para trás quando ela soou como uma taça de vidro batida por uma faca, houve um faiscar súbito de uma brilhante luz amarela e o globo estilhaçou-se. Ela sentiu uma lasca atingir seu braço erguido e gritou.

— Você está bem? — Varina escutou a voz atrás dela na porta: Mika. O líder dos numetodos entrou rapidamente no aposento, enquanto balançava a cabeça cada vez mais careca e esfregava a barba por fazer no queixo. — Você está sangrando, e parece que não dorme há uma semana. — Ele puxou uma cadeira até a mesa e ajudou Varina a se sentar.

Ela ergueu o braço, que parecia tão pesado quanto um bloco de mármore do Palácio do Kraljiki, e examinou o corte no antebraço. Era comprido, mas não fundo, e Varina fez uma careta ao puxar uma lasca de vidro da ferida. Um filete de sangue escorreu no braço próximo à mão, que ela ignorou. — Droga. — Varina fechou os olhos, depois abriu de novo com esforço para olhar a mesa: o globo havia se partido praticamente ao meio na linha de bolhas, e o pano de apoio estava cheio de cacos. — Eu cheguei tão perto.

— Eu estava vendo — disse Mika, que deu uma olhadela para o globo quebrado. — Pensei que você finalmente tivesse conseguido.

— Eu também pensei. — Varina balançou a cabeça. — Mas estou cansada demais para tentar novamente.

— Melhor assim. Eu desci para lhe dizer: Karl voltou para o próprio apartamento.

Varina inclinou a cabeça, intrigada. — Eu pensei que ele ficaria com você, Alia e as crianças por enquanto.

Mika deu de ombros. — Ele disse que estava bem, que precisava retomar a própria vida. Que precisava retomar os compromissos numetodos e o trabalho como embaixador.

— Você não parece acreditar nisso.

— Eu acho... — Mika cerrou os lábios finos. — Estas são desculpas. Karl está magoado e com raiva, e eu não tenho certeza do que ele vai fazer. Acho que Karl precisa de alguém ao lado dele, para conversar se ele quiser, para garantir que esteja bem e que não faça nenhuma estupidez. A morte de Ana abalou Karl mais do que ele admite.

Mika ficou em silêncio, e Varina sentiu que ele esperava por uma resposta. Mas estava difícil simplesmente manter a cabeça erguida. O sangue pingou do dedo para o chão; as metades partidas do globo de vidro reluziam de maneira acusadora para ela sob a luz da lamparina. — Acho que posso mandar Karoli ou Lauren visitá-lo — disse Mika em meio ao silêncio.

— Eu vou. Apenas dê-me alguns minutos. Tenho que me arrumar.

Mika sorriu e falou — Deixe-me ajudar você.

 

Jan ca’Vörl

JAN GOSTAVA DE FYNN. Ele não tinha certeza do que sua matarh pensaria a esse respeito.

Allesandra contou para o filho que ela nunca conheceu Fynn, que o irmão nasceu poucos meses depois que ela foi sequestrada pela archigos Ana da tenda do hïrzg Jan no campo de batalha. Quando era criança, Jan não tinha compreendido todas as implicações dessa situação; agora, ele achava que finalmente começara a entender a dinâmica do relacionamento entre irmã mais velha e irmão caçula, distorcido e desvirtuado pelo orgulho e pela vaidade do vatarh de Allesandra e Fynn. Ele entendia que sua matarh jamais se permitiria gostar de Fynn, nunca poderia tratá-lo como irmão, jamais confiaria nele.

Mas ele gostava do sujeito, seu onczio.

Fynn mandou um bilhete para Jan imediatamente depois da Segunda Chamada, para convidá-lo a se juntar a ele na reunião da tarde. Jan sentou-se ao lado de Fynn, que se inclinava para sussurrar comentários irônicos enquanto os vários ministros e conselheiros colocavam o novo hïrzg a par das novidades sobre a atual situação política. Helmad co’Göttering, comandante da Garde Brezno, relatou que houve um pequeno conflito com forças leais de Tennshah a leste do lago Cresci, facilmente debelada. (— Você devia ver como eles correm como cães açoitados quando veem soldados de verdade cavalgando entre suas cabanas. Todos eles têm medo de um bom aço firenzciano — disse Fynn baixinho no ouvido de Jan. — Minha própria espada tem manchas de sangue de incontáveis dezenas de soldados de Tennshah. No outono, se quiser, podemos passear pela região, e talvez colocar alguns desses rebeldes para correr nós mesmos.)

O starkkapitän Armen ca’Damont da Garde Civile firenzciana atualizou as informações sobre a guerra dos Domínios nos Hellins, a qual, se tudo o que o starkkapitän disse fosse verdade, não estava indo bem para os Domínios e o kraljiki. (— Os Domínios não sabem guerrear de verdade, Jan. Eles dependeram de Firenzcia para isso por tempo demais e esqueceram. Se nós pudéssemos mandar nossa Garde Civile e um batalhão de bons Lanceiros Vermelhos para lá por um mês, debelaríamos esses ocidentais de uma vez por todas.)

O archigos Semini especulou sobre quem o Colégio A’téni poderia nomear como novo archigos “daquela Fé falsa e desprezível em Nessântico” e teceu um longo e tedioso comentário sobre cada a’téni das principais cidades dos Domínios e seus relativos pontos fortes e fracos. Ele alegou que o a’téni ca’Weber de Prajnoli se tornaria o próximo archigos em Nessântico, em última análise. (— E, no fim das contas, não importa quem eles escolham, portanto todo esse esforço e conversa fiada é uma perda do nosso tempo, não é?)

Havia relatórios sobre a falta de comida na Magyaria Oriental (— Você comeu o suficiente no almoço, não é?), sobre práticas comerciais injustas entre Firenzcia e Sesemora (— Você acha isso tão chato quanto eu?), sobre o valor relativo das solas firenzcianas contra as solas dos Domínios (— Por Cénzi, acorde-me quando este aí terminar de falar, pode ser, sobrinho?). No fim, Jan já não escutava mais. Ao dar uma olhadela para Fynn, viu que os olhos do onczio também perderam o foco. Os dedos do novo hïrzg tamborilavam no tampo da mesa com impaciência, e ele remexia o corpo inquieto na cadeira. Quando a próxima ministra ficou de pé para dar seu relatório, Fynn ergueu a mão e disse — Chega. Mande-me o relatório que eu lerei. Tenho certeza de que é fascinante, mas meus ouvidos estão prestes a cair pelo uso exagerado, e eu prometi uma caçada ao meu sobrinho. Saiam!

Eles resmungaram baixinho, franziram a testa, mas todos fizeram uma mesura e saíram da sala. O hïrzg fez um gesto para que os criados em pé contra as paredes trouxessem comes e bebes. — Então... — falou Fynn enquanto os dois beliscavam os pães e frios e bebiam o vinho — a vida de um hïrzg é uma delícia, não é? Todo aquele falatório sem parar... Eu entendo por que o vatarh sempre ficava de péssimo humor antes dessas reuniões.

— Eu acho que o archigos Semini estava errado — disse Jan. Ele não tinha certeza por que disse isso; de alguma forma confiou que Fynn fosse dar ouvidos. A matarh sempre deu sermões, como se ela fosse uma professora e ele, o estudante; o vatarh estava mais preocupado com o próprio prazer do que escutar as opiniões do filho. O onczio Fynn, por outro lado, realmente deu ouvidos a ele na noite anterior, durante o jantar, enquanto os demais à mesa teriam preferido que ele ficasse calado. Então, agora, Jan falou o que pensava, apenas com a voz um pouco trêmula. — Ca’Weber não será nomeado archigos. O Colégio vai escolher Kenne ca’Fionta.

Fynn ergueu uma sobrancelha grossa e escura. — Por que você diz isso? Semini pareceu achar que ca’Fionta era o mais fraco do grupo.

— É exatamente por isso — respondeu Jan com mais avidez agora. Ele assinalou os argumentos com a ponta dos dedos. — O archigos Semini presumiu que o Colégio A’téni pensará como ele pensaria e escolherá a pessoa que ele escolheria. Eles não farão isso. O resto dos a’ténis está preocupado nesse momento: o assassinato da archigos Ana fez com que eles vissem que um archigos forte tem inimigos, e os a’ténis também se perguntam por quanto tempo a Fé pode se manter dividida, agora que a archigos Ana está morta. Então, eles escolherão Kenne: porque ele é fraco e porque é mais velho do que qualquer um dos a’ténis. E mesmo que Kenne seja uma má escolha, eles não terão que aguentá-lo por décadas.

Fynn riu. Ele bateu com a borda de sua taça na de Jan. Ao se inclinar na direção do sobrinho, o hïrzg passou um braço parrudo sobre seus ombros. — Muito bem dito, e veremos em breve se você está certo. O que mais anda escondendo? Vamos, você não pode esconder o resto de mim.

Fynn estava sorrindo. Jan sorriu de volta e sentiu apreço pelo homem. — O starkkapitän ca’Damont pode estar certo a respeito da guerra nos Hellins, mas ele não nota a importância da guerra. Com a Garde Civile dos Domínios concentrada naquele conflito e gastando recursos, dinheiro e soldados todo mês, eles não podem se voltar para leste com força alguma. Os Domínios estão em uma posição fraca de negociação contra a Coalizão; em termos militares, eles estão em uma posição ainda pior. Um hïrzg forte pode tirar vantagem disso, de uma forma ou de outra.

Fynn levantou ainda mais as sobrancelhas e deu um abraço apertado nos ombros de Jan. — Por Cénzi, eu deveria fazer de você meu novo conselheiro, sobrinho. Você tem a mente sutil de sua matarh.

Ele abraçou Jan novamente com um braço só, depois desmoronou na cadeira. — Ah! Eu gosto de você, Jan! Isso me faz pensar no que perdi com a minha irmã. — Fynn franziu a testa ao dizer isso e tomou outro gole de vinho. — Você sabia que eu sequer fazia ideia de que tinha uma irmã até mais ou menos os nove anos? O vatarh jamais a mencionou para mim uma vez sequer. Jamais. Não falou o nome dela uma vez que fosse; era como se Allesandra jamais tivesse existido para ele. Então, quando decidiu que finalmente pagaria o resgate por ela, o vatarh sentou-se comigo e me explicou que Allesandra fora levada pela archigos bruxa. Ele não me contou como esse fato acabou com a guerra com os Domínios; isso eu aprendi muito tempo depois. O vatarh sempre foi amargo a respeito daquilo, sua única derrota. Creio que Allesandra era o símbolo daquele fracasso para ele, por isso certamente casou a filha, assim que ela retornou. Eu nunca a conheci realmente...

O hïrzg tomou outro longo gole do vinho e bateu a taça na mesa com tanta força que Jan deu um pulo. O vinho derramou; a base da taça deixou uma mancha em formato de lua crescente na mesa.

— Agora vamos caçar! — declarou Fynn. Ele empurrou a cadeira e ficou de pé. — Ande, sobrinho. Vamos para a Encosta do Cervo.

 

Enéas co’Kinnear

SE ELE ESTAVA MORTO, a vida após a morte não era nada como a que os ténis prometiam aos fiéis.

A vida após a morte de Éneas era iluminada por uma luz fraca e avermelhada e fedia à carne podre e enxofre. O solo onde estava deitado era molhado e duro, com punhos de pedra cutucando suas costas. Os ténis sempre disseram que os males do corpo de uma pessoa seriam curados quando ela finalmente descansasse nos braços de Cénzi, que braços e pernas perdidos seriam restaurados, que não haveria mais dor.

Mas a respiração de Enéas tremeu nos pulmões, e, quando tentou se mover, a agonia fez com que ele berrasse.

Enéas ouviu asas baterem em resposta, pontuadas por grasnidos roucos de alerta. Ele piscou, e a vermelhidão acompanhou as pálpebras. Ergueu lentamente uma mão ferida e esfregou os olhos. O filtro vermelho clareou um pouco, e Éneas percebeu que olhava para uma paisagem iluminada pelo luar através de uma película viscosa de sangue, com a cabeça no solo lamacento. Uma montanha marrom erguia-se a um metro dedo de distância. Ele piscou novamente e franziu os olhos; era um cavalo caído e morto, seu cavalo de guerra. Cénzi, o Senhor me deixou vivo. Quando se deu conta disso, duas patas com garras apareceram no cume da montanha equina, acompanhadas por outro grasnido irritado, e Enéas ergueu o olhar para ver uma das aves carniceiras dos Hellins, a criatura que os soldados chamavam de estripadores: pássaros feios com uma envergadura da altura de dois homens ou mais, grandes bicos curvos em um rosto sem penas e branco como um fantasma, olhos sem expressão, como contas negras, e garras curvas para abrir os cadáveres que eles preferiam comer. Não havia nada como esses bichos nos Domínios.

O pássaro olhou fixamente para Enéas, como se observasse uma bela refeição posta diante de si. O o’offizier apoiou-se nos cotovelos; era o mais próximo que conseguiria chegar de se sentar. Irritado, o pássaro guinchou e foi embora voando. Enéas sentiu o vento desagradável provocado pelas asas.

Não morri. Não ainda. Louvado seja Cénzi.

Ele tentou se lembrar de como chegou ali, mas a cabeça estava confusa. Lembrava-se de ter falado com o a’offizier ca’Matin e do início da investida, a corrida morro abaixo em direção à força ocidental. Então... então...

Nada.

Enéas balançou a cabeça para desprender a memória. O gesto foi um erro. O mundo ao redor girou, a vermelhidão voltou, e ele sentiu uma pontada de dor nas têmporas. Ele se equilibrou antes que caísse no chão novamente e esperou que a terra parasse de girar. Novamente, fez um esforço para ficar sentado e tocou a cabeça com hesitação; o cabelo estava empastado com sangue seco e os dedos sentiram o contorno irregular de um corte comprido e profundo. Enéas começou a passar mal. Deixou a mão cair, fechou os olhos e respirou fundo várias vezes até que a náusea passasse, enquanto recitava a Prece da Aceitação para se acalmar. Abriu os olhos novamente e olhou em volta com cuidado.

Havia estripadores por toda parte; sob o fraco luar, o campo parecia vivo com eles e o solo corcovado com os morros escuros dos corpos dos companheiros de Enéas e seus cavalos caídos. O som repugnante, úmido e rascante dos pássaros comendo os corpos era um barulho que atormentaria seus pesadelos para sempre. Bem ao longe, abaixo do declive onde estava sentado, Enéas viu o brilho de uma fogueira, e ao redor dela as silhuetas escuras de gente se mexendo. Havia outro som, mais fraco: cantoria?

As figuras recortadas pelas chamas usavam acessórios com penas na cabeça, Enéas viu. Eles eram ocidentais, então. “Tehuantinos”, como se chamavam. Todos os corpos ao redor usavam os uniformes com detalhes dourados de Nessântico, agora pretos pelo sangue e pelo luar mortiço em vez do azul reluzente que deveriam ter.

Nós perdemos. Fomos massacrados aqui, e as pessoas em Munereo podem não saber o resultado ainda. Cénzi, é por isso que o Senhor me salvou, para que eu pudesse avisá-los...?

Enéas tentou se mexer; as pernas não quiseram cooperar, e ele percebeu que uma delas ainda estava presa debaixo do seu cavalo. Com o máximo de silêncio possível, Enéas empurrou a carcaça com a perna livre, e enfim a perna se soltou. O tornozelo estava inchado e sensível; Enéas não tinha certeza se poderia se apoiar nele.

O o’offizier encontrou a espada ao seu lado meio enterrada na lama. Enfiou a lâmina imunda na bainha presa ao cinto. Com uma careta, rastejou na direção das chamas, meio que se arrastando em volta do cavalo.

Parte de Enéas gritou em alerta. Ele ia na direção do inimigo; os tehuantinos o matariam se o vissem. Todos os a’offiziers contavam como os ocidentais percorreram o campo de batalha após o combate no lago Malik, como eles mataram todos os gardai que ainda estavam vivos mas aleijados ou gravemente feridos. Aqueles que estavam apenas levemente feridos foram levados como prisioneiros. Os rumores sobre o que os ocidentais tinham feito com eles eram muito, muito piores.

A fogueira — imensa e furiosa — estalava no pé da ladeira, e reunidos ao redor estavam os ocidentais: milhares deles, enquanto fogueiras menores pontuavam a paisagem depois do grande fogaréu onde o inimigo estava acampado. Enéas viu um grupo de cavalos atrelados de um lado da fogueira, um pouco distante dos ocidentais sentados em volta das chamas.

Se ele não podia andar, ainda podia cavalgar.

A jornada pareceu levar séculos. As estrelas deram voltas pela Estrela Velejante, a lua chegou ao ápice e começou a descer, os estripadores continuaram o festim sangrento. Exausto, Enéas descansou atrás da cobertura de uma pilha de toras. Os cavalos relincharam perto dali; ele sentiu o cheiro dos animais e ouviu seus movimentos agitados. A cantoria estava mais alta agora, uma melodia grave e dissonante, as palavras que os ocidentais cantavam eram estranhas e desconhecidas: mil vozes, todas cantando juntas. O zumbido monótono era alto e enlouquecedor; a música vibrava no peito e parecia fazer tremer o próprio solo. Ele conseguiu ver os ocidentais: a pele bronzeada como o povo de Namarro, a armadura de bambu com anéis de ferro que tilintavam enquanto eles cantavam e se agitavam. As imensas toras da pira desmoronaram e dispararam fagulhas para o alto com um ribombar.

Um ocidental à frente das fileiras ficou de pé e avançou. Ele ergueu os braços nus e musculosos; como os demais, o homem usava um elmo de bambu decorado com penas compridas e reluzentes. Havia um grande disco prateado e amassado sobre o peito, pendurado no pescoço por uma corrente, e pintado com figuras: o que identificava o homem como um offizier ocidental. Ele parou de cantar ao proclamar alguma coisa em voz alta. Mais dois guerreiros ocidentais saíram da escuridão do outro lado da fogueira e arrastando com eles a figura ensanguentada de um homem. Sua cabeça levantou-se quando os soldados se aproximaram da luz da fogueira, e, mesmo àquela distância, Enéas reconheceu o a’offizier ca’Matin. Ele estava nu até a cintura e agora era forçado a ficar de joelhos em frente ao offizier ocidental. Enéas ouviu ca’Matin rezar para Cénzi, com a face erguida para as fagulhas, as estrelas e a lua; para qualquer coisa, menos para o ocidental.

O ocidental falava com ca’Matin enquanto retirava um apetrecho estranho de uma bolsinha no cinto. Enéas apertou os olhos para tentar ver o que era no momento em que o offizier ergueu o objeto para mostrá-lo às tropas reunidas. Um cano curto e curvo como o chifre de um touro de cor marfim reluziu; o apetrecho tinha um cabo de madeira. O offizier ofereceu o objeto para ca’Matin com o cabo voltado para frente. Quando ca’Matin o pegou, com mãos visivelmente trêmulas e uma expressão de dúvida, o guerreiro virou o chifre de marfim — Enéas ouviu um nítido clique metálico — e deu um passo para trás. Ele fez um gesto como se virasse o apetrecho, depois como se tocasse a ponta do chifre no abdômen. Ca’Matin balançou a cabeça e o offizier ocidental suspirou. Sua expressão parecia quase solidária ao pegar o instrumento e virá-lo nas mãos de ca’Matin. Ele fez um gesto de apoio com a cabeça ao empurrar as mãos de ca’Matin para trás. O chifre tocou no estômago de ca’Matin.

Houve um clarão que iluminou toda a paisagem como se fosse um raio, e ecoou um trovão estrondoso que abafou o grito involuntário de Enéas e fez os cavalos relincharem nervosos e lutarem contra as amarras. Ca’Matin escancarou a boca e os olhos, embora a expressão parecesse estranhamente estática para Enéas, como se no momento final Cénzi tivesse tocado o a’offizier com Sua glória.

Ca’Matin desmoronou, e o apetrecho caiu de suas mãos. O estômago era uma cavidade sangrenta, como se tivesse sido rasgado por um punho com garras. Entranhas e sangue estavam espalhados pelo chão debaixo do homem, bem como nas pernas dos ocidentais em volta dele. O offizier ocidental levantou as mãos novamente, e a cantoria recomeçou. Com uma estranha reverência, os dois soldados que trouxeram ca’Matin até a fogueira envolveram o corpo em um pano tingido com cores intensas dispostas em padrões geométricos. Eles entraram correndo nas sombras com o cadáver embrulhado.

Enéas forçou-se a andar novamente, agora mais desesperadamente. Ele não sabia que feitiçaria fora feita com ca’Matin, mas tinha que dar um jeito de voltar para Munereo: para avisá-los. Ajude-me a fazer isso, Cénzi... Enéas começou a rastejar na direção dos cavalos. Se conseguisse erguer o corpo e jogar a perna ferida por cima... Os ocidentais poderiam persegui-lo, mas Enéas conhecia esse terreno tão bem quanto eles, talvez até melhor, e seria encoberto pela noite.

Ele chegou aos cavalos agora. Eram cavalos de guerra capturados de Nessântico, usavam os uniformes que ele conhecia tão bem e, mais importante, ainda estavam selados. Eram mais lentos do que as montarias dos ocidentais, mas mais vigorosos. Se Enéas conseguisse uma vantagem razoável, os cavalos dos ocidentais poderiam se cansar antes de alcançá-lo.

Com a ajuda de Cénzi...

Enéas desamarrou as patas de uma grande égua cinzenta e manteve o animal entre ele e a fogueira. O cavalo de guerra relinchou, mostrando o branco de seus olhos sob o luar. Enéas sussurrou com delicadeza para ela. — Shh... shh... Tudo bem... Você vai ficar bem... — Ele agarrou as correias da sela e ficou de pé, tirando o peso do tornozelo machucado. Pegou as rédeas com uma mão e acariciou o pescoço do animal. — Shh... Quieta, agora... — Ele teria que se equilibrar parcialmente no tornozelo machucado para colocar um pé no estribo; com delicadeza, Enéas pousou o pé no chão e apoiou o peso sobre ele devagar. Mordeu o lábio inferior ao sentir a dor. Ele conseguiria por um instante. Era tudo que era preciso...

Enéas levantou o pé que estava bom e o colocou no estribo. Uma onda de facadas se espalhou do tornozelo até a perna durante o instante em que ele sustentou todo o peso, e a agonia quase fez com que Enéas desmaiasse. Desesperadamente, ele passou a perna machucada sobre a espinha do cavalo e quase gritou quando o tornozelo bateu no outro lado do corpo maciço do animal. Mas agora Enéas estava no cavalo de guerra, meio deitado sobre o pescoço grosso e musculoso da montaria. Ele estalou as rédeas e cutucou com a perna boa. — Devagar — falou para a égua cinzenta. — Muito devagar agora. Quieta...

A égua balançou a cabeça e começou a se afastar dos outros cavalos. Ela voltou para a encosta, longe da luz da fogueira e do acampamento. A cantoria dos ocidentais encobriu o som dos cascos com ferraduras no solo. Assim que entrasse na escuridão novamente, assim que conseguisse colocar a saliência de um daqueles morros entre ele e os ocidentais, Enéas poderia galopar a toda.

Ele começava a ousar pensar que seria possível.

Enéas quase não notou a silhueta que se movia à sua esquerda, um pedaço de escuridão que se levantou subitamente e se atirou sobre ele. Enéas teve apenas um vislumbre do rosto sinistro antes que o homem o acertasse e derrubasse da sela. Um clarão de luz flamejou atrás dos olhos quando Enéas caiu no chão, e ele gritou de dor na perna machucada, que ficou torcida debaixo do corpo. Ele ouviu o cavalo de guerra ir embora a galope, sem cavaleiro, e então a sombra de um guerreiro ocidental com os braços erguidos surgiu sobre ele, e Enéas caiu novamente na escuridão.

 

Allesandra ca’Vörl

— EU GOSTARIA DE ME DESCULPAR pela minha esposa, a’hïrzg. Ela... bem, o assunto da archigos bruxa sempre a aborrece. Elas têm... uma história em comum, afinal. Ainda assim, minha esposa não deveria ter dito o que pensa no jantar ontem à noite, especialmente para a senhora, como anfitriã.

Allesandra assentiu com a cabeça para o archigos Semini. Eles estavam sentados em uma plataforma de observação no alto de uma ladeira atrás da residência particular do hïrzg — o palácio na Encosta do Cervo, bem afastado de Brezno. Os dois olhavam para leste, para a vista de uma campina comprida e larga, de grama alta, cheia de flores silvestres. Lá embaixo, eles enxergavam um grupo de figuras e cavalos: Fynn, Jan e vários outros. De ambos os lados da campina, em uma floresta de abetos altos, tambores ecoavam dos flancos dos morros íngremes e verdejantes que formavam a paisagem: o som dos batedores, que arrebanhavam a presa para a campina e para o hïrzg, à espera.

Atrás de Allesandra, na sacada, criados corriam de um lado para o outro com comes e bebes enquanto preparavam uma mesa comprida para o jantar. Fora isso, Allesandra e o archigos estavam sozinhos; todos os outros privilegiados ca’ e co’ que jantariam com eles naquela noite estavam com o grupo do hïrzg na campina. Allesandra não tinha a menor vontade de ficar tão próxima do irmão por tanto tempo assim. Ela não tinha certeza por que Semini ficou para trás, no palácio — Francesca estava na campina com os demais.

— Por favor, acredite em mim quando digo que não me ofendi, archigos — falou Allesandra. — Embora eu tenha muito mais simpatia pela archigos Ana, entendo que sua esposa se sinta dessa maneira.

Ela deu uma olhadela para Semini e viu o archigos sorrir. — Obrigado. Isso é gentil de sua parte. — O homem olhou com cuidado para os criados, depois abaixou o tom de voz para que eles não conseguissem escutar. — Cá entre nós, a’hïrzg, eu gostaria de ter convencido seu vatarh a nomear a senhora como herdeira. Aquele menino... — ele apontou com o queixo para o grupo na campina — ... seria um starkkapitän perfeitamente adequado para a Garde Civile, mas ele não tem a visão ou a inteligência para ser um bom hïrzg.

— Creio que ouvi o archigos falar em traição. — Allesandra teve a cautela de manter o olhar afastado do archigos e concentrou sua atenção em Jan, a cavalo ao lado de Fynn. Ela perguntou-se se podia acreditar no que ca’Cellibrecca dizia e por que ele declararia tal opinião para ela. O archigos tinha motivos para agir assim, Allesandra tinha certeza: Semini não era um homem de fazer declarações acidentais. Mas qual era o motivo? O que ele queria, e como isso o beneficiaria?

— Será que eu talvez tenha dito o que também está no seu coração, a’hïrzg,
mesmo que a senhora não ouse dizer em voz alta? — respondeu Semini no mesmo sussurro baixo e rouco. O archigos voltou-se para ela. — Meu coração está aqui, neste país, a’hïrzg Allesandra. Eu quero o que é melhor para Firenzcia. Nada mais. Eu dei minha vida a serviço de Cénzi e a serviço de Firenzcia. Eu compartilhava a visão de seu vatarh de que os Domínios deviam ter Brezno, e não Nessântico, como o centro de todas as coisas. Ele quase conseguiu realizar essa visão. Ele teria realizado, estou convencido, se não tivesse sido a feitiçaria herege da archigos bruxa.

Havia ódio na voz de Semini, genuíno e intenso. E também uma estranha satisfação.

O vatarh teria sido bem-sucedido se Ana não tivesse me capturado como refém, se não tivesse me arrancado do vatarh e me usado para terminar a guerra. Enquanto Allesandra permanecesse em Nessântico, enquanto o vatarh se recusasse a pagar o resgate exigido, sua derrota ainda não seria completa. Ainda havia esperança de que os resultados pudessem mudar, e o vatarh levou pouco mais de uma década para perder aquela esperança.

Era o que Allesandra dizia para si mesma. Era o que Ana dizia para ela. Ana jamais falou mal do hïrzg Jan; sempre pintou seu vatarh da maneira mais favorável possível, mesmo quando Allesandra bufava de raiva por ele demorar a pagar o resgate.

Allesandra tomou fôlego e levou a mão à garganta, tocando o globo partido de Cénzi em volta do pescoço.

Ca’Cellibrecca evidentemente interpretou mal o pensamento por trás do gesto. — Ah, vejo que compartilhamos a mesma opinião sobre Ana ca’Seranta. Aquela criatura impediu que os Domínios desmoronassem sob o governo de Justi, aquele tolo perneta. E agora, finalmente, ela morreu, louvado seja Cénzi. — O tom de voz ficou ainda mais baixo quando ele inclinou o corpo e se aproximou de Allesandra. — Agora seria a hora para um novo hïrzg fazer aquilo que seu vatarh não conseguiu... ou seria a hora, se tivéssemos um hïrzg, ou hïrzgin, à altura da tarefa. Alguém que não fosse Fynn. Existem aqueles em Nessântico que acreditam nisso, a’hïrzg. Pessoas que a senhora não suspeitaria que tenham ideias assim.

O clamor dos batedores estava se aproximando no vale abaixo. Os cavaleiros remexiam-se irrequietos, e Allesandra viu Fynn sinalizar para que Jan encaixasse a flecha no arco. — O que você está me dizendo, archigos? — perguntou ela enquanto observava a cena abaixo dos dois.

— Estou dizendo que a senhora atualmente é a a’hïrzg, mas ambos sabemos que esta é uma situação temporária. Mas se Fynn, de alguma forma... — Ele hesitou. Os tambores bateram alto lá embaixo, e agora eles podiam ouvir uma movimentação debaixo da sombra das árvores à direita. — ... não fosse mais hïrzg, então a senhora se tornaria hïrzgin. — Outra pausa. — Como deveria ter sido.

Os tambores e a gritaria ficaram mais altos, e de repente um cervo surgiu da linha de árvores a várias dezenas de passos do grupo do hïrzg. O animal era magnífico, a galhada tinha a envergadura dos braços e ombros de uma pessoa, alcançava facilmente a altura de um homem alto ou mais. A pele tinha um tom deslumbrante de marrom-avermelhado com um toque de branco debaixo da garganta. O cervo saiu do matagal a meio galope, e sentiu o cheiro do grupamento de caça. Allesandra sentiu uma aflição ao ver a bela criatura; ao lado, ela ouviu Semini murmurar — Por Cénzi, olhe aquele animal lindo!

O cervo parou e olhou fixamente para os cavaleiros por um instante antes de dar um pulo enorme e fugir na direção do fim da campina, ao longe. No mesmo instante, eles viram uma flecha ser disparada pelo arco de Fynn, e o estalo da corda do arco chegou com atraso aos seus ouvidos. O cervo caiu com as patas traseiras emaranhadas e a flecha enterrada nas ancas. Então, o animal levantou-se outra vez e começou a correr.

Jan esporeou o cavalo no momento do disparo de Fynn. Ele correu atrás do cervo ferido e controlou a montaria apenas com as pernas enquanto puxava o arco. A toda velocidade, Jan disparou a própria flecha com o cervo a apenas poucos passos de chegar à cobertura da floresta novamente.

O cervo estremeceu quando a flecha penetrou fundo no lado esquerdo do peito. O animal correu por mais alguns passos, quase até a floresta. Pareceu se recuperar, pulou, mas as patas dianteiras esbarraram na tora sobre a qual ele tentou saltar, e caiu.

O cervo ficou caído de lado, as patas debateram-se no matagal, a galhada arrancou punhados de terra com grama do solo. Fynn galopou até onde Jan parou com seu cavalo. Allesandra viu o irmão dar um tapinha no ombro de Jan e depois colocar outra flecha no arco.

Com o disparo de Fynn, o cervo ficou imóvel. Uma vibração distante ecoou do grupamento de caça.

— Seu filho pode ter um físico franzino, mas é um excelente cavaleiro, e arqueiro ainda melhor. Aquilo foi impressionante: atirar daquele jeito em plena perseguição.

Allesandra sorriu. Por um instante, ele quase pareceu com o seu vavatarh ao cavalgar daquela maneira... Lá embaixo, Fynn e Jan desmontaram para se dirigir até o cervo caído. — Atirar flechas a cavalo é uma habilidade ensinada à cavalaria magyariana, e Jan teve excelentes professores.

— Ele também teve uma excelente educação em política. Jan esperou que o hïrzg desse o golpe final. Presumo que a senhora tenha sido sua professora neste quesito.

— Jan sabe o que tem que fazer, mesmo que algumas vezes ignore meu conselho — falou Allesandra. — Geralmente porque fui eu que dei o conselho.

— Filhos na idade dele acham que devem se rebelar contra a família. É natural, e eu não me preocuparia muito com isso, a’hïrzg. Jan vai aprender. E um dia, se ele for o a’hïrzg em vez de apenas outro ca’ em algum ponto da linha sucessória para ser o gyula da Magyaria Ocidental... — Semini deixou a voz sumir gradualmente.

Allesandra finalmente se virou para ele. O archigos agigantava-se sobre ela como um urso vestido de verde. Os olhos escuros do homem encaravam os de Allesandra. Sim, ele tinha olhos em que uma pessoa podia se perder. — Você continua a me dizer estas pequenas insinuações e sugestões, archigos — falou ela baixinho. — Você tem mais do que isso para oferecer ou está tentando me provocar a ponto de eu me revelar? Isso não vai acontecer.

Ca’Cellibrecca concordou devagar com a cabeça e inclinou o corpo na direção dela. A boca ficou tão próxima da orelha de Allesandra que ela sentiu o hálito quente de Semini. Ela arrepiou-se. — Eu tenho uma proposta, a’hïrzg. Se isso for algo que lhe interesse, eu realmente tenho — sussurrou o archigos. Então ele se levantou e aplaudiu na direção da campina. — Os cozinheiros terão alguns belos filés de cervo — disse Semini em voz alta — e haverá uma galhada nova para enfeitar o palácio. Nós devíamos descer e encontrar os bravos caçadores, a’hïrzg. O que a senhora diz?

Ele ofereceu o braço.

Ela se levantou e aceitou.

 

Karl ca’Vliomani

— ONDE VOCÊ ESTÁ INDO? — perguntou Varina para ele.

Karl passou a primeira noite após a morte de Ana na casa de Mika, mas apesar da boa vontade do homem e de sua esposa, Karl achou a casa deles — com os filhos e agora o primeiro neto sempre entrando e saindo — cheia demais de vida e energia. Ele voltou para o próprio apartamento na margem sul. Era Varina que passava lá todo dia, que atormentava os criados e geralmente garantia que Karl estivesse sendo alimentado e cuidado. Ela o deixava sozinho com sua tristeza; estava lá quando ele precisava conversar ou quando Karl simplesmente quisesse sentir a sensação de ter outra pessoa no cômodo. Varina parecia saber quando ele precisava de silêncio e permitia isso. Karl era grato por essa atitude.

Ele lembrou-se de quando mostrou para Ana, pela primeira vez, o que os numetodos conseguiam fazer, há muito tempo. Naquela noite, havia sido Varina, uma recém-chegada sem experiência ao grupo, que Ana tinha visto demonstrando um feitiço. Varina cresceu muito desde então; ela era a segunda em poder depois de Mika dentro da facção dos numetodos na cidade, e não havia ninguém que rivalizasse sua dedicação à pesquisa, nem sua habilidade com o Scáth Cumhacht. Karl nunca entendeu exatamente como ela permaneceu sozinha todos esses anos. Varina havia sido muito notável na juventude: cabelo da cor do trigo no outono; olhos grandes e expressivos da cor de carvalho antigo e envernizado; um sorriso e uma risada maravilhosos e encantadores que sempre faziam os outros sorrirem com ela. Varina ainda era atraente, mesmo agora, na meia idade, mesmo que nos últimos anos ela tenha parecido envelhecer rapidamente. No entanto... Varina parecia ter pegado toda a vitalidade e energia que possuía e colocado exclusivamente no aprendizado das complexidades do Scáth Cumhacht e do Segundo Mundo, para descobrir todas as maneiras de conter aquele poder. Mesmo entre os numetodos, ela raramente parecia falar por muito tempo com alguém além de Mika ou Karl. Até onde ele sabia, Varina não tinha outros amigos ou amantes fora do grupo. Ela era um enigma, até mesmo para os mais próximos.

Karl dava valor à presença de Varina agora, mesmo que não soubesse como expressar sua gratidão.

Ele remoía a morte de Ana há uma semana agora, remexeu na mente o ocorrido sem parar, como se fosse um adubo repugnante. Alguém a queria morta. Ana fora o alvo, o assassino esperou que ela fosse ao Alto Púlpito; certamente Karl tinha visto os outros ténis na missa subirem ao púlpito para colocar as leituras e o pergaminho com a Admoestação que a archigos pretendia ler, e não foram eles que acionaram a explosão.

Quanto mais Karl considerava essa situação, mais parecia haver uma única resposta. Uma resposta que ele queria verificar.

Varina estava apoiada na arcada da antessala de braços cruzados enquanto Karl encolhia os ombros em seu manto. Ela não repetiu a pergunta, apenas olhou para ele com ternura, como se estivesse preocupada.

— Eu tenho um compromisso — respondeu Karl. Ela concordou com a cabeça. Ainda em silêncio. Os olhos estavam arregalados e não piscavam. — Eu tenho perguntas a fazer.

Outro gesto com a cabeça. — Eu vou com você — disse Varina. Karl hesitou. — Não vou interferir — falou ela. — Se você vai aonde eu penso que vai, pode precisar de apoio. Estou certa?

— Pegue sua capa — disse Karl. Ela deu um breve sorriso, um relance de dentes brancos, e pegou a capa em um gancho na parede.


O embaixador da Coalizão Firenzciana, Andreas co’Görin, tinha um rosto tão fino e anguloso quanto o de um falcão. Quando o homem se levantou da cadeira, os olhos da cor de urze observaram Karl e Varina como se os dois fossem coelhos a serem capturados e devorados. O rosto aquilino era complementado pelo corpo esguio de um espadachim. Karl imaginava que o sujeito ficava mais à vontade de armadura do que na bashta respeitável e conservadora que usava.

Isso fez com que Karl pensasse se teria sucesso aqui.

— Embaixador ca’Vliomani, vajica ci’Pallo, sua visita é... inesperada — falou co’Görin. — O que posso fazer pelos senhores?

Karl olhou enfaticamente para o assistente que ocupava a mesa menor do outro lado do gabinete.

— Gerald, por que você não vai ver se acha aquela proposta sobre as novas regulamentações de fronteira? — disse co’Görin. O assistente, tão robusto e corpulento quanto co’Görin era magro, concordou com a cabeça e remexeu em alguns papéis ruidosamente por um momento antes de sair da sala.

Karl esperou até ouvir o clique da porta se fechando quando o homem saiu. — Eu passei os últimos dias pensando na morte da archigos Ana, embaixador — falou ele. As palavras soaram quase casuais, até mesmo para seus ouvidos. Varina baralhou os pés ao lado de Karl, irrequieta. — Sabe, por mais que eu tente encontrar motivos para alguém ter feito aquilo, não consigo pensar em ninguém que quisesse Ana morta, a não ser as pessoas que o senhor representa.

Varina ficou nitidamente aflita. Uma nuvem passou sobre os olhos de urze de co’Görin, que escureceram e ficaram verdes. Os músculos do rosto do homem retesaram-se, e ele fechou a mão direita como se procurasse pelo cabo de uma espada. — O senhor é bem curto e grosso, embaixador.

— Eu desisti da diplomacia por enquanto — respondeu Karl.

Co’Görin o olhou com desdém. — Certamente. Então serei curto e grosso também. Eu considero uma ofensa a sua acusação. Eu o perdoo por saber... — ele torceu o nariz e franziu os olhos — ... como o senhor era próximo da archigos de Nessântico, mas também espero por um pedido de desculpas imediato.

— Pela minha experiência, as esperanças geralmente viram decepção — disse Karl.

— Karl... — falou Varina com delicadeza. Ela tocou levemente o braço dele. — Talvez...

Varina parou de falar, como se soubesse que ele não escutava. A raiva o queimava por dentro. Karl queria apenas que co’Görin fizesse um gesto brusco ou o insultasse abertamente, qualquer coisa que servisse como desculpa para usar o Scáth Cumhacht que ardia em sua mente à espera da palavra de ativação. Mas co’Görin balançou a cabeça; não se sentou, pareceu relaxar atrás da mesa, tranquilo.

— Eu acho, embaixador ca’Vliomani, que o senhor descartou a possibilidade de que o assassino pode ter sido um elemento sem vínculos, ou talvez uma pessoa contratada por alguém com contas a acertar com a archigos, alguém dentro dos Domínios de Nessântico. Não há necessidade de atrelar uma conspiração ao fato. — Ele ergueu as sobrancelhas; o resto do corpo permaneceu imóvel. — A não ser, é claro, que o senhor tenha provas que gostaria de compartilhar comigo? Mas não, se tivesse isso, o senhor teria ido ao regente, não é? O comandante da Garde Kralji estaria aqui, não dois hereges numetodos. — Devagar, quase de maneira debochada, ele sentou-se outra vez. Seus dedos compridos brincaram com os pergaminhos espalhados sobre a superfície da mesa, e a expressão aquilina se voltou com um olhar de desdém para Karl. — Acho que terminamos por aqui, embaixador. Firenzcia não se envolve com hereges e jamais se envolverá. Estamos perdendo o tempo um do outro.

A dispensa atiçou o fogo que ardia dentro de Karl. — Não! — berrou ele. — Nós não terminamos! — Karl gesticulou e falou uma das palavras de ativação que havia preparado antes de vir. Um fogo rápido lambeu a papelada sobre a mesa do embaixador e consumiu os papéis no mesmo tempo que co’Görin levou para reagir. O homem deu um pulo para trás e saiu da cadeira. Um vento ligeiro veio em seguida soprando a papelada que passou por co’Görin e saiu pela janela, além de balançar a bashta do embaixador; isso só podia ter sido obra de Varina. — Aquele fogo podia muito bem ter sido direcionado para o senhor em vez dos documentos — disse Karl, que ouviu a porta ser escancarada atrás de si e ergueu uma mão preventivamente ao sentir Varina se virar para encarar a ameaça. — Eu não vim com apenas um feitiço, embaixador, e minha amiga é mais poderosa do que eu. Diga ao seu pessoal para ficar onde está, ou garanto que o senhor, pelo menos, não sairá vivo desta sala.

— Nem o senhor, se insistir com essa tolice — rosnou co’Görin, e Karl quase gargalhou.

— Isso pouco me importa a esta altura — disse Karl. As costas de Varina apoiadas nas costas dele. Karl sentiu que ela ergueu os braços para preparar um feitiço.

O embaixador acenou para as pessoas atrás de Karl, que ouviu uma espada ser embainhada e sentiu Varina abaixar os braços novamente. Co’Görin falou — Vou lhe dizer novamente, embaixador, o senhor está enganado se pensa que Firenzcia está envolvida na morte da archigos. Mate-me, não me mate; isso não vai mudar o fato.

— Eu não acredito nisso.

Co’Görin torceu o nariz. — Falta de crença é o principal problema com os numetodos, não é? O senhor quer que eu fique de luto pela sua archigos, embaixador? Não ficarei. Ela atraiu este destino ao acolher os numetodos e se recusar a reconhecer o archigos de Brezno como o verdadeiro líder da Fé. A violência era um resultado inevitável de suas ações, mas, até onde eu sei, não foi Firenzcia que fez isso. Essa é a verdade, e se o senhor não consegue acreditar em mim... — Ele deu de ombros. — Então faça o que tem que fazer. O senhor apenas provará que os numetodos são realmente os tolos perigosos que todo fiel de verdade sabe que eles são. Olhe para mim, embaixador. Olhe para mim — falou co’Görin com mais rispidez, e Karl encarou o embaixador com raiva. — O senhor enxerga uma mentira em meu rosto? Eu vou lhe dizer: quem matou a archigos não foi alguém que eu conheça ou tenha contratado. Essa é a verdade.

Karl sentiu o Scáth Cumhacht vibrar loucamente por dentro. Ele não queria outra coisa a não ser atacar esse tolo metido, ver a arrogância do sujeito desmoronar e virar um grito, fazer com que berrasse em agonia ao morrer. Mas também ouviu Ana. Karl sabia o que ela lhe diria e deixou a mão cair ao lado do corpo. Ouviu Varina suspirar de alívio.

As palavras de co’Görin não tranquilizaram Karl, mas ele começou a se perguntar se o embaixador talvez não tivesse dito a verdade segundo o que sabia. Karl também se lembrou de um tempo, há muitos anos, e de uma outra pessoa que era capaz de invocar o Scáth Cumhacht — embora ele não chamasse a energia dessa maneira, nem de Ilmodo.

— Se eu descobrir que o senhor está mentindo, embaixador — falou Karl —, não vou lhe dar a chance de pedir desculpas ou de sacar sua espada. Matarei o senhor onde quer que eu lhe encontre. Isso também é a verdade.

Dito isso, ele deu meia-volta, e Varina ficou ao seu lado. Havia três guardas bloqueando a porta, mas Karl empurrou os homens e saiu a passos largos para o ar fresco e a luz do sol.

— O que, em nome dos Seis Abismos Eternos, foi aquilo? — Varina estourou com Karl quando os dois estavam novamente do lado de fora, na Avi a’Parete. Ela agarrou a manga dele e o puxou para pará-lo. — Karl! Eu estou falando sério. O que você achou que estava fazendo?

— O que eu precisava fazer — disparou ele com mais rispidez do que pretendia, ainda vermelho de raiva por co’Görin, pela atitude do homem e pelas próprias dúvidas que o remoíam. Toda essa raiva estava contida na resposta. — Se você não queria estar ali, não precisava vir.

— Ana está morta, Karl. Você não pode trazê-la de volta. Acusar pessoas sem provas só vai fazer você morrer também.

— Ana merece justiça.

— Sim, merece — disparou Varina em resposta. — Deixe para aqueles que têm essa função fazer isso por ela. Vocês não eram amantes. Ana não era a matarh de seus filhos.

A fúria ferveu dentro dele. Karl ergueu a mão, o calor frio do Scáth Cumhacht aumentou, e Varina espalmou as mãos. — Faça isso! — disparou outra vez. — Vamos! Isso vai fazer você se sentir melhor? Vai mudar alguma coisa?

Karl pestanejou; em volta dos dois, as pessoas na rua olhavam fixamente. Ele abaixou as mãos. — Eu... eu sinto muito, Varina.

Ela olhou com raiva para Karl e franziu os lábios. — Ela era sua amiga, e eu compreendo isso. Ela era minha amiga também. Mas Ana também cegou você, Karl. Você jamais foi capaz de ver o que está bem à sua frente.

Dito isso, ela deu meia-volta e deixou Karl, seguiu quase correndo pela Avi. — Varina — chamou ele, mas ela enfiou-se na multidão e desapareceu como se jamais tivesse estado ali. Karl ficou parado na rua, as pessoas passando à sua volta. Karl ouviu as trompas do Templo da Archigos, o templo de Ana, começarem a soar para conclamar a Segunda Chamada, e o som pareceu uma risada debochada.

 

Sergei ca’Rudka

— VOCÊ não confia em mim, Karl?

Sergei observou a onda de emoções que percorreu a face do embaixador. O sujeito tinha um rosto impressionantemente franco para quem era diplomata, um defeito que ele possuía desde que Sergei o conheceu. Tudo que Karl pensava ficava nítido para um observador que soubesse ler expressões. Talvez fosse apenas o estilo Paeti; o regente tinha conhecido algumas pessoas da Ilha ao longo de décadas, e a maioria costumava não apenas falar com muita franqueza o que pensava, mas também fazia pouco esforço para esconder opiniões e emoções sinceras. Talvez fosse isso o que tornava a Ilha reconhecida por seus grandes poetas e bardos, pelas canções e pelo temperamento e paixão intensos de seu povo, mas que também os tornava vulneráveis, na avaliação de Sergei.

O estilo deles não era o de Sergei.

Karl pestanejou diante da brutalidade da pergunta, que Sergei disparou antes mesmo que o criado tivesse fechado a porta. O embaixador estava parado na entrada do gabinete do regente, hesitante, quando a porta foi fechada delicadamente atrás dele. — Claro que confio, Sergei — gaguejou um pouco Karl, as palavras saíram carregadas pelo sotaque cantado de Paeti. — Eu não sei do que você está... — E então — Ah.

— Sim. Ah. — Sergei respirou fundo e coçou o nariz. — Eu acabei de receber uma visita bastante desagradável do embaixador co’Görin, embora francamente qualquer visita da parte dele costume ser desagradável. Ainda assim, o sujeito parece achar que você é um homem perigoso que deveria morar na Bastida em vez de andar pelas ruas. Na verdade, ele disse: “em Brezno, o homem seria estripado e pendurado em público por sua impertinência, quanto mais por sua dedicação à heresia.” Eu não acho realmente que ele goste de você. — Sergei ficou de pé, foi até Karl e deu um tapa em suas costas.

Co’Görin realmente reclamara sobre Karl, mas o embaixador firenzciano havia comparecido a pedido de Sergei, e ido embora com uma mensagem selada que o regente esperava que já estivesse na bolsa de um mensageiro disparando pela Avi a’Firenzcia a caminho de Brezno. Mas nada disso era algo que ele contaria para ca’Vliomani. — Venha, sente-se comigo, velho amigo. Vou mandar Rodger trazer um chá para nós. Eu ainda não tomei meu café da manhã.

Pouco tempo depois, eles estavam sentados em uma sacada com vista para os jardins. Jardineiros rondavam o terreno e arrancavam qualquer erva daninha que metia sua cara comum no meio da realeza das flores. O chá e os biscoitos permaneciam intocados por qualquer um dos dois.

— Karl, você tem que deixar esse assunto comigo.

— Eu não posso.

— Você deve. Meu pessoal está procurando intensamente a pessoa ou pessoas que fizeram isso com Ana. Estou em cima do comandante co’Falla nessa questão como se ele fosse um cavalo. Não vou deixar o assunto quieto, não vou deixar morrer. Eu lhe prometo. Eu quero justiça para Ana tanto quanto você, mas você tem que me deixar fazer isso. Não você. Você precisa ficar fora do caminho da investigação.

Karl então encarou Sergei, e o regente viu o desespero pulsar nas bolsas embaixo dos olhos do homem e puxar os cantos da boca. — Sergei, estou convencido de que só pode ter sido um plano firenzciano. Com o hïrzg Jan morto e Fynn no trono, só faz sentido que ele, e talvez o archigos Semini de Brezno... — Karl umedeceu os lábios. — Todos eles têm uma razão para odiar Ana.

Sergei interrompeu Karl com a mão erguida. — Razões, sim, mas você não tem provas. Nem eu. Não ainda.

— Quem mais iria querer Ana morta? Diga para mim. Existe alguém nos Domínios, talvez um a’téni invejoso que queria ser archigos? Ou alguém das províncias? Nós suspeitamos de mais alguém?

— Não — admitiu Sergei. — Eu mesmo suspeito de Firenzcia, mas precisamos saber antes de agir, Karl. — A mentira, como sempre, vinha fácil à boca. Sergei estava acostumado a mentiras. Uma mentira não seria ouvida em sua voz ou vista no espasmo de um músculo.

Às vezes o regente pensava que era composto inteiramente por mentiras e falsidades, que se alguém tirasse essas coisas de Sergei, ele não seria nada além de um fantasma.

— Saber? — repetiu Karl. — Da mesma forma que você sabia quando me atirou na Bastida anos atrás? Da mesma forma que sabia que eu e os numetodos devíamos ter algo a ver com a morte da kraljica Marguerite?

Sergei esfregou o nariz de prata ao fazer uma careta diante da memória. — Eu estava cumprindo ordens do kraljiki Justi na época. Você sabe disso. E note que você ainda está vivo, enquanto Justi preferiria que estivesse morto. Reconheça o meu mérito quanto a isso. Karl, o que está em jogo aqui é importante demais para palpites ou para que pessoas esquentadas invadam o gabinete do embaixador da Coalizão para ameaçá-lo. Se seu palpite estiver correto e o hïrzg Fynn for responsável por esse ato, a única coisa que você conseguiu foi alertá-lo de nossas suspeitas. Você e Varina realmente usaram feitiços numetodos? — Ele estalou alto com a língua e balançou a cabeça. — Estou surpreso que você não o tenha matado logo de saída.

— Eu queria — disse Karl. Por um momento, as rugas em volta da boca foram repuxadas, e os olhos brilharam sob a luz do sol. — Mas eu pensei em Ana... — O brilho nos olhos aumentou. Ele limpou-os com a manga da bashta.

Por um instante, Sergei genuinamente sentiu pena e compaixão pelo homem. Ele respeitava a archigos Ana porque não havia outra escolha. Ana jamais deixou alguém chegar muito próximo a ela, mesmo aqueles — como Karl — que podiam ter desejado tal coisa. Sergei sabia disso porque observava Karl ao longo dos anos, observava-o porque era seu dever saber as preferências e interesses das pessoas de destaque nos Domínios. Sergei sabia que ele usava os serviços das mais caras e discretas grandes horizontales da cidade, e — o que era interessante para o regente — cada uma dessas mulheres que Karl preferia tinha uma semelhança física com a archigos, e mudava ao longo das décadas, assim como a própria Ana. Foi preciso pouca intuição para adivinhar o motivo dessa preferência.

Karl... Sergei gostava do homem, tanto quanto ele jamais se permitiu gostar de alguém. Ele acenou com a cabeça para o numetodo. — Estou contente que o fantasma de Ana conteve sua mão, do contrário, eu poderia não ter outra escolha. Karl, você tem que deixar essa questão de lado. Prometa para mim. Deixe meus subordinados investigarem. Contarei qualquer coisa que eu descobrir. — Essa era outra mentira, obviamente. Sergei já sabia detalhes do assassinato que não tinha a menor intenção de compartilhar com Karl; tinha suspeitas em mente que ele não falaria.

Na escuridão da Bastida, ele mandou que os gardai o deixassem a sós com um homem, um empregado do comerciante Gairdi, que regularmente viajava entre Nessântico e Brezno. Ele ouviu o choramingo delicioso quando desenrolou o pedaço de lona com as terríveis ferramentas amarradas dentro dela e sorriu para o prisioneiro. — Diga-me a verdade — falou Sergei — e talvez não precisemos de nada disso aqui. — Aquilo também fora uma mentira, mas o homem animou-se com a oportunidade e balbuciou em uma voz alta e rápida. Os gritos, quando vieram depois, foram maravilhosos.

Havia alguns vícios de Sergei que ficavam mais fortes com a idade, não mais fracos. — Prometa para mim — repetiu o regente.

Karl hesitou. O olhar afastou-se de Sergei para pousar no jardim abaixo, e o regente acompanhou o gesto. Lá, um jardineiro enfiou o dedo em um solo tão úmido e rico que parecia negro e arrancou outra erva daninha. O funcionário jogou o emaranhado de folhas e raízes na bolsa de lona pendurada no ombro. Sergei acenou com a cabeça: o trabalho necessário para manter o jardim bonito também exigia morte.

— Eu prometo, Sergei. — O regente, preso na imagem, olhou de volta para Karl e viu que o embaixador sorria palidamente para ele.

Ainda assim... havia alguma coisa que Karl não estava dizendo, alguma informação que estava escondendo. Sergei pôde perceber. O regente concordou com a cabeça, como se acreditasse nele, e decidiu que faria com que co’Falla colocasse alguém para vigiar Karl, com a intenção de descobrir o que o homem sabia, bem como de evitar que o embaixador de Paeti cometesse outro erro crítico — especialmente um erro que pudesse interferir nas próprias intenções de Sergei.

Ana estava morta. Quando ela era viva e uma presença firme e forte que guiava a fé concénziana, Sergei não esteve disposto a tomar o rumo que considerava estar tomando no momento. Porém, com sua morte, com o hesitante e bem mais fraco Kenne eleito para o trono de archigos, com o kraljiki Audric tão doente, frágil e jovem...

Tudo mudou.

— Bom — falou Sergei, que devolveu com afeto o sorriso de Karl. — Tem sido difícil para todos nós, mas especialmente para você, meu bom amigo. Agora, vamos tomar este chá antes que esfrie e provar os biscoitos. Aposto que você não come há dias, pela sua cara. Varina e Mika não estão cuidando de você...?


Naquela noite, uma virada da ampulheta após as trompas anunciarem a Terceira Chamada, Sergei sentou-se com o novo archigos Kenne na sacada de observação do templo na margem sul, para assistir à Cerimônia da Luz, que ocorria diariamente. Há dois séculos ou mais, os ténis da Fé saíam do templo à noite e — com a dádiva do Ilmodo — acendiam as lâmpadas que expulsavam a noite da cidade. Por toda sua vida, Sergei testemunhou o ritual diário. Douradas e dentro de globos de cristal, as lâmpadas mágicas eram colocadas em intervalos de cinco passos ao longo da grande Avi a’Parete, a larga avenida circular que cercava os trechos mais antigos da cidade. Até tarde da noite, as lâmpadas bradavam seu desafio para a lua e as estrelas e proclamavam a grandeza de Nessântico.

Para Sergei, esta era a cerimônia que definia Nessântico para a população. Essa era a cerimônia que proclamava o apoio de Cénzi aos kralji e à fé concénziana, uma cerimônia que ocorria sem alterações há gerações — até a época da archigos Ana. Agora o significado era menor, havia pessoas pelas ruas que podiam produzir luz sozinhas: sem invocar Cénzi, e sem o treinamento de um téni. A aceitação de Ana à heresia dos numetodos diminuiu a Fé, na opinião de Sergei, e forçou a mudança de visão das pessoas.

Mudança. Sergei não gostava de mudança. Mudança significava instabilidade, e instabilidade significava conflito.

Mudança significava que tudo tinha que ser reavaliado. Ana... Sergei nunca fora especialmente íntimo da mulher, porém, no papel de comandante da Garde Civile, e depois como regente, ele certamente tinha trabalhado em conjunto com ela. Independentemente dos defeitos pessoais, Ana tinha sido forte, e Sergei admirava sua força. Foi somente sua presença no trono de archigos que impediu que o reinado de Justi como kraljiki fosse uma catástrofe completa. Só por isso, ele sempre seria grato à memória de Ana.

Mas agora Kenne era o archigos. Sergei gostava genuinamente de Kenne como pessoa. Gostava da companhia do homem e de sua amizade. Contudo, Kenne não seria o archigos que Ana tinha sido. Não podia ser porque não tinha a coragem interior. Sergei sabia por que o Colégio A’téni o escolhera — porque nenhum dos outros a’ténis queria o título, a responsabilidade ou os conflitos que vinham com o trono e o cajado de archigos, e eles temiam o cargo especialmente agora. Kenne não era inimigo de ninguém e, principalmente, Kenne era velho. Era frágil. Ele não seguraria o cajado de Cénzi por muitos anos... e talvez quando ele morresse, os tempos fossem menos turbulentos.

O Colégio agiu em nome da autopreservação e, portanto, entregou a Fé a um archigos fraco.

Sergei perguntou-se se algum dia Kenne o perdoaria pelo que ele pretendia fazer.

Os dois homens ficaram parados enquanto os ténis-luminosos saíam em uma longa procissão pelas grandes portas principais bem abaixo deles. Sergei ouviu a melodia sonora do coro que terminava os cultos da noite na capela principal do templo. O som ecoou como uma lamúria pela praça quando as portas se abriram. O sol havia acabado de se pôr, embora o céu nublado do oeste ainda fosse um turbilhão revolto de tons de vermelho e laranja. Sob aquela luz, os ténis deram meia-volta e fizeram o sinal de Cénzi para o archigos, e Kenne abençoou-os com o mesmo gesto.

Os e’ténis — todos pareciam jovem demais aos olhos de Sergei, todos solenes com o fardo do dever — curvaram-se simultaneamente para o archigos, os robes verdes tremularam como um campo de grama ao vento, antes de darem meia-volta novamente para cruzar o enorme pátio diante do templo. A multidão de sempre estava reunida para assistir à cerimônia, embora fosse menor nos últimos anos do que fora na época da kraljica Marguerite, quando os Domínios eram um só e os visitantes afluíam para Nessântico de todos os pontos da bússola. Nos últimos anos, houve muito menos visitantes do leste e do sul, de Firenzcia ou das Magyarias, de Sesemora ou Miscoli. Com a guerra nos Hellins do outro lado do Strettosei, muitos jovens foram embora e as famílias viajavam menos. Embora o pátio do Velho Templo estivesse repleto de espectadores, a Garde Kralji não tinha dificuldades em abrir espaço para os ténis-luminosos; Sergei conseguia enxergar as pedras de pavimentação entre eles. Os ténis chegaram à Avi e dividiram-se em duas fileiras, espalharam-se à leste e à oeste pela avenida e seguiram para as lâmpadas mais próximas, dispostas de cada lado do portão de entrada do Templo do Archigos.

Os primeiros ténis-luminosos alcançaram as lâmpadas. Eles se postaram debaixo do globo reluzente de vidro trabalhado e ergueram os olhos para o céu do anoitecer como se vissem que Cénzi os observava. Os ténis falaram uma única palavra e gesticularam do peito para a lâmpada, os punhos fechados abrindo-se em mãos espalmadas.

As lâmpadas irromperam em uma luz amarela brilhante.

Sergei aplaudiu com Kenne. Mesmo assim...

Aquela única palavra que ativou o feitiço: aquilo era uma mudança também, uma concessão aos numetodos, que conseguiam lançar rapidamente seus feitiços. Era outra mudança provocada por Ana. — Às vezes eu sinto saudade dos velhos costumes, archigos — falou Sergei. — Os cânticos demorados, a sequência de gestos, a maneira como o esforço cansava visivelmente seus ténis... O jeito numetodo de usar o Ilmodo faz tudo parecer muito fácil. Havia... — ele suspirou quando os dois homens se sentaram novamente — ...um mistério envolvido naquela época, uma noção de trabalho e amor ao ritual que desapareceu. Não tenho certeza se Ana tomou a decisão certa quando permitiu que os ténis começassem a usar os métodos dos numetodos para iluminar nossas ruas.

Ele viu Kenne concordar com a cabeça. — Eu entendo — respondeu o archigos. — Parte de mim concorda com você, Sergei; havia uma emoção nos velhos rituais que sumiu agora. Porém, os numetodos provaram seu valor contra o hïrzg Jan, e Ana dificilmente poderia abandoná-los depois, não é? — Sergei ouviu Kenne dar uma risadinha irônica. — Nós somos velhos, Sergei. Queremos que as coisas sejam como eram na época da nossa juventude. Quando o mundo era certo e Marguerite ficaria sentada no Trono do Sol para sempre.

Sim. Eu quero isso mais do que você acreditaria. Sergei coçou o lado do nariz onde a cola irritava a pele; alguns pedacinhos da resina saíram sob a unha. — Não há nada de errado com isso. As coisas eram boas naquela época, com a kraljica Marguerite e Dhosti vestindo o robe de archigos. Não houve momento melhor para os Domínios ou para a Fé. Nós vivíamos em uma época perfeita e nem sabíamos.

— Sim, vivíamos. Eu concordo. — Kenne suspirou com a memória.

As portas douradas do templo atrás deles foram abertas, e um u’téni mais velho surgiu, Sergei o reconheceu: Petros co’Magnaio, o assistente de Kenne. O homem vivia com Kenne desde a época do archigos Dhosti. Kenne acenou com a cabeça e sorriu para co’Magnaio quando ele pousou uma travessa com frutas e chá entre os dois. Sergei nunca ficou incomodado por Kenne sofrer do que era eufemisticamente chamado de “doença dos gardai”. Havia alguma verdade, afinal, no termo: quando passavam anos em uma campanha, os soldados às vezes encontravam satisfação onde fosse possível, com aqueles que estavam em volta. — O tempo ficará frio com o pôr do sol — disse co’Magnaio. — Pensei que fossem gostar de chá quente.

A mão de Kenne pairou sobre a de co’Magnaio, mas não exatamente a tocou; Sergei sabia que a situação seria diferente se ele não estivesse aqui. — Obrigado, Petros. Não vamos demorar muito aqui, mas agradeço.

Co’Magnaio curvou-se e fez o sinal de Cénzi para eles. — Vou cuidar para que os senhores não sejam incomodados enquanto conversam. Archigos, regente... — O assistente deixou os dois e fechou as portas da sacada ao sair.

— Ele é um bom homem — falou Sergei. — Você deu sorte com ele.

Kenne concordou com a cabeça e olhou afetuosamente para as portas por onde Petros passou. — Falando sobre aqueles que se sentaram no Trono do Sol, Sergei, sinto muito que o kraljiki não tenha podido se juntar a nós na noite de hoje. Como está Audric?

Sergei deu de ombros. Lá embaixo, os ténis-luminosos saíram do templo e seguiram para as lâmpadas mais afastadas da Avi e foram acompanhados pela multidão murmurante. Os pombos desceram dos domos do templo e dos telhados dos prédios do complexo para ciscar nas pedras que ficaram vagas na praça, atrás de restos. — Ele não está bem. — O regente olhou para trás; as portas permaneciam fechadas, mas, ainda assim, Sergei abaixou a voz. — Você teve sorte em achar outro téni com dons de cura?

Kenne suspirou. — Esses sempre foram os dons mais raros, e uma vez que a Divolonté condena seu uso em especial... bem, tem sido difícil, mas eu tenho esperanças. Petros está realizando uma apuração criteriosa. Encontraremos alguém. — O archigos fez uma pausa, olhou para as frutas no prato entre eles e escolheu um pedaço. Kenne tinha mãos compridas e delicadas, mas a pele em volta dos ossos era fina e enrugada, e Sergei notou o tremor quando o archigos levou uma casca de fruta doce aos lábios e a chupou. Não podemos permitir fraqueza tanto no kraljiki quanto no archigos, não se quisermos sobreviver.

— Sergei, temos que considerar o que pode acontecer se o menino morrer — continuou Kenne, quase como se tivesse escutado os pensamentos de Sergei. — Os filhos de Justi... — Ele franziu a testa e devolveu a casca de fruta ao prato. — Amarga demais. Os filhos de Justi nunca foram conhecidos pela longevidade.

Os ténis seguiram pela Avi e sumiram de vista. O som do coro terminou em um acorde etéreo e persistente. — Espero que Cénzi não nos faça encarar essa escolha — falou Sergei com cuidado. — Mas é o que todo mundo está se perguntando, não é?

— Existem os gêmeos ca’Ludovici, Sigourney ou Donatien. Eles são, o quê...? — Kenne franziu os lábios finos em concentração — ...primos em segundo grau de Audric e primos diretos de Justi, pois Marguerite era tantzia-bisamatarh deles. Já são maiores de idade, o que é bom. Donatien, em especial, destacou-se na Guerra dos Hellins, mesmo que as coisas não andem bem ultimamente, e ele é casado com uma ca’Sibelli, uma tradicional família de Nessântico; nós poderíamos chamá-lo de volta dos Hellins. Sigourney, entretanto, pode ser a melhor escolha. Ela ainda carrega o sobrenome ca’Ludovici, logicamente: isto certamente tem um peso incrível aqui, e Sigourney fez sua presença ser sentida no Conselho dos Ca’. Os dois têm direito ao trono mais direto em termos de linhagem, creio eu, e tenho certeza de que o Conselho dos Ca’ apoiaria qualquer uma das duas reivindicações ao Trono do Sol.

Sergei não ficou surpreso ao ver que o pensamento do archigos corria tão paralelo ao seu; ele suspeitava que este fosse o caso por toda parte dos Domínios e também da Coalizão. O regente fez uma pausa e perguntou-se se deveria falar mais. Seria interessante, talvez, ver como Kenne reagiria. — Allesandra ca’Vörl pode alegar ter a mesma linhagem e o mesmo relacionamento através de sua matarh — respondeu Sergei, como se divagasse à toa. — Por falar nisso, o novo hïrzg Fynn pode alegar o mesmo. Eles também são primos em segundo grau de Marguerite, com o mesmo direito ao trono que Sigourney ou Donatien.

Sob a luz intensa das lâmpadas mágicas, as sobrancelhas de Kenne escalaram os sulcos em sua testa. — Você não está sugerindo seriamente...

O tom volúvel era a reação que o regente esperava, e Sergei sorriu rapidamente para dar a impressão de que as palavras eram uma simples brincadeira. — Longe disso. Apenas apontei como Allesandra poderia reagir. Certamente Sigourney ou Donatien seriam boas escolhas, como você sugere, embora talvez nós precisemos que Donatien permaneça como comandante nos Hellins. No entanto, Audric não está morto, e eu preferiria que ele continuasse assim. Porém, se o pior acontecer... Você está certo; nós devemos considerar a sucessão. Os Domínios já estão partidos, graças à incompetência de Justi, e não podemos permitir que o que sobrou se rompa ainda mais. — O regente fez uma pausa. Ele cerrou os olhos e coçou o queixo propositalmente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Mas... talvez os Domínios e a Coalizão possam chegar a um meio-termo se o pior acontecer, Kenne. Um ca’Vörl tomaria o Trono do Sol, mas a fé concénziana seria regida por você, não por Semini ca’Cellibrecca. — Pronto. Vejamos como ele considera a oferta.

— Você aceitaria os assassinos de Ana sentados no Trono do Sol? — O horror na voz do homem era palpável.

Sergei bufou com desdém, um assobio alto soou pelas narinas de metal do nariz falso. — Você está fazendo a mesma acusação que o embaixador ca’Vliomani. Até o presente momento, não tem fundamento.

— Quem mais teria feito isso com Ana, Sergei? Sabemos que não foram os numetodos, pois ela era aliada deles.

Sergei não insistiu mais na questão. Ele já sabia o que precisava. — Isso é algo que meu pessoal está tentando determinar. E vão conseguir. — O fogo do pôr do sol não ardia mais no céu do oeste. As estrelas lutavam contra as chamas frias das lâmpadas mágicas, e o frio da noite tomava conta da cidade. Sergei sentiu um arrepio e levantou-se da cadeira. As juntas do joelho estalaram e protestaram com o movimento; ele gemeu com o esforço. O regente ainda sentia a dor nos músculos e os hematomas da ocasião em que se jogou sobre Audric no templo.

Velhos, realmente...

Petros devia estar vigiando (e com certeza escutando também) pelas frestas das portas do templo; assim que Sergei se levantou, elas foram abertas e um atendente e’téni correu até ele com seu sobretudo. O regente viu Petros parado na penumbra do corredor atrás das portas. — Eu tenho que verificar como Audric está, archigos — disse Sergei ao se ajeitar nas dobras de lã. — Se você encontrar alguém com os dons que discutimos, por favor, mande esta pessoa para o palácio imediatamente.

— Eu mesmo passarei lá em mais ou menos uma virada da ampulheta — falou Kenne. — Petros já deve ter aprontado minha sopa neste momento, mas passarei depois, para ver o que posso fazer.

— Obrigado, archigos. Eu talvez veja você, então.

Ao sair do templo, Sergei perguntou-se se sua mensagem já chegara a Brezno e que recepção teria recebido.

 

Allesandra ca’Vörl

— A FLECHADA DO SEU FILHO foi tão boa quanto uma das minhas — declarou Fynn.

Allesandra duvidava disso. Jan podia não ter o volume e o poder da massa muscular de Fynn. Podia não ser capaz de manejar o peso do aço temperado que alguém como Fynn podia com facilidade fazer, mas o menino cavalgava como ninguém e tinha uma mira com flechas que pouquíssimos poderiam igualar. Allesandra tinha certeza de que nem Fynn, nem outra pessoa qualquer poderia ter acertado, quanto mais derrubado, o cervo montado nas costas de um cavalo a galope.

Porém, pareceu simplesmente melhor apenas aquiescer com a cabeça, dar um falso sorriso para Fynn e concordar. Era a atitude mais segura, mas concordar com a falsidade machucava, pois o orgulho pelo filho fazia com que ela quisesse discordar. Allesandra guardou o sentimento, juntamente com outras mágoas e insultos que Fynn e seu vatarh deram a ela ao longo dos anos.

— Foi sorte eu ter estado lá para dar a última flechada, ou o cervo teria escapado.

Allesandra sorriu novamente, embora soubesse que não tinha sido sorte ou destino, apenas a demonstração de que Jan sabia que não deveria eclipsar a presença do hïrzg. Um gesto político, tão habilidoso quanto qualquer um que ela pudesse ter feito.

Os dois andavam pela sacada leste do Palácio da Encosta do Cervo — tão reservado quanto qualquer um podia ser dentro da propriedade. Os gardai estavam em rígida posição de sentido no ponto onde a sacada fazia uma curva do norte para o sul; era evidente que eles evitavam o hïrzg e a a’hïrzg de maneira impassível enquanto olhavam para fora. Das janelas abertas para entrar a brisa da noite, Allesandra e Fynn ouviam os murmúrios dos convidados na mesa de onde acabaram de sair. Ela conseguiu distinguir a voz de Jan quando ele riu de algo que Semini disse.

Allesandra olhou para leste, na direção da bruma da noite que subia como uma maré lenta que vinha dos vales para as encostas íngremes onde o palácio estava instalado. O topo das sempre-vivas embaixo deles estava envolvido por filamentos de nuvens brancas, embora os picos sem árvores e assolados pelo vento permanecessem banhados pelo sol, que reluzia nos penhascos de granito e nos bancos de neve presos às rochas. Em algum lugar escondido na bruma lá embaixo, uma cachoeira borbulhava e cantava.

— É realmente bonito aqui — disse Allesandra. — Eu nunca me dei conta quando estive aqui quando era menina. O vavatarh Karin escolheu um lugar perfeito: deslumbrante e perfeitamente defensável. Nenhum exército jamais conseguiria tomar a Encosta do Cervo se o local fosse bem defendido.

Fynn concordou com a cabeça, embora não parecesse estar olhando para a paisagem. Em vez disso, ele remexia o punho brocado da manga. — Eu pedi que andasse comigo para que pudéssemos conversar sozinhos, irmã.

— Imaginei que fosse isso. Nós, ca’Vörls, raramente fazemos alguma coisa sem motivos ocultos, não é? — falou Allesandra, que deu um rápido sorriso. — O que você queria me dizer, irmãozinho?

Ele sorriu, brevemente, ao ouvir isso, e o movimento contorceu a larga cicatriz na bochecha. — Você nunca me conheceu quando eu era pequeno.

— Houve uma boa razão para isso. — Sim, aquela mágoa estava bem no âmago da montanha interior, a semente de onde tudo brotou...

— Ou uma má razão. Eu não entendi na época, Allesandra, por que o vatarh deixou você em Nessântico por tanto tempo. Depois que ele finalmente me contou a seu respeito, eu sempre me perguntei por que o vatarh deixou minha irmã mofar em outro país, que ele obviamente odiava tanto.

— Você entende agora? — perguntou ela, e continuou antes que Fynn pudesse responder. — Porque eu ainda não entendo. Sempre esperei que o vatarh se desculpasse ou explicasse, mas ele nunca fez isso. E agora...

— Eu não quero ser seu inimigo, Allesandra.

— Nós somos inimigos, Fynn?

— É o que pergunto a você. Eu gostaria de saber.

Allesandra esperou antes de responder. O parapeito de mármore da sacada sob sua mão estava molhado, o orvalho lustrou os torvelinhos azul-claros na pedra leitosa. — Você acha que, se nossas posições fossem invertidas, e eu tivesse sido nomeada hïrzgin pelo vatarh, então você me consideraria sua inimiga? — perguntou ela com cautela.

Fynn fez uma careta e abanou o ar fresco como se estivesse espantando um inseto irritante. — Tantas palavras... — Ele suspirou alto, e a irmã ouviu a irritação no gesto. — Você faz discursos que entram em meus ouvidos e distorcem o significado das minhas próprias palavras, Allesandra. Eu nunca fui capaz de duelar com palavras e discursos; esta não é uma das minhas habilidades. Também não era uma habilidade do vatarh. Ele sempre dizia exatamente o que pensava: nem menos, nem mais, e o que não queria que alguém soubesse, ele não dizia de maneira alguma. Eu fiz uma pergunta bem simples, Allesandra: você é minha inimiga? Por favor, faça a gentileza de dar uma resposta simples, sem enfeites.

— Não — respondeu ela com firmeza, depois balançou a cabeça. — Fynn, apenas um idiota responderia com outra coisa que não “não, nós não somos inimigos”. Você também sabe disso, apesar dos protestos. Você pode ser muitas coisas, mas não é tão simples assim, e eu não sou tão tola a ponto de cair em uma armadilha tão óbvia. Qual é a verdadeira pergunta que você está escondendo?

Fynn bufou com irritação e bateu com a mão no parapeito. Allesandra pôde sentir o impacto da mão, que fez tremer o parapeito. — Existem... existem pessoas... — Ele parou e respirou fundo, bem alto. Quando soltou o ar, Allesandra viu a condensação diante do rosto de Fynn. Ele tocou a coroa dourada e lisa que usava na cabeça. — O vatarh me disse antes de morrer que havia rumores entre os chevarittai e os ténis mais graduados da fé concénziana. Alguns deles eram contra minha nomeação como o a’hïrzg ou diziam que eu era... estúpido demais. — Ele cuspiu a palavra como se tivesse um gosto desagradável na língua. — Alguns deles queriam que você tivesse aquele título ou queriam outra pessoa completamente diferente para assumir a coroa dos hïrzgai.

— O vatarh disse para você quem espalhava esses rumores? De onde eles vinham? — indagou ela. Allesandra tinha que fazer a pergunta. Ela tremeu um pouco e esperou que Fynn não tivesse notado. — O vatarh contou quem disse isso?

No entanto, Fynn apenas balançou a cabeça. — Não. Nenhum nome. Apenas... que havia pessoas que seriam contra mim. Se eu encontrá-las... — O hïrzg respirou fundo pelo nariz e fez uma expressão séria. — Eu acabarei com elas. — Ele olhou diretamente para a irmã. — Eu não me importo com quem elas sejam e não me importo com quem eu tenha que machucar.

Allesandra virou a face para que ele não pudesse vê-la e olhou para a névoa que passava pelos pinheiros logo abaixo. Ótimo. Porque eu conheço algumas dessas pessoas, e elas me conhecem... — Você não pode punir rumores, Fynn. Não pode acorrentar e aprisionar fofocas da mesma forma que não pode capturar a bruma.

— Eu não acho que o vatarh tenha sido enganado pela bruma.

— Então, o que você quer de mim, irmãozinho?

Era isso que Fynn queria que ela perguntasse. Allesandra percebeu pela expressão dele, sob a luz que diminuía no céu. — No Besteigung — ele começou a falar, depois parou para colocar a mão em cima da mão da irmã, no parapeito. Não pareceu um gesto afetuoso. — Você é aquela para quem todos olham. Você é aquela que poderia ter sido hïrzgin se o vatarh não mudasse de ideia. Os ca’ e co’ ainda gostam de você, e muitos acham que o vatarh agiu mal a seu respeito. Os rumores sempre giram em torno de você, Allesandra. Você. Eu quero parar com os rumores; quero que não haja razão alguma para eles existirem. Então... no Besteigung, eu quero que você, e Pauli e Jan também, façam um voto formal de lealdade ao trono. Em público, para que todos ouçam vocês dizerem as palavras.

Elas seriam apenas palavras, Allesandra quis dizer para o irmão, com tanto significado quanto as que eu disse agora “não, Fynn, não sou sua inimiga”. Palavras e votos não significam nada: para saber isso, basta olhar para a história... Mas ela sorriu gentilmente para o irmão e deu um tapinha na mão dele. Talvez ele realmente fosse simples assim, tão inocente? — Claro que faremos isso — disse Allesandra. — Eu sei qual é o meu lugar. Sei onde eu devo estar e onde quero estar no futuro.

Fynn concordou com a cabeça e afastou a mão da irmã. — Ótimo — disse ele com um tom alto de alívio na voz. — Então nós esperamos por isso. — Nós... Ela ouviu o plural real na voz, completamente inconsciente, e franziu os lábios diante disso. — Eu gosto de seu filho — disse Fynn subitamente. — Ele é inteligente, como você, Allesandra. Eu odiaria achar que Jan esteve envolvido em algum plano contra mim, mas se ele esteve, ou se a família dele esteve... — O rosto ficou contraído novamente. — O ar está frio e úmido aqui fora, Allesandra. Eu vou entrar. — Fynn deixou a irmã e voltou para o calor do salão comunal do palácio. Allesandra ficou ao lado do parapeito um instante mais antes de segui-lo. Observando até que as brumas estivessem quase no mesmo nível que ela e o mundo lá embaixo tivesse desaparecido na penumbra e nas nuvens.

Allesandra pensou em ser hïrzgin e percebeu que o Grande Trono de Brezno jamais a satisfaria, mesmo que tivesse sido dela. Era uma conclusão difícil, mas ela soube agora que foi em Nessântico que tinha sido mais feliz, que tinha se sentido mais em casa.

— Eu sei qual é o meu lugar, irmão — sussurrou Allesandra para o silêncio da bruma. — Eu sei. E será meu.

 

Nico Morel

NICO OUVIU TALIS FALAR no outro cômodo, embora a matarh tenha ido à praça para comprar pão.

A matarh deu um beijo e mandou Nico tirar uma soneca, disse que voltaria antes do jantar. Mas ele não conseguiu dormir, não com o barulho de gente na rua bem do lado de fora das persianas da janela, nem com o sol que penetrava pelas frestas entre as tábuas. De qualquer maneira, Nico estava velho demais para sonecas. Aquilo era coisa de criança, e ele estava se tornando um homenzinho. A matarh também disse isso para ele.

Nico jogou os cobertores para o lado e cruzou o quarto de mansinho. Inclinou o corpo para frente, o suficiente para enxergar pela borda da porta arranhada e empenada que nunca fechava direito — fez questão de não tocá-la, pois sabia que as dobradiças dariam um alarme enferrujado. Através da fenda entre a porta e a ombreira, ele conseguiu ver Talis. Ele estava debruçado sobre a mesa que a matarh usava para preparar as refeições. Havia uma tigela rasa sobre a mesa, e Nico franziu os olhos em um esforço para ver melhor: animais entalhados dançavam pela borda, e a tigela tinha o mesmo tom castigado pelo clima da estátua de bronze de Henri IV, na praça do Velho Distrito. A matarh não tinha uma tigela de metal, pelo menos nenhuma que Nico tivesse percebido; os animais entalhados também eram estranhos: um pássaro com a cabeça de uma cobra; um lagarto escamoso com um focinho comprido cheio de dentes arreganhados. Talis despejou água do jarro da matarh dentro da tigela, depois desamarrou uma bolsinha de couro do cinto e sacudiu um pó avermelhado e fino na palma da mão. Ele polvilhou o pó na água como se estivesse salgando comida. Passou a mão sobre a tigela como se acalmasse alguma coisa, depois disse palavras na língua estranha que às vezes falava quando sonhava à noite, aninhado com a matarh de Nico na cama.

Uma luz pareceu brilhar dentro da tigela e iluminou o rosto de Talis com um tom pálido de amarelo esverdeado. Ele olhou fixamente o interior da tigela brilhante, de boca aberta, e a cabeça foi se aproximando cada vez mais, como se Talis estivesse pegando no sono, embora os olhos estivessem arregalados. Nico não sabia dizer por quanto tempo ele encarou a tigela — bem mais do que o tempo em que Nico tentou prender a respiração. Enquanto assistia, Nico achou que sentiu uma friagem, como se soprasse um vento de inverno da tigela, tão frígido que ele estremeceu. A sensação ficou mais intensa, e o fôlego que Nico tomou deu a impressão de sugar todo o frio, embora o ar, de alguma forma, quase parecesse quente dentro do corpo. O que fez com que ele quisesse expelir o ar, como se pudesse cuspir fogo gelado.

No outro cômodo, a cabeça de Talis pendeu ainda mais. Quando o rosto pareceu estar a dois centímetros de tocar a borda da tigela, o brilho sumiu tão repentinamente quanto surgiu, e Talis arfou como se respirasse pela primeira vez.

Nico também arfou, involuntariamente, como se o frio e o fogo dentro dele tivessem sumido no mesmo momento. O menino começou a recuar a cabeça da porta, mas foi detido pela voz de Talis. — Nico. Filho.

Ele voltou a espiar. Talis olhava fixamente para Nico, com um sorriso que contorcia as linhas do rosto moreno-escuro. Havia mais rugas ali ultimamente, e o cabelo de Talis começou a ficar salpicado de fios grisalhos. Ele gemeu ao se levantar rápido demais, e as juntas às vezes rangiam, embora a matarh dissesse que Talis tinha a mesma idade que ela. — Está tudo bem, filho. Não estou bravo com você. — O sotaque de Talis também parecia mais carregado do que o normal. Ele gesticulou para Nico, que notou uma mancha de pó vermelho ainda na palma da mão. Ele suspirou como se estivesse cansado e precisasse dormir. — Venha aqui. — Nico hesitou. — Não se preocupe; venha aqui.

Nico empurrou a porta para abri-la; a dobradiça, como ele sabia, rangeu alto, e foi até Talis. O homem ergueu o menino (sim, ele gemeu com o esforço) e colocou-o em uma cadeira perto da mesa para que pudesse ver a tigela. — Nico, esta é uma tigela especial que eu trouxe comigo do país onde costumava viver. Veja... tem água dentro. — Talis mexeu na água com um dedo. Ela parecia completamente normal agora.

— A tigela é especial porque faz a água brilhar? — perguntou Nico.

Talis continuou a sorrir, mas o jeito com que as sobrancelhas desceram sobre os olhos fez o sorriso parecer de certa forma inadequado no rosto. Nico viu o próprio rosto no reflexo das íris marrom-escuras dos olhos de Talis. Havia dobras fundas nos cantos daqueles olhos. — Ah, você viu aquilo, não é?

Nico concordou com a cabeça e perguntou — Aquilo era magia? Eu sei que não é um téni porque nunca vi você ir ao templo com a matarh e eu. Você é um numetodo?

— Não, não sou um numetodo, nem um téni da fé concénziana. O que você viu não era magia, Nico. Era apenas a luz do sol que entrou pela janela e foi refletida pela água na tigela, só isso. Eu também vi; era tão intensa que parecia que havia um pequeno sol debaixo d’água. Eu gostei como a tigela ficou, então a observei por um tempo.

Nico concordou com a cabeça, mas se lembrou do pó vermelho, da cor estranha e verdejante da luz e da maneira como a claridade banhou o rosto de Talis, como se fosse acariciado por uma mão de luz. Ele lembrou do fogo frio, mas não mencionou nada disso. Pareceu melhor não mencionar, embora não tivesse certeza do porquê.

— Eu amo você, Nico — continuou Talis, que se ajoelhou no chão perto da cadeira de Nico, de maneira que os rostos ficassem na mesma altura. Ele pousou as mãos nos ombros do menino. — Eu amo Serafina... sua matarh... também. E a melhor coisa que ela me deu na vida, a coisa que mais me deixou feliz, é você. Sabia disso?

Nico concordou novamente. Talis apertou os dedos em seus braços com tanta força que ele não conseguia se mexer. O rosto de Talis estava quase próximo ao seu, e Nico sentiu o cheiro de bacon e chá adoçado com mel no hálito do homem, e também um leve traço de algum condimento que não conseguiu identificar de forma alguma. — Ótimo — falou Talis. — Agora, preste atenção, não há necessidade de comentar sobre a tigela ou a luz do sol com sua matarh. Eu pensei que um dia pudesse dá-la de presente para sua matarh, e quero que seja uma surpresa, e você não quer estragá-la, não é?

Nico balançou a cabeça ao ouvir isso, e Talis deu um largo sorriso, como se tivesse contado uma piada para si mesmo que Nico não ouviu. — Excelente — disse ele. — Agora, deixe-me terminar de lavar a tigela, que era o que eu estava começando a fazer quando você me viu. É por isso que coloquei água dentro dela. — Talis soltou Nico; o menino esfregou os ombros enquanto o homem pegou a tigela, mexeu de maneira ostentosa a água dentro dela e depois abriu as persianas da janela para jogá-la na jardineira com flores. Talis secou a tigela com a bashta de linho, e Nico ouviu o tom do metal. Viu Talis colocar a tigela dentro de uma bolsa que ele mantinha debaixo da cama que compartilhava com sua matarh, depois recolocar a bolsa debaixo do colchão de palha.

— Pronto — falou Talis ao endireitar o corpo novamente. — Este será nosso segredinho, hein, Nico? — Ele piscou para o menino.

Esse seria o segredo deles. Sim.

Nico gostava de segredos.

 

A Pedra Branca

ELES VINHAM A ELA À NOITE, aqueles que a Pedra Branca matou. À noite, eles agitavam-se e acordavam. Reuniam-se em volta da Pedra Branca em sonhos e falavam com ela. Geralmente, quem falava mais alto era o Velho Pieter, a primeira pessoa que ela matou.

Ela tinha 12 anos.

— Lembre-se de mim... — murmurava o Velho Pieter para ela durante o sono. — Lembre-se de mim...

O Velho Pieter era um vizinho no modorrento vilarejo na Ilha de Paeti, e ela conhecia o homem desde que nasceu, especialmente depois que seu vatarh morreu, quando ela tinha seis anos. O Velho Pieter sempre foi amigável com ela, ria e dava como presentes os animais que ele entalhava a partir de galhos de árvore, com a pequena faca que sempre levava no cinto. Ela pintava os animais que ganhava e colocava no parapeito da janela em seu pequeno quarto, onde pudesse vê-los todas as manhãs.

O Velho Pieter tinha cabras, e, quando sua matarh permitia, ela às vezes ajudava o homem com o pequeno rebanho. No dia em que sua vida mudou, no dia que entrou no caminho que a traria até aqui, ela havia saído com Pieter e as cabras perto do Água Berrante, um córrego barulhento que descia rápido das encostas da Colina dos Carneiros, um dos morros altos ao sul do vilarejo. As cabras pastavam placidamente perto do córrego, e ela andava perto dos animais quando viu um corpo no chão: uma corça recém-morta, com o corpo dilacerado por carniceiros e moscas que começavam a se agitar em volta da carcaça. A cabeça da corça, no longo pescoço castanho-amarelado, olhava com desespero com seus belos olhos grandes.

— Se cê olhar no olho direito, cê vai ver o que matou ela.

Uma mão acariciou seu ombro e desceu pelas costas antes de se afastar. Ela levou um susto, pois não percebeu que o Velho Pieter surgira por trás. — O olho direito tá ligado à alma de uma pessoa ou de um animal — continuou ele. — Quando um ser vivo morre, bem, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto ou a coisa que matou ele. Olhe dentro do olho daquela corça que cê vai ver lá dentro: um lobo, tarvez. Acontece com gente, também. Assassinos são capturados desse jeito: quando alguém olha no olho direito da pessoa que eles mataram e vê o rosto do assassino ali.

Ela estremeceu ao ouvir isso e afastou-se, o Velho Pieter riu. A mão do homem tirou do rosto da menina as mechas de cabelo que escaparam das tranças, e ele sorriu afetuosamente para ela. — Agora, não fique transtornada, menina. Anda, vai cuidar das cabras, que eu vou entalhar alguma coisa procê.

O Velho Pieter voltou a ela no fim da tarde, quando a menina estava sentada às margens do Água Berrante vendo o córrego passar pelo leito rochoso. — Aqui, cê gostou? — perguntou ele.

Era uma figura humana entalhada, pequena o suficiente para ela esconder facilmente na mão: uma figura nua e inegavelmente feminina, com pequenos seios como os que brotavam em seu próprio peito. O cabelo a deixou mais perturbada: há uma lua, uma mulher ca’ de Nessântico passou pela cidade e ficou uma noite na estalagem da estrada para An Uaimth. O cabelo da mulher era trançado e preso em um nó complicado atrás da cabeça; fascinada por este vislumbre da moda de fora, a menina trabalhou por dias para imitar aquelas tranças; desde então, ela trançava o cabelo todo dia, da mesma maneira. Estava trançado agora, igual ao da figura nua, e a mão foi involuntariamente ao nó do cabelo atrás da cabeça. Ela quis, de repente, desmanchá-lo.

A menina olhou fixamente para o entalhe, sem saber o que dizer, e sentiu a mão do Velho Pieter na bochecha. — É ocê. Tá virando uma mulher agora.

A mão do homem pegou a cabeça dela e puxou a menina em sua direção, apertou-a com força contra ele. Ela sentiu a excitação do Velho Pieter, dura contra a sua coxa. A menina soltou a boneca.

O que aconteceu em seguida ela jamais esqueceria: a dor e a humilhação do ato. A vergonha. E depois que acabou, depois que o peso do homem saiu de cima dela, a menina viu o cinto caído na grama ao lado, e ali estava a bainha com a faca, que ela pegou. A menina pegou o cabo com as mãos tremendo, chorando, com sua tashta arrancada e meio rasgada, com seu sangue e o sêmen dele espalhados nas coxas, pegou com toda a raiva, fúria e medo por dentro e esfaqueou o Velho Pieter. Enfiou a faca na parte baixa da barriga do homem, e quando ele gemeu e berrou assustado, ela puxou a lâmina e a enfiou mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez até que ele parou de gritar, parou de bater na menina com os punhos e parou de se mover completamente.

Coberta no próprio sangue e no sangue do Velho Pieter, ela deixou a faca cair quando se ajoelhou ao lado dele. Os olhos mortos do homem encararam a menina.

— Quando um ser vivo morre, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto que viu...

Ela quase se arrastou até a margem do Água Berrante. Encontrou uma pedra ali, um seixo branco e polido pela água, do tamanho de uma moeda grande. A menina trouxe a pedra de volta e enfiou no olho direito do homem. Depois, ficou encolhida ali, a poucos passos do Velho Pieter, até que o sol estivesse praticamente posto e as cabras se reunissem ao redor dela. Os animais baliram e queriam voltar aos estábulos. A menina acordou, como se tivesse dormido, viu o corpo ali e se percebeu sendo levada na direção dele pela curiosidade. Ela levou a mão trêmula ao rosto do homem, ao olho direito coberto pelo seixo, e pegou a pedra. O seixo pareceu quente de um modo estranho. O olho embaixo estava cinza e opaco, e embora a menina tenha olhado com cuidado, não viu nada ali: nenhuma imagem de si mesma. Absolutamente nada. Ela apertou com força o seixo na mão: a pedra quente quase pulsava com vida. Sua respiração estremeceu quando ela apertou o seixo contra o peito.

Então, ela foi embora e deixou o corpo ali. Foi para o sul, não para o norte, e levou o seixo consigo.

A menina jamais retornaria para o vilarejo onde nasceu. Nunca mais veria sua matarh novamente.

A Pedra Branca revirou-se no sono. — Eu não queria machucar ocê, menina — sussurrou o Velho Pieter nos sonhos. — Não queria mudar ocê. Sinto muito, sinto muito...


CONTINUA

SE UMA CIDADE TIVESSE SEXO, Nessântico seria mulher...
Antigamente, ela era jovem e cheia de vitalidade: a cidade, a mulher. Durante sua ascensão, transformou-se na mais famosa, mais bonita e mais poderosa de sua espécie.
Agora, ela olhou para si mesma e imaginou — como alguém que se vislumbra inesperadamente em um espelho e fica assustado e incomodado pelo reflexo — se esses atributos ainda carregavam verdade.
Ah, ela sabia que a juventude era passageira e efêmera. Afinal, as pessoas que moravam entre suas muralhas levavam vidas curtas e difíceis. Para elas, o rosto refletido mudava implacavelmente a cada dia que passava, até surgir a manhã em que perceberiam que a imagem no espelho estaria enrugada e cansada, que os cabelos grisalhos nas têmporas se espalhariam e ficariam mais brancos. Elas talvez sintam suas juntas reclamando durante um movimento que antigamente não exigia qualquer esforço ou pensamento, ou talvez descubram que agora as feridas levariam semanas em vez de dias para sarar, ou que a doença permaneceria como um convidado indesejado — ou pior, que mudaria de “persistente” para “crônica”.
O frio da mortalidade penetrou lentamente em seus ossos mortais como gelo.

Mortalidade: Nessântico também sentia esta condição. Os habitantes da cidade escondiam as rugas e dobras com a cosmética da arquitetura. Vejam, ela poderia dizer: lá está o grande domo de co’Brunelli para o Velho Tempo — há 15 anos sendo construído neste momento —, que, quando terminado, será o maior domo sem suportes do já mundo conhecido. Aquele lá na Ilha A’Kralji é o lindo e ornamentado Teatro A’Kralji de ca’Casseli, capaz de abrigar uma plateia de duas mil pessoas, com acústica tão excelente que todo mundo pode ouvir o mais baixo sussurro no palco; ali, a Grande Biblioteca da margem sul, que começou a ser construída no reinado do kraljiki Justi e que contém as maiores obras intelectuais da humanidade. Ouçam: aquela é a doce música de ce’Miella, cujas composições rivalizam com as melodias magníficas do mestre Darkmavis. Vejam as pinturas e os murais cheios de símbolos de ce’Vaggio, cuja habilidade de retratar figuras geralmente é comparada àquela do trágico mestre ci’Recroix. Há uma vida tão vibrante aqui no interior de Nessântico: todas as peças e danças, as celebrações e a alegria.
Tudo aqui é igual ao que sempre foi; não, tudo é melhor.

 

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No entanto, ela mudou, e sabia disso. Havia sinais e portentos. No Velho Distrito, há não muito tempo, havia uma mulher que nasceu com as patas de uma tarântula e (diziam os rumores) que podia matar com um único olhar de seus olhos multifacetados. Houve a praga de milhares de sapos verdes nos Brejos há duas primaveras, tão intensa que eles cobriram as passagens próximas com uma massa agitada que tinha um palmo de profundidade. Nos esgotos da margem norte, diziam que havia uma criatura à espreita, com cabeça de dragão, corpo de touro e pés e mãos de humano, e que se alimentava de ratos que cresciam do tamanho de lobos.

Havia os sinais reais e indiscutíveis também. Os Domínios foram rachados, aquela forte aliança forjada lentamente ao longo dos séculos. Após um malfadado ataque a Nessântico, depois do assassinato da kraljica Marguerite, a cidade de Brezno tornou-se sua rival, à medida que Firenzcia tomava várias terras vizinhas ao seu redor: uma Coalizão sob o comando do hïrzg Jan ca’Vörl.

A fé concénziana também fora cindida, e não era mais o que tinha sido. A archigos Ana ocupava o templo na margem sul, era verdade, mas outra pessoa dizia-se archigos em Brezno. Dentro de Nessântico, os hereges numetodos adquiriam novos partidários, e não era incomum ver alguém conjurar um feitiço sem vestir um robe verde ou apelar primeiro para Cénzi.

Sinais e portentos. Mudança. Quanto mais velha ficava Nessântico, mais difíceis ficavam as mudanças para ela.

Pega em seu próprio outono indesejado, Nessântico — a cidade, a mulher — encarava o reflexo nas águas escuras do rio A’Sele e imaginava...

E, como muitos em sua posição, Nessântico negava o que via.


??? RESPOSTAS ???

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

O VATARH DE Allesandra ca’Vörl era o sol ao redor de quem ela orbitava desde que se entendia por gente. Agora aquele sol finalmente estava se pondo.

A mensagem chegara de Brezno através de um mensageiro rápido, ela olhava fixamente para as palavras escritas em uma caligrafia legível e apressada. — Seu vatarh está morrendo. Se a senhora quiser vê-lo, apresse-se. Essa foi toda a mensagem. Estava assinada pelo archigos Semini de Brezno e selada pelo seu sinete.

O vatarh está morrendo... O grande hïrzg Jan de Firenzcia, em homenagem a quem ela batizara seu único filho, estava falecendo. As palavras acenderam um fogo amargo em seu estômago; elas nadaram na página com as lágrimas salgadas que surgiram espontaneamente em seus olhos. Allesandra ficou sentada ali — à elegante escrivaninha, no gabinete opulento perto do palácio do gyula em Malacki — e viu uma gotícula cair no papel e borrar a tinta das palavras.

Ela odiava que o vatarh ainda a abalasse tanto; odiava se importar. Allesandra deveria odiá-lo, mas não conseguia. Não importava o quanto tentasse ao longo dos anos, ela não conseguia.

Pode-se amaldiçoar o sol pelo calor escaldante ou por sua ausência, mas sem o sol não haveria vida.

— Eu o odeio — declarou ela para a archigos Ana. Havia dois anos que Ana tirara Allesandra de seu vatarh para mantê-la como refém. Dois anos, e ele ainda não tinha pagado o resgate para trazê-la de volta. Ela tinha 13 anos, na iminência da menarca, e fora abandonada pelo vatarh. O que originalmente era ansiedade e decepção, aos poucos se transformara em raiva dentro dela. Pelo menos era o que Allesandra acreditava.

— Não, você não o odeia — falou Ana baixinho enquanto acariciava o cabelo de Allesandra. As duas estavam na sacada de seus aposentos no complexo do templo em Nessântico e olhavam para a confusão de ténis vestidos de verde que corriam com suas tarefas lá embaixo. — Não de verdade. Se ele pagasse o resgate amanhã, você ficaria radiante e pronta para correr de volta para seu vatarh. Olhe para dentro de si, Allesandra. Olhe sinceramente. Não é verdade?

— Bem, ele deve me odiar — retrucou ela — ou teria pagado.

Ana abraçou-a com força então. — Ele vai pagar. Vai sim. É que... Allesandra, seu vatarh queria se sentar no Trono do Sol. Ele sempre foi um homem orgulhoso, e uma vez que eu levei você embora, seu vatarh jamais foi capaz de realizar seu sonho. Você é uma lembrança de tudo o que ele perdeu. E isto é culpa minha. Não é sua. Não é sua de forma alguma.

O vatarh não pagou. Não por dez longos anos. Era Fynn, o novo filho que sua matarh, Greta, deu ao hïrzg que gozava do carinho do vatarh, que aprendera a guerrear, e fora nomeado o novo a’hïrzg — o título que deveria ter sido dela.

Em vez do vatarh e da matarh, era a archigos Ana que se tornara sua responsável, que a orientara durante a puberdade e adolescência, que confortara Allesandra em suas primeiras paixões, que ensinara os modos da sociedade ca’ e co’, que a acompanhara em bailes e festas, que a tratara não como uma prisioneira, mas como uma sobrinha que tinha se tornado sua responsabilidade criar.

— Eu amo você, tantzia — disse Allesandra para Ana. Ela passara a chamar a archigos de “tia”. O kraljiki Justi recebera a notícia de que um tratado entre os Domínios e a “Coalizão” Firenzciana estava para ser assinado em Passe a’Fiume, e, como parte das negociações, o hïrzg Jan finalmente pagara o resgate de sua filha. Ela passara uma década em Nessântico, praticamente metade de sua vida. Agora, aos 21 anos, ela deveria retornar à vida que perdera há tanto tempo, e estava assustada pela perspectiva. Antigamente, isso era tudo o que ela queria. Agora...

Parte de Allesandra queria ficar aqui. Aqui, onde ela sabia que era amada.

Ana abraçou-a com mais força. Allesandra era mais alta do que a archigos agora, e Ana teve que ficar na ponta dos pés para beijar sua testa. — Eu também amo você, Allesandra, e sentirei a sua falta, mas chegou a hora de ir para casa. Saiba que eu sempre estarei aqui para você. Sempre. Você faz parte do meu coração, minha querida. Eternamente.

Allesandra tinha esperanças de poder banhar-se ao sol do amor de seu vatarh novamente. Sim, ela tinha ouvido falar que o novo a’hïrzg Fynn era o filho que o hïrzg Jan sempre desejou: habilidoso com o cavalo, com a espada, com a diplomacia. Ela sabia que o irmão estava sendo preparado para a carreira na Garde Firenzcia. Mas ela também fora um dia o orgulho de seu vatarh. Com certeza poderia voltar a ser.

Mas Allesandra soube assim que o vatarh olhou para ela, do outro lado da tenda de negociação em Passe a’Fiume, que isso não aconteceria. No olhar de predador de Jan havia uma aversão que ardia lentamente. Ele avaliou Allesandra como se olhasse para uma estranha — e ela era realmente uma estranha para o vatarh: uma jovem agora, não mais a menina que Jan perdera. Ele pegou as mãos dela, aceitou a mesura como faria com qualquer ca’ e co’ e passou a filha para o archigos Semini um momento depois.

Fynn estava ao lado dele — agora com a idade que Allesandra tinha ao ser capturada — e avaliou a irmã mais velha como faria com um rival qualquer.

Allesandra procurou o olhar de Ana através da tenda, e a mulher deu um sorriso triste e um aceno de despedida. Havia lágrimas nos olhos de Ana, que brilharam ao sol que passava pela lona fina da tenda. A archigos, pelo menos, fora fiel à própria palavra. Ela escrevera regularmente para Allesandra. Negociara com o vatarh para que tivesse a permissão de comparecer ao casamento de Allesandra com Pauli ca’Xielt, o filho do gyula da Magyaria Ocidental, e, portanto, um matrimônio politicamente vantajoso para o hïrzg, e um enlace sem amor para Allesandra.

Ana tinha até mesmo estado presente, em segredo, no nascimento do filho de Allesandra, há quase 16 anos agora. A archigos Ana — a archigos falsa e herege de acordo com Firenzcia, a quem Allesandra era obrigada a odiar como uma boa cidadã da Coalizão — abençoara e batizara a criança com o nome que Allesandra lhe dera: Jan. E o fizera sem uma crítica ou um comentário. Fizera com um sorriso gentil e um beijo.

Até mesmo batizar a criança em homenagem ao vatarh não mudou nada. Isso não o aproximara de Allesandra — na maior parte do tempo, o hïrzg Jan ignorava seu neto e homônimo. Jan ficava na companhia do hïrzg Jan cerca de duas vezes ao ano, quando ele e Allesandra o visitavam em ocasiões de estado, e raramente o hïrzg falava diretamente com o neto.

Agora... agora seu vatarh estava morrendo e Allesandra não conseguia evitar chorar por ele. Ou talvez não conseguisse evitar chorar por si mesma. Com raiva, ela atacou a umidade nas bochechas com a manga. — Aeri! — Allesandra chamou o secretário. — Venha aqui! Tenho que ir para Brezno.

Allesandra irrompeu no quarto do hïrzg e jogou longe a capa suja de viagem. O cabelo estava despenteado pelo vento, e as roupas cheiravam a cavalo. Ela empurrou os criados que tentaram ajudá-la e se dirigiu para a cama. Os chevarittai e vários parentes reunidos ali afastaram-se para deixar que ela se aproximasse; Allesandra sentiu os olhares de avaliação às suas costas. Ela olhou fixamente para o rosto murcho e encarquilhado no travesseiro e mal o reconheceu.

— Ele está...? — perguntou Allesandra bruscamente, mas então ela ouviu o barulho causado pela respiração cheia de catarro do hïrzg e viu o lento movimento do peito sob as cobertas. O quarto cheirava a doença, apesar das velas perfumadas. — Fora! — falou ela para todos, gesticulando. — Digam a Fynn que eu vim, mas deixem-me sozinha com meu vatarh. Fora!

Eles dispersaram-se, como Allesandra sabia que fariam. Ninguém tentou protestar, embora os curandeiros dirigissem olhares de desaprovação sob frontes cautelosamente franzidas, e ela pôde ouvir os sussurros enquanto as pessoas saíam. “Não é de admirar que o marido fique longe dela... Um bode tem melhores maneiras... Ela tem a arrogância de Nessântico...”.

Allesandra bateu a porta na cara deles.

Então, finalmente, ao olhar para o rosto encovado e cinzento do vatarh, ela permitiu-se chorar, ajoelhada ao lado da cama, segurando as mãos frias e debilitadas. — Eu amei o senhor, vatarh — falou Allesandra. Sozinha com ele, a verdade era possível. — Eu amei. Mesmo depois que o senhor me abandonou, mesmo depois que o senhor deu a Fynn todo o carinho que eu queria, eu ainda o amei. Eu poderia ter sido a herdeira que o senhor merecia. Ainda posso ser, se tiver a chance.

Allesandra ouviu o arrastar de botas na porta e ficou de pé. Secou os olhos com a manga da tashta e fungou assim que Fynn empurrou a porta para abri-la. Ele irrompeu no quarto; Fynn nunca simplesmente entrava em um aposento. — Irmã, noto que as notícias chegaram até você.

Allesandra cruzou os braços. Ela não deixaria que o irmão notasse como havia ficado abalada ao ver o vatarh em seu leito de morte. Deu de ombros. — Eu ainda tenho fontes aqui em Brezno, mesmo que meu irmão deixe de mandar um mensageiro.

— Eu esqueci, mas imaginei que você saberia, de qualquer maneira. — O sorriso que ele deu era mais uma careta de desprezo, contorcida pela longa cicatriz enrugada que ia do canto do olho direito atravessando o lábio até o queixo: a marca de uma cimitarra de Tennshah. Fynn, aos 24 anos, tinha o corpo esbelto e forte de um soldado profissional, uma forma física que caía bem nas calças e blusas soltas que usava. Esse estilo de vestir de Tennshah tinha virado moda em Firenzcia desde as guerras de fronteira, há seis anos, quando Fynn enfrentou as forças do t’sha e empurrou os limites de Firenzcia quase 165 quilômetros para o leste, e ganhou a cicatriz comprida que maculava o belo rosto.

Foi durante essa guerra que Fynn conquistou plenamente o carinho do vatarh e acabou com qualquer esperança persistente de Allesandra de que pudesse vir a se tornar a hïrzgin.

— Os curandeiros disseram que o fim virá em algum momento do dia de hoje ou possivelmente à noite se ele continuar a lutar; o vatarh nunca desistiu facilmente, não é? Mas os retalhadores de almas virão atrás dele desta vez. Não há mais dúvida alguma quanto a isso. — Fynn abaixou os olhos na direção da figura na cama quando o hïrzg estremeceu novamente ao respirar. O olhar do jovem era carinhoso e triste, e, no entanto, também era avaliador, como se calculasse quanto tempo levaria até que ele pudesse retirar o anel com sinete das mãos unidas e colocá-lo no próprio dedo; até que pudesse colocar a coroa fina de ouro de hïrzg nos cachos da própria cabeça. — Não há nada que eu ou você possamos fazer, irmã, além de rezar para que Cénzi receba a alma do vatarh com carinho. Fora isso... — Fynn deu de ombros. — Como está meu sobrinho Jan?

— Você o verá em breve — falou Allesandra. — Ele está a caminho de Brezno atrás de mim e deve chegar amanhã.

— E seu marido? O querido Pauli?

Allesandra torceu o nariz. — Se você está tentando me provocar, Fynn, não vai funcionar. Eu sugeri que Pauli permanecesse em Malacki e cuidasse dos negócios de estado. E quanto a você? Já encontrou alguém para casar ou ainda prefere a companhia de soldados e cavalos?

O sorriso demorou a surgir, e era vacilante quando apareceu. — Agora quem provoca quem? O vatarh e eu ainda não tomamos uma decisão quanto a isso, e agora parece que a decisão será somente minha, embora eu certamente ouvirei quaisquer sugestões que você tenha. — Fynn abriu os braços e Allesandra relutantemente permitiu que ele a abraçasse. Nenhum dos dois deu um abraço apertado, mas apenas envolveram um ao outro, como se abraçassem um espinheiro, e o gesto acabou em um piscar de olhos. — Allesandra, eu sei que sempre houve uma distância entre nós, e espero que possamos trabalhar em conjunto quando... — ele hesitou, e Allesandra observou o peito de Fynn inchar após respirar fundo — ... quando eu for o hïrzg. Precisarei de seus conselhos, irmã.

— E eu os darei a você — ela aproximou-se e cautelosamente beijou o ar a um dedo de distância da bochecha marcada pela cicatriz —, irmãozinho.

— Eu queria que nós realmente pudéssemos ter sido irmãozinho e irmãzona. Eu queria ter conhecido você naquela época.

— Eu também — disse Allesandra para Fynn. E eu queria que estas fossem mais do que palavras vazias e educadas que ambos dizemos porque sabemos que são o que a etiqueta exige. — Ficaria aqui comigo agora? Deixe o vatarh perceber que estamos juntos pelo menos uma vez.

Ela sentiu sua hesitação e perguntou-se se Fynn iria recusar. Porém, após um instante, o irmão deu de ombros. — Por uma virada da ampulheta ou menos, nós podemos rezar por ele. Juntos.

 

Jan ca’Vörl

— EU TENHO QUE CAVALGAR o mais rápido possível para Brezno — falou a matarh de Jan para ele. — Eu dei ordens para os criados arrumarem o que temos nos quartos em malas para viagem. Quero que você venha atrás assim que eles aprontarem as carruagens. E, Jan, veja se consegue convencer seu vatarh a vir com você. — Ela deu um beijo na testa do filho, com mais intensidade do que em anos, e abraçou-o. — Eu amo você — sussurrou. — Espero que saiba disso.

— Eu sei. — Jan afastou-se e sorriu para a matarh. — E eu espero que a senhora saiba disso.

Ela sorriu e deu um último abraço no filho antes de subir no cavalo mantido pelos dois chevarittai que iriam acompanhá-la. Jan observou o trio se afastar pela estrada da propriedade a galope.

Isto foi há dois dias. Sua matarh devia ter chegado a Brezno ontem. Jan recostou a cabeça nas almofadas da carruagem e viu a paisagem do sul de Firenzcia passar sob a luz dourado-esverdeada do fim da tarde. O condutor dissera que eles parariam no próximo vilarejo à noite e chegariam a Brezno ao meio-dia de amanhã. Jan imaginou o que ele encontraria lá.

Ele estava sozinho na carruagem.

Jan pedira ao vatarh Pauli para vir com ele, como a matarh solicitara. Os criados disseram que Pauli estava em seus aposentos na propriedade, em uma ala separada dos aposentos de Allesandra. O assistente chefe de Pauli entrou para anunciar o filho e retornou com as sobrancelhas arqueadas. — Seu vatarh disse que pode ceder alguns momentos — falou o homem ao acompanhar Jan em uma das salas de recepção depois do corredor principal.

Jan ouviu os risinhos abafados de duas mulheres vindo de um quarto que dava para a sala de recepção. A porta foi aberta em meio a risada rouca de um homem. O vatarh vestia um robe, o cabelo estava desgrenhado e revolto, a barba encontrava-se por fazer. Ele cheirava a perfume e vinho. — Um instante — disse Pauli para Jan. Ele tocou os lábios com um dedo antes de cambalear um pouco até a porta que levava ao quarto abrindo-a ligeiramente. — Shh! — falou alto. — Estou tentando levar uma conversa sobre minha esposa com meu filho. — O que foi recebido com uma risada estridente.

— Diga ao garoto para se juntar a nós. — Jan ouviu uma delas gritar, e sentiu o rosto ficar vermelho com o comentário, enquanto Pauli apontava o dedo na direção da mulher que não podia ser vista.

— Vocês duas são umas safadas encantadoras — disse Pauli para elas. Jan imaginou as mulheres: com perucas e ruge no rosto, seminuas ou talvez completamente nuas, como um dos quadros das deusas moitidis que decoravam os salões. — Voltarei em um instante — continuou Pauli. — Bebam mais vinho, moças.

Ele fechou a porta e apoiou-se pesadamente contra ela. — Desculpe. Eu estou com... companhia. Então, o que a megera queria? Ah, é melhor você dizer por mim para a sua matarh que o a’gyula da Magyaria Ocidental tem coisas melhores para fazer do que ir a Brezno porque alguém pode ou não estar morrendo. Quando o velho desgraçado finalmente der seu último suspiro, sem dúvida eu serei enviado ao funeral como nosso representante, e isso ocorrerá em breve. — As palavras saíram arrastadas. Ele pestanejou lentamente e arrotou. — Você também não precisa ir, garoto. Por que não fica aqui? Nós dois podemos nos divertir, hein? Tenho certeza de que estas moças têm amigas...

Jan balançou a cabeça. — Eu prometi para a matarh que pediria ao senhor que viesse, e foi o que fiz. Eu parto hoje à noite; os criados estão quase terminando de arrumar as carruagens.

— Ah sim — disse Pauli. — Você é um filho tão bom e obediente, não é? O orgulho e alegria de sua matarh. — Ele afastou-se da porta e cambaleou enquanto apontava um dedo para Jan, que andava de um lado para o outro. — Você não quer ser como ela. Sua matarh não ficará satisfeita enquanto não dominar o mundo inteiro. Ela é uma vadia ambiciosa com um coração duro como pedra.

Jan já tinha ouvido Pauli insultar sua matarh mil vezes, e a cada ano que passava mais. Antes ele sempre rangia os dentes, fingia não escutar ou murmurava uma reclamação que Pauli ignoraria. Agora... o rubor que surgia no rosto de Jan tornou-se vermelho como lava. Ele cruzou o aposento acarpetado com três passos ligeiros, levou a mão para trás e deu um tapa na cara do vatarh. Pauli cambaleou contra a porta, que se abriu e fez com que ele desmoronasse ali, sobre um tapete trançado. Jan viu duas mulheres dentro do quarto — realmente seminuas sobre a cama do vatarh. Elas cobriram os seios com os lençóis e gritaram. Sem acreditar, Pauli levou a mão ao rosto; sobre a barba fina, Jan pôde ver a marca dos dedos na bochecha do vatarh.

Ele imaginou por um instante o que faria se Pauli se levantasse, mas o vatarh apenas pestanejou novamente e riu como se tivesse levado um susto.

— Bem, você não precisava fazer isso — disse Pauli.

— O senhor pode pensar o que bem entender da matarh. Eu não me importo. Porém, de agora em diante, vatarh, guarde suas opiniões para o senhor ou trocaremos mais do que palavras. — Dito isso, antes que Pauli conseguisse se levantar do tapete ou responder, Jan virou-se e apressou-se a sair da sala.

Ele se sentiu estranhamente alegre. A mão formigava. Pelo resto do dia, Jan esperou ser chamado à presença do vatarh — assim que o vinho tivesse ido embora da cabeça do homem. Porém, até ser informado de que as carruagens estavam prontas e à espera, Jan não tinha ouvido nada. Ele ergueu os olhos para as janelas da ala do vatarh ao entrar na carruagem principal, enquanto os criados que viajariam com ele subiam nas outras. Jan pensou ter vislumbrado uma silhueta observando da janela e levantou a mão — a mão que batera no vatarh.

Outra silhueta, uma forma feminina, aproximou-se do vatarh por trás, e a cortina fechou-se novamente. Jan entrou na carruagem. — Vamos — falou para o condutor. — Temos uma longa jornada à frente.

Ele olhou mais uma vez pela janela da carruagem. Pela maior parte da jornada, Jan ficou remoendo o que aconteceu. Ele tinha quase 16 anos. Era quase um homem. Até já tivera sua primeira amante: uma garota ce’ que fizera parte do corpo de funcionários da casa, embora a matarh de Jan tivesse mandado a menina embora quando percebeu que eles se tornaram íntimos. Ela também deu um longo sermão sobre o que esperava dele. — Mas o vatarh... — Jan começara a falar, e Allesandra interrompeu o protesto com um golpe forte da mão.

— Pare aí, Jan. Seu vatarh é preguiçoso e libertino, e, desculpe a grosseria, ele geralmente pensa com o que tem entre as pernas, não com a cabeça. Você é melhor do que ele, Jan. Vai ser importante neste mundo, se escolher não ser o filho de seu vatarh. Eu sei disso. Prometo a você.

Ela não dissera tudo que poderia ter dito, e ambos sabiam disso. Pauli podia ser o vatarh de Jan, mas para ele isto era apenas outro título, e não uma ocupação. Era a matarh quem Jan via todo dia, que brincava com ele quando era pequeno, que ia vê-lo todas as noites após as babás o colocarem na cama. Seu vatarh... Ele era uma figura alta que às vezes mexia no cabelo de Jan ou dava presentes extravagantes que pareciam mais um pagamento pela ausência do que presentes de verdade.

Seu vatarh era o a’gyula da Magyaria Ocidental, filho do atual gyula, o governante que Jan via com tanta frequência quanto o outro vavatarh, o hïrzg. As pessoas faziam mesuras na presença de Pauli, riam e sorriam quando falavam com ele. Mas Jan ouvia os sussurros dos funcionários e dos convidados quando eles pensavam que ninguém escutava.

Sua mão direita pulsava, como se lembrasse do tapa na cara do vatarh. Jan olhou para a mão à luz do fim do dia: uma mão de adulto agora. O tapa na cara do vatarh fez com que ele rompesse com a infância para sempre.

Jan não seria como seu vatarh. Ao menos isso ele se prometeu. Jan teria a própria personalidade. Independente.

 

Varina ci’Pallo

VARINA ESTAVA AO LADO de Karl na elegante sala de recepção da archigos, mas — como quase sempre era o caso quando Ana se encontrava no mesmo ambiente — ela parecia invisível a ele. Toda a atenção de Karl estava voltada para a archigos. Varina queria se virar e dar um tapa na cara dele. Você não enxerga o que está diante da sua cara? Você é tão distraído assim?

Parecia que ele era. Karl sempre fora abstraído e sempre seria quando Ana estivesse envolvida. Ao longo dos anos, Varina chegou a essa conclusão. Talvez tivesse sido diferente se a própria Varina não gostasse e admirasse a archigos, se não considerasse a mulher uma amiga. Ainda assim...

— Você tem certeza disso? — perguntou Karl para Ana. Ele olhava para um pergaminho dado pela archigos e batia com o indicador nas palavras escritas ali. — Ele está morto? — Não havia traço algum de tristeza em sua voz; na verdade, Karl sorria ao devolver o papel para a archigos.

Ana franziu a testa. Se Karl considerou boas as notícias, era óbvio para Varina que a opinião de Ana era mais ambígua. — O hïrzg Jan está morrendo — falou a archigos. — E suspeito que ele provavelmente já morreu a esta altura, se a informação for correta. O téni que enviou esta mensagem tem o toque da cura; ele saberia dizer se o homem está além da salvação.

— Até que enfim o velho urubu morreu — disse Karl. Ele olhou ao redor da sala, pensativo, mas não para Varina. — Você já falou com Allesandra? Ela vai contestar o direito de Fynn ao trono?

— Não sei. — Ana pareceu suspirar. Ela nunca fora bonita; na melhor das hipóteses, quando jovem, Ana fora uma mulher singela. Até mesmo ela teria admitido isso. Agora, ao chegar à meia-idade, Ana tornou-se uma figura matrona, mas havia algo de impressionante, confiável e cativante a seu respeito. Varina conseguia entender a atração e a devoção de Karl pela mulher, mesmo que parte dela se ressentisse com isso. A reputação de Ana só cresceu ao longo dos anos. As pessoas riam do kraljiki Justi pelas costas, e a situação não parecia ser diferente com seu filho, Audric, e havia aqueles na Fé que consideravam heréticas a tolerância e a franqueza de Ana, mas o povo de Nessântico e dos Domínios parecia adorar sua archigos e ter afeição por ela. Varina já tinha visto as multidões em volta do templo sempre que Ana ia dar uma Admoestação e já tinha ouvido a aclamação quando a carruagem da archigos passava pela Avi a’Parete.

— Se Allesandra estivesse no trono de Firenzcia, eu me sentiria melhor a respeito disso tudo — continuou Ana. — Sentiria que haveria esperança de que os Domínios pudessem ser restaurados. Se Allesandra fosse a hïrzgin... — Outro suspiro. Ana olhou sobre seus ombros, na direção do enorme ornamento de globo partido que se destacava no outro canto da sala: dourado e cravejado de joias, com esculturas dos moitidis, os semideuses que eram filhos de Cénzi, se contorcendo de agonia na base. A voz era quase um sussurro, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse escutá-la secretamente. — Então eu poderia considerar abrir negociações com Semini ca’Cellibrecca, para ver se a fé concénziana também poderia ser reunificada.

Varina fez uma expressão de aflição, e Ana dirigiu um olhar compreensivo a ela. — Eu sei, Varina. Garanto que a segurança dos numetodos não será negociável, mesmo que eu estivesse disposta a abdicar do título de archigos em favor de Semini. Eu não permitiria que as perseguições se repetissem.

— Você não pode confiar que ca’Cellibrecca manterá essas promessas — falou Varina. — Ele é praticamente filho de seu vatarh por casamento.

— Ca’Cellibrecca estaria obrigado a cumprir uma promessa pública, assim como seus votos a Cénzi.

— Você tem mais fé nele do que eu — respondeu Varina. O que fez Ana sorrir.

— É estranho ouvir um numetodo falar de fé — disse a archigos. Ela tocou o ombro de Varina sob a tashta e deu uma risada amigável. — Mas entendo sua preocupação e seu ceticismo. Peço que confie em mim; se a situação chegar a este ponto, eu garanto que você, Karl e seu povo serão protegidos.

— Será que a situação chegará a esse ponto? — interrompeu Karl, que observou as mãos de Ana como se quisesse que ela o tocasse. — Acha que há chances, Ana?

Ela olhou para o papel em sua mão como se procurasse uma resposta ali, depois se virou para pousar o pergaminho em uma mesa próxima. Ele emitiu um pequeno ruído; estranho, pensou Varina, para algo com tão pesada importância. — Eu não sei — falou Ana. — Allesandra e o irmão não se toleram. Dado o tempo que Allesandra esteve aqui comigo enquanto ambos cresciam, eles são mais estranhos do que irmãos, e o jeito com que o hïrzg Jan tratou Allesandra quando ele de fato pagou o resgate por ela... — Ana balançou a cabeça. — Mas eu não sei mais o que Allesandra quer ou quais seriam seus desejos e ambições. Eu achei que soubesse antigamente, mas...

— Você foi uma matarh para ela — disse Karl, Ana riu novamente.

— Não, não fui isso. Talvez uma irmã mais velha ou uma tantzia. Tentei ser alguém com quem ela pudesse estar segura, porque a pobre criança ficou completamente sozinha aqui por tempo demais. Não consigo imaginar como isso pode tê-la magoado.

— Você foi maravilhosa com ela — insistiu Karl. Varina observou Karl estender a mão para pegar a de Ana. Doía ver o gesto. — Foi sim.

— Obrigada, mas eu sempre imagino se poderia ter feito mais, ou melhor — disse Ana, que afastou lentamente suas mãos das de Karl. — Fiz o que pude. Isto é tudo que Cénzi pode pedir, creio eu. — Ana sorriu. — Vamos ver o que acontece, não é? Manterei vocês dois informados assim que souber de mais notícias.

— Você ainda está disponível para jantar amanhã? — perguntou Karl para Ana.

O olhar da archigos deslizou de Karl para Varina e de volta para Karl. — Sim, após a Terceira Chamada. Gostaria de se juntar a nós, Varina?

Ela sentiu o olhar de Karl. — Não — disse Varina, às pressas. — Não posso, archigos. Tenho uma reunião com Mika e uma aula para dar... — Desculpas demais, mas Karl assentiu com a cabeça. A satisfação dele diante da resposta de Varina foi como o corte de uma pequena navalha.

— Amanhã à noite, então — disse Karl. — Aguardo ansiosamente o jantar. Talvez fosse melhor nós irmos embora, Varina. Tenho certeza de que a archigos tem outros compromissos... — Ele inclinou a cabeça na direção de Ana e começou a andar na direção da porta. Varina virou-se para segui-lo, mas Ana chamou-a quando eles deram as costas.

— Varina, um momento? Karl, eu a mando imediatamente, prometo.

Karl olhou para trás, intrigado, mas fez uma mesura novamente e caminhou em direção às portas. Os dois enormes painéis eram entalhados com baixos-relevos dos moitidis em batalha, com espadas que se sobrepunham e colidiam na junção. Karl puxou as portas e os combatentes se separaram. Varina esperou até que a madeira escura e envernizada se fechasse enquanto ele saia e os moitidis novamente estivessem em guerra.

— Archigos?

— Eu queria um momento com você, Varina, porque estou preocupada — falou Ana. — Você parece tão cansada e abatida. Magra. Eu sei o quanto você anda envolvida com sua... pesquisa. Está se lembrando de comer?

Varina tocou seu rosto. Ela sabia o que Ana dizia. Tinha visto o rosto no espelhinho que mantinha sobre a penteadeira. As pontas dos dedos percorreram o traçado das novas rugas que surgiram nos últimos meses e sentiram a aspereza dos cabelos grisalhos nas têmporas. Ela tinha medo de se olhar no espelho a maioria das manhãs; o rosto refletido era o de uma estranha mais velha que Varina mal reconhecia. — Eu estou bem — respondeu automaticamente.

— Está mesmo? — perguntou Ana novamente. — Estas “experiências” que Karl diz que você está fazendo para tentar recriar o que Mahri podia fazer... — Ela balançou a cabeça. — Eu me preocupo com você, Varina. E Karl também.

“E Karl também...”, ela queria poder acreditar nessas palavras. — Eu estou bem — repetiu Varina.

— Eu poderia usar o Ilmodo, se você quisesse. Isso pode ajudar, se você estiver sofrendo.

— Você desobedeceria a Divolonté e me curaria? Uma ateísta? Archigos! — Varina sorriu para Ana, que devolveu o gesto.

— Eu confio a você meus segredos — disse Ana. — E a oferta continua de pé, se algum dia sentir necessidade.

— Obrigada, archigos. Não me esquecerei disso. — Ela apontou com a cabeça para os moitidis em guerra silenciosa. — É melhor eu alcançar Karl.

— Sim, é melhor. — Ana começou a fazer o sinal de Cénzi para Varina, depois se deteve. — Eu posso falar com ele.

— Archigos?

— Eu tenho olhos. Quando vejo você com ele...

Varina riu. — Você é a única que ele enxerga, archigos.

— E eu sou comprometida com Cénzi. Com ninguém mais. Não estou destinada a este tipo de relacionamento nesta vida. Eu disse isso a ele. Aprecio a amizade de Karl e tudo que ele fez por mim e por Nessântico. Eu o amo muito, mais do que um dia amei outra pessoa. Mas o que ele quer... — A cabeça acenou lentamente de um lado para outro enquanto Ana cerrava os lábios. — Você deveria dizer a ele como você se sente.

— Se eu preciso dizer a ele, então é óbvio que o sentimento não é mútuo — respondeu Varina. Ela conseguiu dar um sorriso forçado. — E estou comprometida com meu trabalho, como você é comprometida com Cénzi.

Ana deu um passo à frente e um rápido abraço em Varina. — Então Karl é um tolo por não ver como somos parecidas.

 

Audric ca’Dakwi

NEM MESMO UM KRALJIKI podia evitar ter aulas ou fazer provas para raspar qualquer essência de conhecimento grudada no interior do crânio.

Audric estava diante do Trono do Sol com as mãos entrelaçadas nas costas, voltado para seu professor, mestre ci’Blaylock. Atrás do mestre magro, frágil e sujo de giz, a plateia olhava Audric com sorrisos de incentivo: alguns chevarittai enfeitados com Medalhas de Sangue, os ca’ e co’, os cortesãos de sempre, Sigourney ca’Ludovici, e alguns outros integrantes do Conselho dos Ca’... todos aqueles que queriam que Audric notasse seu comparecimento ao exame trimestral do jovem kraljiki. Com 14 anos, Audric estava bem ciente da atenção bajuladora que recebia por conta de seu título e linhagem.

Eles não estavam aqui pelo exame; estavam aqui para serem vistos. Por ele. E apenas por ele.

Audric sentia prazer ao pensar nisto.

— Ano 471 — entoou ci’Blaylock ao erguer os olhos do púlpito carregado de papiros onde estava. — A linhagem dos kralji.

Uma pergunta fácil. Sem desafio algum. — Kraljica Marguerite ca’Ludovici — respondeu Audric rapidamente e com firmeza. Ele tossiu, então, como fazia frequentemente, e acrescentou — Também conhecida como a Généra a’Pace.

E também minha mamatarh... O retrato de Marguerite ficava pendurado no quarto de Audric. A obra era de um realismo perturbador e foi pintada pelo falecido mestre artista Edouard ci’Recroix, que também criara o grande painel de uma família de camponeses que enfeitava o próprio salão do Trono do Sol. Marguerite observava o neto toda noite, enquanto ele dormia, e dava o mesmo meio sorriso cansado e estranho toda manhã quando Audric acordava. Muitas vezes ele quis ter tido a oportunidade de conhecê-la de verdade, ele certamente já tinha ouvido muitas histórias a respeito da mamatarh. Às vezes Audric imaginava se todas elas eram verdade: na memória do povo de Nessântico, a kraljica Marguerite governou durante uma Era de Ouro, uma era de luz do sol, comparada às políticas tempestuosas do presente.

A corte sorriu e aplaudiu com educação a resposta. A maior parte da alegria era indubitavelmente motivada pelo fato de que eles finalmente se aproximavam do fim do exame, conforme o mestre ci’Blaylock descia a escada da história. Eles começaram há quase meia-virada da ampulheta, no ano 413, com o kraljiki Henri VI, o primeiro ano da linhagem ca’Ludovici, da qual o próprio Audric descendia; os espectadores ficaram de pé o tempo todo, desde então; afinal, ninguém se senta na presença do kraljiki sem permissão. Audric sabia as respostas das próximas perguntas que faltavam; e como não saberia, sendo elas tão envolvidas com a vida de sua família? Um suspiro praticamente inaudível veio da corte, juntamente com o farfalhar de tecido conforme as pessoas trocavam os pés de apoio. — Correto — disse ci’Blaylock, bufando. Ele tinha pele negra, como muitos que vinham da província de Navarro. O mestre molhou a ponta da pena no pote de nanquim do púlpito e fez uma demorada marca no papiro aberto. O traçado da pena era sonoro. As sobrancelhas brancas tremulavam sobre os olhos opacos de catarata. — Ano 485. A linhagem dos archigi.

Tosse. — Archigos Kasim ca’Velarina. — Tosse.

Mais aplausos educados, e outro mergulho e traçado da pena. — Correto. Ano 503. A linhagem dos archigi.

Audric respirou fundo e tossiu novamente. — Archigos Dhosti ca’Millac, o Anão. — Aplausos. Traço da pena. Audric ouviu as portas do fundo do salão serem abertas; o regente Sergei ca’Rudka entrou a passos largos e rápidos na direção de Audric. Apesar da idade, o regente movia-se com energia e uma postura ereta. Os cortesãos, com um olhar cauteloso, afastaram-se rapidamente para abrir caminho. O nariz artificial de prata de Sergei alternava entre brilhar e se ofuscar sob os fracos feixes de luz do sol que entravam pelas janelas.

— Correto — entoou ci’Blaylock. — Ano 521. A linhagem dos kralji.

Esta era fácil: esse foi o ano em que o vatarh de Audric assumiu o Trono do Sol, após o assassinato de Marguerite. Audric respirou fundo novamente, mas o esforço rendeu outro espasmo momentâneo de tosse preenchida pelo horrível som de líquido nos pulmões. Passada a tosse, ele empertigou-se e pigarreou. — Kraljiki Justi ca’Dakwi — disse ele para ci’Blaylock e os cortesãos. — O Grande Guerreiro — acrescentou. Esta foi a alcunha que Justi deu a si mesmo. Audric tinha ouvido as outras alcunhas dadas a Justi, que as pessoas sussurravam quando achavam que ninguém as estava escutando. Justi, o Perneta; Justi, o Incompetente; Justi, o Grande Fracasso.

Ninguém teria se atrevido a dizer essas alcunhas na cara do kraljiki quando Justi era vivo. Audric olhou para os sorrisos estampados nas caras dos ca’ e co’ e imaginou por quais alcunhas ele era chamado quando não estava presente para escutar.

Audric, o Enfermo. Audric, o Fantoche do Regente.

Novamente os espectadores aplaudiram. Sergei, de braços cruzados, não se juntou a eles. Ele observava logo atrás do mestre ci’Blaylock, que parecia sentir a pressão da presença do homem. Ele deu uma olhadela sobre seus ombros, viu o regente e tremeu visivelmente. — Hum... — O velho balançou a cabeça, olhou para o papiro, mergulhou um dedo sujo de nanquim no papel. — Ano 521. A linhagem dos archigi.

Esta era uma resposta mais longa, mas ainda fácil. — Archigos Orlandi ca’Cellibrecca, o Grande Traidor e primeiro falso archigos de Brezno. — Audric tossiu novamente e fez uma pausa para pigarrear. — Então, no mesmo ano, depois que ca’Cellibrecca traiu a fé concénziana e o kraljiki Justi em Passe a’Fiume: archigos Ana ca’Seranta, a mais jovem téni a ser nomeada archigos da história.

Ana, que ainda mantinha o título de archigos. Ana, que Audric amava como se fosse a matarh que ele jamais conhecera. Audric sorriu ao mencionar seu nome, e o aplauso que se seguiu foi genuíno — a archigos Ana era muito amada, com sinceridade, pelo povo de Nessântico.

— Correto — falou ci’Blaylock. — Também no ano 521. Guerra e política.

— A rebelião do hïrzg Jan ca’Vörl — respondeu Audric rapidamente. As guturais sílabas firenzcianas provocaram um espasmo em seus pulmões novamente. Foram necessárias várias respirações para que a tosse parasse e ele conseguisse falar novamente. — O hïrzg foi derrotado pelo kraljiki Justi na Batalha dos Brejos — disse Audric com a voz rouca, finalmente.

— Excelente! — A voz não era de ci’Blaylock, mas sim de Sergei, que aplaudiu alto e caminhou até ficar ao lado de Audric. Os cortesãos uniram-se aos aplausos com atraso e incerteza. Audric notou que Sigourney ca’Ludovici não aplaudiu, apenas cruzou os braços e o olhou intensamente. — Mestre ci’Blaylock, tenho certeza de que o senhor já ouviu o suficiente para fazer seu julgamento — continuou Sergei.

Ci’Blaylock franziu a testa. — Regente, eu não termi... — Ele parou, e Audric viu o mestre encarar a expressão fechada do regente. Ci’Blaylock pousou a pena e começou a enrolar o papiro da prova. — Sim, foi muito satisfatório. Muito bem, kraljiki, como sempre.

— Ótimo — disse Sergei. — Agora, se todos os senhores nos dão licença...

A dispensa do regente foi abrupta, mas efetiva. O mestre ci’Blaylock reuniu os papiros e mancou na direção da porta mais próxima; os cortesãos recuaram como filetes de neblina em uma manhã de sol e sorriram até virar as costas. Audric ouviu as frenéticas especulações sussurradas ao saírem do salão. Sigourney, no entanto, fez uma pausa. — É algo que o Conselho dos Ca’ deva saber? — perguntou ela para Sergei. Sigourney não olhava para Audric; era como se ele não fosse importante o suficiente para ser notado.

Sergei balançou a cabeça. — Não no momento, conselheira ca’Ludovici. Se for o caso, fique tranquila que a senhora será avisada imediatamente.

Sigourney torceu o nariz diante da resposta, mas acenou com a cabeça para Sergei e fez a mesura apropriada para Audric antes de sair do salão. Apenas alguns criados permaneceram, parados em silêncio perto das paredes de pedra cobertas por tapeçarias, enquanto dois e’ténis — sacerdotes da fé concénziana — sussurravam preces ao acender lamparinas para diminuir a luz difusa. Na parede próxima ao Trono do Sol, os rostos da família de camponeses no quadro de ci’Recroix pareciam tremer sob a luz do fogo mágico.

— Obrigado, Sergei — disse Audric. Ele tossiu e cobriu a boca com a mão fechada. — Mas você podia ter vindo meia-virada da ampulheta mais cedo e me poupado de todo esse martírio.

Sergei deu um sorriso irônico. — E encarar a fúria do mestre ci’Blaylock? Nem pensar. — Ele fez uma pausa, e as rugas em volta do nariz de metal adquiriram uma expressão séria. — Eu teria estado aqui mais cedo para ouvir sua prova, kraljiki, mas acabei de receber uma mensagem de um contato em Firenzcia. Há notícias que acho que o senhor deve ouvir antes do Conselho: o hïrzg Jan de Firenzcia está em seu leito de morte. Não esperam que ele sobreviva além desta semana. Pode ser que já esteja morto, pois a mensagem é de dias atrás.

— Então o a’hïrzg Fynn se tornará o novo hïrzg? Ou Allesandra irá se contrapor à ascensão do irmão?

O sorriso irônico de Sergei voltou momentaneamente. — Ah, então o senhor presta mesmo atenção nos meus relatórios. Que bom. Isto é bem mais importante do que as aulas do mestre ci’Blaylock. — Ele meneou a cabeça. — Duvido que Allesandra vá protestar. Ela não tem apoio suficiente entre os ca’ e co’ de Firenzcia para contestar o testamento do hïrzg Jan.

— Qual dos dois nós preferiríamos?

— Nossa preferência seria por Allesandra, kraljiki. Após uma década ou mais que ela passou aqui, à espera que o hïrzg Jan pagasse seu resgate, nós a conhecemos muito mais. A archigos Ana sempre teve um bom relacionamento com ela, e Allesandra é bem mais favorável aos Domínios. Se ela se tornasse a hïrzgin... bem, talvez houvesse alguma esperança de reconciliação entre os Domínios e a Coalizão. Poderia até mesmo haver uma pequena possibilidade de que conseguíssemos voltar a como as coisas eram na época de sua mamatarh, com o senhor no Trono do Sol sob os Domínios reunificados. Mas com Fynn como hïrzg... — Sergei meneou a cabeça outra vez. — Fynn puxou ao vatarh, tão belicoso e teimoso quanto ele. Se Fynn for hïrzg, teremos de vigiar nossa fronteira oriental com atenção, o que significa ter menos recursos à disposição para a guerra nos Hellins, infelizmente.

Audric curvou-se com outro acesso de tosse, e Sergei colocou a mão com gentileza em seu ombro. — Sua tosse está piorando novamente, kraljiki. Mandarei os curandeiros fazerem outra poção para o senhor, e talvez a archigos Ana faça uma visita amanhã, depois da cerimônia do Dia do Retorno. É um pouco cedo, mas com as chuvas do mês passado...

— Eu estou melhor agora — disse Audric. — É apenas o ar úmido aqui no salão. — A e’téni mais próxima interrompeu o cântico, as mãos ficaram paralisadas em meio à moldagem do Ilmodo – a energia que abastecia sua magia. Ela era uma jovem moça não muito mais velha que Audric e ficou vermelha quando se vira notada pelo kraljiki, rapidamente afastou o olhar e recomeçou o cântico: a lamparina presa no alto da parede foi acesa quando as mãos realizaram o gestual do Ilmodo abaixo dela.

O peito de Audric começava a doer com o esforço da tosse. Ele odiava ficar doente, mas parecia estar sempre assim desde que se entendia por gente. Se uma doença fosse contraída pelo corpo de funcionários do palácio, certamente ele pegaria; Audric sofria constantemente de acessos de tosse e de uma dificuldade para respirar. Qualquer esforço físico rapidamente deixava o kraljiki exausto e ofegante. Entretanto, de alguma maneira Cénzi o protegera de um surto de febre do sol aos quatro anos de idade, embora a doença tenha levado sua irmã mais velha, Marguerite, batizada em homenagem à famosa mamatarh e preparada para ser a kraljica quando o vatarh deles morresse. O funeral oficial da irmã — uma cerimônia longa e triste — foi uma de suas primeiras memórias.

Deveria ser Marguerite aqui, agora, não ele. Audric tinha esperanças de que isso significasse que Cénzi tinha um plano para ele.

Ele respirou fundo e desta vez prendeu a tosse que ameaçava surgir. — Pronto, viu só? É só o ar úmido e ter que responder a todas aquelas malditas perguntas do mestre.

— Ao menos as perguntas do mestre têm respostas definitivas. As soluções para um kraljiki raramente são claras, como o senhor já sabe. — Sergei colocou o braço em volta de Audric, que se apoiou no abraço do homem. “Confie em ca’Rudka como seu regente”, sussurrara seu vatarh deitado na cama durante aquele último dia. “Confie nele como você confiaria em mim...”

A verdade era que Audric nunca confiou totalmente em seu vatarh, cujo temperamento e favoritismo eram, na melhor das hipóteses, inconstantes. Mas Sergei... Audric achava que o homem tinha sido a última boa escolha de seu vatarh. Sim, ele podia sofrer cada vez mais nas mãos do regente conforme se aproximava da maioridade, podia se irritar com as pessoas às vezes tratando Sergei como se ele fosse o kraljiki, mas Audric não podia ter pedido um aliado mais leal nos ventos caóticos da corte do kraljiki.

Não importava o que os cortesãos murmuravam a respeito do regente. Não importava o que o homem fazia nas masmorras da Bastida ou com as grandes horizontales que ele às vezes levava para a cama.

— Imagino que devemos redigir um comunicado pela morte do hïrzg — falou Audric. — E que devemos ouvir dez conselheiros diferentes pedindo que respondam de vinte maneiras diferentes. E mais dez assessores que nos dirão o que precisamos fazer a respeito dos Hellins no oeste.

Sergei riu. Seu braço estreitou-se em volta do ombro de Audric, depois soltou o kraljiki e esfregou o nariz de prata como se tivesse sentido uma coceira. — Sem dúvida. Eu diria que o senhor aprendeu muito bem todas suas lições, kraljiki.

 

Sergei ca’Rudka

SUA AUGUSTA PRESENÇA, o kraljiki Audric, curvou-se em sua cadeira elevada e estofada ao lado de Sergei e tossiu tão desesperadamente que o regente inclinou seu corpo na direção do garoto. — O senhor precisa de um pouco do xarope do curandeiro, kraljiki? Eu mando um dos criados trazer aqui... — Ele começou a gesticular, mas Audric pegou seu braço.

— Espere, Sergei. Vai passar — disse Audric ao tomar fôlego três vezes. Espere, Sergei (fôlego). Vai (fôlego) passar... O mero esforço de segurar o braço de Sergei deixou o garoto visivelmente cansado.

Sergei esfregou a superfície reluzente do nariz falso grudado em seu rosto; o original fora perdido há décadas em uma luta de espada na juventude. — O senhor prefere retornar ao palácio, kraljiki? A fumaça dos incensários e o incenso não devem fazer bem para seus pulmões, e a archigos entenderá. De qualquer maneira, ela visitará o senhor assim que terminar aqui.

— Nós ficaremos, Sergei. É aqui que devo estar. — Nós ficaremos (fôlego) Sergei (fôlego, tosse, fôlego). É aqui (fôlego) que devo (fôlego) estar...

Sergei concordou com a cabeça. Quanto a isso, o garoto estava certo. Os dois estavam sentados na sacada real do Templo da Archigos, na margem sul do rio A’Sele, em Nessântico. Embaixo, o piso principal do templo estava lotado de devotos para o Dia do Retorno. A archigos Ana estava com vários a’ténis no coro do templo. Seu cabelo, com mechas grisalhas nas têmporas, reluzia sob a luz das lamparinas mágicas, a voz forte e possante recitava os trechos do Toustour. O Dia do Retorno era a cerimônia do solstício da primavera, que preparava os fiéis para o eventual retorno de Cénzi ao mundo que Ele criara. Comparecer era dever do kraljiki Audric, e era por isso que o templo estava com todos os cantos absolutamente lotados de chevarittai, dos ca’ e co’, de famílias de menor status que conseguiram se enfiar nos espaços que sobraram; todo mundo estava lá para ver o jovem kraljiki e talvez também para ser visto por ele: atrás de um pedido, de uma requisição, ou talvez porque o kraljiki ainda não fosse comprometido com ninguém, apesar dos insistentes rumores de que o regente tinha a intenção de fazer um arranjo com uma das grandes famílias dos Domínios.

Eles também deviam ter notado as tosses fortes e secas do kraljiki, que pontuavam a leitura da archigos Ana. Até mesmo ela parou uma vez no meio da recitação para erguer o olhar com preocupação e solidariedade na direção da sacada. A archigos acenou com a cabeça de maneira praticamente imperceptível para Sergei, e o regente soube que ela correria para o palácio depois da cerimônia. Sergei inclinou o corpo novamente e sussurrou no ouvido do garoto. — A archigos prometeu fazer uma visita após terminarmos aqui e rezar pelo senhor. Ela sempre o ajuda, eu sei. O senhor conseguirá aguentar essa crise sabendo que se sentirá melhor em breve.

Audric concordou com a cabeça, de olhos arregalados, e conteve outra tosse com um lenço perfumado. Sergei perguntou-se se Audric sabia — tanto quanto ele — que a razão pela qual as “preces” da archigos o ajudavam tanto era que Ana usava suas habilidades com a magia do Ilmodo para curar os pulmões arruinados de Audric, o que ia contra as leis da Divolonté que governavam a fé concénziana. Era algo que Ana fazia desde pouco depois do nascimento de Audric, quando ficou claro que a vida do menino estava em perigo. Ela fizera praticamente a mesma coisa pela mamatarh de Audric, a tão lastimada kraljica Marguerite, em seus últimos dias, mantendo a soberana viva quando ela teria morrido sem interferência.

Fazia um mês desde a última visita da archigos Ana com este objetivo; era óbvio que a doença do garoto retornou mais uma vez, como sempre fazia, inevitavelmente. Audric dobrou o lenço e guardou novamente na bashta; Sergei viu manchinhas vermelhas no linho. Não falou nada, mas decidiu que mandaria um recado para Ana dizendo que, em vez de ela ir ao palácio, eles a encontrariam imediatamente depois da missa, nos aposentos da archigos. O garoto precisava de cuidados rapidamente.

Sergei recostou-se na cadeira quando a archigos Ana foi até o Alto Púlpito para proferir a Admoestação para o público, enquanto o coro na galeria começava um hino de Darkmavis. Os ca’ e co’ agitaram-se em suas roupas elegantes. Sergei viu Karl ca’Vliomani acenar com a mão para ele perto da lateral do templo — ca’Vliomani, embaixador da Ilha de Paeti e da facção dos numetodos, não era um fiel, mas Sergei sabia que o embaixador e a archigos Ana tinham sido, se não amantes de fato, ao menos amigos e confidentes desde antes da Batalha dos Brejos, há 24 anos. Durante aquele combate, a jovem archigos Ana usou tanto a magia dos numetodos quanto a própria para tirar a a’hïrzg Allesandra de Firenzcia de seu vatarh e mantê-la como refém contra a retirada do hïrzg. O plano funcionou, embora Firenzcia e os países vizinhos tenham se separado dos Domínios como resultado das hostilidades e tenham formado a Coalizão Firenzciana.

Sergei viu-se considerando, novamente, se a derrota das forças firenzcianas nas mãos de Ana foi realmente o triunfo que todos eles pensavam, se não teria sido melhor para os Domínios que o hïrzg Jan tivesse tomado a cidade e se tornado kraljiki. Se isso tivesse ocorrido, tanto Ana quanto o próprio Sergei estariam mortos, mas muito provavelmente haveria apenas os Domínios, e nenhuma Coalizão rival. Haveria apenas uma fé concénziana. Se isso tivesse ocorrido, o então novo kraljiki teria lidado plenamente com o levante dos ocidentais em Hellins com todos os recursos da Garde Civile, e sem ter que se preocupar com o que poderia acontecer no leste.

Se isso tivesse ocorrido, Justi então, o Tolo Perneta, jamais teria se tornado kraljiki e Audric nunca teria sido seu herdeiro, e Nessântico prosperaria em vez de definhar.

Sergei, francamente, nunca esperou que a archigos Ana fosse capaz de manter o título — ela fora muito jovem e inocente, mas o fogo da Batalha dos Brejos forjou o espírito de aço dentro dela. Ana provou ser mais forte do que qualquer a’téni que pudesse ter tentado tomar seu lugar, mais forte do que o archigos rival em Brezno, e certamente mais forte do que o kraljiki Justi, que acreditou que poderia controlar a Fé através dela.

No fim das contas, Jan não foi capaz de dominar nada: nem Ana, nem a Fé, nem os Domínios. Enquanto Ana fora bem-sucedida de maneira surpreendente como archigos, Justi fora uma catástrofe como kraljiki.

Justi, o Perneta, gastou em duas décadas o que sua matarh e os kralji antes dela levaram mais de cinco séculos para criar, e coube a nós pagar por sua incompetência com os Domínios e a Fé rompidos em facções orientais e ocidentais. E agora os problemas nos Hellins complicam a questão, ao mesmo tempo em que temos um menino no Trono do Sol que pode não viver para gerar um herdeiro.

Sergei suspirou e fechou os olhos enquanto ouvia o coral. Ele iria à Bastida amanhã de manhã e aplacaria suas preocupações com dor. Encontraria alívio nos gritos. Sim, isto seria ótimo. Os acordes finais flutuavam reluzentes na mente do regente, e ele ouviu a archigos subir os degraus do Alto Púlpito.

Sergei se lembraria do momento seguinte pelo resto da vida.

Uma luz violenta e impossível surgiu, como se Cénzi tivesse mandado um raio dos céus através do domo dourado acima. A luz intensa penetrou as pálpebras fechadas de Sergei; um trovão rugiu em seus ouvidos, e uma onda de choque bateu em seu peito. Por instinto, o regente jogou-se sobre Audric, derrubou o garoto no chão da sacada e cobriu o corpo do kraljiki com o próprio corpo. As velhas juntas reclamaram pelo movimento repentino e pelo abuso. Ele ouviu a respiração ofegante de Audric; também ouviu gritos e lamentos vindos de baixo, cortados pelo berro abalado e horrorizado de Karl ca’Vliomani, que ecoou mais alto do que todos eles: — Ana! Ana! Nãoooooo!

— Kraljiki! Regente! — Mãos puxaram e levantaram Sergei, um quarteto da Garde Kralji, cujo dever era proteger o kraljiki e o regente. Uma nuvem de poeira surgiu dentro do templo, e Sergei piscou em meio à poeira; ele mesmo quase não conseguia respirar. O regente ouviu a tosse desesperada de Audric. O templo fedia a enxofre.

— Você e você, escoltem o kraljiki para fora daqui e de volta para o palácio, imediatamente — disse Sergei ao apontar os dedos para os gardai. — Vocês dois, venham comigo.

Sergei desceu correndo a escada da sacada, flanqueado por gardai com espadas desembainhadas e empurrando quem estivesse no caminho. As pessoas gritavam e berravam, ele ouviu os gemidos e ganidos estridentes dos feridos. O regente foi forçado a mancar, pois o joelho direito estava ferido e inchou rapidamente; ele levou muito tempo para descer a escada enquanto agarrava o corrimão a cada degrau. Lá embaixo, tudo era confusão.

— Regente! Aqui! — Aris co’Falla, o comandante da Garde Kralji, fez um gesto acima das cabeças para Sergei enquanto os gardai empurravam a multidão. O barulho de dor e sofrimento era enorme, e o regente notou vários rostos e braços ensanguentados. A fachada do templo estava cheia de pedras quebradas e madeira estilhaçada; ele notou vários corpos nos escombros.

Um dos corpos usava o robe da archigos. Sergei perdeu o fôlego, que foi substituído por uma raiva fria. — Comandante, o que aconteceu aqui?

Co’Falla balançou a cabeça. — Eu não sei, regente. Não ainda. Eu assistia à cerimônia próximo à saída do templo. Quando a archigos chegou ao Alto Púlpito... Eu nunca tinha visto algo assim, regente. Foi alguma espécie de feitiço, tenho quase certeza, mas algo que um téni-guerreiro faria. O clarão, o barulho, a pedra e a madeira e... — Ele franziu a testa. — ... outras coisas voaram para todos os lados. A explosão pareceu ter vindo debaixo do Alto Púlpito. Há pelo menos meia dúzia de mortos, e muitos mais feridos, alguns gravemente...

O regente gemeu pela dor no joelho ao se ajoelhar ao lado do corpo de Ana. O rosto estava praticamente irreconhecível, ela perdera a metade inferior do corpo completamente e o braço direito. Sergei soube imediatamente que Ana estava morta, que não havia esperança ali. Uma estranha poeira negra cobria o chão em volta dela. Ele virou o rosto e viu Karl ca’Vliomani sendo contido pelos gardai, com o rosto em pânico e a bashta coberta de pó. Sergei ficou de pé devagar e fez uma careta quando os joelhos estalaram. — Cubra a archigos e os outros corpos — falou o regente para co’Falla. — Tire todo mundo do templo, a não ser os ténis e os gardai. Mande chamar o comandante co’Ulcai da Garde Civile se precisar de mais ajuda. — Ele estremeceu ao respirar. — E deixe o embaixador vir até mim.

Co’Falla meneou a cabeça e deu as ordens. Ca’Vliomani disparou imediatamente na direção do corpo de Ana, Sergei interceptou o embaixador. — Não — ele disse para Karl ao agarrar seus ombros. — Ela morreu, Karl. Não há nada que você possa fazer. Nada.

Ele sentiu o homem desmoronar e ouviu um soluço. — Sergei, eu tenho que vê-la. Por favor. Eu preciso saber. — Seu olhar estava abalado, e subitamente Karl ca’Vliomani pareceu décadas mais velho. O sotaque de Paeti, que o embaixador jamais perdeu, apesar dos anos em Nessântico, ficou mais forte do que nunca nesse momento.

— Não, você não precisa, meu amigo — insistiu Sergei. — Por favor, me ouça. Você não quer que esta seja a última imagem que tem dela. Você não quer isso. De verdade. Eu digo isso pelo seu bem.

Então ca’Vliomani começou a chorar, e Sergei segurou o embaixador enquanto os gardai se movimentavam em volta deles, conforme os ténis do templo — calados pelo choque e horror — cuidavam dos mortos e feridos, e a poeira negra assentava-se sobre eles e ao redor deles, e o rugido do feitiço ecoava eternamente nos ouvidos de Sergei.

Ele achava que jamais se esqueceria daquele som e perguntou-se o que ele anunciava: para si próprio, para Audric, para a fé concénziana, para Nessântico.

 

Nico Morel

NICO TOMOU UM PEQUENO GOLE DO CHÁ que sua matarh colocara diante dele, com a caneca de madeira nas duas mãos pequenas. — Matarh, por que alguém iria querer matar a archigos Ana?

— Eu não sei, Nico — respondeu ela, que colocou uma fatia de pão e alguns pedaços de queijo diante do filho, na mesa arranhada perto da janela. A mulher afastou as mechas do cabelo castanho de sua testa e olhou pelas persianas abertas para a rua estreita do lado de fora. — Eu não sei — repetiu. — Só torço...

— A senhora torce para que, matarh?

Ela balançou a cabeça. — Por nada, Nico. Ande, coma.

Eles compareceram à cerimônia do Dia do Retorno no Parque do Templo, à distância de uma longa caminhada de seu apartamento no Velho Distrito. Nico sempre gostava quando eles iam ao Parque do Templo, pois o espaço verde e aberto contrastava bastante com as ruas sujas e apinhadas de gente do labirinto do Velho Distrito. Bem na hora em que saíam do parque, eles ouviram as trompas começarem a soar, e então os rumores se espalharam pela multidão como fogo em um campo seco de verão: a archigos tinha sido morta. Por magia, diziam alguns. Magia terrível, como a que os hereges numetodos sabiam fazer, ou talvez um téni-guerreiro.

Nico chorou um pouco, porque todo mundo chorava, e sua matarh pareceu preocupada. Eles voltaram correndo para casa.

Certa vez, a matarh de Nico atravessou a Pontica Mordei na direção da a Ilha A’Kralji com o filho, e eles viram o terreno do palácio do regente e do Velho Templo, o primeiro construído em Nessântico. Nico ficou maravilhado com o novo domo que estava sendo construído no topo do Velho Templo, com as fileiras de andaimes que alçavam os trabalhadores tão alto no céu, de maneira impossível. Nico ficou tonto só de vê-los.

Depois, eles passaram pela Pontica a’Brezi Nippoli na direção da margem sul, onde a maioria dos ca’ e co’ viviam. Nico atravessou com sua matarh o grande complexo do Templo da Archigos e viu a archigos em pessoa: uma figura minúscula de verde em uma das janelas dos prédios ligados ao enorme templo que acenava para a multidão na praça.

Agora ela estava morta. Algo fácil de imaginar. A morte era totalmente comum; Nico costumava vê-la nas ruas, e a viu visitar a sua própria família. A matarh disse que Ana era a archigos desde quando ela era um bebê, e a matarh tinha 28 anos — praticamente uma anciã, portanto, não chegava a ser uma surpresa que a archigos morresse. Nico mal se lembrava de sua mamatarh, que morreu quando ele tinha cinco anos. Talvez ela fosse tão velha quanto a archigos Ana. Nico lembrava-se muito do irmão mais velho, que morreu de febre do sul há quatro anos. A matarh disse que houve outro irmão, ainda mais velho, que também morreu, mas Nico não se lembrava dele. Havia Fiona, a irmã que nascera primeiro — Nico não sabia se ela ainda estava viva, embora sempre tenha imaginado que estivesse; ela fugira aos 12 anos, há quase três anos agora. Talis vivia com eles — Talis vivia com a matarh desde que Nico se entendia por gente, mas Fiona dissera a ele que nem sempre foi assim, que houve outro homem antes de Talis, que era o vatarh de Fiona e de seus irmãos. Ela dissera que Talis era o vatarh de Nico, mas que nunca quis ser chamado assim.

Nico sentia saudade de Fiona. Ele às vezes imaginava que a irmã tinha ido para outra cidade e ficado rica. Gostava de pensar assim, às vezes. Sonhava com o retorno de Fiona a Nessântico com um ce’ ou até mesmo um ci’ antes do nome, e ele abriria a porta para vê-la sorrindo com uma tashta limpa e muito colorida. — Nico — diria a irmã. — Você, a matarh e Talis vão morar comigo...

Talvez Nico saísse de casa quando tivesse 12 anos também, daqui a dois anos. Nico notou as rugas marcadas no rosto da matarh enquanto ela olhava para a rua lá fora. O cabelo nas têmporas tinha mechas grisalhas. — A senhora está esperando por Talis? — perguntou ele.

Nico viu a testa franzida, depois o sorriso quando ela se virou para ele. — Apenas coma, querido. Não se preocupe com Talis. Ele vai chegar em breve.

Nico concordou com a cabeça enquanto roía a crosta dura do pão quase velho e tentava evitar o molar solto no fundo da boca que ameaçava cair, o último dos dentes de leite. Ele não estava preocupado com Talis, apenas com o dente. Não queria perdê-lo, uma vez que, se perdesse, a matarh mandaria que ele esmagasse o dente com um martelo até virar pó, e isso era muito trabalhoso. Quando Nico terminasse, ela o ajudaria a salpicar o pó em um pouco de pão umedecido com leite, e os dois colocariam o pão do lado de fora da janela ao lado de sua cama. À noite, ele ouviria os ratos e camundongos comerem a oferenda e correrem de um lado para o outro lá fora. De manhã, o prato estaria vazio; a matarh dizia que isso significava que seus novos dentes cresceriam tão fortes quanto os dentes de um rato.

Nico já tinha visto o que os ratos conseguiam fazer com os dentes. Eles podiam arrancar a carne de um gato morto em poucas horas. Nico torcia para que seus dentes ficassem fortes assim. Ele meteu o indicador na boca e mexeu no dente, sentiu que balançava facilmente para trás e para frente nas gengivas. Se puxasse com força, o dente sairia...

— Serafina?

Nico ouviu Talis chamar sua matarh. Ela correu até ele e os dois se abraçaram logo após Talis fechar a porta ao entrar.

— Eu estava preocupada — disse sua matarh. — Quando soube...

— Shh... — falou Talis ao dar um beijo na testa de Serafina. Seu olhar estava voltado para Nico, que observava os dois. — Ei, Nico. Sua matarh levou você ao Parque do Templo hoje?

— Sim — respondeu Nico. O menino se aproximou dos dois e se esgueirou em sua matarh, de maneira que ela passasse o braço por ele. Nico torceu o nariz e ergueu os olhos para o homem. — Você está com um cheiro esquisito, Talis.

— Nico... — A matarh começou a falar, mas Talis riu e mexeu no cabelo de Nico. O menino odiava que ele fizesse isso.

— Tudo bem, Serafina — disse Talis. — Não se pode culpar o menino por ser honesto. — Ele não falava como as outras pessoas do Velho Distrito; Talis pronunciava as palavras de um modo esquisito, como se a língua não gostasse do sabor das sílabas, então ele as cuspia o mais rápido possível em vez de falar com calma, como a maioria das pessoas fazia. Talis agachou-se próximo a Nico e disse — Eu passei por um incêndio a caminho daqui. Havia muita fumaça preta. Os ténis-bombeiros apagaram o fogo, contudo.

Nico assentiu com a cabeça, embora achasse que Talis não cheirava exatamente à fumaça. O odor era mais intenso e pungente. — A archigos Ana morreu, Talis — falou o menino.

— Foi o que eu ouvi — respondeu Talis. — O regente vai varrer a cidade à procura de um bode expiatório para culpar. É hora de os estrangeiros não chamarem atenção se quiserem continuar a salvo. — Ele parecia falar mais para a matarh de Nico do que para o menino, os olhos erguidos na direção dela.

— Talis... — A matarh sussurrou o nome da mesma maneira que às vezes dizia o de Nico quando o menino estava doente ou tinha se machucado. Talis ficou de pé novamente e a abraçou. — Vai ficar tudo bem, Sera. — Nico ouviu Talis sussurrar para ela. — Eu prometo.

Enquanto ouvia Talis, Nico empurrou o dente solto com a língua. Ele escutou um estalinho e sentiu gosto de sangue.

— Matarh, meu dente caiu...

 

Allesandra ca’Vörl

— MATARH?

Allesandra ouviu o chamado, seguido por uma batida hesitante na porta. Seu filho, Jan, estava parado na porta aberta. Aos 15 anos, quase 16, ele era magricelo e desajeitado. Somente nos últimos meses o corpo começara a se transformar no de um jovem, com uma bela penugem no queixo e debaixo dos braços. Ele ainda era bem mais baixo do que as meninas da mesma idade, muitas das quais tiveram a primeira menarca no ano anterior. Batizado com o nome do vatarh de Allesandra, ela enxergava algumas características dele no filho, mas também havia um forte traço da família ca’Xielt — a família de Pauli. Jan tinha a cor da pele mais escura dos magyarianos, os olhos negros e o cabelo encaracolado quase preto de seu vatarh. Ela duvidava que algum dia o filho teria a musculatura mais parruda dos ca’Belgradin, como a de seu onczio Fynn, que o vavatarh Karin e o vatarh Jan de Allesandra também possuíram.

Ela, às vezes, tinha dificuldade em imaginar o filho galopando loucamente para entrar em combate — embora Jan cavalgasse tão bem quanto qualquer pessoa e possuísse a visão aguçada que um arqueiro invejaria. Ainda assim, ele geralmente parecia mais à vontade com pergaminhos e livros do que com espadas. E, apesar da linhagem paterna, apesar do ato (por puro dever) que o produziu, apesar do mau humor e da raiva mal contida que pareciam consumi-lo ultimamente, Allesandra amava o filho mais do que pensou ser possível amar alguém.

E ela temeu, especialmente no ano anterior, que estivesse perdendo Jan, que ele pudesse estar cedendo à influência de Pauli. Ele esteve ausente na maior parte da vida do filho, mas talvez essa fosse a sua vantagem: era mais fácil não gostar do vatarh ou da matarh que estava sempre corrigindo; admirar aquele ou aquela que deixava fazer o que quisesse. Houve aquele incidente com a funcionária, e Allesandra precisou mandá-la embora — aquilo foi bem parecido com Pauli.

— Entre, querido — chamou Allesandra.

Jan aquiesceu sem sorrir, foi até a penteadeira onde ela estava sentada e encostou os lábios no topo da cabeça da matarh, um beijo discretíssimo, enquanto as mulheres que ajudavam Allesandra a se vestir se afastavam em silêncio. — O onczio Fynn mandou que eu buscasse a senhora — falou Jan. — Evidentemente chegou o momento. — Uma pausa. — E evidentemente eu sou pouco mais do que um criado para ele. Apenas um traste magyariano que serve para levar recados.

— Jan! — disse Allesandra com rispidez. Ela apontou para as aias com o olhar. Todas eram magyarianas ocidentais, parte da comitiva que veio de Malacki com Jan.

Ele deu de ombros, sem se importar. — A senhora vem, matarh, ou vai me mandar de volta para Fynn com sua própria resposta, como se eu fosse um bom menininho de recados?

Você não pode responder aqui do jeito que quer. Não onde tudo o que nós dissermos possa virar fofoca na corte hoje à noite. — Estou quase pronta, Jan. — Allesandra gesticulou. — Vamos descer juntos, uma vez que você já está aqui. — As aias voltaram, uma escovou o cabelo dela, outra colocou no pescoço
o colar de pérolas que antigamente fora de sua matarh Greta, e mais uma ajustou as dobras da tashta. Allesandra passou outro colar para a aia: um globo partido em uma corrente elegante, com continentes de ouro, mares do mais puro lápis-lazúli, e a fenda cheia de rubis nas profundezas: o globo de Cénzi. A archigos Ana dera o colar para Allesandra quando ela teve a primeira menarca, em Nessântico.

— Isto antigamente pertencia ao archigos Dhosti — dissera Ana para ela. — Ele deu para mim; agora eu dou para você. — Allesandra tocou o globo enquanto a criada o prendia em seu pescoço e lembrou-se de Ana: o som da voz, seu cheiro.

— Todo mundo vive me dizendo que o onczio Fynn dará um belo hïrzg — disse Jan, e a lembrança foi interrompida.

— Eu sei. — Allesandra começou a dizer. E por que você esperaria outra coisa?, ela queria acrescentar. Jan entendia muito bem a etiqueta da corte para saber disso.

Evidentemente ele viu o comentário implícito no rosto da matarh. — Eu não tinha terminado. Eu ia dizer que a senhora daria uma hïrzgin melhor. Era a senhora que deveria usar a coroa e o anel, matarh.

— Quieto — falou Allesandra novamente para Jan, embora com mais gentileza desta vez. As aias eram dela, era verdade, mas nunca se sabia. Segredos podiam ser comprados ou arrancados pelo amor ou pela dor. — Nós não estamos em casa, Jan. Você tem que se lembrar disso. Especialmente aqui...

A expressão mal-humorada de Jan foi desfeita por um momento, e ele pareceu tão arrependido que toda a irritação de Allesandra passou. Ela fez um carinho no braço do filho. Era assim com Jan nos últimos tempos: cara fechada em um instante e sorrisos afetuosos no próximo. No entanto, as caras fechadas apareciam mais frequentemente conforme a criança amorosa dentro dele recuava cada vez mais fundo no interior da nova carapaça adolescente. — Tudo bem, Jan. Apenas... bem, você tem que tomar muito cuidado enquanto estivermos aqui. Sempre. — E especialmente com Fynn. Ela tirou a ideia da cabeça. Diria para Jan mais tarde. Em particular. Allesandra ficou de pé e as criadas foram embora, como folhas no outono. Ela abraçou Jan: ele permitiu o gesto, e nada mais, os próprios braços mal se mexeram. — Tudo bem, vamos descer agora. Lembre-se de que você é o filho do a’gyula da Magyaria Ocidental, e também o filho da atual a’hïrzg de Firenzcia.

Fynn dera o título a Allesandra ontem, após a morte do vatarh: o título que deveria ter sido dela desde o início, que a teria tornado hïrzgin. Ela sabia que até mesmo este presente era temporário, que Fynn nomearia outra pessoa como a’hïrzg com o tempo: o próprio filho, talvez, se algum dia ele se casasse e produzisse um herdeiro, ou algum protegido da corte. Allesandra seria a herdeira de Fynn até ele encontrar alguém de quem gostasse mais.

— Matarh — interrompeu Jan. Ele bufou bem alto, e a cara fechada voltou. — Eu conheço o sermão. “Os olhos e ouvidos dos ca’ e co’ estarão em você.” Eu sei. A senhora não precisa me dizer. De novo.

Allesandra gostaria de poder acreditar nisso. — Tudo bem — falou baixinho. — Vamos descer então e ficar com o novo hïrzg enquanto sepultamos seu vavatarh.

Com a morte do hïrzg Jan, foi proclamado o obrigatório mês de luto e marcadas uma dúzia de cerimônias necessárias. O novo hïrzg, Fynn, presidiria vários rituais nas próximas semanas: alguns apenas para os ca’ e co’, outros para o benefício moral do público. O Besteigung formal, o ritual final, aconteceria no fim do mês, no Templo de Brezno, presidido pelo archigos Semini — marcado assim para dar tempo de os líderes dos outros países da Coalizão Firenzciana chegarem a Brezno para prestar homenagem ao novo hïrzg. Allesandra já havia sido informada de que o a’gyula Pauli chegaria para o Besteigung, pelo menos — ela já estava apreensiva pela chegada do marido.

E hoje à noite... hoje à noite era o Confinamento.

Os kralji queimavam os mortos; os hïrzgai os enterravam. O corpo do hïrzg Jan seria enterrado na catacumba dos ca’Belgradins, onde várias gerações de seus ancestrais estavam sepultadas, e um punhado ou mais destes antecessores dividiram com Jan a coroa dourada que agora estava na cabeça de Fynn. Fynn aguardava Allesandra e Jan nos próprios aposentos; dali, eles desceriam para as catacumbas abaixo do piso térreo do Palácio de Brezno. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos e outros nobres de Firenzcia já esperavam por eles lá.

Os salões do palácio estavam em silêncio, os criados que Jan e Allesandra viram pararam o que faziam e curvaram-se calados com os olhos abaixados conforme eles passavam. Dois gardai parados do lado de fora dos aposentos de Fynn abriram as portas quando eles se aproximaram. Allesandra ouviu vozes vindo do interior quando ela e o filho entraram.

— ... acabo de receber notícias de Gairdi. Isto vai complicar a situação. Não sabemos exatamente o quanto, ainda... — O archigos Semini ca’Cellibrecca parou no meio da frase assim que Allesandra e Jan entraram na sala. O homem sempre trouxera a imagem de um urso à mente de Allesandra, desde quando ela era uma criança, e ele, um jovem téni-guerreiro em ascensão: mesmo quando moço, Semini era enorme, peludo e perigoso. A barba negra agora estava salpicada de branco, e a massa de cabelo encaracolado recuava na testa como uma maré lenta, mas ele ainda era parrudo e musculoso. O archigos fez o sinal de Cénzi para Jan e Allesandra, com as mãos entrelaçadas na testa, enquanto sua esposa, Francesca, fazia o mesmo atrás dele. Disseram para Alle-sandra que antigamente Francesca era linda; na verdade, havia rumores de que ela um dia fora amante de Justi, o Perneta, mas Allesandra não a conhecia na época. Agora Francesca era uma matrona corcunda sem vários dentes, com o corpo arrasado pelos rigores de uma dezena de gestações ao longo dos anos. A personalidade era tão amarga quanto o rosto.

Fynn levantou-se da cadeira.

— Irmã — disse ele enquanto pegava as mãos de Allesandra ao ficar diante dela. Fynn sorria, parecia quase exultante. — Semini acabou de trazer notícias interessantes de Nessântico. A archigos Ana foi assassinada.

Allesandra engasgou, sem conseguir esconder sua reação. As mãos se dirigiram para o pingente com o globo partido no pescoço, então ela se forçou a abaixá-las. A sensação era de que não conseguiria respirar. — Assassinada? Por quem...? — Allesandra parou e olhou para Semini, que também sorria, quase presunçoso, pensou ela, e depois se voltou para o irmão. — Fomos nós? — perguntou. A voz saiu afiada como uma adaga. Ela sentiu Jan colocar a mão em seu ombro por trás ao sentir sua angústia.

Fynn deu um muxoxo de desdém e perguntou — Isso faria diferença?

— Sim — disse Allesandra para ele. — Apenas um tolo pensaria o contrário. — As palavras saíram antes que ela conseguisse impedi-las. E bem depois que acabei de alertar Jan...

Fynn fechou a cara diante do insulto implícito. A mão de Jan apertou o ombro de Allesandra. Semini pigarreou alto antes que Fynn pudesse falar.

— Isso não foi obra do hïrzg, Allesandra. — Semini respondeu rapidamente enquanto balançava a cabeça e abanava a mão com desdém. — Firenzcia pode estar em desacordo com a Fé em Nessântico, mas o hïrzg não participa de assassinatos. Nem a Fé.

Ela olhou de Semini para Francesca. A mulher afastou o olhar rapidamente, mas não tentou esconder a satisfação no rosto. O prazer com a notícia era óbvio. A mulher tinha tanto calor humano quanto o inverno de Boail. Allesandra perguntou-se se algum dia Semini gostou dela ou se o casamento entre os dois era tão sem amor e premeditado quanto o seu, apesar dos vários filhos do casal. Allesandra não conseguia imaginar se submeter ao prazer de Pauli com tanta frequência. — Temos certeza de que esta informação é verdadeira? — perguntou ela para o archigos.

— Ela veio até mim por três fontes diferentes, uma em que confio implicitamente, o comerciante Gairdi, e todas concordam nos detalhes básicos — falou Semini. — A archigos Ana realizava a missa do Dia do Retorno quando houve uma explosão. “Como o feitiço de um téni-guerreiro”, todos dizem, o que quer dizer que foi alguém usando o Ilmodo. Isso está claro.

— O que também quer dizer que eles podem se voltar para o leste, em nossa direção — disse Fynn. Ele parecia ávido pela ideia, como se estivesse ansioso para convocar o exército de Firenzcia para a batalha. Isso seria a cara dele; Allesandra ficaria terrivelmente surpresa se o reinado de Fynn fosse pacífico.

— Ou eles se voltarão para o oeste — argumentou Allesandra, e Fynn olhou para a irmã como se ela fosse um inseto chato e insistente. — Nessântico também tem inimigos lá, e os ocidentais também podem usar o Ilmodo, mesmo que o chamem por outro nome, como os numetodos.

— Os ocidentais? Como os numetodos, eles são hereges que merecem a morte — disparou Semini. — Eles abusam da dádiva de Cénzi, que é destinada apenas aos ténis, e um dia nós os faremos pagar pelo insulto, se Nessântico não fizer isso.

Fynn grunhiu em acordo com a opinião, e Allesandra viu o filho Jan também aquiescer com a cabeça — isso também era a influência do maldito vatarh do menino, ou pelo menos do téni magyariano que Pauli insistiu que educasse o filho deles, apesar das reservas de Allesandra. Ela cerrou os lábios.

Ana está morta. Ela colocou os dedos no colar do globo partido, sentindo sua superfície lisa e cravejada. O toque trouxe novamente a memória do rosto de Ana, do sorriso assimétrico que surgia nos lábios da mulher quando algo a divertia, das rugas severas que apareciam em volta dos olhos quando ficava irritada. Allesandra passou uma década com Ana; captora, amiga e matarh postiça, tudo ao mesmo tempo para ela durante os longos anos que passou como refém de Nessântico. Os sentimentos de Allesandra para com Ana eram tão complexos e contraditórios quanto o relacionamento entre as duas. Eles eram quase tão conflitantes quanto os sentimentos com relação ao vatarh, que a deixara em Nessântico enquanto Fynn se tornava o a’hïrzg e seu favorito.

Allesandra queria chorar por causa da notícia, de tristeza por alguém que a tratou bem, com gentileza, quando não havia obrigação alguma para que agisse assim. Mas ela não podia chorar. Não aqui. Não na frente de pessoas que odiavam a mulher. Aqui, Allesandra teria que fingir.

Mais tarde. Mais tarde eu choro por ela como se deve...

— Eu esperava um pouco mais de reação de você, irmã — disse Fynn. — Afinal, aquela mulher abominável e o impostor perneta mantiveram você como prisioneira. O vatarh praguejava sempre que alguém falava o nome dela e dizia que Ana não era diferente de uma bruxa.

Fynn observava Allesandra, e ambos sabiam o que ele deixou de fora no comentário: que o hïrzg Jan poderia ter pagado o resgate por ela a qualquer momento durante aqueles anos, e que, se ele o tivesse feito, provavelmente a coroa dourada estaria na cabeça de Allesandra, não na de Fynn. — Você não ficará aqui nem meio ano — disse Ana para Allesandra naqueles primeiros meses. — O kraljiki Justi cobrou um resgate justo, e seu vatarh irá pagá-lo. Em breve...

Mas, por algum motivo, o hïrzg Jan não pagou.

Allesandra fez uma expressão impassível. Você não vai chorar. Não vai deixar que eles vejam seu sofrimento. Não era difícil; era o que ela fazia frequentemente, e dava certo na maioria das vezes. Allesandra sabia como os ca’ e co’ a chamavam pelas costas: a Megera de Pedra. — A morte de Ana ca’Seranta é importante. Eu agradeço ao archigos Semini por nos trazer a notícia, e nós devemos, nós temos que decidir o que isso significa para Firenzcia, mas ainda levaremos semanas para conhecer todas as consequências. E neste momento o vatarh espera por nós. Eu sugiro que cuidemos dele primeiro.

 

As Tumbas dos Hïrzgai eram catacumbas abaixo do Palácio de Brezno, não eram como os níveis inferiores da mais nova propriedade privada fora da cidade conhecida como Encosta do Cervo, que fora construída na época do hïrzg Karin. Uma escada comprida e larga descia para as Tumbas, e uma crosta de nitrato cobria as paredes suadas e crescia como pústula branca nas faces dos murais pintados ali há dois séculos e restaurados uma dezena de vezes desde então: a umidade sempre vencia os pigmentos. Um ar frio, quase fétido, subia lá de baixo, como se os avisasse que o reino dos mortos se aproximava. As tochas acesas nos suportes preveniam a escuridão, mas tornavam as sombras da ocasional passagem lateral mais escuras e misteriosas em contraste. Uma dezena de gerações de hïrzgai esperava por eles lá embaixo, com suas várias esposas e muitos dos descendentes diretos. O irmão mais velho de Allesandra, Toma, fora enterrado ali quando ela era apenas um bebê, e sua matarh, Greta, estava deitada ao lado dele há 19 anos agora. Com o tempo, a própria Allesandra poderia se juntar à família, embora passar a eternidade ao lado da matarh Greta não fosse uma ideia agradável.

A procissão desceu pela escadaria em um silêncio pomposo: em frente os e’ténis com lamparinas acesas por fogo mágico, depois o hïrzg Fynn acompanhado pelo archigos Semini e Francesca, e Allesandra e Jan alguns passos atrás deles, seguidos por um último grupo de criados e e’ténis. Conforme eles se aproximavam da entrada ricamente entalhada em direção às catacumbas, decoradas com baixos-relevos de feitos históricos dos hïrzgai, Allesandra pôde ouvir sussurros, o farfalhar de tecido e um espirro ou tosse ocasionais: os ca’ e co’ foram convidados para testemunhar as cerimônias. Era a elite de Firenzcia, a maioria composta por parentes de Fynn e Allesandra: famílias que haviam sido misturadas com a deles, ou aqueles que serviram por décadas ao hïrzg Jan.

Luzes mágicas e de tochas banhavam os corpos enroscados de criaturas fantásticas entalhados nas paredes, as sisudas feições esculpidas dos hïrzgai e os corpos massacrados dos inimigos aos seus pés. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos entraram em posição de sentido, as lanças (com lâminas cobertas por panos vermelhos) bateram contra as lustrosas armaduras de gala. Os outros ca’ e co’ fizeram mesuras e os sussurros caíram no silêncio quando o novo hïrzg entrou na câmara enorme. Allesandra notou os olhares deslizarem de Fynn para ela, e também para Jan. O filho notou a atenção; ela sentiu Jan respirar fundo e empertigar o corpo. Allesandra acenou para eles — um movimento mínimo da cabeça, um sorriso quase imperceptível.

Olhe para ela, tão fria quanto esta câmara... Era o que alguns deles deveriam estar pensando. Com certeza ela está contente de ver o velho Jan morto depois de ele deixá-la com o kraljiki e a falsa archigos por tanto tempo. Ela provavelmente deseja que Fynn também estivesse lá com o vatarh para que ela pudesse ser a hïrzgin.

Nenhum deles conhecia Allesandra. Nenhum deles conhecia seus verdadeiros pensamentos. Com efeito, ela mesma não tinha certeza se sabia. Allesandra ainda estava abalada com a notícia sobre Ana, e se demonstrava sinais de tristeza, era pela archigos, não pelo vatarh.

O caixão que continha os restos do hïrzg Jan estava perto da entrada da câmara de confinamento, ao lado da enorme pedra redonda que selaria o nicho.
O caixão estava coberto por uma tapeçaria que representava sua vitória sobre o t’sha no lago Cresci. Não havia nada que celebrasse Passe a’Fiume ou o ataque tolo e ousado contra Nessântico há uma década: aqueles dias em que Allesandra cavalgara com ele, quando olhava o vatarh com adoração, quando ele prometera dar para ela a cidade de Nessântico.

Em vez disso, Nessântico tirou Allesandra de seu vatarh e deu a Fynn o lugar de braço direito de Jan.

Fynn prestou continência aos lanceiros, que relaxaram sua postura, e disse — Eu gostaria de agradecer a todos por estarem aqui. Eu sei que o vatarh olha lá de cima, dos braços de Cénzi, e agradece esse tributo a ele. E também sei que o vatarh nos perdoaria por não ficarmos muito tempo aqui quando lareiras e comidas quentes esperam por nós lá em cima. — Fynn recebeu risos discretos ao dizer isso e sorriu. — Archigos, por obséquio...

Semini dirigiu-se rapidamente à frente com os ténis e abençoou o caixão. Ele chamou Allesandra e Jan com um gesto quando os ténis começaram a entoar a oração. Os dois foram até o caixão e colocaram as mãos na tapeçaria. — Eu queria que você tivesse tido a chance de conhecê-lo melhor — sussurrou ela para Jan e colocou a mão em cima da mão do filho enquanto os ténis entoavam. — Ele não foi sempre tão furioso e rude quanto nos últimos anos.

— A senhora me disse isso — falou Jan. — Várias vezes. Mas, ainda assim, não é a memória dele que levarei comigo, não é? — Ela olhou para o filho; ele olhou com uma cara feia para o caixão.

— Falaremos a respeito disso depois — disse Allesandra.

— Não duvido, matarh.

Allesandra conteve a resposta que teria dado; ela não falaria nada aqui. As pessoas já olhavam com curiosidade, imaginavam que segredos os dois estariam sussurrando e o porquê da rispidez na voz de seu filho. Allesandra ergueu a mão e deu um passo para trás para permitir que Fynn se aproximasse.

Ela imaginou o que o irmão estaria pensando ao ficar parado ali, com a mão no caixão e a cabeça baixa.

Após alguns minutos, Fynn também se afastou. Ele acenou com a cabeça para os lanceiros; quatro vieram à frente para pegar o caixão. Com expressões soturnas, eles ergueram e enfiaram o caixão no nicho que o aguardava. A pedra roçou na madeira, e o som ecoou. Os quatro deram passos para trás, e outro quarteto empurrou com os ombros o selo de pedra, que gemeu e resistiu enquanto rolava devagar. A enorme roda de pedra avançou por um sulco aberto no chão na direção da enorme fenda onde se assentaria e ficaria. A pedra era entalhada com glifos em firenzciano antigo, uma língua falada hoje apenas por estudiosos, tão grossa quanto o braço de uma pessoa e com metade da altura de um homem. Quando a grande roda chegou ao fim do sulco e entrou na brecha onde deveria ficar, houve um enorme som de rachadura. Uma fenda cortou a face entalhada da roda e um terço da parte de cima desmoronou. Allesandra sabia que deveria ter dado um alerta, mas tudo acabou antes que qualquer um deles pudesse se mexer ou reagir. A massa de pedra esmagou completamente um lanceiro embaixo dela e as pernas de outro soldado ao cair no chão.

Os gritos do lanceiro preso eram agudos e estridentes, e sangue espesso escorreu debaixo da pedra.

Isso é um sinal... Ela não conseguiu evitar o pensamento enquanto o restante dos lanceiros avançou e os ca’ e co’, ténis e criados corriam para ajudar ou encaravam paralisados o horror no fundo da câmara. Jan estava entre aqueles que tentavam desesperadamente levantar a lápide, e Fynn gritava ordens inúteis no caos.

Foi o vatarh que fez isso. De alguma forma, ele fez isso. Ele não descansa em paz...

 

Enéas co’Kinnear

ELE IA MORRER aqui nos Hellins.

A sensação de um destino horrível tomou conta de Enéas enquanto ele estava com as forças dos Domínios no cume de um morro não muito longe das cercanias de Munereo. As tropas observavam os estandartes de formato estranho dos ocidentais se aproximarem vindos da direção do lago Malik, e Enéas escutava o início dos cânticos dos ténis-guerreiros em preparação para a batalha. O a’offizier Meric ca’Matin estava com ele, assim como os outros offiziers do batalhão e vários pajens prontos para levar mensagens entre as companhias. As cornetas e bandeiras estavam de prontidão para transmitir ordens. A uma centena de passos encosta abaixo, as fileiras do exército dos Domínios estavam reunidas, inquietas e nervosas.

Enéas esteve em meia dúzia de batalhas e incontáveis escaramuças e confrontos nos últimos anos. Esta sensação de ruína iminente era algo que nunca havia sentido antes. Ele sentiu o suor descer pelo rosto debaixo do elmo grosso de ferro, e não era apenas o sol que causava a transpiração. Enéas queria gritar em negação para o céu, mas não podia. Não aqui. Não na frente de suas tropas. Em vez disso, abaixou a cabeça e rezou.

Ó, Grande Cénzi, por que o Senhor manda esta premonição para mim? O que o Senhor está me dizendo?

Enéas era um o’offizier da Garde Civile dos Domínios. Seu comandante de campo, o a’offizier ca’Matin, dissera justamente ontem que tinha feito a recomendação de que Enéas fosse sagrado chevaritt, que o documento já estava cruzando o Strettosei a caminho de Nessântico. Seu vatarh ficaria orgulhoso — há 25 anos, o vatarh de Enéas serviu com o regente ca’Rudka em Passe a’Fiume e ficou severamente queimado, perdeu um braço e um olho durante aquele cerco horrível. A Garde Civile dera a condecoração e a pensão que ele merecia, e embora a família tenha sido promovida de ce’Kinnear para ci’Kinnear como consequência, seu vatarh sempre falava que poderia ter se tornado um chevaritt se não tivesse sido ferido, que aquelas aspirações foram arrancadas pelo fogo mágico firenzciano que o desfigurou e encerrou sua carreira.

Enéas nunca quis ser um chevaritt ou um offizier. Teria preferido seguir a carreira de um téni da fé concénziana do que aquela que encontrou na Garde Civile. Ele sentia o chamado de Cénzi desde que era um menino; na verdade, Enéas pediu aos pais que o mandassem para o templo como um acólito. Porém, seu vatarh insistiu que trilhasse o caminho marcial. — Somos apenas ci’, e mal conseguimos nos manter assim — dissera o vatarh. — Nossa família não tem as solas para mandá-lo para os ténis. Isso é uma coisa para os ca’ e co’, que podem bancar. Você entrará para a Garde, como eu. Vai fazer como eu fiz...

Enéas saiu-se melhor que seu vatarh. “Falsoténi” era como seus homens o chamavam por sua religiosidade, por seguir rigidamente as regras da Divolonté, e pela insistência em que seus comandados comparecessem aos rituais no Templo de Munereo nos Dias da Observância, como era devido. Mas seus comandados também alegavam que o próprio Cénzi protegia Enéas — e que, através de Éneas, eles próprios eram protegidos. Na Batalha das Colinas perto do lago Malik, como um e’offizier, em sua segunda batalha de verdade, ele foi o único offizier sobrevivente de sua companhia, quando os homens foram massacrados por uma força ocidental bem superior. Enéas conseguiu surpreender os ocidentais ao fingir uma retirada, depois marchou com o restante das tropas pelos pântanos para atacar o inimigo por um flanco desprotegido pelos nahualli — os terríveis feiticeiros ocidentais, aqueles que chamavam o Ilmodo de X’in Ka.

Hereges, eles eram. Falsos ténis que adoravam falsos deuses. Pensar nos nahualli enfurecia Enéas.

Ele conseguiu infligir grandes baixas no flanco dos ocidentais e manter a posição até a chegada de reforços. Como recompensa por suas ações, Enéas foi promovido a o’offizier; poucos meses depois, após a Campanha dos Brejos Profundos, o a’offizier ca’Matin disse que a Gardes a’Liste promovera sua família a co’.

Quando o período de serviço militar terminasse, daqui a um ano, após voltar para Nessântico, Enéas prometeu a Cénzi que daria baixa na Garde Civile e se ofereceria para o treino como téni, mesmo que ele fosse muito mais velho do que os acólitos usuais. Enéas tinha certeza de que isso era o que Cénzi queria dele.

A Guerra dos Hellins vinha sendo boa para Enéas, embora não para os Domínios.

Ao menos vinha sendo assim até essa sombra surgir. Esse arrepio na espinha.

Não é uma premonição. É apenas medo...

Ele sentiu medo antes. Todo soldado sentia medo, a não ser que fosse um completo tolo, mas Enéas nunca tinha sido tocado pelo sentimento dessa forma. O medo estremecia os ossos na carne; fazia o sangue zunir nos ouvidos. O medo transformava as entranhas em água podre e marrom. O medo fazia a arma tremer na mão. Mas Enéas não estremeceu, o estômago estava calmo, e a ponta da espada não tremeu em sua mão.

Aquilo não era medo — ou nenhum tipo de medo que tivesse sentido antes. Aquilo o preocupava mais que tudo.

O que é isso que o Senhor me manda, Cénzi? Diga-me, para que eu possa Lhe servir como o Senhor quiser...

— O’offizier co’Kinnear! — vociferou o a’offizier ca’Matin, e Enéas balançou a cabeça para afastar os pensamentos. Ele prestou continência ao offizier superior, que já estava montado no cavalo de guerra. — Preciso que o senhor entre com seus homens no flanco direito do inimigo; empurre-os para dentro do vale para que os ténis-guerreiros cuidem deles. Não devemos nos preocupar com os nahualli; os batedores disseram que eles ainda estão lá atrás, perto do Tecuhtli no lago Malik. Compreendido?

Enéas concordou com a cabeça.

— Ótimo — falou ca’Matin. — Então vamos começar. Pajem, diga aos corneteiros para anunciar o avanço. — O garoto a quem o a’offizier se dirigiu correu para a colina onde as trompas e bandeiras de sinalização estavam concentradas enquanto ca’Matin cumprimentava Enéas com o sinal de Cénzi, que ele devolveu solenemente e com devoção. — Que a fortuna de Cénzi esteja com o senhor, Enéas — disse o a’offizier.

— E com todos nós — respondeu Enéas com fervor.

Ca’Matin puxou as rédeas e foi embora a meio galope, o poderoso cavalo de guerra atravessou a grama alta com cuidado na direção do centro das fileiras onde os estandartes dos Domínios tremulavam com a brisa da tarde.

As cornetas soaram então, estridentes e altas. O chamado pairou diante deles em desafio aos ocidentais, e o som de armas batendo contra armaduras ecoou rapidamente. Enéas pegou as rédeas do próprio cavalo de guerra das mãos de um pajem à espera e montou. Seus e’offiziers olharam para ele com expectativa. — Façam suas pazes com Cénzi — disse o o’offizier. — É chegado o momento.

Enéas ergueu a mão para sinalizar na direção do flanco direito e dos morros íngremes ali.

Um bramido respondeu ao o’offizier, o grito de mil gargantas. Eles começaram a se mover, primeiro lentamente, depois mais rápido, até correrem impetuosamente na direção das lanças do inimigo. Enquanto investiam, o fogo mágico dos ténis-guerreiros na retaguarda passava estridente por cima da cabeça de Enéas e de suas tropas, acertando as fileiras da vanguarda das forças ocidentais e abrindo buracos nas fileiras irregulares. Não pareceu haver uma resposta dos nahualli; Enéas achou que isso faria o medo desagradável ir embora, mas a sensação permaneceu.

Éneas e seus homens avançaram pelas brechas fumegantes. O choque de aço contra aço ecoou dos flancos dos morros verdejantes, assim como os gritos dos feridos que caíram debaixo dos cascos dos cavalos de guerra que eles montavam. Éneas atacou uma lança curta que foi estocada em sua direção, afastou a ponta serrada com um golpe e cortou com o sabre a mão que empunhava a arma. O sangue jorrou e o rosto selvagem abaixo dele caiu. O cavalo avançou, e Enéas atacou os ocidentais de ambos os lados, protegidos por placas peitorais de bambu e tecido grosso com pequenos anéis de latão costurados. Eles usavam elmos decorados com plumas de pássaros muito coloridos, a pele avermelhada era pintada com faixas laranjas e amarelas, que faziam os rostos parecerem com crânios, ou era tatuada com linhas rubro-negras. Eram oponentes ferozes, os ocidentais, e nenhum soldado dos Domínios que os encarou ousava menosprezar suas habilidades e bravura. No entanto, eles tinham dado espaço agora — o que era estranho — e recuaram na direção da massa principal do exército. Enéas viu uma escuridão debaixo dos pés calçados com sandálias dos inimigos: o solo diretamente em frente a ele parecia um círculo de areia, mas aquela areia era tão negra quanto restos de lenha queimada.

A inquietação que afligiu Enéas antes da batalha aumentou e tornou-se um frio mortal dentro dos pulmões, de maneira que ele teve dificuldade para respirar e a espada pareceu como um peso de chumbo nas mãos. Ele obrigou o cavalo a entrar na areia e, ao fazer isso, berrou: um grito sem palavras para banir a sensação com barulho e fúria.

Éneas teve como resposta um som que nunca tinha ouvido antes.

O som... era como se um dos moitidis da terra — os filhos indignos de Cénzi — tivesse soltado um grito forte e sobrenatural, e fez com que Enéas girasse a cabeça para esquerda, na direção de sua origem. Um fogo laranja e uma fumaça negra e desagradável foram cuspidos do chão. Punhados de terra caíram em volta do o’offizier como uma chuva sólida que respingou sobre ele, e com a terra... e com a terra havia pedaços de corpos. Uma mão, ainda segurando uma espada quebrada, quicou no pescoço do cavalo de Enéas e caiu no chão. Ele olhou para o objeto ensanguentado. Então ouviu os gritos, com atraso.

— São os nahualli! Feitiçaria! — gritou Enéas para avisar as tropas, para a mão horrível que caiu do céu.

O o’offizier recebeu como resposta um rugido ainda mais alto que o primeiro, uma explosão cuja luz o cegou e a força arrancou seu corpo da sela e do cavalo. Um semideus ergueu Enéas — ele pareceu levitar por um instante ou dois: isso... isso é a premonição e o aviso de Cénzi... — e jogou o o’offizier de volta para a terra como se estivesse com nojo.

A terra levantou-se para recebê-lo.

Ele não se lembrou de mais nada depois disso.

 

Karl ca’Vliomani

KARL SEGUROU FIRME O COLAR na mão: uma concha de pedra cinza e polida que ele dera para Ana há muito tempo. O colar estivera no pescoço da archigos quando ela morreu; Sergei dera o objeto para ele. Havia manchas do sangue de Ana nos sulcos profundos. Karl apertou os dedos em volta da concha e sentiu as bordas duras forçarem a palma da mão. A dor não importava; significava que ele ainda conseguia sentir algo além do vazio que o tomava agora.

Quem fez isso? Por que matariam Ana?

Karl perdeu muitas pessoas de que gostava ao longo dos anos. O embaixador era tomado pelo sofrimento, tristeza e, às vezes, raiva diante da morte delas. Karl acordava à noite com a certeza de que tinha ouvido suas vozes ou pensando “ah, hoje tenho que visitá-lo ou visitá-la...”, apenas para lembrar que a pessoa em mente foi embora para sempre, de maneira irrevogável.

Isso... isso era pior do que qualquer uma daquelas mortes. Isso era uma facada no coração, e ele sentiu o sangramento por dentro.

Será que consigo sobreviver a isso? Perdi minha melhor amiga, a mulher que eu amo...

Karl estava sentado na frente do templo, com o regente Sergei e o kraljiki Audric à sua esquerda, e o recém-empossado archigos Kenne e os a’ténis da Fé à sua direita. Kenne foi amigo e aliado de Ana desde o início, quando ambos fizeram parte da equipe do archigos Dhosti. Agora, parecendo duas décadas mais velho do que sua idade de verdade, de cabelos brancos e mãos que tremiam com uma eterna paralisia, Kenne parecia extremamente pouco à vontade com a responsabilidade confiada a ele. O archigos debruçou-se sobre Karl e deu um tapinha em sua mão. Disse algo que o embaixador não conseguiu ouvir contra o canto do coro: “Longo lamento”, do compositor ce’Miella. As palavras que Kenne realmente falou não importavam: Karl concordou com a cabeça porque sabia que era a reação esperada.

No banco diretamente atrás deles, no meio dos ca’ e co’, estavam Varina e Mika ci’Gilan; como Varina, Mika também era um amigo de longa data de Karl e Ana. Ele era o líder local da facção dos numetodos em Nessântico e dirigia a pesquisa da seita aqui. A mão de Varina tocou o ombro de Karl; sem olhar para trás, o embaixador a cobriu com a própria mão antes de deixá-la cair no colo como se estivesse morta. Os dedos de Varina apertaram o ombro de Karl, e sua mão permaneceu ali.

O gesto tinha a intenção de confortá-lo, ele sabia, mas era simplesmente um peso morto.

Quem fez isso? Karl ouviu uma dezena de rumores. Previsivelmente, alguns culpavam os numetodos. Outros, Firenzcia. Alguns apontavam a facção da fé concénziana de Brezno. A história mais absurda dizia que o assassino, conhecido como a Pedra Branca, era o responsável, que havia uma pedrinha branca no olho esquerdo de Ana quando ela foi encontrada, a assinatura da Pedra Branca.

O último rumor certamente não era verdade. Porém, os outros... Karl não sabia, mas jurou que descobriria.

Às vezes ele invejava o consolo da fé que Ana tinha. Karl e ela até mesmo conversaram a respeito disso na noite em que ele descobriu que Kaitlin estava morta: a mulher com quem Karl havia se casado e que dera à luz seus dois filhos na Ilha de Paeti. Ela recusou-se terminantemente a vir a Nessântico com o marido. Kaitlin sabia da profunda amizade entre ele e Ana; assim como Karl também tinha certeza de que a esposa sabia que — apesar das promessas e garantias dele — havia mais do que amizade ali, pelo menos para o embaixador numetodo.

Ele nunca fora capaz de mentir facilmente para Kaitlin. Karl dizia para si mesmo que amava a esposa, mas também nunca fora realmente capaz de mentir para si mesmo.

Na noite em que recebeu a terrível carta de Paeti com a informação de que Kaitlin tinha adoecido e morrido, ele ficou arrasado. Karl nunca soube exatamente como Ana soube da notícia, mas ela o visitou naquela noite. A archigos o alimentou, o abraçou, deixou que gritasse, gemesse, berrasse e sofresse. Mais que isso, ela jamais tentou oferecer para Karl o consolo da fé como teria feito com qualquer um de seus seguidores. Ela jamais mencionou Cénzi, não até ele mencionar enquanto secava as lágrimas com a manga da bashta...

— Eu invejo você — disse Karl.

Os dois estavam sentados ao lado das chamas que ela acendera na lareira. O chá fervia lentamente em uma chaleira. A madeira estava molhada; ela assobiava e estalava sob o ataque das chamas e cuspia jatos rodopiantes de cinzas de tom vermelho-alaranjado chaminé acima.

Ana ergueu uma sobrancelha na direção de Karl.

— Você acredita que Cénzi leva as almas daqueles que morrem — falou o embaixador. — Você acredita que os mortos continuam a existir dentro Dele, e que é possível um dia encontrá-los novamente. Eu... — Lágrimas ameaçaram cair novamente, e foram contidas à força por Karl. — Eu não tenho essa esperança.

— Ter fé não leva a dor embora — disse Ana. — Ou leva muito pouco. Nada pode aliviar o sofrimento e a perda que todos nós sentimos: nem a fé, nem o Ilmodo. O tempo, talvez, consiga dar jeito, e, ainda assim, apenas diminui a tristeza. — Ela enrolou a manga do robe na mão, pegou a chaleira no suporte e serviu a bebida nas xícaras. Passou para Karl o jarro de mel. — Eu ainda me lembro da minha matarh. Às vezes, tudo volta à mente, tudo que senti quando ela morreu, como se tivesse acontecido ontem. — Ana passou os dedos na bochecha de Karl, que sentiu a maciez contra a barba por fazer. — Isso vai acontecer com você também, infelizmente.

— Então para que serve a sua fé, Ana?

Ela sorriu, como se estivesse à espera da pergunta. — Fé não é um bem. A pessoa não a compra porque ela vai fazer isto ou aquilo. A pessoa acredita ou não, e a crença oferece o que oferece. Você não tem fé, meu amor; Cénzi sabe que eu lhe daria fé se pudesse. Eu certamente conversei o bastante com você a respeito disso ao longo dos anos. Vocês, numetodos... vocês tentam envolver o mundo em razão e lógica e, portanto, a fé vira pó sempre que vocês a tocam, porque tentam impor racionalidade sobre ela. Você vai fazer isso com Kaitlin também, vai tentar encontrar razões e lógica na morte dela. — Ana tocou Karl novamente. — Não há razão para ela ter morrido, Karl. Não há lógica nisso. Apenas aconteceu, e não teve nada a ver com você ou com seus sentimentos por ela, ou com o que aconteceu entre vocês dois.

— Nem com a vontade de Cénzi?

Ela empinou o queixo e deu um sorriso triste para Karl. O rosto de Ana foi banhado pela luz quente e amarela da lareira. — Nem mesmo isso. É rara a pessoa com quem Cénzi se importa a ponto de mudar o resultado dos dados rolados pelo moitidi do destino. Era a hora de sua Kaitlin. Só isso. Não é culpa sua, Karl. Não é.

Isto aconteceu há nove anos. Ele viajou de volta para Paeti a fim de ver a sepultura de Kaitlin e estar com os filhos. Karl até trouxe Nilles e Colin para Nessântico quando retornou no ano seguinte. Nilles ficou dois anos com o vatarh, Colin ficou quatro, até que eles atingiram a maioridade, aos 16 anos. Com o tempo, ambos deixaram a cidade para retornar à Ilha de Paeti. Nilles já tinha dado uma neta a Karl — com três anos agora — que ele ainda precisava conhecer.

Karl ficou aqui porque seu trabalho era nos Domínios, dizia ele para qualquer um que perguntasse. Porém, na verdade, era porque Ana estava aqui. Havia aqueles que sabiam disso, mas não eram muitos e fingiam não ver.

A mão de Varina apertou o ombro de Karl novamente e se afastou.

Karl olhou fixamente para o corpo de Ana, embrulhado em uma mortalha no altar de pedra, e para a falange de seis ténis-bombeiros reunidos em um círculo em volta dela. O cadáver estava enrolado sob camadas de uma seda verde bordada com linhas metálicas douradas, que reluziam sob a luz multicolorida do vitral das janelas do templo; incensários fumegavam pelo altar e envolviam os raios de luz com fumaça aromática. Karl não conseguia acreditar que era Ana embrulhada em exposição ali. Não acreditaria. Era outra pessoa qualquer. A memória que ele tinha da luz, do bramido impactante, do corpo sendo dilacerado, do sangue, da poeira negra... Era falsa. Tinha que ser falsa. Mesmo o pensamento era doloroso demais para suportar.

A morte de Kaitlin, de sua família, de todos os outros que faleceram ao longo das décadas: nenhuma doeu como esta. Nenhuma.

Alguém matou a pessoa que Karl mais amava no mundo, acabou com uma mulher que lutou mais do que qualquer um desde a kraljica Marguerite para manter a paz nos Domínios, que acreditava em reconciliação antes de confronto, que tinha o potencial de reunir as duas metades partidas dos Domínios e da fé concénziana. Não haveria paz para Karl até que soubesse quem fez isso e até que essa pessoa estivesse morta. Se houvesse vida além da morte, como Ana acreditava, então Karl deixaria que a alma do assassino fosse condenada a cuidar de Ana pela eternidade. Se houvesse deuses, se Cénzi realmente existisse, se houvesse justiça após a morte, então era isso que deveria acontecer.

Ele teria fé nisso: uma fé sombria, implacável e intransigente.

O archigos Kenne deu um tapinha na mão de Karl e sussurrou mais palavras que ele não conseguiu ouvir. O ombro do regente Sergei estava pressionado contra o esquerdo do embaixador. O kraljiki Audric ofegou do outro lado do regente, sua respiração difícil era mais alta que o cântico dos ténis. Karl ouviu Varina chorar baixinho no banco atrás dele.

Os ténis-bombeiros agitaram-se em volta do corpo embrulhado em pano verde. As mãos moveram-se na dança do Ilmodo, as vozes ergueram-se em uníssono em um cântico que lutou contra as vozes etéreas do coro. Eles espalmaram bem as mãos como em uma benção, e a chama feroz do fogo mágico irrompeu em volta do corpo de Ana. A onda de calor das chamas mágicas passou por eles, selvagem e implacável. Não havia fagulhas, nem pira alimentando as labaredas: enquanto os corpos dos kralji e dos ca’ e co’ queimavam em chamas alimentadas por madeira e óleo, os ténis queimavam seus próprios mortos com o Ilmodo — rápida e furiosamente. O fogo do Ilmodo consumiu o corpo no espaço de alguns instantes, o tecido verde metálico ficou preto instantaneamente, o brilho do calor era tão intenso que o corpo de Ana parecia se mexer ali dentro. Enquanto Karl observava, conforme seu corpo recostou-se por instinto contra o ataque violento do calor, Ana foi levada.

As chamas morreram abruptamente quando o coro encerrou a canção. O ar frio voltou a correr em volta deles, um vento que desmanchou penteados e tremulou roupas. Agora no altar não havia nada além de cinzas e alguns fragmentos de ossos.

A prisão mortal de Ana sumiu.

— Ela voltou para as mãos de Cénzi agora — falou o archigos Kenne para Karl. — Ele dará consolo para Ana.

E eu darei algo melhor que consolo para ela. Ele aquiesceu em silêncio para o archigos. Darei vingança.

 

Allesandra ca’Vörl

— NÃO FOI um sinal.

Fynn socou com força o braço da cadeira. Os criados postados ao longo da parede, de prontidão para servir o jantar, tremeram com o som. A longa cicatriz que descia pelo lado direito do rosto ficou branca contra o rosto corado. — Eu não me importo com o que dizem. O que aconteceu foi um terrível acidente. Nada mais. Não foi um sinal.

— Claro que você está certo, irmão — falou Allesandra, para acalmá-lo. Ela fez uma pausa por um instante e gesticulou para os criados magyarianos: os dois irmãos ceavam nos aposentos de Allesandra no palácio. Os criados se aproximaram e serviram sopa nas tigelas e encheram as taças de vinho. Fynn estava sentado à cabeceira; Allesandra, ao pé da mesa. O archigos Semini e a esposa estavam à direita de Fynn; seu filho, Jan, à esquerda.

A própria Allesandra tinha ouvido alguns dos rumores. O hïrzg Jan está irritado que Fynn tomou a coroa, e não sua filha... A alma do hïrzg não consegue descansar... Ouvi da parte de um criado do palácio que seu fantasma ainda anda pelos salões à noite, gemendo e gritando como se estivesse furioso... Havia dezenas de histórias que surgiam por toda Brezno, deturpadas dependendo dos interesses de quem as espalhasse, e que ficavam maiores e mais absurdas a cada vez que eram contadas. Cénzi manda um aviso ao hïrzg de que os Domínios e a Fé devem se unir novamente... As almas de todos aqueles que o hïrzg matou — os numetodos, os nessânticos, os tennsha — o perseguem e não permitem que ele descanse... Dizem que, quando o selo de pedra caiu, aqueles na câmara ouviram a voz do velho hïrzg amaldiçoar Firenzcia...

A sopa foi servida e o silêncio durou tempo demais. Allesandra ouviu a respiração dos criados e o barulho distante e abafado do cozinheiro e dos funcionários da cozinha no andar debaixo. — Eu soube que o outro lanceiro também morreu — ela comentou quando ficou claro que ninguém mais estava disposto a começar uma conversa.

Fynn olhou feio para a irmã do outro lado da mesa e falou — Isso foi uma benção de Cénzi. O homem jamais teria voltado a andar. O curandeiro disse que a espinha estava quebrada; se eu fosse ele, preferiria morrer a viver o resto da vida como um aleijado inútil.

— Tenho certeza de que ele tinha a mesma opinião que você, irmão. — Ela manteve o tom de voz cautelosamente neutro. — E tenho certeza de que o archigos fez o possível para aliviar seu sofrimento. — Outra pausa. — Até onde a Divolonté permite, é claro — acrescentou.

Francesca deixou a colher bater na mesa ao ouvir isso. — A senhora pode ter sido maculada pelas crenças da falsa archigos durante seus anos com ela, a’hïrzg — declarou ela com frieza —, mas eu lhe garanto que meu marido não se maculou. Ele jamais...

— Francesca! — A bronca de Semini fez Francesca fechar a boca como uma carpa agonizante na margem de um rio. Ele olhou fixamente para a esposa, depois levou as mãos entrelaçadas à testa ao se voltar para Allesandra. Semini sustentou o olhar da a’hïrzg. Allesandra sempre achou que o archigos tinha belos olhos: poderosos e encantadores. Também notou que, quando ela estava em um ambiente, Semini geralmente prestava atenção nela. Isso nunca incomodou Allesandra, que gostava da atenção dele. A a’hïrzg pensou, na época em que seu vatarh finalmente pagou o resgate por ela, que o hïrzg Jan poderia tê-la casado com Semini, se o archigos já não estivesse comprometido com Francesca. Este teria sido um casamento poderoso, que permitiria reunir os poderes políticos e religiosos do estado, e Semini poderia ter sido alguém que ela viesse a amar, também. Mesmo agora... Allesandra afastou essa ideia rapidamente. Ela teve amantes durante o casamento, sim, como sabia que Pauli também tinha, mas sempre com cautela. Um caso com o archigos... isso seria difícil de esconder.

— Eu peço desculpas, a’hïrzg — disse Semini. — Às vezes, hã, a devoção da minha esposa pela Fé faz com que ela fale com muita grosseria. Eu realmente dei ao pobre lanceiro o consolo que pude, a pedido do hïrzg. — Ele então se dirigiu a Fynn. — Meu hïrzg, o senhor não deveria se preocupar com as fofocas da ralé. Na verdade, eu deixarei claro na minha próxima Admoestação que aqueles que acreditam que existem portentos nesse acidente horrível estão enganados, e que esses rumores absurdos são simplesmente mentiras. Já mandei começarem a investigar quem está espalhando essa fofoca sórdida. Eu diria que, se a Garde Hïrzg levasse alguns deles sob custódia, especialmente alguns do baixo escalão, e... hã, os convencesse a desmentir publicamente antes de serem executados por traição, isto certamente serviria de lição para os outros. Acho que veríamos que toda essa conversa sobre o que aconteceu no enterro de seu vatarh desapareceria tão rápido quanto neve em Daritria.

Francesca concordava com a cabeça ao ouvir as palavras do marido. — Nós devemos tratar essas pessoas da mesma maneira que trataríamos os numetodos — aquiesceu ela. — Da mesma forma que os numetodos são traidores da Fé, esses fofoqueiros são traidores de nosso hïrzg. Alguns corpos balançando na forca calarão a boca do populacho. — Ela olhou para Allesandra. — A senhora não concorda, a’hïrzg? — perguntou Francesca com voz gentil e ávida demais. A mulher chegou mesmo a se debruçar sobre a mesa, o que enfatizou a corcunda.

— Acho que é perigoso igualar fofocas com heresias, vajica ca’Cellibrecca — ela começava a dizer com cautela, mas Jan a interrompeu.

— Se você punir as pessoas por boataria, vai convencê-las de que os rumores são verdadeiros — disse o filho de Allesandra, as primeiras palavras que Jan disse desde que se sentaram à mesa, e deu de ombros quando os demais olharam para ele. — Bem, é verdade — insistiu. — Se o senhor der o sermão que sugere, archigos, estará apenas atraindo mais atenção para o que aconteceu, o que fará as pessoas acreditarem ainda mais nos rumores. É melhor não dizer, nem fazer nada; todo esse falatório vai passar por conta própria quando nada mais acontecer. Toda vez que um de nós repete a fofoca, mesmo que para negá-la ou refutá-la, nós fazemos com que pareça mais real e mais importante do que ela é.

Allesandra acompanhou o olhar de Jan deslizar de Semini para os demais à mesa. O archigos estava furioso, com as sobrancelhas baixas como nuvens carregadas sobre aqueles olhos cativantes; Francesca estava boquiaberta, como se estivesse atordoada e sem palavras diante da insolência do garoto; ela soltou uma tosse de desdém e abanou uma mão parecida com uma garra na direção de Jan, como se afastasse a praga de um mendigo. Fynn encarava a toalha de mesa diante dele. — É melhor não dizer e não fazer nada — repetiu Jan no silêncio, com a voz mais fraca e vacilante agora — ou o que aconteceu vai virar um sinal. Todos os senhores transformarão o boato em um sinal.

Allesandra tocou no braço do filho: foi o que ela teria dito, embora de uma maneira menos diplomática. — Muito bem dito — sussurrou Allesandra para Jan. Ele talvez tivesse sorrido momentaneamente; era difícil dizer.

— Então, se você fosse o hïrzg, não faria nada? — falou Francesca. — Então agradeçamos a Cénzi por você não ser, criança.

O que fez Jan erguer a cabeça novamente e responder — Se eu fosse o hïrzg, pensaria que esses rumores não valem o meu tempo. Há eventos mais importantes que eu consideraria, como a morte da archigos Ana, ou a guerra nos Hellins que consome os recursos e a atenção de Nessântico, e o que tudo isso significa para Firenzcia e a Coalizão.

Francesca olhou com desdém novamente. Ela voltou a atenção para a sopa, como se o comentário de Jan não merecesse ser levado em consideração. Semini balançava a cabeça e olhava feio para Allesandra como se ela fosse diretamente responsável pela impertinência de Jan.

Allesandra imaginou que Fynn estivesse irritado sob a carranca que fazia, mas o irmão a surpreendeu e quebrou o silêncio incômodo. — Eu acho que o jovem está certo — disse Fynn, que deu para Jan um sorriso distorcido pela cicatriz no rosto. — Eu odeio pensar em ouvir os boatos por outro instante sequer, mas... você está certo, sobrinho. Se não fizermos nada, a boataria sumirá em uma semana, talvez até mesmo em alguns dias. Talvez eu devesse tornar você meu novo conselheiro, hein?

Jan ficou radiante com o elogio de Fynn enquanto Francesca se recostou abruptamente com a testa franzida. Semini tentou parecer despreocupado. — Você criou um jovem inteligente, irmã — falou Fynn para Allesandra. — Ele é tão ousado quanto eu gostaria que meu próprio filho fosse. Devo conversar mais com você, Jan, e sinto muito por não conhecê-lo tão bem quanto um onczio deveria. Vamos começar a retificar isso amanhã. Vamos caçar depois das reuniões da tarde, eu e você. Que tal?

— Sim! — disparou Jan, de repente criança novamente, recebendo um presente inesperado. Então ele pareceu perceber como soou jovem e concordou solenemente com a cabeça. — Eu gostaria muito, onczio Fynn — falou com a voz grave. — Matarh?

— O hïrzg é muito gentil — disse Allesandra sorrindo enquanto a suspeita martelava em sua cabeça. Primeiro o vatarh, agora Fynn. O que o desgraçado pensa que vai ganhar com isso? Será que está apenas tentando me aborrecer ao roubar a afeição de Jan? Estou perdendo meu filho, e quanto mais forte tento me agarrar a ele, mais rápido ele vai escapar... — Parece uma ideia maravilhosa — falou ela para Jan.

 

A Pedra Branca

HAVIA ASSASSINATOS FÁCEIS, e havia os difíceis. Este foi um dos fáceis.

O alvo era Honori co’Belgradi, um comerciante de mercadorias das Magyarias, e um mulherengo que cometera o erro de dormir com a esposa da pessoa errada: a esposa do cliente da Pedra Branca.

— Eu vi o sujeito cobrir minha mulher — disse o homem para Pedra Branca com a voz trêmula de raiva diante da lembrança. — Eu o vi possuir minha esposa como um animal, e eu a ouvi chamar seu nome no momento de desejo. E agora... agora ela está grávida, e eu não sei se a criança é minha ou... — Ele se interrompeu, com a cabeça baixa. — Mas vou garantir que ele não faça isso com nenhum outro marido, vou garantir que a criança jamais seja capaz de chamá-lo de vatarh...

Relacionamentos e desejo eram responsáveis por metade do trabalho da Pedra Branca. Ganância e poder respondiam pelo resto. Jamais faltou gente à procura da Pedra Branca; se a pessoa precisava encontrá-la, ela achava um jeito.

Honori co’Belgradi era um sujeito com hábitos, e hábitos geravam uma presa fácil. Pedra observou o comerciante por três dias, e o ritual do homem jamais variava por mais que uma marca da ampulheta. Ele fechava a loja em Ville Serne, uma cidade a meio dia de cavalgada ao sul de Brezno, depois ia a uma taverna na esquina da próxima rua. Ficava por lá até por quatro viradas da ampulheta, após a Terceira Chamada, e então se dirigia aos aposentos onde a mulher — a esposa do cliente da Pedra — esperava pela aventura noturna.

A caminho daqueles aposentos, Honori passava pelo beco onde a Pedra esperava agora. Ela já era capaz de ouvir os passos no ar fresco da noite. — Honori co’Belgradi — chamou a Pedra quando a silhueta do homem passou pela boca do beco. O comerciante parou com uma expressão cautelosa, depois olhou com muito interesse quando a Pedra ficou sob a luz das lâmpadas mágicas da rua.

— Você me conhece? — perguntou co’Belgradi, e a Pedra deu um sorriso gentil.

— Conheço. E queria conhecer melhor, meu amigo. Você e eu, nós temos um negócio para acertar.

— O que quer dizer? — indagou co’Belgradi quando a Pedra se aproximou. Tão fácil... A apenas um passo de distância. A uma facada de distância, e co’Belgradi inclinou a cabeça, intrigado.

— Assim — respondeu a Pedra. Ela olhou para a rua, viu que ninguém observava, e deu um tapinha no ombro de co’Belgradi, como se o homem fosse um amigo que não via há anos. Ao mesmo tempo, a mão com a adaga envenenada cravou a arma com força debaixo das costelas do comerciante em direção ao coração. Co’Belgradi soltou um grito sufocado pelo sangue, e de repente o corpo ficou pesado contra a compleição atlética do assassino. A Pedra meio arrastou, meio carregou o moribundo co’Belgradi para dentro do beco e deitou o corpo rapidamente no chão. Os olhos do comerciante estavam abertos, ela tirou duas pedras de um bolso na capa: ambas brancas sob a luz fraca do beco, embora uma estivesse lisa e polida como se fosse muito manuseada. O assassino colocou as pedras sobre os olhos abertos de co’Belgradi e pressionou fundo dentro das órbitas. A pedra do olho esquerdo foi deixada ali; já a pedra reluzente, branca e lisa que estava sobre o olho direito (o olho do ego, aquele que guardava a imagem do rosto que o olho viu no último momento), esta a Pedra Branca pegou novamente e recolocou em uma bolsinha de couro pendurada no pescoço.

— E agora eu possuo você para sempre — sussurrou a aparição conhecida como a Pedra Branca.

Um instante depois, não havia mais ninguém vivo no beco, apenas um cadáver com uma pedrinha sobre o olho esquerdo: um contrato cumprido.


??? SUBSTITUIÇÕES ???

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Jan ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ESTA ERA UMA daquelas noites ruins.

Cada tomada individual de fôlego era uma luta. Audric tinha que forçar o ar velho e inútil para fora dos pulmões, e o peito doía a cada inalação, mas ele nunca conseguia aspirar ar suficiente. O kraljiki sentou-se na cama; sentiu que, se ficasse deitado, poderia sufocar. Os curandeiros do palácio agitaram-se em volta dele, com expressões de muita preocupação nos rostos — ainda que por medo do que poderia acontecer com eles se o kraljiki morresse sob seus cuidados —, mas Audric prestou pouca atenção neles, a não ser quando tentavam fazer com que tomasse uma poção ou inalasse a fumaça de alguma erva desagradável. Os braços estavam marcados por novas casquinhas; os curandeiros quase o deixaram sem sangue, e um deles estava abrindo um novo corte, mas Audric sequer fez uma careta. Seaton e Marlon, os camareiros de Audric, entravam e saíam correndo do quarto para pegar o que quer que os curandeiros pedissem a eles.

Toda a atenção de Audric estava voltada para a guerra com o fôlego. O mundo fora reduzido à batalha por cada inalação, pela tentativa de aspirar ar suficiente para os pulmões a fim de permanecer consciente. Os limites da visão ficaram escuros; ele apenas conseguia enxergar o que estava diretamente à sua frente. Sentia pouca coisa a não ser a eterna dor no peito.

Audric prestou atenção ao quadro da kraljica Marguerite sobre a lareira ao pé da cama. A mamatarh devolvia o olhar, o rosto pintado era completamente realista, como se a moldura dourada fosse uma janela por trás da qual a kraljica estivesse sentada. Ele podia jurar que a viu se mover ligeiramente contra o pano de fundo do Trono do Sol, que o próprio trono pintado reluzia com a luz do Ilmodo como o verdadeiro fazia sempre que Audric se sentava nele.

A archigos Ana nunca dera mais do que um olhar amargo para o quadro, que sempre parecia capturar o olhar de outros visitantes ao quarto de Audric. Uma vez, ele perguntou para a archigos por que ela dava tão pouca atenção à obra-prima. A archigos apenas balançou a cabeça e disse — Tem coisa demais de sua mamatarh naquele quadro. Eu sofro por vê-la presa ali. — Então Ana franziu a testa. — Porém, seu vatarh adorava a pintura, por seus próprios motivos.

Marguerite encarava Audric agora com seu olhar penetrante e avaliador. Ele esperou que o acesso passasse. A crise passaria; sempre passara. Precisava passar. A boca de Audric moveu-se em silêncio ao rezar para Cénzi para que o acesso passasse, para que o gigante invisível montado em seu peito e que amassava seus pulmões se levantasse lentamente e fosse embora, e que ele pudesse respirar facilmente outra vez.

Isso aconteceria. Precisava acontecer.

Sua mamatarh parecia acenar com a cabeça, como se concordasse.

Enquanto encarava o quadro, Audric mais ouviu do que viu o regente ca’Rudka irromper no quarto e afastar os curandeiros. Ele debruçou-se sobre a cama e afastou a fumaça desagradável dos incensários. — Tirem essas coisas daqui — rosnou Sergei. — A archigos Ana disse que a fumaça piora a respiração do kraljiki em vez de melhorar. E saiam daqui vocês também. — Os curandeiros afastaram-se entre murmúrios, dedos ensanguentados e barulho de frascos, e deixaram o regente sozinho com Audric. Não, não sozinho... Havia outra pessoa com ele. Relutantemente, Audric tirou o olhar do quadro e cerrou os olhos na escuridão.

O esforço provocou um gemido.

— Archigos... Kenne... — Cada palavra saiu depois de um fôlego, acompanhada por uma arfada agitada de ar; ele não conseguia fazer melhor do que isso.

— Kraljiki — falou o archigos. — Por favor, não se mexa. Eu vim rezar com o senhor. — Audric viu o archigos Kenne olhar com preocupação para o regente. — A archigos Ana tinha uma... relação especial com Cénzi que infelizmente poucos ténis conseguem igualar, mas farei o que for possível. Deite-se com o máximo de conforto que conseguir. Feche os olhos e não pense em nada além da respiração. Concentre-se apenas nisso...

A respiração estava rápida e ofegante. Ele sentiu o solavanco brusco do coração contra o espaço restrito das costelas. Só conseguiu tomar um gole mínimo do precioso ar. Audric fechou os olhos quando o archigos começou a rezar. A archigos Ana, quando o visitava, também rezava e colocava as mãos com delicadeza em seu peito. Era como se Audric pudesse senti-la dentro dele. O kraljiki ouvia a voz de Ana dentro da cabeça e sentia o poder do Ilmodo queimar no peito, consumir os bloqueios e permitir que ele respirasse plenamente outra vez. Ana envolvia Audric naquele calor interior, sua voz entoava e ao mesmo tempo falava dentro de sua cabeça. — Você vai ficar bem, Audric. Cénzi está com você agora, e Ele fará sua saúde melhorar novamente. Apenas respire devagar: respire fundo e bem. Isso, assim... — Dentro de poucos minutos, ele respiraria naturalmente e com facilidade mais uma vez, um alívio que, no início, durava meses, mas recentemente durava apenas algumas semanas.

Agora, com Kenne, Audric só ouvia as preces meio sussurradas pelo homem com os ouvidos. Não havia nada dentro. Não havia calor que se espalhava pelo peito. Havia apenas as preces de um velho, ditas por uma voz vacilante do lado de fora de Audric. Não havia sensação do Ilmodo, nem sinal do poder de Cénzi — ou talvez houvesse, só que era tão fraco que Audric mal conseguia sentir. Talvez houvesse calor, talvez a expansão e a contração dos pulmões estivessem um pouco mais fáceis. Audric tentou respirar fundo, mas o esforço provocou uma tosse seca e espasmódica que fez com que dobrasse o corpo na cama. Ele abriu os olhos, e viu Marguerite franzir a testa no quadro. Audric viu as gotículas de sangue que espirraram sobre o lençol.

— Você tem que lutar contra isso, Audric. Se você morrer, nossa linhagem morre, e com ela nosso sonho para Nessântico e os Domínios... — Ele viu os lábios pintados de Marguerite se moverem, ouviu a voz que sempre imaginou que ela tivesse. — Você tem que lutar contra isso. Eu vou ajudar você...

Sergei correu rapidamente para o lado de Audric, que sentiu a mão forte do regente em suas costas e ouviu sua voz chamar Marlon com rispidez. Deram um pano molhado em água fria para o kraljiki. Audric pegou com gratidão e levou o pano aos lábios. Sentiu o gosto doce da água. E sim, ele conseguia respirar um pouco melhor. — Obrigado, regente — falou o kraljiki. — Estou muito... melhor agora... archigos. — A própria voz soou distante e abafada, como se alguém meio que cobrisse seus ouvidos. Era a voz de Marguerite que soava mais claramente.

— Escute o que digo, Audric. Eu vou ajudar você. Escute a sua mamatarh...

O archigos Kenne assentiu com a cabeça, mas Audric apenas viu a dúvida nos olhos do homem. — Sinto muito, kraljiki. A archigos Ana... Eu sei que ela podia fazer mais pelo senhor.

Audric esticou o braço para tocar a mão do homem. A pele de Kenne era fria e seca como papel velho. — Eu vou ficar bem — disse o kraljiki. — Acho que... encontrei a solução.

O retrato de Marguerite dirigiu um sorriso sutil para o neto, e ele devolveu o gesto.

— Você não pode morrer porque tem muita coisa a fazer...

— Eu não posso morrer porque tenho muita coisa a fazer — falou Audric para ele, para os dois. Foi tanto uma promessa quanto uma ameaça.

 

Varina ci’Pallo

À ÉPOCA EM QUE ELA se juntou aos numetodos, quando era apenas uma humilde iniciada na sociedade deles e tinha acabado de conhecer Mika e Karl, a Casa dos Numetodos era um local decadente no centro do Velho Distrito, oculto pela pobreza e sujeira dos prédios do entorno.

Agora, a Casa dos Numetodos ocupava um belo prédio na margem sul, com um jardim, piso lustroso do lado de fora e portões que davam para a Avi a’Parete — um presente da archigos Ana e (com mais relutância) do kraljiki Justi pela ajuda dos numetodos em acabar com o cerco firenzciano à cidade em 521. As acomodações mais espaçosas e luxuosas ajudaram a tornar os numetodos mais aceitáveis para os ca’ e co’, mas também os deixou mais visíveis. No passado, eles reuniam-se em segredo, e a maioria dos integrantes mantinha a afiliação em segredo. Isso acabou. Varina não tinha dúvidas de que todos aqueles que cruzavam os portões eram observados pelo utilino e pela Garde Kralji, que constantemente patrulhavam a Avi, e de que a informação era transmitida ao comandante — e dele seguia para Sergei ca’Rudka, o Conselho dos ca’ e do kraljiki.

Os numetodos eram conhecidos — o que não era problema, desde que suas crenças fossem toleradas. Porém, com a morte de Ana, Varina não tinha mais certeza de quanto tempo essa situação duraria. Seus receios a levaram de volta à pesquisa...

Apesar dos rumores paranoicos entre os fiéis conservadores, grande parte da pesquisa dos numetodos não tinha nada a ver com magia: eles realizavam experiências de física e biologia; criavam belos e elegantes teoremas matemáticos; pesquisavam medicina; exploravam alquimia; examinavam livros empoeirados e cavavam antigos sítios arqueológicos para recriar a história. Mas, para Varina, era a magia que a fascinava. O que a intrigava em particular era como a Fé, os numetodos e os ocidentais abordavam a conjuração de feitiços.

Os numetodos provaram há muito tempo — apesar da negação irritada e por vezes violenta da fé concénziana — que a energia do Segundo Mundo não precisava de crença em deus algum. Podia ser chamada de “Ilmodo”, “Scáth Cumhacht” ou “X’in Ka.” Não importava. Essa compreensão dissolveu quaisquer resquícios de fé que Varina tivesse quando se juntou aos numetodos.

“Conhecimento e compreensão podem ser moldados somente pela razão e lógica; só que não é algo fácil ou simples. As pessoas criam deuses para explicar o mundo de modo que não tenhamos a responsabilidade de descobrir as coisas por nós mesmos.” Foi o que ela ouviu Karl dizer em uma palestra há anos, quando ela considerou se juntar aos numetodos pela primeira vez. “A magia é uma manifestação tão religiosa quanto o fato de que um objeto solto da mão cairá no chão.”

Sim, tanto os ténis da fé concénziana quanto os ocidentais usavam cânticos e gestuais para criar a estrutura do feitiço, e, no entanto, cada um deles tinha uma “crença” diferente como base, que permitia que dominassem a energia da magia. O que os numetodos perceberam foi que os cânticos e gestuais usados pelos feiticeiros eram apenas uma “fórmula”. Uma receita. Nada mais. Falar essa sequência de sílabas com aquele conjunto de movimentos daria nesse resultado.

Mas os ocidentais... Varina não conheceu Mahri, o Maluco, mas Karl e Ana conheceram, e as histórias dos nahualli ocidentais dos Hellins apenas confirmavam o que eles disseram sobre Mahri. Os nahualli eram capazes de colocar os feitiços dentro de objetos, que depois podiam ser disparados por uma palavra, um gesto ou uma ação. Nem os ténis, nem os numetodos conseguiam fazer isso. Os feiticeiros ocidentais invocavam os próprios deuses para os feitiços, assim como os ténis faziam com os seus, mas Varina tinha certeza de que os deuses ocidentais eram tão imaginários e desnecessários quanto Cénzi e seu moitidi.

Se ela conseguisse aprender os métodos dos ocidentais, se fosse capaz de encontrar a fórmula das palavras e gestos corretos para colocar o Scáth Cumhacht dentro de um objeto inanimado, então ela poderia começar a replicar o que Mahri foi capaz de fazer. Ela vinha trabalhando nisso, de tempos em tempos, há anos. Agora a preocupação movia Varina mais do que nunca: preocupação com o significado da morte de Ana para os numetodos; com a imensa tristeza de Karl, que abalava Varina como se fosse sua.

Se ela não conseguia entender por que as pessoas faziam coisas tão terríveis umas com as outras, pelo menos tentaria compreender isso.

Varina estava em um cômodo quase sem mobília, nos níveis inferiores da Casa. Na mesa diante dela havia uma bola de vidro que Varina comprara de um vendedor no Mercado do Rio, pousada em um ninho de pano para que não rolasse. A bola era feita inabilmente: havia uma linha de pequenas bolhas de ar no interior e o vidro ao redor dela estava manchado e marrom, mas Varina não se importava — ela tinha sido barata. Varina entoou e mexeu as mãos: um simples e fácil feitiço de luz, um dos primeiros truques ensinados a um iniciado numetodo. Moldar o feitiço de luz não exigia esforço, mas colocá-lo dentro do vidro era bem, bem mais difícil. Era como empurrar um fio de cabelo por uma parede de pedra. Ela sentiu a fadiga minar sua força. Varina ignorou a sensação e concentrou-se na bola de vidro à sua frente, tentou imaginar o poder do Scáth Cumhacht entrando no vidro da mesma forma que ela teria colocado a energia dentro da própria mente, visualizou a luz potencial depositada em volta daquelas bolhas bem no fundo do vidro e colocou uma palavra ali que acionaria o feitiço.

O encantamento terminou; Varina abriu os olhos. Seus músculos tremiam como se ela tivesse corrido quilômetros ou levantado pesos por uma virada da ampulheta. Ela teve que fazer um esforço para continuar de pé. A bola estava apoiada na mesa, e Varina permitiu-se dar um sorrisinho. Agora, se...

A bola começou a vibrar sem ser tocada. Varina deu um passo para trás quando ela soou como uma taça de vidro batida por uma faca, houve um faiscar súbito de uma brilhante luz amarela e o globo estilhaçou-se. Ela sentiu uma lasca atingir seu braço erguido e gritou.

— Você está bem? — Varina escutou a voz atrás dela na porta: Mika. O líder dos numetodos entrou rapidamente no aposento, enquanto balançava a cabeça cada vez mais careca e esfregava a barba por fazer no queixo. — Você está sangrando, e parece que não dorme há uma semana. — Ele puxou uma cadeira até a mesa e ajudou Varina a se sentar.

Ela ergueu o braço, que parecia tão pesado quanto um bloco de mármore do Palácio do Kraljiki, e examinou o corte no antebraço. Era comprido, mas não fundo, e Varina fez uma careta ao puxar uma lasca de vidro da ferida. Um filete de sangue escorreu no braço próximo à mão, que ela ignorou. — Droga. — Varina fechou os olhos, depois abriu de novo com esforço para olhar a mesa: o globo havia se partido praticamente ao meio na linha de bolhas, e o pano de apoio estava cheio de cacos. — Eu cheguei tão perto.

— Eu estava vendo — disse Mika, que deu uma olhadela para o globo quebrado. — Pensei que você finalmente tivesse conseguido.

— Eu também pensei. — Varina balançou a cabeça. — Mas estou cansada demais para tentar novamente.

— Melhor assim. Eu desci para lhe dizer: Karl voltou para o próprio apartamento.

Varina inclinou a cabeça, intrigada. — Eu pensei que ele ficaria com você, Alia e as crianças por enquanto.

Mika deu de ombros. — Ele disse que estava bem, que precisava retomar a própria vida. Que precisava retomar os compromissos numetodos e o trabalho como embaixador.

— Você não parece acreditar nisso.

— Eu acho... — Mika cerrou os lábios finos. — Estas são desculpas. Karl está magoado e com raiva, e eu não tenho certeza do que ele vai fazer. Acho que Karl precisa de alguém ao lado dele, para conversar se ele quiser, para garantir que esteja bem e que não faça nenhuma estupidez. A morte de Ana abalou Karl mais do que ele admite.

Mika ficou em silêncio, e Varina sentiu que ele esperava por uma resposta. Mas estava difícil simplesmente manter a cabeça erguida. O sangue pingou do dedo para o chão; as metades partidas do globo de vidro reluziam de maneira acusadora para ela sob a luz da lamparina. — Acho que posso mandar Karoli ou Lauren visitá-lo — disse Mika em meio ao silêncio.

— Eu vou. Apenas dê-me alguns minutos. Tenho que me arrumar.

Mika sorriu e falou — Deixe-me ajudar você.

 

Jan ca’Vörl

JAN GOSTAVA DE FYNN. Ele não tinha certeza do que sua matarh pensaria a esse respeito.

Allesandra contou para o filho que ela nunca conheceu Fynn, que o irmão nasceu poucos meses depois que ela foi sequestrada pela archigos Ana da tenda do hïrzg Jan no campo de batalha. Quando era criança, Jan não tinha compreendido todas as implicações dessa situação; agora, ele achava que finalmente começara a entender a dinâmica do relacionamento entre irmã mais velha e irmão caçula, distorcido e desvirtuado pelo orgulho e pela vaidade do vatarh de Allesandra e Fynn. Ele entendia que sua matarh jamais se permitiria gostar de Fynn, nunca poderia tratá-lo como irmão, jamais confiaria nele.

Mas ele gostava do sujeito, seu onczio.

Fynn mandou um bilhete para Jan imediatamente depois da Segunda Chamada, para convidá-lo a se juntar a ele na reunião da tarde. Jan sentou-se ao lado de Fynn, que se inclinava para sussurrar comentários irônicos enquanto os vários ministros e conselheiros colocavam o novo hïrzg a par das novidades sobre a atual situação política. Helmad co’Göttering, comandante da Garde Brezno, relatou que houve um pequeno conflito com forças leais de Tennshah a leste do lago Cresci, facilmente debelada. (— Você devia ver como eles correm como cães açoitados quando veem soldados de verdade cavalgando entre suas cabanas. Todos eles têm medo de um bom aço firenzciano — disse Fynn baixinho no ouvido de Jan. — Minha própria espada tem manchas de sangue de incontáveis dezenas de soldados de Tennshah. No outono, se quiser, podemos passear pela região, e talvez colocar alguns desses rebeldes para correr nós mesmos.)

O starkkapitän Armen ca’Damont da Garde Civile firenzciana atualizou as informações sobre a guerra dos Domínios nos Hellins, a qual, se tudo o que o starkkapitän disse fosse verdade, não estava indo bem para os Domínios e o kraljiki. (— Os Domínios não sabem guerrear de verdade, Jan. Eles dependeram de Firenzcia para isso por tempo demais e esqueceram. Se nós pudéssemos mandar nossa Garde Civile e um batalhão de bons Lanceiros Vermelhos para lá por um mês, debelaríamos esses ocidentais de uma vez por todas.)

O archigos Semini especulou sobre quem o Colégio A’téni poderia nomear como novo archigos “daquela Fé falsa e desprezível em Nessântico” e teceu um longo e tedioso comentário sobre cada a’téni das principais cidades dos Domínios e seus relativos pontos fortes e fracos. Ele alegou que o a’téni ca’Weber de Prajnoli se tornaria o próximo archigos em Nessântico, em última análise. (— E, no fim das contas, não importa quem eles escolham, portanto todo esse esforço e conversa fiada é uma perda do nosso tempo, não é?)

Havia relatórios sobre a falta de comida na Magyaria Oriental (— Você comeu o suficiente no almoço, não é?), sobre práticas comerciais injustas entre Firenzcia e Sesemora (— Você acha isso tão chato quanto eu?), sobre o valor relativo das solas firenzcianas contra as solas dos Domínios (— Por Cénzi, acorde-me quando este aí terminar de falar, pode ser, sobrinho?). No fim, Jan já não escutava mais. Ao dar uma olhadela para Fynn, viu que os olhos do onczio também perderam o foco. Os dedos do novo hïrzg tamborilavam no tampo da mesa com impaciência, e ele remexia o corpo inquieto na cadeira. Quando a próxima ministra ficou de pé para dar seu relatório, Fynn ergueu a mão e disse — Chega. Mande-me o relatório que eu lerei. Tenho certeza de que é fascinante, mas meus ouvidos estão prestes a cair pelo uso exagerado, e eu prometi uma caçada ao meu sobrinho. Saiam!

Eles resmungaram baixinho, franziram a testa, mas todos fizeram uma mesura e saíram da sala. O hïrzg fez um gesto para que os criados em pé contra as paredes trouxessem comes e bebes. — Então... — falou Fynn enquanto os dois beliscavam os pães e frios e bebiam o vinho — a vida de um hïrzg é uma delícia, não é? Todo aquele falatório sem parar... Eu entendo por que o vatarh sempre ficava de péssimo humor antes dessas reuniões.

— Eu acho que o archigos Semini estava errado — disse Jan. Ele não tinha certeza por que disse isso; de alguma forma confiou que Fynn fosse dar ouvidos. A matarh sempre deu sermões, como se ela fosse uma professora e ele, o estudante; o vatarh estava mais preocupado com o próprio prazer do que escutar as opiniões do filho. O onczio Fynn, por outro lado, realmente deu ouvidos a ele na noite anterior, durante o jantar, enquanto os demais à mesa teriam preferido que ele ficasse calado. Então, agora, Jan falou o que pensava, apenas com a voz um pouco trêmula. — Ca’Weber não será nomeado archigos. O Colégio vai escolher Kenne ca’Fionta.

Fynn ergueu uma sobrancelha grossa e escura. — Por que você diz isso? Semini pareceu achar que ca’Fionta era o mais fraco do grupo.

— É exatamente por isso — respondeu Jan com mais avidez agora. Ele assinalou os argumentos com a ponta dos dedos. — O archigos Semini presumiu que o Colégio A’téni pensará como ele pensaria e escolherá a pessoa que ele escolheria. Eles não farão isso. O resto dos a’ténis está preocupado nesse momento: o assassinato da archigos Ana fez com que eles vissem que um archigos forte tem inimigos, e os a’ténis também se perguntam por quanto tempo a Fé pode se manter dividida, agora que a archigos Ana está morta. Então, eles escolherão Kenne: porque ele é fraco e porque é mais velho do que qualquer um dos a’ténis. E mesmo que Kenne seja uma má escolha, eles não terão que aguentá-lo por décadas.

Fynn riu. Ele bateu com a borda de sua taça na de Jan. Ao se inclinar na direção do sobrinho, o hïrzg passou um braço parrudo sobre seus ombros. — Muito bem dito, e veremos em breve se você está certo. O que mais anda escondendo? Vamos, você não pode esconder o resto de mim.

Fynn estava sorrindo. Jan sorriu de volta e sentiu apreço pelo homem. — O starkkapitän ca’Damont pode estar certo a respeito da guerra nos Hellins, mas ele não nota a importância da guerra. Com a Garde Civile dos Domínios concentrada naquele conflito e gastando recursos, dinheiro e soldados todo mês, eles não podem se voltar para leste com força alguma. Os Domínios estão em uma posição fraca de negociação contra a Coalizão; em termos militares, eles estão em uma posição ainda pior. Um hïrzg forte pode tirar vantagem disso, de uma forma ou de outra.

Fynn levantou ainda mais as sobrancelhas e deu um abraço apertado nos ombros de Jan. — Por Cénzi, eu deveria fazer de você meu novo conselheiro, sobrinho. Você tem a mente sutil de sua matarh.

Ele abraçou Jan novamente com um braço só, depois desmoronou na cadeira. — Ah! Eu gosto de você, Jan! Isso me faz pensar no que perdi com a minha irmã. — Fynn franziu a testa ao dizer isso e tomou outro gole de vinho. — Você sabia que eu sequer fazia ideia de que tinha uma irmã até mais ou menos os nove anos? O vatarh jamais a mencionou para mim uma vez sequer. Jamais. Não falou o nome dela uma vez que fosse; era como se Allesandra jamais tivesse existido para ele. Então, quando decidiu que finalmente pagaria o resgate por ela, o vatarh sentou-se comigo e me explicou que Allesandra fora levada pela archigos bruxa. Ele não me contou como esse fato acabou com a guerra com os Domínios; isso eu aprendi muito tempo depois. O vatarh sempre foi amargo a respeito daquilo, sua única derrota. Creio que Allesandra era o símbolo daquele fracasso para ele, por isso certamente casou a filha, assim que ela retornou. Eu nunca a conheci realmente...

O hïrzg tomou outro longo gole do vinho e bateu a taça na mesa com tanta força que Jan deu um pulo. O vinho derramou; a base da taça deixou uma mancha em formato de lua crescente na mesa.

— Agora vamos caçar! — declarou Fynn. Ele empurrou a cadeira e ficou de pé. — Ande, sobrinho. Vamos para a Encosta do Cervo.

 

Enéas co’Kinnear

SE ELE ESTAVA MORTO, a vida após a morte não era nada como a que os ténis prometiam aos fiéis.

A vida após a morte de Éneas era iluminada por uma luz fraca e avermelhada e fedia à carne podre e enxofre. O solo onde estava deitado era molhado e duro, com punhos de pedra cutucando suas costas. Os ténis sempre disseram que os males do corpo de uma pessoa seriam curados quando ela finalmente descansasse nos braços de Cénzi, que braços e pernas perdidos seriam restaurados, que não haveria mais dor.

Mas a respiração de Enéas tremeu nos pulmões, e, quando tentou se mover, a agonia fez com que ele berrasse.

Enéas ouviu asas baterem em resposta, pontuadas por grasnidos roucos de alerta. Ele piscou, e a vermelhidão acompanhou as pálpebras. Ergueu lentamente uma mão ferida e esfregou os olhos. O filtro vermelho clareou um pouco, e Éneas percebeu que olhava para uma paisagem iluminada pelo luar através de uma película viscosa de sangue, com a cabeça no solo lamacento. Uma montanha marrom erguia-se a um metro dedo de distância. Ele piscou novamente e franziu os olhos; era um cavalo caído e morto, seu cavalo de guerra. Cénzi, o Senhor me deixou vivo. Quando se deu conta disso, duas patas com garras apareceram no cume da montanha equina, acompanhadas por outro grasnido irritado, e Enéas ergueu o olhar para ver uma das aves carniceiras dos Hellins, a criatura que os soldados chamavam de estripadores: pássaros feios com uma envergadura da altura de dois homens ou mais, grandes bicos curvos em um rosto sem penas e branco como um fantasma, olhos sem expressão, como contas negras, e garras curvas para abrir os cadáveres que eles preferiam comer. Não havia nada como esses bichos nos Domínios.

O pássaro olhou fixamente para Enéas, como se observasse uma bela refeição posta diante de si. O o’offizier apoiou-se nos cotovelos; era o mais próximo que conseguiria chegar de se sentar. Irritado, o pássaro guinchou e foi embora voando. Enéas sentiu o vento desagradável provocado pelas asas.

Não morri. Não ainda. Louvado seja Cénzi.

Ele tentou se lembrar de como chegou ali, mas a cabeça estava confusa. Lembrava-se de ter falado com o a’offizier ca’Matin e do início da investida, a corrida morro abaixo em direção à força ocidental. Então... então...

Nada.

Enéas balançou a cabeça para desprender a memória. O gesto foi um erro. O mundo ao redor girou, a vermelhidão voltou, e ele sentiu uma pontada de dor nas têmporas. Ele se equilibrou antes que caísse no chão novamente e esperou que a terra parasse de girar. Novamente, fez um esforço para ficar sentado e tocou a cabeça com hesitação; o cabelo estava empastado com sangue seco e os dedos sentiram o contorno irregular de um corte comprido e profundo. Enéas começou a passar mal. Deixou a mão cair, fechou os olhos e respirou fundo várias vezes até que a náusea passasse, enquanto recitava a Prece da Aceitação para se acalmar. Abriu os olhos novamente e olhou em volta com cuidado.

Havia estripadores por toda parte; sob o fraco luar, o campo parecia vivo com eles e o solo corcovado com os morros escuros dos corpos dos companheiros de Enéas e seus cavalos caídos. O som repugnante, úmido e rascante dos pássaros comendo os corpos era um barulho que atormentaria seus pesadelos para sempre. Bem ao longe, abaixo do declive onde estava sentado, Enéas viu o brilho de uma fogueira, e ao redor dela as silhuetas escuras de gente se mexendo. Havia outro som, mais fraco: cantoria?

As figuras recortadas pelas chamas usavam acessórios com penas na cabeça, Enéas viu. Eles eram ocidentais, então. “Tehuantinos”, como se chamavam. Todos os corpos ao redor usavam os uniformes com detalhes dourados de Nessântico, agora pretos pelo sangue e pelo luar mortiço em vez do azul reluzente que deveriam ter.

Nós perdemos. Fomos massacrados aqui, e as pessoas em Munereo podem não saber o resultado ainda. Cénzi, é por isso que o Senhor me salvou, para que eu pudesse avisá-los...?

Enéas tentou se mexer; as pernas não quiseram cooperar, e ele percebeu que uma delas ainda estava presa debaixo do seu cavalo. Com o máximo de silêncio possível, Enéas empurrou a carcaça com a perna livre, e enfim a perna se soltou. O tornozelo estava inchado e sensível; Enéas não tinha certeza se poderia se apoiar nele.

O o’offizier encontrou a espada ao seu lado meio enterrada na lama. Enfiou a lâmina imunda na bainha presa ao cinto. Com uma careta, rastejou na direção das chamas, meio que se arrastando em volta do cavalo.

Parte de Enéas gritou em alerta. Ele ia na direção do inimigo; os tehuantinos o matariam se o vissem. Todos os a’offiziers contavam como os ocidentais percorreram o campo de batalha após o combate no lago Malik, como eles mataram todos os gardai que ainda estavam vivos mas aleijados ou gravemente feridos. Aqueles que estavam apenas levemente feridos foram levados como prisioneiros. Os rumores sobre o que os ocidentais tinham feito com eles eram muito, muito piores.

A fogueira — imensa e furiosa — estalava no pé da ladeira, e reunidos ao redor estavam os ocidentais: milhares deles, enquanto fogueiras menores pontuavam a paisagem depois do grande fogaréu onde o inimigo estava acampado. Enéas viu um grupo de cavalos atrelados de um lado da fogueira, um pouco distante dos ocidentais sentados em volta das chamas.

Se ele não podia andar, ainda podia cavalgar.

A jornada pareceu levar séculos. As estrelas deram voltas pela Estrela Velejante, a lua chegou ao ápice e começou a descer, os estripadores continuaram o festim sangrento. Exausto, Enéas descansou atrás da cobertura de uma pilha de toras. Os cavalos relincharam perto dali; ele sentiu o cheiro dos animais e ouviu seus movimentos agitados. A cantoria estava mais alta agora, uma melodia grave e dissonante, as palavras que os ocidentais cantavam eram estranhas e desconhecidas: mil vozes, todas cantando juntas. O zumbido monótono era alto e enlouquecedor; a música vibrava no peito e parecia fazer tremer o próprio solo. Ele conseguiu ver os ocidentais: a pele bronzeada como o povo de Namarro, a armadura de bambu com anéis de ferro que tilintavam enquanto eles cantavam e se agitavam. As imensas toras da pira desmoronaram e dispararam fagulhas para o alto com um ribombar.

Um ocidental à frente das fileiras ficou de pé e avançou. Ele ergueu os braços nus e musculosos; como os demais, o homem usava um elmo de bambu decorado com penas compridas e reluzentes. Havia um grande disco prateado e amassado sobre o peito, pendurado no pescoço por uma corrente, e pintado com figuras: o que identificava o homem como um offizier ocidental. Ele parou de cantar ao proclamar alguma coisa em voz alta. Mais dois guerreiros ocidentais saíram da escuridão do outro lado da fogueira e arrastando com eles a figura ensanguentada de um homem. Sua cabeça levantou-se quando os soldados se aproximaram da luz da fogueira, e, mesmo àquela distância, Enéas reconheceu o a’offizier ca’Matin. Ele estava nu até a cintura e agora era forçado a ficar de joelhos em frente ao offizier ocidental. Enéas ouviu ca’Matin rezar para Cénzi, com a face erguida para as fagulhas, as estrelas e a lua; para qualquer coisa, menos para o ocidental.

O ocidental falava com ca’Matin enquanto retirava um apetrecho estranho de uma bolsinha no cinto. Enéas apertou os olhos para tentar ver o que era no momento em que o offizier ergueu o objeto para mostrá-lo às tropas reunidas. Um cano curto e curvo como o chifre de um touro de cor marfim reluziu; o apetrecho tinha um cabo de madeira. O offizier ofereceu o objeto para ca’Matin com o cabo voltado para frente. Quando ca’Matin o pegou, com mãos visivelmente trêmulas e uma expressão de dúvida, o guerreiro virou o chifre de marfim — Enéas ouviu um nítido clique metálico — e deu um passo para trás. Ele fez um gesto como se virasse o apetrecho, depois como se tocasse a ponta do chifre no abdômen. Ca’Matin balançou a cabeça e o offizier ocidental suspirou. Sua expressão parecia quase solidária ao pegar o instrumento e virá-lo nas mãos de ca’Matin. Ele fez um gesto de apoio com a cabeça ao empurrar as mãos de ca’Matin para trás. O chifre tocou no estômago de ca’Matin.

Houve um clarão que iluminou toda a paisagem como se fosse um raio, e ecoou um trovão estrondoso que abafou o grito involuntário de Enéas e fez os cavalos relincharem nervosos e lutarem contra as amarras. Ca’Matin escancarou a boca e os olhos, embora a expressão parecesse estranhamente estática para Enéas, como se no momento final Cénzi tivesse tocado o a’offizier com Sua glória.

Ca’Matin desmoronou, e o apetrecho caiu de suas mãos. O estômago era uma cavidade sangrenta, como se tivesse sido rasgado por um punho com garras. Entranhas e sangue estavam espalhados pelo chão debaixo do homem, bem como nas pernas dos ocidentais em volta dele. O offizier ocidental levantou as mãos novamente, e a cantoria recomeçou. Com uma estranha reverência, os dois soldados que trouxeram ca’Matin até a fogueira envolveram o corpo em um pano tingido com cores intensas dispostas em padrões geométricos. Eles entraram correndo nas sombras com o cadáver embrulhado.

Enéas forçou-se a andar novamente, agora mais desesperadamente. Ele não sabia que feitiçaria fora feita com ca’Matin, mas tinha que dar um jeito de voltar para Munereo: para avisá-los. Ajude-me a fazer isso, Cénzi... Enéas começou a rastejar na direção dos cavalos. Se conseguisse erguer o corpo e jogar a perna ferida por cima... Os ocidentais poderiam persegui-lo, mas Enéas conhecia esse terreno tão bem quanto eles, talvez até melhor, e seria encoberto pela noite.

Ele chegou aos cavalos agora. Eram cavalos de guerra capturados de Nessântico, usavam os uniformes que ele conhecia tão bem e, mais importante, ainda estavam selados. Eram mais lentos do que as montarias dos ocidentais, mas mais vigorosos. Se Enéas conseguisse uma vantagem razoável, os cavalos dos ocidentais poderiam se cansar antes de alcançá-lo.

Com a ajuda de Cénzi...

Enéas desamarrou as patas de uma grande égua cinzenta e manteve o animal entre ele e a fogueira. O cavalo de guerra relinchou, mostrando o branco de seus olhos sob o luar. Enéas sussurrou com delicadeza para ela. — Shh... shh... Tudo bem... Você vai ficar bem... — Ele agarrou as correias da sela e ficou de pé, tirando o peso do tornozelo machucado. Pegou as rédeas com uma mão e acariciou o pescoço do animal. — Shh... Quieta, agora... — Ele teria que se equilibrar parcialmente no tornozelo machucado para colocar um pé no estribo; com delicadeza, Enéas pousou o pé no chão e apoiou o peso sobre ele devagar. Mordeu o lábio inferior ao sentir a dor. Ele conseguiria por um instante. Era tudo que era preciso...

Enéas levantou o pé que estava bom e o colocou no estribo. Uma onda de facadas se espalhou do tornozelo até a perna durante o instante em que ele sustentou todo o peso, e a agonia quase fez com que Enéas desmaiasse. Desesperadamente, ele passou a perna machucada sobre a espinha do cavalo e quase gritou quando o tornozelo bateu no outro lado do corpo maciço do animal. Mas agora Enéas estava no cavalo de guerra, meio deitado sobre o pescoço grosso e musculoso da montaria. Ele estalou as rédeas e cutucou com a perna boa. — Devagar — falou para a égua cinzenta. — Muito devagar agora. Quieta...

A égua balançou a cabeça e começou a se afastar dos outros cavalos. Ela voltou para a encosta, longe da luz da fogueira e do acampamento. A cantoria dos ocidentais encobriu o som dos cascos com ferraduras no solo. Assim que entrasse na escuridão novamente, assim que conseguisse colocar a saliência de um daqueles morros entre ele e os ocidentais, Enéas poderia galopar a toda.

Ele começava a ousar pensar que seria possível.

Enéas quase não notou a silhueta que se movia à sua esquerda, um pedaço de escuridão que se levantou subitamente e se atirou sobre ele. Enéas teve apenas um vislumbre do rosto sinistro antes que o homem o acertasse e derrubasse da sela. Um clarão de luz flamejou atrás dos olhos quando Enéas caiu no chão, e ele gritou de dor na perna machucada, que ficou torcida debaixo do corpo. Ele ouviu o cavalo de guerra ir embora a galope, sem cavaleiro, e então a sombra de um guerreiro ocidental com os braços erguidos surgiu sobre ele, e Enéas caiu novamente na escuridão.

 

Allesandra ca’Vörl

— EU GOSTARIA DE ME DESCULPAR pela minha esposa, a’hïrzg. Ela... bem, o assunto da archigos bruxa sempre a aborrece. Elas têm... uma história em comum, afinal. Ainda assim, minha esposa não deveria ter dito o que pensa no jantar ontem à noite, especialmente para a senhora, como anfitriã.

Allesandra assentiu com a cabeça para o archigos Semini. Eles estavam sentados em uma plataforma de observação no alto de uma ladeira atrás da residência particular do hïrzg — o palácio na Encosta do Cervo, bem afastado de Brezno. Os dois olhavam para leste, para a vista de uma campina comprida e larga, de grama alta, cheia de flores silvestres. Lá embaixo, eles enxergavam um grupo de figuras e cavalos: Fynn, Jan e vários outros. De ambos os lados da campina, em uma floresta de abetos altos, tambores ecoavam dos flancos dos morros íngremes e verdejantes que formavam a paisagem: o som dos batedores, que arrebanhavam a presa para a campina e para o hïrzg, à espera.

Atrás de Allesandra, na sacada, criados corriam de um lado para o outro com comes e bebes enquanto preparavam uma mesa comprida para o jantar. Fora isso, Allesandra e o archigos estavam sozinhos; todos os outros privilegiados ca’ e co’ que jantariam com eles naquela noite estavam com o grupo do hïrzg na campina. Allesandra não tinha a menor vontade de ficar tão próxima do irmão por tanto tempo assim. Ela não tinha certeza por que Semini ficou para trás, no palácio — Francesca estava na campina com os demais.

— Por favor, acredite em mim quando digo que não me ofendi, archigos — falou Allesandra. — Embora eu tenha muito mais simpatia pela archigos Ana, entendo que sua esposa se sinta dessa maneira.

Ela deu uma olhadela para Semini e viu o archigos sorrir. — Obrigado. Isso é gentil de sua parte. — O homem olhou com cuidado para os criados, depois abaixou o tom de voz para que eles não conseguissem escutar. — Cá entre nós, a’hïrzg, eu gostaria de ter convencido seu vatarh a nomear a senhora como herdeira. Aquele menino... — ele apontou com o queixo para o grupo na campina — ... seria um starkkapitän perfeitamente adequado para a Garde Civile, mas ele não tem a visão ou a inteligência para ser um bom hïrzg.

— Creio que ouvi o archigos falar em traição. — Allesandra teve a cautela de manter o olhar afastado do archigos e concentrou sua atenção em Jan, a cavalo ao lado de Fynn. Ela perguntou-se se podia acreditar no que ca’Cellibrecca dizia e por que ele declararia tal opinião para ela. O archigos tinha motivos para agir assim, Allesandra tinha certeza: Semini não era um homem de fazer declarações acidentais. Mas qual era o motivo? O que ele queria, e como isso o beneficiaria?

— Será que eu talvez tenha dito o que também está no seu coração, a’hïrzg,
mesmo que a senhora não ouse dizer em voz alta? — respondeu Semini no mesmo sussurro baixo e rouco. O archigos voltou-se para ela. — Meu coração está aqui, neste país, a’hïrzg Allesandra. Eu quero o que é melhor para Firenzcia. Nada mais. Eu dei minha vida a serviço de Cénzi e a serviço de Firenzcia. Eu compartilhava a visão de seu vatarh de que os Domínios deviam ter Brezno, e não Nessântico, como o centro de todas as coisas. Ele quase conseguiu realizar essa visão. Ele teria realizado, estou convencido, se não tivesse sido a feitiçaria herege da archigos bruxa.

Havia ódio na voz de Semini, genuíno e intenso. E também uma estranha satisfação.

O vatarh teria sido bem-sucedido se Ana não tivesse me capturado como refém, se não tivesse me arrancado do vatarh e me usado para terminar a guerra. Enquanto Allesandra permanecesse em Nessântico, enquanto o vatarh se recusasse a pagar o resgate exigido, sua derrota ainda não seria completa. Ainda havia esperança de que os resultados pudessem mudar, e o vatarh levou pouco mais de uma década para perder aquela esperança.

Era o que Allesandra dizia para si mesma. Era o que Ana dizia para ela. Ana jamais falou mal do hïrzg Jan; sempre pintou seu vatarh da maneira mais favorável possível, mesmo quando Allesandra bufava de raiva por ele demorar a pagar o resgate.

Allesandra tomou fôlego e levou a mão à garganta, tocando o globo partido de Cénzi em volta do pescoço.

Ca’Cellibrecca evidentemente interpretou mal o pensamento por trás do gesto. — Ah, vejo que compartilhamos a mesma opinião sobre Ana ca’Seranta. Aquela criatura impediu que os Domínios desmoronassem sob o governo de Justi, aquele tolo perneta. E agora, finalmente, ela morreu, louvado seja Cénzi. — O tom de voz ficou ainda mais baixo quando ele inclinou o corpo e se aproximou de Allesandra. — Agora seria a hora para um novo hïrzg fazer aquilo que seu vatarh não conseguiu... ou seria a hora, se tivéssemos um hïrzg, ou hïrzgin, à altura da tarefa. Alguém que não fosse Fynn. Existem aqueles em Nessântico que acreditam nisso, a’hïrzg. Pessoas que a senhora não suspeitaria que tenham ideias assim.

O clamor dos batedores estava se aproximando no vale abaixo. Os cavaleiros remexiam-se irrequietos, e Allesandra viu Fynn sinalizar para que Jan encaixasse a flecha no arco. — O que você está me dizendo, archigos? — perguntou ela enquanto observava a cena abaixo dos dois.

— Estou dizendo que a senhora atualmente é a a’hïrzg, mas ambos sabemos que esta é uma situação temporária. Mas se Fynn, de alguma forma... — Ele hesitou. Os tambores bateram alto lá embaixo, e agora eles podiam ouvir uma movimentação debaixo da sombra das árvores à direita. — ... não fosse mais hïrzg, então a senhora se tornaria hïrzgin. — Outra pausa. — Como deveria ter sido.

Os tambores e a gritaria ficaram mais altos, e de repente um cervo surgiu da linha de árvores a várias dezenas de passos do grupo do hïrzg. O animal era magnífico, a galhada tinha a envergadura dos braços e ombros de uma pessoa, alcançava facilmente a altura de um homem alto ou mais. A pele tinha um tom deslumbrante de marrom-avermelhado com um toque de branco debaixo da garganta. O cervo saiu do matagal a meio galope, e sentiu o cheiro do grupamento de caça. Allesandra sentiu uma aflição ao ver a bela criatura; ao lado, ela ouviu Semini murmurar — Por Cénzi, olhe aquele animal lindo!

O cervo parou e olhou fixamente para os cavaleiros por um instante antes de dar um pulo enorme e fugir na direção do fim da campina, ao longe. No mesmo instante, eles viram uma flecha ser disparada pelo arco de Fynn, e o estalo da corda do arco chegou com atraso aos seus ouvidos. O cervo caiu com as patas traseiras emaranhadas e a flecha enterrada nas ancas. Então, o animal levantou-se outra vez e começou a correr.

Jan esporeou o cavalo no momento do disparo de Fynn. Ele correu atrás do cervo ferido e controlou a montaria apenas com as pernas enquanto puxava o arco. A toda velocidade, Jan disparou a própria flecha com o cervo a apenas poucos passos de chegar à cobertura da floresta novamente.

O cervo estremeceu quando a flecha penetrou fundo no lado esquerdo do peito. O animal correu por mais alguns passos, quase até a floresta. Pareceu se recuperar, pulou, mas as patas dianteiras esbarraram na tora sobre a qual ele tentou saltar, e caiu.

O cervo ficou caído de lado, as patas debateram-se no matagal, a galhada arrancou punhados de terra com grama do solo. Fynn galopou até onde Jan parou com seu cavalo. Allesandra viu o irmão dar um tapinha no ombro de Jan e depois colocar outra flecha no arco.

Com o disparo de Fynn, o cervo ficou imóvel. Uma vibração distante ecoou do grupamento de caça.

— Seu filho pode ter um físico franzino, mas é um excelente cavaleiro, e arqueiro ainda melhor. Aquilo foi impressionante: atirar daquele jeito em plena perseguição.

Allesandra sorriu. Por um instante, ele quase pareceu com o seu vavatarh ao cavalgar daquela maneira... Lá embaixo, Fynn e Jan desmontaram para se dirigir até o cervo caído. — Atirar flechas a cavalo é uma habilidade ensinada à cavalaria magyariana, e Jan teve excelentes professores.

— Ele também teve uma excelente educação em política. Jan esperou que o hïrzg desse o golpe final. Presumo que a senhora tenha sido sua professora neste quesito.

— Jan sabe o que tem que fazer, mesmo que algumas vezes ignore meu conselho — falou Allesandra. — Geralmente porque fui eu que dei o conselho.

— Filhos na idade dele acham que devem se rebelar contra a família. É natural, e eu não me preocuparia muito com isso, a’hïrzg. Jan vai aprender. E um dia, se ele for o a’hïrzg em vez de apenas outro ca’ em algum ponto da linha sucessória para ser o gyula da Magyaria Ocidental... — Semini deixou a voz sumir gradualmente.

Allesandra finalmente se virou para ele. O archigos agigantava-se sobre ela como um urso vestido de verde. Os olhos escuros do homem encaravam os de Allesandra. Sim, ele tinha olhos em que uma pessoa podia se perder. — Você continua a me dizer estas pequenas insinuações e sugestões, archigos — falou ela baixinho. — Você tem mais do que isso para oferecer ou está tentando me provocar a ponto de eu me revelar? Isso não vai acontecer.

Ca’Cellibrecca concordou devagar com a cabeça e inclinou o corpo na direção dela. A boca ficou tão próxima da orelha de Allesandra que ela sentiu o hálito quente de Semini. Ela arrepiou-se. — Eu tenho uma proposta, a’hïrzg. Se isso for algo que lhe interesse, eu realmente tenho — sussurrou o archigos. Então ele se levantou e aplaudiu na direção da campina. — Os cozinheiros terão alguns belos filés de cervo — disse Semini em voz alta — e haverá uma galhada nova para enfeitar o palácio. Nós devíamos descer e encontrar os bravos caçadores, a’hïrzg. O que a senhora diz?

Ele ofereceu o braço.

Ela se levantou e aceitou.

 

Karl ca’Vliomani

— ONDE VOCÊ ESTÁ INDO? — perguntou Varina para ele.

Karl passou a primeira noite após a morte de Ana na casa de Mika, mas apesar da boa vontade do homem e de sua esposa, Karl achou a casa deles — com os filhos e agora o primeiro neto sempre entrando e saindo — cheia demais de vida e energia. Ele voltou para o próprio apartamento na margem sul. Era Varina que passava lá todo dia, que atormentava os criados e geralmente garantia que Karl estivesse sendo alimentado e cuidado. Ela o deixava sozinho com sua tristeza; estava lá quando ele precisava conversar ou quando Karl simplesmente quisesse sentir a sensação de ter outra pessoa no cômodo. Varina parecia saber quando ele precisava de silêncio e permitia isso. Karl era grato por essa atitude.

Ele lembrou-se de quando mostrou para Ana, pela primeira vez, o que os numetodos conseguiam fazer, há muito tempo. Naquela noite, havia sido Varina, uma recém-chegada sem experiência ao grupo, que Ana tinha visto demonstrando um feitiço. Varina cresceu muito desde então; ela era a segunda em poder depois de Mika dentro da facção dos numetodos na cidade, e não havia ninguém que rivalizasse sua dedicação à pesquisa, nem sua habilidade com o Scáth Cumhacht. Karl nunca entendeu exatamente como ela permaneceu sozinha todos esses anos. Varina havia sido muito notável na juventude: cabelo da cor do trigo no outono; olhos grandes e expressivos da cor de carvalho antigo e envernizado; um sorriso e uma risada maravilhosos e encantadores que sempre faziam os outros sorrirem com ela. Varina ainda era atraente, mesmo agora, na meia idade, mesmo que nos últimos anos ela tenha parecido envelhecer rapidamente. No entanto... Varina parecia ter pegado toda a vitalidade e energia que possuía e colocado exclusivamente no aprendizado das complexidades do Scáth Cumhacht e do Segundo Mundo, para descobrir todas as maneiras de conter aquele poder. Mesmo entre os numetodos, ela raramente parecia falar por muito tempo com alguém além de Mika ou Karl. Até onde ele sabia, Varina não tinha outros amigos ou amantes fora do grupo. Ela era um enigma, até mesmo para os mais próximos.

Karl dava valor à presença de Varina agora, mesmo que não soubesse como expressar sua gratidão.

Ele remoía a morte de Ana há uma semana agora, remexeu na mente o ocorrido sem parar, como se fosse um adubo repugnante. Alguém a queria morta. Ana fora o alvo, o assassino esperou que ela fosse ao Alto Púlpito; certamente Karl tinha visto os outros ténis na missa subirem ao púlpito para colocar as leituras e o pergaminho com a Admoestação que a archigos pretendia ler, e não foram eles que acionaram a explosão.

Quanto mais Karl considerava essa situação, mais parecia haver uma única resposta. Uma resposta que ele queria verificar.

Varina estava apoiada na arcada da antessala de braços cruzados enquanto Karl encolhia os ombros em seu manto. Ela não repetiu a pergunta, apenas olhou para ele com ternura, como se estivesse preocupada.

— Eu tenho um compromisso — respondeu Karl. Ela concordou com a cabeça. Ainda em silêncio. Os olhos estavam arregalados e não piscavam. — Eu tenho perguntas a fazer.

Outro gesto com a cabeça. — Eu vou com você — disse Varina. Karl hesitou. — Não vou interferir — falou ela. — Se você vai aonde eu penso que vai, pode precisar de apoio. Estou certa?

— Pegue sua capa — disse Karl. Ela deu um breve sorriso, um relance de dentes brancos, e pegou a capa em um gancho na parede.


O embaixador da Coalizão Firenzciana, Andreas co’Görin, tinha um rosto tão fino e anguloso quanto o de um falcão. Quando o homem se levantou da cadeira, os olhos da cor de urze observaram Karl e Varina como se os dois fossem coelhos a serem capturados e devorados. O rosto aquilino era complementado pelo corpo esguio de um espadachim. Karl imaginava que o sujeito ficava mais à vontade de armadura do que na bashta respeitável e conservadora que usava.

Isso fez com que Karl pensasse se teria sucesso aqui.

— Embaixador ca’Vliomani, vajica ci’Pallo, sua visita é... inesperada — falou co’Görin. — O que posso fazer pelos senhores?

Karl olhou enfaticamente para o assistente que ocupava a mesa menor do outro lado do gabinete.

— Gerald, por que você não vai ver se acha aquela proposta sobre as novas regulamentações de fronteira? — disse co’Görin. O assistente, tão robusto e corpulento quanto co’Görin era magro, concordou com a cabeça e remexeu em alguns papéis ruidosamente por um momento antes de sair da sala.

Karl esperou até ouvir o clique da porta se fechando quando o homem saiu. — Eu passei os últimos dias pensando na morte da archigos Ana, embaixador — falou ele. As palavras soaram quase casuais, até mesmo para seus ouvidos. Varina baralhou os pés ao lado de Karl, irrequieta. — Sabe, por mais que eu tente encontrar motivos para alguém ter feito aquilo, não consigo pensar em ninguém que quisesse Ana morta, a não ser as pessoas que o senhor representa.

Varina ficou nitidamente aflita. Uma nuvem passou sobre os olhos de urze de co’Görin, que escureceram e ficaram verdes. Os músculos do rosto do homem retesaram-se, e ele fechou a mão direita como se procurasse pelo cabo de uma espada. — O senhor é bem curto e grosso, embaixador.

— Eu desisti da diplomacia por enquanto — respondeu Karl.

Co’Görin o olhou com desdém. — Certamente. Então serei curto e grosso também. Eu considero uma ofensa a sua acusação. Eu o perdoo por saber... — ele torceu o nariz e franziu os olhos — ... como o senhor era próximo da archigos de Nessântico, mas também espero por um pedido de desculpas imediato.

— Pela minha experiência, as esperanças geralmente viram decepção — disse Karl.

— Karl... — falou Varina com delicadeza. Ela tocou levemente o braço dele. — Talvez...

Varina parou de falar, como se soubesse que ele não escutava. A raiva o queimava por dentro. Karl queria apenas que co’Görin fizesse um gesto brusco ou o insultasse abertamente, qualquer coisa que servisse como desculpa para usar o Scáth Cumhacht que ardia em sua mente à espera da palavra de ativação. Mas co’Görin balançou a cabeça; não se sentou, pareceu relaxar atrás da mesa, tranquilo.

— Eu acho, embaixador ca’Vliomani, que o senhor descartou a possibilidade de que o assassino pode ter sido um elemento sem vínculos, ou talvez uma pessoa contratada por alguém com contas a acertar com a archigos, alguém dentro dos Domínios de Nessântico. Não há necessidade de atrelar uma conspiração ao fato. — Ele ergueu as sobrancelhas; o resto do corpo permaneceu imóvel. — A não ser, é claro, que o senhor tenha provas que gostaria de compartilhar comigo? Mas não, se tivesse isso, o senhor teria ido ao regente, não é? O comandante da Garde Kralji estaria aqui, não dois hereges numetodos. — Devagar, quase de maneira debochada, ele sentou-se outra vez. Seus dedos compridos brincaram com os pergaminhos espalhados sobre a superfície da mesa, e a expressão aquilina se voltou com um olhar de desdém para Karl. — Acho que terminamos por aqui, embaixador. Firenzcia não se envolve com hereges e jamais se envolverá. Estamos perdendo o tempo um do outro.

A dispensa atiçou o fogo que ardia dentro de Karl. — Não! — berrou ele. — Nós não terminamos! — Karl gesticulou e falou uma das palavras de ativação que havia preparado antes de vir. Um fogo rápido lambeu a papelada sobre a mesa do embaixador e consumiu os papéis no mesmo tempo que co’Görin levou para reagir. O homem deu um pulo para trás e saiu da cadeira. Um vento ligeiro veio em seguida soprando a papelada que passou por co’Görin e saiu pela janela, além de balançar a bashta do embaixador; isso só podia ter sido obra de Varina. — Aquele fogo podia muito bem ter sido direcionado para o senhor em vez dos documentos — disse Karl, que ouviu a porta ser escancarada atrás de si e ergueu uma mão preventivamente ao sentir Varina se virar para encarar a ameaça. — Eu não vim com apenas um feitiço, embaixador, e minha amiga é mais poderosa do que eu. Diga ao seu pessoal para ficar onde está, ou garanto que o senhor, pelo menos, não sairá vivo desta sala.

— Nem o senhor, se insistir com essa tolice — rosnou co’Görin, e Karl quase gargalhou.

— Isso pouco me importa a esta altura — disse Karl. As costas de Varina apoiadas nas costas dele. Karl sentiu que ela ergueu os braços para preparar um feitiço.

O embaixador acenou para as pessoas atrás de Karl, que ouviu uma espada ser embainhada e sentiu Varina abaixar os braços novamente. Co’Görin falou — Vou lhe dizer novamente, embaixador, o senhor está enganado se pensa que Firenzcia está envolvida na morte da archigos. Mate-me, não me mate; isso não vai mudar o fato.

— Eu não acredito nisso.

Co’Görin torceu o nariz. — Falta de crença é o principal problema com os numetodos, não é? O senhor quer que eu fique de luto pela sua archigos, embaixador? Não ficarei. Ela atraiu este destino ao acolher os numetodos e se recusar a reconhecer o archigos de Brezno como o verdadeiro líder da Fé. A violência era um resultado inevitável de suas ações, mas, até onde eu sei, não foi Firenzcia que fez isso. Essa é a verdade, e se o senhor não consegue acreditar em mim... — Ele deu de ombros. — Então faça o que tem que fazer. O senhor apenas provará que os numetodos são realmente os tolos perigosos que todo fiel de verdade sabe que eles são. Olhe para mim, embaixador. Olhe para mim — falou co’Görin com mais rispidez, e Karl encarou o embaixador com raiva. — O senhor enxerga uma mentira em meu rosto? Eu vou lhe dizer: quem matou a archigos não foi alguém que eu conheça ou tenha contratado. Essa é a verdade.

Karl sentiu o Scáth Cumhacht vibrar loucamente por dentro. Ele não queria outra coisa a não ser atacar esse tolo metido, ver a arrogância do sujeito desmoronar e virar um grito, fazer com que berrasse em agonia ao morrer. Mas também ouviu Ana. Karl sabia o que ela lhe diria e deixou a mão cair ao lado do corpo. Ouviu Varina suspirar de alívio.

As palavras de co’Görin não tranquilizaram Karl, mas ele começou a se perguntar se o embaixador talvez não tivesse dito a verdade segundo o que sabia. Karl também se lembrou de um tempo, há muitos anos, e de uma outra pessoa que era capaz de invocar o Scáth Cumhacht — embora ele não chamasse a energia dessa maneira, nem de Ilmodo.

— Se eu descobrir que o senhor está mentindo, embaixador — falou Karl —, não vou lhe dar a chance de pedir desculpas ou de sacar sua espada. Matarei o senhor onde quer que eu lhe encontre. Isso também é a verdade.

Dito isso, ele deu meia-volta, e Varina ficou ao seu lado. Havia três guardas bloqueando a porta, mas Karl empurrou os homens e saiu a passos largos para o ar fresco e a luz do sol.

— O que, em nome dos Seis Abismos Eternos, foi aquilo? — Varina estourou com Karl quando os dois estavam novamente do lado de fora, na Avi a’Parete. Ela agarrou a manga dele e o puxou para pará-lo. — Karl! Eu estou falando sério. O que você achou que estava fazendo?

— O que eu precisava fazer — disparou ele com mais rispidez do que pretendia, ainda vermelho de raiva por co’Görin, pela atitude do homem e pelas próprias dúvidas que o remoíam. Toda essa raiva estava contida na resposta. — Se você não queria estar ali, não precisava vir.

— Ana está morta, Karl. Você não pode trazê-la de volta. Acusar pessoas sem provas só vai fazer você morrer também.

— Ana merece justiça.

— Sim, merece — disparou Varina em resposta. — Deixe para aqueles que têm essa função fazer isso por ela. Vocês não eram amantes. Ana não era a matarh de seus filhos.

A fúria ferveu dentro dele. Karl ergueu a mão, o calor frio do Scáth Cumhacht aumentou, e Varina espalmou as mãos. — Faça isso! — disparou outra vez. — Vamos! Isso vai fazer você se sentir melhor? Vai mudar alguma coisa?

Karl pestanejou; em volta dos dois, as pessoas na rua olhavam fixamente. Ele abaixou as mãos. — Eu... eu sinto muito, Varina.

Ela olhou com raiva para Karl e franziu os lábios. — Ela era sua amiga, e eu compreendo isso. Ela era minha amiga também. Mas Ana também cegou você, Karl. Você jamais foi capaz de ver o que está bem à sua frente.

Dito isso, ela deu meia-volta e deixou Karl, seguiu quase correndo pela Avi. — Varina — chamou ele, mas ela enfiou-se na multidão e desapareceu como se jamais tivesse estado ali. Karl ficou parado na rua, as pessoas passando à sua volta. Karl ouviu as trompas do Templo da Archigos, o templo de Ana, começarem a soar para conclamar a Segunda Chamada, e o som pareceu uma risada debochada.

 

Sergei ca’Rudka

— VOCÊ não confia em mim, Karl?

Sergei observou a onda de emoções que percorreu a face do embaixador. O sujeito tinha um rosto impressionantemente franco para quem era diplomata, um defeito que ele possuía desde que Sergei o conheceu. Tudo que Karl pensava ficava nítido para um observador que soubesse ler expressões. Talvez fosse apenas o estilo Paeti; o regente tinha conhecido algumas pessoas da Ilha ao longo de décadas, e a maioria costumava não apenas falar com muita franqueza o que pensava, mas também fazia pouco esforço para esconder opiniões e emoções sinceras. Talvez fosse isso o que tornava a Ilha reconhecida por seus grandes poetas e bardos, pelas canções e pelo temperamento e paixão intensos de seu povo, mas que também os tornava vulneráveis, na avaliação de Sergei.

O estilo deles não era o de Sergei.

Karl pestanejou diante da brutalidade da pergunta, que Sergei disparou antes mesmo que o criado tivesse fechado a porta. O embaixador estava parado na entrada do gabinete do regente, hesitante, quando a porta foi fechada delicadamente atrás dele. — Claro que confio, Sergei — gaguejou um pouco Karl, as palavras saíram carregadas pelo sotaque cantado de Paeti. — Eu não sei do que você está... — E então — Ah.

— Sim. Ah. — Sergei respirou fundo e coçou o nariz. — Eu acabei de receber uma visita bastante desagradável do embaixador co’Görin, embora francamente qualquer visita da parte dele costume ser desagradável. Ainda assim, o sujeito parece achar que você é um homem perigoso que deveria morar na Bastida em vez de andar pelas ruas. Na verdade, ele disse: “em Brezno, o homem seria estripado e pendurado em público por sua impertinência, quanto mais por sua dedicação à heresia.” Eu não acho realmente que ele goste de você. — Sergei ficou de pé, foi até Karl e deu um tapa em suas costas.

Co’Görin realmente reclamara sobre Karl, mas o embaixador firenzciano havia comparecido a pedido de Sergei, e ido embora com uma mensagem selada que o regente esperava que já estivesse na bolsa de um mensageiro disparando pela Avi a’Firenzcia a caminho de Brezno. Mas nada disso era algo que ele contaria para ca’Vliomani. — Venha, sente-se comigo, velho amigo. Vou mandar Rodger trazer um chá para nós. Eu ainda não tomei meu café da manhã.

Pouco tempo depois, eles estavam sentados em uma sacada com vista para os jardins. Jardineiros rondavam o terreno e arrancavam qualquer erva daninha que metia sua cara comum no meio da realeza das flores. O chá e os biscoitos permaneciam intocados por qualquer um dos dois.

— Karl, você tem que deixar esse assunto comigo.

— Eu não posso.

— Você deve. Meu pessoal está procurando intensamente a pessoa ou pessoas que fizeram isso com Ana. Estou em cima do comandante co’Falla nessa questão como se ele fosse um cavalo. Não vou deixar o assunto quieto, não vou deixar morrer. Eu lhe prometo. Eu quero justiça para Ana tanto quanto você, mas você tem que me deixar fazer isso. Não você. Você precisa ficar fora do caminho da investigação.

Karl então encarou Sergei, e o regente viu o desespero pulsar nas bolsas embaixo dos olhos do homem e puxar os cantos da boca. — Sergei, estou convencido de que só pode ter sido um plano firenzciano. Com o hïrzg Jan morto e Fynn no trono, só faz sentido que ele, e talvez o archigos Semini de Brezno... — Karl umedeceu os lábios. — Todos eles têm uma razão para odiar Ana.

Sergei interrompeu Karl com a mão erguida. — Razões, sim, mas você não tem provas. Nem eu. Não ainda.

— Quem mais iria querer Ana morta? Diga para mim. Existe alguém nos Domínios, talvez um a’téni invejoso que queria ser archigos? Ou alguém das províncias? Nós suspeitamos de mais alguém?

— Não — admitiu Sergei. — Eu mesmo suspeito de Firenzcia, mas precisamos saber antes de agir, Karl. — A mentira, como sempre, vinha fácil à boca. Sergei estava acostumado a mentiras. Uma mentira não seria ouvida em sua voz ou vista no espasmo de um músculo.

Às vezes o regente pensava que era composto inteiramente por mentiras e falsidades, que se alguém tirasse essas coisas de Sergei, ele não seria nada além de um fantasma.

— Saber? — repetiu Karl. — Da mesma forma que você sabia quando me atirou na Bastida anos atrás? Da mesma forma que sabia que eu e os numetodos devíamos ter algo a ver com a morte da kraljica Marguerite?

Sergei esfregou o nariz de prata ao fazer uma careta diante da memória. — Eu estava cumprindo ordens do kraljiki Justi na época. Você sabe disso. E note que você ainda está vivo, enquanto Justi preferiria que estivesse morto. Reconheça o meu mérito quanto a isso. Karl, o que está em jogo aqui é importante demais para palpites ou para que pessoas esquentadas invadam o gabinete do embaixador da Coalizão para ameaçá-lo. Se seu palpite estiver correto e o hïrzg Fynn for responsável por esse ato, a única coisa que você conseguiu foi alertá-lo de nossas suspeitas. Você e Varina realmente usaram feitiços numetodos? — Ele estalou alto com a língua e balançou a cabeça. — Estou surpreso que você não o tenha matado logo de saída.

— Eu queria — disse Karl. Por um momento, as rugas em volta da boca foram repuxadas, e os olhos brilharam sob a luz do sol. — Mas eu pensei em Ana... — O brilho nos olhos aumentou. Ele limpou-os com a manga da bashta.

Por um instante, Sergei genuinamente sentiu pena e compaixão pelo homem. Ele respeitava a archigos Ana porque não havia outra escolha. Ana jamais deixou alguém chegar muito próximo a ela, mesmo aqueles — como Karl — que podiam ter desejado tal coisa. Sergei sabia disso porque observava Karl ao longo dos anos, observava-o porque era seu dever saber as preferências e interesses das pessoas de destaque nos Domínios. Sergei sabia que ele usava os serviços das mais caras e discretas grandes horizontales da cidade, e — o que era interessante para o regente — cada uma dessas mulheres que Karl preferia tinha uma semelhança física com a archigos, e mudava ao longo das décadas, assim como a própria Ana. Foi preciso pouca intuição para adivinhar o motivo dessa preferência.

Karl... Sergei gostava do homem, tanto quanto ele jamais se permitiu gostar de alguém. Ele acenou com a cabeça para o numetodo. — Estou contente que o fantasma de Ana conteve sua mão, do contrário, eu poderia não ter outra escolha. Karl, você tem que deixar essa questão de lado. Prometa para mim. Deixe meus subordinados investigarem. Contarei qualquer coisa que eu descobrir. — Essa era outra mentira, obviamente. Sergei já sabia detalhes do assassinato que não tinha a menor intenção de compartilhar com Karl; tinha suspeitas em mente que ele não falaria.

Na escuridão da Bastida, ele mandou que os gardai o deixassem a sós com um homem, um empregado do comerciante Gairdi, que regularmente viajava entre Nessântico e Brezno. Ele ouviu o choramingo delicioso quando desenrolou o pedaço de lona com as terríveis ferramentas amarradas dentro dela e sorriu para o prisioneiro. — Diga-me a verdade — falou Sergei — e talvez não precisemos de nada disso aqui. — Aquilo também fora uma mentira, mas o homem animou-se com a oportunidade e balbuciou em uma voz alta e rápida. Os gritos, quando vieram depois, foram maravilhosos.

Havia alguns vícios de Sergei que ficavam mais fortes com a idade, não mais fracos. — Prometa para mim — repetiu o regente.

Karl hesitou. O olhar afastou-se de Sergei para pousar no jardim abaixo, e o regente acompanhou o gesto. Lá, um jardineiro enfiou o dedo em um solo tão úmido e rico que parecia negro e arrancou outra erva daninha. O funcionário jogou o emaranhado de folhas e raízes na bolsa de lona pendurada no ombro. Sergei acenou com a cabeça: o trabalho necessário para manter o jardim bonito também exigia morte.

— Eu prometo, Sergei. — O regente, preso na imagem, olhou de volta para Karl e viu que o embaixador sorria palidamente para ele.

Ainda assim... havia alguma coisa que Karl não estava dizendo, alguma informação que estava escondendo. Sergei pôde perceber. O regente concordou com a cabeça, como se acreditasse nele, e decidiu que faria com que co’Falla colocasse alguém para vigiar Karl, com a intenção de descobrir o que o homem sabia, bem como de evitar que o embaixador de Paeti cometesse outro erro crítico — especialmente um erro que pudesse interferir nas próprias intenções de Sergei.

Ana estava morta. Quando ela era viva e uma presença firme e forte que guiava a fé concénziana, Sergei não esteve disposto a tomar o rumo que considerava estar tomando no momento. Porém, com sua morte, com o hesitante e bem mais fraco Kenne eleito para o trono de archigos, com o kraljiki Audric tão doente, frágil e jovem...

Tudo mudou.

— Bom — falou Sergei, que devolveu com afeto o sorriso de Karl. — Tem sido difícil para todos nós, mas especialmente para você, meu bom amigo. Agora, vamos tomar este chá antes que esfrie e provar os biscoitos. Aposto que você não come há dias, pela sua cara. Varina e Mika não estão cuidando de você...?


Naquela noite, uma virada da ampulheta após as trompas anunciarem a Terceira Chamada, Sergei sentou-se com o novo archigos Kenne na sacada de observação do templo na margem sul, para assistir à Cerimônia da Luz, que ocorria diariamente. Há dois séculos ou mais, os ténis da Fé saíam do templo à noite e — com a dádiva do Ilmodo — acendiam as lâmpadas que expulsavam a noite da cidade. Por toda sua vida, Sergei testemunhou o ritual diário. Douradas e dentro de globos de cristal, as lâmpadas mágicas eram colocadas em intervalos de cinco passos ao longo da grande Avi a’Parete, a larga avenida circular que cercava os trechos mais antigos da cidade. Até tarde da noite, as lâmpadas bradavam seu desafio para a lua e as estrelas e proclamavam a grandeza de Nessântico.

Para Sergei, esta era a cerimônia que definia Nessântico para a população. Essa era a cerimônia que proclamava o apoio de Cénzi aos kralji e à fé concénziana, uma cerimônia que ocorria sem alterações há gerações — até a época da archigos Ana. Agora o significado era menor, havia pessoas pelas ruas que podiam produzir luz sozinhas: sem invocar Cénzi, e sem o treinamento de um téni. A aceitação de Ana à heresia dos numetodos diminuiu a Fé, na opinião de Sergei, e forçou a mudança de visão das pessoas.

Mudança. Sergei não gostava de mudança. Mudança significava instabilidade, e instabilidade significava conflito.

Mudança significava que tudo tinha que ser reavaliado. Ana... Sergei nunca fora especialmente íntimo da mulher, porém, no papel de comandante da Garde Civile, e depois como regente, ele certamente tinha trabalhado em conjunto com ela. Independentemente dos defeitos pessoais, Ana tinha sido forte, e Sergei admirava sua força. Foi somente sua presença no trono de archigos que impediu que o reinado de Justi como kraljiki fosse uma catástrofe completa. Só por isso, ele sempre seria grato à memória de Ana.

Mas agora Kenne era o archigos. Sergei gostava genuinamente de Kenne como pessoa. Gostava da companhia do homem e de sua amizade. Contudo, Kenne não seria o archigos que Ana tinha sido. Não podia ser porque não tinha a coragem interior. Sergei sabia por que o Colégio A’téni o escolhera — porque nenhum dos outros a’ténis queria o título, a responsabilidade ou os conflitos que vinham com o trono e o cajado de archigos, e eles temiam o cargo especialmente agora. Kenne não era inimigo de ninguém e, principalmente, Kenne era velho. Era frágil. Ele não seguraria o cajado de Cénzi por muitos anos... e talvez quando ele morresse, os tempos fossem menos turbulentos.

O Colégio agiu em nome da autopreservação e, portanto, entregou a Fé a um archigos fraco.

Sergei perguntou-se se algum dia Kenne o perdoaria pelo que ele pretendia fazer.

Os dois homens ficaram parados enquanto os ténis-luminosos saíam em uma longa procissão pelas grandes portas principais bem abaixo deles. Sergei ouviu a melodia sonora do coro que terminava os cultos da noite na capela principal do templo. O som ecoou como uma lamúria pela praça quando as portas se abriram. O sol havia acabado de se pôr, embora o céu nublado do oeste ainda fosse um turbilhão revolto de tons de vermelho e laranja. Sob aquela luz, os ténis deram meia-volta e fizeram o sinal de Cénzi para o archigos, e Kenne abençoou-os com o mesmo gesto.

Os e’ténis — todos pareciam jovem demais aos olhos de Sergei, todos solenes com o fardo do dever — curvaram-se simultaneamente para o archigos, os robes verdes tremularam como um campo de grama ao vento, antes de darem meia-volta novamente para cruzar o enorme pátio diante do templo. A multidão de sempre estava reunida para assistir à cerimônia, embora fosse menor nos últimos anos do que fora na época da kraljica Marguerite, quando os Domínios eram um só e os visitantes afluíam para Nessântico de todos os pontos da bússola. Nos últimos anos, houve muito menos visitantes do leste e do sul, de Firenzcia ou das Magyarias, de Sesemora ou Miscoli. Com a guerra nos Hellins do outro lado do Strettosei, muitos jovens foram embora e as famílias viajavam menos. Embora o pátio do Velho Templo estivesse repleto de espectadores, a Garde Kralji não tinha dificuldades em abrir espaço para os ténis-luminosos; Sergei conseguia enxergar as pedras de pavimentação entre eles. Os ténis chegaram à Avi e dividiram-se em duas fileiras, espalharam-se à leste e à oeste pela avenida e seguiram para as lâmpadas mais próximas, dispostas de cada lado do portão de entrada do Templo do Archigos.

Os primeiros ténis-luminosos alcançaram as lâmpadas. Eles se postaram debaixo do globo reluzente de vidro trabalhado e ergueram os olhos para o céu do anoitecer como se vissem que Cénzi os observava. Os ténis falaram uma única palavra e gesticularam do peito para a lâmpada, os punhos fechados abrindo-se em mãos espalmadas.

As lâmpadas irromperam em uma luz amarela brilhante.

Sergei aplaudiu com Kenne. Mesmo assim...

Aquela única palavra que ativou o feitiço: aquilo era uma mudança também, uma concessão aos numetodos, que conseguiam lançar rapidamente seus feitiços. Era outra mudança provocada por Ana. — Às vezes eu sinto saudade dos velhos costumes, archigos — falou Sergei. — Os cânticos demorados, a sequência de gestos, a maneira como o esforço cansava visivelmente seus ténis... O jeito numetodo de usar o Ilmodo faz tudo parecer muito fácil. Havia... — ele suspirou quando os dois homens se sentaram novamente — ...um mistério envolvido naquela época, uma noção de trabalho e amor ao ritual que desapareceu. Não tenho certeza se Ana tomou a decisão certa quando permitiu que os ténis começassem a usar os métodos dos numetodos para iluminar nossas ruas.

Ele viu Kenne concordar com a cabeça. — Eu entendo — respondeu o archigos. — Parte de mim concorda com você, Sergei; havia uma emoção nos velhos rituais que sumiu agora. Porém, os numetodos provaram seu valor contra o hïrzg Jan, e Ana dificilmente poderia abandoná-los depois, não é? — Sergei ouviu Kenne dar uma risadinha irônica. — Nós somos velhos, Sergei. Queremos que as coisas sejam como eram na época da nossa juventude. Quando o mundo era certo e Marguerite ficaria sentada no Trono do Sol para sempre.

Sim. Eu quero isso mais do que você acreditaria. Sergei coçou o lado do nariz onde a cola irritava a pele; alguns pedacinhos da resina saíram sob a unha. — Não há nada de errado com isso. As coisas eram boas naquela época, com a kraljica Marguerite e Dhosti vestindo o robe de archigos. Não houve momento melhor para os Domínios ou para a Fé. Nós vivíamos em uma época perfeita e nem sabíamos.

— Sim, vivíamos. Eu concordo. — Kenne suspirou com a memória.

As portas douradas do templo atrás deles foram abertas, e um u’téni mais velho surgiu, Sergei o reconheceu: Petros co’Magnaio, o assistente de Kenne. O homem vivia com Kenne desde a época do archigos Dhosti. Kenne acenou com a cabeça e sorriu para co’Magnaio quando ele pousou uma travessa com frutas e chá entre os dois. Sergei nunca ficou incomodado por Kenne sofrer do que era eufemisticamente chamado de “doença dos gardai”. Havia alguma verdade, afinal, no termo: quando passavam anos em uma campanha, os soldados às vezes encontravam satisfação onde fosse possível, com aqueles que estavam em volta. — O tempo ficará frio com o pôr do sol — disse co’Magnaio. — Pensei que fossem gostar de chá quente.

A mão de Kenne pairou sobre a de co’Magnaio, mas não exatamente a tocou; Sergei sabia que a situação seria diferente se ele não estivesse aqui. — Obrigado, Petros. Não vamos demorar muito aqui, mas agradeço.

Co’Magnaio curvou-se e fez o sinal de Cénzi para eles. — Vou cuidar para que os senhores não sejam incomodados enquanto conversam. Archigos, regente... — O assistente deixou os dois e fechou as portas da sacada ao sair.

— Ele é um bom homem — falou Sergei. — Você deu sorte com ele.

Kenne concordou com a cabeça e olhou afetuosamente para as portas por onde Petros passou. — Falando sobre aqueles que se sentaram no Trono do Sol, Sergei, sinto muito que o kraljiki não tenha podido se juntar a nós na noite de hoje. Como está Audric?

Sergei deu de ombros. Lá embaixo, os ténis-luminosos saíram do templo e seguiram para as lâmpadas mais afastadas da Avi e foram acompanhados pela multidão murmurante. Os pombos desceram dos domos do templo e dos telhados dos prédios do complexo para ciscar nas pedras que ficaram vagas na praça, atrás de restos. — Ele não está bem. — O regente olhou para trás; as portas permaneciam fechadas, mas, ainda assim, Sergei abaixou a voz. — Você teve sorte em achar outro téni com dons de cura?

Kenne suspirou. — Esses sempre foram os dons mais raros, e uma vez que a Divolonté condena seu uso em especial... bem, tem sido difícil, mas eu tenho esperanças. Petros está realizando uma apuração criteriosa. Encontraremos alguém. — O archigos fez uma pausa, olhou para as frutas no prato entre eles e escolheu um pedaço. Kenne tinha mãos compridas e delicadas, mas a pele em volta dos ossos era fina e enrugada, e Sergei notou o tremor quando o archigos levou uma casca de fruta doce aos lábios e a chupou. Não podemos permitir fraqueza tanto no kraljiki quanto no archigos, não se quisermos sobreviver.

— Sergei, temos que considerar o que pode acontecer se o menino morrer — continuou Kenne, quase como se tivesse escutado os pensamentos de Sergei. — Os filhos de Justi... — Ele franziu a testa e devolveu a casca de fruta ao prato. — Amarga demais. Os filhos de Justi nunca foram conhecidos pela longevidade.

Os ténis seguiram pela Avi e sumiram de vista. O som do coro terminou em um acorde etéreo e persistente. — Espero que Cénzi não nos faça encarar essa escolha — falou Sergei com cuidado. — Mas é o que todo mundo está se perguntando, não é?

— Existem os gêmeos ca’Ludovici, Sigourney ou Donatien. Eles são, o quê...? — Kenne franziu os lábios finos em concentração — ...primos em segundo grau de Audric e primos diretos de Justi, pois Marguerite era tantzia-bisamatarh deles. Já são maiores de idade, o que é bom. Donatien, em especial, destacou-se na Guerra dos Hellins, mesmo que as coisas não andem bem ultimamente, e ele é casado com uma ca’Sibelli, uma tradicional família de Nessântico; nós poderíamos chamá-lo de volta dos Hellins. Sigourney, entretanto, pode ser a melhor escolha. Ela ainda carrega o sobrenome ca’Ludovici, logicamente: isto certamente tem um peso incrível aqui, e Sigourney fez sua presença ser sentida no Conselho dos Ca’. Os dois têm direito ao trono mais direto em termos de linhagem, creio eu, e tenho certeza de que o Conselho dos Ca’ apoiaria qualquer uma das duas reivindicações ao Trono do Sol.

Sergei não ficou surpreso ao ver que o pensamento do archigos corria tão paralelo ao seu; ele suspeitava que este fosse o caso por toda parte dos Domínios e também da Coalizão. O regente fez uma pausa e perguntou-se se deveria falar mais. Seria interessante, talvez, ver como Kenne reagiria. — Allesandra ca’Vörl pode alegar ter a mesma linhagem e o mesmo relacionamento através de sua matarh — respondeu Sergei, como se divagasse à toa. — Por falar nisso, o novo hïrzg Fynn pode alegar o mesmo. Eles também são primos em segundo grau de Marguerite, com o mesmo direito ao trono que Sigourney ou Donatien.

Sob a luz intensa das lâmpadas mágicas, as sobrancelhas de Kenne escalaram os sulcos em sua testa. — Você não está sugerindo seriamente...

O tom volúvel era a reação que o regente esperava, e Sergei sorriu rapidamente para dar a impressão de que as palavras eram uma simples brincadeira. — Longe disso. Apenas apontei como Allesandra poderia reagir. Certamente Sigourney ou Donatien seriam boas escolhas, como você sugere, embora talvez nós precisemos que Donatien permaneça como comandante nos Hellins. No entanto, Audric não está morto, e eu preferiria que ele continuasse assim. Porém, se o pior acontecer... Você está certo; nós devemos considerar a sucessão. Os Domínios já estão partidos, graças à incompetência de Justi, e não podemos permitir que o que sobrou se rompa ainda mais. — O regente fez uma pausa. Ele cerrou os olhos e coçou o queixo propositalmente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Mas... talvez os Domínios e a Coalizão possam chegar a um meio-termo se o pior acontecer, Kenne. Um ca’Vörl tomaria o Trono do Sol, mas a fé concénziana seria regida por você, não por Semini ca’Cellibrecca. — Pronto. Vejamos como ele considera a oferta.

— Você aceitaria os assassinos de Ana sentados no Trono do Sol? — O horror na voz do homem era palpável.

Sergei bufou com desdém, um assobio alto soou pelas narinas de metal do nariz falso. — Você está fazendo a mesma acusação que o embaixador ca’Vliomani. Até o presente momento, não tem fundamento.

— Quem mais teria feito isso com Ana, Sergei? Sabemos que não foram os numetodos, pois ela era aliada deles.

Sergei não insistiu mais na questão. Ele já sabia o que precisava. — Isso é algo que meu pessoal está tentando determinar. E vão conseguir. — O fogo do pôr do sol não ardia mais no céu do oeste. As estrelas lutavam contra as chamas frias das lâmpadas mágicas, e o frio da noite tomava conta da cidade. Sergei sentiu um arrepio e levantou-se da cadeira. As juntas do joelho estalaram e protestaram com o movimento; ele gemeu com o esforço. O regente ainda sentia a dor nos músculos e os hematomas da ocasião em que se jogou sobre Audric no templo.

Velhos, realmente...

Petros devia estar vigiando (e com certeza escutando também) pelas frestas das portas do templo; assim que Sergei se levantou, elas foram abertas e um atendente e’téni correu até ele com seu sobretudo. O regente viu Petros parado na penumbra do corredor atrás das portas. — Eu tenho que verificar como Audric está, archigos — disse Sergei ao se ajeitar nas dobras de lã. — Se você encontrar alguém com os dons que discutimos, por favor, mande esta pessoa para o palácio imediatamente.

— Eu mesmo passarei lá em mais ou menos uma virada da ampulheta — falou Kenne. — Petros já deve ter aprontado minha sopa neste momento, mas passarei depois, para ver o que posso fazer.

— Obrigado, archigos. Eu talvez veja você, então.

Ao sair do templo, Sergei perguntou-se se sua mensagem já chegara a Brezno e que recepção teria recebido.

 

Allesandra ca’Vörl

— A FLECHADA DO SEU FILHO foi tão boa quanto uma das minhas — declarou Fynn.

Allesandra duvidava disso. Jan podia não ter o volume e o poder da massa muscular de Fynn. Podia não ser capaz de manejar o peso do aço temperado que alguém como Fynn podia com facilidade fazer, mas o menino cavalgava como ninguém e tinha uma mira com flechas que pouquíssimos poderiam igualar. Allesandra tinha certeza de que nem Fynn, nem outra pessoa qualquer poderia ter acertado, quanto mais derrubado, o cervo montado nas costas de um cavalo a galope.

Porém, pareceu simplesmente melhor apenas aquiescer com a cabeça, dar um falso sorriso para Fynn e concordar. Era a atitude mais segura, mas concordar com a falsidade machucava, pois o orgulho pelo filho fazia com que ela quisesse discordar. Allesandra guardou o sentimento, juntamente com outras mágoas e insultos que Fynn e seu vatarh deram a ela ao longo dos anos.

— Foi sorte eu ter estado lá para dar a última flechada, ou o cervo teria escapado.

Allesandra sorriu novamente, embora soubesse que não tinha sido sorte ou destino, apenas a demonstração de que Jan sabia que não deveria eclipsar a presença do hïrzg. Um gesto político, tão habilidoso quanto qualquer um que ela pudesse ter feito.

Os dois andavam pela sacada leste do Palácio da Encosta do Cervo — tão reservado quanto qualquer um podia ser dentro da propriedade. Os gardai estavam em rígida posição de sentido no ponto onde a sacada fazia uma curva do norte para o sul; era evidente que eles evitavam o hïrzg e a a’hïrzg de maneira impassível enquanto olhavam para fora. Das janelas abertas para entrar a brisa da noite, Allesandra e Fynn ouviam os murmúrios dos convidados na mesa de onde acabaram de sair. Ela conseguiu distinguir a voz de Jan quando ele riu de algo que Semini disse.

Allesandra olhou para leste, na direção da bruma da noite que subia como uma maré lenta que vinha dos vales para as encostas íngremes onde o palácio estava instalado. O topo das sempre-vivas embaixo deles estava envolvido por filamentos de nuvens brancas, embora os picos sem árvores e assolados pelo vento permanecessem banhados pelo sol, que reluzia nos penhascos de granito e nos bancos de neve presos às rochas. Em algum lugar escondido na bruma lá embaixo, uma cachoeira borbulhava e cantava.

— É realmente bonito aqui — disse Allesandra. — Eu nunca me dei conta quando estive aqui quando era menina. O vavatarh Karin escolheu um lugar perfeito: deslumbrante e perfeitamente defensável. Nenhum exército jamais conseguiria tomar a Encosta do Cervo se o local fosse bem defendido.

Fynn concordou com a cabeça, embora não parecesse estar olhando para a paisagem. Em vez disso, ele remexia o punho brocado da manga. — Eu pedi que andasse comigo para que pudéssemos conversar sozinhos, irmã.

— Imaginei que fosse isso. Nós, ca’Vörls, raramente fazemos alguma coisa sem motivos ocultos, não é? — falou Allesandra, que deu um rápido sorriso. — O que você queria me dizer, irmãozinho?

Ele sorriu, brevemente, ao ouvir isso, e o movimento contorceu a larga cicatriz na bochecha. — Você nunca me conheceu quando eu era pequeno.

— Houve uma boa razão para isso. — Sim, aquela mágoa estava bem no âmago da montanha interior, a semente de onde tudo brotou...

— Ou uma má razão. Eu não entendi na época, Allesandra, por que o vatarh deixou você em Nessântico por tanto tempo. Depois que ele finalmente me contou a seu respeito, eu sempre me perguntei por que o vatarh deixou minha irmã mofar em outro país, que ele obviamente odiava tanto.

— Você entende agora? — perguntou ela, e continuou antes que Fynn pudesse responder. — Porque eu ainda não entendo. Sempre esperei que o vatarh se desculpasse ou explicasse, mas ele nunca fez isso. E agora...

— Eu não quero ser seu inimigo, Allesandra.

— Nós somos inimigos, Fynn?

— É o que pergunto a você. Eu gostaria de saber.

Allesandra esperou antes de responder. O parapeito de mármore da sacada sob sua mão estava molhado, o orvalho lustrou os torvelinhos azul-claros na pedra leitosa. — Você acha que, se nossas posições fossem invertidas, e eu tivesse sido nomeada hïrzgin pelo vatarh, então você me consideraria sua inimiga? — perguntou ela com cautela.

Fynn fez uma careta e abanou o ar fresco como se estivesse espantando um inseto irritante. — Tantas palavras... — Ele suspirou alto, e a irmã ouviu a irritação no gesto. — Você faz discursos que entram em meus ouvidos e distorcem o significado das minhas próprias palavras, Allesandra. Eu nunca fui capaz de duelar com palavras e discursos; esta não é uma das minhas habilidades. Também não era uma habilidade do vatarh. Ele sempre dizia exatamente o que pensava: nem menos, nem mais, e o que não queria que alguém soubesse, ele não dizia de maneira alguma. Eu fiz uma pergunta bem simples, Allesandra: você é minha inimiga? Por favor, faça a gentileza de dar uma resposta simples, sem enfeites.

— Não — respondeu ela com firmeza, depois balançou a cabeça. — Fynn, apenas um idiota responderia com outra coisa que não “não, nós não somos inimigos”. Você também sabe disso, apesar dos protestos. Você pode ser muitas coisas, mas não é tão simples assim, e eu não sou tão tola a ponto de cair em uma armadilha tão óbvia. Qual é a verdadeira pergunta que você está escondendo?

Fynn bufou com irritação e bateu com a mão no parapeito. Allesandra pôde sentir o impacto da mão, que fez tremer o parapeito. — Existem... existem pessoas... — Ele parou e respirou fundo, bem alto. Quando soltou o ar, Allesandra viu a condensação diante do rosto de Fynn. Ele tocou a coroa dourada e lisa que usava na cabeça. — O vatarh me disse antes de morrer que havia rumores entre os chevarittai e os ténis mais graduados da fé concénziana. Alguns deles eram contra minha nomeação como o a’hïrzg ou diziam que eu era... estúpido demais. — Ele cuspiu a palavra como se tivesse um gosto desagradável na língua. — Alguns deles queriam que você tivesse aquele título ou queriam outra pessoa completamente diferente para assumir a coroa dos hïrzgai.

— O vatarh disse para você quem espalhava esses rumores? De onde eles vinham? — indagou ela. Allesandra tinha que fazer a pergunta. Ela tremeu um pouco e esperou que Fynn não tivesse notado. — O vatarh contou quem disse isso?

No entanto, Fynn apenas balançou a cabeça. — Não. Nenhum nome. Apenas... que havia pessoas que seriam contra mim. Se eu encontrá-las... — O hïrzg respirou fundo pelo nariz e fez uma expressão séria. — Eu acabarei com elas. — Ele olhou diretamente para a irmã. — Eu não me importo com quem elas sejam e não me importo com quem eu tenha que machucar.

Allesandra virou a face para que ele não pudesse vê-la e olhou para a névoa que passava pelos pinheiros logo abaixo. Ótimo. Porque eu conheço algumas dessas pessoas, e elas me conhecem... — Você não pode punir rumores, Fynn. Não pode acorrentar e aprisionar fofocas da mesma forma que não pode capturar a bruma.

— Eu não acho que o vatarh tenha sido enganado pela bruma.

— Então, o que você quer de mim, irmãozinho?

Era isso que Fynn queria que ela perguntasse. Allesandra percebeu pela expressão dele, sob a luz que diminuía no céu. — No Besteigung — ele começou a falar, depois parou para colocar a mão em cima da mão da irmã, no parapeito. Não pareceu um gesto afetuoso. — Você é aquela para quem todos olham. Você é aquela que poderia ter sido hïrzgin se o vatarh não mudasse de ideia. Os ca’ e co’ ainda gostam de você, e muitos acham que o vatarh agiu mal a seu respeito. Os rumores sempre giram em torno de você, Allesandra. Você. Eu quero parar com os rumores; quero que não haja razão alguma para eles existirem. Então... no Besteigung, eu quero que você, e Pauli e Jan também, façam um voto formal de lealdade ao trono. Em público, para que todos ouçam vocês dizerem as palavras.

Elas seriam apenas palavras, Allesandra quis dizer para o irmão, com tanto significado quanto as que eu disse agora “não, Fynn, não sou sua inimiga”. Palavras e votos não significam nada: para saber isso, basta olhar para a história... Mas ela sorriu gentilmente para o irmão e deu um tapinha na mão dele. Talvez ele realmente fosse simples assim, tão inocente? — Claro que faremos isso — disse Allesandra. — Eu sei qual é o meu lugar. Sei onde eu devo estar e onde quero estar no futuro.

Fynn concordou com a cabeça e afastou a mão da irmã. — Ótimo — disse ele com um tom alto de alívio na voz. — Então nós esperamos por isso. — Nós... Ela ouviu o plural real na voz, completamente inconsciente, e franziu os lábios diante disso. — Eu gosto de seu filho — disse Fynn subitamente. — Ele é inteligente, como você, Allesandra. Eu odiaria achar que Jan esteve envolvido em algum plano contra mim, mas se ele esteve, ou se a família dele esteve... — O rosto ficou contraído novamente. — O ar está frio e úmido aqui fora, Allesandra. Eu vou entrar. — Fynn deixou a irmã e voltou para o calor do salão comunal do palácio. Allesandra ficou ao lado do parapeito um instante mais antes de segui-lo. Observando até que as brumas estivessem quase no mesmo nível que ela e o mundo lá embaixo tivesse desaparecido na penumbra e nas nuvens.

Allesandra pensou em ser hïrzgin e percebeu que o Grande Trono de Brezno jamais a satisfaria, mesmo que tivesse sido dela. Era uma conclusão difícil, mas ela soube agora que foi em Nessântico que tinha sido mais feliz, que tinha se sentido mais em casa.

— Eu sei qual é o meu lugar, irmão — sussurrou Allesandra para o silêncio da bruma. — Eu sei. E será meu.

 

Nico Morel

NICO OUVIU TALIS FALAR no outro cômodo, embora a matarh tenha ido à praça para comprar pão.

A matarh deu um beijo e mandou Nico tirar uma soneca, disse que voltaria antes do jantar. Mas ele não conseguiu dormir, não com o barulho de gente na rua bem do lado de fora das persianas da janela, nem com o sol que penetrava pelas frestas entre as tábuas. De qualquer maneira, Nico estava velho demais para sonecas. Aquilo era coisa de criança, e ele estava se tornando um homenzinho. A matarh também disse isso para ele.

Nico jogou os cobertores para o lado e cruzou o quarto de mansinho. Inclinou o corpo para frente, o suficiente para enxergar pela borda da porta arranhada e empenada que nunca fechava direito — fez questão de não tocá-la, pois sabia que as dobradiças dariam um alarme enferrujado. Através da fenda entre a porta e a ombreira, ele conseguiu ver Talis. Ele estava debruçado sobre a mesa que a matarh usava para preparar as refeições. Havia uma tigela rasa sobre a mesa, e Nico franziu os olhos em um esforço para ver melhor: animais entalhados dançavam pela borda, e a tigela tinha o mesmo tom castigado pelo clima da estátua de bronze de Henri IV, na praça do Velho Distrito. A matarh não tinha uma tigela de metal, pelo menos nenhuma que Nico tivesse percebido; os animais entalhados também eram estranhos: um pássaro com a cabeça de uma cobra; um lagarto escamoso com um focinho comprido cheio de dentes arreganhados. Talis despejou água do jarro da matarh dentro da tigela, depois desamarrou uma bolsinha de couro do cinto e sacudiu um pó avermelhado e fino na palma da mão. Ele polvilhou o pó na água como se estivesse salgando comida. Passou a mão sobre a tigela como se acalmasse alguma coisa, depois disse palavras na língua estranha que às vezes falava quando sonhava à noite, aninhado com a matarh de Nico na cama.

Uma luz pareceu brilhar dentro da tigela e iluminou o rosto de Talis com um tom pálido de amarelo esverdeado. Ele olhou fixamente o interior da tigela brilhante, de boca aberta, e a cabeça foi se aproximando cada vez mais, como se Talis estivesse pegando no sono, embora os olhos estivessem arregalados. Nico não sabia dizer por quanto tempo ele encarou a tigela — bem mais do que o tempo em que Nico tentou prender a respiração. Enquanto assistia, Nico achou que sentiu uma friagem, como se soprasse um vento de inverno da tigela, tão frígido que ele estremeceu. A sensação ficou mais intensa, e o fôlego que Nico tomou deu a impressão de sugar todo o frio, embora o ar, de alguma forma, quase parecesse quente dentro do corpo. O que fez com que ele quisesse expelir o ar, como se pudesse cuspir fogo gelado.

No outro cômodo, a cabeça de Talis pendeu ainda mais. Quando o rosto pareceu estar a dois centímetros de tocar a borda da tigela, o brilho sumiu tão repentinamente quanto surgiu, e Talis arfou como se respirasse pela primeira vez.

Nico também arfou, involuntariamente, como se o frio e o fogo dentro dele tivessem sumido no mesmo momento. O menino começou a recuar a cabeça da porta, mas foi detido pela voz de Talis. — Nico. Filho.

Ele voltou a espiar. Talis olhava fixamente para Nico, com um sorriso que contorcia as linhas do rosto moreno-escuro. Havia mais rugas ali ultimamente, e o cabelo de Talis começou a ficar salpicado de fios grisalhos. Ele gemeu ao se levantar rápido demais, e as juntas às vezes rangiam, embora a matarh dissesse que Talis tinha a mesma idade que ela. — Está tudo bem, filho. Não estou bravo com você. — O sotaque de Talis também parecia mais carregado do que o normal. Ele gesticulou para Nico, que notou uma mancha de pó vermelho ainda na palma da mão. Ele suspirou como se estivesse cansado e precisasse dormir. — Venha aqui. — Nico hesitou. — Não se preocupe; venha aqui.

Nico empurrou a porta para abri-la; a dobradiça, como ele sabia, rangeu alto, e foi até Talis. O homem ergueu o menino (sim, ele gemeu com o esforço) e colocou-o em uma cadeira perto da mesa para que pudesse ver a tigela. — Nico, esta é uma tigela especial que eu trouxe comigo do país onde costumava viver. Veja... tem água dentro. — Talis mexeu na água com um dedo. Ela parecia completamente normal agora.

— A tigela é especial porque faz a água brilhar? — perguntou Nico.

Talis continuou a sorrir, mas o jeito com que as sobrancelhas desceram sobre os olhos fez o sorriso parecer de certa forma inadequado no rosto. Nico viu o próprio rosto no reflexo das íris marrom-escuras dos olhos de Talis. Havia dobras fundas nos cantos daqueles olhos. — Ah, você viu aquilo, não é?

Nico concordou com a cabeça e perguntou — Aquilo era magia? Eu sei que não é um téni porque nunca vi você ir ao templo com a matarh e eu. Você é um numetodo?

— Não, não sou um numetodo, nem um téni da fé concénziana. O que você viu não era magia, Nico. Era apenas a luz do sol que entrou pela janela e foi refletida pela água na tigela, só isso. Eu também vi; era tão intensa que parecia que havia um pequeno sol debaixo d’água. Eu gostei como a tigela ficou, então a observei por um tempo.

Nico concordou com a cabeça, mas se lembrou do pó vermelho, da cor estranha e verdejante da luz e da maneira como a claridade banhou o rosto de Talis, como se fosse acariciado por uma mão de luz. Ele lembrou do fogo frio, mas não mencionou nada disso. Pareceu melhor não mencionar, embora não tivesse certeza do porquê.

— Eu amo você, Nico — continuou Talis, que se ajoelhou no chão perto da cadeira de Nico, de maneira que os rostos ficassem na mesma altura. Ele pousou as mãos nos ombros do menino. — Eu amo Serafina... sua matarh... também. E a melhor coisa que ela me deu na vida, a coisa que mais me deixou feliz, é você. Sabia disso?

Nico concordou novamente. Talis apertou os dedos em seus braços com tanta força que ele não conseguia se mexer. O rosto de Talis estava quase próximo ao seu, e Nico sentiu o cheiro de bacon e chá adoçado com mel no hálito do homem, e também um leve traço de algum condimento que não conseguiu identificar de forma alguma. — Ótimo — falou Talis. — Agora, preste atenção, não há necessidade de comentar sobre a tigela ou a luz do sol com sua matarh. Eu pensei que um dia pudesse dá-la de presente para sua matarh, e quero que seja uma surpresa, e você não quer estragá-la, não é?

Nico balançou a cabeça ao ouvir isso, e Talis deu um largo sorriso, como se tivesse contado uma piada para si mesmo que Nico não ouviu. — Excelente — disse ele. — Agora, deixe-me terminar de lavar a tigela, que era o que eu estava começando a fazer quando você me viu. É por isso que coloquei água dentro dela. — Talis soltou Nico; o menino esfregou os ombros enquanto o homem pegou a tigela, mexeu de maneira ostentosa a água dentro dela e depois abriu as persianas da janela para jogá-la na jardineira com flores. Talis secou a tigela com a bashta de linho, e Nico ouviu o tom do metal. Viu Talis colocar a tigela dentro de uma bolsa que ele mantinha debaixo da cama que compartilhava com sua matarh, depois recolocar a bolsa debaixo do colchão de palha.

— Pronto — falou Talis ao endireitar o corpo novamente. — Este será nosso segredinho, hein, Nico? — Ele piscou para o menino.

Esse seria o segredo deles. Sim.

Nico gostava de segredos.

 

A Pedra Branca

ELES VINHAM A ELA À NOITE, aqueles que a Pedra Branca matou. À noite, eles agitavam-se e acordavam. Reuniam-se em volta da Pedra Branca em sonhos e falavam com ela. Geralmente, quem falava mais alto era o Velho Pieter, a primeira pessoa que ela matou.

Ela tinha 12 anos.

— Lembre-se de mim... — murmurava o Velho Pieter para ela durante o sono. — Lembre-se de mim...

O Velho Pieter era um vizinho no modorrento vilarejo na Ilha de Paeti, e ela conhecia o homem desde que nasceu, especialmente depois que seu vatarh morreu, quando ela tinha seis anos. O Velho Pieter sempre foi amigável com ela, ria e dava como presentes os animais que ele entalhava a partir de galhos de árvore, com a pequena faca que sempre levava no cinto. Ela pintava os animais que ganhava e colocava no parapeito da janela em seu pequeno quarto, onde pudesse vê-los todas as manhãs.

O Velho Pieter tinha cabras, e, quando sua matarh permitia, ela às vezes ajudava o homem com o pequeno rebanho. No dia em que sua vida mudou, no dia que entrou no caminho que a traria até aqui, ela havia saído com Pieter e as cabras perto do Água Berrante, um córrego barulhento que descia rápido das encostas da Colina dos Carneiros, um dos morros altos ao sul do vilarejo. As cabras pastavam placidamente perto do córrego, e ela andava perto dos animais quando viu um corpo no chão: uma corça recém-morta, com o corpo dilacerado por carniceiros e moscas que começavam a se agitar em volta da carcaça. A cabeça da corça, no longo pescoço castanho-amarelado, olhava com desespero com seus belos olhos grandes.

— Se cê olhar no olho direito, cê vai ver o que matou ela.

Uma mão acariciou seu ombro e desceu pelas costas antes de se afastar. Ela levou um susto, pois não percebeu que o Velho Pieter surgira por trás. — O olho direito tá ligado à alma de uma pessoa ou de um animal — continuou ele. — Quando um ser vivo morre, bem, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto ou a coisa que matou ele. Olhe dentro do olho daquela corça que cê vai ver lá dentro: um lobo, tarvez. Acontece com gente, também. Assassinos são capturados desse jeito: quando alguém olha no olho direito da pessoa que eles mataram e vê o rosto do assassino ali.

Ela estremeceu ao ouvir isso e afastou-se, o Velho Pieter riu. A mão do homem tirou do rosto da menina as mechas de cabelo que escaparam das tranças, e ele sorriu afetuosamente para ela. — Agora, não fique transtornada, menina. Anda, vai cuidar das cabras, que eu vou entalhar alguma coisa procê.

O Velho Pieter voltou a ela no fim da tarde, quando a menina estava sentada às margens do Água Berrante vendo o córrego passar pelo leito rochoso. — Aqui, cê gostou? — perguntou ele.

Era uma figura humana entalhada, pequena o suficiente para ela esconder facilmente na mão: uma figura nua e inegavelmente feminina, com pequenos seios como os que brotavam em seu próprio peito. O cabelo a deixou mais perturbada: há uma lua, uma mulher ca’ de Nessântico passou pela cidade e ficou uma noite na estalagem da estrada para An Uaimth. O cabelo da mulher era trançado e preso em um nó complicado atrás da cabeça; fascinada por este vislumbre da moda de fora, a menina trabalhou por dias para imitar aquelas tranças; desde então, ela trançava o cabelo todo dia, da mesma maneira. Estava trançado agora, igual ao da figura nua, e a mão foi involuntariamente ao nó do cabelo atrás da cabeça. Ela quis, de repente, desmanchá-lo.

A menina olhou fixamente para o entalhe, sem saber o que dizer, e sentiu a mão do Velho Pieter na bochecha. — É ocê. Tá virando uma mulher agora.

A mão do homem pegou a cabeça dela e puxou a menina em sua direção, apertou-a com força contra ele. Ela sentiu a excitação do Velho Pieter, dura contra a sua coxa. A menina soltou a boneca.

O que aconteceu em seguida ela jamais esqueceria: a dor e a humilhação do ato. A vergonha. E depois que acabou, depois que o peso do homem saiu de cima dela, a menina viu o cinto caído na grama ao lado, e ali estava a bainha com a faca, que ela pegou. A menina pegou o cabo com as mãos tremendo, chorando, com sua tashta arrancada e meio rasgada, com seu sangue e o sêmen dele espalhados nas coxas, pegou com toda a raiva, fúria e medo por dentro e esfaqueou o Velho Pieter. Enfiou a faca na parte baixa da barriga do homem, e quando ele gemeu e berrou assustado, ela puxou a lâmina e a enfiou mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez até que ele parou de gritar, parou de bater na menina com os punhos e parou de se mover completamente.

Coberta no próprio sangue e no sangue do Velho Pieter, ela deixou a faca cair quando se ajoelhou ao lado dele. Os olhos mortos do homem encararam a menina.

— Quando um ser vivo morre, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto que viu...

Ela quase se arrastou até a margem do Água Berrante. Encontrou uma pedra ali, um seixo branco e polido pela água, do tamanho de uma moeda grande. A menina trouxe a pedra de volta e enfiou no olho direito do homem. Depois, ficou encolhida ali, a poucos passos do Velho Pieter, até que o sol estivesse praticamente posto e as cabras se reunissem ao redor dela. Os animais baliram e queriam voltar aos estábulos. A menina acordou, como se tivesse dormido, viu o corpo ali e se percebeu sendo levada na direção dele pela curiosidade. Ela levou a mão trêmula ao rosto do homem, ao olho direito coberto pelo seixo, e pegou a pedra. O seixo pareceu quente de um modo estranho. O olho embaixo estava cinza e opaco, e embora a menina tenha olhado com cuidado, não viu nada ali: nenhuma imagem de si mesma. Absolutamente nada. Ela apertou com força o seixo na mão: a pedra quente quase pulsava com vida. Sua respiração estremeceu quando ela apertou o seixo contra o peito.

Então, ela foi embora e deixou o corpo ali. Foi para o sul, não para o norte, e levou o seixo consigo.

A menina jamais retornaria para o vilarejo onde nasceu. Nunca mais veria sua matarh novamente.

A Pedra Branca revirou-se no sono. — Eu não queria machucar ocê, menina — sussurrou o Velho Pieter nos sonhos. — Não queria mudar ocê. Sinto muito, sinto muito...


CONTINUA

SE UMA CIDADE TIVESSE SEXO, Nessântico seria mulher...
Antigamente, ela era jovem e cheia de vitalidade: a cidade, a mulher. Durante sua ascensão, transformou-se na mais famosa, mais bonita e mais poderosa de sua espécie.
Agora, ela olhou para si mesma e imaginou — como alguém que se vislumbra inesperadamente em um espelho e fica assustado e incomodado pelo reflexo — se esses atributos ainda carregavam verdade.
Ah, ela sabia que a juventude era passageira e efêmera. Afinal, as pessoas que moravam entre suas muralhas levavam vidas curtas e difíceis. Para elas, o rosto refletido mudava implacavelmente a cada dia que passava, até surgir a manhã em que perceberiam que a imagem no espelho estaria enrugada e cansada, que os cabelos grisalhos nas têmporas se espalhariam e ficariam mais brancos. Elas talvez sintam suas juntas reclamando durante um movimento que antigamente não exigia qualquer esforço ou pensamento, ou talvez descubram que agora as feridas levariam semanas em vez de dias para sarar, ou que a doença permaneceria como um convidado indesejado — ou pior, que mudaria de “persistente” para “crônica”.
O frio da mortalidade penetrou lentamente em seus ossos mortais como gelo.

Mortalidade: Nessântico também sentia esta condição. Os habitantes da cidade escondiam as rugas e dobras com a cosmética da arquitetura. Vejam, ela poderia dizer: lá está o grande domo de co’Brunelli para o Velho Tempo — há 15 anos sendo construído neste momento —, que, quando terminado, será o maior domo sem suportes do já mundo conhecido. Aquele lá na Ilha A’Kralji é o lindo e ornamentado Teatro A’Kralji de ca’Casseli, capaz de abrigar uma plateia de duas mil pessoas, com acústica tão excelente que todo mundo pode ouvir o mais baixo sussurro no palco; ali, a Grande Biblioteca da margem sul, que começou a ser construída no reinado do kraljiki Justi e que contém as maiores obras intelectuais da humanidade. Ouçam: aquela é a doce música de ce’Miella, cujas composições rivalizam com as melodias magníficas do mestre Darkmavis. Vejam as pinturas e os murais cheios de símbolos de ce’Vaggio, cuja habilidade de retratar figuras geralmente é comparada àquela do trágico mestre ci’Recroix. Há uma vida tão vibrante aqui no interior de Nessântico: todas as peças e danças, as celebrações e a alegria.
Tudo aqui é igual ao que sempre foi; não, tudo é melhor.

 

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No entanto, ela mudou, e sabia disso. Havia sinais e portentos. No Velho Distrito, há não muito tempo, havia uma mulher que nasceu com as patas de uma tarântula e (diziam os rumores) que podia matar com um único olhar de seus olhos multifacetados. Houve a praga de milhares de sapos verdes nos Brejos há duas primaveras, tão intensa que eles cobriram as passagens próximas com uma massa agitada que tinha um palmo de profundidade. Nos esgotos da margem norte, diziam que havia uma criatura à espreita, com cabeça de dragão, corpo de touro e pés e mãos de humano, e que se alimentava de ratos que cresciam do tamanho de lobos.

Havia os sinais reais e indiscutíveis também. Os Domínios foram rachados, aquela forte aliança forjada lentamente ao longo dos séculos. Após um malfadado ataque a Nessântico, depois do assassinato da kraljica Marguerite, a cidade de Brezno tornou-se sua rival, à medida que Firenzcia tomava várias terras vizinhas ao seu redor: uma Coalizão sob o comando do hïrzg Jan ca’Vörl.

A fé concénziana também fora cindida, e não era mais o que tinha sido. A archigos Ana ocupava o templo na margem sul, era verdade, mas outra pessoa dizia-se archigos em Brezno. Dentro de Nessântico, os hereges numetodos adquiriam novos partidários, e não era incomum ver alguém conjurar um feitiço sem vestir um robe verde ou apelar primeiro para Cénzi.

Sinais e portentos. Mudança. Quanto mais velha ficava Nessântico, mais difíceis ficavam as mudanças para ela.

Pega em seu próprio outono indesejado, Nessântico — a cidade, a mulher — encarava o reflexo nas águas escuras do rio A’Sele e imaginava...

E, como muitos em sua posição, Nessântico negava o que via.


??? RESPOSTAS ???

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

O VATARH DE Allesandra ca’Vörl era o sol ao redor de quem ela orbitava desde que se entendia por gente. Agora aquele sol finalmente estava se pondo.

A mensagem chegara de Brezno através de um mensageiro rápido, ela olhava fixamente para as palavras escritas em uma caligrafia legível e apressada. — Seu vatarh está morrendo. Se a senhora quiser vê-lo, apresse-se. Essa foi toda a mensagem. Estava assinada pelo archigos Semini de Brezno e selada pelo seu sinete.

O vatarh está morrendo... O grande hïrzg Jan de Firenzcia, em homenagem a quem ela batizara seu único filho, estava falecendo. As palavras acenderam um fogo amargo em seu estômago; elas nadaram na página com as lágrimas salgadas que surgiram espontaneamente em seus olhos. Allesandra ficou sentada ali — à elegante escrivaninha, no gabinete opulento perto do palácio do gyula em Malacki — e viu uma gotícula cair no papel e borrar a tinta das palavras.

Ela odiava que o vatarh ainda a abalasse tanto; odiava se importar. Allesandra deveria odiá-lo, mas não conseguia. Não importava o quanto tentasse ao longo dos anos, ela não conseguia.

Pode-se amaldiçoar o sol pelo calor escaldante ou por sua ausência, mas sem o sol não haveria vida.

— Eu o odeio — declarou ela para a archigos Ana. Havia dois anos que Ana tirara Allesandra de seu vatarh para mantê-la como refém. Dois anos, e ele ainda não tinha pagado o resgate para trazê-la de volta. Ela tinha 13 anos, na iminência da menarca, e fora abandonada pelo vatarh. O que originalmente era ansiedade e decepção, aos poucos se transformara em raiva dentro dela. Pelo menos era o que Allesandra acreditava.

— Não, você não o odeia — falou Ana baixinho enquanto acariciava o cabelo de Allesandra. As duas estavam na sacada de seus aposentos no complexo do templo em Nessântico e olhavam para a confusão de ténis vestidos de verde que corriam com suas tarefas lá embaixo. — Não de verdade. Se ele pagasse o resgate amanhã, você ficaria radiante e pronta para correr de volta para seu vatarh. Olhe para dentro de si, Allesandra. Olhe sinceramente. Não é verdade?

— Bem, ele deve me odiar — retrucou ela — ou teria pagado.

Ana abraçou-a com força então. — Ele vai pagar. Vai sim. É que... Allesandra, seu vatarh queria se sentar no Trono do Sol. Ele sempre foi um homem orgulhoso, e uma vez que eu levei você embora, seu vatarh jamais foi capaz de realizar seu sonho. Você é uma lembrança de tudo o que ele perdeu. E isto é culpa minha. Não é sua. Não é sua de forma alguma.

O vatarh não pagou. Não por dez longos anos. Era Fynn, o novo filho que sua matarh, Greta, deu ao hïrzg que gozava do carinho do vatarh, que aprendera a guerrear, e fora nomeado o novo a’hïrzg — o título que deveria ter sido dela.

Em vez do vatarh e da matarh, era a archigos Ana que se tornara sua responsável, que a orientara durante a puberdade e adolescência, que confortara Allesandra em suas primeiras paixões, que ensinara os modos da sociedade ca’ e co’, que a acompanhara em bailes e festas, que a tratara não como uma prisioneira, mas como uma sobrinha que tinha se tornado sua responsabilidade criar.

— Eu amo você, tantzia — disse Allesandra para Ana. Ela passara a chamar a archigos de “tia”. O kraljiki Justi recebera a notícia de que um tratado entre os Domínios e a “Coalizão” Firenzciana estava para ser assinado em Passe a’Fiume, e, como parte das negociações, o hïrzg Jan finalmente pagara o resgate de sua filha. Ela passara uma década em Nessântico, praticamente metade de sua vida. Agora, aos 21 anos, ela deveria retornar à vida que perdera há tanto tempo, e estava assustada pela perspectiva. Antigamente, isso era tudo o que ela queria. Agora...

Parte de Allesandra queria ficar aqui. Aqui, onde ela sabia que era amada.

Ana abraçou-a com mais força. Allesandra era mais alta do que a archigos agora, e Ana teve que ficar na ponta dos pés para beijar sua testa. — Eu também amo você, Allesandra, e sentirei a sua falta, mas chegou a hora de ir para casa. Saiba que eu sempre estarei aqui para você. Sempre. Você faz parte do meu coração, minha querida. Eternamente.

Allesandra tinha esperanças de poder banhar-se ao sol do amor de seu vatarh novamente. Sim, ela tinha ouvido falar que o novo a’hïrzg Fynn era o filho que o hïrzg Jan sempre desejou: habilidoso com o cavalo, com a espada, com a diplomacia. Ela sabia que o irmão estava sendo preparado para a carreira na Garde Firenzcia. Mas ela também fora um dia o orgulho de seu vatarh. Com certeza poderia voltar a ser.

Mas Allesandra soube assim que o vatarh olhou para ela, do outro lado da tenda de negociação em Passe a’Fiume, que isso não aconteceria. No olhar de predador de Jan havia uma aversão que ardia lentamente. Ele avaliou Allesandra como se olhasse para uma estranha — e ela era realmente uma estranha para o vatarh: uma jovem agora, não mais a menina que Jan perdera. Ele pegou as mãos dela, aceitou a mesura como faria com qualquer ca’ e co’ e passou a filha para o archigos Semini um momento depois.

Fynn estava ao lado dele — agora com a idade que Allesandra tinha ao ser capturada — e avaliou a irmã mais velha como faria com um rival qualquer.

Allesandra procurou o olhar de Ana através da tenda, e a mulher deu um sorriso triste e um aceno de despedida. Havia lágrimas nos olhos de Ana, que brilharam ao sol que passava pela lona fina da tenda. A archigos, pelo menos, fora fiel à própria palavra. Ela escrevera regularmente para Allesandra. Negociara com o vatarh para que tivesse a permissão de comparecer ao casamento de Allesandra com Pauli ca’Xielt, o filho do gyula da Magyaria Ocidental, e, portanto, um matrimônio politicamente vantajoso para o hïrzg, e um enlace sem amor para Allesandra.

Ana tinha até mesmo estado presente, em segredo, no nascimento do filho de Allesandra, há quase 16 anos agora. A archigos Ana — a archigos falsa e herege de acordo com Firenzcia, a quem Allesandra era obrigada a odiar como uma boa cidadã da Coalizão — abençoara e batizara a criança com o nome que Allesandra lhe dera: Jan. E o fizera sem uma crítica ou um comentário. Fizera com um sorriso gentil e um beijo.

Até mesmo batizar a criança em homenagem ao vatarh não mudou nada. Isso não o aproximara de Allesandra — na maior parte do tempo, o hïrzg Jan ignorava seu neto e homônimo. Jan ficava na companhia do hïrzg Jan cerca de duas vezes ao ano, quando ele e Allesandra o visitavam em ocasiões de estado, e raramente o hïrzg falava diretamente com o neto.

Agora... agora seu vatarh estava morrendo e Allesandra não conseguia evitar chorar por ele. Ou talvez não conseguisse evitar chorar por si mesma. Com raiva, ela atacou a umidade nas bochechas com a manga. — Aeri! — Allesandra chamou o secretário. — Venha aqui! Tenho que ir para Brezno.

Allesandra irrompeu no quarto do hïrzg e jogou longe a capa suja de viagem. O cabelo estava despenteado pelo vento, e as roupas cheiravam a cavalo. Ela empurrou os criados que tentaram ajudá-la e se dirigiu para a cama. Os chevarittai e vários parentes reunidos ali afastaram-se para deixar que ela se aproximasse; Allesandra sentiu os olhares de avaliação às suas costas. Ela olhou fixamente para o rosto murcho e encarquilhado no travesseiro e mal o reconheceu.

— Ele está...? — perguntou Allesandra bruscamente, mas então ela ouviu o barulho causado pela respiração cheia de catarro do hïrzg e viu o lento movimento do peito sob as cobertas. O quarto cheirava a doença, apesar das velas perfumadas. — Fora! — falou ela para todos, gesticulando. — Digam a Fynn que eu vim, mas deixem-me sozinha com meu vatarh. Fora!

Eles dispersaram-se, como Allesandra sabia que fariam. Ninguém tentou protestar, embora os curandeiros dirigissem olhares de desaprovação sob frontes cautelosamente franzidas, e ela pôde ouvir os sussurros enquanto as pessoas saíam. “Não é de admirar que o marido fique longe dela... Um bode tem melhores maneiras... Ela tem a arrogância de Nessântico...”.

Allesandra bateu a porta na cara deles.

Então, finalmente, ao olhar para o rosto encovado e cinzento do vatarh, ela permitiu-se chorar, ajoelhada ao lado da cama, segurando as mãos frias e debilitadas. — Eu amei o senhor, vatarh — falou Allesandra. Sozinha com ele, a verdade era possível. — Eu amei. Mesmo depois que o senhor me abandonou, mesmo depois que o senhor deu a Fynn todo o carinho que eu queria, eu ainda o amei. Eu poderia ter sido a herdeira que o senhor merecia. Ainda posso ser, se tiver a chance.

Allesandra ouviu o arrastar de botas na porta e ficou de pé. Secou os olhos com a manga da tashta e fungou assim que Fynn empurrou a porta para abri-la. Ele irrompeu no quarto; Fynn nunca simplesmente entrava em um aposento. — Irmã, noto que as notícias chegaram até você.

Allesandra cruzou os braços. Ela não deixaria que o irmão notasse como havia ficado abalada ao ver o vatarh em seu leito de morte. Deu de ombros. — Eu ainda tenho fontes aqui em Brezno, mesmo que meu irmão deixe de mandar um mensageiro.

— Eu esqueci, mas imaginei que você saberia, de qualquer maneira. — O sorriso que ele deu era mais uma careta de desprezo, contorcida pela longa cicatriz enrugada que ia do canto do olho direito atravessando o lábio até o queixo: a marca de uma cimitarra de Tennshah. Fynn, aos 24 anos, tinha o corpo esbelto e forte de um soldado profissional, uma forma física que caía bem nas calças e blusas soltas que usava. Esse estilo de vestir de Tennshah tinha virado moda em Firenzcia desde as guerras de fronteira, há seis anos, quando Fynn enfrentou as forças do t’sha e empurrou os limites de Firenzcia quase 165 quilômetros para o leste, e ganhou a cicatriz comprida que maculava o belo rosto.

Foi durante essa guerra que Fynn conquistou plenamente o carinho do vatarh e acabou com qualquer esperança persistente de Allesandra de que pudesse vir a se tornar a hïrzgin.

— Os curandeiros disseram que o fim virá em algum momento do dia de hoje ou possivelmente à noite se ele continuar a lutar; o vatarh nunca desistiu facilmente, não é? Mas os retalhadores de almas virão atrás dele desta vez. Não há mais dúvida alguma quanto a isso. — Fynn abaixou os olhos na direção da figura na cama quando o hïrzg estremeceu novamente ao respirar. O olhar do jovem era carinhoso e triste, e, no entanto, também era avaliador, como se calculasse quanto tempo levaria até que ele pudesse retirar o anel com sinete das mãos unidas e colocá-lo no próprio dedo; até que pudesse colocar a coroa fina de ouro de hïrzg nos cachos da própria cabeça. — Não há nada que eu ou você possamos fazer, irmã, além de rezar para que Cénzi receba a alma do vatarh com carinho. Fora isso... — Fynn deu de ombros. — Como está meu sobrinho Jan?

— Você o verá em breve — falou Allesandra. — Ele está a caminho de Brezno atrás de mim e deve chegar amanhã.

— E seu marido? O querido Pauli?

Allesandra torceu o nariz. — Se você está tentando me provocar, Fynn, não vai funcionar. Eu sugeri que Pauli permanecesse em Malacki e cuidasse dos negócios de estado. E quanto a você? Já encontrou alguém para casar ou ainda prefere a companhia de soldados e cavalos?

O sorriso demorou a surgir, e era vacilante quando apareceu. — Agora quem provoca quem? O vatarh e eu ainda não tomamos uma decisão quanto a isso, e agora parece que a decisão será somente minha, embora eu certamente ouvirei quaisquer sugestões que você tenha. — Fynn abriu os braços e Allesandra relutantemente permitiu que ele a abraçasse. Nenhum dos dois deu um abraço apertado, mas apenas envolveram um ao outro, como se abraçassem um espinheiro, e o gesto acabou em um piscar de olhos. — Allesandra, eu sei que sempre houve uma distância entre nós, e espero que possamos trabalhar em conjunto quando... — ele hesitou, e Allesandra observou o peito de Fynn inchar após respirar fundo — ... quando eu for o hïrzg. Precisarei de seus conselhos, irmã.

— E eu os darei a você — ela aproximou-se e cautelosamente beijou o ar a um dedo de distância da bochecha marcada pela cicatriz —, irmãozinho.

— Eu queria que nós realmente pudéssemos ter sido irmãozinho e irmãzona. Eu queria ter conhecido você naquela época.

— Eu também — disse Allesandra para Fynn. E eu queria que estas fossem mais do que palavras vazias e educadas que ambos dizemos porque sabemos que são o que a etiqueta exige. — Ficaria aqui comigo agora? Deixe o vatarh perceber que estamos juntos pelo menos uma vez.

Ela sentiu sua hesitação e perguntou-se se Fynn iria recusar. Porém, após um instante, o irmão deu de ombros. — Por uma virada da ampulheta ou menos, nós podemos rezar por ele. Juntos.

 

Jan ca’Vörl

— EU TENHO QUE CAVALGAR o mais rápido possível para Brezno — falou a matarh de Jan para ele. — Eu dei ordens para os criados arrumarem o que temos nos quartos em malas para viagem. Quero que você venha atrás assim que eles aprontarem as carruagens. E, Jan, veja se consegue convencer seu vatarh a vir com você. — Ela deu um beijo na testa do filho, com mais intensidade do que em anos, e abraçou-o. — Eu amo você — sussurrou. — Espero que saiba disso.

— Eu sei. — Jan afastou-se e sorriu para a matarh. — E eu espero que a senhora saiba disso.

Ela sorriu e deu um último abraço no filho antes de subir no cavalo mantido pelos dois chevarittai que iriam acompanhá-la. Jan observou o trio se afastar pela estrada da propriedade a galope.

Isto foi há dois dias. Sua matarh devia ter chegado a Brezno ontem. Jan recostou a cabeça nas almofadas da carruagem e viu a paisagem do sul de Firenzcia passar sob a luz dourado-esverdeada do fim da tarde. O condutor dissera que eles parariam no próximo vilarejo à noite e chegariam a Brezno ao meio-dia de amanhã. Jan imaginou o que ele encontraria lá.

Ele estava sozinho na carruagem.

Jan pedira ao vatarh Pauli para vir com ele, como a matarh solicitara. Os criados disseram que Pauli estava em seus aposentos na propriedade, em uma ala separada dos aposentos de Allesandra. O assistente chefe de Pauli entrou para anunciar o filho e retornou com as sobrancelhas arqueadas. — Seu vatarh disse que pode ceder alguns momentos — falou o homem ao acompanhar Jan em uma das salas de recepção depois do corredor principal.

Jan ouviu os risinhos abafados de duas mulheres vindo de um quarto que dava para a sala de recepção. A porta foi aberta em meio a risada rouca de um homem. O vatarh vestia um robe, o cabelo estava desgrenhado e revolto, a barba encontrava-se por fazer. Ele cheirava a perfume e vinho. — Um instante — disse Pauli para Jan. Ele tocou os lábios com um dedo antes de cambalear um pouco até a porta que levava ao quarto abrindo-a ligeiramente. — Shh! — falou alto. — Estou tentando levar uma conversa sobre minha esposa com meu filho. — O que foi recebido com uma risada estridente.

— Diga ao garoto para se juntar a nós. — Jan ouviu uma delas gritar, e sentiu o rosto ficar vermelho com o comentário, enquanto Pauli apontava o dedo na direção da mulher que não podia ser vista.

— Vocês duas são umas safadas encantadoras — disse Pauli para elas. Jan imaginou as mulheres: com perucas e ruge no rosto, seminuas ou talvez completamente nuas, como um dos quadros das deusas moitidis que decoravam os salões. — Voltarei em um instante — continuou Pauli. — Bebam mais vinho, moças.

Ele fechou a porta e apoiou-se pesadamente contra ela. — Desculpe. Eu estou com... companhia. Então, o que a megera queria? Ah, é melhor você dizer por mim para a sua matarh que o a’gyula da Magyaria Ocidental tem coisas melhores para fazer do que ir a Brezno porque alguém pode ou não estar morrendo. Quando o velho desgraçado finalmente der seu último suspiro, sem dúvida eu serei enviado ao funeral como nosso representante, e isso ocorrerá em breve. — As palavras saíram arrastadas. Ele pestanejou lentamente e arrotou. — Você também não precisa ir, garoto. Por que não fica aqui? Nós dois podemos nos divertir, hein? Tenho certeza de que estas moças têm amigas...

Jan balançou a cabeça. — Eu prometi para a matarh que pediria ao senhor que viesse, e foi o que fiz. Eu parto hoje à noite; os criados estão quase terminando de arrumar as carruagens.

— Ah sim — disse Pauli. — Você é um filho tão bom e obediente, não é? O orgulho e alegria de sua matarh. — Ele afastou-se da porta e cambaleou enquanto apontava um dedo para Jan, que andava de um lado para o outro. — Você não quer ser como ela. Sua matarh não ficará satisfeita enquanto não dominar o mundo inteiro. Ela é uma vadia ambiciosa com um coração duro como pedra.

Jan já tinha ouvido Pauli insultar sua matarh mil vezes, e a cada ano que passava mais. Antes ele sempre rangia os dentes, fingia não escutar ou murmurava uma reclamação que Pauli ignoraria. Agora... o rubor que surgia no rosto de Jan tornou-se vermelho como lava. Ele cruzou o aposento acarpetado com três passos ligeiros, levou a mão para trás e deu um tapa na cara do vatarh. Pauli cambaleou contra a porta, que se abriu e fez com que ele desmoronasse ali, sobre um tapete trançado. Jan viu duas mulheres dentro do quarto — realmente seminuas sobre a cama do vatarh. Elas cobriram os seios com os lençóis e gritaram. Sem acreditar, Pauli levou a mão ao rosto; sobre a barba fina, Jan pôde ver a marca dos dedos na bochecha do vatarh.

Ele imaginou por um instante o que faria se Pauli se levantasse, mas o vatarh apenas pestanejou novamente e riu como se tivesse levado um susto.

— Bem, você não precisava fazer isso — disse Pauli.

— O senhor pode pensar o que bem entender da matarh. Eu não me importo. Porém, de agora em diante, vatarh, guarde suas opiniões para o senhor ou trocaremos mais do que palavras. — Dito isso, antes que Pauli conseguisse se levantar do tapete ou responder, Jan virou-se e apressou-se a sair da sala.

Ele se sentiu estranhamente alegre. A mão formigava. Pelo resto do dia, Jan esperou ser chamado à presença do vatarh — assim que o vinho tivesse ido embora da cabeça do homem. Porém, até ser informado de que as carruagens estavam prontas e à espera, Jan não tinha ouvido nada. Ele ergueu os olhos para as janelas da ala do vatarh ao entrar na carruagem principal, enquanto os criados que viajariam com ele subiam nas outras. Jan pensou ter vislumbrado uma silhueta observando da janela e levantou a mão — a mão que batera no vatarh.

Outra silhueta, uma forma feminina, aproximou-se do vatarh por trás, e a cortina fechou-se novamente. Jan entrou na carruagem. — Vamos — falou para o condutor. — Temos uma longa jornada à frente.

Ele olhou mais uma vez pela janela da carruagem. Pela maior parte da jornada, Jan ficou remoendo o que aconteceu. Ele tinha quase 16 anos. Era quase um homem. Até já tivera sua primeira amante: uma garota ce’ que fizera parte do corpo de funcionários da casa, embora a matarh de Jan tivesse mandado a menina embora quando percebeu que eles se tornaram íntimos. Ela também deu um longo sermão sobre o que esperava dele. — Mas o vatarh... — Jan começara a falar, e Allesandra interrompeu o protesto com um golpe forte da mão.

— Pare aí, Jan. Seu vatarh é preguiçoso e libertino, e, desculpe a grosseria, ele geralmente pensa com o que tem entre as pernas, não com a cabeça. Você é melhor do que ele, Jan. Vai ser importante neste mundo, se escolher não ser o filho de seu vatarh. Eu sei disso. Prometo a você.

Ela não dissera tudo que poderia ter dito, e ambos sabiam disso. Pauli podia ser o vatarh de Jan, mas para ele isto era apenas outro título, e não uma ocupação. Era a matarh quem Jan via todo dia, que brincava com ele quando era pequeno, que ia vê-lo todas as noites após as babás o colocarem na cama. Seu vatarh... Ele era uma figura alta que às vezes mexia no cabelo de Jan ou dava presentes extravagantes que pareciam mais um pagamento pela ausência do que presentes de verdade.

Seu vatarh era o a’gyula da Magyaria Ocidental, filho do atual gyula, o governante que Jan via com tanta frequência quanto o outro vavatarh, o hïrzg. As pessoas faziam mesuras na presença de Pauli, riam e sorriam quando falavam com ele. Mas Jan ouvia os sussurros dos funcionários e dos convidados quando eles pensavam que ninguém escutava.

Sua mão direita pulsava, como se lembrasse do tapa na cara do vatarh. Jan olhou para a mão à luz do fim do dia: uma mão de adulto agora. O tapa na cara do vatarh fez com que ele rompesse com a infância para sempre.

Jan não seria como seu vatarh. Ao menos isso ele se prometeu. Jan teria a própria personalidade. Independente.

 

Varina ci’Pallo

VARINA ESTAVA AO LADO de Karl na elegante sala de recepção da archigos, mas — como quase sempre era o caso quando Ana se encontrava no mesmo ambiente — ela parecia invisível a ele. Toda a atenção de Karl estava voltada para a archigos. Varina queria se virar e dar um tapa na cara dele. Você não enxerga o que está diante da sua cara? Você é tão distraído assim?

Parecia que ele era. Karl sempre fora abstraído e sempre seria quando Ana estivesse envolvida. Ao longo dos anos, Varina chegou a essa conclusão. Talvez tivesse sido diferente se a própria Varina não gostasse e admirasse a archigos, se não considerasse a mulher uma amiga. Ainda assim...

— Você tem certeza disso? — perguntou Karl para Ana. Ele olhava para um pergaminho dado pela archigos e batia com o indicador nas palavras escritas ali. — Ele está morto? — Não havia traço algum de tristeza em sua voz; na verdade, Karl sorria ao devolver o papel para a archigos.

Ana franziu a testa. Se Karl considerou boas as notícias, era óbvio para Varina que a opinião de Ana era mais ambígua. — O hïrzg Jan está morrendo — falou a archigos. — E suspeito que ele provavelmente já morreu a esta altura, se a informação for correta. O téni que enviou esta mensagem tem o toque da cura; ele saberia dizer se o homem está além da salvação.

— Até que enfim o velho urubu morreu — disse Karl. Ele olhou ao redor da sala, pensativo, mas não para Varina. — Você já falou com Allesandra? Ela vai contestar o direito de Fynn ao trono?

— Não sei. — Ana pareceu suspirar. Ela nunca fora bonita; na melhor das hipóteses, quando jovem, Ana fora uma mulher singela. Até mesmo ela teria admitido isso. Agora, ao chegar à meia-idade, Ana tornou-se uma figura matrona, mas havia algo de impressionante, confiável e cativante a seu respeito. Varina conseguia entender a atração e a devoção de Karl pela mulher, mesmo que parte dela se ressentisse com isso. A reputação de Ana só cresceu ao longo dos anos. As pessoas riam do kraljiki Justi pelas costas, e a situação não parecia ser diferente com seu filho, Audric, e havia aqueles na Fé que consideravam heréticas a tolerância e a franqueza de Ana, mas o povo de Nessântico e dos Domínios parecia adorar sua archigos e ter afeição por ela. Varina já tinha visto as multidões em volta do templo sempre que Ana ia dar uma Admoestação e já tinha ouvido a aclamação quando a carruagem da archigos passava pela Avi a’Parete.

— Se Allesandra estivesse no trono de Firenzcia, eu me sentiria melhor a respeito disso tudo — continuou Ana. — Sentiria que haveria esperança de que os Domínios pudessem ser restaurados. Se Allesandra fosse a hïrzgin... — Outro suspiro. Ana olhou sobre seus ombros, na direção do enorme ornamento de globo partido que se destacava no outro canto da sala: dourado e cravejado de joias, com esculturas dos moitidis, os semideuses que eram filhos de Cénzi, se contorcendo de agonia na base. A voz era quase um sussurro, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse escutá-la secretamente. — Então eu poderia considerar abrir negociações com Semini ca’Cellibrecca, para ver se a fé concénziana também poderia ser reunificada.

Varina fez uma expressão de aflição, e Ana dirigiu um olhar compreensivo a ela. — Eu sei, Varina. Garanto que a segurança dos numetodos não será negociável, mesmo que eu estivesse disposta a abdicar do título de archigos em favor de Semini. Eu não permitiria que as perseguições se repetissem.

— Você não pode confiar que ca’Cellibrecca manterá essas promessas — falou Varina. — Ele é praticamente filho de seu vatarh por casamento.

— Ca’Cellibrecca estaria obrigado a cumprir uma promessa pública, assim como seus votos a Cénzi.

— Você tem mais fé nele do que eu — respondeu Varina. O que fez Ana sorrir.

— É estranho ouvir um numetodo falar de fé — disse a archigos. Ela tocou o ombro de Varina sob a tashta e deu uma risada amigável. — Mas entendo sua preocupação e seu ceticismo. Peço que confie em mim; se a situação chegar a este ponto, eu garanto que você, Karl e seu povo serão protegidos.

— Será que a situação chegará a esse ponto? — interrompeu Karl, que observou as mãos de Ana como se quisesse que ela o tocasse. — Acha que há chances, Ana?

Ela olhou para o papel em sua mão como se procurasse uma resposta ali, depois se virou para pousar o pergaminho em uma mesa próxima. Ele emitiu um pequeno ruído; estranho, pensou Varina, para algo com tão pesada importância. — Eu não sei — falou Ana. — Allesandra e o irmão não se toleram. Dado o tempo que Allesandra esteve aqui comigo enquanto ambos cresciam, eles são mais estranhos do que irmãos, e o jeito com que o hïrzg Jan tratou Allesandra quando ele de fato pagou o resgate por ela... — Ana balançou a cabeça. — Mas eu não sei mais o que Allesandra quer ou quais seriam seus desejos e ambições. Eu achei que soubesse antigamente, mas...

— Você foi uma matarh para ela — disse Karl, Ana riu novamente.

— Não, não fui isso. Talvez uma irmã mais velha ou uma tantzia. Tentei ser alguém com quem ela pudesse estar segura, porque a pobre criança ficou completamente sozinha aqui por tempo demais. Não consigo imaginar como isso pode tê-la magoado.

— Você foi maravilhosa com ela — insistiu Karl. Varina observou Karl estender a mão para pegar a de Ana. Doía ver o gesto. — Foi sim.

— Obrigada, mas eu sempre imagino se poderia ter feito mais, ou melhor — disse Ana, que afastou lentamente suas mãos das de Karl. — Fiz o que pude. Isto é tudo que Cénzi pode pedir, creio eu. — Ana sorriu. — Vamos ver o que acontece, não é? Manterei vocês dois informados assim que souber de mais notícias.

— Você ainda está disponível para jantar amanhã? — perguntou Karl para Ana.

O olhar da archigos deslizou de Karl para Varina e de volta para Karl. — Sim, após a Terceira Chamada. Gostaria de se juntar a nós, Varina?

Ela sentiu o olhar de Karl. — Não — disse Varina, às pressas. — Não posso, archigos. Tenho uma reunião com Mika e uma aula para dar... — Desculpas demais, mas Karl assentiu com a cabeça. A satisfação dele diante da resposta de Varina foi como o corte de uma pequena navalha.

— Amanhã à noite, então — disse Karl. — Aguardo ansiosamente o jantar. Talvez fosse melhor nós irmos embora, Varina. Tenho certeza de que a archigos tem outros compromissos... — Ele inclinou a cabeça na direção de Ana e começou a andar na direção da porta. Varina virou-se para segui-lo, mas Ana chamou-a quando eles deram as costas.

— Varina, um momento? Karl, eu a mando imediatamente, prometo.

Karl olhou para trás, intrigado, mas fez uma mesura novamente e caminhou em direção às portas. Os dois enormes painéis eram entalhados com baixos-relevos dos moitidis em batalha, com espadas que se sobrepunham e colidiam na junção. Karl puxou as portas e os combatentes se separaram. Varina esperou até que a madeira escura e envernizada se fechasse enquanto ele saia e os moitidis novamente estivessem em guerra.

— Archigos?

— Eu queria um momento com você, Varina, porque estou preocupada — falou Ana. — Você parece tão cansada e abatida. Magra. Eu sei o quanto você anda envolvida com sua... pesquisa. Está se lembrando de comer?

Varina tocou seu rosto. Ela sabia o que Ana dizia. Tinha visto o rosto no espelhinho que mantinha sobre a penteadeira. As pontas dos dedos percorreram o traçado das novas rugas que surgiram nos últimos meses e sentiram a aspereza dos cabelos grisalhos nas têmporas. Ela tinha medo de se olhar no espelho a maioria das manhãs; o rosto refletido era o de uma estranha mais velha que Varina mal reconhecia. — Eu estou bem — respondeu automaticamente.

— Está mesmo? — perguntou Ana novamente. — Estas “experiências” que Karl diz que você está fazendo para tentar recriar o que Mahri podia fazer... — Ela balançou a cabeça. — Eu me preocupo com você, Varina. E Karl também.

“E Karl também...”, ela queria poder acreditar nessas palavras. — Eu estou bem — repetiu Varina.

— Eu poderia usar o Ilmodo, se você quisesse. Isso pode ajudar, se você estiver sofrendo.

— Você desobedeceria a Divolonté e me curaria? Uma ateísta? Archigos! — Varina sorriu para Ana, que devolveu o gesto.

— Eu confio a você meus segredos — disse Ana. — E a oferta continua de pé, se algum dia sentir necessidade.

— Obrigada, archigos. Não me esquecerei disso. — Ela apontou com a cabeça para os moitidis em guerra silenciosa. — É melhor eu alcançar Karl.

— Sim, é melhor. — Ana começou a fazer o sinal de Cénzi para Varina, depois se deteve. — Eu posso falar com ele.

— Archigos?

— Eu tenho olhos. Quando vejo você com ele...

Varina riu. — Você é a única que ele enxerga, archigos.

— E eu sou comprometida com Cénzi. Com ninguém mais. Não estou destinada a este tipo de relacionamento nesta vida. Eu disse isso a ele. Aprecio a amizade de Karl e tudo que ele fez por mim e por Nessântico. Eu o amo muito, mais do que um dia amei outra pessoa. Mas o que ele quer... — A cabeça acenou lentamente de um lado para outro enquanto Ana cerrava os lábios. — Você deveria dizer a ele como você se sente.

— Se eu preciso dizer a ele, então é óbvio que o sentimento não é mútuo — respondeu Varina. Ela conseguiu dar um sorriso forçado. — E estou comprometida com meu trabalho, como você é comprometida com Cénzi.

Ana deu um passo à frente e um rápido abraço em Varina. — Então Karl é um tolo por não ver como somos parecidas.

 

Audric ca’Dakwi

NEM MESMO UM KRALJIKI podia evitar ter aulas ou fazer provas para raspar qualquer essência de conhecimento grudada no interior do crânio.

Audric estava diante do Trono do Sol com as mãos entrelaçadas nas costas, voltado para seu professor, mestre ci’Blaylock. Atrás do mestre magro, frágil e sujo de giz, a plateia olhava Audric com sorrisos de incentivo: alguns chevarittai enfeitados com Medalhas de Sangue, os ca’ e co’, os cortesãos de sempre, Sigourney ca’Ludovici, e alguns outros integrantes do Conselho dos Ca’... todos aqueles que queriam que Audric notasse seu comparecimento ao exame trimestral do jovem kraljiki. Com 14 anos, Audric estava bem ciente da atenção bajuladora que recebia por conta de seu título e linhagem.

Eles não estavam aqui pelo exame; estavam aqui para serem vistos. Por ele. E apenas por ele.

Audric sentia prazer ao pensar nisto.

— Ano 471 — entoou ci’Blaylock ao erguer os olhos do púlpito carregado de papiros onde estava. — A linhagem dos kralji.

Uma pergunta fácil. Sem desafio algum. — Kraljica Marguerite ca’Ludovici — respondeu Audric rapidamente e com firmeza. Ele tossiu, então, como fazia frequentemente, e acrescentou — Também conhecida como a Généra a’Pace.

E também minha mamatarh... O retrato de Marguerite ficava pendurado no quarto de Audric. A obra era de um realismo perturbador e foi pintada pelo falecido mestre artista Edouard ci’Recroix, que também criara o grande painel de uma família de camponeses que enfeitava o próprio salão do Trono do Sol. Marguerite observava o neto toda noite, enquanto ele dormia, e dava o mesmo meio sorriso cansado e estranho toda manhã quando Audric acordava. Muitas vezes ele quis ter tido a oportunidade de conhecê-la de verdade, ele certamente já tinha ouvido muitas histórias a respeito da mamatarh. Às vezes Audric imaginava se todas elas eram verdade: na memória do povo de Nessântico, a kraljica Marguerite governou durante uma Era de Ouro, uma era de luz do sol, comparada às políticas tempestuosas do presente.

A corte sorriu e aplaudiu com educação a resposta. A maior parte da alegria era indubitavelmente motivada pelo fato de que eles finalmente se aproximavam do fim do exame, conforme o mestre ci’Blaylock descia a escada da história. Eles começaram há quase meia-virada da ampulheta, no ano 413, com o kraljiki Henri VI, o primeiro ano da linhagem ca’Ludovici, da qual o próprio Audric descendia; os espectadores ficaram de pé o tempo todo, desde então; afinal, ninguém se senta na presença do kraljiki sem permissão. Audric sabia as respostas das próximas perguntas que faltavam; e como não saberia, sendo elas tão envolvidas com a vida de sua família? Um suspiro praticamente inaudível veio da corte, juntamente com o farfalhar de tecido conforme as pessoas trocavam os pés de apoio. — Correto — disse ci’Blaylock, bufando. Ele tinha pele negra, como muitos que vinham da província de Navarro. O mestre molhou a ponta da pena no pote de nanquim do púlpito e fez uma demorada marca no papiro aberto. O traçado da pena era sonoro. As sobrancelhas brancas tremulavam sobre os olhos opacos de catarata. — Ano 485. A linhagem dos archigi.

Tosse. — Archigos Kasim ca’Velarina. — Tosse.

Mais aplausos educados, e outro mergulho e traçado da pena. — Correto. Ano 503. A linhagem dos archigi.

Audric respirou fundo e tossiu novamente. — Archigos Dhosti ca’Millac, o Anão. — Aplausos. Traço da pena. Audric ouviu as portas do fundo do salão serem abertas; o regente Sergei ca’Rudka entrou a passos largos e rápidos na direção de Audric. Apesar da idade, o regente movia-se com energia e uma postura ereta. Os cortesãos, com um olhar cauteloso, afastaram-se rapidamente para abrir caminho. O nariz artificial de prata de Sergei alternava entre brilhar e se ofuscar sob os fracos feixes de luz do sol que entravam pelas janelas.

— Correto — entoou ci’Blaylock. — Ano 521. A linhagem dos kralji.

Esta era fácil: esse foi o ano em que o vatarh de Audric assumiu o Trono do Sol, após o assassinato de Marguerite. Audric respirou fundo novamente, mas o esforço rendeu outro espasmo momentâneo de tosse preenchida pelo horrível som de líquido nos pulmões. Passada a tosse, ele empertigou-se e pigarreou. — Kraljiki Justi ca’Dakwi — disse ele para ci’Blaylock e os cortesãos. — O Grande Guerreiro — acrescentou. Esta foi a alcunha que Justi deu a si mesmo. Audric tinha ouvido as outras alcunhas dadas a Justi, que as pessoas sussurravam quando achavam que ninguém as estava escutando. Justi, o Perneta; Justi, o Incompetente; Justi, o Grande Fracasso.

Ninguém teria se atrevido a dizer essas alcunhas na cara do kraljiki quando Justi era vivo. Audric olhou para os sorrisos estampados nas caras dos ca’ e co’ e imaginou por quais alcunhas ele era chamado quando não estava presente para escutar.

Audric, o Enfermo. Audric, o Fantoche do Regente.

Novamente os espectadores aplaudiram. Sergei, de braços cruzados, não se juntou a eles. Ele observava logo atrás do mestre ci’Blaylock, que parecia sentir a pressão da presença do homem. Ele deu uma olhadela sobre seus ombros, viu o regente e tremeu visivelmente. — Hum... — O velho balançou a cabeça, olhou para o papiro, mergulhou um dedo sujo de nanquim no papel. — Ano 521. A linhagem dos archigi.

Esta era uma resposta mais longa, mas ainda fácil. — Archigos Orlandi ca’Cellibrecca, o Grande Traidor e primeiro falso archigos de Brezno. — Audric tossiu novamente e fez uma pausa para pigarrear. — Então, no mesmo ano, depois que ca’Cellibrecca traiu a fé concénziana e o kraljiki Justi em Passe a’Fiume: archigos Ana ca’Seranta, a mais jovem téni a ser nomeada archigos da história.

Ana, que ainda mantinha o título de archigos. Ana, que Audric amava como se fosse a matarh que ele jamais conhecera. Audric sorriu ao mencionar seu nome, e o aplauso que se seguiu foi genuíno — a archigos Ana era muito amada, com sinceridade, pelo povo de Nessântico.

— Correto — falou ci’Blaylock. — Também no ano 521. Guerra e política.

— A rebelião do hïrzg Jan ca’Vörl — respondeu Audric rapidamente. As guturais sílabas firenzcianas provocaram um espasmo em seus pulmões novamente. Foram necessárias várias respirações para que a tosse parasse e ele conseguisse falar novamente. — O hïrzg foi derrotado pelo kraljiki Justi na Batalha dos Brejos — disse Audric com a voz rouca, finalmente.

— Excelente! — A voz não era de ci’Blaylock, mas sim de Sergei, que aplaudiu alto e caminhou até ficar ao lado de Audric. Os cortesãos uniram-se aos aplausos com atraso e incerteza. Audric notou que Sigourney ca’Ludovici não aplaudiu, apenas cruzou os braços e o olhou intensamente. — Mestre ci’Blaylock, tenho certeza de que o senhor já ouviu o suficiente para fazer seu julgamento — continuou Sergei.

Ci’Blaylock franziu a testa. — Regente, eu não termi... — Ele parou, e Audric viu o mestre encarar a expressão fechada do regente. Ci’Blaylock pousou a pena e começou a enrolar o papiro da prova. — Sim, foi muito satisfatório. Muito bem, kraljiki, como sempre.

— Ótimo — disse Sergei. — Agora, se todos os senhores nos dão licença...

A dispensa do regente foi abrupta, mas efetiva. O mestre ci’Blaylock reuniu os papiros e mancou na direção da porta mais próxima; os cortesãos recuaram como filetes de neblina em uma manhã de sol e sorriram até virar as costas. Audric ouviu as frenéticas especulações sussurradas ao saírem do salão. Sigourney, no entanto, fez uma pausa. — É algo que o Conselho dos Ca’ deva saber? — perguntou ela para Sergei. Sigourney não olhava para Audric; era como se ele não fosse importante o suficiente para ser notado.

Sergei balançou a cabeça. — Não no momento, conselheira ca’Ludovici. Se for o caso, fique tranquila que a senhora será avisada imediatamente.

Sigourney torceu o nariz diante da resposta, mas acenou com a cabeça para Sergei e fez a mesura apropriada para Audric antes de sair do salão. Apenas alguns criados permaneceram, parados em silêncio perto das paredes de pedra cobertas por tapeçarias, enquanto dois e’ténis — sacerdotes da fé concénziana — sussurravam preces ao acender lamparinas para diminuir a luz difusa. Na parede próxima ao Trono do Sol, os rostos da família de camponeses no quadro de ci’Recroix pareciam tremer sob a luz do fogo mágico.

— Obrigado, Sergei — disse Audric. Ele tossiu e cobriu a boca com a mão fechada. — Mas você podia ter vindo meia-virada da ampulheta mais cedo e me poupado de todo esse martírio.

Sergei deu um sorriso irônico. — E encarar a fúria do mestre ci’Blaylock? Nem pensar. — Ele fez uma pausa, e as rugas em volta do nariz de metal adquiriram uma expressão séria. — Eu teria estado aqui mais cedo para ouvir sua prova, kraljiki, mas acabei de receber uma mensagem de um contato em Firenzcia. Há notícias que acho que o senhor deve ouvir antes do Conselho: o hïrzg Jan de Firenzcia está em seu leito de morte. Não esperam que ele sobreviva além desta semana. Pode ser que já esteja morto, pois a mensagem é de dias atrás.

— Então o a’hïrzg Fynn se tornará o novo hïrzg? Ou Allesandra irá se contrapor à ascensão do irmão?

O sorriso irônico de Sergei voltou momentaneamente. — Ah, então o senhor presta mesmo atenção nos meus relatórios. Que bom. Isto é bem mais importante do que as aulas do mestre ci’Blaylock. — Ele meneou a cabeça. — Duvido que Allesandra vá protestar. Ela não tem apoio suficiente entre os ca’ e co’ de Firenzcia para contestar o testamento do hïrzg Jan.

— Qual dos dois nós preferiríamos?

— Nossa preferência seria por Allesandra, kraljiki. Após uma década ou mais que ela passou aqui, à espera que o hïrzg Jan pagasse seu resgate, nós a conhecemos muito mais. A archigos Ana sempre teve um bom relacionamento com ela, e Allesandra é bem mais favorável aos Domínios. Se ela se tornasse a hïrzgin... bem, talvez houvesse alguma esperança de reconciliação entre os Domínios e a Coalizão. Poderia até mesmo haver uma pequena possibilidade de que conseguíssemos voltar a como as coisas eram na época de sua mamatarh, com o senhor no Trono do Sol sob os Domínios reunificados. Mas com Fynn como hïrzg... — Sergei meneou a cabeça outra vez. — Fynn puxou ao vatarh, tão belicoso e teimoso quanto ele. Se Fynn for hïrzg, teremos de vigiar nossa fronteira oriental com atenção, o que significa ter menos recursos à disposição para a guerra nos Hellins, infelizmente.

Audric curvou-se com outro acesso de tosse, e Sergei colocou a mão com gentileza em seu ombro. — Sua tosse está piorando novamente, kraljiki. Mandarei os curandeiros fazerem outra poção para o senhor, e talvez a archigos Ana faça uma visita amanhã, depois da cerimônia do Dia do Retorno. É um pouco cedo, mas com as chuvas do mês passado...

— Eu estou melhor agora — disse Audric. — É apenas o ar úmido aqui no salão. — A e’téni mais próxima interrompeu o cântico, as mãos ficaram paralisadas em meio à moldagem do Ilmodo – a energia que abastecia sua magia. Ela era uma jovem moça não muito mais velha que Audric e ficou vermelha quando se vira notada pelo kraljiki, rapidamente afastou o olhar e recomeçou o cântico: a lamparina presa no alto da parede foi acesa quando as mãos realizaram o gestual do Ilmodo abaixo dela.

O peito de Audric começava a doer com o esforço da tosse. Ele odiava ficar doente, mas parecia estar sempre assim desde que se entendia por gente. Se uma doença fosse contraída pelo corpo de funcionários do palácio, certamente ele pegaria; Audric sofria constantemente de acessos de tosse e de uma dificuldade para respirar. Qualquer esforço físico rapidamente deixava o kraljiki exausto e ofegante. Entretanto, de alguma maneira Cénzi o protegera de um surto de febre do sol aos quatro anos de idade, embora a doença tenha levado sua irmã mais velha, Marguerite, batizada em homenagem à famosa mamatarh e preparada para ser a kraljica quando o vatarh deles morresse. O funeral oficial da irmã — uma cerimônia longa e triste — foi uma de suas primeiras memórias.

Deveria ser Marguerite aqui, agora, não ele. Audric tinha esperanças de que isso significasse que Cénzi tinha um plano para ele.

Ele respirou fundo e desta vez prendeu a tosse que ameaçava surgir. — Pronto, viu só? É só o ar úmido e ter que responder a todas aquelas malditas perguntas do mestre.

— Ao menos as perguntas do mestre têm respostas definitivas. As soluções para um kraljiki raramente são claras, como o senhor já sabe. — Sergei colocou o braço em volta de Audric, que se apoiou no abraço do homem. “Confie em ca’Rudka como seu regente”, sussurrara seu vatarh deitado na cama durante aquele último dia. “Confie nele como você confiaria em mim...”

A verdade era que Audric nunca confiou totalmente em seu vatarh, cujo temperamento e favoritismo eram, na melhor das hipóteses, inconstantes. Mas Sergei... Audric achava que o homem tinha sido a última boa escolha de seu vatarh. Sim, ele podia sofrer cada vez mais nas mãos do regente conforme se aproximava da maioridade, podia se irritar com as pessoas às vezes tratando Sergei como se ele fosse o kraljiki, mas Audric não podia ter pedido um aliado mais leal nos ventos caóticos da corte do kraljiki.

Não importava o que os cortesãos murmuravam a respeito do regente. Não importava o que o homem fazia nas masmorras da Bastida ou com as grandes horizontales que ele às vezes levava para a cama.

— Imagino que devemos redigir um comunicado pela morte do hïrzg — falou Audric. — E que devemos ouvir dez conselheiros diferentes pedindo que respondam de vinte maneiras diferentes. E mais dez assessores que nos dirão o que precisamos fazer a respeito dos Hellins no oeste.

Sergei riu. Seu braço estreitou-se em volta do ombro de Audric, depois soltou o kraljiki e esfregou o nariz de prata como se tivesse sentido uma coceira. — Sem dúvida. Eu diria que o senhor aprendeu muito bem todas suas lições, kraljiki.

 

Sergei ca’Rudka

SUA AUGUSTA PRESENÇA, o kraljiki Audric, curvou-se em sua cadeira elevada e estofada ao lado de Sergei e tossiu tão desesperadamente que o regente inclinou seu corpo na direção do garoto. — O senhor precisa de um pouco do xarope do curandeiro, kraljiki? Eu mando um dos criados trazer aqui... — Ele começou a gesticular, mas Audric pegou seu braço.

— Espere, Sergei. Vai passar — disse Audric ao tomar fôlego três vezes. Espere, Sergei (fôlego). Vai (fôlego) passar... O mero esforço de segurar o braço de Sergei deixou o garoto visivelmente cansado.

Sergei esfregou a superfície reluzente do nariz falso grudado em seu rosto; o original fora perdido há décadas em uma luta de espada na juventude. — O senhor prefere retornar ao palácio, kraljiki? A fumaça dos incensários e o incenso não devem fazer bem para seus pulmões, e a archigos entenderá. De qualquer maneira, ela visitará o senhor assim que terminar aqui.

— Nós ficaremos, Sergei. É aqui que devo estar. — Nós ficaremos (fôlego) Sergei (fôlego, tosse, fôlego). É aqui (fôlego) que devo (fôlego) estar...

Sergei concordou com a cabeça. Quanto a isso, o garoto estava certo. Os dois estavam sentados na sacada real do Templo da Archigos, na margem sul do rio A’Sele, em Nessântico. Embaixo, o piso principal do templo estava lotado de devotos para o Dia do Retorno. A archigos Ana estava com vários a’ténis no coro do templo. Seu cabelo, com mechas grisalhas nas têmporas, reluzia sob a luz das lamparinas mágicas, a voz forte e possante recitava os trechos do Toustour. O Dia do Retorno era a cerimônia do solstício da primavera, que preparava os fiéis para o eventual retorno de Cénzi ao mundo que Ele criara. Comparecer era dever do kraljiki Audric, e era por isso que o templo estava com todos os cantos absolutamente lotados de chevarittai, dos ca’ e co’, de famílias de menor status que conseguiram se enfiar nos espaços que sobraram; todo mundo estava lá para ver o jovem kraljiki e talvez também para ser visto por ele: atrás de um pedido, de uma requisição, ou talvez porque o kraljiki ainda não fosse comprometido com ninguém, apesar dos insistentes rumores de que o regente tinha a intenção de fazer um arranjo com uma das grandes famílias dos Domínios.

Eles também deviam ter notado as tosses fortes e secas do kraljiki, que pontuavam a leitura da archigos Ana. Até mesmo ela parou uma vez no meio da recitação para erguer o olhar com preocupação e solidariedade na direção da sacada. A archigos acenou com a cabeça de maneira praticamente imperceptível para Sergei, e o regente soube que ela correria para o palácio depois da cerimônia. Sergei inclinou o corpo novamente e sussurrou no ouvido do garoto. — A archigos prometeu fazer uma visita após terminarmos aqui e rezar pelo senhor. Ela sempre o ajuda, eu sei. O senhor conseguirá aguentar essa crise sabendo que se sentirá melhor em breve.

Audric concordou com a cabeça, de olhos arregalados, e conteve outra tosse com um lenço perfumado. Sergei perguntou-se se Audric sabia — tanto quanto ele — que a razão pela qual as “preces” da archigos o ajudavam tanto era que Ana usava suas habilidades com a magia do Ilmodo para curar os pulmões arruinados de Audric, o que ia contra as leis da Divolonté que governavam a fé concénziana. Era algo que Ana fazia desde pouco depois do nascimento de Audric, quando ficou claro que a vida do menino estava em perigo. Ela fizera praticamente a mesma coisa pela mamatarh de Audric, a tão lastimada kraljica Marguerite, em seus últimos dias, mantendo a soberana viva quando ela teria morrido sem interferência.

Fazia um mês desde a última visita da archigos Ana com este objetivo; era óbvio que a doença do garoto retornou mais uma vez, como sempre fazia, inevitavelmente. Audric dobrou o lenço e guardou novamente na bashta; Sergei viu manchinhas vermelhas no linho. Não falou nada, mas decidiu que mandaria um recado para Ana dizendo que, em vez de ela ir ao palácio, eles a encontrariam imediatamente depois da missa, nos aposentos da archigos. O garoto precisava de cuidados rapidamente.

Sergei recostou-se na cadeira quando a archigos Ana foi até o Alto Púlpito para proferir a Admoestação para o público, enquanto o coro na galeria começava um hino de Darkmavis. Os ca’ e co’ agitaram-se em suas roupas elegantes. Sergei viu Karl ca’Vliomani acenar com a mão para ele perto da lateral do templo — ca’Vliomani, embaixador da Ilha de Paeti e da facção dos numetodos, não era um fiel, mas Sergei sabia que o embaixador e a archigos Ana tinham sido, se não amantes de fato, ao menos amigos e confidentes desde antes da Batalha dos Brejos, há 24 anos. Durante aquele combate, a jovem archigos Ana usou tanto a magia dos numetodos quanto a própria para tirar a a’hïrzg Allesandra de Firenzcia de seu vatarh e mantê-la como refém contra a retirada do hïrzg. O plano funcionou, embora Firenzcia e os países vizinhos tenham se separado dos Domínios como resultado das hostilidades e tenham formado a Coalizão Firenzciana.

Sergei viu-se considerando, novamente, se a derrota das forças firenzcianas nas mãos de Ana foi realmente o triunfo que todos eles pensavam, se não teria sido melhor para os Domínios que o hïrzg Jan tivesse tomado a cidade e se tornado kraljiki. Se isso tivesse ocorrido, tanto Ana quanto o próprio Sergei estariam mortos, mas muito provavelmente haveria apenas os Domínios, e nenhuma Coalizão rival. Haveria apenas uma fé concénziana. Se isso tivesse ocorrido, o então novo kraljiki teria lidado plenamente com o levante dos ocidentais em Hellins com todos os recursos da Garde Civile, e sem ter que se preocupar com o que poderia acontecer no leste.

Se isso tivesse ocorrido, Justi então, o Tolo Perneta, jamais teria se tornado kraljiki e Audric nunca teria sido seu herdeiro, e Nessântico prosperaria em vez de definhar.

Sergei, francamente, nunca esperou que a archigos Ana fosse capaz de manter o título — ela fora muito jovem e inocente, mas o fogo da Batalha dos Brejos forjou o espírito de aço dentro dela. Ana provou ser mais forte do que qualquer a’téni que pudesse ter tentado tomar seu lugar, mais forte do que o archigos rival em Brezno, e certamente mais forte do que o kraljiki Justi, que acreditou que poderia controlar a Fé através dela.

No fim das contas, Jan não foi capaz de dominar nada: nem Ana, nem a Fé, nem os Domínios. Enquanto Ana fora bem-sucedida de maneira surpreendente como archigos, Justi fora uma catástrofe como kraljiki.

Justi, o Perneta, gastou em duas décadas o que sua matarh e os kralji antes dela levaram mais de cinco séculos para criar, e coube a nós pagar por sua incompetência com os Domínios e a Fé rompidos em facções orientais e ocidentais. E agora os problemas nos Hellins complicam a questão, ao mesmo tempo em que temos um menino no Trono do Sol que pode não viver para gerar um herdeiro.

Sergei suspirou e fechou os olhos enquanto ouvia o coral. Ele iria à Bastida amanhã de manhã e aplacaria suas preocupações com dor. Encontraria alívio nos gritos. Sim, isto seria ótimo. Os acordes finais flutuavam reluzentes na mente do regente, e ele ouviu a archigos subir os degraus do Alto Púlpito.

Sergei se lembraria do momento seguinte pelo resto da vida.

Uma luz violenta e impossível surgiu, como se Cénzi tivesse mandado um raio dos céus através do domo dourado acima. A luz intensa penetrou as pálpebras fechadas de Sergei; um trovão rugiu em seus ouvidos, e uma onda de choque bateu em seu peito. Por instinto, o regente jogou-se sobre Audric, derrubou o garoto no chão da sacada e cobriu o corpo do kraljiki com o próprio corpo. As velhas juntas reclamaram pelo movimento repentino e pelo abuso. Ele ouviu a respiração ofegante de Audric; também ouviu gritos e lamentos vindos de baixo, cortados pelo berro abalado e horrorizado de Karl ca’Vliomani, que ecoou mais alto do que todos eles: — Ana! Ana! Nãoooooo!

— Kraljiki! Regente! — Mãos puxaram e levantaram Sergei, um quarteto da Garde Kralji, cujo dever era proteger o kraljiki e o regente. Uma nuvem de poeira surgiu dentro do templo, e Sergei piscou em meio à poeira; ele mesmo quase não conseguia respirar. O regente ouviu a tosse desesperada de Audric. O templo fedia a enxofre.

— Você e você, escoltem o kraljiki para fora daqui e de volta para o palácio, imediatamente — disse Sergei ao apontar os dedos para os gardai. — Vocês dois, venham comigo.

Sergei desceu correndo a escada da sacada, flanqueado por gardai com espadas desembainhadas e empurrando quem estivesse no caminho. As pessoas gritavam e berravam, ele ouviu os gemidos e ganidos estridentes dos feridos. O regente foi forçado a mancar, pois o joelho direito estava ferido e inchou rapidamente; ele levou muito tempo para descer a escada enquanto agarrava o corrimão a cada degrau. Lá embaixo, tudo era confusão.

— Regente! Aqui! — Aris co’Falla, o comandante da Garde Kralji, fez um gesto acima das cabeças para Sergei enquanto os gardai empurravam a multidão. O barulho de dor e sofrimento era enorme, e o regente notou vários rostos e braços ensanguentados. A fachada do templo estava cheia de pedras quebradas e madeira estilhaçada; ele notou vários corpos nos escombros.

Um dos corpos usava o robe da archigos. Sergei perdeu o fôlego, que foi substituído por uma raiva fria. — Comandante, o que aconteceu aqui?

Co’Falla balançou a cabeça. — Eu não sei, regente. Não ainda. Eu assistia à cerimônia próximo à saída do templo. Quando a archigos chegou ao Alto Púlpito... Eu nunca tinha visto algo assim, regente. Foi alguma espécie de feitiço, tenho quase certeza, mas algo que um téni-guerreiro faria. O clarão, o barulho, a pedra e a madeira e... — Ele franziu a testa. — ... outras coisas voaram para todos os lados. A explosão pareceu ter vindo debaixo do Alto Púlpito. Há pelo menos meia dúzia de mortos, e muitos mais feridos, alguns gravemente...

O regente gemeu pela dor no joelho ao se ajoelhar ao lado do corpo de Ana. O rosto estava praticamente irreconhecível, ela perdera a metade inferior do corpo completamente e o braço direito. Sergei soube imediatamente que Ana estava morta, que não havia esperança ali. Uma estranha poeira negra cobria o chão em volta dela. Ele virou o rosto e viu Karl ca’Vliomani sendo contido pelos gardai, com o rosto em pânico e a bashta coberta de pó. Sergei ficou de pé devagar e fez uma careta quando os joelhos estalaram. — Cubra a archigos e os outros corpos — falou o regente para co’Falla. — Tire todo mundo do templo, a não ser os ténis e os gardai. Mande chamar o comandante co’Ulcai da Garde Civile se precisar de mais ajuda. — Ele estremeceu ao respirar. — E deixe o embaixador vir até mim.

Co’Falla meneou a cabeça e deu as ordens. Ca’Vliomani disparou imediatamente na direção do corpo de Ana, Sergei interceptou o embaixador. — Não — ele disse para Karl ao agarrar seus ombros. — Ela morreu, Karl. Não há nada que você possa fazer. Nada.

Ele sentiu o homem desmoronar e ouviu um soluço. — Sergei, eu tenho que vê-la. Por favor. Eu preciso saber. — Seu olhar estava abalado, e subitamente Karl ca’Vliomani pareceu décadas mais velho. O sotaque de Paeti, que o embaixador jamais perdeu, apesar dos anos em Nessântico, ficou mais forte do que nunca nesse momento.

— Não, você não precisa, meu amigo — insistiu Sergei. — Por favor, me ouça. Você não quer que esta seja a última imagem que tem dela. Você não quer isso. De verdade. Eu digo isso pelo seu bem.

Então ca’Vliomani começou a chorar, e Sergei segurou o embaixador enquanto os gardai se movimentavam em volta deles, conforme os ténis do templo — calados pelo choque e horror — cuidavam dos mortos e feridos, e a poeira negra assentava-se sobre eles e ao redor deles, e o rugido do feitiço ecoava eternamente nos ouvidos de Sergei.

Ele achava que jamais se esqueceria daquele som e perguntou-se o que ele anunciava: para si próprio, para Audric, para a fé concénziana, para Nessântico.

 

Nico Morel

NICO TOMOU UM PEQUENO GOLE DO CHÁ que sua matarh colocara diante dele, com a caneca de madeira nas duas mãos pequenas. — Matarh, por que alguém iria querer matar a archigos Ana?

— Eu não sei, Nico — respondeu ela, que colocou uma fatia de pão e alguns pedaços de queijo diante do filho, na mesa arranhada perto da janela. A mulher afastou as mechas do cabelo castanho de sua testa e olhou pelas persianas abertas para a rua estreita do lado de fora. — Eu não sei — repetiu. — Só torço...

— A senhora torce para que, matarh?

Ela balançou a cabeça. — Por nada, Nico. Ande, coma.

Eles compareceram à cerimônia do Dia do Retorno no Parque do Templo, à distância de uma longa caminhada de seu apartamento no Velho Distrito. Nico sempre gostava quando eles iam ao Parque do Templo, pois o espaço verde e aberto contrastava bastante com as ruas sujas e apinhadas de gente do labirinto do Velho Distrito. Bem na hora em que saíam do parque, eles ouviram as trompas começarem a soar, e então os rumores se espalharam pela multidão como fogo em um campo seco de verão: a archigos tinha sido morta. Por magia, diziam alguns. Magia terrível, como a que os hereges numetodos sabiam fazer, ou talvez um téni-guerreiro.

Nico chorou um pouco, porque todo mundo chorava, e sua matarh pareceu preocupada. Eles voltaram correndo para casa.

Certa vez, a matarh de Nico atravessou a Pontica Mordei na direção da a Ilha A’Kralji com o filho, e eles viram o terreno do palácio do regente e do Velho Templo, o primeiro construído em Nessântico. Nico ficou maravilhado com o novo domo que estava sendo construído no topo do Velho Templo, com as fileiras de andaimes que alçavam os trabalhadores tão alto no céu, de maneira impossível. Nico ficou tonto só de vê-los.

Depois, eles passaram pela Pontica a’Brezi Nippoli na direção da margem sul, onde a maioria dos ca’ e co’ viviam. Nico atravessou com sua matarh o grande complexo do Templo da Archigos e viu a archigos em pessoa: uma figura minúscula de verde em uma das janelas dos prédios ligados ao enorme templo que acenava para a multidão na praça.

Agora ela estava morta. Algo fácil de imaginar. A morte era totalmente comum; Nico costumava vê-la nas ruas, e a viu visitar a sua própria família. A matarh disse que Ana era a archigos desde quando ela era um bebê, e a matarh tinha 28 anos — praticamente uma anciã, portanto, não chegava a ser uma surpresa que a archigos morresse. Nico mal se lembrava de sua mamatarh, que morreu quando ele tinha cinco anos. Talvez ela fosse tão velha quanto a archigos Ana. Nico lembrava-se muito do irmão mais velho, que morreu de febre do sul há quatro anos. A matarh disse que houve outro irmão, ainda mais velho, que também morreu, mas Nico não se lembrava dele. Havia Fiona, a irmã que nascera primeiro — Nico não sabia se ela ainda estava viva, embora sempre tenha imaginado que estivesse; ela fugira aos 12 anos, há quase três anos agora. Talis vivia com eles — Talis vivia com a matarh desde que Nico se entendia por gente, mas Fiona dissera a ele que nem sempre foi assim, que houve outro homem antes de Talis, que era o vatarh de Fiona e de seus irmãos. Ela dissera que Talis era o vatarh de Nico, mas que nunca quis ser chamado assim.

Nico sentia saudade de Fiona. Ele às vezes imaginava que a irmã tinha ido para outra cidade e ficado rica. Gostava de pensar assim, às vezes. Sonhava com o retorno de Fiona a Nessântico com um ce’ ou até mesmo um ci’ antes do nome, e ele abriria a porta para vê-la sorrindo com uma tashta limpa e muito colorida. — Nico — diria a irmã. — Você, a matarh e Talis vão morar comigo...

Talvez Nico saísse de casa quando tivesse 12 anos também, daqui a dois anos. Nico notou as rugas marcadas no rosto da matarh enquanto ela olhava para a rua lá fora. O cabelo nas têmporas tinha mechas grisalhas. — A senhora está esperando por Talis? — perguntou ele.

Nico viu a testa franzida, depois o sorriso quando ela se virou para ele. — Apenas coma, querido. Não se preocupe com Talis. Ele vai chegar em breve.

Nico concordou com a cabeça enquanto roía a crosta dura do pão quase velho e tentava evitar o molar solto no fundo da boca que ameaçava cair, o último dos dentes de leite. Ele não estava preocupado com Talis, apenas com o dente. Não queria perdê-lo, uma vez que, se perdesse, a matarh mandaria que ele esmagasse o dente com um martelo até virar pó, e isso era muito trabalhoso. Quando Nico terminasse, ela o ajudaria a salpicar o pó em um pouco de pão umedecido com leite, e os dois colocariam o pão do lado de fora da janela ao lado de sua cama. À noite, ele ouviria os ratos e camundongos comerem a oferenda e correrem de um lado para o outro lá fora. De manhã, o prato estaria vazio; a matarh dizia que isso significava que seus novos dentes cresceriam tão fortes quanto os dentes de um rato.

Nico já tinha visto o que os ratos conseguiam fazer com os dentes. Eles podiam arrancar a carne de um gato morto em poucas horas. Nico torcia para que seus dentes ficassem fortes assim. Ele meteu o indicador na boca e mexeu no dente, sentiu que balançava facilmente para trás e para frente nas gengivas. Se puxasse com força, o dente sairia...

— Serafina?

Nico ouviu Talis chamar sua matarh. Ela correu até ele e os dois se abraçaram logo após Talis fechar a porta ao entrar.

— Eu estava preocupada — disse sua matarh. — Quando soube...

— Shh... — falou Talis ao dar um beijo na testa de Serafina. Seu olhar estava voltado para Nico, que observava os dois. — Ei, Nico. Sua matarh levou você ao Parque do Templo hoje?

— Sim — respondeu Nico. O menino se aproximou dos dois e se esgueirou em sua matarh, de maneira que ela passasse o braço por ele. Nico torceu o nariz e ergueu os olhos para o homem. — Você está com um cheiro esquisito, Talis.

— Nico... — A matarh começou a falar, mas Talis riu e mexeu no cabelo de Nico. O menino odiava que ele fizesse isso.

— Tudo bem, Serafina — disse Talis. — Não se pode culpar o menino por ser honesto. — Ele não falava como as outras pessoas do Velho Distrito; Talis pronunciava as palavras de um modo esquisito, como se a língua não gostasse do sabor das sílabas, então ele as cuspia o mais rápido possível em vez de falar com calma, como a maioria das pessoas fazia. Talis agachou-se próximo a Nico e disse — Eu passei por um incêndio a caminho daqui. Havia muita fumaça preta. Os ténis-bombeiros apagaram o fogo, contudo.

Nico assentiu com a cabeça, embora achasse que Talis não cheirava exatamente à fumaça. O odor era mais intenso e pungente. — A archigos Ana morreu, Talis — falou o menino.

— Foi o que eu ouvi — respondeu Talis. — O regente vai varrer a cidade à procura de um bode expiatório para culpar. É hora de os estrangeiros não chamarem atenção se quiserem continuar a salvo. — Ele parecia falar mais para a matarh de Nico do que para o menino, os olhos erguidos na direção dela.

— Talis... — A matarh sussurrou o nome da mesma maneira que às vezes dizia o de Nico quando o menino estava doente ou tinha se machucado. Talis ficou de pé novamente e a abraçou. — Vai ficar tudo bem, Sera. — Nico ouviu Talis sussurrar para ela. — Eu prometo.

Enquanto ouvia Talis, Nico empurrou o dente solto com a língua. Ele escutou um estalinho e sentiu gosto de sangue.

— Matarh, meu dente caiu...

 

Allesandra ca’Vörl

— MATARH?

Allesandra ouviu o chamado, seguido por uma batida hesitante na porta. Seu filho, Jan, estava parado na porta aberta. Aos 15 anos, quase 16, ele era magricelo e desajeitado. Somente nos últimos meses o corpo começara a se transformar no de um jovem, com uma bela penugem no queixo e debaixo dos braços. Ele ainda era bem mais baixo do que as meninas da mesma idade, muitas das quais tiveram a primeira menarca no ano anterior. Batizado com o nome do vatarh de Allesandra, ela enxergava algumas características dele no filho, mas também havia um forte traço da família ca’Xielt — a família de Pauli. Jan tinha a cor da pele mais escura dos magyarianos, os olhos negros e o cabelo encaracolado quase preto de seu vatarh. Ela duvidava que algum dia o filho teria a musculatura mais parruda dos ca’Belgradin, como a de seu onczio Fynn, que o vavatarh Karin e o vatarh Jan de Allesandra também possuíram.

Ela, às vezes, tinha dificuldade em imaginar o filho galopando loucamente para entrar em combate — embora Jan cavalgasse tão bem quanto qualquer pessoa e possuísse a visão aguçada que um arqueiro invejaria. Ainda assim, ele geralmente parecia mais à vontade com pergaminhos e livros do que com espadas. E, apesar da linhagem paterna, apesar do ato (por puro dever) que o produziu, apesar do mau humor e da raiva mal contida que pareciam consumi-lo ultimamente, Allesandra amava o filho mais do que pensou ser possível amar alguém.

E ela temeu, especialmente no ano anterior, que estivesse perdendo Jan, que ele pudesse estar cedendo à influência de Pauli. Ele esteve ausente na maior parte da vida do filho, mas talvez essa fosse a sua vantagem: era mais fácil não gostar do vatarh ou da matarh que estava sempre corrigindo; admirar aquele ou aquela que deixava fazer o que quisesse. Houve aquele incidente com a funcionária, e Allesandra precisou mandá-la embora — aquilo foi bem parecido com Pauli.

— Entre, querido — chamou Allesandra.

Jan aquiesceu sem sorrir, foi até a penteadeira onde ela estava sentada e encostou os lábios no topo da cabeça da matarh, um beijo discretíssimo, enquanto as mulheres que ajudavam Allesandra a se vestir se afastavam em silêncio. — O onczio Fynn mandou que eu buscasse a senhora — falou Jan. — Evidentemente chegou o momento. — Uma pausa. — E evidentemente eu sou pouco mais do que um criado para ele. Apenas um traste magyariano que serve para levar recados.

— Jan! — disse Allesandra com rispidez. Ela apontou para as aias com o olhar. Todas eram magyarianas ocidentais, parte da comitiva que veio de Malacki com Jan.

Ele deu de ombros, sem se importar. — A senhora vem, matarh, ou vai me mandar de volta para Fynn com sua própria resposta, como se eu fosse um bom menininho de recados?

Você não pode responder aqui do jeito que quer. Não onde tudo o que nós dissermos possa virar fofoca na corte hoje à noite. — Estou quase pronta, Jan. — Allesandra gesticulou. — Vamos descer juntos, uma vez que você já está aqui. — As aias voltaram, uma escovou o cabelo dela, outra colocou no pescoço
o colar de pérolas que antigamente fora de sua matarh Greta, e mais uma ajustou as dobras da tashta. Allesandra passou outro colar para a aia: um globo partido em uma corrente elegante, com continentes de ouro, mares do mais puro lápis-lazúli, e a fenda cheia de rubis nas profundezas: o globo de Cénzi. A archigos Ana dera o colar para Allesandra quando ela teve a primeira menarca, em Nessântico.

— Isto antigamente pertencia ao archigos Dhosti — dissera Ana para ela. — Ele deu para mim; agora eu dou para você. — Allesandra tocou o globo enquanto a criada o prendia em seu pescoço e lembrou-se de Ana: o som da voz, seu cheiro.

— Todo mundo vive me dizendo que o onczio Fynn dará um belo hïrzg — disse Jan, e a lembrança foi interrompida.

— Eu sei. — Allesandra começou a dizer. E por que você esperaria outra coisa?, ela queria acrescentar. Jan entendia muito bem a etiqueta da corte para saber disso.

Evidentemente ele viu o comentário implícito no rosto da matarh. — Eu não tinha terminado. Eu ia dizer que a senhora daria uma hïrzgin melhor. Era a senhora que deveria usar a coroa e o anel, matarh.

— Quieto — falou Allesandra novamente para Jan, embora com mais gentileza desta vez. As aias eram dela, era verdade, mas nunca se sabia. Segredos podiam ser comprados ou arrancados pelo amor ou pela dor. — Nós não estamos em casa, Jan. Você tem que se lembrar disso. Especialmente aqui...

A expressão mal-humorada de Jan foi desfeita por um momento, e ele pareceu tão arrependido que toda a irritação de Allesandra passou. Ela fez um carinho no braço do filho. Era assim com Jan nos últimos tempos: cara fechada em um instante e sorrisos afetuosos no próximo. No entanto, as caras fechadas apareciam mais frequentemente conforme a criança amorosa dentro dele recuava cada vez mais fundo no interior da nova carapaça adolescente. — Tudo bem, Jan. Apenas... bem, você tem que tomar muito cuidado enquanto estivermos aqui. Sempre. — E especialmente com Fynn. Ela tirou a ideia da cabeça. Diria para Jan mais tarde. Em particular. Allesandra ficou de pé e as criadas foram embora, como folhas no outono. Ela abraçou Jan: ele permitiu o gesto, e nada mais, os próprios braços mal se mexeram. — Tudo bem, vamos descer agora. Lembre-se de que você é o filho do a’gyula da Magyaria Ocidental, e também o filho da atual a’hïrzg de Firenzcia.

Fynn dera o título a Allesandra ontem, após a morte do vatarh: o título que deveria ter sido dela desde o início, que a teria tornado hïrzgin. Ela sabia que até mesmo este presente era temporário, que Fynn nomearia outra pessoa como a’hïrzg com o tempo: o próprio filho, talvez, se algum dia ele se casasse e produzisse um herdeiro, ou algum protegido da corte. Allesandra seria a herdeira de Fynn até ele encontrar alguém de quem gostasse mais.

— Matarh — interrompeu Jan. Ele bufou bem alto, e a cara fechada voltou. — Eu conheço o sermão. “Os olhos e ouvidos dos ca’ e co’ estarão em você.” Eu sei. A senhora não precisa me dizer. De novo.

Allesandra gostaria de poder acreditar nisso. — Tudo bem — falou baixinho. — Vamos descer então e ficar com o novo hïrzg enquanto sepultamos seu vavatarh.

Com a morte do hïrzg Jan, foi proclamado o obrigatório mês de luto e marcadas uma dúzia de cerimônias necessárias. O novo hïrzg, Fynn, presidiria vários rituais nas próximas semanas: alguns apenas para os ca’ e co’, outros para o benefício moral do público. O Besteigung formal, o ritual final, aconteceria no fim do mês, no Templo de Brezno, presidido pelo archigos Semini — marcado assim para dar tempo de os líderes dos outros países da Coalizão Firenzciana chegarem a Brezno para prestar homenagem ao novo hïrzg. Allesandra já havia sido informada de que o a’gyula Pauli chegaria para o Besteigung, pelo menos — ela já estava apreensiva pela chegada do marido.

E hoje à noite... hoje à noite era o Confinamento.

Os kralji queimavam os mortos; os hïrzgai os enterravam. O corpo do hïrzg Jan seria enterrado na catacumba dos ca’Belgradins, onde várias gerações de seus ancestrais estavam sepultadas, e um punhado ou mais destes antecessores dividiram com Jan a coroa dourada que agora estava na cabeça de Fynn. Fynn aguardava Allesandra e Jan nos próprios aposentos; dali, eles desceriam para as catacumbas abaixo do piso térreo do Palácio de Brezno. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos e outros nobres de Firenzcia já esperavam por eles lá.

Os salões do palácio estavam em silêncio, os criados que Jan e Allesandra viram pararam o que faziam e curvaram-se calados com os olhos abaixados conforme eles passavam. Dois gardai parados do lado de fora dos aposentos de Fynn abriram as portas quando eles se aproximaram. Allesandra ouviu vozes vindo do interior quando ela e o filho entraram.

— ... acabo de receber notícias de Gairdi. Isto vai complicar a situação. Não sabemos exatamente o quanto, ainda... — O archigos Semini ca’Cellibrecca parou no meio da frase assim que Allesandra e Jan entraram na sala. O homem sempre trouxera a imagem de um urso à mente de Allesandra, desde quando ela era uma criança, e ele, um jovem téni-guerreiro em ascensão: mesmo quando moço, Semini era enorme, peludo e perigoso. A barba negra agora estava salpicada de branco, e a massa de cabelo encaracolado recuava na testa como uma maré lenta, mas ele ainda era parrudo e musculoso. O archigos fez o sinal de Cénzi para Jan e Allesandra, com as mãos entrelaçadas na testa, enquanto sua esposa, Francesca, fazia o mesmo atrás dele. Disseram para Alle-sandra que antigamente Francesca era linda; na verdade, havia rumores de que ela um dia fora amante de Justi, o Perneta, mas Allesandra não a conhecia na época. Agora Francesca era uma matrona corcunda sem vários dentes, com o corpo arrasado pelos rigores de uma dezena de gestações ao longo dos anos. A personalidade era tão amarga quanto o rosto.

Fynn levantou-se da cadeira.

— Irmã — disse ele enquanto pegava as mãos de Allesandra ao ficar diante dela. Fynn sorria, parecia quase exultante. — Semini acabou de trazer notícias interessantes de Nessântico. A archigos Ana foi assassinada.

Allesandra engasgou, sem conseguir esconder sua reação. As mãos se dirigiram para o pingente com o globo partido no pescoço, então ela se forçou a abaixá-las. A sensação era de que não conseguiria respirar. — Assassinada? Por quem...? — Allesandra parou e olhou para Semini, que também sorria, quase presunçoso, pensou ela, e depois se voltou para o irmão. — Fomos nós? — perguntou. A voz saiu afiada como uma adaga. Ela sentiu Jan colocar a mão em seu ombro por trás ao sentir sua angústia.

Fynn deu um muxoxo de desdém e perguntou — Isso faria diferença?

— Sim — disse Allesandra para ele. — Apenas um tolo pensaria o contrário. — As palavras saíram antes que ela conseguisse impedi-las. E bem depois que acabei de alertar Jan...

Fynn fechou a cara diante do insulto implícito. A mão de Jan apertou o ombro de Allesandra. Semini pigarreou alto antes que Fynn pudesse falar.

— Isso não foi obra do hïrzg, Allesandra. — Semini respondeu rapidamente enquanto balançava a cabeça e abanava a mão com desdém. — Firenzcia pode estar em desacordo com a Fé em Nessântico, mas o hïrzg não participa de assassinatos. Nem a Fé.

Ela olhou de Semini para Francesca. A mulher afastou o olhar rapidamente, mas não tentou esconder a satisfação no rosto. O prazer com a notícia era óbvio. A mulher tinha tanto calor humano quanto o inverno de Boail. Allesandra perguntou-se se algum dia Semini gostou dela ou se o casamento entre os dois era tão sem amor e premeditado quanto o seu, apesar dos vários filhos do casal. Allesandra não conseguia imaginar se submeter ao prazer de Pauli com tanta frequência. — Temos certeza de que esta informação é verdadeira? — perguntou ela para o archigos.

— Ela veio até mim por três fontes diferentes, uma em que confio implicitamente, o comerciante Gairdi, e todas concordam nos detalhes básicos — falou Semini. — A archigos Ana realizava a missa do Dia do Retorno quando houve uma explosão. “Como o feitiço de um téni-guerreiro”, todos dizem, o que quer dizer que foi alguém usando o Ilmodo. Isso está claro.

— O que também quer dizer que eles podem se voltar para o leste, em nossa direção — disse Fynn. Ele parecia ávido pela ideia, como se estivesse ansioso para convocar o exército de Firenzcia para a batalha. Isso seria a cara dele; Allesandra ficaria terrivelmente surpresa se o reinado de Fynn fosse pacífico.

— Ou eles se voltarão para o oeste — argumentou Allesandra, e Fynn olhou para a irmã como se ela fosse um inseto chato e insistente. — Nessântico também tem inimigos lá, e os ocidentais também podem usar o Ilmodo, mesmo que o chamem por outro nome, como os numetodos.

— Os ocidentais? Como os numetodos, eles são hereges que merecem a morte — disparou Semini. — Eles abusam da dádiva de Cénzi, que é destinada apenas aos ténis, e um dia nós os faremos pagar pelo insulto, se Nessântico não fizer isso.

Fynn grunhiu em acordo com a opinião, e Allesandra viu o filho Jan também aquiescer com a cabeça — isso também era a influência do maldito vatarh do menino, ou pelo menos do téni magyariano que Pauli insistiu que educasse o filho deles, apesar das reservas de Allesandra. Ela cerrou os lábios.

Ana está morta. Ela colocou os dedos no colar do globo partido, sentindo sua superfície lisa e cravejada. O toque trouxe novamente a memória do rosto de Ana, do sorriso assimétrico que surgia nos lábios da mulher quando algo a divertia, das rugas severas que apareciam em volta dos olhos quando ficava irritada. Allesandra passou uma década com Ana; captora, amiga e matarh postiça, tudo ao mesmo tempo para ela durante os longos anos que passou como refém de Nessântico. Os sentimentos de Allesandra para com Ana eram tão complexos e contraditórios quanto o relacionamento entre as duas. Eles eram quase tão conflitantes quanto os sentimentos com relação ao vatarh, que a deixara em Nessântico enquanto Fynn se tornava o a’hïrzg e seu favorito.

Allesandra queria chorar por causa da notícia, de tristeza por alguém que a tratou bem, com gentileza, quando não havia obrigação alguma para que agisse assim. Mas ela não podia chorar. Não aqui. Não na frente de pessoas que odiavam a mulher. Aqui, Allesandra teria que fingir.

Mais tarde. Mais tarde eu choro por ela como se deve...

— Eu esperava um pouco mais de reação de você, irmã — disse Fynn. — Afinal, aquela mulher abominável e o impostor perneta mantiveram você como prisioneira. O vatarh praguejava sempre que alguém falava o nome dela e dizia que Ana não era diferente de uma bruxa.

Fynn observava Allesandra, e ambos sabiam o que ele deixou de fora no comentário: que o hïrzg Jan poderia ter pagado o resgate por ela a qualquer momento durante aqueles anos, e que, se ele o tivesse feito, provavelmente a coroa dourada estaria na cabeça de Allesandra, não na de Fynn. — Você não ficará aqui nem meio ano — disse Ana para Allesandra naqueles primeiros meses. — O kraljiki Justi cobrou um resgate justo, e seu vatarh irá pagá-lo. Em breve...

Mas, por algum motivo, o hïrzg Jan não pagou.

Allesandra fez uma expressão impassível. Você não vai chorar. Não vai deixar que eles vejam seu sofrimento. Não era difícil; era o que ela fazia frequentemente, e dava certo na maioria das vezes. Allesandra sabia como os ca’ e co’ a chamavam pelas costas: a Megera de Pedra. — A morte de Ana ca’Seranta é importante. Eu agradeço ao archigos Semini por nos trazer a notícia, e nós devemos, nós temos que decidir o que isso significa para Firenzcia, mas ainda levaremos semanas para conhecer todas as consequências. E neste momento o vatarh espera por nós. Eu sugiro que cuidemos dele primeiro.

 

As Tumbas dos Hïrzgai eram catacumbas abaixo do Palácio de Brezno, não eram como os níveis inferiores da mais nova propriedade privada fora da cidade conhecida como Encosta do Cervo, que fora construída na época do hïrzg Karin. Uma escada comprida e larga descia para as Tumbas, e uma crosta de nitrato cobria as paredes suadas e crescia como pústula branca nas faces dos murais pintados ali há dois séculos e restaurados uma dezena de vezes desde então: a umidade sempre vencia os pigmentos. Um ar frio, quase fétido, subia lá de baixo, como se os avisasse que o reino dos mortos se aproximava. As tochas acesas nos suportes preveniam a escuridão, mas tornavam as sombras da ocasional passagem lateral mais escuras e misteriosas em contraste. Uma dezena de gerações de hïrzgai esperava por eles lá embaixo, com suas várias esposas e muitos dos descendentes diretos. O irmão mais velho de Allesandra, Toma, fora enterrado ali quando ela era apenas um bebê, e sua matarh, Greta, estava deitada ao lado dele há 19 anos agora. Com o tempo, a própria Allesandra poderia se juntar à família, embora passar a eternidade ao lado da matarh Greta não fosse uma ideia agradável.

A procissão desceu pela escadaria em um silêncio pomposo: em frente os e’ténis com lamparinas acesas por fogo mágico, depois o hïrzg Fynn acompanhado pelo archigos Semini e Francesca, e Allesandra e Jan alguns passos atrás deles, seguidos por um último grupo de criados e e’ténis. Conforme eles se aproximavam da entrada ricamente entalhada em direção às catacumbas, decoradas com baixos-relevos de feitos históricos dos hïrzgai, Allesandra pôde ouvir sussurros, o farfalhar de tecido e um espirro ou tosse ocasionais: os ca’ e co’ foram convidados para testemunhar as cerimônias. Era a elite de Firenzcia, a maioria composta por parentes de Fynn e Allesandra: famílias que haviam sido misturadas com a deles, ou aqueles que serviram por décadas ao hïrzg Jan.

Luzes mágicas e de tochas banhavam os corpos enroscados de criaturas fantásticas entalhados nas paredes, as sisudas feições esculpidas dos hïrzgai e os corpos massacrados dos inimigos aos seus pés. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos entraram em posição de sentido, as lanças (com lâminas cobertas por panos vermelhos) bateram contra as lustrosas armaduras de gala. Os outros ca’ e co’ fizeram mesuras e os sussurros caíram no silêncio quando o novo hïrzg entrou na câmara enorme. Allesandra notou os olhares deslizarem de Fynn para ela, e também para Jan. O filho notou a atenção; ela sentiu Jan respirar fundo e empertigar o corpo. Allesandra acenou para eles — um movimento mínimo da cabeça, um sorriso quase imperceptível.

Olhe para ela, tão fria quanto esta câmara... Era o que alguns deles deveriam estar pensando. Com certeza ela está contente de ver o velho Jan morto depois de ele deixá-la com o kraljiki e a falsa archigos por tanto tempo. Ela provavelmente deseja que Fynn também estivesse lá com o vatarh para que ela pudesse ser a hïrzgin.

Nenhum deles conhecia Allesandra. Nenhum deles conhecia seus verdadeiros pensamentos. Com efeito, ela mesma não tinha certeza se sabia. Allesandra ainda estava abalada com a notícia sobre Ana, e se demonstrava sinais de tristeza, era pela archigos, não pelo vatarh.

O caixão que continha os restos do hïrzg Jan estava perto da entrada da câmara de confinamento, ao lado da enorme pedra redonda que selaria o nicho.
O caixão estava coberto por uma tapeçaria que representava sua vitória sobre o t’sha no lago Cresci. Não havia nada que celebrasse Passe a’Fiume ou o ataque tolo e ousado contra Nessântico há uma década: aqueles dias em que Allesandra cavalgara com ele, quando olhava o vatarh com adoração, quando ele prometera dar para ela a cidade de Nessântico.

Em vez disso, Nessântico tirou Allesandra de seu vatarh e deu a Fynn o lugar de braço direito de Jan.

Fynn prestou continência aos lanceiros, que relaxaram sua postura, e disse — Eu gostaria de agradecer a todos por estarem aqui. Eu sei que o vatarh olha lá de cima, dos braços de Cénzi, e agradece esse tributo a ele. E também sei que o vatarh nos perdoaria por não ficarmos muito tempo aqui quando lareiras e comidas quentes esperam por nós lá em cima. — Fynn recebeu risos discretos ao dizer isso e sorriu. — Archigos, por obséquio...

Semini dirigiu-se rapidamente à frente com os ténis e abençoou o caixão. Ele chamou Allesandra e Jan com um gesto quando os ténis começaram a entoar a oração. Os dois foram até o caixão e colocaram as mãos na tapeçaria. — Eu queria que você tivesse tido a chance de conhecê-lo melhor — sussurrou ela para Jan e colocou a mão em cima da mão do filho enquanto os ténis entoavam. — Ele não foi sempre tão furioso e rude quanto nos últimos anos.

— A senhora me disse isso — falou Jan. — Várias vezes. Mas, ainda assim, não é a memória dele que levarei comigo, não é? — Ela olhou para o filho; ele olhou com uma cara feia para o caixão.

— Falaremos a respeito disso depois — disse Allesandra.

— Não duvido, matarh.

Allesandra conteve a resposta que teria dado; ela não falaria nada aqui. As pessoas já olhavam com curiosidade, imaginavam que segredos os dois estariam sussurrando e o porquê da rispidez na voz de seu filho. Allesandra ergueu a mão e deu um passo para trás para permitir que Fynn se aproximasse.

Ela imaginou o que o irmão estaria pensando ao ficar parado ali, com a mão no caixão e a cabeça baixa.

Após alguns minutos, Fynn também se afastou. Ele acenou com a cabeça para os lanceiros; quatro vieram à frente para pegar o caixão. Com expressões soturnas, eles ergueram e enfiaram o caixão no nicho que o aguardava. A pedra roçou na madeira, e o som ecoou. Os quatro deram passos para trás, e outro quarteto empurrou com os ombros o selo de pedra, que gemeu e resistiu enquanto rolava devagar. A enorme roda de pedra avançou por um sulco aberto no chão na direção da enorme fenda onde se assentaria e ficaria. A pedra era entalhada com glifos em firenzciano antigo, uma língua falada hoje apenas por estudiosos, tão grossa quanto o braço de uma pessoa e com metade da altura de um homem. Quando a grande roda chegou ao fim do sulco e entrou na brecha onde deveria ficar, houve um enorme som de rachadura. Uma fenda cortou a face entalhada da roda e um terço da parte de cima desmoronou. Allesandra sabia que deveria ter dado um alerta, mas tudo acabou antes que qualquer um deles pudesse se mexer ou reagir. A massa de pedra esmagou completamente um lanceiro embaixo dela e as pernas de outro soldado ao cair no chão.

Os gritos do lanceiro preso eram agudos e estridentes, e sangue espesso escorreu debaixo da pedra.

Isso é um sinal... Ela não conseguiu evitar o pensamento enquanto o restante dos lanceiros avançou e os ca’ e co’, ténis e criados corriam para ajudar ou encaravam paralisados o horror no fundo da câmara. Jan estava entre aqueles que tentavam desesperadamente levantar a lápide, e Fynn gritava ordens inúteis no caos.

Foi o vatarh que fez isso. De alguma forma, ele fez isso. Ele não descansa em paz...

 

Enéas co’Kinnear

ELE IA MORRER aqui nos Hellins.

A sensação de um destino horrível tomou conta de Enéas enquanto ele estava com as forças dos Domínios no cume de um morro não muito longe das cercanias de Munereo. As tropas observavam os estandartes de formato estranho dos ocidentais se aproximarem vindos da direção do lago Malik, e Enéas escutava o início dos cânticos dos ténis-guerreiros em preparação para a batalha. O a’offizier Meric ca’Matin estava com ele, assim como os outros offiziers do batalhão e vários pajens prontos para levar mensagens entre as companhias. As cornetas e bandeiras estavam de prontidão para transmitir ordens. A uma centena de passos encosta abaixo, as fileiras do exército dos Domínios estavam reunidas, inquietas e nervosas.

Enéas esteve em meia dúzia de batalhas e incontáveis escaramuças e confrontos nos últimos anos. Esta sensação de ruína iminente era algo que nunca havia sentido antes. Ele sentiu o suor descer pelo rosto debaixo do elmo grosso de ferro, e não era apenas o sol que causava a transpiração. Enéas queria gritar em negação para o céu, mas não podia. Não aqui. Não na frente de suas tropas. Em vez disso, abaixou a cabeça e rezou.

Ó, Grande Cénzi, por que o Senhor manda esta premonição para mim? O que o Senhor está me dizendo?

Enéas era um o’offizier da Garde Civile dos Domínios. Seu comandante de campo, o a’offizier ca’Matin, dissera justamente ontem que tinha feito a recomendação de que Enéas fosse sagrado chevaritt, que o documento já estava cruzando o Strettosei a caminho de Nessântico. Seu vatarh ficaria orgulhoso — há 25 anos, o vatarh de Enéas serviu com o regente ca’Rudka em Passe a’Fiume e ficou severamente queimado, perdeu um braço e um olho durante aquele cerco horrível. A Garde Civile dera a condecoração e a pensão que ele merecia, e embora a família tenha sido promovida de ce’Kinnear para ci’Kinnear como consequência, seu vatarh sempre falava que poderia ter se tornado um chevaritt se não tivesse sido ferido, que aquelas aspirações foram arrancadas pelo fogo mágico firenzciano que o desfigurou e encerrou sua carreira.

Enéas nunca quis ser um chevaritt ou um offizier. Teria preferido seguir a carreira de um téni da fé concénziana do que aquela que encontrou na Garde Civile. Ele sentia o chamado de Cénzi desde que era um menino; na verdade, Enéas pediu aos pais que o mandassem para o templo como um acólito. Porém, seu vatarh insistiu que trilhasse o caminho marcial. — Somos apenas ci’, e mal conseguimos nos manter assim — dissera o vatarh. — Nossa família não tem as solas para mandá-lo para os ténis. Isso é uma coisa para os ca’ e co’, que podem bancar. Você entrará para a Garde, como eu. Vai fazer como eu fiz...

Enéas saiu-se melhor que seu vatarh. “Falsoténi” era como seus homens o chamavam por sua religiosidade, por seguir rigidamente as regras da Divolonté, e pela insistência em que seus comandados comparecessem aos rituais no Templo de Munereo nos Dias da Observância, como era devido. Mas seus comandados também alegavam que o próprio Cénzi protegia Enéas — e que, através de Éneas, eles próprios eram protegidos. Na Batalha das Colinas perto do lago Malik, como um e’offizier, em sua segunda batalha de verdade, ele foi o único offizier sobrevivente de sua companhia, quando os homens foram massacrados por uma força ocidental bem superior. Enéas conseguiu surpreender os ocidentais ao fingir uma retirada, depois marchou com o restante das tropas pelos pântanos para atacar o inimigo por um flanco desprotegido pelos nahualli — os terríveis feiticeiros ocidentais, aqueles que chamavam o Ilmodo de X’in Ka.

Hereges, eles eram. Falsos ténis que adoravam falsos deuses. Pensar nos nahualli enfurecia Enéas.

Ele conseguiu infligir grandes baixas no flanco dos ocidentais e manter a posição até a chegada de reforços. Como recompensa por suas ações, Enéas foi promovido a o’offizier; poucos meses depois, após a Campanha dos Brejos Profundos, o a’offizier ca’Matin disse que a Gardes a’Liste promovera sua família a co’.

Quando o período de serviço militar terminasse, daqui a um ano, após voltar para Nessântico, Enéas prometeu a Cénzi que daria baixa na Garde Civile e se ofereceria para o treino como téni, mesmo que ele fosse muito mais velho do que os acólitos usuais. Enéas tinha certeza de que isso era o que Cénzi queria dele.

A Guerra dos Hellins vinha sendo boa para Enéas, embora não para os Domínios.

Ao menos vinha sendo assim até essa sombra surgir. Esse arrepio na espinha.

Não é uma premonição. É apenas medo...

Ele sentiu medo antes. Todo soldado sentia medo, a não ser que fosse um completo tolo, mas Enéas nunca tinha sido tocado pelo sentimento dessa forma. O medo estremecia os ossos na carne; fazia o sangue zunir nos ouvidos. O medo transformava as entranhas em água podre e marrom. O medo fazia a arma tremer na mão. Mas Enéas não estremeceu, o estômago estava calmo, e a ponta da espada não tremeu em sua mão.

Aquilo não era medo — ou nenhum tipo de medo que tivesse sentido antes. Aquilo o preocupava mais que tudo.

O que é isso que o Senhor me manda, Cénzi? Diga-me, para que eu possa Lhe servir como o Senhor quiser...

— O’offizier co’Kinnear! — vociferou o a’offizier ca’Matin, e Enéas balançou a cabeça para afastar os pensamentos. Ele prestou continência ao offizier superior, que já estava montado no cavalo de guerra. — Preciso que o senhor entre com seus homens no flanco direito do inimigo; empurre-os para dentro do vale para que os ténis-guerreiros cuidem deles. Não devemos nos preocupar com os nahualli; os batedores disseram que eles ainda estão lá atrás, perto do Tecuhtli no lago Malik. Compreendido?

Enéas concordou com a cabeça.

— Ótimo — falou ca’Matin. — Então vamos começar. Pajem, diga aos corneteiros para anunciar o avanço. — O garoto a quem o a’offizier se dirigiu correu para a colina onde as trompas e bandeiras de sinalização estavam concentradas enquanto ca’Matin cumprimentava Enéas com o sinal de Cénzi, que ele devolveu solenemente e com devoção. — Que a fortuna de Cénzi esteja com o senhor, Enéas — disse o a’offizier.

— E com todos nós — respondeu Enéas com fervor.

Ca’Matin puxou as rédeas e foi embora a meio galope, o poderoso cavalo de guerra atravessou a grama alta com cuidado na direção do centro das fileiras onde os estandartes dos Domínios tremulavam com a brisa da tarde.

As cornetas soaram então, estridentes e altas. O chamado pairou diante deles em desafio aos ocidentais, e o som de armas batendo contra armaduras ecoou rapidamente. Enéas pegou as rédeas do próprio cavalo de guerra das mãos de um pajem à espera e montou. Seus e’offiziers olharam para ele com expectativa. — Façam suas pazes com Cénzi — disse o o’offizier. — É chegado o momento.

Enéas ergueu a mão para sinalizar na direção do flanco direito e dos morros íngremes ali.

Um bramido respondeu ao o’offizier, o grito de mil gargantas. Eles começaram a se mover, primeiro lentamente, depois mais rápido, até correrem impetuosamente na direção das lanças do inimigo. Enquanto investiam, o fogo mágico dos ténis-guerreiros na retaguarda passava estridente por cima da cabeça de Enéas e de suas tropas, acertando as fileiras da vanguarda das forças ocidentais e abrindo buracos nas fileiras irregulares. Não pareceu haver uma resposta dos nahualli; Enéas achou que isso faria o medo desagradável ir embora, mas a sensação permaneceu.

Éneas e seus homens avançaram pelas brechas fumegantes. O choque de aço contra aço ecoou dos flancos dos morros verdejantes, assim como os gritos dos feridos que caíram debaixo dos cascos dos cavalos de guerra que eles montavam. Éneas atacou uma lança curta que foi estocada em sua direção, afastou a ponta serrada com um golpe e cortou com o sabre a mão que empunhava a arma. O sangue jorrou e o rosto selvagem abaixo dele caiu. O cavalo avançou, e Enéas atacou os ocidentais de ambos os lados, protegidos por placas peitorais de bambu e tecido grosso com pequenos anéis de latão costurados. Eles usavam elmos decorados com plumas de pássaros muito coloridos, a pele avermelhada era pintada com faixas laranjas e amarelas, que faziam os rostos parecerem com crânios, ou era tatuada com linhas rubro-negras. Eram oponentes ferozes, os ocidentais, e nenhum soldado dos Domínios que os encarou ousava menosprezar suas habilidades e bravura. No entanto, eles tinham dado espaço agora — o que era estranho — e recuaram na direção da massa principal do exército. Enéas viu uma escuridão debaixo dos pés calçados com sandálias dos inimigos: o solo diretamente em frente a ele parecia um círculo de areia, mas aquela areia era tão negra quanto restos de lenha queimada.

A inquietação que afligiu Enéas antes da batalha aumentou e tornou-se um frio mortal dentro dos pulmões, de maneira que ele teve dificuldade para respirar e a espada pareceu como um peso de chumbo nas mãos. Ele obrigou o cavalo a entrar na areia e, ao fazer isso, berrou: um grito sem palavras para banir a sensação com barulho e fúria.

Éneas teve como resposta um som que nunca tinha ouvido antes.

O som... era como se um dos moitidis da terra — os filhos indignos de Cénzi — tivesse soltado um grito forte e sobrenatural, e fez com que Enéas girasse a cabeça para esquerda, na direção de sua origem. Um fogo laranja e uma fumaça negra e desagradável foram cuspidos do chão. Punhados de terra caíram em volta do o’offizier como uma chuva sólida que respingou sobre ele, e com a terra... e com a terra havia pedaços de corpos. Uma mão, ainda segurando uma espada quebrada, quicou no pescoço do cavalo de Enéas e caiu no chão. Ele olhou para o objeto ensanguentado. Então ouviu os gritos, com atraso.

— São os nahualli! Feitiçaria! — gritou Enéas para avisar as tropas, para a mão horrível que caiu do céu.

O o’offizier recebeu como resposta um rugido ainda mais alto que o primeiro, uma explosão cuja luz o cegou e a força arrancou seu corpo da sela e do cavalo. Um semideus ergueu Enéas — ele pareceu levitar por um instante ou dois: isso... isso é a premonição e o aviso de Cénzi... — e jogou o o’offizier de volta para a terra como se estivesse com nojo.

A terra levantou-se para recebê-lo.

Ele não se lembrou de mais nada depois disso.

 

Karl ca’Vliomani

KARL SEGUROU FIRME O COLAR na mão: uma concha de pedra cinza e polida que ele dera para Ana há muito tempo. O colar estivera no pescoço da archigos quando ela morreu; Sergei dera o objeto para ele. Havia manchas do sangue de Ana nos sulcos profundos. Karl apertou os dedos em volta da concha e sentiu as bordas duras forçarem a palma da mão. A dor não importava; significava que ele ainda conseguia sentir algo além do vazio que o tomava agora.

Quem fez isso? Por que matariam Ana?

Karl perdeu muitas pessoas de que gostava ao longo dos anos. O embaixador era tomado pelo sofrimento, tristeza e, às vezes, raiva diante da morte delas. Karl acordava à noite com a certeza de que tinha ouvido suas vozes ou pensando “ah, hoje tenho que visitá-lo ou visitá-la...”, apenas para lembrar que a pessoa em mente foi embora para sempre, de maneira irrevogável.

Isso... isso era pior do que qualquer uma daquelas mortes. Isso era uma facada no coração, e ele sentiu o sangramento por dentro.

Será que consigo sobreviver a isso? Perdi minha melhor amiga, a mulher que eu amo...

Karl estava sentado na frente do templo, com o regente Sergei e o kraljiki Audric à sua esquerda, e o recém-empossado archigos Kenne e os a’ténis da Fé à sua direita. Kenne foi amigo e aliado de Ana desde o início, quando ambos fizeram parte da equipe do archigos Dhosti. Agora, parecendo duas décadas mais velho do que sua idade de verdade, de cabelos brancos e mãos que tremiam com uma eterna paralisia, Kenne parecia extremamente pouco à vontade com a responsabilidade confiada a ele. O archigos debruçou-se sobre Karl e deu um tapinha em sua mão. Disse algo que o embaixador não conseguiu ouvir contra o canto do coro: “Longo lamento”, do compositor ce’Miella. As palavras que Kenne realmente falou não importavam: Karl concordou com a cabeça porque sabia que era a reação esperada.

No banco diretamente atrás deles, no meio dos ca’ e co’, estavam Varina e Mika ci’Gilan; como Varina, Mika também era um amigo de longa data de Karl e Ana. Ele era o líder local da facção dos numetodos em Nessântico e dirigia a pesquisa da seita aqui. A mão de Varina tocou o ombro de Karl; sem olhar para trás, o embaixador a cobriu com a própria mão antes de deixá-la cair no colo como se estivesse morta. Os dedos de Varina apertaram o ombro de Karl, e sua mão permaneceu ali.

O gesto tinha a intenção de confortá-lo, ele sabia, mas era simplesmente um peso morto.

Quem fez isso? Karl ouviu uma dezena de rumores. Previsivelmente, alguns culpavam os numetodos. Outros, Firenzcia. Alguns apontavam a facção da fé concénziana de Brezno. A história mais absurda dizia que o assassino, conhecido como a Pedra Branca, era o responsável, que havia uma pedrinha branca no olho esquerdo de Ana quando ela foi encontrada, a assinatura da Pedra Branca.

O último rumor certamente não era verdade. Porém, os outros... Karl não sabia, mas jurou que descobriria.

Às vezes ele invejava o consolo da fé que Ana tinha. Karl e ela até mesmo conversaram a respeito disso na noite em que ele descobriu que Kaitlin estava morta: a mulher com quem Karl havia se casado e que dera à luz seus dois filhos na Ilha de Paeti. Ela recusou-se terminantemente a vir a Nessântico com o marido. Kaitlin sabia da profunda amizade entre ele e Ana; assim como Karl também tinha certeza de que a esposa sabia que — apesar das promessas e garantias dele — havia mais do que amizade ali, pelo menos para o embaixador numetodo.

Ele nunca fora capaz de mentir facilmente para Kaitlin. Karl dizia para si mesmo que amava a esposa, mas também nunca fora realmente capaz de mentir para si mesmo.

Na noite em que recebeu a terrível carta de Paeti com a informação de que Kaitlin tinha adoecido e morrido, ele ficou arrasado. Karl nunca soube exatamente como Ana soube da notícia, mas ela o visitou naquela noite. A archigos o alimentou, o abraçou, deixou que gritasse, gemesse, berrasse e sofresse. Mais que isso, ela jamais tentou oferecer para Karl o consolo da fé como teria feito com qualquer um de seus seguidores. Ela jamais mencionou Cénzi, não até ele mencionar enquanto secava as lágrimas com a manga da bashta...

— Eu invejo você — disse Karl.

Os dois estavam sentados ao lado das chamas que ela acendera na lareira. O chá fervia lentamente em uma chaleira. A madeira estava molhada; ela assobiava e estalava sob o ataque das chamas e cuspia jatos rodopiantes de cinzas de tom vermelho-alaranjado chaminé acima.

Ana ergueu uma sobrancelha na direção de Karl.

— Você acredita que Cénzi leva as almas daqueles que morrem — falou o embaixador. — Você acredita que os mortos continuam a existir dentro Dele, e que é possível um dia encontrá-los novamente. Eu... — Lágrimas ameaçaram cair novamente, e foram contidas à força por Karl. — Eu não tenho essa esperança.

— Ter fé não leva a dor embora — disse Ana. — Ou leva muito pouco. Nada pode aliviar o sofrimento e a perda que todos nós sentimos: nem a fé, nem o Ilmodo. O tempo, talvez, consiga dar jeito, e, ainda assim, apenas diminui a tristeza. — Ela enrolou a manga do robe na mão, pegou a chaleira no suporte e serviu a bebida nas xícaras. Passou para Karl o jarro de mel. — Eu ainda me lembro da minha matarh. Às vezes, tudo volta à mente, tudo que senti quando ela morreu, como se tivesse acontecido ontem. — Ana passou os dedos na bochecha de Karl, que sentiu a maciez contra a barba por fazer. — Isso vai acontecer com você também, infelizmente.

— Então para que serve a sua fé, Ana?

Ela sorriu, como se estivesse à espera da pergunta. — Fé não é um bem. A pessoa não a compra porque ela vai fazer isto ou aquilo. A pessoa acredita ou não, e a crença oferece o que oferece. Você não tem fé, meu amor; Cénzi sabe que eu lhe daria fé se pudesse. Eu certamente conversei o bastante com você a respeito disso ao longo dos anos. Vocês, numetodos... vocês tentam envolver o mundo em razão e lógica e, portanto, a fé vira pó sempre que vocês a tocam, porque tentam impor racionalidade sobre ela. Você vai fazer isso com Kaitlin também, vai tentar encontrar razões e lógica na morte dela. — Ana tocou Karl novamente. — Não há razão para ela ter morrido, Karl. Não há lógica nisso. Apenas aconteceu, e não teve nada a ver com você ou com seus sentimentos por ela, ou com o que aconteceu entre vocês dois.

— Nem com a vontade de Cénzi?

Ela empinou o queixo e deu um sorriso triste para Karl. O rosto de Ana foi banhado pela luz quente e amarela da lareira. — Nem mesmo isso. É rara a pessoa com quem Cénzi se importa a ponto de mudar o resultado dos dados rolados pelo moitidi do destino. Era a hora de sua Kaitlin. Só isso. Não é culpa sua, Karl. Não é.

Isto aconteceu há nove anos. Ele viajou de volta para Paeti a fim de ver a sepultura de Kaitlin e estar com os filhos. Karl até trouxe Nilles e Colin para Nessântico quando retornou no ano seguinte. Nilles ficou dois anos com o vatarh, Colin ficou quatro, até que eles atingiram a maioridade, aos 16 anos. Com o tempo, ambos deixaram a cidade para retornar à Ilha de Paeti. Nilles já tinha dado uma neta a Karl — com três anos agora — que ele ainda precisava conhecer.

Karl ficou aqui porque seu trabalho era nos Domínios, dizia ele para qualquer um que perguntasse. Porém, na verdade, era porque Ana estava aqui. Havia aqueles que sabiam disso, mas não eram muitos e fingiam não ver.

A mão de Varina apertou o ombro de Karl novamente e se afastou.

Karl olhou fixamente para o corpo de Ana, embrulhado em uma mortalha no altar de pedra, e para a falange de seis ténis-bombeiros reunidos em um círculo em volta dela. O cadáver estava enrolado sob camadas de uma seda verde bordada com linhas metálicas douradas, que reluziam sob a luz multicolorida do vitral das janelas do templo; incensários fumegavam pelo altar e envolviam os raios de luz com fumaça aromática. Karl não conseguia acreditar que era Ana embrulhada em exposição ali. Não acreditaria. Era outra pessoa qualquer. A memória que ele tinha da luz, do bramido impactante, do corpo sendo dilacerado, do sangue, da poeira negra... Era falsa. Tinha que ser falsa. Mesmo o pensamento era doloroso demais para suportar.

A morte de Kaitlin, de sua família, de todos os outros que faleceram ao longo das décadas: nenhuma doeu como esta. Nenhuma.

Alguém matou a pessoa que Karl mais amava no mundo, acabou com uma mulher que lutou mais do que qualquer um desde a kraljica Marguerite para manter a paz nos Domínios, que acreditava em reconciliação antes de confronto, que tinha o potencial de reunir as duas metades partidas dos Domínios e da fé concénziana. Não haveria paz para Karl até que soubesse quem fez isso e até que essa pessoa estivesse morta. Se houvesse vida além da morte, como Ana acreditava, então Karl deixaria que a alma do assassino fosse condenada a cuidar de Ana pela eternidade. Se houvesse deuses, se Cénzi realmente existisse, se houvesse justiça após a morte, então era isso que deveria acontecer.

Ele teria fé nisso: uma fé sombria, implacável e intransigente.

O archigos Kenne deu um tapinha na mão de Karl e sussurrou mais palavras que ele não conseguiu ouvir. O ombro do regente Sergei estava pressionado contra o esquerdo do embaixador. O kraljiki Audric ofegou do outro lado do regente, sua respiração difícil era mais alta que o cântico dos ténis. Karl ouviu Varina chorar baixinho no banco atrás dele.

Os ténis-bombeiros agitaram-se em volta do corpo embrulhado em pano verde. As mãos moveram-se na dança do Ilmodo, as vozes ergueram-se em uníssono em um cântico que lutou contra as vozes etéreas do coro. Eles espalmaram bem as mãos como em uma benção, e a chama feroz do fogo mágico irrompeu em volta do corpo de Ana. A onda de calor das chamas mágicas passou por eles, selvagem e implacável. Não havia fagulhas, nem pira alimentando as labaredas: enquanto os corpos dos kralji e dos ca’ e co’ queimavam em chamas alimentadas por madeira e óleo, os ténis queimavam seus próprios mortos com o Ilmodo — rápida e furiosamente. O fogo do Ilmodo consumiu o corpo no espaço de alguns instantes, o tecido verde metálico ficou preto instantaneamente, o brilho do calor era tão intenso que o corpo de Ana parecia se mexer ali dentro. Enquanto Karl observava, conforme seu corpo recostou-se por instinto contra o ataque violento do calor, Ana foi levada.

As chamas morreram abruptamente quando o coro encerrou a canção. O ar frio voltou a correr em volta deles, um vento que desmanchou penteados e tremulou roupas. Agora no altar não havia nada além de cinzas e alguns fragmentos de ossos.

A prisão mortal de Ana sumiu.

— Ela voltou para as mãos de Cénzi agora — falou o archigos Kenne para Karl. — Ele dará consolo para Ana.

E eu darei algo melhor que consolo para ela. Ele aquiesceu em silêncio para o archigos. Darei vingança.

 

Allesandra ca’Vörl

— NÃO FOI um sinal.

Fynn socou com força o braço da cadeira. Os criados postados ao longo da parede, de prontidão para servir o jantar, tremeram com o som. A longa cicatriz que descia pelo lado direito do rosto ficou branca contra o rosto corado. — Eu não me importo com o que dizem. O que aconteceu foi um terrível acidente. Nada mais. Não foi um sinal.

— Claro que você está certo, irmão — falou Allesandra, para acalmá-lo. Ela fez uma pausa por um instante e gesticulou para os criados magyarianos: os dois irmãos ceavam nos aposentos de Allesandra no palácio. Os criados se aproximaram e serviram sopa nas tigelas e encheram as taças de vinho. Fynn estava sentado à cabeceira; Allesandra, ao pé da mesa. O archigos Semini e a esposa estavam à direita de Fynn; seu filho, Jan, à esquerda.

A própria Allesandra tinha ouvido alguns dos rumores. O hïrzg Jan está irritado que Fynn tomou a coroa, e não sua filha... A alma do hïrzg não consegue descansar... Ouvi da parte de um criado do palácio que seu fantasma ainda anda pelos salões à noite, gemendo e gritando como se estivesse furioso... Havia dezenas de histórias que surgiam por toda Brezno, deturpadas dependendo dos interesses de quem as espalhasse, e que ficavam maiores e mais absurdas a cada vez que eram contadas. Cénzi manda um aviso ao hïrzg de que os Domínios e a Fé devem se unir novamente... As almas de todos aqueles que o hïrzg matou — os numetodos, os nessânticos, os tennsha — o perseguem e não permitem que ele descanse... Dizem que, quando o selo de pedra caiu, aqueles na câmara ouviram a voz do velho hïrzg amaldiçoar Firenzcia...

A sopa foi servida e o silêncio durou tempo demais. Allesandra ouviu a respiração dos criados e o barulho distante e abafado do cozinheiro e dos funcionários da cozinha no andar debaixo. — Eu soube que o outro lanceiro também morreu — ela comentou quando ficou claro que ninguém mais estava disposto a começar uma conversa.

Fynn olhou feio para a irmã do outro lado da mesa e falou — Isso foi uma benção de Cénzi. O homem jamais teria voltado a andar. O curandeiro disse que a espinha estava quebrada; se eu fosse ele, preferiria morrer a viver o resto da vida como um aleijado inútil.

— Tenho certeza de que ele tinha a mesma opinião que você, irmão. — Ela manteve o tom de voz cautelosamente neutro. — E tenho certeza de que o archigos fez o possível para aliviar seu sofrimento. — Outra pausa. — Até onde a Divolonté permite, é claro — acrescentou.

Francesca deixou a colher bater na mesa ao ouvir isso. — A senhora pode ter sido maculada pelas crenças da falsa archigos durante seus anos com ela, a’hïrzg — declarou ela com frieza —, mas eu lhe garanto que meu marido não se maculou. Ele jamais...

— Francesca! — A bronca de Semini fez Francesca fechar a boca como uma carpa agonizante na margem de um rio. Ele olhou fixamente para a esposa, depois levou as mãos entrelaçadas à testa ao se voltar para Allesandra. Semini sustentou o olhar da a’hïrzg. Allesandra sempre achou que o archigos tinha belos olhos: poderosos e encantadores. Também notou que, quando ela estava em um ambiente, Semini geralmente prestava atenção nela. Isso nunca incomodou Allesandra, que gostava da atenção dele. A a’hïrzg pensou, na época em que seu vatarh finalmente pagou o resgate por ela, que o hïrzg Jan poderia tê-la casado com Semini, se o archigos já não estivesse comprometido com Francesca. Este teria sido um casamento poderoso, que permitiria reunir os poderes políticos e religiosos do estado, e Semini poderia ter sido alguém que ela viesse a amar, também. Mesmo agora... Allesandra afastou essa ideia rapidamente. Ela teve amantes durante o casamento, sim, como sabia que Pauli também tinha, mas sempre com cautela. Um caso com o archigos... isso seria difícil de esconder.

— Eu peço desculpas, a’hïrzg — disse Semini. — Às vezes, hã, a devoção da minha esposa pela Fé faz com que ela fale com muita grosseria. Eu realmente dei ao pobre lanceiro o consolo que pude, a pedido do hïrzg. — Ele então se dirigiu a Fynn. — Meu hïrzg, o senhor não deveria se preocupar com as fofocas da ralé. Na verdade, eu deixarei claro na minha próxima Admoestação que aqueles que acreditam que existem portentos nesse acidente horrível estão enganados, e que esses rumores absurdos são simplesmente mentiras. Já mandei começarem a investigar quem está espalhando essa fofoca sórdida. Eu diria que, se a Garde Hïrzg levasse alguns deles sob custódia, especialmente alguns do baixo escalão, e... hã, os convencesse a desmentir publicamente antes de serem executados por traição, isto certamente serviria de lição para os outros. Acho que veríamos que toda essa conversa sobre o que aconteceu no enterro de seu vatarh desapareceria tão rápido quanto neve em Daritria.

Francesca concordava com a cabeça ao ouvir as palavras do marido. — Nós devemos tratar essas pessoas da mesma maneira que trataríamos os numetodos — aquiesceu ela. — Da mesma forma que os numetodos são traidores da Fé, esses fofoqueiros são traidores de nosso hïrzg. Alguns corpos balançando na forca calarão a boca do populacho. — Ela olhou para Allesandra. — A senhora não concorda, a’hïrzg? — perguntou Francesca com voz gentil e ávida demais. A mulher chegou mesmo a se debruçar sobre a mesa, o que enfatizou a corcunda.

— Acho que é perigoso igualar fofocas com heresias, vajica ca’Cellibrecca — ela começava a dizer com cautela, mas Jan a interrompeu.

— Se você punir as pessoas por boataria, vai convencê-las de que os rumores são verdadeiros — disse o filho de Allesandra, as primeiras palavras que Jan disse desde que se sentaram à mesa, e deu de ombros quando os demais olharam para ele. — Bem, é verdade — insistiu. — Se o senhor der o sermão que sugere, archigos, estará apenas atraindo mais atenção para o que aconteceu, o que fará as pessoas acreditarem ainda mais nos rumores. É melhor não dizer, nem fazer nada; todo esse falatório vai passar por conta própria quando nada mais acontecer. Toda vez que um de nós repete a fofoca, mesmo que para negá-la ou refutá-la, nós fazemos com que pareça mais real e mais importante do que ela é.

Allesandra acompanhou o olhar de Jan deslizar de Semini para os demais à mesa. O archigos estava furioso, com as sobrancelhas baixas como nuvens carregadas sobre aqueles olhos cativantes; Francesca estava boquiaberta, como se estivesse atordoada e sem palavras diante da insolência do garoto; ela soltou uma tosse de desdém e abanou uma mão parecida com uma garra na direção de Jan, como se afastasse a praga de um mendigo. Fynn encarava a toalha de mesa diante dele. — É melhor não dizer e não fazer nada — repetiu Jan no silêncio, com a voz mais fraca e vacilante agora — ou o que aconteceu vai virar um sinal. Todos os senhores transformarão o boato em um sinal.

Allesandra tocou no braço do filho: foi o que ela teria dito, embora de uma maneira menos diplomática. — Muito bem dito — sussurrou Allesandra para Jan. Ele talvez tivesse sorrido momentaneamente; era difícil dizer.

— Então, se você fosse o hïrzg, não faria nada? — falou Francesca. — Então agradeçamos a Cénzi por você não ser, criança.

O que fez Jan erguer a cabeça novamente e responder — Se eu fosse o hïrzg, pensaria que esses rumores não valem o meu tempo. Há eventos mais importantes que eu consideraria, como a morte da archigos Ana, ou a guerra nos Hellins que consome os recursos e a atenção de Nessântico, e o que tudo isso significa para Firenzcia e a Coalizão.

Francesca olhou com desdém novamente. Ela voltou a atenção para a sopa, como se o comentário de Jan não merecesse ser levado em consideração. Semini balançava a cabeça e olhava feio para Allesandra como se ela fosse diretamente responsável pela impertinência de Jan.

Allesandra imaginou que Fynn estivesse irritado sob a carranca que fazia, mas o irmão a surpreendeu e quebrou o silêncio incômodo. — Eu acho que o jovem está certo — disse Fynn, que deu para Jan um sorriso distorcido pela cicatriz no rosto. — Eu odeio pensar em ouvir os boatos por outro instante sequer, mas... você está certo, sobrinho. Se não fizermos nada, a boataria sumirá em uma semana, talvez até mesmo em alguns dias. Talvez eu devesse tornar você meu novo conselheiro, hein?

Jan ficou radiante com o elogio de Fynn enquanto Francesca se recostou abruptamente com a testa franzida. Semini tentou parecer despreocupado. — Você criou um jovem inteligente, irmã — falou Fynn para Allesandra. — Ele é tão ousado quanto eu gostaria que meu próprio filho fosse. Devo conversar mais com você, Jan, e sinto muito por não conhecê-lo tão bem quanto um onczio deveria. Vamos começar a retificar isso amanhã. Vamos caçar depois das reuniões da tarde, eu e você. Que tal?

— Sim! — disparou Jan, de repente criança novamente, recebendo um presente inesperado. Então ele pareceu perceber como soou jovem e concordou solenemente com a cabeça. — Eu gostaria muito, onczio Fynn — falou com a voz grave. — Matarh?

— O hïrzg é muito gentil — disse Allesandra sorrindo enquanto a suspeita martelava em sua cabeça. Primeiro o vatarh, agora Fynn. O que o desgraçado pensa que vai ganhar com isso? Será que está apenas tentando me aborrecer ao roubar a afeição de Jan? Estou perdendo meu filho, e quanto mais forte tento me agarrar a ele, mais rápido ele vai escapar... — Parece uma ideia maravilhosa — falou ela para Jan.

 

A Pedra Branca

HAVIA ASSASSINATOS FÁCEIS, e havia os difíceis. Este foi um dos fáceis.

O alvo era Honori co’Belgradi, um comerciante de mercadorias das Magyarias, e um mulherengo que cometera o erro de dormir com a esposa da pessoa errada: a esposa do cliente da Pedra Branca.

— Eu vi o sujeito cobrir minha mulher — disse o homem para Pedra Branca com a voz trêmula de raiva diante da lembrança. — Eu o vi possuir minha esposa como um animal, e eu a ouvi chamar seu nome no momento de desejo. E agora... agora ela está grávida, e eu não sei se a criança é minha ou... — Ele se interrompeu, com a cabeça baixa. — Mas vou garantir que ele não faça isso com nenhum outro marido, vou garantir que a criança jamais seja capaz de chamá-lo de vatarh...

Relacionamentos e desejo eram responsáveis por metade do trabalho da Pedra Branca. Ganância e poder respondiam pelo resto. Jamais faltou gente à procura da Pedra Branca; se a pessoa precisava encontrá-la, ela achava um jeito.

Honori co’Belgradi era um sujeito com hábitos, e hábitos geravam uma presa fácil. Pedra observou o comerciante por três dias, e o ritual do homem jamais variava por mais que uma marca da ampulheta. Ele fechava a loja em Ville Serne, uma cidade a meio dia de cavalgada ao sul de Brezno, depois ia a uma taverna na esquina da próxima rua. Ficava por lá até por quatro viradas da ampulheta, após a Terceira Chamada, e então se dirigia aos aposentos onde a mulher — a esposa do cliente da Pedra — esperava pela aventura noturna.

A caminho daqueles aposentos, Honori passava pelo beco onde a Pedra esperava agora. Ela já era capaz de ouvir os passos no ar fresco da noite. — Honori co’Belgradi — chamou a Pedra quando a silhueta do homem passou pela boca do beco. O comerciante parou com uma expressão cautelosa, depois olhou com muito interesse quando a Pedra ficou sob a luz das lâmpadas mágicas da rua.

— Você me conhece? — perguntou co’Belgradi, e a Pedra deu um sorriso gentil.

— Conheço. E queria conhecer melhor, meu amigo. Você e eu, nós temos um negócio para acertar.

— O que quer dizer? — indagou co’Belgradi quando a Pedra se aproximou. Tão fácil... A apenas um passo de distância. A uma facada de distância, e co’Belgradi inclinou a cabeça, intrigado.

— Assim — respondeu a Pedra. Ela olhou para a rua, viu que ninguém observava, e deu um tapinha no ombro de co’Belgradi, como se o homem fosse um amigo que não via há anos. Ao mesmo tempo, a mão com a adaga envenenada cravou a arma com força debaixo das costelas do comerciante em direção ao coração. Co’Belgradi soltou um grito sufocado pelo sangue, e de repente o corpo ficou pesado contra a compleição atlética do assassino. A Pedra meio arrastou, meio carregou o moribundo co’Belgradi para dentro do beco e deitou o corpo rapidamente no chão. Os olhos do comerciante estavam abertos, ela tirou duas pedras de um bolso na capa: ambas brancas sob a luz fraca do beco, embora uma estivesse lisa e polida como se fosse muito manuseada. O assassino colocou as pedras sobre os olhos abertos de co’Belgradi e pressionou fundo dentro das órbitas. A pedra do olho esquerdo foi deixada ali; já a pedra reluzente, branca e lisa que estava sobre o olho direito (o olho do ego, aquele que guardava a imagem do rosto que o olho viu no último momento), esta a Pedra Branca pegou novamente e recolocou em uma bolsinha de couro pendurada no pescoço.

— E agora eu possuo você para sempre — sussurrou a aparição conhecida como a Pedra Branca.

Um instante depois, não havia mais ninguém vivo no beco, apenas um cadáver com uma pedrinha sobre o olho esquerdo: um contrato cumprido.


??? SUBSTITUIÇÕES ???

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Jan ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ESTA ERA UMA daquelas noites ruins.

Cada tomada individual de fôlego era uma luta. Audric tinha que forçar o ar velho e inútil para fora dos pulmões, e o peito doía a cada inalação, mas ele nunca conseguia aspirar ar suficiente. O kraljiki sentou-se na cama; sentiu que, se ficasse deitado, poderia sufocar. Os curandeiros do palácio agitaram-se em volta dele, com expressões de muita preocupação nos rostos — ainda que por medo do que poderia acontecer com eles se o kraljiki morresse sob seus cuidados —, mas Audric prestou pouca atenção neles, a não ser quando tentavam fazer com que tomasse uma poção ou inalasse a fumaça de alguma erva desagradável. Os braços estavam marcados por novas casquinhas; os curandeiros quase o deixaram sem sangue, e um deles estava abrindo um novo corte, mas Audric sequer fez uma careta. Seaton e Marlon, os camareiros de Audric, entravam e saíam correndo do quarto para pegar o que quer que os curandeiros pedissem a eles.

Toda a atenção de Audric estava voltada para a guerra com o fôlego. O mundo fora reduzido à batalha por cada inalação, pela tentativa de aspirar ar suficiente para os pulmões a fim de permanecer consciente. Os limites da visão ficaram escuros; ele apenas conseguia enxergar o que estava diretamente à sua frente. Sentia pouca coisa a não ser a eterna dor no peito.

Audric prestou atenção ao quadro da kraljica Marguerite sobre a lareira ao pé da cama. A mamatarh devolvia o olhar, o rosto pintado era completamente realista, como se a moldura dourada fosse uma janela por trás da qual a kraljica estivesse sentada. Ele podia jurar que a viu se mover ligeiramente contra o pano de fundo do Trono do Sol, que o próprio trono pintado reluzia com a luz do Ilmodo como o verdadeiro fazia sempre que Audric se sentava nele.

A archigos Ana nunca dera mais do que um olhar amargo para o quadro, que sempre parecia capturar o olhar de outros visitantes ao quarto de Audric. Uma vez, ele perguntou para a archigos por que ela dava tão pouca atenção à obra-prima. A archigos apenas balançou a cabeça e disse — Tem coisa demais de sua mamatarh naquele quadro. Eu sofro por vê-la presa ali. — Então Ana franziu a testa. — Porém, seu vatarh adorava a pintura, por seus próprios motivos.

Marguerite encarava Audric agora com seu olhar penetrante e avaliador. Ele esperou que o acesso passasse. A crise passaria; sempre passara. Precisava passar. A boca de Audric moveu-se em silêncio ao rezar para Cénzi para que o acesso passasse, para que o gigante invisível montado em seu peito e que amassava seus pulmões se levantasse lentamente e fosse embora, e que ele pudesse respirar facilmente outra vez.

Isso aconteceria. Precisava acontecer.

Sua mamatarh parecia acenar com a cabeça, como se concordasse.

Enquanto encarava o quadro, Audric mais ouviu do que viu o regente ca’Rudka irromper no quarto e afastar os curandeiros. Ele debruçou-se sobre a cama e afastou a fumaça desagradável dos incensários. — Tirem essas coisas daqui — rosnou Sergei. — A archigos Ana disse que a fumaça piora a respiração do kraljiki em vez de melhorar. E saiam daqui vocês também. — Os curandeiros afastaram-se entre murmúrios, dedos ensanguentados e barulho de frascos, e deixaram o regente sozinho com Audric. Não, não sozinho... Havia outra pessoa com ele. Relutantemente, Audric tirou o olhar do quadro e cerrou os olhos na escuridão.

O esforço provocou um gemido.

— Archigos... Kenne... — Cada palavra saiu depois de um fôlego, acompanhada por uma arfada agitada de ar; ele não conseguia fazer melhor do que isso.

— Kraljiki — falou o archigos. — Por favor, não se mexa. Eu vim rezar com o senhor. — Audric viu o archigos Kenne olhar com preocupação para o regente. — A archigos Ana tinha uma... relação especial com Cénzi que infelizmente poucos ténis conseguem igualar, mas farei o que for possível. Deite-se com o máximo de conforto que conseguir. Feche os olhos e não pense em nada além da respiração. Concentre-se apenas nisso...

A respiração estava rápida e ofegante. Ele sentiu o solavanco brusco do coração contra o espaço restrito das costelas. Só conseguiu tomar um gole mínimo do precioso ar. Audric fechou os olhos quando o archigos começou a rezar. A archigos Ana, quando o visitava, também rezava e colocava as mãos com delicadeza em seu peito. Era como se Audric pudesse senti-la dentro dele. O kraljiki ouvia a voz de Ana dentro da cabeça e sentia o poder do Ilmodo queimar no peito, consumir os bloqueios e permitir que ele respirasse plenamente outra vez. Ana envolvia Audric naquele calor interior, sua voz entoava e ao mesmo tempo falava dentro de sua cabeça. — Você vai ficar bem, Audric. Cénzi está com você agora, e Ele fará sua saúde melhorar novamente. Apenas respire devagar: respire fundo e bem. Isso, assim... — Dentro de poucos minutos, ele respiraria naturalmente e com facilidade mais uma vez, um alívio que, no início, durava meses, mas recentemente durava apenas algumas semanas.

Agora, com Kenne, Audric só ouvia as preces meio sussurradas pelo homem com os ouvidos. Não havia nada dentro. Não havia calor que se espalhava pelo peito. Havia apenas as preces de um velho, ditas por uma voz vacilante do lado de fora de Audric. Não havia sensação do Ilmodo, nem sinal do poder de Cénzi — ou talvez houvesse, só que era tão fraco que Audric mal conseguia sentir. Talvez houvesse calor, talvez a expansão e a contração dos pulmões estivessem um pouco mais fáceis. Audric tentou respirar fundo, mas o esforço provocou uma tosse seca e espasmódica que fez com que dobrasse o corpo na cama. Ele abriu os olhos, e viu Marguerite franzir a testa no quadro. Audric viu as gotículas de sangue que espirraram sobre o lençol.

— Você tem que lutar contra isso, Audric. Se você morrer, nossa linhagem morre, e com ela nosso sonho para Nessântico e os Domínios... — Ele viu os lábios pintados de Marguerite se moverem, ouviu a voz que sempre imaginou que ela tivesse. — Você tem que lutar contra isso. Eu vou ajudar você...

Sergei correu rapidamente para o lado de Audric, que sentiu a mão forte do regente em suas costas e ouviu sua voz chamar Marlon com rispidez. Deram um pano molhado em água fria para o kraljiki. Audric pegou com gratidão e levou o pano aos lábios. Sentiu o gosto doce da água. E sim, ele conseguia respirar um pouco melhor. — Obrigado, regente — falou o kraljiki. — Estou muito... melhor agora... archigos. — A própria voz soou distante e abafada, como se alguém meio que cobrisse seus ouvidos. Era a voz de Marguerite que soava mais claramente.

— Escute o que digo, Audric. Eu vou ajudar você. Escute a sua mamatarh...

O archigos Kenne assentiu com a cabeça, mas Audric apenas viu a dúvida nos olhos do homem. — Sinto muito, kraljiki. A archigos Ana... Eu sei que ela podia fazer mais pelo senhor.

Audric esticou o braço para tocar a mão do homem. A pele de Kenne era fria e seca como papel velho. — Eu vou ficar bem — disse o kraljiki. — Acho que... encontrei a solução.

O retrato de Marguerite dirigiu um sorriso sutil para o neto, e ele devolveu o gesto.

— Você não pode morrer porque tem muita coisa a fazer...

— Eu não posso morrer porque tenho muita coisa a fazer — falou Audric para ele, para os dois. Foi tanto uma promessa quanto uma ameaça.

 

Varina ci’Pallo

À ÉPOCA EM QUE ELA se juntou aos numetodos, quando era apenas uma humilde iniciada na sociedade deles e tinha acabado de conhecer Mika e Karl, a Casa dos Numetodos era um local decadente no centro do Velho Distrito, oculto pela pobreza e sujeira dos prédios do entorno.

Agora, a Casa dos Numetodos ocupava um belo prédio na margem sul, com um jardim, piso lustroso do lado de fora e portões que davam para a Avi a’Parete — um presente da archigos Ana e (com mais relutância) do kraljiki Justi pela ajuda dos numetodos em acabar com o cerco firenzciano à cidade em 521. As acomodações mais espaçosas e luxuosas ajudaram a tornar os numetodos mais aceitáveis para os ca’ e co’, mas também os deixou mais visíveis. No passado, eles reuniam-se em segredo, e a maioria dos integrantes mantinha a afiliação em segredo. Isso acabou. Varina não tinha dúvidas de que todos aqueles que cruzavam os portões eram observados pelo utilino e pela Garde Kralji, que constantemente patrulhavam a Avi, e de que a informação era transmitida ao comandante — e dele seguia para Sergei ca’Rudka, o Conselho dos ca’ e do kraljiki.

Os numetodos eram conhecidos — o que não era problema, desde que suas crenças fossem toleradas. Porém, com a morte de Ana, Varina não tinha mais certeza de quanto tempo essa situação duraria. Seus receios a levaram de volta à pesquisa...

Apesar dos rumores paranoicos entre os fiéis conservadores, grande parte da pesquisa dos numetodos não tinha nada a ver com magia: eles realizavam experiências de física e biologia; criavam belos e elegantes teoremas matemáticos; pesquisavam medicina; exploravam alquimia; examinavam livros empoeirados e cavavam antigos sítios arqueológicos para recriar a história. Mas, para Varina, era a magia que a fascinava. O que a intrigava em particular era como a Fé, os numetodos e os ocidentais abordavam a conjuração de feitiços.

Os numetodos provaram há muito tempo — apesar da negação irritada e por vezes violenta da fé concénziana — que a energia do Segundo Mundo não precisava de crença em deus algum. Podia ser chamada de “Ilmodo”, “Scáth Cumhacht” ou “X’in Ka.” Não importava. Essa compreensão dissolveu quaisquer resquícios de fé que Varina tivesse quando se juntou aos numetodos.

“Conhecimento e compreensão podem ser moldados somente pela razão e lógica; só que não é algo fácil ou simples. As pessoas criam deuses para explicar o mundo de modo que não tenhamos a responsabilidade de descobrir as coisas por nós mesmos.” Foi o que ela ouviu Karl dizer em uma palestra há anos, quando ela considerou se juntar aos numetodos pela primeira vez. “A magia é uma manifestação tão religiosa quanto o fato de que um objeto solto da mão cairá no chão.”

Sim, tanto os ténis da fé concénziana quanto os ocidentais usavam cânticos e gestuais para criar a estrutura do feitiço, e, no entanto, cada um deles tinha uma “crença” diferente como base, que permitia que dominassem a energia da magia. O que os numetodos perceberam foi que os cânticos e gestuais usados pelos feiticeiros eram apenas uma “fórmula”. Uma receita. Nada mais. Falar essa sequência de sílabas com aquele conjunto de movimentos daria nesse resultado.

Mas os ocidentais... Varina não conheceu Mahri, o Maluco, mas Karl e Ana conheceram, e as histórias dos nahualli ocidentais dos Hellins apenas confirmavam o que eles disseram sobre Mahri. Os nahualli eram capazes de colocar os feitiços dentro de objetos, que depois podiam ser disparados por uma palavra, um gesto ou uma ação. Nem os ténis, nem os numetodos conseguiam fazer isso. Os feiticeiros ocidentais invocavam os próprios deuses para os feitiços, assim como os ténis faziam com os seus, mas Varina tinha certeza de que os deuses ocidentais eram tão imaginários e desnecessários quanto Cénzi e seu moitidi.

Se ela conseguisse aprender os métodos dos ocidentais, se fosse capaz de encontrar a fórmula das palavras e gestos corretos para colocar o Scáth Cumhacht dentro de um objeto inanimado, então ela poderia começar a replicar o que Mahri foi capaz de fazer. Ela vinha trabalhando nisso, de tempos em tempos, há anos. Agora a preocupação movia Varina mais do que nunca: preocupação com o significado da morte de Ana para os numetodos; com a imensa tristeza de Karl, que abalava Varina como se fosse sua.

Se ela não conseguia entender por que as pessoas faziam coisas tão terríveis umas com as outras, pelo menos tentaria compreender isso.

Varina estava em um cômodo quase sem mobília, nos níveis inferiores da Casa. Na mesa diante dela havia uma bola de vidro que Varina comprara de um vendedor no Mercado do Rio, pousada em um ninho de pano para que não rolasse. A bola era feita inabilmente: havia uma linha de pequenas bolhas de ar no interior e o vidro ao redor dela estava manchado e marrom, mas Varina não se importava — ela tinha sido barata. Varina entoou e mexeu as mãos: um simples e fácil feitiço de luz, um dos primeiros truques ensinados a um iniciado numetodo. Moldar o feitiço de luz não exigia esforço, mas colocá-lo dentro do vidro era bem, bem mais difícil. Era como empurrar um fio de cabelo por uma parede de pedra. Ela sentiu a fadiga minar sua força. Varina ignorou a sensação e concentrou-se na bola de vidro à sua frente, tentou imaginar o poder do Scáth Cumhacht entrando no vidro da mesma forma que ela teria colocado a energia dentro da própria mente, visualizou a luz potencial depositada em volta daquelas bolhas bem no fundo do vidro e colocou uma palavra ali que acionaria o feitiço.

O encantamento terminou; Varina abriu os olhos. Seus músculos tremiam como se ela tivesse corrido quilômetros ou levantado pesos por uma virada da ampulheta. Ela teve que fazer um esforço para continuar de pé. A bola estava apoiada na mesa, e Varina permitiu-se dar um sorrisinho. Agora, se...

A bola começou a vibrar sem ser tocada. Varina deu um passo para trás quando ela soou como uma taça de vidro batida por uma faca, houve um faiscar súbito de uma brilhante luz amarela e o globo estilhaçou-se. Ela sentiu uma lasca atingir seu braço erguido e gritou.

— Você está bem? — Varina escutou a voz atrás dela na porta: Mika. O líder dos numetodos entrou rapidamente no aposento, enquanto balançava a cabeça cada vez mais careca e esfregava a barba por fazer no queixo. — Você está sangrando, e parece que não dorme há uma semana. — Ele puxou uma cadeira até a mesa e ajudou Varina a se sentar.

Ela ergueu o braço, que parecia tão pesado quanto um bloco de mármore do Palácio do Kraljiki, e examinou o corte no antebraço. Era comprido, mas não fundo, e Varina fez uma careta ao puxar uma lasca de vidro da ferida. Um filete de sangue escorreu no braço próximo à mão, que ela ignorou. — Droga. — Varina fechou os olhos, depois abriu de novo com esforço para olhar a mesa: o globo havia se partido praticamente ao meio na linha de bolhas, e o pano de apoio estava cheio de cacos. — Eu cheguei tão perto.

— Eu estava vendo — disse Mika, que deu uma olhadela para o globo quebrado. — Pensei que você finalmente tivesse conseguido.

— Eu também pensei. — Varina balançou a cabeça. — Mas estou cansada demais para tentar novamente.

— Melhor assim. Eu desci para lhe dizer: Karl voltou para o próprio apartamento.

Varina inclinou a cabeça, intrigada. — Eu pensei que ele ficaria com você, Alia e as crianças por enquanto.

Mika deu de ombros. — Ele disse que estava bem, que precisava retomar a própria vida. Que precisava retomar os compromissos numetodos e o trabalho como embaixador.

— Você não parece acreditar nisso.

— Eu acho... — Mika cerrou os lábios finos. — Estas são desculpas. Karl está magoado e com raiva, e eu não tenho certeza do que ele vai fazer. Acho que Karl precisa de alguém ao lado dele, para conversar se ele quiser, para garantir que esteja bem e que não faça nenhuma estupidez. A morte de Ana abalou Karl mais do que ele admite.

Mika ficou em silêncio, e Varina sentiu que ele esperava por uma resposta. Mas estava difícil simplesmente manter a cabeça erguida. O sangue pingou do dedo para o chão; as metades partidas do globo de vidro reluziam de maneira acusadora para ela sob a luz da lamparina. — Acho que posso mandar Karoli ou Lauren visitá-lo — disse Mika em meio ao silêncio.

— Eu vou. Apenas dê-me alguns minutos. Tenho que me arrumar.

Mika sorriu e falou — Deixe-me ajudar você.

 

Jan ca’Vörl

JAN GOSTAVA DE FYNN. Ele não tinha certeza do que sua matarh pensaria a esse respeito.

Allesandra contou para o filho que ela nunca conheceu Fynn, que o irmão nasceu poucos meses depois que ela foi sequestrada pela archigos Ana da tenda do hïrzg Jan no campo de batalha. Quando era criança, Jan não tinha compreendido todas as implicações dessa situação; agora, ele achava que finalmente começara a entender a dinâmica do relacionamento entre irmã mais velha e irmão caçula, distorcido e desvirtuado pelo orgulho e pela vaidade do vatarh de Allesandra e Fynn. Ele entendia que sua matarh jamais se permitiria gostar de Fynn, nunca poderia tratá-lo como irmão, jamais confiaria nele.

Mas ele gostava do sujeito, seu onczio.

Fynn mandou um bilhete para Jan imediatamente depois da Segunda Chamada, para convidá-lo a se juntar a ele na reunião da tarde. Jan sentou-se ao lado de Fynn, que se inclinava para sussurrar comentários irônicos enquanto os vários ministros e conselheiros colocavam o novo hïrzg a par das novidades sobre a atual situação política. Helmad co’Göttering, comandante da Garde Brezno, relatou que houve um pequeno conflito com forças leais de Tennshah a leste do lago Cresci, facilmente debelada. (— Você devia ver como eles correm como cães açoitados quando veem soldados de verdade cavalgando entre suas cabanas. Todos eles têm medo de um bom aço firenzciano — disse Fynn baixinho no ouvido de Jan. — Minha própria espada tem manchas de sangue de incontáveis dezenas de soldados de Tennshah. No outono, se quiser, podemos passear pela região, e talvez colocar alguns desses rebeldes para correr nós mesmos.)

O starkkapitän Armen ca’Damont da Garde Civile firenzciana atualizou as informações sobre a guerra dos Domínios nos Hellins, a qual, se tudo o que o starkkapitän disse fosse verdade, não estava indo bem para os Domínios e o kraljiki. (— Os Domínios não sabem guerrear de verdade, Jan. Eles dependeram de Firenzcia para isso por tempo demais e esqueceram. Se nós pudéssemos mandar nossa Garde Civile e um batalhão de bons Lanceiros Vermelhos para lá por um mês, debelaríamos esses ocidentais de uma vez por todas.)

O archigos Semini especulou sobre quem o Colégio A’téni poderia nomear como novo archigos “daquela Fé falsa e desprezível em Nessântico” e teceu um longo e tedioso comentário sobre cada a’téni das principais cidades dos Domínios e seus relativos pontos fortes e fracos. Ele alegou que o a’téni ca’Weber de Prajnoli se tornaria o próximo archigos em Nessântico, em última análise. (— E, no fim das contas, não importa quem eles escolham, portanto todo esse esforço e conversa fiada é uma perda do nosso tempo, não é?)

Havia relatórios sobre a falta de comida na Magyaria Oriental (— Você comeu o suficiente no almoço, não é?), sobre práticas comerciais injustas entre Firenzcia e Sesemora (— Você acha isso tão chato quanto eu?), sobre o valor relativo das solas firenzcianas contra as solas dos Domínios (— Por Cénzi, acorde-me quando este aí terminar de falar, pode ser, sobrinho?). No fim, Jan já não escutava mais. Ao dar uma olhadela para Fynn, viu que os olhos do onczio também perderam o foco. Os dedos do novo hïrzg tamborilavam no tampo da mesa com impaciência, e ele remexia o corpo inquieto na cadeira. Quando a próxima ministra ficou de pé para dar seu relatório, Fynn ergueu a mão e disse — Chega. Mande-me o relatório que eu lerei. Tenho certeza de que é fascinante, mas meus ouvidos estão prestes a cair pelo uso exagerado, e eu prometi uma caçada ao meu sobrinho. Saiam!

Eles resmungaram baixinho, franziram a testa, mas todos fizeram uma mesura e saíram da sala. O hïrzg fez um gesto para que os criados em pé contra as paredes trouxessem comes e bebes. — Então... — falou Fynn enquanto os dois beliscavam os pães e frios e bebiam o vinho — a vida de um hïrzg é uma delícia, não é? Todo aquele falatório sem parar... Eu entendo por que o vatarh sempre ficava de péssimo humor antes dessas reuniões.

— Eu acho que o archigos Semini estava errado — disse Jan. Ele não tinha certeza por que disse isso; de alguma forma confiou que Fynn fosse dar ouvidos. A matarh sempre deu sermões, como se ela fosse uma professora e ele, o estudante; o vatarh estava mais preocupado com o próprio prazer do que escutar as opiniões do filho. O onczio Fynn, por outro lado, realmente deu ouvidos a ele na noite anterior, durante o jantar, enquanto os demais à mesa teriam preferido que ele ficasse calado. Então, agora, Jan falou o que pensava, apenas com a voz um pouco trêmula. — Ca’Weber não será nomeado archigos. O Colégio vai escolher Kenne ca’Fionta.

Fynn ergueu uma sobrancelha grossa e escura. — Por que você diz isso? Semini pareceu achar que ca’Fionta era o mais fraco do grupo.

— É exatamente por isso — respondeu Jan com mais avidez agora. Ele assinalou os argumentos com a ponta dos dedos. — O archigos Semini presumiu que o Colégio A’téni pensará como ele pensaria e escolherá a pessoa que ele escolheria. Eles não farão isso. O resto dos a’ténis está preocupado nesse momento: o assassinato da archigos Ana fez com que eles vissem que um archigos forte tem inimigos, e os a’ténis também se perguntam por quanto tempo a Fé pode se manter dividida, agora que a archigos Ana está morta. Então, eles escolherão Kenne: porque ele é fraco e porque é mais velho do que qualquer um dos a’ténis. E mesmo que Kenne seja uma má escolha, eles não terão que aguentá-lo por décadas.

Fynn riu. Ele bateu com a borda de sua taça na de Jan. Ao se inclinar na direção do sobrinho, o hïrzg passou um braço parrudo sobre seus ombros. — Muito bem dito, e veremos em breve se você está certo. O que mais anda escondendo? Vamos, você não pode esconder o resto de mim.

Fynn estava sorrindo. Jan sorriu de volta e sentiu apreço pelo homem. — O starkkapitän ca’Damont pode estar certo a respeito da guerra nos Hellins, mas ele não nota a importância da guerra. Com a Garde Civile dos Domínios concentrada naquele conflito e gastando recursos, dinheiro e soldados todo mês, eles não podem se voltar para leste com força alguma. Os Domínios estão em uma posição fraca de negociação contra a Coalizão; em termos militares, eles estão em uma posição ainda pior. Um hïrzg forte pode tirar vantagem disso, de uma forma ou de outra.

Fynn levantou ainda mais as sobrancelhas e deu um abraço apertado nos ombros de Jan. — Por Cénzi, eu deveria fazer de você meu novo conselheiro, sobrinho. Você tem a mente sutil de sua matarh.

Ele abraçou Jan novamente com um braço só, depois desmoronou na cadeira. — Ah! Eu gosto de você, Jan! Isso me faz pensar no que perdi com a minha irmã. — Fynn franziu a testa ao dizer isso e tomou outro gole de vinho. — Você sabia que eu sequer fazia ideia de que tinha uma irmã até mais ou menos os nove anos? O vatarh jamais a mencionou para mim uma vez sequer. Jamais. Não falou o nome dela uma vez que fosse; era como se Allesandra jamais tivesse existido para ele. Então, quando decidiu que finalmente pagaria o resgate por ela, o vatarh sentou-se comigo e me explicou que Allesandra fora levada pela archigos bruxa. Ele não me contou como esse fato acabou com a guerra com os Domínios; isso eu aprendi muito tempo depois. O vatarh sempre foi amargo a respeito daquilo, sua única derrota. Creio que Allesandra era o símbolo daquele fracasso para ele, por isso certamente casou a filha, assim que ela retornou. Eu nunca a conheci realmente...

O hïrzg tomou outro longo gole do vinho e bateu a taça na mesa com tanta força que Jan deu um pulo. O vinho derramou; a base da taça deixou uma mancha em formato de lua crescente na mesa.

— Agora vamos caçar! — declarou Fynn. Ele empurrou a cadeira e ficou de pé. — Ande, sobrinho. Vamos para a Encosta do Cervo.

 

Enéas co’Kinnear

SE ELE ESTAVA MORTO, a vida após a morte não era nada como a que os ténis prometiam aos fiéis.

A vida após a morte de Éneas era iluminada por uma luz fraca e avermelhada e fedia à carne podre e enxofre. O solo onde estava deitado era molhado e duro, com punhos de pedra cutucando suas costas. Os ténis sempre disseram que os males do corpo de uma pessoa seriam curados quando ela finalmente descansasse nos braços de Cénzi, que braços e pernas perdidos seriam restaurados, que não haveria mais dor.

Mas a respiração de Enéas tremeu nos pulmões, e, quando tentou se mover, a agonia fez com que ele berrasse.

Enéas ouviu asas baterem em resposta, pontuadas por grasnidos roucos de alerta. Ele piscou, e a vermelhidão acompanhou as pálpebras. Ergueu lentamente uma mão ferida e esfregou os olhos. O filtro vermelho clareou um pouco, e Éneas percebeu que olhava para uma paisagem iluminada pelo luar através de uma película viscosa de sangue, com a cabeça no solo lamacento. Uma montanha marrom erguia-se a um metro dedo de distância. Ele piscou novamente e franziu os olhos; era um cavalo caído e morto, seu cavalo de guerra. Cénzi, o Senhor me deixou vivo. Quando se deu conta disso, duas patas com garras apareceram no cume da montanha equina, acompanhadas por outro grasnido irritado, e Enéas ergueu o olhar para ver uma das aves carniceiras dos Hellins, a criatura que os soldados chamavam de estripadores: pássaros feios com uma envergadura da altura de dois homens ou mais, grandes bicos curvos em um rosto sem penas e branco como um fantasma, olhos sem expressão, como contas negras, e garras curvas para abrir os cadáveres que eles preferiam comer. Não havia nada como esses bichos nos Domínios.

O pássaro olhou fixamente para Enéas, como se observasse uma bela refeição posta diante de si. O o’offizier apoiou-se nos cotovelos; era o mais próximo que conseguiria chegar de se sentar. Irritado, o pássaro guinchou e foi embora voando. Enéas sentiu o vento desagradável provocado pelas asas.

Não morri. Não ainda. Louvado seja Cénzi.

Ele tentou se lembrar de como chegou ali, mas a cabeça estava confusa. Lembrava-se de ter falado com o a’offizier ca’Matin e do início da investida, a corrida morro abaixo em direção à força ocidental. Então... então...

Nada.

Enéas balançou a cabeça para desprender a memória. O gesto foi um erro. O mundo ao redor girou, a vermelhidão voltou, e ele sentiu uma pontada de dor nas têmporas. Ele se equilibrou antes que caísse no chão novamente e esperou que a terra parasse de girar. Novamente, fez um esforço para ficar sentado e tocou a cabeça com hesitação; o cabelo estava empastado com sangue seco e os dedos sentiram o contorno irregular de um corte comprido e profundo. Enéas começou a passar mal. Deixou a mão cair, fechou os olhos e respirou fundo várias vezes até que a náusea passasse, enquanto recitava a Prece da Aceitação para se acalmar. Abriu os olhos novamente e olhou em volta com cuidado.

Havia estripadores por toda parte; sob o fraco luar, o campo parecia vivo com eles e o solo corcovado com os morros escuros dos corpos dos companheiros de Enéas e seus cavalos caídos. O som repugnante, úmido e rascante dos pássaros comendo os corpos era um barulho que atormentaria seus pesadelos para sempre. Bem ao longe, abaixo do declive onde estava sentado, Enéas viu o brilho de uma fogueira, e ao redor dela as silhuetas escuras de gente se mexendo. Havia outro som, mais fraco: cantoria?

As figuras recortadas pelas chamas usavam acessórios com penas na cabeça, Enéas viu. Eles eram ocidentais, então. “Tehuantinos”, como se chamavam. Todos os corpos ao redor usavam os uniformes com detalhes dourados de Nessântico, agora pretos pelo sangue e pelo luar mortiço em vez do azul reluzente que deveriam ter.

Nós perdemos. Fomos massacrados aqui, e as pessoas em Munereo podem não saber o resultado ainda. Cénzi, é por isso que o Senhor me salvou, para que eu pudesse avisá-los...?

Enéas tentou se mexer; as pernas não quiseram cooperar, e ele percebeu que uma delas ainda estava presa debaixo do seu cavalo. Com o máximo de silêncio possível, Enéas empurrou a carcaça com a perna livre, e enfim a perna se soltou. O tornozelo estava inchado e sensível; Enéas não tinha certeza se poderia se apoiar nele.

O o’offizier encontrou a espada ao seu lado meio enterrada na lama. Enfiou a lâmina imunda na bainha presa ao cinto. Com uma careta, rastejou na direção das chamas, meio que se arrastando em volta do cavalo.

Parte de Enéas gritou em alerta. Ele ia na direção do inimigo; os tehuantinos o matariam se o vissem. Todos os a’offiziers contavam como os ocidentais percorreram o campo de batalha após o combate no lago Malik, como eles mataram todos os gardai que ainda estavam vivos mas aleijados ou gravemente feridos. Aqueles que estavam apenas levemente feridos foram levados como prisioneiros. Os rumores sobre o que os ocidentais tinham feito com eles eram muito, muito piores.

A fogueira — imensa e furiosa — estalava no pé da ladeira, e reunidos ao redor estavam os ocidentais: milhares deles, enquanto fogueiras menores pontuavam a paisagem depois do grande fogaréu onde o inimigo estava acampado. Enéas viu um grupo de cavalos atrelados de um lado da fogueira, um pouco distante dos ocidentais sentados em volta das chamas.

Se ele não podia andar, ainda podia cavalgar.

A jornada pareceu levar séculos. As estrelas deram voltas pela Estrela Velejante, a lua chegou ao ápice e começou a descer, os estripadores continuaram o festim sangrento. Exausto, Enéas descansou atrás da cobertura de uma pilha de toras. Os cavalos relincharam perto dali; ele sentiu o cheiro dos animais e ouviu seus movimentos agitados. A cantoria estava mais alta agora, uma melodia grave e dissonante, as palavras que os ocidentais cantavam eram estranhas e desconhecidas: mil vozes, todas cantando juntas. O zumbido monótono era alto e enlouquecedor; a música vibrava no peito e parecia fazer tremer o próprio solo. Ele conseguiu ver os ocidentais: a pele bronzeada como o povo de Namarro, a armadura de bambu com anéis de ferro que tilintavam enquanto eles cantavam e se agitavam. As imensas toras da pira desmoronaram e dispararam fagulhas para o alto com um ribombar.

Um ocidental à frente das fileiras ficou de pé e avançou. Ele ergueu os braços nus e musculosos; como os demais, o homem usava um elmo de bambu decorado com penas compridas e reluzentes. Havia um grande disco prateado e amassado sobre o peito, pendurado no pescoço por uma corrente, e pintado com figuras: o que identificava o homem como um offizier ocidental. Ele parou de cantar ao proclamar alguma coisa em voz alta. Mais dois guerreiros ocidentais saíram da escuridão do outro lado da fogueira e arrastando com eles a figura ensanguentada de um homem. Sua cabeça levantou-se quando os soldados se aproximaram da luz da fogueira, e, mesmo àquela distância, Enéas reconheceu o a’offizier ca’Matin. Ele estava nu até a cintura e agora era forçado a ficar de joelhos em frente ao offizier ocidental. Enéas ouviu ca’Matin rezar para Cénzi, com a face erguida para as fagulhas, as estrelas e a lua; para qualquer coisa, menos para o ocidental.

O ocidental falava com ca’Matin enquanto retirava um apetrecho estranho de uma bolsinha no cinto. Enéas apertou os olhos para tentar ver o que era no momento em que o offizier ergueu o objeto para mostrá-lo às tropas reunidas. Um cano curto e curvo como o chifre de um touro de cor marfim reluziu; o apetrecho tinha um cabo de madeira. O offizier ofereceu o objeto para ca’Matin com o cabo voltado para frente. Quando ca’Matin o pegou, com mãos visivelmente trêmulas e uma expressão de dúvida, o guerreiro virou o chifre de marfim — Enéas ouviu um nítido clique metálico — e deu um passo para trás. Ele fez um gesto como se virasse o apetrecho, depois como se tocasse a ponta do chifre no abdômen. Ca’Matin balançou a cabeça e o offizier ocidental suspirou. Sua expressão parecia quase solidária ao pegar o instrumento e virá-lo nas mãos de ca’Matin. Ele fez um gesto de apoio com a cabeça ao empurrar as mãos de ca’Matin para trás. O chifre tocou no estômago de ca’Matin.

Houve um clarão que iluminou toda a paisagem como se fosse um raio, e ecoou um trovão estrondoso que abafou o grito involuntário de Enéas e fez os cavalos relincharem nervosos e lutarem contra as amarras. Ca’Matin escancarou a boca e os olhos, embora a expressão parecesse estranhamente estática para Enéas, como se no momento final Cénzi tivesse tocado o a’offizier com Sua glória.

Ca’Matin desmoronou, e o apetrecho caiu de suas mãos. O estômago era uma cavidade sangrenta, como se tivesse sido rasgado por um punho com garras. Entranhas e sangue estavam espalhados pelo chão debaixo do homem, bem como nas pernas dos ocidentais em volta dele. O offizier ocidental levantou as mãos novamente, e a cantoria recomeçou. Com uma estranha reverência, os dois soldados que trouxeram ca’Matin até a fogueira envolveram o corpo em um pano tingido com cores intensas dispostas em padrões geométricos. Eles entraram correndo nas sombras com o cadáver embrulhado.

Enéas forçou-se a andar novamente, agora mais desesperadamente. Ele não sabia que feitiçaria fora feita com ca’Matin, mas tinha que dar um jeito de voltar para Munereo: para avisá-los. Ajude-me a fazer isso, Cénzi... Enéas começou a rastejar na direção dos cavalos. Se conseguisse erguer o corpo e jogar a perna ferida por cima... Os ocidentais poderiam persegui-lo, mas Enéas conhecia esse terreno tão bem quanto eles, talvez até melhor, e seria encoberto pela noite.

Ele chegou aos cavalos agora. Eram cavalos de guerra capturados de Nessântico, usavam os uniformes que ele conhecia tão bem e, mais importante, ainda estavam selados. Eram mais lentos do que as montarias dos ocidentais, mas mais vigorosos. Se Enéas conseguisse uma vantagem razoável, os cavalos dos ocidentais poderiam se cansar antes de alcançá-lo.

Com a ajuda de Cénzi...

Enéas desamarrou as patas de uma grande égua cinzenta e manteve o animal entre ele e a fogueira. O cavalo de guerra relinchou, mostrando o branco de seus olhos sob o luar. Enéas sussurrou com delicadeza para ela. — Shh... shh... Tudo bem... Você vai ficar bem... — Ele agarrou as correias da sela e ficou de pé, tirando o peso do tornozelo machucado. Pegou as rédeas com uma mão e acariciou o pescoço do animal. — Shh... Quieta, agora... — Ele teria que se equilibrar parcialmente no tornozelo machucado para colocar um pé no estribo; com delicadeza, Enéas pousou o pé no chão e apoiou o peso sobre ele devagar. Mordeu o lábio inferior ao sentir a dor. Ele conseguiria por um instante. Era tudo que era preciso...

Enéas levantou o pé que estava bom e o colocou no estribo. Uma onda de facadas se espalhou do tornozelo até a perna durante o instante em que ele sustentou todo o peso, e a agonia quase fez com que Enéas desmaiasse. Desesperadamente, ele passou a perna machucada sobre a espinha do cavalo e quase gritou quando o tornozelo bateu no outro lado do corpo maciço do animal. Mas agora Enéas estava no cavalo de guerra, meio deitado sobre o pescoço grosso e musculoso da montaria. Ele estalou as rédeas e cutucou com a perna boa. — Devagar — falou para a égua cinzenta. — Muito devagar agora. Quieta...

A égua balançou a cabeça e começou a se afastar dos outros cavalos. Ela voltou para a encosta, longe da luz da fogueira e do acampamento. A cantoria dos ocidentais encobriu o som dos cascos com ferraduras no solo. Assim que entrasse na escuridão novamente, assim que conseguisse colocar a saliência de um daqueles morros entre ele e os ocidentais, Enéas poderia galopar a toda.

Ele começava a ousar pensar que seria possível.

Enéas quase não notou a silhueta que se movia à sua esquerda, um pedaço de escuridão que se levantou subitamente e se atirou sobre ele. Enéas teve apenas um vislumbre do rosto sinistro antes que o homem o acertasse e derrubasse da sela. Um clarão de luz flamejou atrás dos olhos quando Enéas caiu no chão, e ele gritou de dor na perna machucada, que ficou torcida debaixo do corpo. Ele ouviu o cavalo de guerra ir embora a galope, sem cavaleiro, e então a sombra de um guerreiro ocidental com os braços erguidos surgiu sobre ele, e Enéas caiu novamente na escuridão.

 

Allesandra ca’Vörl

— EU GOSTARIA DE ME DESCULPAR pela minha esposa, a’hïrzg. Ela... bem, o assunto da archigos bruxa sempre a aborrece. Elas têm... uma história em comum, afinal. Ainda assim, minha esposa não deveria ter dito o que pensa no jantar ontem à noite, especialmente para a senhora, como anfitriã.

Allesandra assentiu com a cabeça para o archigos Semini. Eles estavam sentados em uma plataforma de observação no alto de uma ladeira atrás da residência particular do hïrzg — o palácio na Encosta do Cervo, bem afastado de Brezno. Os dois olhavam para leste, para a vista de uma campina comprida e larga, de grama alta, cheia de flores silvestres. Lá embaixo, eles enxergavam um grupo de figuras e cavalos: Fynn, Jan e vários outros. De ambos os lados da campina, em uma floresta de abetos altos, tambores ecoavam dos flancos dos morros íngremes e verdejantes que formavam a paisagem: o som dos batedores, que arrebanhavam a presa para a campina e para o hïrzg, à espera.

Atrás de Allesandra, na sacada, criados corriam de um lado para o outro com comes e bebes enquanto preparavam uma mesa comprida para o jantar. Fora isso, Allesandra e o archigos estavam sozinhos; todos os outros privilegiados ca’ e co’ que jantariam com eles naquela noite estavam com o grupo do hïrzg na campina. Allesandra não tinha a menor vontade de ficar tão próxima do irmão por tanto tempo assim. Ela não tinha certeza por que Semini ficou para trás, no palácio — Francesca estava na campina com os demais.

— Por favor, acredite em mim quando digo que não me ofendi, archigos — falou Allesandra. — Embora eu tenha muito mais simpatia pela archigos Ana, entendo que sua esposa se sinta dessa maneira.

Ela deu uma olhadela para Semini e viu o archigos sorrir. — Obrigado. Isso é gentil de sua parte. — O homem olhou com cuidado para os criados, depois abaixou o tom de voz para que eles não conseguissem escutar. — Cá entre nós, a’hïrzg, eu gostaria de ter convencido seu vatarh a nomear a senhora como herdeira. Aquele menino... — ele apontou com o queixo para o grupo na campina — ... seria um starkkapitän perfeitamente adequado para a Garde Civile, mas ele não tem a visão ou a inteligência para ser um bom hïrzg.

— Creio que ouvi o archigos falar em traição. — Allesandra teve a cautela de manter o olhar afastado do archigos e concentrou sua atenção em Jan, a cavalo ao lado de Fynn. Ela perguntou-se se podia acreditar no que ca’Cellibrecca dizia e por que ele declararia tal opinião para ela. O archigos tinha motivos para agir assim, Allesandra tinha certeza: Semini não era um homem de fazer declarações acidentais. Mas qual era o motivo? O que ele queria, e como isso o beneficiaria?

— Será que eu talvez tenha dito o que também está no seu coração, a’hïrzg,
mesmo que a senhora não ouse dizer em voz alta? — respondeu Semini no mesmo sussurro baixo e rouco. O archigos voltou-se para ela. — Meu coração está aqui, neste país, a’hïrzg Allesandra. Eu quero o que é melhor para Firenzcia. Nada mais. Eu dei minha vida a serviço de Cénzi e a serviço de Firenzcia. Eu compartilhava a visão de seu vatarh de que os Domínios deviam ter Brezno, e não Nessântico, como o centro de todas as coisas. Ele quase conseguiu realizar essa visão. Ele teria realizado, estou convencido, se não tivesse sido a feitiçaria herege da archigos bruxa.

Havia ódio na voz de Semini, genuíno e intenso. E também uma estranha satisfação.

O vatarh teria sido bem-sucedido se Ana não tivesse me capturado como refém, se não tivesse me arrancado do vatarh e me usado para terminar a guerra. Enquanto Allesandra permanecesse em Nessântico, enquanto o vatarh se recusasse a pagar o resgate exigido, sua derrota ainda não seria completa. Ainda havia esperança de que os resultados pudessem mudar, e o vatarh levou pouco mais de uma década para perder aquela esperança.

Era o que Allesandra dizia para si mesma. Era o que Ana dizia para ela. Ana jamais falou mal do hïrzg Jan; sempre pintou seu vatarh da maneira mais favorável possível, mesmo quando Allesandra bufava de raiva por ele demorar a pagar o resgate.

Allesandra tomou fôlego e levou a mão à garganta, tocando o globo partido de Cénzi em volta do pescoço.

Ca’Cellibrecca evidentemente interpretou mal o pensamento por trás do gesto. — Ah, vejo que compartilhamos a mesma opinião sobre Ana ca’Seranta. Aquela criatura impediu que os Domínios desmoronassem sob o governo de Justi, aquele tolo perneta. E agora, finalmente, ela morreu, louvado seja Cénzi. — O tom de voz ficou ainda mais baixo quando ele inclinou o corpo e se aproximou de Allesandra. — Agora seria a hora para um novo hïrzg fazer aquilo que seu vatarh não conseguiu... ou seria a hora, se tivéssemos um hïrzg, ou hïrzgin, à altura da tarefa. Alguém que não fosse Fynn. Existem aqueles em Nessântico que acreditam nisso, a’hïrzg. Pessoas que a senhora não suspeitaria que tenham ideias assim.

O clamor dos batedores estava se aproximando no vale abaixo. Os cavaleiros remexiam-se irrequietos, e Allesandra viu Fynn sinalizar para que Jan encaixasse a flecha no arco. — O que você está me dizendo, archigos? — perguntou ela enquanto observava a cena abaixo dos dois.

— Estou dizendo que a senhora atualmente é a a’hïrzg, mas ambos sabemos que esta é uma situação temporária. Mas se Fynn, de alguma forma... — Ele hesitou. Os tambores bateram alto lá embaixo, e agora eles podiam ouvir uma movimentação debaixo da sombra das árvores à direita. — ... não fosse mais hïrzg, então a senhora se tornaria hïrzgin. — Outra pausa. — Como deveria ter sido.

Os tambores e a gritaria ficaram mais altos, e de repente um cervo surgiu da linha de árvores a várias dezenas de passos do grupo do hïrzg. O animal era magnífico, a galhada tinha a envergadura dos braços e ombros de uma pessoa, alcançava facilmente a altura de um homem alto ou mais. A pele tinha um tom deslumbrante de marrom-avermelhado com um toque de branco debaixo da garganta. O cervo saiu do matagal a meio galope, e sentiu o cheiro do grupamento de caça. Allesandra sentiu uma aflição ao ver a bela criatura; ao lado, ela ouviu Semini murmurar — Por Cénzi, olhe aquele animal lindo!

O cervo parou e olhou fixamente para os cavaleiros por um instante antes de dar um pulo enorme e fugir na direção do fim da campina, ao longe. No mesmo instante, eles viram uma flecha ser disparada pelo arco de Fynn, e o estalo da corda do arco chegou com atraso aos seus ouvidos. O cervo caiu com as patas traseiras emaranhadas e a flecha enterrada nas ancas. Então, o animal levantou-se outra vez e começou a correr.

Jan esporeou o cavalo no momento do disparo de Fynn. Ele correu atrás do cervo ferido e controlou a montaria apenas com as pernas enquanto puxava o arco. A toda velocidade, Jan disparou a própria flecha com o cervo a apenas poucos passos de chegar à cobertura da floresta novamente.

O cervo estremeceu quando a flecha penetrou fundo no lado esquerdo do peito. O animal correu por mais alguns passos, quase até a floresta. Pareceu se recuperar, pulou, mas as patas dianteiras esbarraram na tora sobre a qual ele tentou saltar, e caiu.

O cervo ficou caído de lado, as patas debateram-se no matagal, a galhada arrancou punhados de terra com grama do solo. Fynn galopou até onde Jan parou com seu cavalo. Allesandra viu o irmão dar um tapinha no ombro de Jan e depois colocar outra flecha no arco.

Com o disparo de Fynn, o cervo ficou imóvel. Uma vibração distante ecoou do grupamento de caça.

— Seu filho pode ter um físico franzino, mas é um excelente cavaleiro, e arqueiro ainda melhor. Aquilo foi impressionante: atirar daquele jeito em plena perseguição.

Allesandra sorriu. Por um instante, ele quase pareceu com o seu vavatarh ao cavalgar daquela maneira... Lá embaixo, Fynn e Jan desmontaram para se dirigir até o cervo caído. — Atirar flechas a cavalo é uma habilidade ensinada à cavalaria magyariana, e Jan teve excelentes professores.

— Ele também teve uma excelente educação em política. Jan esperou que o hïrzg desse o golpe final. Presumo que a senhora tenha sido sua professora neste quesito.

— Jan sabe o que tem que fazer, mesmo que algumas vezes ignore meu conselho — falou Allesandra. — Geralmente porque fui eu que dei o conselho.

— Filhos na idade dele acham que devem se rebelar contra a família. É natural, e eu não me preocuparia muito com isso, a’hïrzg. Jan vai aprender. E um dia, se ele for o a’hïrzg em vez de apenas outro ca’ em algum ponto da linha sucessória para ser o gyula da Magyaria Ocidental... — Semini deixou a voz sumir gradualmente.

Allesandra finalmente se virou para ele. O archigos agigantava-se sobre ela como um urso vestido de verde. Os olhos escuros do homem encaravam os de Allesandra. Sim, ele tinha olhos em que uma pessoa podia se perder. — Você continua a me dizer estas pequenas insinuações e sugestões, archigos — falou ela baixinho. — Você tem mais do que isso para oferecer ou está tentando me provocar a ponto de eu me revelar? Isso não vai acontecer.

Ca’Cellibrecca concordou devagar com a cabeça e inclinou o corpo na direção dela. A boca ficou tão próxima da orelha de Allesandra que ela sentiu o hálito quente de Semini. Ela arrepiou-se. — Eu tenho uma proposta, a’hïrzg. Se isso for algo que lhe interesse, eu realmente tenho — sussurrou o archigos. Então ele se levantou e aplaudiu na direção da campina. — Os cozinheiros terão alguns belos filés de cervo — disse Semini em voz alta — e haverá uma galhada nova para enfeitar o palácio. Nós devíamos descer e encontrar os bravos caçadores, a’hïrzg. O que a senhora diz?

Ele ofereceu o braço.

Ela se levantou e aceitou.

 

Karl ca’Vliomani

— ONDE VOCÊ ESTÁ INDO? — perguntou Varina para ele.

Karl passou a primeira noite após a morte de Ana na casa de Mika, mas apesar da boa vontade do homem e de sua esposa, Karl achou a casa deles — com os filhos e agora o primeiro neto sempre entrando e saindo — cheia demais de vida e energia. Ele voltou para o próprio apartamento na margem sul. Era Varina que passava lá todo dia, que atormentava os criados e geralmente garantia que Karl estivesse sendo alimentado e cuidado. Ela o deixava sozinho com sua tristeza; estava lá quando ele precisava conversar ou quando Karl simplesmente quisesse sentir a sensação de ter outra pessoa no cômodo. Varina parecia saber quando ele precisava de silêncio e permitia isso. Karl era grato por essa atitude.

Ele lembrou-se de quando mostrou para Ana, pela primeira vez, o que os numetodos conseguiam fazer, há muito tempo. Naquela noite, havia sido Varina, uma recém-chegada sem experiência ao grupo, que Ana tinha visto demonstrando um feitiço. Varina cresceu muito desde então; ela era a segunda em poder depois de Mika dentro da facção dos numetodos na cidade, e não havia ninguém que rivalizasse sua dedicação à pesquisa, nem sua habilidade com o Scáth Cumhacht. Karl nunca entendeu exatamente como ela permaneceu sozinha todos esses anos. Varina havia sido muito notável na juventude: cabelo da cor do trigo no outono; olhos grandes e expressivos da cor de carvalho antigo e envernizado; um sorriso e uma risada maravilhosos e encantadores que sempre faziam os outros sorrirem com ela. Varina ainda era atraente, mesmo agora, na meia idade, mesmo que nos últimos anos ela tenha parecido envelhecer rapidamente. No entanto... Varina parecia ter pegado toda a vitalidade e energia que possuía e colocado exclusivamente no aprendizado das complexidades do Scáth Cumhacht e do Segundo Mundo, para descobrir todas as maneiras de conter aquele poder. Mesmo entre os numetodos, ela raramente parecia falar por muito tempo com alguém além de Mika ou Karl. Até onde ele sabia, Varina não tinha outros amigos ou amantes fora do grupo. Ela era um enigma, até mesmo para os mais próximos.

Karl dava valor à presença de Varina agora, mesmo que não soubesse como expressar sua gratidão.

Ele remoía a morte de Ana há uma semana agora, remexeu na mente o ocorrido sem parar, como se fosse um adubo repugnante. Alguém a queria morta. Ana fora o alvo, o assassino esperou que ela fosse ao Alto Púlpito; certamente Karl tinha visto os outros ténis na missa subirem ao púlpito para colocar as leituras e o pergaminho com a Admoestação que a archigos pretendia ler, e não foram eles que acionaram a explosão.

Quanto mais Karl considerava essa situação, mais parecia haver uma única resposta. Uma resposta que ele queria verificar.

Varina estava apoiada na arcada da antessala de braços cruzados enquanto Karl encolhia os ombros em seu manto. Ela não repetiu a pergunta, apenas olhou para ele com ternura, como se estivesse preocupada.

— Eu tenho um compromisso — respondeu Karl. Ela concordou com a cabeça. Ainda em silêncio. Os olhos estavam arregalados e não piscavam. — Eu tenho perguntas a fazer.

Outro gesto com a cabeça. — Eu vou com você — disse Varina. Karl hesitou. — Não vou interferir — falou ela. — Se você vai aonde eu penso que vai, pode precisar de apoio. Estou certa?

— Pegue sua capa — disse Karl. Ela deu um breve sorriso, um relance de dentes brancos, e pegou a capa em um gancho na parede.


O embaixador da Coalizão Firenzciana, Andreas co’Görin, tinha um rosto tão fino e anguloso quanto o de um falcão. Quando o homem se levantou da cadeira, os olhos da cor de urze observaram Karl e Varina como se os dois fossem coelhos a serem capturados e devorados. O rosto aquilino era complementado pelo corpo esguio de um espadachim. Karl imaginava que o sujeito ficava mais à vontade de armadura do que na bashta respeitável e conservadora que usava.

Isso fez com que Karl pensasse se teria sucesso aqui.

— Embaixador ca’Vliomani, vajica ci’Pallo, sua visita é... inesperada — falou co’Görin. — O que posso fazer pelos senhores?

Karl olhou enfaticamente para o assistente que ocupava a mesa menor do outro lado do gabinete.

— Gerald, por que você não vai ver se acha aquela proposta sobre as novas regulamentações de fronteira? — disse co’Görin. O assistente, tão robusto e corpulento quanto co’Görin era magro, concordou com a cabeça e remexeu em alguns papéis ruidosamente por um momento antes de sair da sala.

Karl esperou até ouvir o clique da porta se fechando quando o homem saiu. — Eu passei os últimos dias pensando na morte da archigos Ana, embaixador — falou ele. As palavras soaram quase casuais, até mesmo para seus ouvidos. Varina baralhou os pés ao lado de Karl, irrequieta. — Sabe, por mais que eu tente encontrar motivos para alguém ter feito aquilo, não consigo pensar em ninguém que quisesse Ana morta, a não ser as pessoas que o senhor representa.

Varina ficou nitidamente aflita. Uma nuvem passou sobre os olhos de urze de co’Görin, que escureceram e ficaram verdes. Os músculos do rosto do homem retesaram-se, e ele fechou a mão direita como se procurasse pelo cabo de uma espada. — O senhor é bem curto e grosso, embaixador.

— Eu desisti da diplomacia por enquanto — respondeu Karl.

Co’Görin o olhou com desdém. — Certamente. Então serei curto e grosso também. Eu considero uma ofensa a sua acusação. Eu o perdoo por saber... — ele torceu o nariz e franziu os olhos — ... como o senhor era próximo da archigos de Nessântico, mas também espero por um pedido de desculpas imediato.

— Pela minha experiência, as esperanças geralmente viram decepção — disse Karl.

— Karl... — falou Varina com delicadeza. Ela tocou levemente o braço dele. — Talvez...

Varina parou de falar, como se soubesse que ele não escutava. A raiva o queimava por dentro. Karl queria apenas que co’Görin fizesse um gesto brusco ou o insultasse abertamente, qualquer coisa que servisse como desculpa para usar o Scáth Cumhacht que ardia em sua mente à espera da palavra de ativação. Mas co’Görin balançou a cabeça; não se sentou, pareceu relaxar atrás da mesa, tranquilo.

— Eu acho, embaixador ca’Vliomani, que o senhor descartou a possibilidade de que o assassino pode ter sido um elemento sem vínculos, ou talvez uma pessoa contratada por alguém com contas a acertar com a archigos, alguém dentro dos Domínios de Nessântico. Não há necessidade de atrelar uma conspiração ao fato. — Ele ergueu as sobrancelhas; o resto do corpo permaneceu imóvel. — A não ser, é claro, que o senhor tenha provas que gostaria de compartilhar comigo? Mas não, se tivesse isso, o senhor teria ido ao regente, não é? O comandante da Garde Kralji estaria aqui, não dois hereges numetodos. — Devagar, quase de maneira debochada, ele sentou-se outra vez. Seus dedos compridos brincaram com os pergaminhos espalhados sobre a superfície da mesa, e a expressão aquilina se voltou com um olhar de desdém para Karl. — Acho que terminamos por aqui, embaixador. Firenzcia não se envolve com hereges e jamais se envolverá. Estamos perdendo o tempo um do outro.

A dispensa atiçou o fogo que ardia dentro de Karl. — Não! — berrou ele. — Nós não terminamos! — Karl gesticulou e falou uma das palavras de ativação que havia preparado antes de vir. Um fogo rápido lambeu a papelada sobre a mesa do embaixador e consumiu os papéis no mesmo tempo que co’Görin levou para reagir. O homem deu um pulo para trás e saiu da cadeira. Um vento ligeiro veio em seguida soprando a papelada que passou por co’Görin e saiu pela janela, além de balançar a bashta do embaixador; isso só podia ter sido obra de Varina. — Aquele fogo podia muito bem ter sido direcionado para o senhor em vez dos documentos — disse Karl, que ouviu a porta ser escancarada atrás de si e ergueu uma mão preventivamente ao sentir Varina se virar para encarar a ameaça. — Eu não vim com apenas um feitiço, embaixador, e minha amiga é mais poderosa do que eu. Diga ao seu pessoal para ficar onde está, ou garanto que o senhor, pelo menos, não sairá vivo desta sala.

— Nem o senhor, se insistir com essa tolice — rosnou co’Görin, e Karl quase gargalhou.

— Isso pouco me importa a esta altura — disse Karl. As costas de Varina apoiadas nas costas dele. Karl sentiu que ela ergueu os braços para preparar um feitiço.

O embaixador acenou para as pessoas atrás de Karl, que ouviu uma espada ser embainhada e sentiu Varina abaixar os braços novamente. Co’Görin falou — Vou lhe dizer novamente, embaixador, o senhor está enganado se pensa que Firenzcia está envolvida na morte da archigos. Mate-me, não me mate; isso não vai mudar o fato.

— Eu não acredito nisso.

Co’Görin torceu o nariz. — Falta de crença é o principal problema com os numetodos, não é? O senhor quer que eu fique de luto pela sua archigos, embaixador? Não ficarei. Ela atraiu este destino ao acolher os numetodos e se recusar a reconhecer o archigos de Brezno como o verdadeiro líder da Fé. A violência era um resultado inevitável de suas ações, mas, até onde eu sei, não foi Firenzcia que fez isso. Essa é a verdade, e se o senhor não consegue acreditar em mim... — Ele deu de ombros. — Então faça o que tem que fazer. O senhor apenas provará que os numetodos são realmente os tolos perigosos que todo fiel de verdade sabe que eles são. Olhe para mim, embaixador. Olhe para mim — falou co’Görin com mais rispidez, e Karl encarou o embaixador com raiva. — O senhor enxerga uma mentira em meu rosto? Eu vou lhe dizer: quem matou a archigos não foi alguém que eu conheça ou tenha contratado. Essa é a verdade.

Karl sentiu o Scáth Cumhacht vibrar loucamente por dentro. Ele não queria outra coisa a não ser atacar esse tolo metido, ver a arrogância do sujeito desmoronar e virar um grito, fazer com que berrasse em agonia ao morrer. Mas também ouviu Ana. Karl sabia o que ela lhe diria e deixou a mão cair ao lado do corpo. Ouviu Varina suspirar de alívio.

As palavras de co’Görin não tranquilizaram Karl, mas ele começou a se perguntar se o embaixador talvez não tivesse dito a verdade segundo o que sabia. Karl também se lembrou de um tempo, há muitos anos, e de uma outra pessoa que era capaz de invocar o Scáth Cumhacht — embora ele não chamasse a energia dessa maneira, nem de Ilmodo.

— Se eu descobrir que o senhor está mentindo, embaixador — falou Karl —, não vou lhe dar a chance de pedir desculpas ou de sacar sua espada. Matarei o senhor onde quer que eu lhe encontre. Isso também é a verdade.

Dito isso, ele deu meia-volta, e Varina ficou ao seu lado. Havia três guardas bloqueando a porta, mas Karl empurrou os homens e saiu a passos largos para o ar fresco e a luz do sol.

— O que, em nome dos Seis Abismos Eternos, foi aquilo? — Varina estourou com Karl quando os dois estavam novamente do lado de fora, na Avi a’Parete. Ela agarrou a manga dele e o puxou para pará-lo. — Karl! Eu estou falando sério. O que você achou que estava fazendo?

— O que eu precisava fazer — disparou ele com mais rispidez do que pretendia, ainda vermelho de raiva por co’Görin, pela atitude do homem e pelas próprias dúvidas que o remoíam. Toda essa raiva estava contida na resposta. — Se você não queria estar ali, não precisava vir.

— Ana está morta, Karl. Você não pode trazê-la de volta. Acusar pessoas sem provas só vai fazer você morrer também.

— Ana merece justiça.

— Sim, merece — disparou Varina em resposta. — Deixe para aqueles que têm essa função fazer isso por ela. Vocês não eram amantes. Ana não era a matarh de seus filhos.

A fúria ferveu dentro dele. Karl ergueu a mão, o calor frio do Scáth Cumhacht aumentou, e Varina espalmou as mãos. — Faça isso! — disparou outra vez. — Vamos! Isso vai fazer você se sentir melhor? Vai mudar alguma coisa?

Karl pestanejou; em volta dos dois, as pessoas na rua olhavam fixamente. Ele abaixou as mãos. — Eu... eu sinto muito, Varina.

Ela olhou com raiva para Karl e franziu os lábios. — Ela era sua amiga, e eu compreendo isso. Ela era minha amiga também. Mas Ana também cegou você, Karl. Você jamais foi capaz de ver o que está bem à sua frente.

Dito isso, ela deu meia-volta e deixou Karl, seguiu quase correndo pela Avi. — Varina — chamou ele, mas ela enfiou-se na multidão e desapareceu como se jamais tivesse estado ali. Karl ficou parado na rua, as pessoas passando à sua volta. Karl ouviu as trompas do Templo da Archigos, o templo de Ana, começarem a soar para conclamar a Segunda Chamada, e o som pareceu uma risada debochada.

 

Sergei ca’Rudka

— VOCÊ não confia em mim, Karl?

Sergei observou a onda de emoções que percorreu a face do embaixador. O sujeito tinha um rosto impressionantemente franco para quem era diplomata, um defeito que ele possuía desde que Sergei o conheceu. Tudo que Karl pensava ficava nítido para um observador que soubesse ler expressões. Talvez fosse apenas o estilo Paeti; o regente tinha conhecido algumas pessoas da Ilha ao longo de décadas, e a maioria costumava não apenas falar com muita franqueza o que pensava, mas também fazia pouco esforço para esconder opiniões e emoções sinceras. Talvez fosse isso o que tornava a Ilha reconhecida por seus grandes poetas e bardos, pelas canções e pelo temperamento e paixão intensos de seu povo, mas que também os tornava vulneráveis, na avaliação de Sergei.

O estilo deles não era o de Sergei.

Karl pestanejou diante da brutalidade da pergunta, que Sergei disparou antes mesmo que o criado tivesse fechado a porta. O embaixador estava parado na entrada do gabinete do regente, hesitante, quando a porta foi fechada delicadamente atrás dele. — Claro que confio, Sergei — gaguejou um pouco Karl, as palavras saíram carregadas pelo sotaque cantado de Paeti. — Eu não sei do que você está... — E então — Ah.

— Sim. Ah. — Sergei respirou fundo e coçou o nariz. — Eu acabei de receber uma visita bastante desagradável do embaixador co’Görin, embora francamente qualquer visita da parte dele costume ser desagradável. Ainda assim, o sujeito parece achar que você é um homem perigoso que deveria morar na Bastida em vez de andar pelas ruas. Na verdade, ele disse: “em Brezno, o homem seria estripado e pendurado em público por sua impertinência, quanto mais por sua dedicação à heresia.” Eu não acho realmente que ele goste de você. — Sergei ficou de pé, foi até Karl e deu um tapa em suas costas.

Co’Görin realmente reclamara sobre Karl, mas o embaixador firenzciano havia comparecido a pedido de Sergei, e ido embora com uma mensagem selada que o regente esperava que já estivesse na bolsa de um mensageiro disparando pela Avi a’Firenzcia a caminho de Brezno. Mas nada disso era algo que ele contaria para ca’Vliomani. — Venha, sente-se comigo, velho amigo. Vou mandar Rodger trazer um chá para nós. Eu ainda não tomei meu café da manhã.

Pouco tempo depois, eles estavam sentados em uma sacada com vista para os jardins. Jardineiros rondavam o terreno e arrancavam qualquer erva daninha que metia sua cara comum no meio da realeza das flores. O chá e os biscoitos permaneciam intocados por qualquer um dos dois.

— Karl, você tem que deixar esse assunto comigo.

— Eu não posso.

— Você deve. Meu pessoal está procurando intensamente a pessoa ou pessoas que fizeram isso com Ana. Estou em cima do comandante co’Falla nessa questão como se ele fosse um cavalo. Não vou deixar o assunto quieto, não vou deixar morrer. Eu lhe prometo. Eu quero justiça para Ana tanto quanto você, mas você tem que me deixar fazer isso. Não você. Você precisa ficar fora do caminho da investigação.

Karl então encarou Sergei, e o regente viu o desespero pulsar nas bolsas embaixo dos olhos do homem e puxar os cantos da boca. — Sergei, estou convencido de que só pode ter sido um plano firenzciano. Com o hïrzg Jan morto e Fynn no trono, só faz sentido que ele, e talvez o archigos Semini de Brezno... — Karl umedeceu os lábios. — Todos eles têm uma razão para odiar Ana.

Sergei interrompeu Karl com a mão erguida. — Razões, sim, mas você não tem provas. Nem eu. Não ainda.

— Quem mais iria querer Ana morta? Diga para mim. Existe alguém nos Domínios, talvez um a’téni invejoso que queria ser archigos? Ou alguém das províncias? Nós suspeitamos de mais alguém?

— Não — admitiu Sergei. — Eu mesmo suspeito de Firenzcia, mas precisamos saber antes de agir, Karl. — A mentira, como sempre, vinha fácil à boca. Sergei estava acostumado a mentiras. Uma mentira não seria ouvida em sua voz ou vista no espasmo de um músculo.

Às vezes o regente pensava que era composto inteiramente por mentiras e falsidades, que se alguém tirasse essas coisas de Sergei, ele não seria nada além de um fantasma.

— Saber? — repetiu Karl. — Da mesma forma que você sabia quando me atirou na Bastida anos atrás? Da mesma forma que sabia que eu e os numetodos devíamos ter algo a ver com a morte da kraljica Marguerite?

Sergei esfregou o nariz de prata ao fazer uma careta diante da memória. — Eu estava cumprindo ordens do kraljiki Justi na época. Você sabe disso. E note que você ainda está vivo, enquanto Justi preferiria que estivesse morto. Reconheça o meu mérito quanto a isso. Karl, o que está em jogo aqui é importante demais para palpites ou para que pessoas esquentadas invadam o gabinete do embaixador da Coalizão para ameaçá-lo. Se seu palpite estiver correto e o hïrzg Fynn for responsável por esse ato, a única coisa que você conseguiu foi alertá-lo de nossas suspeitas. Você e Varina realmente usaram feitiços numetodos? — Ele estalou alto com a língua e balançou a cabeça. — Estou surpreso que você não o tenha matado logo de saída.

— Eu queria — disse Karl. Por um momento, as rugas em volta da boca foram repuxadas, e os olhos brilharam sob a luz do sol. — Mas eu pensei em Ana... — O brilho nos olhos aumentou. Ele limpou-os com a manga da bashta.

Por um instante, Sergei genuinamente sentiu pena e compaixão pelo homem. Ele respeitava a archigos Ana porque não havia outra escolha. Ana jamais deixou alguém chegar muito próximo a ela, mesmo aqueles — como Karl — que podiam ter desejado tal coisa. Sergei sabia disso porque observava Karl ao longo dos anos, observava-o porque era seu dever saber as preferências e interesses das pessoas de destaque nos Domínios. Sergei sabia que ele usava os serviços das mais caras e discretas grandes horizontales da cidade, e — o que era interessante para o regente — cada uma dessas mulheres que Karl preferia tinha uma semelhança física com a archigos, e mudava ao longo das décadas, assim como a própria Ana. Foi preciso pouca intuição para adivinhar o motivo dessa preferência.

Karl... Sergei gostava do homem, tanto quanto ele jamais se permitiu gostar de alguém. Ele acenou com a cabeça para o numetodo. — Estou contente que o fantasma de Ana conteve sua mão, do contrário, eu poderia não ter outra escolha. Karl, você tem que deixar essa questão de lado. Prometa para mim. Deixe meus subordinados investigarem. Contarei qualquer coisa que eu descobrir. — Essa era outra mentira, obviamente. Sergei já sabia detalhes do assassinato que não tinha a menor intenção de compartilhar com Karl; tinha suspeitas em mente que ele não falaria.

Na escuridão da Bastida, ele mandou que os gardai o deixassem a sós com um homem, um empregado do comerciante Gairdi, que regularmente viajava entre Nessântico e Brezno. Ele ouviu o choramingo delicioso quando desenrolou o pedaço de lona com as terríveis ferramentas amarradas dentro dela e sorriu para o prisioneiro. — Diga-me a verdade — falou Sergei — e talvez não precisemos de nada disso aqui. — Aquilo também fora uma mentira, mas o homem animou-se com a oportunidade e balbuciou em uma voz alta e rápida. Os gritos, quando vieram depois, foram maravilhosos.

Havia alguns vícios de Sergei que ficavam mais fortes com a idade, não mais fracos. — Prometa para mim — repetiu o regente.

Karl hesitou. O olhar afastou-se de Sergei para pousar no jardim abaixo, e o regente acompanhou o gesto. Lá, um jardineiro enfiou o dedo em um solo tão úmido e rico que parecia negro e arrancou outra erva daninha. O funcionário jogou o emaranhado de folhas e raízes na bolsa de lona pendurada no ombro. Sergei acenou com a cabeça: o trabalho necessário para manter o jardim bonito também exigia morte.

— Eu prometo, Sergei. — O regente, preso na imagem, olhou de volta para Karl e viu que o embaixador sorria palidamente para ele.

Ainda assim... havia alguma coisa que Karl não estava dizendo, alguma informação que estava escondendo. Sergei pôde perceber. O regente concordou com a cabeça, como se acreditasse nele, e decidiu que faria com que co’Falla colocasse alguém para vigiar Karl, com a intenção de descobrir o que o homem sabia, bem como de evitar que o embaixador de Paeti cometesse outro erro crítico — especialmente um erro que pudesse interferir nas próprias intenções de Sergei.

Ana estava morta. Quando ela era viva e uma presença firme e forte que guiava a fé concénziana, Sergei não esteve disposto a tomar o rumo que considerava estar tomando no momento. Porém, com sua morte, com o hesitante e bem mais fraco Kenne eleito para o trono de archigos, com o kraljiki Audric tão doente, frágil e jovem...

Tudo mudou.

— Bom — falou Sergei, que devolveu com afeto o sorriso de Karl. — Tem sido difícil para todos nós, mas especialmente para você, meu bom amigo. Agora, vamos tomar este chá antes que esfrie e provar os biscoitos. Aposto que você não come há dias, pela sua cara. Varina e Mika não estão cuidando de você...?


Naquela noite, uma virada da ampulheta após as trompas anunciarem a Terceira Chamada, Sergei sentou-se com o novo archigos Kenne na sacada de observação do templo na margem sul, para assistir à Cerimônia da Luz, que ocorria diariamente. Há dois séculos ou mais, os ténis da Fé saíam do templo à noite e — com a dádiva do Ilmodo — acendiam as lâmpadas que expulsavam a noite da cidade. Por toda sua vida, Sergei testemunhou o ritual diário. Douradas e dentro de globos de cristal, as lâmpadas mágicas eram colocadas em intervalos de cinco passos ao longo da grande Avi a’Parete, a larga avenida circular que cercava os trechos mais antigos da cidade. Até tarde da noite, as lâmpadas bradavam seu desafio para a lua e as estrelas e proclamavam a grandeza de Nessântico.

Para Sergei, esta era a cerimônia que definia Nessântico para a população. Essa era a cerimônia que proclamava o apoio de Cénzi aos kralji e à fé concénziana, uma cerimônia que ocorria sem alterações há gerações — até a época da archigos Ana. Agora o significado era menor, havia pessoas pelas ruas que podiam produzir luz sozinhas: sem invocar Cénzi, e sem o treinamento de um téni. A aceitação de Ana à heresia dos numetodos diminuiu a Fé, na opinião de Sergei, e forçou a mudança de visão das pessoas.

Mudança. Sergei não gostava de mudança. Mudança significava instabilidade, e instabilidade significava conflito.

Mudança significava que tudo tinha que ser reavaliado. Ana... Sergei nunca fora especialmente íntimo da mulher, porém, no papel de comandante da Garde Civile, e depois como regente, ele certamente tinha trabalhado em conjunto com ela. Independentemente dos defeitos pessoais, Ana tinha sido forte, e Sergei admirava sua força. Foi somente sua presença no trono de archigos que impediu que o reinado de Justi como kraljiki fosse uma catástrofe completa. Só por isso, ele sempre seria grato à memória de Ana.

Mas agora Kenne era o archigos. Sergei gostava genuinamente de Kenne como pessoa. Gostava da companhia do homem e de sua amizade. Contudo, Kenne não seria o archigos que Ana tinha sido. Não podia ser porque não tinha a coragem interior. Sergei sabia por que o Colégio A’téni o escolhera — porque nenhum dos outros a’ténis queria o título, a responsabilidade ou os conflitos que vinham com o trono e o cajado de archigos, e eles temiam o cargo especialmente agora. Kenne não era inimigo de ninguém e, principalmente, Kenne era velho. Era frágil. Ele não seguraria o cajado de Cénzi por muitos anos... e talvez quando ele morresse, os tempos fossem menos turbulentos.

O Colégio agiu em nome da autopreservação e, portanto, entregou a Fé a um archigos fraco.

Sergei perguntou-se se algum dia Kenne o perdoaria pelo que ele pretendia fazer.

Os dois homens ficaram parados enquanto os ténis-luminosos saíam em uma longa procissão pelas grandes portas principais bem abaixo deles. Sergei ouviu a melodia sonora do coro que terminava os cultos da noite na capela principal do templo. O som ecoou como uma lamúria pela praça quando as portas se abriram. O sol havia acabado de se pôr, embora o céu nublado do oeste ainda fosse um turbilhão revolto de tons de vermelho e laranja. Sob aquela luz, os ténis deram meia-volta e fizeram o sinal de Cénzi para o archigos, e Kenne abençoou-os com o mesmo gesto.

Os e’ténis — todos pareciam jovem demais aos olhos de Sergei, todos solenes com o fardo do dever — curvaram-se simultaneamente para o archigos, os robes verdes tremularam como um campo de grama ao vento, antes de darem meia-volta novamente para cruzar o enorme pátio diante do templo. A multidão de sempre estava reunida para assistir à cerimônia, embora fosse menor nos últimos anos do que fora na época da kraljica Marguerite, quando os Domínios eram um só e os visitantes afluíam para Nessântico de todos os pontos da bússola. Nos últimos anos, houve muito menos visitantes do leste e do sul, de Firenzcia ou das Magyarias, de Sesemora ou Miscoli. Com a guerra nos Hellins do outro lado do Strettosei, muitos jovens foram embora e as famílias viajavam menos. Embora o pátio do Velho Templo estivesse repleto de espectadores, a Garde Kralji não tinha dificuldades em abrir espaço para os ténis-luminosos; Sergei conseguia enxergar as pedras de pavimentação entre eles. Os ténis chegaram à Avi e dividiram-se em duas fileiras, espalharam-se à leste e à oeste pela avenida e seguiram para as lâmpadas mais próximas, dispostas de cada lado do portão de entrada do Templo do Archigos.

Os primeiros ténis-luminosos alcançaram as lâmpadas. Eles se postaram debaixo do globo reluzente de vidro trabalhado e ergueram os olhos para o céu do anoitecer como se vissem que Cénzi os observava. Os ténis falaram uma única palavra e gesticularam do peito para a lâmpada, os punhos fechados abrindo-se em mãos espalmadas.

As lâmpadas irromperam em uma luz amarela brilhante.

Sergei aplaudiu com Kenne. Mesmo assim...

Aquela única palavra que ativou o feitiço: aquilo era uma mudança também, uma concessão aos numetodos, que conseguiam lançar rapidamente seus feitiços. Era outra mudança provocada por Ana. — Às vezes eu sinto saudade dos velhos costumes, archigos — falou Sergei. — Os cânticos demorados, a sequência de gestos, a maneira como o esforço cansava visivelmente seus ténis... O jeito numetodo de usar o Ilmodo faz tudo parecer muito fácil. Havia... — ele suspirou quando os dois homens se sentaram novamente — ...um mistério envolvido naquela época, uma noção de trabalho e amor ao ritual que desapareceu. Não tenho certeza se Ana tomou a decisão certa quando permitiu que os ténis começassem a usar os métodos dos numetodos para iluminar nossas ruas.

Ele viu Kenne concordar com a cabeça. — Eu entendo — respondeu o archigos. — Parte de mim concorda com você, Sergei; havia uma emoção nos velhos rituais que sumiu agora. Porém, os numetodos provaram seu valor contra o hïrzg Jan, e Ana dificilmente poderia abandoná-los depois, não é? — Sergei ouviu Kenne dar uma risadinha irônica. — Nós somos velhos, Sergei. Queremos que as coisas sejam como eram na época da nossa juventude. Quando o mundo era certo e Marguerite ficaria sentada no Trono do Sol para sempre.

Sim. Eu quero isso mais do que você acreditaria. Sergei coçou o lado do nariz onde a cola irritava a pele; alguns pedacinhos da resina saíram sob a unha. — Não há nada de errado com isso. As coisas eram boas naquela época, com a kraljica Marguerite e Dhosti vestindo o robe de archigos. Não houve momento melhor para os Domínios ou para a Fé. Nós vivíamos em uma época perfeita e nem sabíamos.

— Sim, vivíamos. Eu concordo. — Kenne suspirou com a memória.

As portas douradas do templo atrás deles foram abertas, e um u’téni mais velho surgiu, Sergei o reconheceu: Petros co’Magnaio, o assistente de Kenne. O homem vivia com Kenne desde a época do archigos Dhosti. Kenne acenou com a cabeça e sorriu para co’Magnaio quando ele pousou uma travessa com frutas e chá entre os dois. Sergei nunca ficou incomodado por Kenne sofrer do que era eufemisticamente chamado de “doença dos gardai”. Havia alguma verdade, afinal, no termo: quando passavam anos em uma campanha, os soldados às vezes encontravam satisfação onde fosse possível, com aqueles que estavam em volta. — O tempo ficará frio com o pôr do sol — disse co’Magnaio. — Pensei que fossem gostar de chá quente.

A mão de Kenne pairou sobre a de co’Magnaio, mas não exatamente a tocou; Sergei sabia que a situação seria diferente se ele não estivesse aqui. — Obrigado, Petros. Não vamos demorar muito aqui, mas agradeço.

Co’Magnaio curvou-se e fez o sinal de Cénzi para eles. — Vou cuidar para que os senhores não sejam incomodados enquanto conversam. Archigos, regente... — O assistente deixou os dois e fechou as portas da sacada ao sair.

— Ele é um bom homem — falou Sergei. — Você deu sorte com ele.

Kenne concordou com a cabeça e olhou afetuosamente para as portas por onde Petros passou. — Falando sobre aqueles que se sentaram no Trono do Sol, Sergei, sinto muito que o kraljiki não tenha podido se juntar a nós na noite de hoje. Como está Audric?

Sergei deu de ombros. Lá embaixo, os ténis-luminosos saíram do templo e seguiram para as lâmpadas mais afastadas da Avi e foram acompanhados pela multidão murmurante. Os pombos desceram dos domos do templo e dos telhados dos prédios do complexo para ciscar nas pedras que ficaram vagas na praça, atrás de restos. — Ele não está bem. — O regente olhou para trás; as portas permaneciam fechadas, mas, ainda assim, Sergei abaixou a voz. — Você teve sorte em achar outro téni com dons de cura?

Kenne suspirou. — Esses sempre foram os dons mais raros, e uma vez que a Divolonté condena seu uso em especial... bem, tem sido difícil, mas eu tenho esperanças. Petros está realizando uma apuração criteriosa. Encontraremos alguém. — O archigos fez uma pausa, olhou para as frutas no prato entre eles e escolheu um pedaço. Kenne tinha mãos compridas e delicadas, mas a pele em volta dos ossos era fina e enrugada, e Sergei notou o tremor quando o archigos levou uma casca de fruta doce aos lábios e a chupou. Não podemos permitir fraqueza tanto no kraljiki quanto no archigos, não se quisermos sobreviver.

— Sergei, temos que considerar o que pode acontecer se o menino morrer — continuou Kenne, quase como se tivesse escutado os pensamentos de Sergei. — Os filhos de Justi... — Ele franziu a testa e devolveu a casca de fruta ao prato. — Amarga demais. Os filhos de Justi nunca foram conhecidos pela longevidade.

Os ténis seguiram pela Avi e sumiram de vista. O som do coro terminou em um acorde etéreo e persistente. — Espero que Cénzi não nos faça encarar essa escolha — falou Sergei com cuidado. — Mas é o que todo mundo está se perguntando, não é?

— Existem os gêmeos ca’Ludovici, Sigourney ou Donatien. Eles são, o quê...? — Kenne franziu os lábios finos em concentração — ...primos em segundo grau de Audric e primos diretos de Justi, pois Marguerite era tantzia-bisamatarh deles. Já são maiores de idade, o que é bom. Donatien, em especial, destacou-se na Guerra dos Hellins, mesmo que as coisas não andem bem ultimamente, e ele é casado com uma ca’Sibelli, uma tradicional família de Nessântico; nós poderíamos chamá-lo de volta dos Hellins. Sigourney, entretanto, pode ser a melhor escolha. Ela ainda carrega o sobrenome ca’Ludovici, logicamente: isto certamente tem um peso incrível aqui, e Sigourney fez sua presença ser sentida no Conselho dos Ca’. Os dois têm direito ao trono mais direto em termos de linhagem, creio eu, e tenho certeza de que o Conselho dos Ca’ apoiaria qualquer uma das duas reivindicações ao Trono do Sol.

Sergei não ficou surpreso ao ver que o pensamento do archigos corria tão paralelo ao seu; ele suspeitava que este fosse o caso por toda parte dos Domínios e também da Coalizão. O regente fez uma pausa e perguntou-se se deveria falar mais. Seria interessante, talvez, ver como Kenne reagiria. — Allesandra ca’Vörl pode alegar ter a mesma linhagem e o mesmo relacionamento através de sua matarh — respondeu Sergei, como se divagasse à toa. — Por falar nisso, o novo hïrzg Fynn pode alegar o mesmo. Eles também são primos em segundo grau de Marguerite, com o mesmo direito ao trono que Sigourney ou Donatien.

Sob a luz intensa das lâmpadas mágicas, as sobrancelhas de Kenne escalaram os sulcos em sua testa. — Você não está sugerindo seriamente...

O tom volúvel era a reação que o regente esperava, e Sergei sorriu rapidamente para dar a impressão de que as palavras eram uma simples brincadeira. — Longe disso. Apenas apontei como Allesandra poderia reagir. Certamente Sigourney ou Donatien seriam boas escolhas, como você sugere, embora talvez nós precisemos que Donatien permaneça como comandante nos Hellins. No entanto, Audric não está morto, e eu preferiria que ele continuasse assim. Porém, se o pior acontecer... Você está certo; nós devemos considerar a sucessão. Os Domínios já estão partidos, graças à incompetência de Justi, e não podemos permitir que o que sobrou se rompa ainda mais. — O regente fez uma pausa. Ele cerrou os olhos e coçou o queixo propositalmente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Mas... talvez os Domínios e a Coalizão possam chegar a um meio-termo se o pior acontecer, Kenne. Um ca’Vörl tomaria o Trono do Sol, mas a fé concénziana seria regida por você, não por Semini ca’Cellibrecca. — Pronto. Vejamos como ele considera a oferta.

— Você aceitaria os assassinos de Ana sentados no Trono do Sol? — O horror na voz do homem era palpável.

Sergei bufou com desdém, um assobio alto soou pelas narinas de metal do nariz falso. — Você está fazendo a mesma acusação que o embaixador ca’Vliomani. Até o presente momento, não tem fundamento.

— Quem mais teria feito isso com Ana, Sergei? Sabemos que não foram os numetodos, pois ela era aliada deles.

Sergei não insistiu mais na questão. Ele já sabia o que precisava. — Isso é algo que meu pessoal está tentando determinar. E vão conseguir. — O fogo do pôr do sol não ardia mais no céu do oeste. As estrelas lutavam contra as chamas frias das lâmpadas mágicas, e o frio da noite tomava conta da cidade. Sergei sentiu um arrepio e levantou-se da cadeira. As juntas do joelho estalaram e protestaram com o movimento; ele gemeu com o esforço. O regente ainda sentia a dor nos músculos e os hematomas da ocasião em que se jogou sobre Audric no templo.

Velhos, realmente...

Petros devia estar vigiando (e com certeza escutando também) pelas frestas das portas do templo; assim que Sergei se levantou, elas foram abertas e um atendente e’téni correu até ele com seu sobretudo. O regente viu Petros parado na penumbra do corredor atrás das portas. — Eu tenho que verificar como Audric está, archigos — disse Sergei ao se ajeitar nas dobras de lã. — Se você encontrar alguém com os dons que discutimos, por favor, mande esta pessoa para o palácio imediatamente.

— Eu mesmo passarei lá em mais ou menos uma virada da ampulheta — falou Kenne. — Petros já deve ter aprontado minha sopa neste momento, mas passarei depois, para ver o que posso fazer.

— Obrigado, archigos. Eu talvez veja você, então.

Ao sair do templo, Sergei perguntou-se se sua mensagem já chegara a Brezno e que recepção teria recebido.

 

Allesandra ca’Vörl

— A FLECHADA DO SEU FILHO foi tão boa quanto uma das minhas — declarou Fynn.

Allesandra duvidava disso. Jan podia não ter o volume e o poder da massa muscular de Fynn. Podia não ser capaz de manejar o peso do aço temperado que alguém como Fynn podia com facilidade fazer, mas o menino cavalgava como ninguém e tinha uma mira com flechas que pouquíssimos poderiam igualar. Allesandra tinha certeza de que nem Fynn, nem outra pessoa qualquer poderia ter acertado, quanto mais derrubado, o cervo montado nas costas de um cavalo a galope.

Porém, pareceu simplesmente melhor apenas aquiescer com a cabeça, dar um falso sorriso para Fynn e concordar. Era a atitude mais segura, mas concordar com a falsidade machucava, pois o orgulho pelo filho fazia com que ela quisesse discordar. Allesandra guardou o sentimento, juntamente com outras mágoas e insultos que Fynn e seu vatarh deram a ela ao longo dos anos.

— Foi sorte eu ter estado lá para dar a última flechada, ou o cervo teria escapado.

Allesandra sorriu novamente, embora soubesse que não tinha sido sorte ou destino, apenas a demonstração de que Jan sabia que não deveria eclipsar a presença do hïrzg. Um gesto político, tão habilidoso quanto qualquer um que ela pudesse ter feito.

Os dois andavam pela sacada leste do Palácio da Encosta do Cervo — tão reservado quanto qualquer um podia ser dentro da propriedade. Os gardai estavam em rígida posição de sentido no ponto onde a sacada fazia uma curva do norte para o sul; era evidente que eles evitavam o hïrzg e a a’hïrzg de maneira impassível enquanto olhavam para fora. Das janelas abertas para entrar a brisa da noite, Allesandra e Fynn ouviam os murmúrios dos convidados na mesa de onde acabaram de sair. Ela conseguiu distinguir a voz de Jan quando ele riu de algo que Semini disse.

Allesandra olhou para leste, na direção da bruma da noite que subia como uma maré lenta que vinha dos vales para as encostas íngremes onde o palácio estava instalado. O topo das sempre-vivas embaixo deles estava envolvido por filamentos de nuvens brancas, embora os picos sem árvores e assolados pelo vento permanecessem banhados pelo sol, que reluzia nos penhascos de granito e nos bancos de neve presos às rochas. Em algum lugar escondido na bruma lá embaixo, uma cachoeira borbulhava e cantava.

— É realmente bonito aqui — disse Allesandra. — Eu nunca me dei conta quando estive aqui quando era menina. O vavatarh Karin escolheu um lugar perfeito: deslumbrante e perfeitamente defensável. Nenhum exército jamais conseguiria tomar a Encosta do Cervo se o local fosse bem defendido.

Fynn concordou com a cabeça, embora não parecesse estar olhando para a paisagem. Em vez disso, ele remexia o punho brocado da manga. — Eu pedi que andasse comigo para que pudéssemos conversar sozinhos, irmã.

— Imaginei que fosse isso. Nós, ca’Vörls, raramente fazemos alguma coisa sem motivos ocultos, não é? — falou Allesandra, que deu um rápido sorriso. — O que você queria me dizer, irmãozinho?

Ele sorriu, brevemente, ao ouvir isso, e o movimento contorceu a larga cicatriz na bochecha. — Você nunca me conheceu quando eu era pequeno.

— Houve uma boa razão para isso. — Sim, aquela mágoa estava bem no âmago da montanha interior, a semente de onde tudo brotou...

— Ou uma má razão. Eu não entendi na época, Allesandra, por que o vatarh deixou você em Nessântico por tanto tempo. Depois que ele finalmente me contou a seu respeito, eu sempre me perguntei por que o vatarh deixou minha irmã mofar em outro país, que ele obviamente odiava tanto.

— Você entende agora? — perguntou ela, e continuou antes que Fynn pudesse responder. — Porque eu ainda não entendo. Sempre esperei que o vatarh se desculpasse ou explicasse, mas ele nunca fez isso. E agora...

— Eu não quero ser seu inimigo, Allesandra.

— Nós somos inimigos, Fynn?

— É o que pergunto a você. Eu gostaria de saber.

Allesandra esperou antes de responder. O parapeito de mármore da sacada sob sua mão estava molhado, o orvalho lustrou os torvelinhos azul-claros na pedra leitosa. — Você acha que, se nossas posições fossem invertidas, e eu tivesse sido nomeada hïrzgin pelo vatarh, então você me consideraria sua inimiga? — perguntou ela com cautela.

Fynn fez uma careta e abanou o ar fresco como se estivesse espantando um inseto irritante. — Tantas palavras... — Ele suspirou alto, e a irmã ouviu a irritação no gesto. — Você faz discursos que entram em meus ouvidos e distorcem o significado das minhas próprias palavras, Allesandra. Eu nunca fui capaz de duelar com palavras e discursos; esta não é uma das minhas habilidades. Também não era uma habilidade do vatarh. Ele sempre dizia exatamente o que pensava: nem menos, nem mais, e o que não queria que alguém soubesse, ele não dizia de maneira alguma. Eu fiz uma pergunta bem simples, Allesandra: você é minha inimiga? Por favor, faça a gentileza de dar uma resposta simples, sem enfeites.

— Não — respondeu ela com firmeza, depois balançou a cabeça. — Fynn, apenas um idiota responderia com outra coisa que não “não, nós não somos inimigos”. Você também sabe disso, apesar dos protestos. Você pode ser muitas coisas, mas não é tão simples assim, e eu não sou tão tola a ponto de cair em uma armadilha tão óbvia. Qual é a verdadeira pergunta que você está escondendo?

Fynn bufou com irritação e bateu com a mão no parapeito. Allesandra pôde sentir o impacto da mão, que fez tremer o parapeito. — Existem... existem pessoas... — Ele parou e respirou fundo, bem alto. Quando soltou o ar, Allesandra viu a condensação diante do rosto de Fynn. Ele tocou a coroa dourada e lisa que usava na cabeça. — O vatarh me disse antes de morrer que havia rumores entre os chevarittai e os ténis mais graduados da fé concénziana. Alguns deles eram contra minha nomeação como o a’hïrzg ou diziam que eu era... estúpido demais. — Ele cuspiu a palavra como se tivesse um gosto desagradável na língua. — Alguns deles queriam que você tivesse aquele título ou queriam outra pessoa completamente diferente para assumir a coroa dos hïrzgai.

— O vatarh disse para você quem espalhava esses rumores? De onde eles vinham? — indagou ela. Allesandra tinha que fazer a pergunta. Ela tremeu um pouco e esperou que Fynn não tivesse notado. — O vatarh contou quem disse isso?

No entanto, Fynn apenas balançou a cabeça. — Não. Nenhum nome. Apenas... que havia pessoas que seriam contra mim. Se eu encontrá-las... — O hïrzg respirou fundo pelo nariz e fez uma expressão séria. — Eu acabarei com elas. — Ele olhou diretamente para a irmã. — Eu não me importo com quem elas sejam e não me importo com quem eu tenha que machucar.

Allesandra virou a face para que ele não pudesse vê-la e olhou para a névoa que passava pelos pinheiros logo abaixo. Ótimo. Porque eu conheço algumas dessas pessoas, e elas me conhecem... — Você não pode punir rumores, Fynn. Não pode acorrentar e aprisionar fofocas da mesma forma que não pode capturar a bruma.

— Eu não acho que o vatarh tenha sido enganado pela bruma.

— Então, o que você quer de mim, irmãozinho?

Era isso que Fynn queria que ela perguntasse. Allesandra percebeu pela expressão dele, sob a luz que diminuía no céu. — No Besteigung — ele começou a falar, depois parou para colocar a mão em cima da mão da irmã, no parapeito. Não pareceu um gesto afetuoso. — Você é aquela para quem todos olham. Você é aquela que poderia ter sido hïrzgin se o vatarh não mudasse de ideia. Os ca’ e co’ ainda gostam de você, e muitos acham que o vatarh agiu mal a seu respeito. Os rumores sempre giram em torno de você, Allesandra. Você. Eu quero parar com os rumores; quero que não haja razão alguma para eles existirem. Então... no Besteigung, eu quero que você, e Pauli e Jan também, façam um voto formal de lealdade ao trono. Em público, para que todos ouçam vocês dizerem as palavras.

Elas seriam apenas palavras, Allesandra quis dizer para o irmão, com tanto significado quanto as que eu disse agora “não, Fynn, não sou sua inimiga”. Palavras e votos não significam nada: para saber isso, basta olhar para a história... Mas ela sorriu gentilmente para o irmão e deu um tapinha na mão dele. Talvez ele realmente fosse simples assim, tão inocente? — Claro que faremos isso — disse Allesandra. — Eu sei qual é o meu lugar. Sei onde eu devo estar e onde quero estar no futuro.

Fynn concordou com a cabeça e afastou a mão da irmã. — Ótimo — disse ele com um tom alto de alívio na voz. — Então nós esperamos por isso. — Nós... Ela ouviu o plural real na voz, completamente inconsciente, e franziu os lábios diante disso. — Eu gosto de seu filho — disse Fynn subitamente. — Ele é inteligente, como você, Allesandra. Eu odiaria achar que Jan esteve envolvido em algum plano contra mim, mas se ele esteve, ou se a família dele esteve... — O rosto ficou contraído novamente. — O ar está frio e úmido aqui fora, Allesandra. Eu vou entrar. — Fynn deixou a irmã e voltou para o calor do salão comunal do palácio. Allesandra ficou ao lado do parapeito um instante mais antes de segui-lo. Observando até que as brumas estivessem quase no mesmo nível que ela e o mundo lá embaixo tivesse desaparecido na penumbra e nas nuvens.

Allesandra pensou em ser hïrzgin e percebeu que o Grande Trono de Brezno jamais a satisfaria, mesmo que tivesse sido dela. Era uma conclusão difícil, mas ela soube agora que foi em Nessântico que tinha sido mais feliz, que tinha se sentido mais em casa.

— Eu sei qual é o meu lugar, irmão — sussurrou Allesandra para o silêncio da bruma. — Eu sei. E será meu.

 

Nico Morel

NICO OUVIU TALIS FALAR no outro cômodo, embora a matarh tenha ido à praça para comprar pão.

A matarh deu um beijo e mandou Nico tirar uma soneca, disse que voltaria antes do jantar. Mas ele não conseguiu dormir, não com o barulho de gente na rua bem do lado de fora das persianas da janela, nem com o sol que penetrava pelas frestas entre as tábuas. De qualquer maneira, Nico estava velho demais para sonecas. Aquilo era coisa de criança, e ele estava se tornando um homenzinho. A matarh também disse isso para ele.

Nico jogou os cobertores para o lado e cruzou o quarto de mansinho. Inclinou o corpo para frente, o suficiente para enxergar pela borda da porta arranhada e empenada que nunca fechava direito — fez questão de não tocá-la, pois sabia que as dobradiças dariam um alarme enferrujado. Através da fenda entre a porta e a ombreira, ele conseguiu ver Talis. Ele estava debruçado sobre a mesa que a matarh usava para preparar as refeições. Havia uma tigela rasa sobre a mesa, e Nico franziu os olhos em um esforço para ver melhor: animais entalhados dançavam pela borda, e a tigela tinha o mesmo tom castigado pelo clima da estátua de bronze de Henri IV, na praça do Velho Distrito. A matarh não tinha uma tigela de metal, pelo menos nenhuma que Nico tivesse percebido; os animais entalhados também eram estranhos: um pássaro com a cabeça de uma cobra; um lagarto escamoso com um focinho comprido cheio de dentes arreganhados. Talis despejou água do jarro da matarh dentro da tigela, depois desamarrou uma bolsinha de couro do cinto e sacudiu um pó avermelhado e fino na palma da mão. Ele polvilhou o pó na água como se estivesse salgando comida. Passou a mão sobre a tigela como se acalmasse alguma coisa, depois disse palavras na língua estranha que às vezes falava quando sonhava à noite, aninhado com a matarh de Nico na cama.

Uma luz pareceu brilhar dentro da tigela e iluminou o rosto de Talis com um tom pálido de amarelo esverdeado. Ele olhou fixamente o interior da tigela brilhante, de boca aberta, e a cabeça foi se aproximando cada vez mais, como se Talis estivesse pegando no sono, embora os olhos estivessem arregalados. Nico não sabia dizer por quanto tempo ele encarou a tigela — bem mais do que o tempo em que Nico tentou prender a respiração. Enquanto assistia, Nico achou que sentiu uma friagem, como se soprasse um vento de inverno da tigela, tão frígido que ele estremeceu. A sensação ficou mais intensa, e o fôlego que Nico tomou deu a impressão de sugar todo o frio, embora o ar, de alguma forma, quase parecesse quente dentro do corpo. O que fez com que ele quisesse expelir o ar, como se pudesse cuspir fogo gelado.

No outro cômodo, a cabeça de Talis pendeu ainda mais. Quando o rosto pareceu estar a dois centímetros de tocar a borda da tigela, o brilho sumiu tão repentinamente quanto surgiu, e Talis arfou como se respirasse pela primeira vez.

Nico também arfou, involuntariamente, como se o frio e o fogo dentro dele tivessem sumido no mesmo momento. O menino começou a recuar a cabeça da porta, mas foi detido pela voz de Talis. — Nico. Filho.

Ele voltou a espiar. Talis olhava fixamente para Nico, com um sorriso que contorcia as linhas do rosto moreno-escuro. Havia mais rugas ali ultimamente, e o cabelo de Talis começou a ficar salpicado de fios grisalhos. Ele gemeu ao se levantar rápido demais, e as juntas às vezes rangiam, embora a matarh dissesse que Talis tinha a mesma idade que ela. — Está tudo bem, filho. Não estou bravo com você. — O sotaque de Talis também parecia mais carregado do que o normal. Ele gesticulou para Nico, que notou uma mancha de pó vermelho ainda na palma da mão. Ele suspirou como se estivesse cansado e precisasse dormir. — Venha aqui. — Nico hesitou. — Não se preocupe; venha aqui.

Nico empurrou a porta para abri-la; a dobradiça, como ele sabia, rangeu alto, e foi até Talis. O homem ergueu o menino (sim, ele gemeu com o esforço) e colocou-o em uma cadeira perto da mesa para que pudesse ver a tigela. — Nico, esta é uma tigela especial que eu trouxe comigo do país onde costumava viver. Veja... tem água dentro. — Talis mexeu na água com um dedo. Ela parecia completamente normal agora.

— A tigela é especial porque faz a água brilhar? — perguntou Nico.

Talis continuou a sorrir, mas o jeito com que as sobrancelhas desceram sobre os olhos fez o sorriso parecer de certa forma inadequado no rosto. Nico viu o próprio rosto no reflexo das íris marrom-escuras dos olhos de Talis. Havia dobras fundas nos cantos daqueles olhos. — Ah, você viu aquilo, não é?

Nico concordou com a cabeça e perguntou — Aquilo era magia? Eu sei que não é um téni porque nunca vi você ir ao templo com a matarh e eu. Você é um numetodo?

— Não, não sou um numetodo, nem um téni da fé concénziana. O que você viu não era magia, Nico. Era apenas a luz do sol que entrou pela janela e foi refletida pela água na tigela, só isso. Eu também vi; era tão intensa que parecia que havia um pequeno sol debaixo d’água. Eu gostei como a tigela ficou, então a observei por um tempo.

Nico concordou com a cabeça, mas se lembrou do pó vermelho, da cor estranha e verdejante da luz e da maneira como a claridade banhou o rosto de Talis, como se fosse acariciado por uma mão de luz. Ele lembrou do fogo frio, mas não mencionou nada disso. Pareceu melhor não mencionar, embora não tivesse certeza do porquê.

— Eu amo você, Nico — continuou Talis, que se ajoelhou no chão perto da cadeira de Nico, de maneira que os rostos ficassem na mesma altura. Ele pousou as mãos nos ombros do menino. — Eu amo Serafina... sua matarh... também. E a melhor coisa que ela me deu na vida, a coisa que mais me deixou feliz, é você. Sabia disso?

Nico concordou novamente. Talis apertou os dedos em seus braços com tanta força que ele não conseguia se mexer. O rosto de Talis estava quase próximo ao seu, e Nico sentiu o cheiro de bacon e chá adoçado com mel no hálito do homem, e também um leve traço de algum condimento que não conseguiu identificar de forma alguma. — Ótimo — falou Talis. — Agora, preste atenção, não há necessidade de comentar sobre a tigela ou a luz do sol com sua matarh. Eu pensei que um dia pudesse dá-la de presente para sua matarh, e quero que seja uma surpresa, e você não quer estragá-la, não é?

Nico balançou a cabeça ao ouvir isso, e Talis deu um largo sorriso, como se tivesse contado uma piada para si mesmo que Nico não ouviu. — Excelente — disse ele. — Agora, deixe-me terminar de lavar a tigela, que era o que eu estava começando a fazer quando você me viu. É por isso que coloquei água dentro dela. — Talis soltou Nico; o menino esfregou os ombros enquanto o homem pegou a tigela, mexeu de maneira ostentosa a água dentro dela e depois abriu as persianas da janela para jogá-la na jardineira com flores. Talis secou a tigela com a bashta de linho, e Nico ouviu o tom do metal. Viu Talis colocar a tigela dentro de uma bolsa que ele mantinha debaixo da cama que compartilhava com sua matarh, depois recolocar a bolsa debaixo do colchão de palha.

— Pronto — falou Talis ao endireitar o corpo novamente. — Este será nosso segredinho, hein, Nico? — Ele piscou para o menino.

Esse seria o segredo deles. Sim.

Nico gostava de segredos.

 

A Pedra Branca

ELES VINHAM A ELA À NOITE, aqueles que a Pedra Branca matou. À noite, eles agitavam-se e acordavam. Reuniam-se em volta da Pedra Branca em sonhos e falavam com ela. Geralmente, quem falava mais alto era o Velho Pieter, a primeira pessoa que ela matou.

Ela tinha 12 anos.

— Lembre-se de mim... — murmurava o Velho Pieter para ela durante o sono. — Lembre-se de mim...

O Velho Pieter era um vizinho no modorrento vilarejo na Ilha de Paeti, e ela conhecia o homem desde que nasceu, especialmente depois que seu vatarh morreu, quando ela tinha seis anos. O Velho Pieter sempre foi amigável com ela, ria e dava como presentes os animais que ele entalhava a partir de galhos de árvore, com a pequena faca que sempre levava no cinto. Ela pintava os animais que ganhava e colocava no parapeito da janela em seu pequeno quarto, onde pudesse vê-los todas as manhãs.

O Velho Pieter tinha cabras, e, quando sua matarh permitia, ela às vezes ajudava o homem com o pequeno rebanho. No dia em que sua vida mudou, no dia que entrou no caminho que a traria até aqui, ela havia saído com Pieter e as cabras perto do Água Berrante, um córrego barulhento que descia rápido das encostas da Colina dos Carneiros, um dos morros altos ao sul do vilarejo. As cabras pastavam placidamente perto do córrego, e ela andava perto dos animais quando viu um corpo no chão: uma corça recém-morta, com o corpo dilacerado por carniceiros e moscas que começavam a se agitar em volta da carcaça. A cabeça da corça, no longo pescoço castanho-amarelado, olhava com desespero com seus belos olhos grandes.

— Se cê olhar no olho direito, cê vai ver o que matou ela.

Uma mão acariciou seu ombro e desceu pelas costas antes de se afastar. Ela levou um susto, pois não percebeu que o Velho Pieter surgira por trás. — O olho direito tá ligado à alma de uma pessoa ou de um animal — continuou ele. — Quando um ser vivo morre, bem, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto ou a coisa que matou ele. Olhe dentro do olho daquela corça que cê vai ver lá dentro: um lobo, tarvez. Acontece com gente, também. Assassinos são capturados desse jeito: quando alguém olha no olho direito da pessoa que eles mataram e vê o rosto do assassino ali.

Ela estremeceu ao ouvir isso e afastou-se, o Velho Pieter riu. A mão do homem tirou do rosto da menina as mechas de cabelo que escaparam das tranças, e ele sorriu afetuosamente para ela. — Agora, não fique transtornada, menina. Anda, vai cuidar das cabras, que eu vou entalhar alguma coisa procê.

O Velho Pieter voltou a ela no fim da tarde, quando a menina estava sentada às margens do Água Berrante vendo o córrego passar pelo leito rochoso. — Aqui, cê gostou? — perguntou ele.

Era uma figura humana entalhada, pequena o suficiente para ela esconder facilmente na mão: uma figura nua e inegavelmente feminina, com pequenos seios como os que brotavam em seu próprio peito. O cabelo a deixou mais perturbada: há uma lua, uma mulher ca’ de Nessântico passou pela cidade e ficou uma noite na estalagem da estrada para An Uaimth. O cabelo da mulher era trançado e preso em um nó complicado atrás da cabeça; fascinada por este vislumbre da moda de fora, a menina trabalhou por dias para imitar aquelas tranças; desde então, ela trançava o cabelo todo dia, da mesma maneira. Estava trançado agora, igual ao da figura nua, e a mão foi involuntariamente ao nó do cabelo atrás da cabeça. Ela quis, de repente, desmanchá-lo.

A menina olhou fixamente para o entalhe, sem saber o que dizer, e sentiu a mão do Velho Pieter na bochecha. — É ocê. Tá virando uma mulher agora.

A mão do homem pegou a cabeça dela e puxou a menina em sua direção, apertou-a com força contra ele. Ela sentiu a excitação do Velho Pieter, dura contra a sua coxa. A menina soltou a boneca.

O que aconteceu em seguida ela jamais esqueceria: a dor e a humilhação do ato. A vergonha. E depois que acabou, depois que o peso do homem saiu de cima dela, a menina viu o cinto caído na grama ao lado, e ali estava a bainha com a faca, que ela pegou. A menina pegou o cabo com as mãos tremendo, chorando, com sua tashta arrancada e meio rasgada, com seu sangue e o sêmen dele espalhados nas coxas, pegou com toda a raiva, fúria e medo por dentro e esfaqueou o Velho Pieter. Enfiou a faca na parte baixa da barriga do homem, e quando ele gemeu e berrou assustado, ela puxou a lâmina e a enfiou mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez até que ele parou de gritar, parou de bater na menina com os punhos e parou de se mover completamente.

Coberta no próprio sangue e no sangue do Velho Pieter, ela deixou a faca cair quando se ajoelhou ao lado dele. Os olhos mortos do homem encararam a menina.

— Quando um ser vivo morre, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto que viu...

Ela quase se arrastou até a margem do Água Berrante. Encontrou uma pedra ali, um seixo branco e polido pela água, do tamanho de uma moeda grande. A menina trouxe a pedra de volta e enfiou no olho direito do homem. Depois, ficou encolhida ali, a poucos passos do Velho Pieter, até que o sol estivesse praticamente posto e as cabras se reunissem ao redor dela. Os animais baliram e queriam voltar aos estábulos. A menina acordou, como se tivesse dormido, viu o corpo ali e se percebeu sendo levada na direção dele pela curiosidade. Ela levou a mão trêmula ao rosto do homem, ao olho direito coberto pelo seixo, e pegou a pedra. O seixo pareceu quente de um modo estranho. O olho embaixo estava cinza e opaco, e embora a menina tenha olhado com cuidado, não viu nada ali: nenhuma imagem de si mesma. Absolutamente nada. Ela apertou com força o seixo na mão: a pedra quente quase pulsava com vida. Sua respiração estremeceu quando ela apertou o seixo contra o peito.

Então, ela foi embora e deixou o corpo ali. Foi para o sul, não para o norte, e levou o seixo consigo.

A menina jamais retornaria para o vilarejo onde nasceu. Nunca mais veria sua matarh novamente.

A Pedra Branca revirou-se no sono. — Eu não queria machucar ocê, menina — sussurrou o Velho Pieter nos sonhos. — Não queria mudar ocê. Sinto muito, sinto muito...


CONTINUA

SE UMA CIDADE TIVESSE SEXO, Nessântico seria mulher...
Antigamente, ela era jovem e cheia de vitalidade: a cidade, a mulher. Durante sua ascensão, transformou-se na mais famosa, mais bonita e mais poderosa de sua espécie.
Agora, ela olhou para si mesma e imaginou — como alguém que se vislumbra inesperadamente em um espelho e fica assustado e incomodado pelo reflexo — se esses atributos ainda carregavam verdade.
Ah, ela sabia que a juventude era passageira e efêmera. Afinal, as pessoas que moravam entre suas muralhas levavam vidas curtas e difíceis. Para elas, o rosto refletido mudava implacavelmente a cada dia que passava, até surgir a manhã em que perceberiam que a imagem no espelho estaria enrugada e cansada, que os cabelos grisalhos nas têmporas se espalhariam e ficariam mais brancos. Elas talvez sintam suas juntas reclamando durante um movimento que antigamente não exigia qualquer esforço ou pensamento, ou talvez descubram que agora as feridas levariam semanas em vez de dias para sarar, ou que a doença permaneceria como um convidado indesejado — ou pior, que mudaria de “persistente” para “crônica”.
O frio da mortalidade penetrou lentamente em seus ossos mortais como gelo.

Mortalidade: Nessântico também sentia esta condição. Os habitantes da cidade escondiam as rugas e dobras com a cosmética da arquitetura. Vejam, ela poderia dizer: lá está o grande domo de co’Brunelli para o Velho Tempo — há 15 anos sendo construído neste momento —, que, quando terminado, será o maior domo sem suportes do já mundo conhecido. Aquele lá na Ilha A’Kralji é o lindo e ornamentado Teatro A’Kralji de ca’Casseli, capaz de abrigar uma plateia de duas mil pessoas, com acústica tão excelente que todo mundo pode ouvir o mais baixo sussurro no palco; ali, a Grande Biblioteca da margem sul, que começou a ser construída no reinado do kraljiki Justi e que contém as maiores obras intelectuais da humanidade. Ouçam: aquela é a doce música de ce’Miella, cujas composições rivalizam com as melodias magníficas do mestre Darkmavis. Vejam as pinturas e os murais cheios de símbolos de ce’Vaggio, cuja habilidade de retratar figuras geralmente é comparada àquela do trágico mestre ci’Recroix. Há uma vida tão vibrante aqui no interior de Nessântico: todas as peças e danças, as celebrações e a alegria.
Tudo aqui é igual ao que sempre foi; não, tudo é melhor.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_A_MAGIA_DO_ANOITECER_2.png

 

No entanto, ela mudou, e sabia disso. Havia sinais e portentos. No Velho Distrito, há não muito tempo, havia uma mulher que nasceu com as patas de uma tarântula e (diziam os rumores) que podia matar com um único olhar de seus olhos multifacetados. Houve a praga de milhares de sapos verdes nos Brejos há duas primaveras, tão intensa que eles cobriram as passagens próximas com uma massa agitada que tinha um palmo de profundidade. Nos esgotos da margem norte, diziam que havia uma criatura à espreita, com cabeça de dragão, corpo de touro e pés e mãos de humano, e que se alimentava de ratos que cresciam do tamanho de lobos.

Havia os sinais reais e indiscutíveis também. Os Domínios foram rachados, aquela forte aliança forjada lentamente ao longo dos séculos. Após um malfadado ataque a Nessântico, depois do assassinato da kraljica Marguerite, a cidade de Brezno tornou-se sua rival, à medida que Firenzcia tomava várias terras vizinhas ao seu redor: uma Coalizão sob o comando do hïrzg Jan ca’Vörl.

A fé concénziana também fora cindida, e não era mais o que tinha sido. A archigos Ana ocupava o templo na margem sul, era verdade, mas outra pessoa dizia-se archigos em Brezno. Dentro de Nessântico, os hereges numetodos adquiriam novos partidários, e não era incomum ver alguém conjurar um feitiço sem vestir um robe verde ou apelar primeiro para Cénzi.

Sinais e portentos. Mudança. Quanto mais velha ficava Nessântico, mais difíceis ficavam as mudanças para ela.

Pega em seu próprio outono indesejado, Nessântico — a cidade, a mulher — encarava o reflexo nas águas escuras do rio A’Sele e imaginava...

E, como muitos em sua posição, Nessântico negava o que via.


??? RESPOSTAS ???

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

O VATARH DE Allesandra ca’Vörl era o sol ao redor de quem ela orbitava desde que se entendia por gente. Agora aquele sol finalmente estava se pondo.

A mensagem chegara de Brezno através de um mensageiro rápido, ela olhava fixamente para as palavras escritas em uma caligrafia legível e apressada. — Seu vatarh está morrendo. Se a senhora quiser vê-lo, apresse-se. Essa foi toda a mensagem. Estava assinada pelo archigos Semini de Brezno e selada pelo seu sinete.

O vatarh está morrendo... O grande hïrzg Jan de Firenzcia, em homenagem a quem ela batizara seu único filho, estava falecendo. As palavras acenderam um fogo amargo em seu estômago; elas nadaram na página com as lágrimas salgadas que surgiram espontaneamente em seus olhos. Allesandra ficou sentada ali — à elegante escrivaninha, no gabinete opulento perto do palácio do gyula em Malacki — e viu uma gotícula cair no papel e borrar a tinta das palavras.

Ela odiava que o vatarh ainda a abalasse tanto; odiava se importar. Allesandra deveria odiá-lo, mas não conseguia. Não importava o quanto tentasse ao longo dos anos, ela não conseguia.

Pode-se amaldiçoar o sol pelo calor escaldante ou por sua ausência, mas sem o sol não haveria vida.

— Eu o odeio — declarou ela para a archigos Ana. Havia dois anos que Ana tirara Allesandra de seu vatarh para mantê-la como refém. Dois anos, e ele ainda não tinha pagado o resgate para trazê-la de volta. Ela tinha 13 anos, na iminência da menarca, e fora abandonada pelo vatarh. O que originalmente era ansiedade e decepção, aos poucos se transformara em raiva dentro dela. Pelo menos era o que Allesandra acreditava.

— Não, você não o odeia — falou Ana baixinho enquanto acariciava o cabelo de Allesandra. As duas estavam na sacada de seus aposentos no complexo do templo em Nessântico e olhavam para a confusão de ténis vestidos de verde que corriam com suas tarefas lá embaixo. — Não de verdade. Se ele pagasse o resgate amanhã, você ficaria radiante e pronta para correr de volta para seu vatarh. Olhe para dentro de si, Allesandra. Olhe sinceramente. Não é verdade?

— Bem, ele deve me odiar — retrucou ela — ou teria pagado.

Ana abraçou-a com força então. — Ele vai pagar. Vai sim. É que... Allesandra, seu vatarh queria se sentar no Trono do Sol. Ele sempre foi um homem orgulhoso, e uma vez que eu levei você embora, seu vatarh jamais foi capaz de realizar seu sonho. Você é uma lembrança de tudo o que ele perdeu. E isto é culpa minha. Não é sua. Não é sua de forma alguma.

O vatarh não pagou. Não por dez longos anos. Era Fynn, o novo filho que sua matarh, Greta, deu ao hïrzg que gozava do carinho do vatarh, que aprendera a guerrear, e fora nomeado o novo a’hïrzg — o título que deveria ter sido dela.

Em vez do vatarh e da matarh, era a archigos Ana que se tornara sua responsável, que a orientara durante a puberdade e adolescência, que confortara Allesandra em suas primeiras paixões, que ensinara os modos da sociedade ca’ e co’, que a acompanhara em bailes e festas, que a tratara não como uma prisioneira, mas como uma sobrinha que tinha se tornado sua responsabilidade criar.

— Eu amo você, tantzia — disse Allesandra para Ana. Ela passara a chamar a archigos de “tia”. O kraljiki Justi recebera a notícia de que um tratado entre os Domínios e a “Coalizão” Firenzciana estava para ser assinado em Passe a’Fiume, e, como parte das negociações, o hïrzg Jan finalmente pagara o resgate de sua filha. Ela passara uma década em Nessântico, praticamente metade de sua vida. Agora, aos 21 anos, ela deveria retornar à vida que perdera há tanto tempo, e estava assustada pela perspectiva. Antigamente, isso era tudo o que ela queria. Agora...

Parte de Allesandra queria ficar aqui. Aqui, onde ela sabia que era amada.

Ana abraçou-a com mais força. Allesandra era mais alta do que a archigos agora, e Ana teve que ficar na ponta dos pés para beijar sua testa. — Eu também amo você, Allesandra, e sentirei a sua falta, mas chegou a hora de ir para casa. Saiba que eu sempre estarei aqui para você. Sempre. Você faz parte do meu coração, minha querida. Eternamente.

Allesandra tinha esperanças de poder banhar-se ao sol do amor de seu vatarh novamente. Sim, ela tinha ouvido falar que o novo a’hïrzg Fynn era o filho que o hïrzg Jan sempre desejou: habilidoso com o cavalo, com a espada, com a diplomacia. Ela sabia que o irmão estava sendo preparado para a carreira na Garde Firenzcia. Mas ela também fora um dia o orgulho de seu vatarh. Com certeza poderia voltar a ser.

Mas Allesandra soube assim que o vatarh olhou para ela, do outro lado da tenda de negociação em Passe a’Fiume, que isso não aconteceria. No olhar de predador de Jan havia uma aversão que ardia lentamente. Ele avaliou Allesandra como se olhasse para uma estranha — e ela era realmente uma estranha para o vatarh: uma jovem agora, não mais a menina que Jan perdera. Ele pegou as mãos dela, aceitou a mesura como faria com qualquer ca’ e co’ e passou a filha para o archigos Semini um momento depois.

Fynn estava ao lado dele — agora com a idade que Allesandra tinha ao ser capturada — e avaliou a irmã mais velha como faria com um rival qualquer.

Allesandra procurou o olhar de Ana através da tenda, e a mulher deu um sorriso triste e um aceno de despedida. Havia lágrimas nos olhos de Ana, que brilharam ao sol que passava pela lona fina da tenda. A archigos, pelo menos, fora fiel à própria palavra. Ela escrevera regularmente para Allesandra. Negociara com o vatarh para que tivesse a permissão de comparecer ao casamento de Allesandra com Pauli ca’Xielt, o filho do gyula da Magyaria Ocidental, e, portanto, um matrimônio politicamente vantajoso para o hïrzg, e um enlace sem amor para Allesandra.

Ana tinha até mesmo estado presente, em segredo, no nascimento do filho de Allesandra, há quase 16 anos agora. A archigos Ana — a archigos falsa e herege de acordo com Firenzcia, a quem Allesandra era obrigada a odiar como uma boa cidadã da Coalizão — abençoara e batizara a criança com o nome que Allesandra lhe dera: Jan. E o fizera sem uma crítica ou um comentário. Fizera com um sorriso gentil e um beijo.

Até mesmo batizar a criança em homenagem ao vatarh não mudou nada. Isso não o aproximara de Allesandra — na maior parte do tempo, o hïrzg Jan ignorava seu neto e homônimo. Jan ficava na companhia do hïrzg Jan cerca de duas vezes ao ano, quando ele e Allesandra o visitavam em ocasiões de estado, e raramente o hïrzg falava diretamente com o neto.

Agora... agora seu vatarh estava morrendo e Allesandra não conseguia evitar chorar por ele. Ou talvez não conseguisse evitar chorar por si mesma. Com raiva, ela atacou a umidade nas bochechas com a manga. — Aeri! — Allesandra chamou o secretário. — Venha aqui! Tenho que ir para Brezno.

Allesandra irrompeu no quarto do hïrzg e jogou longe a capa suja de viagem. O cabelo estava despenteado pelo vento, e as roupas cheiravam a cavalo. Ela empurrou os criados que tentaram ajudá-la e se dirigiu para a cama. Os chevarittai e vários parentes reunidos ali afastaram-se para deixar que ela se aproximasse; Allesandra sentiu os olhares de avaliação às suas costas. Ela olhou fixamente para o rosto murcho e encarquilhado no travesseiro e mal o reconheceu.

— Ele está...? — perguntou Allesandra bruscamente, mas então ela ouviu o barulho causado pela respiração cheia de catarro do hïrzg e viu o lento movimento do peito sob as cobertas. O quarto cheirava a doença, apesar das velas perfumadas. — Fora! — falou ela para todos, gesticulando. — Digam a Fynn que eu vim, mas deixem-me sozinha com meu vatarh. Fora!

Eles dispersaram-se, como Allesandra sabia que fariam. Ninguém tentou protestar, embora os curandeiros dirigissem olhares de desaprovação sob frontes cautelosamente franzidas, e ela pôde ouvir os sussurros enquanto as pessoas saíam. “Não é de admirar que o marido fique longe dela... Um bode tem melhores maneiras... Ela tem a arrogância de Nessântico...”.

Allesandra bateu a porta na cara deles.

Então, finalmente, ao olhar para o rosto encovado e cinzento do vatarh, ela permitiu-se chorar, ajoelhada ao lado da cama, segurando as mãos frias e debilitadas. — Eu amei o senhor, vatarh — falou Allesandra. Sozinha com ele, a verdade era possível. — Eu amei. Mesmo depois que o senhor me abandonou, mesmo depois que o senhor deu a Fynn todo o carinho que eu queria, eu ainda o amei. Eu poderia ter sido a herdeira que o senhor merecia. Ainda posso ser, se tiver a chance.

Allesandra ouviu o arrastar de botas na porta e ficou de pé. Secou os olhos com a manga da tashta e fungou assim que Fynn empurrou a porta para abri-la. Ele irrompeu no quarto; Fynn nunca simplesmente entrava em um aposento. — Irmã, noto que as notícias chegaram até você.

Allesandra cruzou os braços. Ela não deixaria que o irmão notasse como havia ficado abalada ao ver o vatarh em seu leito de morte. Deu de ombros. — Eu ainda tenho fontes aqui em Brezno, mesmo que meu irmão deixe de mandar um mensageiro.

— Eu esqueci, mas imaginei que você saberia, de qualquer maneira. — O sorriso que ele deu era mais uma careta de desprezo, contorcida pela longa cicatriz enrugada que ia do canto do olho direito atravessando o lábio até o queixo: a marca de uma cimitarra de Tennshah. Fynn, aos 24 anos, tinha o corpo esbelto e forte de um soldado profissional, uma forma física que caía bem nas calças e blusas soltas que usava. Esse estilo de vestir de Tennshah tinha virado moda em Firenzcia desde as guerras de fronteira, há seis anos, quando Fynn enfrentou as forças do t’sha e empurrou os limites de Firenzcia quase 165 quilômetros para o leste, e ganhou a cicatriz comprida que maculava o belo rosto.

Foi durante essa guerra que Fynn conquistou plenamente o carinho do vatarh e acabou com qualquer esperança persistente de Allesandra de que pudesse vir a se tornar a hïrzgin.

— Os curandeiros disseram que o fim virá em algum momento do dia de hoje ou possivelmente à noite se ele continuar a lutar; o vatarh nunca desistiu facilmente, não é? Mas os retalhadores de almas virão atrás dele desta vez. Não há mais dúvida alguma quanto a isso. — Fynn abaixou os olhos na direção da figura na cama quando o hïrzg estremeceu novamente ao respirar. O olhar do jovem era carinhoso e triste, e, no entanto, também era avaliador, como se calculasse quanto tempo levaria até que ele pudesse retirar o anel com sinete das mãos unidas e colocá-lo no próprio dedo; até que pudesse colocar a coroa fina de ouro de hïrzg nos cachos da própria cabeça. — Não há nada que eu ou você possamos fazer, irmã, além de rezar para que Cénzi receba a alma do vatarh com carinho. Fora isso... — Fynn deu de ombros. — Como está meu sobrinho Jan?

— Você o verá em breve — falou Allesandra. — Ele está a caminho de Brezno atrás de mim e deve chegar amanhã.

— E seu marido? O querido Pauli?

Allesandra torceu o nariz. — Se você está tentando me provocar, Fynn, não vai funcionar. Eu sugeri que Pauli permanecesse em Malacki e cuidasse dos negócios de estado. E quanto a você? Já encontrou alguém para casar ou ainda prefere a companhia de soldados e cavalos?

O sorriso demorou a surgir, e era vacilante quando apareceu. — Agora quem provoca quem? O vatarh e eu ainda não tomamos uma decisão quanto a isso, e agora parece que a decisão será somente minha, embora eu certamente ouvirei quaisquer sugestões que você tenha. — Fynn abriu os braços e Allesandra relutantemente permitiu que ele a abraçasse. Nenhum dos dois deu um abraço apertado, mas apenas envolveram um ao outro, como se abraçassem um espinheiro, e o gesto acabou em um piscar de olhos. — Allesandra, eu sei que sempre houve uma distância entre nós, e espero que possamos trabalhar em conjunto quando... — ele hesitou, e Allesandra observou o peito de Fynn inchar após respirar fundo — ... quando eu for o hïrzg. Precisarei de seus conselhos, irmã.

— E eu os darei a você — ela aproximou-se e cautelosamente beijou o ar a um dedo de distância da bochecha marcada pela cicatriz —, irmãozinho.

— Eu queria que nós realmente pudéssemos ter sido irmãozinho e irmãzona. Eu queria ter conhecido você naquela época.

— Eu também — disse Allesandra para Fynn. E eu queria que estas fossem mais do que palavras vazias e educadas que ambos dizemos porque sabemos que são o que a etiqueta exige. — Ficaria aqui comigo agora? Deixe o vatarh perceber que estamos juntos pelo menos uma vez.

Ela sentiu sua hesitação e perguntou-se se Fynn iria recusar. Porém, após um instante, o irmão deu de ombros. — Por uma virada da ampulheta ou menos, nós podemos rezar por ele. Juntos.

 

Jan ca’Vörl

— EU TENHO QUE CAVALGAR o mais rápido possível para Brezno — falou a matarh de Jan para ele. — Eu dei ordens para os criados arrumarem o que temos nos quartos em malas para viagem. Quero que você venha atrás assim que eles aprontarem as carruagens. E, Jan, veja se consegue convencer seu vatarh a vir com você. — Ela deu um beijo na testa do filho, com mais intensidade do que em anos, e abraçou-o. — Eu amo você — sussurrou. — Espero que saiba disso.

— Eu sei. — Jan afastou-se e sorriu para a matarh. — E eu espero que a senhora saiba disso.

Ela sorriu e deu um último abraço no filho antes de subir no cavalo mantido pelos dois chevarittai que iriam acompanhá-la. Jan observou o trio se afastar pela estrada da propriedade a galope.

Isto foi há dois dias. Sua matarh devia ter chegado a Brezno ontem. Jan recostou a cabeça nas almofadas da carruagem e viu a paisagem do sul de Firenzcia passar sob a luz dourado-esverdeada do fim da tarde. O condutor dissera que eles parariam no próximo vilarejo à noite e chegariam a Brezno ao meio-dia de amanhã. Jan imaginou o que ele encontraria lá.

Ele estava sozinho na carruagem.

Jan pedira ao vatarh Pauli para vir com ele, como a matarh solicitara. Os criados disseram que Pauli estava em seus aposentos na propriedade, em uma ala separada dos aposentos de Allesandra. O assistente chefe de Pauli entrou para anunciar o filho e retornou com as sobrancelhas arqueadas. — Seu vatarh disse que pode ceder alguns momentos — falou o homem ao acompanhar Jan em uma das salas de recepção depois do corredor principal.

Jan ouviu os risinhos abafados de duas mulheres vindo de um quarto que dava para a sala de recepção. A porta foi aberta em meio a risada rouca de um homem. O vatarh vestia um robe, o cabelo estava desgrenhado e revolto, a barba encontrava-se por fazer. Ele cheirava a perfume e vinho. — Um instante — disse Pauli para Jan. Ele tocou os lábios com um dedo antes de cambalear um pouco até a porta que levava ao quarto abrindo-a ligeiramente. — Shh! — falou alto. — Estou tentando levar uma conversa sobre minha esposa com meu filho. — O que foi recebido com uma risada estridente.

— Diga ao garoto para se juntar a nós. — Jan ouviu uma delas gritar, e sentiu o rosto ficar vermelho com o comentário, enquanto Pauli apontava o dedo na direção da mulher que não podia ser vista.

— Vocês duas são umas safadas encantadoras — disse Pauli para elas. Jan imaginou as mulheres: com perucas e ruge no rosto, seminuas ou talvez completamente nuas, como um dos quadros das deusas moitidis que decoravam os salões. — Voltarei em um instante — continuou Pauli. — Bebam mais vinho, moças.

Ele fechou a porta e apoiou-se pesadamente contra ela. — Desculpe. Eu estou com... companhia. Então, o que a megera queria? Ah, é melhor você dizer por mim para a sua matarh que o a’gyula da Magyaria Ocidental tem coisas melhores para fazer do que ir a Brezno porque alguém pode ou não estar morrendo. Quando o velho desgraçado finalmente der seu último suspiro, sem dúvida eu serei enviado ao funeral como nosso representante, e isso ocorrerá em breve. — As palavras saíram arrastadas. Ele pestanejou lentamente e arrotou. — Você também não precisa ir, garoto. Por que não fica aqui? Nós dois podemos nos divertir, hein? Tenho certeza de que estas moças têm amigas...

Jan balançou a cabeça. — Eu prometi para a matarh que pediria ao senhor que viesse, e foi o que fiz. Eu parto hoje à noite; os criados estão quase terminando de arrumar as carruagens.

— Ah sim — disse Pauli. — Você é um filho tão bom e obediente, não é? O orgulho e alegria de sua matarh. — Ele afastou-se da porta e cambaleou enquanto apontava um dedo para Jan, que andava de um lado para o outro. — Você não quer ser como ela. Sua matarh não ficará satisfeita enquanto não dominar o mundo inteiro. Ela é uma vadia ambiciosa com um coração duro como pedra.

Jan já tinha ouvido Pauli insultar sua matarh mil vezes, e a cada ano que passava mais. Antes ele sempre rangia os dentes, fingia não escutar ou murmurava uma reclamação que Pauli ignoraria. Agora... o rubor que surgia no rosto de Jan tornou-se vermelho como lava. Ele cruzou o aposento acarpetado com três passos ligeiros, levou a mão para trás e deu um tapa na cara do vatarh. Pauli cambaleou contra a porta, que se abriu e fez com que ele desmoronasse ali, sobre um tapete trançado. Jan viu duas mulheres dentro do quarto — realmente seminuas sobre a cama do vatarh. Elas cobriram os seios com os lençóis e gritaram. Sem acreditar, Pauli levou a mão ao rosto; sobre a barba fina, Jan pôde ver a marca dos dedos na bochecha do vatarh.

Ele imaginou por um instante o que faria se Pauli se levantasse, mas o vatarh apenas pestanejou novamente e riu como se tivesse levado um susto.

— Bem, você não precisava fazer isso — disse Pauli.

— O senhor pode pensar o que bem entender da matarh. Eu não me importo. Porém, de agora em diante, vatarh, guarde suas opiniões para o senhor ou trocaremos mais do que palavras. — Dito isso, antes que Pauli conseguisse se levantar do tapete ou responder, Jan virou-se e apressou-se a sair da sala.

Ele se sentiu estranhamente alegre. A mão formigava. Pelo resto do dia, Jan esperou ser chamado à presença do vatarh — assim que o vinho tivesse ido embora da cabeça do homem. Porém, até ser informado de que as carruagens estavam prontas e à espera, Jan não tinha ouvido nada. Ele ergueu os olhos para as janelas da ala do vatarh ao entrar na carruagem principal, enquanto os criados que viajariam com ele subiam nas outras. Jan pensou ter vislumbrado uma silhueta observando da janela e levantou a mão — a mão que batera no vatarh.

Outra silhueta, uma forma feminina, aproximou-se do vatarh por trás, e a cortina fechou-se novamente. Jan entrou na carruagem. — Vamos — falou para o condutor. — Temos uma longa jornada à frente.

Ele olhou mais uma vez pela janela da carruagem. Pela maior parte da jornada, Jan ficou remoendo o que aconteceu. Ele tinha quase 16 anos. Era quase um homem. Até já tivera sua primeira amante: uma garota ce’ que fizera parte do corpo de funcionários da casa, embora a matarh de Jan tivesse mandado a menina embora quando percebeu que eles se tornaram íntimos. Ela também deu um longo sermão sobre o que esperava dele. — Mas o vatarh... — Jan começara a falar, e Allesandra interrompeu o protesto com um golpe forte da mão.

— Pare aí, Jan. Seu vatarh é preguiçoso e libertino, e, desculpe a grosseria, ele geralmente pensa com o que tem entre as pernas, não com a cabeça. Você é melhor do que ele, Jan. Vai ser importante neste mundo, se escolher não ser o filho de seu vatarh. Eu sei disso. Prometo a você.

Ela não dissera tudo que poderia ter dito, e ambos sabiam disso. Pauli podia ser o vatarh de Jan, mas para ele isto era apenas outro título, e não uma ocupação. Era a matarh quem Jan via todo dia, que brincava com ele quando era pequeno, que ia vê-lo todas as noites após as babás o colocarem na cama. Seu vatarh... Ele era uma figura alta que às vezes mexia no cabelo de Jan ou dava presentes extravagantes que pareciam mais um pagamento pela ausência do que presentes de verdade.

Seu vatarh era o a’gyula da Magyaria Ocidental, filho do atual gyula, o governante que Jan via com tanta frequência quanto o outro vavatarh, o hïrzg. As pessoas faziam mesuras na presença de Pauli, riam e sorriam quando falavam com ele. Mas Jan ouvia os sussurros dos funcionários e dos convidados quando eles pensavam que ninguém escutava.

Sua mão direita pulsava, como se lembrasse do tapa na cara do vatarh. Jan olhou para a mão à luz do fim do dia: uma mão de adulto agora. O tapa na cara do vatarh fez com que ele rompesse com a infância para sempre.

Jan não seria como seu vatarh. Ao menos isso ele se prometeu. Jan teria a própria personalidade. Independente.

 

Varina ci’Pallo

VARINA ESTAVA AO LADO de Karl na elegante sala de recepção da archigos, mas — como quase sempre era o caso quando Ana se encontrava no mesmo ambiente — ela parecia invisível a ele. Toda a atenção de Karl estava voltada para a archigos. Varina queria se virar e dar um tapa na cara dele. Você não enxerga o que está diante da sua cara? Você é tão distraído assim?

Parecia que ele era. Karl sempre fora abstraído e sempre seria quando Ana estivesse envolvida. Ao longo dos anos, Varina chegou a essa conclusão. Talvez tivesse sido diferente se a própria Varina não gostasse e admirasse a archigos, se não considerasse a mulher uma amiga. Ainda assim...

— Você tem certeza disso? — perguntou Karl para Ana. Ele olhava para um pergaminho dado pela archigos e batia com o indicador nas palavras escritas ali. — Ele está morto? — Não havia traço algum de tristeza em sua voz; na verdade, Karl sorria ao devolver o papel para a archigos.

Ana franziu a testa. Se Karl considerou boas as notícias, era óbvio para Varina que a opinião de Ana era mais ambígua. — O hïrzg Jan está morrendo — falou a archigos. — E suspeito que ele provavelmente já morreu a esta altura, se a informação for correta. O téni que enviou esta mensagem tem o toque da cura; ele saberia dizer se o homem está além da salvação.

— Até que enfim o velho urubu morreu — disse Karl. Ele olhou ao redor da sala, pensativo, mas não para Varina. — Você já falou com Allesandra? Ela vai contestar o direito de Fynn ao trono?

— Não sei. — Ana pareceu suspirar. Ela nunca fora bonita; na melhor das hipóteses, quando jovem, Ana fora uma mulher singela. Até mesmo ela teria admitido isso. Agora, ao chegar à meia-idade, Ana tornou-se uma figura matrona, mas havia algo de impressionante, confiável e cativante a seu respeito. Varina conseguia entender a atração e a devoção de Karl pela mulher, mesmo que parte dela se ressentisse com isso. A reputação de Ana só cresceu ao longo dos anos. As pessoas riam do kraljiki Justi pelas costas, e a situação não parecia ser diferente com seu filho, Audric, e havia aqueles na Fé que consideravam heréticas a tolerância e a franqueza de Ana, mas o povo de Nessântico e dos Domínios parecia adorar sua archigos e ter afeição por ela. Varina já tinha visto as multidões em volta do templo sempre que Ana ia dar uma Admoestação e já tinha ouvido a aclamação quando a carruagem da archigos passava pela Avi a’Parete.

— Se Allesandra estivesse no trono de Firenzcia, eu me sentiria melhor a respeito disso tudo — continuou Ana. — Sentiria que haveria esperança de que os Domínios pudessem ser restaurados. Se Allesandra fosse a hïrzgin... — Outro suspiro. Ana olhou sobre seus ombros, na direção do enorme ornamento de globo partido que se destacava no outro canto da sala: dourado e cravejado de joias, com esculturas dos moitidis, os semideuses que eram filhos de Cénzi, se contorcendo de agonia na base. A voz era quase um sussurro, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse escutá-la secretamente. — Então eu poderia considerar abrir negociações com Semini ca’Cellibrecca, para ver se a fé concénziana também poderia ser reunificada.

Varina fez uma expressão de aflição, e Ana dirigiu um olhar compreensivo a ela. — Eu sei, Varina. Garanto que a segurança dos numetodos não será negociável, mesmo que eu estivesse disposta a abdicar do título de archigos em favor de Semini. Eu não permitiria que as perseguições se repetissem.

— Você não pode confiar que ca’Cellibrecca manterá essas promessas — falou Varina. — Ele é praticamente filho de seu vatarh por casamento.

— Ca’Cellibrecca estaria obrigado a cumprir uma promessa pública, assim como seus votos a Cénzi.

— Você tem mais fé nele do que eu — respondeu Varina. O que fez Ana sorrir.

— É estranho ouvir um numetodo falar de fé — disse a archigos. Ela tocou o ombro de Varina sob a tashta e deu uma risada amigável. — Mas entendo sua preocupação e seu ceticismo. Peço que confie em mim; se a situação chegar a este ponto, eu garanto que você, Karl e seu povo serão protegidos.

— Será que a situação chegará a esse ponto? — interrompeu Karl, que observou as mãos de Ana como se quisesse que ela o tocasse. — Acha que há chances, Ana?

Ela olhou para o papel em sua mão como se procurasse uma resposta ali, depois se virou para pousar o pergaminho em uma mesa próxima. Ele emitiu um pequeno ruído; estranho, pensou Varina, para algo com tão pesada importância. — Eu não sei — falou Ana. — Allesandra e o irmão não se toleram. Dado o tempo que Allesandra esteve aqui comigo enquanto ambos cresciam, eles são mais estranhos do que irmãos, e o jeito com que o hïrzg Jan tratou Allesandra quando ele de fato pagou o resgate por ela... — Ana balançou a cabeça. — Mas eu não sei mais o que Allesandra quer ou quais seriam seus desejos e ambições. Eu achei que soubesse antigamente, mas...

— Você foi uma matarh para ela — disse Karl, Ana riu novamente.

— Não, não fui isso. Talvez uma irmã mais velha ou uma tantzia. Tentei ser alguém com quem ela pudesse estar segura, porque a pobre criança ficou completamente sozinha aqui por tempo demais. Não consigo imaginar como isso pode tê-la magoado.

— Você foi maravilhosa com ela — insistiu Karl. Varina observou Karl estender a mão para pegar a de Ana. Doía ver o gesto. — Foi sim.

— Obrigada, mas eu sempre imagino se poderia ter feito mais, ou melhor — disse Ana, que afastou lentamente suas mãos das de Karl. — Fiz o que pude. Isto é tudo que Cénzi pode pedir, creio eu. — Ana sorriu. — Vamos ver o que acontece, não é? Manterei vocês dois informados assim que souber de mais notícias.

— Você ainda está disponível para jantar amanhã? — perguntou Karl para Ana.

O olhar da archigos deslizou de Karl para Varina e de volta para Karl. — Sim, após a Terceira Chamada. Gostaria de se juntar a nós, Varina?

Ela sentiu o olhar de Karl. — Não — disse Varina, às pressas. — Não posso, archigos. Tenho uma reunião com Mika e uma aula para dar... — Desculpas demais, mas Karl assentiu com a cabeça. A satisfação dele diante da resposta de Varina foi como o corte de uma pequena navalha.

— Amanhã à noite, então — disse Karl. — Aguardo ansiosamente o jantar. Talvez fosse melhor nós irmos embora, Varina. Tenho certeza de que a archigos tem outros compromissos... — Ele inclinou a cabeça na direção de Ana e começou a andar na direção da porta. Varina virou-se para segui-lo, mas Ana chamou-a quando eles deram as costas.

— Varina, um momento? Karl, eu a mando imediatamente, prometo.

Karl olhou para trás, intrigado, mas fez uma mesura novamente e caminhou em direção às portas. Os dois enormes painéis eram entalhados com baixos-relevos dos moitidis em batalha, com espadas que se sobrepunham e colidiam na junção. Karl puxou as portas e os combatentes se separaram. Varina esperou até que a madeira escura e envernizada se fechasse enquanto ele saia e os moitidis novamente estivessem em guerra.

— Archigos?

— Eu queria um momento com você, Varina, porque estou preocupada — falou Ana. — Você parece tão cansada e abatida. Magra. Eu sei o quanto você anda envolvida com sua... pesquisa. Está se lembrando de comer?

Varina tocou seu rosto. Ela sabia o que Ana dizia. Tinha visto o rosto no espelhinho que mantinha sobre a penteadeira. As pontas dos dedos percorreram o traçado das novas rugas que surgiram nos últimos meses e sentiram a aspereza dos cabelos grisalhos nas têmporas. Ela tinha medo de se olhar no espelho a maioria das manhãs; o rosto refletido era o de uma estranha mais velha que Varina mal reconhecia. — Eu estou bem — respondeu automaticamente.

— Está mesmo? — perguntou Ana novamente. — Estas “experiências” que Karl diz que você está fazendo para tentar recriar o que Mahri podia fazer... — Ela balançou a cabeça. — Eu me preocupo com você, Varina. E Karl também.

“E Karl também...”, ela queria poder acreditar nessas palavras. — Eu estou bem — repetiu Varina.

— Eu poderia usar o Ilmodo, se você quisesse. Isso pode ajudar, se você estiver sofrendo.

— Você desobedeceria a Divolonté e me curaria? Uma ateísta? Archigos! — Varina sorriu para Ana, que devolveu o gesto.

— Eu confio a você meus segredos — disse Ana. — E a oferta continua de pé, se algum dia sentir necessidade.

— Obrigada, archigos. Não me esquecerei disso. — Ela apontou com a cabeça para os moitidis em guerra silenciosa. — É melhor eu alcançar Karl.

— Sim, é melhor. — Ana começou a fazer o sinal de Cénzi para Varina, depois se deteve. — Eu posso falar com ele.

— Archigos?

— Eu tenho olhos. Quando vejo você com ele...

Varina riu. — Você é a única que ele enxerga, archigos.

— E eu sou comprometida com Cénzi. Com ninguém mais. Não estou destinada a este tipo de relacionamento nesta vida. Eu disse isso a ele. Aprecio a amizade de Karl e tudo que ele fez por mim e por Nessântico. Eu o amo muito, mais do que um dia amei outra pessoa. Mas o que ele quer... — A cabeça acenou lentamente de um lado para outro enquanto Ana cerrava os lábios. — Você deveria dizer a ele como você se sente.

— Se eu preciso dizer a ele, então é óbvio que o sentimento não é mútuo — respondeu Varina. Ela conseguiu dar um sorriso forçado. — E estou comprometida com meu trabalho, como você é comprometida com Cénzi.

Ana deu um passo à frente e um rápido abraço em Varina. — Então Karl é um tolo por não ver como somos parecidas.

 

Audric ca’Dakwi

NEM MESMO UM KRALJIKI podia evitar ter aulas ou fazer provas para raspar qualquer essência de conhecimento grudada no interior do crânio.

Audric estava diante do Trono do Sol com as mãos entrelaçadas nas costas, voltado para seu professor, mestre ci’Blaylock. Atrás do mestre magro, frágil e sujo de giz, a plateia olhava Audric com sorrisos de incentivo: alguns chevarittai enfeitados com Medalhas de Sangue, os ca’ e co’, os cortesãos de sempre, Sigourney ca’Ludovici, e alguns outros integrantes do Conselho dos Ca’... todos aqueles que queriam que Audric notasse seu comparecimento ao exame trimestral do jovem kraljiki. Com 14 anos, Audric estava bem ciente da atenção bajuladora que recebia por conta de seu título e linhagem.

Eles não estavam aqui pelo exame; estavam aqui para serem vistos. Por ele. E apenas por ele.

Audric sentia prazer ao pensar nisto.

— Ano 471 — entoou ci’Blaylock ao erguer os olhos do púlpito carregado de papiros onde estava. — A linhagem dos kralji.

Uma pergunta fácil. Sem desafio algum. — Kraljica Marguerite ca’Ludovici — respondeu Audric rapidamente e com firmeza. Ele tossiu, então, como fazia frequentemente, e acrescentou — Também conhecida como a Généra a’Pace.

E também minha mamatarh... O retrato de Marguerite ficava pendurado no quarto de Audric. A obra era de um realismo perturbador e foi pintada pelo falecido mestre artista Edouard ci’Recroix, que também criara o grande painel de uma família de camponeses que enfeitava o próprio salão do Trono do Sol. Marguerite observava o neto toda noite, enquanto ele dormia, e dava o mesmo meio sorriso cansado e estranho toda manhã quando Audric acordava. Muitas vezes ele quis ter tido a oportunidade de conhecê-la de verdade, ele certamente já tinha ouvido muitas histórias a respeito da mamatarh. Às vezes Audric imaginava se todas elas eram verdade: na memória do povo de Nessântico, a kraljica Marguerite governou durante uma Era de Ouro, uma era de luz do sol, comparada às políticas tempestuosas do presente.

A corte sorriu e aplaudiu com educação a resposta. A maior parte da alegria era indubitavelmente motivada pelo fato de que eles finalmente se aproximavam do fim do exame, conforme o mestre ci’Blaylock descia a escada da história. Eles começaram há quase meia-virada da ampulheta, no ano 413, com o kraljiki Henri VI, o primeiro ano da linhagem ca’Ludovici, da qual o próprio Audric descendia; os espectadores ficaram de pé o tempo todo, desde então; afinal, ninguém se senta na presença do kraljiki sem permissão. Audric sabia as respostas das próximas perguntas que faltavam; e como não saberia, sendo elas tão envolvidas com a vida de sua família? Um suspiro praticamente inaudível veio da corte, juntamente com o farfalhar de tecido conforme as pessoas trocavam os pés de apoio. — Correto — disse ci’Blaylock, bufando. Ele tinha pele negra, como muitos que vinham da província de Navarro. O mestre molhou a ponta da pena no pote de nanquim do púlpito e fez uma demorada marca no papiro aberto. O traçado da pena era sonoro. As sobrancelhas brancas tremulavam sobre os olhos opacos de catarata. — Ano 485. A linhagem dos archigi.

Tosse. — Archigos Kasim ca’Velarina. — Tosse.

Mais aplausos educados, e outro mergulho e traçado da pena. — Correto. Ano 503. A linhagem dos archigi.

Audric respirou fundo e tossiu novamente. — Archigos Dhosti ca’Millac, o Anão. — Aplausos. Traço da pena. Audric ouviu as portas do fundo do salão serem abertas; o regente Sergei ca’Rudka entrou a passos largos e rápidos na direção de Audric. Apesar da idade, o regente movia-se com energia e uma postura ereta. Os cortesãos, com um olhar cauteloso, afastaram-se rapidamente para abrir caminho. O nariz artificial de prata de Sergei alternava entre brilhar e se ofuscar sob os fracos feixes de luz do sol que entravam pelas janelas.

— Correto — entoou ci’Blaylock. — Ano 521. A linhagem dos kralji.

Esta era fácil: esse foi o ano em que o vatarh de Audric assumiu o Trono do Sol, após o assassinato de Marguerite. Audric respirou fundo novamente, mas o esforço rendeu outro espasmo momentâneo de tosse preenchida pelo horrível som de líquido nos pulmões. Passada a tosse, ele empertigou-se e pigarreou. — Kraljiki Justi ca’Dakwi — disse ele para ci’Blaylock e os cortesãos. — O Grande Guerreiro — acrescentou. Esta foi a alcunha que Justi deu a si mesmo. Audric tinha ouvido as outras alcunhas dadas a Justi, que as pessoas sussurravam quando achavam que ninguém as estava escutando. Justi, o Perneta; Justi, o Incompetente; Justi, o Grande Fracasso.

Ninguém teria se atrevido a dizer essas alcunhas na cara do kraljiki quando Justi era vivo. Audric olhou para os sorrisos estampados nas caras dos ca’ e co’ e imaginou por quais alcunhas ele era chamado quando não estava presente para escutar.

Audric, o Enfermo. Audric, o Fantoche do Regente.

Novamente os espectadores aplaudiram. Sergei, de braços cruzados, não se juntou a eles. Ele observava logo atrás do mestre ci’Blaylock, que parecia sentir a pressão da presença do homem. Ele deu uma olhadela sobre seus ombros, viu o regente e tremeu visivelmente. — Hum... — O velho balançou a cabeça, olhou para o papiro, mergulhou um dedo sujo de nanquim no papel. — Ano 521. A linhagem dos archigi.

Esta era uma resposta mais longa, mas ainda fácil. — Archigos Orlandi ca’Cellibrecca, o Grande Traidor e primeiro falso archigos de Brezno. — Audric tossiu novamente e fez uma pausa para pigarrear. — Então, no mesmo ano, depois que ca’Cellibrecca traiu a fé concénziana e o kraljiki Justi em Passe a’Fiume: archigos Ana ca’Seranta, a mais jovem téni a ser nomeada archigos da história.

Ana, que ainda mantinha o título de archigos. Ana, que Audric amava como se fosse a matarh que ele jamais conhecera. Audric sorriu ao mencionar seu nome, e o aplauso que se seguiu foi genuíno — a archigos Ana era muito amada, com sinceridade, pelo povo de Nessântico.

— Correto — falou ci’Blaylock. — Também no ano 521. Guerra e política.

— A rebelião do hïrzg Jan ca’Vörl — respondeu Audric rapidamente. As guturais sílabas firenzcianas provocaram um espasmo em seus pulmões novamente. Foram necessárias várias respirações para que a tosse parasse e ele conseguisse falar novamente. — O hïrzg foi derrotado pelo kraljiki Justi na Batalha dos Brejos — disse Audric com a voz rouca, finalmente.

— Excelente! — A voz não era de ci’Blaylock, mas sim de Sergei, que aplaudiu alto e caminhou até ficar ao lado de Audric. Os cortesãos uniram-se aos aplausos com atraso e incerteza. Audric notou que Sigourney ca’Ludovici não aplaudiu, apenas cruzou os braços e o olhou intensamente. — Mestre ci’Blaylock, tenho certeza de que o senhor já ouviu o suficiente para fazer seu julgamento — continuou Sergei.

Ci’Blaylock franziu a testa. — Regente, eu não termi... — Ele parou, e Audric viu o mestre encarar a expressão fechada do regente. Ci’Blaylock pousou a pena e começou a enrolar o papiro da prova. — Sim, foi muito satisfatório. Muito bem, kraljiki, como sempre.

— Ótimo — disse Sergei. — Agora, se todos os senhores nos dão licença...

A dispensa do regente foi abrupta, mas efetiva. O mestre ci’Blaylock reuniu os papiros e mancou na direção da porta mais próxima; os cortesãos recuaram como filetes de neblina em uma manhã de sol e sorriram até virar as costas. Audric ouviu as frenéticas especulações sussurradas ao saírem do salão. Sigourney, no entanto, fez uma pausa. — É algo que o Conselho dos Ca’ deva saber? — perguntou ela para Sergei. Sigourney não olhava para Audric; era como se ele não fosse importante o suficiente para ser notado.

Sergei balançou a cabeça. — Não no momento, conselheira ca’Ludovici. Se for o caso, fique tranquila que a senhora será avisada imediatamente.

Sigourney torceu o nariz diante da resposta, mas acenou com a cabeça para Sergei e fez a mesura apropriada para Audric antes de sair do salão. Apenas alguns criados permaneceram, parados em silêncio perto das paredes de pedra cobertas por tapeçarias, enquanto dois e’ténis — sacerdotes da fé concénziana — sussurravam preces ao acender lamparinas para diminuir a luz difusa. Na parede próxima ao Trono do Sol, os rostos da família de camponeses no quadro de ci’Recroix pareciam tremer sob a luz do fogo mágico.

— Obrigado, Sergei — disse Audric. Ele tossiu e cobriu a boca com a mão fechada. — Mas você podia ter vindo meia-virada da ampulheta mais cedo e me poupado de todo esse martírio.

Sergei deu um sorriso irônico. — E encarar a fúria do mestre ci’Blaylock? Nem pensar. — Ele fez uma pausa, e as rugas em volta do nariz de metal adquiriram uma expressão séria. — Eu teria estado aqui mais cedo para ouvir sua prova, kraljiki, mas acabei de receber uma mensagem de um contato em Firenzcia. Há notícias que acho que o senhor deve ouvir antes do Conselho: o hïrzg Jan de Firenzcia está em seu leito de morte. Não esperam que ele sobreviva além desta semana. Pode ser que já esteja morto, pois a mensagem é de dias atrás.

— Então o a’hïrzg Fynn se tornará o novo hïrzg? Ou Allesandra irá se contrapor à ascensão do irmão?

O sorriso irônico de Sergei voltou momentaneamente. — Ah, então o senhor presta mesmo atenção nos meus relatórios. Que bom. Isto é bem mais importante do que as aulas do mestre ci’Blaylock. — Ele meneou a cabeça. — Duvido que Allesandra vá protestar. Ela não tem apoio suficiente entre os ca’ e co’ de Firenzcia para contestar o testamento do hïrzg Jan.

— Qual dos dois nós preferiríamos?

— Nossa preferência seria por Allesandra, kraljiki. Após uma década ou mais que ela passou aqui, à espera que o hïrzg Jan pagasse seu resgate, nós a conhecemos muito mais. A archigos Ana sempre teve um bom relacionamento com ela, e Allesandra é bem mais favorável aos Domínios. Se ela se tornasse a hïrzgin... bem, talvez houvesse alguma esperança de reconciliação entre os Domínios e a Coalizão. Poderia até mesmo haver uma pequena possibilidade de que conseguíssemos voltar a como as coisas eram na época de sua mamatarh, com o senhor no Trono do Sol sob os Domínios reunificados. Mas com Fynn como hïrzg... — Sergei meneou a cabeça outra vez. — Fynn puxou ao vatarh, tão belicoso e teimoso quanto ele. Se Fynn for hïrzg, teremos de vigiar nossa fronteira oriental com atenção, o que significa ter menos recursos à disposição para a guerra nos Hellins, infelizmente.

Audric curvou-se com outro acesso de tosse, e Sergei colocou a mão com gentileza em seu ombro. — Sua tosse está piorando novamente, kraljiki. Mandarei os curandeiros fazerem outra poção para o senhor, e talvez a archigos Ana faça uma visita amanhã, depois da cerimônia do Dia do Retorno. É um pouco cedo, mas com as chuvas do mês passado...

— Eu estou melhor agora — disse Audric. — É apenas o ar úmido aqui no salão. — A e’téni mais próxima interrompeu o cântico, as mãos ficaram paralisadas em meio à moldagem do Ilmodo – a energia que abastecia sua magia. Ela era uma jovem moça não muito mais velha que Audric e ficou vermelha quando se vira notada pelo kraljiki, rapidamente afastou o olhar e recomeçou o cântico: a lamparina presa no alto da parede foi acesa quando as mãos realizaram o gestual do Ilmodo abaixo dela.

O peito de Audric começava a doer com o esforço da tosse. Ele odiava ficar doente, mas parecia estar sempre assim desde que se entendia por gente. Se uma doença fosse contraída pelo corpo de funcionários do palácio, certamente ele pegaria; Audric sofria constantemente de acessos de tosse e de uma dificuldade para respirar. Qualquer esforço físico rapidamente deixava o kraljiki exausto e ofegante. Entretanto, de alguma maneira Cénzi o protegera de um surto de febre do sol aos quatro anos de idade, embora a doença tenha levado sua irmã mais velha, Marguerite, batizada em homenagem à famosa mamatarh e preparada para ser a kraljica quando o vatarh deles morresse. O funeral oficial da irmã — uma cerimônia longa e triste — foi uma de suas primeiras memórias.

Deveria ser Marguerite aqui, agora, não ele. Audric tinha esperanças de que isso significasse que Cénzi tinha um plano para ele.

Ele respirou fundo e desta vez prendeu a tosse que ameaçava surgir. — Pronto, viu só? É só o ar úmido e ter que responder a todas aquelas malditas perguntas do mestre.

— Ao menos as perguntas do mestre têm respostas definitivas. As soluções para um kraljiki raramente são claras, como o senhor já sabe. — Sergei colocou o braço em volta de Audric, que se apoiou no abraço do homem. “Confie em ca’Rudka como seu regente”, sussurrara seu vatarh deitado na cama durante aquele último dia. “Confie nele como você confiaria em mim...”

A verdade era que Audric nunca confiou totalmente em seu vatarh, cujo temperamento e favoritismo eram, na melhor das hipóteses, inconstantes. Mas Sergei... Audric achava que o homem tinha sido a última boa escolha de seu vatarh. Sim, ele podia sofrer cada vez mais nas mãos do regente conforme se aproximava da maioridade, podia se irritar com as pessoas às vezes tratando Sergei como se ele fosse o kraljiki, mas Audric não podia ter pedido um aliado mais leal nos ventos caóticos da corte do kraljiki.

Não importava o que os cortesãos murmuravam a respeito do regente. Não importava o que o homem fazia nas masmorras da Bastida ou com as grandes horizontales que ele às vezes levava para a cama.

— Imagino que devemos redigir um comunicado pela morte do hïrzg — falou Audric. — E que devemos ouvir dez conselheiros diferentes pedindo que respondam de vinte maneiras diferentes. E mais dez assessores que nos dirão o que precisamos fazer a respeito dos Hellins no oeste.

Sergei riu. Seu braço estreitou-se em volta do ombro de Audric, depois soltou o kraljiki e esfregou o nariz de prata como se tivesse sentido uma coceira. — Sem dúvida. Eu diria que o senhor aprendeu muito bem todas suas lições, kraljiki.

 

Sergei ca’Rudka

SUA AUGUSTA PRESENÇA, o kraljiki Audric, curvou-se em sua cadeira elevada e estofada ao lado de Sergei e tossiu tão desesperadamente que o regente inclinou seu corpo na direção do garoto. — O senhor precisa de um pouco do xarope do curandeiro, kraljiki? Eu mando um dos criados trazer aqui... — Ele começou a gesticular, mas Audric pegou seu braço.

— Espere, Sergei. Vai passar — disse Audric ao tomar fôlego três vezes. Espere, Sergei (fôlego). Vai (fôlego) passar... O mero esforço de segurar o braço de Sergei deixou o garoto visivelmente cansado.

Sergei esfregou a superfície reluzente do nariz falso grudado em seu rosto; o original fora perdido há décadas em uma luta de espada na juventude. — O senhor prefere retornar ao palácio, kraljiki? A fumaça dos incensários e o incenso não devem fazer bem para seus pulmões, e a archigos entenderá. De qualquer maneira, ela visitará o senhor assim que terminar aqui.

— Nós ficaremos, Sergei. É aqui que devo estar. — Nós ficaremos (fôlego) Sergei (fôlego, tosse, fôlego). É aqui (fôlego) que devo (fôlego) estar...

Sergei concordou com a cabeça. Quanto a isso, o garoto estava certo. Os dois estavam sentados na sacada real do Templo da Archigos, na margem sul do rio A’Sele, em Nessântico. Embaixo, o piso principal do templo estava lotado de devotos para o Dia do Retorno. A archigos Ana estava com vários a’ténis no coro do templo. Seu cabelo, com mechas grisalhas nas têmporas, reluzia sob a luz das lamparinas mágicas, a voz forte e possante recitava os trechos do Toustour. O Dia do Retorno era a cerimônia do solstício da primavera, que preparava os fiéis para o eventual retorno de Cénzi ao mundo que Ele criara. Comparecer era dever do kraljiki Audric, e era por isso que o templo estava com todos os cantos absolutamente lotados de chevarittai, dos ca’ e co’, de famílias de menor status que conseguiram se enfiar nos espaços que sobraram; todo mundo estava lá para ver o jovem kraljiki e talvez também para ser visto por ele: atrás de um pedido, de uma requisição, ou talvez porque o kraljiki ainda não fosse comprometido com ninguém, apesar dos insistentes rumores de que o regente tinha a intenção de fazer um arranjo com uma das grandes famílias dos Domínios.

Eles também deviam ter notado as tosses fortes e secas do kraljiki, que pontuavam a leitura da archigos Ana. Até mesmo ela parou uma vez no meio da recitação para erguer o olhar com preocupação e solidariedade na direção da sacada. A archigos acenou com a cabeça de maneira praticamente imperceptível para Sergei, e o regente soube que ela correria para o palácio depois da cerimônia. Sergei inclinou o corpo novamente e sussurrou no ouvido do garoto. — A archigos prometeu fazer uma visita após terminarmos aqui e rezar pelo senhor. Ela sempre o ajuda, eu sei. O senhor conseguirá aguentar essa crise sabendo que se sentirá melhor em breve.

Audric concordou com a cabeça, de olhos arregalados, e conteve outra tosse com um lenço perfumado. Sergei perguntou-se se Audric sabia — tanto quanto ele — que a razão pela qual as “preces” da archigos o ajudavam tanto era que Ana usava suas habilidades com a magia do Ilmodo para curar os pulmões arruinados de Audric, o que ia contra as leis da Divolonté que governavam a fé concénziana. Era algo que Ana fazia desde pouco depois do nascimento de Audric, quando ficou claro que a vida do menino estava em perigo. Ela fizera praticamente a mesma coisa pela mamatarh de Audric, a tão lastimada kraljica Marguerite, em seus últimos dias, mantendo a soberana viva quando ela teria morrido sem interferência.

Fazia um mês desde a última visita da archigos Ana com este objetivo; era óbvio que a doença do garoto retornou mais uma vez, como sempre fazia, inevitavelmente. Audric dobrou o lenço e guardou novamente na bashta; Sergei viu manchinhas vermelhas no linho. Não falou nada, mas decidiu que mandaria um recado para Ana dizendo que, em vez de ela ir ao palácio, eles a encontrariam imediatamente depois da missa, nos aposentos da archigos. O garoto precisava de cuidados rapidamente.

Sergei recostou-se na cadeira quando a archigos Ana foi até o Alto Púlpito para proferir a Admoestação para o público, enquanto o coro na galeria começava um hino de Darkmavis. Os ca’ e co’ agitaram-se em suas roupas elegantes. Sergei viu Karl ca’Vliomani acenar com a mão para ele perto da lateral do templo — ca’Vliomani, embaixador da Ilha de Paeti e da facção dos numetodos, não era um fiel, mas Sergei sabia que o embaixador e a archigos Ana tinham sido, se não amantes de fato, ao menos amigos e confidentes desde antes da Batalha dos Brejos, há 24 anos. Durante aquele combate, a jovem archigos Ana usou tanto a magia dos numetodos quanto a própria para tirar a a’hïrzg Allesandra de Firenzcia de seu vatarh e mantê-la como refém contra a retirada do hïrzg. O plano funcionou, embora Firenzcia e os países vizinhos tenham se separado dos Domínios como resultado das hostilidades e tenham formado a Coalizão Firenzciana.

Sergei viu-se considerando, novamente, se a derrota das forças firenzcianas nas mãos de Ana foi realmente o triunfo que todos eles pensavam, se não teria sido melhor para os Domínios que o hïrzg Jan tivesse tomado a cidade e se tornado kraljiki. Se isso tivesse ocorrido, tanto Ana quanto o próprio Sergei estariam mortos, mas muito provavelmente haveria apenas os Domínios, e nenhuma Coalizão rival. Haveria apenas uma fé concénziana. Se isso tivesse ocorrido, o então novo kraljiki teria lidado plenamente com o levante dos ocidentais em Hellins com todos os recursos da Garde Civile, e sem ter que se preocupar com o que poderia acontecer no leste.

Se isso tivesse ocorrido, Justi então, o Tolo Perneta, jamais teria se tornado kraljiki e Audric nunca teria sido seu herdeiro, e Nessântico prosperaria em vez de definhar.

Sergei, francamente, nunca esperou que a archigos Ana fosse capaz de manter o título — ela fora muito jovem e inocente, mas o fogo da Batalha dos Brejos forjou o espírito de aço dentro dela. Ana provou ser mais forte do que qualquer a’téni que pudesse ter tentado tomar seu lugar, mais forte do que o archigos rival em Brezno, e certamente mais forte do que o kraljiki Justi, que acreditou que poderia controlar a Fé através dela.

No fim das contas, Jan não foi capaz de dominar nada: nem Ana, nem a Fé, nem os Domínios. Enquanto Ana fora bem-sucedida de maneira surpreendente como archigos, Justi fora uma catástrofe como kraljiki.

Justi, o Perneta, gastou em duas décadas o que sua matarh e os kralji antes dela levaram mais de cinco séculos para criar, e coube a nós pagar por sua incompetência com os Domínios e a Fé rompidos em facções orientais e ocidentais. E agora os problemas nos Hellins complicam a questão, ao mesmo tempo em que temos um menino no Trono do Sol que pode não viver para gerar um herdeiro.

Sergei suspirou e fechou os olhos enquanto ouvia o coral. Ele iria à Bastida amanhã de manhã e aplacaria suas preocupações com dor. Encontraria alívio nos gritos. Sim, isto seria ótimo. Os acordes finais flutuavam reluzentes na mente do regente, e ele ouviu a archigos subir os degraus do Alto Púlpito.

Sergei se lembraria do momento seguinte pelo resto da vida.

Uma luz violenta e impossível surgiu, como se Cénzi tivesse mandado um raio dos céus através do domo dourado acima. A luz intensa penetrou as pálpebras fechadas de Sergei; um trovão rugiu em seus ouvidos, e uma onda de choque bateu em seu peito. Por instinto, o regente jogou-se sobre Audric, derrubou o garoto no chão da sacada e cobriu o corpo do kraljiki com o próprio corpo. As velhas juntas reclamaram pelo movimento repentino e pelo abuso. Ele ouviu a respiração ofegante de Audric; também ouviu gritos e lamentos vindos de baixo, cortados pelo berro abalado e horrorizado de Karl ca’Vliomani, que ecoou mais alto do que todos eles: — Ana! Ana! Nãoooooo!

— Kraljiki! Regente! — Mãos puxaram e levantaram Sergei, um quarteto da Garde Kralji, cujo dever era proteger o kraljiki e o regente. Uma nuvem de poeira surgiu dentro do templo, e Sergei piscou em meio à poeira; ele mesmo quase não conseguia respirar. O regente ouviu a tosse desesperada de Audric. O templo fedia a enxofre.

— Você e você, escoltem o kraljiki para fora daqui e de volta para o palácio, imediatamente — disse Sergei ao apontar os dedos para os gardai. — Vocês dois, venham comigo.

Sergei desceu correndo a escada da sacada, flanqueado por gardai com espadas desembainhadas e empurrando quem estivesse no caminho. As pessoas gritavam e berravam, ele ouviu os gemidos e ganidos estridentes dos feridos. O regente foi forçado a mancar, pois o joelho direito estava ferido e inchou rapidamente; ele levou muito tempo para descer a escada enquanto agarrava o corrimão a cada degrau. Lá embaixo, tudo era confusão.

— Regente! Aqui! — Aris co’Falla, o comandante da Garde Kralji, fez um gesto acima das cabeças para Sergei enquanto os gardai empurravam a multidão. O barulho de dor e sofrimento era enorme, e o regente notou vários rostos e braços ensanguentados. A fachada do templo estava cheia de pedras quebradas e madeira estilhaçada; ele notou vários corpos nos escombros.

Um dos corpos usava o robe da archigos. Sergei perdeu o fôlego, que foi substituído por uma raiva fria. — Comandante, o que aconteceu aqui?

Co’Falla balançou a cabeça. — Eu não sei, regente. Não ainda. Eu assistia à cerimônia próximo à saída do templo. Quando a archigos chegou ao Alto Púlpito... Eu nunca tinha visto algo assim, regente. Foi alguma espécie de feitiço, tenho quase certeza, mas algo que um téni-guerreiro faria. O clarão, o barulho, a pedra e a madeira e... — Ele franziu a testa. — ... outras coisas voaram para todos os lados. A explosão pareceu ter vindo debaixo do Alto Púlpito. Há pelo menos meia dúzia de mortos, e muitos mais feridos, alguns gravemente...

O regente gemeu pela dor no joelho ao se ajoelhar ao lado do corpo de Ana. O rosto estava praticamente irreconhecível, ela perdera a metade inferior do corpo completamente e o braço direito. Sergei soube imediatamente que Ana estava morta, que não havia esperança ali. Uma estranha poeira negra cobria o chão em volta dela. Ele virou o rosto e viu Karl ca’Vliomani sendo contido pelos gardai, com o rosto em pânico e a bashta coberta de pó. Sergei ficou de pé devagar e fez uma careta quando os joelhos estalaram. — Cubra a archigos e os outros corpos — falou o regente para co’Falla. — Tire todo mundo do templo, a não ser os ténis e os gardai. Mande chamar o comandante co’Ulcai da Garde Civile se precisar de mais ajuda. — Ele estremeceu ao respirar. — E deixe o embaixador vir até mim.

Co’Falla meneou a cabeça e deu as ordens. Ca’Vliomani disparou imediatamente na direção do corpo de Ana, Sergei interceptou o embaixador. — Não — ele disse para Karl ao agarrar seus ombros. — Ela morreu, Karl. Não há nada que você possa fazer. Nada.

Ele sentiu o homem desmoronar e ouviu um soluço. — Sergei, eu tenho que vê-la. Por favor. Eu preciso saber. — Seu olhar estava abalado, e subitamente Karl ca’Vliomani pareceu décadas mais velho. O sotaque de Paeti, que o embaixador jamais perdeu, apesar dos anos em Nessântico, ficou mais forte do que nunca nesse momento.

— Não, você não precisa, meu amigo — insistiu Sergei. — Por favor, me ouça. Você não quer que esta seja a última imagem que tem dela. Você não quer isso. De verdade. Eu digo isso pelo seu bem.

Então ca’Vliomani começou a chorar, e Sergei segurou o embaixador enquanto os gardai se movimentavam em volta deles, conforme os ténis do templo — calados pelo choque e horror — cuidavam dos mortos e feridos, e a poeira negra assentava-se sobre eles e ao redor deles, e o rugido do feitiço ecoava eternamente nos ouvidos de Sergei.

Ele achava que jamais se esqueceria daquele som e perguntou-se o que ele anunciava: para si próprio, para Audric, para a fé concénziana, para Nessântico.

 

Nico Morel

NICO TOMOU UM PEQUENO GOLE DO CHÁ que sua matarh colocara diante dele, com a caneca de madeira nas duas mãos pequenas. — Matarh, por que alguém iria querer matar a archigos Ana?

— Eu não sei, Nico — respondeu ela, que colocou uma fatia de pão e alguns pedaços de queijo diante do filho, na mesa arranhada perto da janela. A mulher afastou as mechas do cabelo castanho de sua testa e olhou pelas persianas abertas para a rua estreita do lado de fora. — Eu não sei — repetiu. — Só torço...

— A senhora torce para que, matarh?

Ela balançou a cabeça. — Por nada, Nico. Ande, coma.

Eles compareceram à cerimônia do Dia do Retorno no Parque do Templo, à distância de uma longa caminhada de seu apartamento no Velho Distrito. Nico sempre gostava quando eles iam ao Parque do Templo, pois o espaço verde e aberto contrastava bastante com as ruas sujas e apinhadas de gente do labirinto do Velho Distrito. Bem na hora em que saíam do parque, eles ouviram as trompas começarem a soar, e então os rumores se espalharam pela multidão como fogo em um campo seco de verão: a archigos tinha sido morta. Por magia, diziam alguns. Magia terrível, como a que os hereges numetodos sabiam fazer, ou talvez um téni-guerreiro.

Nico chorou um pouco, porque todo mundo chorava, e sua matarh pareceu preocupada. Eles voltaram correndo para casa.

Certa vez, a matarh de Nico atravessou a Pontica Mordei na direção da a Ilha A’Kralji com o filho, e eles viram o terreno do palácio do regente e do Velho Templo, o primeiro construído em Nessântico. Nico ficou maravilhado com o novo domo que estava sendo construído no topo do Velho Templo, com as fileiras de andaimes que alçavam os trabalhadores tão alto no céu, de maneira impossível. Nico ficou tonto só de vê-los.

Depois, eles passaram pela Pontica a’Brezi Nippoli na direção da margem sul, onde a maioria dos ca’ e co’ viviam. Nico atravessou com sua matarh o grande complexo do Templo da Archigos e viu a archigos em pessoa: uma figura minúscula de verde em uma das janelas dos prédios ligados ao enorme templo que acenava para a multidão na praça.

Agora ela estava morta. Algo fácil de imaginar. A morte era totalmente comum; Nico costumava vê-la nas ruas, e a viu visitar a sua própria família. A matarh disse que Ana era a archigos desde quando ela era um bebê, e a matarh tinha 28 anos — praticamente uma anciã, portanto, não chegava a ser uma surpresa que a archigos morresse. Nico mal se lembrava de sua mamatarh, que morreu quando ele tinha cinco anos. Talvez ela fosse tão velha quanto a archigos Ana. Nico lembrava-se muito do irmão mais velho, que morreu de febre do sul há quatro anos. A matarh disse que houve outro irmão, ainda mais velho, que também morreu, mas Nico não se lembrava dele. Havia Fiona, a irmã que nascera primeiro — Nico não sabia se ela ainda estava viva, embora sempre tenha imaginado que estivesse; ela fugira aos 12 anos, há quase três anos agora. Talis vivia com eles — Talis vivia com a matarh desde que Nico se entendia por gente, mas Fiona dissera a ele que nem sempre foi assim, que houve outro homem antes de Talis, que era o vatarh de Fiona e de seus irmãos. Ela dissera que Talis era o vatarh de Nico, mas que nunca quis ser chamado assim.

Nico sentia saudade de Fiona. Ele às vezes imaginava que a irmã tinha ido para outra cidade e ficado rica. Gostava de pensar assim, às vezes. Sonhava com o retorno de Fiona a Nessântico com um ce’ ou até mesmo um ci’ antes do nome, e ele abriria a porta para vê-la sorrindo com uma tashta limpa e muito colorida. — Nico — diria a irmã. — Você, a matarh e Talis vão morar comigo...

Talvez Nico saísse de casa quando tivesse 12 anos também, daqui a dois anos. Nico notou as rugas marcadas no rosto da matarh enquanto ela olhava para a rua lá fora. O cabelo nas têmporas tinha mechas grisalhas. — A senhora está esperando por Talis? — perguntou ele.

Nico viu a testa franzida, depois o sorriso quando ela se virou para ele. — Apenas coma, querido. Não se preocupe com Talis. Ele vai chegar em breve.

Nico concordou com a cabeça enquanto roía a crosta dura do pão quase velho e tentava evitar o molar solto no fundo da boca que ameaçava cair, o último dos dentes de leite. Ele não estava preocupado com Talis, apenas com o dente. Não queria perdê-lo, uma vez que, se perdesse, a matarh mandaria que ele esmagasse o dente com um martelo até virar pó, e isso era muito trabalhoso. Quando Nico terminasse, ela o ajudaria a salpicar o pó em um pouco de pão umedecido com leite, e os dois colocariam o pão do lado de fora da janela ao lado de sua cama. À noite, ele ouviria os ratos e camundongos comerem a oferenda e correrem de um lado para o outro lá fora. De manhã, o prato estaria vazio; a matarh dizia que isso significava que seus novos dentes cresceriam tão fortes quanto os dentes de um rato.

Nico já tinha visto o que os ratos conseguiam fazer com os dentes. Eles podiam arrancar a carne de um gato morto em poucas horas. Nico torcia para que seus dentes ficassem fortes assim. Ele meteu o indicador na boca e mexeu no dente, sentiu que balançava facilmente para trás e para frente nas gengivas. Se puxasse com força, o dente sairia...

— Serafina?

Nico ouviu Talis chamar sua matarh. Ela correu até ele e os dois se abraçaram logo após Talis fechar a porta ao entrar.

— Eu estava preocupada — disse sua matarh. — Quando soube...

— Shh... — falou Talis ao dar um beijo na testa de Serafina. Seu olhar estava voltado para Nico, que observava os dois. — Ei, Nico. Sua matarh levou você ao Parque do Templo hoje?

— Sim — respondeu Nico. O menino se aproximou dos dois e se esgueirou em sua matarh, de maneira que ela passasse o braço por ele. Nico torceu o nariz e ergueu os olhos para o homem. — Você está com um cheiro esquisito, Talis.

— Nico... — A matarh começou a falar, mas Talis riu e mexeu no cabelo de Nico. O menino odiava que ele fizesse isso.

— Tudo bem, Serafina — disse Talis. — Não se pode culpar o menino por ser honesto. — Ele não falava como as outras pessoas do Velho Distrito; Talis pronunciava as palavras de um modo esquisito, como se a língua não gostasse do sabor das sílabas, então ele as cuspia o mais rápido possível em vez de falar com calma, como a maioria das pessoas fazia. Talis agachou-se próximo a Nico e disse — Eu passei por um incêndio a caminho daqui. Havia muita fumaça preta. Os ténis-bombeiros apagaram o fogo, contudo.

Nico assentiu com a cabeça, embora achasse que Talis não cheirava exatamente à fumaça. O odor era mais intenso e pungente. — A archigos Ana morreu, Talis — falou o menino.

— Foi o que eu ouvi — respondeu Talis. — O regente vai varrer a cidade à procura de um bode expiatório para culpar. É hora de os estrangeiros não chamarem atenção se quiserem continuar a salvo. — Ele parecia falar mais para a matarh de Nico do que para o menino, os olhos erguidos na direção dela.

— Talis... — A matarh sussurrou o nome da mesma maneira que às vezes dizia o de Nico quando o menino estava doente ou tinha se machucado. Talis ficou de pé novamente e a abraçou. — Vai ficar tudo bem, Sera. — Nico ouviu Talis sussurrar para ela. — Eu prometo.

Enquanto ouvia Talis, Nico empurrou o dente solto com a língua. Ele escutou um estalinho e sentiu gosto de sangue.

— Matarh, meu dente caiu...

 

Allesandra ca’Vörl

— MATARH?

Allesandra ouviu o chamado, seguido por uma batida hesitante na porta. Seu filho, Jan, estava parado na porta aberta. Aos 15 anos, quase 16, ele era magricelo e desajeitado. Somente nos últimos meses o corpo começara a se transformar no de um jovem, com uma bela penugem no queixo e debaixo dos braços. Ele ainda era bem mais baixo do que as meninas da mesma idade, muitas das quais tiveram a primeira menarca no ano anterior. Batizado com o nome do vatarh de Allesandra, ela enxergava algumas características dele no filho, mas também havia um forte traço da família ca’Xielt — a família de Pauli. Jan tinha a cor da pele mais escura dos magyarianos, os olhos negros e o cabelo encaracolado quase preto de seu vatarh. Ela duvidava que algum dia o filho teria a musculatura mais parruda dos ca’Belgradin, como a de seu onczio Fynn, que o vavatarh Karin e o vatarh Jan de Allesandra também possuíram.

Ela, às vezes, tinha dificuldade em imaginar o filho galopando loucamente para entrar em combate — embora Jan cavalgasse tão bem quanto qualquer pessoa e possuísse a visão aguçada que um arqueiro invejaria. Ainda assim, ele geralmente parecia mais à vontade com pergaminhos e livros do que com espadas. E, apesar da linhagem paterna, apesar do ato (por puro dever) que o produziu, apesar do mau humor e da raiva mal contida que pareciam consumi-lo ultimamente, Allesandra amava o filho mais do que pensou ser possível amar alguém.

E ela temeu, especialmente no ano anterior, que estivesse perdendo Jan, que ele pudesse estar cedendo à influência de Pauli. Ele esteve ausente na maior parte da vida do filho, mas talvez essa fosse a sua vantagem: era mais fácil não gostar do vatarh ou da matarh que estava sempre corrigindo; admirar aquele ou aquela que deixava fazer o que quisesse. Houve aquele incidente com a funcionária, e Allesandra precisou mandá-la embora — aquilo foi bem parecido com Pauli.

— Entre, querido — chamou Allesandra.

Jan aquiesceu sem sorrir, foi até a penteadeira onde ela estava sentada e encostou os lábios no topo da cabeça da matarh, um beijo discretíssimo, enquanto as mulheres que ajudavam Allesandra a se vestir se afastavam em silêncio. — O onczio Fynn mandou que eu buscasse a senhora — falou Jan. — Evidentemente chegou o momento. — Uma pausa. — E evidentemente eu sou pouco mais do que um criado para ele. Apenas um traste magyariano que serve para levar recados.

— Jan! — disse Allesandra com rispidez. Ela apontou para as aias com o olhar. Todas eram magyarianas ocidentais, parte da comitiva que veio de Malacki com Jan.

Ele deu de ombros, sem se importar. — A senhora vem, matarh, ou vai me mandar de volta para Fynn com sua própria resposta, como se eu fosse um bom menininho de recados?

Você não pode responder aqui do jeito que quer. Não onde tudo o que nós dissermos possa virar fofoca na corte hoje à noite. — Estou quase pronta, Jan. — Allesandra gesticulou. — Vamos descer juntos, uma vez que você já está aqui. — As aias voltaram, uma escovou o cabelo dela, outra colocou no pescoço
o colar de pérolas que antigamente fora de sua matarh Greta, e mais uma ajustou as dobras da tashta. Allesandra passou outro colar para a aia: um globo partido em uma corrente elegante, com continentes de ouro, mares do mais puro lápis-lazúli, e a fenda cheia de rubis nas profundezas: o globo de Cénzi. A archigos Ana dera o colar para Allesandra quando ela teve a primeira menarca, em Nessântico.

— Isto antigamente pertencia ao archigos Dhosti — dissera Ana para ela. — Ele deu para mim; agora eu dou para você. — Allesandra tocou o globo enquanto a criada o prendia em seu pescoço e lembrou-se de Ana: o som da voz, seu cheiro.

— Todo mundo vive me dizendo que o onczio Fynn dará um belo hïrzg — disse Jan, e a lembrança foi interrompida.

— Eu sei. — Allesandra começou a dizer. E por que você esperaria outra coisa?, ela queria acrescentar. Jan entendia muito bem a etiqueta da corte para saber disso.

Evidentemente ele viu o comentário implícito no rosto da matarh. — Eu não tinha terminado. Eu ia dizer que a senhora daria uma hïrzgin melhor. Era a senhora que deveria usar a coroa e o anel, matarh.

— Quieto — falou Allesandra novamente para Jan, embora com mais gentileza desta vez. As aias eram dela, era verdade, mas nunca se sabia. Segredos podiam ser comprados ou arrancados pelo amor ou pela dor. — Nós não estamos em casa, Jan. Você tem que se lembrar disso. Especialmente aqui...

A expressão mal-humorada de Jan foi desfeita por um momento, e ele pareceu tão arrependido que toda a irritação de Allesandra passou. Ela fez um carinho no braço do filho. Era assim com Jan nos últimos tempos: cara fechada em um instante e sorrisos afetuosos no próximo. No entanto, as caras fechadas apareciam mais frequentemente conforme a criança amorosa dentro dele recuava cada vez mais fundo no interior da nova carapaça adolescente. — Tudo bem, Jan. Apenas... bem, você tem que tomar muito cuidado enquanto estivermos aqui. Sempre. — E especialmente com Fynn. Ela tirou a ideia da cabeça. Diria para Jan mais tarde. Em particular. Allesandra ficou de pé e as criadas foram embora, como folhas no outono. Ela abraçou Jan: ele permitiu o gesto, e nada mais, os próprios braços mal se mexeram. — Tudo bem, vamos descer agora. Lembre-se de que você é o filho do a’gyula da Magyaria Ocidental, e também o filho da atual a’hïrzg de Firenzcia.

Fynn dera o título a Allesandra ontem, após a morte do vatarh: o título que deveria ter sido dela desde o início, que a teria tornado hïrzgin. Ela sabia que até mesmo este presente era temporário, que Fynn nomearia outra pessoa como a’hïrzg com o tempo: o próprio filho, talvez, se algum dia ele se casasse e produzisse um herdeiro, ou algum protegido da corte. Allesandra seria a herdeira de Fynn até ele encontrar alguém de quem gostasse mais.

— Matarh — interrompeu Jan. Ele bufou bem alto, e a cara fechada voltou. — Eu conheço o sermão. “Os olhos e ouvidos dos ca’ e co’ estarão em você.” Eu sei. A senhora não precisa me dizer. De novo.

Allesandra gostaria de poder acreditar nisso. — Tudo bem — falou baixinho. — Vamos descer então e ficar com o novo hïrzg enquanto sepultamos seu vavatarh.

Com a morte do hïrzg Jan, foi proclamado o obrigatório mês de luto e marcadas uma dúzia de cerimônias necessárias. O novo hïrzg, Fynn, presidiria vários rituais nas próximas semanas: alguns apenas para os ca’ e co’, outros para o benefício moral do público. O Besteigung formal, o ritual final, aconteceria no fim do mês, no Templo de Brezno, presidido pelo archigos Semini — marcado assim para dar tempo de os líderes dos outros países da Coalizão Firenzciana chegarem a Brezno para prestar homenagem ao novo hïrzg. Allesandra já havia sido informada de que o a’gyula Pauli chegaria para o Besteigung, pelo menos — ela já estava apreensiva pela chegada do marido.

E hoje à noite... hoje à noite era o Confinamento.

Os kralji queimavam os mortos; os hïrzgai os enterravam. O corpo do hïrzg Jan seria enterrado na catacumba dos ca’Belgradins, onde várias gerações de seus ancestrais estavam sepultadas, e um punhado ou mais destes antecessores dividiram com Jan a coroa dourada que agora estava na cabeça de Fynn. Fynn aguardava Allesandra e Jan nos próprios aposentos; dali, eles desceriam para as catacumbas abaixo do piso térreo do Palácio de Brezno. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos e outros nobres de Firenzcia já esperavam por eles lá.

Os salões do palácio estavam em silêncio, os criados que Jan e Allesandra viram pararam o que faziam e curvaram-se calados com os olhos abaixados conforme eles passavam. Dois gardai parados do lado de fora dos aposentos de Fynn abriram as portas quando eles se aproximaram. Allesandra ouviu vozes vindo do interior quando ela e o filho entraram.

— ... acabo de receber notícias de Gairdi. Isto vai complicar a situação. Não sabemos exatamente o quanto, ainda... — O archigos Semini ca’Cellibrecca parou no meio da frase assim que Allesandra e Jan entraram na sala. O homem sempre trouxera a imagem de um urso à mente de Allesandra, desde quando ela era uma criança, e ele, um jovem téni-guerreiro em ascensão: mesmo quando moço, Semini era enorme, peludo e perigoso. A barba negra agora estava salpicada de branco, e a massa de cabelo encaracolado recuava na testa como uma maré lenta, mas ele ainda era parrudo e musculoso. O archigos fez o sinal de Cénzi para Jan e Allesandra, com as mãos entrelaçadas na testa, enquanto sua esposa, Francesca, fazia o mesmo atrás dele. Disseram para Alle-sandra que antigamente Francesca era linda; na verdade, havia rumores de que ela um dia fora amante de Justi, o Perneta, mas Allesandra não a conhecia na época. Agora Francesca era uma matrona corcunda sem vários dentes, com o corpo arrasado pelos rigores de uma dezena de gestações ao longo dos anos. A personalidade era tão amarga quanto o rosto.

Fynn levantou-se da cadeira.

— Irmã — disse ele enquanto pegava as mãos de Allesandra ao ficar diante dela. Fynn sorria, parecia quase exultante. — Semini acabou de trazer notícias interessantes de Nessântico. A archigos Ana foi assassinada.

Allesandra engasgou, sem conseguir esconder sua reação. As mãos se dirigiram para o pingente com o globo partido no pescoço, então ela se forçou a abaixá-las. A sensação era de que não conseguiria respirar. — Assassinada? Por quem...? — Allesandra parou e olhou para Semini, que também sorria, quase presunçoso, pensou ela, e depois se voltou para o irmão. — Fomos nós? — perguntou. A voz saiu afiada como uma adaga. Ela sentiu Jan colocar a mão em seu ombro por trás ao sentir sua angústia.

Fynn deu um muxoxo de desdém e perguntou — Isso faria diferença?

— Sim — disse Allesandra para ele. — Apenas um tolo pensaria o contrário. — As palavras saíram antes que ela conseguisse impedi-las. E bem depois que acabei de alertar Jan...

Fynn fechou a cara diante do insulto implícito. A mão de Jan apertou o ombro de Allesandra. Semini pigarreou alto antes que Fynn pudesse falar.

— Isso não foi obra do hïrzg, Allesandra. — Semini respondeu rapidamente enquanto balançava a cabeça e abanava a mão com desdém. — Firenzcia pode estar em desacordo com a Fé em Nessântico, mas o hïrzg não participa de assassinatos. Nem a Fé.

Ela olhou de Semini para Francesca. A mulher afastou o olhar rapidamente, mas não tentou esconder a satisfação no rosto. O prazer com a notícia era óbvio. A mulher tinha tanto calor humano quanto o inverno de Boail. Allesandra perguntou-se se algum dia Semini gostou dela ou se o casamento entre os dois era tão sem amor e premeditado quanto o seu, apesar dos vários filhos do casal. Allesandra não conseguia imaginar se submeter ao prazer de Pauli com tanta frequência. — Temos certeza de que esta informação é verdadeira? — perguntou ela para o archigos.

— Ela veio até mim por três fontes diferentes, uma em que confio implicitamente, o comerciante Gairdi, e todas concordam nos detalhes básicos — falou Semini. — A archigos Ana realizava a missa do Dia do Retorno quando houve uma explosão. “Como o feitiço de um téni-guerreiro”, todos dizem, o que quer dizer que foi alguém usando o Ilmodo. Isso está claro.

— O que também quer dizer que eles podem se voltar para o leste, em nossa direção — disse Fynn. Ele parecia ávido pela ideia, como se estivesse ansioso para convocar o exército de Firenzcia para a batalha. Isso seria a cara dele; Allesandra ficaria terrivelmente surpresa se o reinado de Fynn fosse pacífico.

— Ou eles se voltarão para o oeste — argumentou Allesandra, e Fynn olhou para a irmã como se ela fosse um inseto chato e insistente. — Nessântico também tem inimigos lá, e os ocidentais também podem usar o Ilmodo, mesmo que o chamem por outro nome, como os numetodos.

— Os ocidentais? Como os numetodos, eles são hereges que merecem a morte — disparou Semini. — Eles abusam da dádiva de Cénzi, que é destinada apenas aos ténis, e um dia nós os faremos pagar pelo insulto, se Nessântico não fizer isso.

Fynn grunhiu em acordo com a opinião, e Allesandra viu o filho Jan também aquiescer com a cabeça — isso também era a influência do maldito vatarh do menino, ou pelo menos do téni magyariano que Pauli insistiu que educasse o filho deles, apesar das reservas de Allesandra. Ela cerrou os lábios.

Ana está morta. Ela colocou os dedos no colar do globo partido, sentindo sua superfície lisa e cravejada. O toque trouxe novamente a memória do rosto de Ana, do sorriso assimétrico que surgia nos lábios da mulher quando algo a divertia, das rugas severas que apareciam em volta dos olhos quando ficava irritada. Allesandra passou uma década com Ana; captora, amiga e matarh postiça, tudo ao mesmo tempo para ela durante os longos anos que passou como refém de Nessântico. Os sentimentos de Allesandra para com Ana eram tão complexos e contraditórios quanto o relacionamento entre as duas. Eles eram quase tão conflitantes quanto os sentimentos com relação ao vatarh, que a deixara em Nessântico enquanto Fynn se tornava o a’hïrzg e seu favorito.

Allesandra queria chorar por causa da notícia, de tristeza por alguém que a tratou bem, com gentileza, quando não havia obrigação alguma para que agisse assim. Mas ela não podia chorar. Não aqui. Não na frente de pessoas que odiavam a mulher. Aqui, Allesandra teria que fingir.

Mais tarde. Mais tarde eu choro por ela como se deve...

— Eu esperava um pouco mais de reação de você, irmã — disse Fynn. — Afinal, aquela mulher abominável e o impostor perneta mantiveram você como prisioneira. O vatarh praguejava sempre que alguém falava o nome dela e dizia que Ana não era diferente de uma bruxa.

Fynn observava Allesandra, e ambos sabiam o que ele deixou de fora no comentário: que o hïrzg Jan poderia ter pagado o resgate por ela a qualquer momento durante aqueles anos, e que, se ele o tivesse feito, provavelmente a coroa dourada estaria na cabeça de Allesandra, não na de Fynn. — Você não ficará aqui nem meio ano — disse Ana para Allesandra naqueles primeiros meses. — O kraljiki Justi cobrou um resgate justo, e seu vatarh irá pagá-lo. Em breve...

Mas, por algum motivo, o hïrzg Jan não pagou.

Allesandra fez uma expressão impassível. Você não vai chorar. Não vai deixar que eles vejam seu sofrimento. Não era difícil; era o que ela fazia frequentemente, e dava certo na maioria das vezes. Allesandra sabia como os ca’ e co’ a chamavam pelas costas: a Megera de Pedra. — A morte de Ana ca’Seranta é importante. Eu agradeço ao archigos Semini por nos trazer a notícia, e nós devemos, nós temos que decidir o que isso significa para Firenzcia, mas ainda levaremos semanas para conhecer todas as consequências. E neste momento o vatarh espera por nós. Eu sugiro que cuidemos dele primeiro.

 

As Tumbas dos Hïrzgai eram catacumbas abaixo do Palácio de Brezno, não eram como os níveis inferiores da mais nova propriedade privada fora da cidade conhecida como Encosta do Cervo, que fora construída na época do hïrzg Karin. Uma escada comprida e larga descia para as Tumbas, e uma crosta de nitrato cobria as paredes suadas e crescia como pústula branca nas faces dos murais pintados ali há dois séculos e restaurados uma dezena de vezes desde então: a umidade sempre vencia os pigmentos. Um ar frio, quase fétido, subia lá de baixo, como se os avisasse que o reino dos mortos se aproximava. As tochas acesas nos suportes preveniam a escuridão, mas tornavam as sombras da ocasional passagem lateral mais escuras e misteriosas em contraste. Uma dezena de gerações de hïrzgai esperava por eles lá embaixo, com suas várias esposas e muitos dos descendentes diretos. O irmão mais velho de Allesandra, Toma, fora enterrado ali quando ela era apenas um bebê, e sua matarh, Greta, estava deitada ao lado dele há 19 anos agora. Com o tempo, a própria Allesandra poderia se juntar à família, embora passar a eternidade ao lado da matarh Greta não fosse uma ideia agradável.

A procissão desceu pela escadaria em um silêncio pomposo: em frente os e’ténis com lamparinas acesas por fogo mágico, depois o hïrzg Fynn acompanhado pelo archigos Semini e Francesca, e Allesandra e Jan alguns passos atrás deles, seguidos por um último grupo de criados e e’ténis. Conforme eles se aproximavam da entrada ricamente entalhada em direção às catacumbas, decoradas com baixos-relevos de feitos históricos dos hïrzgai, Allesandra pôde ouvir sussurros, o farfalhar de tecido e um espirro ou tosse ocasionais: os ca’ e co’ foram convidados para testemunhar as cerimônias. Era a elite de Firenzcia, a maioria composta por parentes de Fynn e Allesandra: famílias que haviam sido misturadas com a deles, ou aqueles que serviram por décadas ao hïrzg Jan.

Luzes mágicas e de tochas banhavam os corpos enroscados de criaturas fantásticas entalhados nas paredes, as sisudas feições esculpidas dos hïrzgai e os corpos massacrados dos inimigos aos seus pés. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos entraram em posição de sentido, as lanças (com lâminas cobertas por panos vermelhos) bateram contra as lustrosas armaduras de gala. Os outros ca’ e co’ fizeram mesuras e os sussurros caíram no silêncio quando o novo hïrzg entrou na câmara enorme. Allesandra notou os olhares deslizarem de Fynn para ela, e também para Jan. O filho notou a atenção; ela sentiu Jan respirar fundo e empertigar o corpo. Allesandra acenou para eles — um movimento mínimo da cabeça, um sorriso quase imperceptível.

Olhe para ela, tão fria quanto esta câmara... Era o que alguns deles deveriam estar pensando. Com certeza ela está contente de ver o velho Jan morto depois de ele deixá-la com o kraljiki e a falsa archigos por tanto tempo. Ela provavelmente deseja que Fynn também estivesse lá com o vatarh para que ela pudesse ser a hïrzgin.

Nenhum deles conhecia Allesandra. Nenhum deles conhecia seus verdadeiros pensamentos. Com efeito, ela mesma não tinha certeza se sabia. Allesandra ainda estava abalada com a notícia sobre Ana, e se demonstrava sinais de tristeza, era pela archigos, não pelo vatarh.

O caixão que continha os restos do hïrzg Jan estava perto da entrada da câmara de confinamento, ao lado da enorme pedra redonda que selaria o nicho.
O caixão estava coberto por uma tapeçaria que representava sua vitória sobre o t’sha no lago Cresci. Não havia nada que celebrasse Passe a’Fiume ou o ataque tolo e ousado contra Nessântico há uma década: aqueles dias em que Allesandra cavalgara com ele, quando olhava o vatarh com adoração, quando ele prometera dar para ela a cidade de Nessântico.

Em vez disso, Nessântico tirou Allesandra de seu vatarh e deu a Fynn o lugar de braço direito de Jan.

Fynn prestou continência aos lanceiros, que relaxaram sua postura, e disse — Eu gostaria de agradecer a todos por estarem aqui. Eu sei que o vatarh olha lá de cima, dos braços de Cénzi, e agradece esse tributo a ele. E também sei que o vatarh nos perdoaria por não ficarmos muito tempo aqui quando lareiras e comidas quentes esperam por nós lá em cima. — Fynn recebeu risos discretos ao dizer isso e sorriu. — Archigos, por obséquio...

Semini dirigiu-se rapidamente à frente com os ténis e abençoou o caixão. Ele chamou Allesandra e Jan com um gesto quando os ténis começaram a entoar a oração. Os dois foram até o caixão e colocaram as mãos na tapeçaria. — Eu queria que você tivesse tido a chance de conhecê-lo melhor — sussurrou ela para Jan e colocou a mão em cima da mão do filho enquanto os ténis entoavam. — Ele não foi sempre tão furioso e rude quanto nos últimos anos.

— A senhora me disse isso — falou Jan. — Várias vezes. Mas, ainda assim, não é a memória dele que levarei comigo, não é? — Ela olhou para o filho; ele olhou com uma cara feia para o caixão.

— Falaremos a respeito disso depois — disse Allesandra.

— Não duvido, matarh.

Allesandra conteve a resposta que teria dado; ela não falaria nada aqui. As pessoas já olhavam com curiosidade, imaginavam que segredos os dois estariam sussurrando e o porquê da rispidez na voz de seu filho. Allesandra ergueu a mão e deu um passo para trás para permitir que Fynn se aproximasse.

Ela imaginou o que o irmão estaria pensando ao ficar parado ali, com a mão no caixão e a cabeça baixa.

Após alguns minutos, Fynn também se afastou. Ele acenou com a cabeça para os lanceiros; quatro vieram à frente para pegar o caixão. Com expressões soturnas, eles ergueram e enfiaram o caixão no nicho que o aguardava. A pedra roçou na madeira, e o som ecoou. Os quatro deram passos para trás, e outro quarteto empurrou com os ombros o selo de pedra, que gemeu e resistiu enquanto rolava devagar. A enorme roda de pedra avançou por um sulco aberto no chão na direção da enorme fenda onde se assentaria e ficaria. A pedra era entalhada com glifos em firenzciano antigo, uma língua falada hoje apenas por estudiosos, tão grossa quanto o braço de uma pessoa e com metade da altura de um homem. Quando a grande roda chegou ao fim do sulco e entrou na brecha onde deveria ficar, houve um enorme som de rachadura. Uma fenda cortou a face entalhada da roda e um terço da parte de cima desmoronou. Allesandra sabia que deveria ter dado um alerta, mas tudo acabou antes que qualquer um deles pudesse se mexer ou reagir. A massa de pedra esmagou completamente um lanceiro embaixo dela e as pernas de outro soldado ao cair no chão.

Os gritos do lanceiro preso eram agudos e estridentes, e sangue espesso escorreu debaixo da pedra.

Isso é um sinal... Ela não conseguiu evitar o pensamento enquanto o restante dos lanceiros avançou e os ca’ e co’, ténis e criados corriam para ajudar ou encaravam paralisados o horror no fundo da câmara. Jan estava entre aqueles que tentavam desesperadamente levantar a lápide, e Fynn gritava ordens inúteis no caos.

Foi o vatarh que fez isso. De alguma forma, ele fez isso. Ele não descansa em paz...

 

Enéas co’Kinnear

ELE IA MORRER aqui nos Hellins.

A sensação de um destino horrível tomou conta de Enéas enquanto ele estava com as forças dos Domínios no cume de um morro não muito longe das cercanias de Munereo. As tropas observavam os estandartes de formato estranho dos ocidentais se aproximarem vindos da direção do lago Malik, e Enéas escutava o início dos cânticos dos ténis-guerreiros em preparação para a batalha. O a’offizier Meric ca’Matin estava com ele, assim como os outros offiziers do batalhão e vários pajens prontos para levar mensagens entre as companhias. As cornetas e bandeiras estavam de prontidão para transmitir ordens. A uma centena de passos encosta abaixo, as fileiras do exército dos Domínios estavam reunidas, inquietas e nervosas.

Enéas esteve em meia dúzia de batalhas e incontáveis escaramuças e confrontos nos últimos anos. Esta sensação de ruína iminente era algo que nunca havia sentido antes. Ele sentiu o suor descer pelo rosto debaixo do elmo grosso de ferro, e não era apenas o sol que causava a transpiração. Enéas queria gritar em negação para o céu, mas não podia. Não aqui. Não na frente de suas tropas. Em vez disso, abaixou a cabeça e rezou.

Ó, Grande Cénzi, por que o Senhor manda esta premonição para mim? O que o Senhor está me dizendo?

Enéas era um o’offizier da Garde Civile dos Domínios. Seu comandante de campo, o a’offizier ca’Matin, dissera justamente ontem que tinha feito a recomendação de que Enéas fosse sagrado chevaritt, que o documento já estava cruzando o Strettosei a caminho de Nessântico. Seu vatarh ficaria orgulhoso — há 25 anos, o vatarh de Enéas serviu com o regente ca’Rudka em Passe a’Fiume e ficou severamente queimado, perdeu um braço e um olho durante aquele cerco horrível. A Garde Civile dera a condecoração e a pensão que ele merecia, e embora a família tenha sido promovida de ce’Kinnear para ci’Kinnear como consequência, seu vatarh sempre falava que poderia ter se tornado um chevaritt se não tivesse sido ferido, que aquelas aspirações foram arrancadas pelo fogo mágico firenzciano que o desfigurou e encerrou sua carreira.

Enéas nunca quis ser um chevaritt ou um offizier. Teria preferido seguir a carreira de um téni da fé concénziana do que aquela que encontrou na Garde Civile. Ele sentia o chamado de Cénzi desde que era um menino; na verdade, Enéas pediu aos pais que o mandassem para o templo como um acólito. Porém, seu vatarh insistiu que trilhasse o caminho marcial. — Somos apenas ci’, e mal conseguimos nos manter assim — dissera o vatarh. — Nossa família não tem as solas para mandá-lo para os ténis. Isso é uma coisa para os ca’ e co’, que podem bancar. Você entrará para a Garde, como eu. Vai fazer como eu fiz...

Enéas saiu-se melhor que seu vatarh. “Falsoténi” era como seus homens o chamavam por sua religiosidade, por seguir rigidamente as regras da Divolonté, e pela insistência em que seus comandados comparecessem aos rituais no Templo de Munereo nos Dias da Observância, como era devido. Mas seus comandados também alegavam que o próprio Cénzi protegia Enéas — e que, através de Éneas, eles próprios eram protegidos. Na Batalha das Colinas perto do lago Malik, como um e’offizier, em sua segunda batalha de verdade, ele foi o único offizier sobrevivente de sua companhia, quando os homens foram massacrados por uma força ocidental bem superior. Enéas conseguiu surpreender os ocidentais ao fingir uma retirada, depois marchou com o restante das tropas pelos pântanos para atacar o inimigo por um flanco desprotegido pelos nahualli — os terríveis feiticeiros ocidentais, aqueles que chamavam o Ilmodo de X’in Ka.

Hereges, eles eram. Falsos ténis que adoravam falsos deuses. Pensar nos nahualli enfurecia Enéas.

Ele conseguiu infligir grandes baixas no flanco dos ocidentais e manter a posição até a chegada de reforços. Como recompensa por suas ações, Enéas foi promovido a o’offizier; poucos meses depois, após a Campanha dos Brejos Profundos, o a’offizier ca’Matin disse que a Gardes a’Liste promovera sua família a co’.

Quando o período de serviço militar terminasse, daqui a um ano, após voltar para Nessântico, Enéas prometeu a Cénzi que daria baixa na Garde Civile e se ofereceria para o treino como téni, mesmo que ele fosse muito mais velho do que os acólitos usuais. Enéas tinha certeza de que isso era o que Cénzi queria dele.

A Guerra dos Hellins vinha sendo boa para Enéas, embora não para os Domínios.

Ao menos vinha sendo assim até essa sombra surgir. Esse arrepio na espinha.

Não é uma premonição. É apenas medo...

Ele sentiu medo antes. Todo soldado sentia medo, a não ser que fosse um completo tolo, mas Enéas nunca tinha sido tocado pelo sentimento dessa forma. O medo estremecia os ossos na carne; fazia o sangue zunir nos ouvidos. O medo transformava as entranhas em água podre e marrom. O medo fazia a arma tremer na mão. Mas Enéas não estremeceu, o estômago estava calmo, e a ponta da espada não tremeu em sua mão.

Aquilo não era medo — ou nenhum tipo de medo que tivesse sentido antes. Aquilo o preocupava mais que tudo.

O que é isso que o Senhor me manda, Cénzi? Diga-me, para que eu possa Lhe servir como o Senhor quiser...

— O’offizier co’Kinnear! — vociferou o a’offizier ca’Matin, e Enéas balançou a cabeça para afastar os pensamentos. Ele prestou continência ao offizier superior, que já estava montado no cavalo de guerra. — Preciso que o senhor entre com seus homens no flanco direito do inimigo; empurre-os para dentro do vale para que os ténis-guerreiros cuidem deles. Não devemos nos preocupar com os nahualli; os batedores disseram que eles ainda estão lá atrás, perto do Tecuhtli no lago Malik. Compreendido?

Enéas concordou com a cabeça.

— Ótimo — falou ca’Matin. — Então vamos começar. Pajem, diga aos corneteiros para anunciar o avanço. — O garoto a quem o a’offizier se dirigiu correu para a colina onde as trompas e bandeiras de sinalização estavam concentradas enquanto ca’Matin cumprimentava Enéas com o sinal de Cénzi, que ele devolveu solenemente e com devoção. — Que a fortuna de Cénzi esteja com o senhor, Enéas — disse o a’offizier.

— E com todos nós — respondeu Enéas com fervor.

Ca’Matin puxou as rédeas e foi embora a meio galope, o poderoso cavalo de guerra atravessou a grama alta com cuidado na direção do centro das fileiras onde os estandartes dos Domínios tremulavam com a brisa da tarde.

As cornetas soaram então, estridentes e altas. O chamado pairou diante deles em desafio aos ocidentais, e o som de armas batendo contra armaduras ecoou rapidamente. Enéas pegou as rédeas do próprio cavalo de guerra das mãos de um pajem à espera e montou. Seus e’offiziers olharam para ele com expectativa. — Façam suas pazes com Cénzi — disse o o’offizier. — É chegado o momento.

Enéas ergueu a mão para sinalizar na direção do flanco direito e dos morros íngremes ali.

Um bramido respondeu ao o’offizier, o grito de mil gargantas. Eles começaram a se mover, primeiro lentamente, depois mais rápido, até correrem impetuosamente na direção das lanças do inimigo. Enquanto investiam, o fogo mágico dos ténis-guerreiros na retaguarda passava estridente por cima da cabeça de Enéas e de suas tropas, acertando as fileiras da vanguarda das forças ocidentais e abrindo buracos nas fileiras irregulares. Não pareceu haver uma resposta dos nahualli; Enéas achou que isso faria o medo desagradável ir embora, mas a sensação permaneceu.

Éneas e seus homens avançaram pelas brechas fumegantes. O choque de aço contra aço ecoou dos flancos dos morros verdejantes, assim como os gritos dos feridos que caíram debaixo dos cascos dos cavalos de guerra que eles montavam. Éneas atacou uma lança curta que foi estocada em sua direção, afastou a ponta serrada com um golpe e cortou com o sabre a mão que empunhava a arma. O sangue jorrou e o rosto selvagem abaixo dele caiu. O cavalo avançou, e Enéas atacou os ocidentais de ambos os lados, protegidos por placas peitorais de bambu e tecido grosso com pequenos anéis de latão costurados. Eles usavam elmos decorados com plumas de pássaros muito coloridos, a pele avermelhada era pintada com faixas laranjas e amarelas, que faziam os rostos parecerem com crânios, ou era tatuada com linhas rubro-negras. Eram oponentes ferozes, os ocidentais, e nenhum soldado dos Domínios que os encarou ousava menosprezar suas habilidades e bravura. No entanto, eles tinham dado espaço agora — o que era estranho — e recuaram na direção da massa principal do exército. Enéas viu uma escuridão debaixo dos pés calçados com sandálias dos inimigos: o solo diretamente em frente a ele parecia um círculo de areia, mas aquela areia era tão negra quanto restos de lenha queimada.

A inquietação que afligiu Enéas antes da batalha aumentou e tornou-se um frio mortal dentro dos pulmões, de maneira que ele teve dificuldade para respirar e a espada pareceu como um peso de chumbo nas mãos. Ele obrigou o cavalo a entrar na areia e, ao fazer isso, berrou: um grito sem palavras para banir a sensação com barulho e fúria.

Éneas teve como resposta um som que nunca tinha ouvido antes.

O som... era como se um dos moitidis da terra — os filhos indignos de Cénzi — tivesse soltado um grito forte e sobrenatural, e fez com que Enéas girasse a cabeça para esquerda, na direção de sua origem. Um fogo laranja e uma fumaça negra e desagradável foram cuspidos do chão. Punhados de terra caíram em volta do o’offizier como uma chuva sólida que respingou sobre ele, e com a terra... e com a terra havia pedaços de corpos. Uma mão, ainda segurando uma espada quebrada, quicou no pescoço do cavalo de Enéas e caiu no chão. Ele olhou para o objeto ensanguentado. Então ouviu os gritos, com atraso.

— São os nahualli! Feitiçaria! — gritou Enéas para avisar as tropas, para a mão horrível que caiu do céu.

O o’offizier recebeu como resposta um rugido ainda mais alto que o primeiro, uma explosão cuja luz o cegou e a força arrancou seu corpo da sela e do cavalo. Um semideus ergueu Enéas — ele pareceu levitar por um instante ou dois: isso... isso é a premonição e o aviso de Cénzi... — e jogou o o’offizier de volta para a terra como se estivesse com nojo.

A terra levantou-se para recebê-lo.

Ele não se lembrou de mais nada depois disso.

 

Karl ca’Vliomani

KARL SEGUROU FIRME O COLAR na mão: uma concha de pedra cinza e polida que ele dera para Ana há muito tempo. O colar estivera no pescoço da archigos quando ela morreu; Sergei dera o objeto para ele. Havia manchas do sangue de Ana nos sulcos profundos. Karl apertou os dedos em volta da concha e sentiu as bordas duras forçarem a palma da mão. A dor não importava; significava que ele ainda conseguia sentir algo além do vazio que o tomava agora.

Quem fez isso? Por que matariam Ana?

Karl perdeu muitas pessoas de que gostava ao longo dos anos. O embaixador era tomado pelo sofrimento, tristeza e, às vezes, raiva diante da morte delas. Karl acordava à noite com a certeza de que tinha ouvido suas vozes ou pensando “ah, hoje tenho que visitá-lo ou visitá-la...”, apenas para lembrar que a pessoa em mente foi embora para sempre, de maneira irrevogável.

Isso... isso era pior do que qualquer uma daquelas mortes. Isso era uma facada no coração, e ele sentiu o sangramento por dentro.

Será que consigo sobreviver a isso? Perdi minha melhor amiga, a mulher que eu amo...

Karl estava sentado na frente do templo, com o regente Sergei e o kraljiki Audric à sua esquerda, e o recém-empossado archigos Kenne e os a’ténis da Fé à sua direita. Kenne foi amigo e aliado de Ana desde o início, quando ambos fizeram parte da equipe do archigos Dhosti. Agora, parecendo duas décadas mais velho do que sua idade de verdade, de cabelos brancos e mãos que tremiam com uma eterna paralisia, Kenne parecia extremamente pouco à vontade com a responsabilidade confiada a ele. O archigos debruçou-se sobre Karl e deu um tapinha em sua mão. Disse algo que o embaixador não conseguiu ouvir contra o canto do coro: “Longo lamento”, do compositor ce’Miella. As palavras que Kenne realmente falou não importavam: Karl concordou com a cabeça porque sabia que era a reação esperada.

No banco diretamente atrás deles, no meio dos ca’ e co’, estavam Varina e Mika ci’Gilan; como Varina, Mika também era um amigo de longa data de Karl e Ana. Ele era o líder local da facção dos numetodos em Nessântico e dirigia a pesquisa da seita aqui. A mão de Varina tocou o ombro de Karl; sem olhar para trás, o embaixador a cobriu com a própria mão antes de deixá-la cair no colo como se estivesse morta. Os dedos de Varina apertaram o ombro de Karl, e sua mão permaneceu ali.

O gesto tinha a intenção de confortá-lo, ele sabia, mas era simplesmente um peso morto.

Quem fez isso? Karl ouviu uma dezena de rumores. Previsivelmente, alguns culpavam os numetodos. Outros, Firenzcia. Alguns apontavam a facção da fé concénziana de Brezno. A história mais absurda dizia que o assassino, conhecido como a Pedra Branca, era o responsável, que havia uma pedrinha branca no olho esquerdo de Ana quando ela foi encontrada, a assinatura da Pedra Branca.

O último rumor certamente não era verdade. Porém, os outros... Karl não sabia, mas jurou que descobriria.

Às vezes ele invejava o consolo da fé que Ana tinha. Karl e ela até mesmo conversaram a respeito disso na noite em que ele descobriu que Kaitlin estava morta: a mulher com quem Karl havia se casado e que dera à luz seus dois filhos na Ilha de Paeti. Ela recusou-se terminantemente a vir a Nessântico com o marido. Kaitlin sabia da profunda amizade entre ele e Ana; assim como Karl também tinha certeza de que a esposa sabia que — apesar das promessas e garantias dele — havia mais do que amizade ali, pelo menos para o embaixador numetodo.

Ele nunca fora capaz de mentir facilmente para Kaitlin. Karl dizia para si mesmo que amava a esposa, mas também nunca fora realmente capaz de mentir para si mesmo.

Na noite em que recebeu a terrível carta de Paeti com a informação de que Kaitlin tinha adoecido e morrido, ele ficou arrasado. Karl nunca soube exatamente como Ana soube da notícia, mas ela o visitou naquela noite. A archigos o alimentou, o abraçou, deixou que gritasse, gemesse, berrasse e sofresse. Mais que isso, ela jamais tentou oferecer para Karl o consolo da fé como teria feito com qualquer um de seus seguidores. Ela jamais mencionou Cénzi, não até ele mencionar enquanto secava as lágrimas com a manga da bashta...

— Eu invejo você — disse Karl.

Os dois estavam sentados ao lado das chamas que ela acendera na lareira. O chá fervia lentamente em uma chaleira. A madeira estava molhada; ela assobiava e estalava sob o ataque das chamas e cuspia jatos rodopiantes de cinzas de tom vermelho-alaranjado chaminé acima.

Ana ergueu uma sobrancelha na direção de Karl.

— Você acredita que Cénzi leva as almas daqueles que morrem — falou o embaixador. — Você acredita que os mortos continuam a existir dentro Dele, e que é possível um dia encontrá-los novamente. Eu... — Lágrimas ameaçaram cair novamente, e foram contidas à força por Karl. — Eu não tenho essa esperança.

— Ter fé não leva a dor embora — disse Ana. — Ou leva muito pouco. Nada pode aliviar o sofrimento e a perda que todos nós sentimos: nem a fé, nem o Ilmodo. O tempo, talvez, consiga dar jeito, e, ainda assim, apenas diminui a tristeza. — Ela enrolou a manga do robe na mão, pegou a chaleira no suporte e serviu a bebida nas xícaras. Passou para Karl o jarro de mel. — Eu ainda me lembro da minha matarh. Às vezes, tudo volta à mente, tudo que senti quando ela morreu, como se tivesse acontecido ontem. — Ana passou os dedos na bochecha de Karl, que sentiu a maciez contra a barba por fazer. — Isso vai acontecer com você também, infelizmente.

— Então para que serve a sua fé, Ana?

Ela sorriu, como se estivesse à espera da pergunta. — Fé não é um bem. A pessoa não a compra porque ela vai fazer isto ou aquilo. A pessoa acredita ou não, e a crença oferece o que oferece. Você não tem fé, meu amor; Cénzi sabe que eu lhe daria fé se pudesse. Eu certamente conversei o bastante com você a respeito disso ao longo dos anos. Vocês, numetodos... vocês tentam envolver o mundo em razão e lógica e, portanto, a fé vira pó sempre que vocês a tocam, porque tentam impor racionalidade sobre ela. Você vai fazer isso com Kaitlin também, vai tentar encontrar razões e lógica na morte dela. — Ana tocou Karl novamente. — Não há razão para ela ter morrido, Karl. Não há lógica nisso. Apenas aconteceu, e não teve nada a ver com você ou com seus sentimentos por ela, ou com o que aconteceu entre vocês dois.

— Nem com a vontade de Cénzi?

Ela empinou o queixo e deu um sorriso triste para Karl. O rosto de Ana foi banhado pela luz quente e amarela da lareira. — Nem mesmo isso. É rara a pessoa com quem Cénzi se importa a ponto de mudar o resultado dos dados rolados pelo moitidi do destino. Era a hora de sua Kaitlin. Só isso. Não é culpa sua, Karl. Não é.

Isto aconteceu há nove anos. Ele viajou de volta para Paeti a fim de ver a sepultura de Kaitlin e estar com os filhos. Karl até trouxe Nilles e Colin para Nessântico quando retornou no ano seguinte. Nilles ficou dois anos com o vatarh, Colin ficou quatro, até que eles atingiram a maioridade, aos 16 anos. Com o tempo, ambos deixaram a cidade para retornar à Ilha de Paeti. Nilles já tinha dado uma neta a Karl — com três anos agora — que ele ainda precisava conhecer.

Karl ficou aqui porque seu trabalho era nos Domínios, dizia ele para qualquer um que perguntasse. Porém, na verdade, era porque Ana estava aqui. Havia aqueles que sabiam disso, mas não eram muitos e fingiam não ver.

A mão de Varina apertou o ombro de Karl novamente e se afastou.

Karl olhou fixamente para o corpo de Ana, embrulhado em uma mortalha no altar de pedra, e para a falange de seis ténis-bombeiros reunidos em um círculo em volta dela. O cadáver estava enrolado sob camadas de uma seda verde bordada com linhas metálicas douradas, que reluziam sob a luz multicolorida do vitral das janelas do templo; incensários fumegavam pelo altar e envolviam os raios de luz com fumaça aromática. Karl não conseguia acreditar que era Ana embrulhada em exposição ali. Não acreditaria. Era outra pessoa qualquer. A memória que ele tinha da luz, do bramido impactante, do corpo sendo dilacerado, do sangue, da poeira negra... Era falsa. Tinha que ser falsa. Mesmo o pensamento era doloroso demais para suportar.

A morte de Kaitlin, de sua família, de todos os outros que faleceram ao longo das décadas: nenhuma doeu como esta. Nenhuma.

Alguém matou a pessoa que Karl mais amava no mundo, acabou com uma mulher que lutou mais do que qualquer um desde a kraljica Marguerite para manter a paz nos Domínios, que acreditava em reconciliação antes de confronto, que tinha o potencial de reunir as duas metades partidas dos Domínios e da fé concénziana. Não haveria paz para Karl até que soubesse quem fez isso e até que essa pessoa estivesse morta. Se houvesse vida além da morte, como Ana acreditava, então Karl deixaria que a alma do assassino fosse condenada a cuidar de Ana pela eternidade. Se houvesse deuses, se Cénzi realmente existisse, se houvesse justiça após a morte, então era isso que deveria acontecer.

Ele teria fé nisso: uma fé sombria, implacável e intransigente.

O archigos Kenne deu um tapinha na mão de Karl e sussurrou mais palavras que ele não conseguiu ouvir. O ombro do regente Sergei estava pressionado contra o esquerdo do embaixador. O kraljiki Audric ofegou do outro lado do regente, sua respiração difícil era mais alta que o cântico dos ténis. Karl ouviu Varina chorar baixinho no banco atrás dele.

Os ténis-bombeiros agitaram-se em volta do corpo embrulhado em pano verde. As mãos moveram-se na dança do Ilmodo, as vozes ergueram-se em uníssono em um cântico que lutou contra as vozes etéreas do coro. Eles espalmaram bem as mãos como em uma benção, e a chama feroz do fogo mágico irrompeu em volta do corpo de Ana. A onda de calor das chamas mágicas passou por eles, selvagem e implacável. Não havia fagulhas, nem pira alimentando as labaredas: enquanto os corpos dos kralji e dos ca’ e co’ queimavam em chamas alimentadas por madeira e óleo, os ténis queimavam seus próprios mortos com o Ilmodo — rápida e furiosamente. O fogo do Ilmodo consumiu o corpo no espaço de alguns instantes, o tecido verde metálico ficou preto instantaneamente, o brilho do calor era tão intenso que o corpo de Ana parecia se mexer ali dentro. Enquanto Karl observava, conforme seu corpo recostou-se por instinto contra o ataque violento do calor, Ana foi levada.

As chamas morreram abruptamente quando o coro encerrou a canção. O ar frio voltou a correr em volta deles, um vento que desmanchou penteados e tremulou roupas. Agora no altar não havia nada além de cinzas e alguns fragmentos de ossos.

A prisão mortal de Ana sumiu.

— Ela voltou para as mãos de Cénzi agora — falou o archigos Kenne para Karl. — Ele dará consolo para Ana.

E eu darei algo melhor que consolo para ela. Ele aquiesceu em silêncio para o archigos. Darei vingança.

 

Allesandra ca’Vörl

— NÃO FOI um sinal.

Fynn socou com força o braço da cadeira. Os criados postados ao longo da parede, de prontidão para servir o jantar, tremeram com o som. A longa cicatriz que descia pelo lado direito do rosto ficou branca contra o rosto corado. — Eu não me importo com o que dizem. O que aconteceu foi um terrível acidente. Nada mais. Não foi um sinal.

— Claro que você está certo, irmão — falou Allesandra, para acalmá-lo. Ela fez uma pausa por um instante e gesticulou para os criados magyarianos: os dois irmãos ceavam nos aposentos de Allesandra no palácio. Os criados se aproximaram e serviram sopa nas tigelas e encheram as taças de vinho. Fynn estava sentado à cabeceira; Allesandra, ao pé da mesa. O archigos Semini e a esposa estavam à direita de Fynn; seu filho, Jan, à esquerda.

A própria Allesandra tinha ouvido alguns dos rumores. O hïrzg Jan está irritado que Fynn tomou a coroa, e não sua filha... A alma do hïrzg não consegue descansar... Ouvi da parte de um criado do palácio que seu fantasma ainda anda pelos salões à noite, gemendo e gritando como se estivesse furioso... Havia dezenas de histórias que surgiam por toda Brezno, deturpadas dependendo dos interesses de quem as espalhasse, e que ficavam maiores e mais absurdas a cada vez que eram contadas. Cénzi manda um aviso ao hïrzg de que os Domínios e a Fé devem se unir novamente... As almas de todos aqueles que o hïrzg matou — os numetodos, os nessânticos, os tennsha — o perseguem e não permitem que ele descanse... Dizem que, quando o selo de pedra caiu, aqueles na câmara ouviram a voz do velho hïrzg amaldiçoar Firenzcia...

A sopa foi servida e o silêncio durou tempo demais. Allesandra ouviu a respiração dos criados e o barulho distante e abafado do cozinheiro e dos funcionários da cozinha no andar debaixo. — Eu soube que o outro lanceiro também morreu — ela comentou quando ficou claro que ninguém mais estava disposto a começar uma conversa.

Fynn olhou feio para a irmã do outro lado da mesa e falou — Isso foi uma benção de Cénzi. O homem jamais teria voltado a andar. O curandeiro disse que a espinha estava quebrada; se eu fosse ele, preferiria morrer a viver o resto da vida como um aleijado inútil.

— Tenho certeza de que ele tinha a mesma opinião que você, irmão. — Ela manteve o tom de voz cautelosamente neutro. — E tenho certeza de que o archigos fez o possível para aliviar seu sofrimento. — Outra pausa. — Até onde a Divolonté permite, é claro — acrescentou.

Francesca deixou a colher bater na mesa ao ouvir isso. — A senhora pode ter sido maculada pelas crenças da falsa archigos durante seus anos com ela, a’hïrzg — declarou ela com frieza —, mas eu lhe garanto que meu marido não se maculou. Ele jamais...

— Francesca! — A bronca de Semini fez Francesca fechar a boca como uma carpa agonizante na margem de um rio. Ele olhou fixamente para a esposa, depois levou as mãos entrelaçadas à testa ao se voltar para Allesandra. Semini sustentou o olhar da a’hïrzg. Allesandra sempre achou que o archigos tinha belos olhos: poderosos e encantadores. Também notou que, quando ela estava em um ambiente, Semini geralmente prestava atenção nela. Isso nunca incomodou Allesandra, que gostava da atenção dele. A a’hïrzg pensou, na época em que seu vatarh finalmente pagou o resgate por ela, que o hïrzg Jan poderia tê-la casado com Semini, se o archigos já não estivesse comprometido com Francesca. Este teria sido um casamento poderoso, que permitiria reunir os poderes políticos e religiosos do estado, e Semini poderia ter sido alguém que ela viesse a amar, também. Mesmo agora... Allesandra afastou essa ideia rapidamente. Ela teve amantes durante o casamento, sim, como sabia que Pauli também tinha, mas sempre com cautela. Um caso com o archigos... isso seria difícil de esconder.

— Eu peço desculpas, a’hïrzg — disse Semini. — Às vezes, hã, a devoção da minha esposa pela Fé faz com que ela fale com muita grosseria. Eu realmente dei ao pobre lanceiro o consolo que pude, a pedido do hïrzg. — Ele então se dirigiu a Fynn. — Meu hïrzg, o senhor não deveria se preocupar com as fofocas da ralé. Na verdade, eu deixarei claro na minha próxima Admoestação que aqueles que acreditam que existem portentos nesse acidente horrível estão enganados, e que esses rumores absurdos são simplesmente mentiras. Já mandei começarem a investigar quem está espalhando essa fofoca sórdida. Eu diria que, se a Garde Hïrzg levasse alguns deles sob custódia, especialmente alguns do baixo escalão, e... hã, os convencesse a desmentir publicamente antes de serem executados por traição, isto certamente serviria de lição para os outros. Acho que veríamos que toda essa conversa sobre o que aconteceu no enterro de seu vatarh desapareceria tão rápido quanto neve em Daritria.

Francesca concordava com a cabeça ao ouvir as palavras do marido. — Nós devemos tratar essas pessoas da mesma maneira que trataríamos os numetodos — aquiesceu ela. — Da mesma forma que os numetodos são traidores da Fé, esses fofoqueiros são traidores de nosso hïrzg. Alguns corpos balançando na forca calarão a boca do populacho. — Ela olhou para Allesandra. — A senhora não concorda, a’hïrzg? — perguntou Francesca com voz gentil e ávida demais. A mulher chegou mesmo a se debruçar sobre a mesa, o que enfatizou a corcunda.

— Acho que é perigoso igualar fofocas com heresias, vajica ca’Cellibrecca — ela começava a dizer com cautela, mas Jan a interrompeu.

— Se você punir as pessoas por boataria, vai convencê-las de que os rumores são verdadeiros — disse o filho de Allesandra, as primeiras palavras que Jan disse desde que se sentaram à mesa, e deu de ombros quando os demais olharam para ele. — Bem, é verdade — insistiu. — Se o senhor der o sermão que sugere, archigos, estará apenas atraindo mais atenção para o que aconteceu, o que fará as pessoas acreditarem ainda mais nos rumores. É melhor não dizer, nem fazer nada; todo esse falatório vai passar por conta própria quando nada mais acontecer. Toda vez que um de nós repete a fofoca, mesmo que para negá-la ou refutá-la, nós fazemos com que pareça mais real e mais importante do que ela é.

Allesandra acompanhou o olhar de Jan deslizar de Semini para os demais à mesa. O archigos estava furioso, com as sobrancelhas baixas como nuvens carregadas sobre aqueles olhos cativantes; Francesca estava boquiaberta, como se estivesse atordoada e sem palavras diante da insolência do garoto; ela soltou uma tosse de desdém e abanou uma mão parecida com uma garra na direção de Jan, como se afastasse a praga de um mendigo. Fynn encarava a toalha de mesa diante dele. — É melhor não dizer e não fazer nada — repetiu Jan no silêncio, com a voz mais fraca e vacilante agora — ou o que aconteceu vai virar um sinal. Todos os senhores transformarão o boato em um sinal.

Allesandra tocou no braço do filho: foi o que ela teria dito, embora de uma maneira menos diplomática. — Muito bem dito — sussurrou Allesandra para Jan. Ele talvez tivesse sorrido momentaneamente; era difícil dizer.

— Então, se você fosse o hïrzg, não faria nada? — falou Francesca. — Então agradeçamos a Cénzi por você não ser, criança.

O que fez Jan erguer a cabeça novamente e responder — Se eu fosse o hïrzg, pensaria que esses rumores não valem o meu tempo. Há eventos mais importantes que eu consideraria, como a morte da archigos Ana, ou a guerra nos Hellins que consome os recursos e a atenção de Nessântico, e o que tudo isso significa para Firenzcia e a Coalizão.

Francesca olhou com desdém novamente. Ela voltou a atenção para a sopa, como se o comentário de Jan não merecesse ser levado em consideração. Semini balançava a cabeça e olhava feio para Allesandra como se ela fosse diretamente responsável pela impertinência de Jan.

Allesandra imaginou que Fynn estivesse irritado sob a carranca que fazia, mas o irmão a surpreendeu e quebrou o silêncio incômodo. — Eu acho que o jovem está certo — disse Fynn, que deu para Jan um sorriso distorcido pela cicatriz no rosto. — Eu odeio pensar em ouvir os boatos por outro instante sequer, mas... você está certo, sobrinho. Se não fizermos nada, a boataria sumirá em uma semana, talvez até mesmo em alguns dias. Talvez eu devesse tornar você meu novo conselheiro, hein?

Jan ficou radiante com o elogio de Fynn enquanto Francesca se recostou abruptamente com a testa franzida. Semini tentou parecer despreocupado. — Você criou um jovem inteligente, irmã — falou Fynn para Allesandra. — Ele é tão ousado quanto eu gostaria que meu próprio filho fosse. Devo conversar mais com você, Jan, e sinto muito por não conhecê-lo tão bem quanto um onczio deveria. Vamos começar a retificar isso amanhã. Vamos caçar depois das reuniões da tarde, eu e você. Que tal?

— Sim! — disparou Jan, de repente criança novamente, recebendo um presente inesperado. Então ele pareceu perceber como soou jovem e concordou solenemente com a cabeça. — Eu gostaria muito, onczio Fynn — falou com a voz grave. — Matarh?

— O hïrzg é muito gentil — disse Allesandra sorrindo enquanto a suspeita martelava em sua cabeça. Primeiro o vatarh, agora Fynn. O que o desgraçado pensa que vai ganhar com isso? Será que está apenas tentando me aborrecer ao roubar a afeição de Jan? Estou perdendo meu filho, e quanto mais forte tento me agarrar a ele, mais rápido ele vai escapar... — Parece uma ideia maravilhosa — falou ela para Jan.

 

A Pedra Branca

HAVIA ASSASSINATOS FÁCEIS, e havia os difíceis. Este foi um dos fáceis.

O alvo era Honori co’Belgradi, um comerciante de mercadorias das Magyarias, e um mulherengo que cometera o erro de dormir com a esposa da pessoa errada: a esposa do cliente da Pedra Branca.

— Eu vi o sujeito cobrir minha mulher — disse o homem para Pedra Branca com a voz trêmula de raiva diante da lembrança. — Eu o vi possuir minha esposa como um animal, e eu a ouvi chamar seu nome no momento de desejo. E agora... agora ela está grávida, e eu não sei se a criança é minha ou... — Ele se interrompeu, com a cabeça baixa. — Mas vou garantir que ele não faça isso com nenhum outro marido, vou garantir que a criança jamais seja capaz de chamá-lo de vatarh...

Relacionamentos e desejo eram responsáveis por metade do trabalho da Pedra Branca. Ganância e poder respondiam pelo resto. Jamais faltou gente à procura da Pedra Branca; se a pessoa precisava encontrá-la, ela achava um jeito.

Honori co’Belgradi era um sujeito com hábitos, e hábitos geravam uma presa fácil. Pedra observou o comerciante por três dias, e o ritual do homem jamais variava por mais que uma marca da ampulheta. Ele fechava a loja em Ville Serne, uma cidade a meio dia de cavalgada ao sul de Brezno, depois ia a uma taverna na esquina da próxima rua. Ficava por lá até por quatro viradas da ampulheta, após a Terceira Chamada, e então se dirigia aos aposentos onde a mulher — a esposa do cliente da Pedra — esperava pela aventura noturna.

A caminho daqueles aposentos, Honori passava pelo beco onde a Pedra esperava agora. Ela já era capaz de ouvir os passos no ar fresco da noite. — Honori co’Belgradi — chamou a Pedra quando a silhueta do homem passou pela boca do beco. O comerciante parou com uma expressão cautelosa, depois olhou com muito interesse quando a Pedra ficou sob a luz das lâmpadas mágicas da rua.

— Você me conhece? — perguntou co’Belgradi, e a Pedra deu um sorriso gentil.

— Conheço. E queria conhecer melhor, meu amigo. Você e eu, nós temos um negócio para acertar.

— O que quer dizer? — indagou co’Belgradi quando a Pedra se aproximou. Tão fácil... A apenas um passo de distância. A uma facada de distância, e co’Belgradi inclinou a cabeça, intrigado.

— Assim — respondeu a Pedra. Ela olhou para a rua, viu que ninguém observava, e deu um tapinha no ombro de co’Belgradi, como se o homem fosse um amigo que não via há anos. Ao mesmo tempo, a mão com a adaga envenenada cravou a arma com força debaixo das costelas do comerciante em direção ao coração. Co’Belgradi soltou um grito sufocado pelo sangue, e de repente o corpo ficou pesado contra a compleição atlética do assassino. A Pedra meio arrastou, meio carregou o moribundo co’Belgradi para dentro do beco e deitou o corpo rapidamente no chão. Os olhos do comerciante estavam abertos, ela tirou duas pedras de um bolso na capa: ambas brancas sob a luz fraca do beco, embora uma estivesse lisa e polida como se fosse muito manuseada. O assassino colocou as pedras sobre os olhos abertos de co’Belgradi e pressionou fundo dentro das órbitas. A pedra do olho esquerdo foi deixada ali; já a pedra reluzente, branca e lisa que estava sobre o olho direito (o olho do ego, aquele que guardava a imagem do rosto que o olho viu no último momento), esta a Pedra Branca pegou novamente e recolocou em uma bolsinha de couro pendurada no pescoço.

— E agora eu possuo você para sempre — sussurrou a aparição conhecida como a Pedra Branca.

Um instante depois, não havia mais ninguém vivo no beco, apenas um cadáver com uma pedrinha sobre o olho esquerdo: um contrato cumprido.


??? SUBSTITUIÇÕES ???

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Jan ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ESTA ERA UMA daquelas noites ruins.

Cada tomada individual de fôlego era uma luta. Audric tinha que forçar o ar velho e inútil para fora dos pulmões, e o peito doía a cada inalação, mas ele nunca conseguia aspirar ar suficiente. O kraljiki sentou-se na cama; sentiu que, se ficasse deitado, poderia sufocar. Os curandeiros do palácio agitaram-se em volta dele, com expressões de muita preocupação nos rostos — ainda que por medo do que poderia acontecer com eles se o kraljiki morresse sob seus cuidados —, mas Audric prestou pouca atenção neles, a não ser quando tentavam fazer com que tomasse uma poção ou inalasse a fumaça de alguma erva desagradável. Os braços estavam marcados por novas casquinhas; os curandeiros quase o deixaram sem sangue, e um deles estava abrindo um novo corte, mas Audric sequer fez uma careta. Seaton e Marlon, os camareiros de Audric, entravam e saíam correndo do quarto para pegar o que quer que os curandeiros pedissem a eles.

Toda a atenção de Audric estava voltada para a guerra com o fôlego. O mundo fora reduzido à batalha por cada inalação, pela tentativa de aspirar ar suficiente para os pulmões a fim de permanecer consciente. Os limites da visão ficaram escuros; ele apenas conseguia enxergar o que estava diretamente à sua frente. Sentia pouca coisa a não ser a eterna dor no peito.

Audric prestou atenção ao quadro da kraljica Marguerite sobre a lareira ao pé da cama. A mamatarh devolvia o olhar, o rosto pintado era completamente realista, como se a moldura dourada fosse uma janela por trás da qual a kraljica estivesse sentada. Ele podia jurar que a viu se mover ligeiramente contra o pano de fundo do Trono do Sol, que o próprio trono pintado reluzia com a luz do Ilmodo como o verdadeiro fazia sempre que Audric se sentava nele.

A archigos Ana nunca dera mais do que um olhar amargo para o quadro, que sempre parecia capturar o olhar de outros visitantes ao quarto de Audric. Uma vez, ele perguntou para a archigos por que ela dava tão pouca atenção à obra-prima. A archigos apenas balançou a cabeça e disse — Tem coisa demais de sua mamatarh naquele quadro. Eu sofro por vê-la presa ali. — Então Ana franziu a testa. — Porém, seu vatarh adorava a pintura, por seus próprios motivos.

Marguerite encarava Audric agora com seu olhar penetrante e avaliador. Ele esperou que o acesso passasse. A crise passaria; sempre passara. Precisava passar. A boca de Audric moveu-se em silêncio ao rezar para Cénzi para que o acesso passasse, para que o gigante invisível montado em seu peito e que amassava seus pulmões se levantasse lentamente e fosse embora, e que ele pudesse respirar facilmente outra vez.

Isso aconteceria. Precisava acontecer.

Sua mamatarh parecia acenar com a cabeça, como se concordasse.

Enquanto encarava o quadro, Audric mais ouviu do que viu o regente ca’Rudka irromper no quarto e afastar os curandeiros. Ele debruçou-se sobre a cama e afastou a fumaça desagradável dos incensários. — Tirem essas coisas daqui — rosnou Sergei. — A archigos Ana disse que a fumaça piora a respiração do kraljiki em vez de melhorar. E saiam daqui vocês também. — Os curandeiros afastaram-se entre murmúrios, dedos ensanguentados e barulho de frascos, e deixaram o regente sozinho com Audric. Não, não sozinho... Havia outra pessoa com ele. Relutantemente, Audric tirou o olhar do quadro e cerrou os olhos na escuridão.

O esforço provocou um gemido.

— Archigos... Kenne... — Cada palavra saiu depois de um fôlego, acompanhada por uma arfada agitada de ar; ele não conseguia fazer melhor do que isso.

— Kraljiki — falou o archigos. — Por favor, não se mexa. Eu vim rezar com o senhor. — Audric viu o archigos Kenne olhar com preocupação para o regente. — A archigos Ana tinha uma... relação especial com Cénzi que infelizmente poucos ténis conseguem igualar, mas farei o que for possível. Deite-se com o máximo de conforto que conseguir. Feche os olhos e não pense em nada além da respiração. Concentre-se apenas nisso...

A respiração estava rápida e ofegante. Ele sentiu o solavanco brusco do coração contra o espaço restrito das costelas. Só conseguiu tomar um gole mínimo do precioso ar. Audric fechou os olhos quando o archigos começou a rezar. A archigos Ana, quando o visitava, também rezava e colocava as mãos com delicadeza em seu peito. Era como se Audric pudesse senti-la dentro dele. O kraljiki ouvia a voz de Ana dentro da cabeça e sentia o poder do Ilmodo queimar no peito, consumir os bloqueios e permitir que ele respirasse plenamente outra vez. Ana envolvia Audric naquele calor interior, sua voz entoava e ao mesmo tempo falava dentro de sua cabeça. — Você vai ficar bem, Audric. Cénzi está com você agora, e Ele fará sua saúde melhorar novamente. Apenas respire devagar: respire fundo e bem. Isso, assim... — Dentro de poucos minutos, ele respiraria naturalmente e com facilidade mais uma vez, um alívio que, no início, durava meses, mas recentemente durava apenas algumas semanas.

Agora, com Kenne, Audric só ouvia as preces meio sussurradas pelo homem com os ouvidos. Não havia nada dentro. Não havia calor que se espalhava pelo peito. Havia apenas as preces de um velho, ditas por uma voz vacilante do lado de fora de Audric. Não havia sensação do Ilmodo, nem sinal do poder de Cénzi — ou talvez houvesse, só que era tão fraco que Audric mal conseguia sentir. Talvez houvesse calor, talvez a expansão e a contração dos pulmões estivessem um pouco mais fáceis. Audric tentou respirar fundo, mas o esforço provocou uma tosse seca e espasmódica que fez com que dobrasse o corpo na cama. Ele abriu os olhos, e viu Marguerite franzir a testa no quadro. Audric viu as gotículas de sangue que espirraram sobre o lençol.

— Você tem que lutar contra isso, Audric. Se você morrer, nossa linhagem morre, e com ela nosso sonho para Nessântico e os Domínios... — Ele viu os lábios pintados de Marguerite se moverem, ouviu a voz que sempre imaginou que ela tivesse. — Você tem que lutar contra isso. Eu vou ajudar você...

Sergei correu rapidamente para o lado de Audric, que sentiu a mão forte do regente em suas costas e ouviu sua voz chamar Marlon com rispidez. Deram um pano molhado em água fria para o kraljiki. Audric pegou com gratidão e levou o pano aos lábios. Sentiu o gosto doce da água. E sim, ele conseguia respirar um pouco melhor. — Obrigado, regente — falou o kraljiki. — Estou muito... melhor agora... archigos. — A própria voz soou distante e abafada, como se alguém meio que cobrisse seus ouvidos. Era a voz de Marguerite que soava mais claramente.

— Escute o que digo, Audric. Eu vou ajudar você. Escute a sua mamatarh...

O archigos Kenne assentiu com a cabeça, mas Audric apenas viu a dúvida nos olhos do homem. — Sinto muito, kraljiki. A archigos Ana... Eu sei que ela podia fazer mais pelo senhor.

Audric esticou o braço para tocar a mão do homem. A pele de Kenne era fria e seca como papel velho. — Eu vou ficar bem — disse o kraljiki. — Acho que... encontrei a solução.

O retrato de Marguerite dirigiu um sorriso sutil para o neto, e ele devolveu o gesto.

— Você não pode morrer porque tem muita coisa a fazer...

— Eu não posso morrer porque tenho muita coisa a fazer — falou Audric para ele, para os dois. Foi tanto uma promessa quanto uma ameaça.

 

Varina ci’Pallo

À ÉPOCA EM QUE ELA se juntou aos numetodos, quando era apenas uma humilde iniciada na sociedade deles e tinha acabado de conhecer Mika e Karl, a Casa dos Numetodos era um local decadente no centro do Velho Distrito, oculto pela pobreza e sujeira dos prédios do entorno.

Agora, a Casa dos Numetodos ocupava um belo prédio na margem sul, com um jardim, piso lustroso do lado de fora e portões que davam para a Avi a’Parete — um presente da archigos Ana e (com mais relutância) do kraljiki Justi pela ajuda dos numetodos em acabar com o cerco firenzciano à cidade em 521. As acomodações mais espaçosas e luxuosas ajudaram a tornar os numetodos mais aceitáveis para os ca’ e co’, mas também os deixou mais visíveis. No passado, eles reuniam-se em segredo, e a maioria dos integrantes mantinha a afiliação em segredo. Isso acabou. Varina não tinha dúvidas de que todos aqueles que cruzavam os portões eram observados pelo utilino e pela Garde Kralji, que constantemente patrulhavam a Avi, e de que a informação era transmitida ao comandante — e dele seguia para Sergei ca’Rudka, o Conselho dos ca’ e do kraljiki.

Os numetodos eram conhecidos — o que não era problema, desde que suas crenças fossem toleradas. Porém, com a morte de Ana, Varina não tinha mais certeza de quanto tempo essa situação duraria. Seus receios a levaram de volta à pesquisa...

Apesar dos rumores paranoicos entre os fiéis conservadores, grande parte da pesquisa dos numetodos não tinha nada a ver com magia: eles realizavam experiências de física e biologia; criavam belos e elegantes teoremas matemáticos; pesquisavam medicina; exploravam alquimia; examinavam livros empoeirados e cavavam antigos sítios arqueológicos para recriar a história. Mas, para Varina, era a magia que a fascinava. O que a intrigava em particular era como a Fé, os numetodos e os ocidentais abordavam a conjuração de feitiços.

Os numetodos provaram há muito tempo — apesar da negação irritada e por vezes violenta da fé concénziana — que a energia do Segundo Mundo não precisava de crença em deus algum. Podia ser chamada de “Ilmodo”, “Scáth Cumhacht” ou “X’in Ka.” Não importava. Essa compreensão dissolveu quaisquer resquícios de fé que Varina tivesse quando se juntou aos numetodos.

“Conhecimento e compreensão podem ser moldados somente pela razão e lógica; só que não é algo fácil ou simples. As pessoas criam deuses para explicar o mundo de modo que não tenhamos a responsabilidade de descobrir as coisas por nós mesmos.” Foi o que ela ouviu Karl dizer em uma palestra há anos, quando ela considerou se juntar aos numetodos pela primeira vez. “A magia é uma manifestação tão religiosa quanto o fato de que um objeto solto da mão cairá no chão.”

Sim, tanto os ténis da fé concénziana quanto os ocidentais usavam cânticos e gestuais para criar a estrutura do feitiço, e, no entanto, cada um deles tinha uma “crença” diferente como base, que permitia que dominassem a energia da magia. O que os numetodos perceberam foi que os cânticos e gestuais usados pelos feiticeiros eram apenas uma “fórmula”. Uma receita. Nada mais. Falar essa sequência de sílabas com aquele conjunto de movimentos daria nesse resultado.

Mas os ocidentais... Varina não conheceu Mahri, o Maluco, mas Karl e Ana conheceram, e as histórias dos nahualli ocidentais dos Hellins apenas confirmavam o que eles disseram sobre Mahri. Os nahualli eram capazes de colocar os feitiços dentro de objetos, que depois podiam ser disparados por uma palavra, um gesto ou uma ação. Nem os ténis, nem os numetodos conseguiam fazer isso. Os feiticeiros ocidentais invocavam os próprios deuses para os feitiços, assim como os ténis faziam com os seus, mas Varina tinha certeza de que os deuses ocidentais eram tão imaginários e desnecessários quanto Cénzi e seu moitidi.

Se ela conseguisse aprender os métodos dos ocidentais, se fosse capaz de encontrar a fórmula das palavras e gestos corretos para colocar o Scáth Cumhacht dentro de um objeto inanimado, então ela poderia começar a replicar o que Mahri foi capaz de fazer. Ela vinha trabalhando nisso, de tempos em tempos, há anos. Agora a preocupação movia Varina mais do que nunca: preocupação com o significado da morte de Ana para os numetodos; com a imensa tristeza de Karl, que abalava Varina como se fosse sua.

Se ela não conseguia entender por que as pessoas faziam coisas tão terríveis umas com as outras, pelo menos tentaria compreender isso.

Varina estava em um cômodo quase sem mobília, nos níveis inferiores da Casa. Na mesa diante dela havia uma bola de vidro que Varina comprara de um vendedor no Mercado do Rio, pousada em um ninho de pano para que não rolasse. A bola era feita inabilmente: havia uma linha de pequenas bolhas de ar no interior e o vidro ao redor dela estava manchado e marrom, mas Varina não se importava — ela tinha sido barata. Varina entoou e mexeu as mãos: um simples e fácil feitiço de luz, um dos primeiros truques ensinados a um iniciado numetodo. Moldar o feitiço de luz não exigia esforço, mas colocá-lo dentro do vidro era bem, bem mais difícil. Era como empurrar um fio de cabelo por uma parede de pedra. Ela sentiu a fadiga minar sua força. Varina ignorou a sensação e concentrou-se na bola de vidro à sua frente, tentou imaginar o poder do Scáth Cumhacht entrando no vidro da mesma forma que ela teria colocado a energia dentro da própria mente, visualizou a luz potencial depositada em volta daquelas bolhas bem no fundo do vidro e colocou uma palavra ali que acionaria o feitiço.

O encantamento terminou; Varina abriu os olhos. Seus músculos tremiam como se ela tivesse corrido quilômetros ou levantado pesos por uma virada da ampulheta. Ela teve que fazer um esforço para continuar de pé. A bola estava apoiada na mesa, e Varina permitiu-se dar um sorrisinho. Agora, se...

A bola começou a vibrar sem ser tocada. Varina deu um passo para trás quando ela soou como uma taça de vidro batida por uma faca, houve um faiscar súbito de uma brilhante luz amarela e o globo estilhaçou-se. Ela sentiu uma lasca atingir seu braço erguido e gritou.

— Você está bem? — Varina escutou a voz atrás dela na porta: Mika. O líder dos numetodos entrou rapidamente no aposento, enquanto balançava a cabeça cada vez mais careca e esfregava a barba por fazer no queixo. — Você está sangrando, e parece que não dorme há uma semana. — Ele puxou uma cadeira até a mesa e ajudou Varina a se sentar.

Ela ergueu o braço, que parecia tão pesado quanto um bloco de mármore do Palácio do Kraljiki, e examinou o corte no antebraço. Era comprido, mas não fundo, e Varina fez uma careta ao puxar uma lasca de vidro da ferida. Um filete de sangue escorreu no braço próximo à mão, que ela ignorou. — Droga. — Varina fechou os olhos, depois abriu de novo com esforço para olhar a mesa: o globo havia se partido praticamente ao meio na linha de bolhas, e o pano de apoio estava cheio de cacos. — Eu cheguei tão perto.

— Eu estava vendo — disse Mika, que deu uma olhadela para o globo quebrado. — Pensei que você finalmente tivesse conseguido.

— Eu também pensei. — Varina balançou a cabeça. — Mas estou cansada demais para tentar novamente.

— Melhor assim. Eu desci para lhe dizer: Karl voltou para o próprio apartamento.

Varina inclinou a cabeça, intrigada. — Eu pensei que ele ficaria com você, Alia e as crianças por enquanto.

Mika deu de ombros. — Ele disse que estava bem, que precisava retomar a própria vida. Que precisava retomar os compromissos numetodos e o trabalho como embaixador.

— Você não parece acreditar nisso.

— Eu acho... — Mika cerrou os lábios finos. — Estas são desculpas. Karl está magoado e com raiva, e eu não tenho certeza do que ele vai fazer. Acho que Karl precisa de alguém ao lado dele, para conversar se ele quiser, para garantir que esteja bem e que não faça nenhuma estupidez. A morte de Ana abalou Karl mais do que ele admite.

Mika ficou em silêncio, e Varina sentiu que ele esperava por uma resposta. Mas estava difícil simplesmente manter a cabeça erguida. O sangue pingou do dedo para o chão; as metades partidas do globo de vidro reluziam de maneira acusadora para ela sob a luz da lamparina. — Acho que posso mandar Karoli ou Lauren visitá-lo — disse Mika em meio ao silêncio.

— Eu vou. Apenas dê-me alguns minutos. Tenho que me arrumar.

Mika sorriu e falou — Deixe-me ajudar você.

 

Jan ca’Vörl

JAN GOSTAVA DE FYNN. Ele não tinha certeza do que sua matarh pensaria a esse respeito.

Allesandra contou para o filho que ela nunca conheceu Fynn, que o irmão nasceu poucos meses depois que ela foi sequestrada pela archigos Ana da tenda do hïrzg Jan no campo de batalha. Quando era criança, Jan não tinha compreendido todas as implicações dessa situação; agora, ele achava que finalmente começara a entender a dinâmica do relacionamento entre irmã mais velha e irmão caçula, distorcido e desvirtuado pelo orgulho e pela vaidade do vatarh de Allesandra e Fynn. Ele entendia que sua matarh jamais se permitiria gostar de Fynn, nunca poderia tratá-lo como irmão, jamais confiaria nele.

Mas ele gostava do sujeito, seu onczio.

Fynn mandou um bilhete para Jan imediatamente depois da Segunda Chamada, para convidá-lo a se juntar a ele na reunião da tarde. Jan sentou-se ao lado de Fynn, que se inclinava para sussurrar comentários irônicos enquanto os vários ministros e conselheiros colocavam o novo hïrzg a par das novidades sobre a atual situação política. Helmad co’Göttering, comandante da Garde Brezno, relatou que houve um pequeno conflito com forças leais de Tennshah a leste do lago Cresci, facilmente debelada. (— Você devia ver como eles correm como cães açoitados quando veem soldados de verdade cavalgando entre suas cabanas. Todos eles têm medo de um bom aço firenzciano — disse Fynn baixinho no ouvido de Jan. — Minha própria espada tem manchas de sangue de incontáveis dezenas de soldados de Tennshah. No outono, se quiser, podemos passear pela região, e talvez colocar alguns desses rebeldes para correr nós mesmos.)

O starkkapitän Armen ca’Damont da Garde Civile firenzciana atualizou as informações sobre a guerra dos Domínios nos Hellins, a qual, se tudo o que o starkkapitän disse fosse verdade, não estava indo bem para os Domínios e o kraljiki. (— Os Domínios não sabem guerrear de verdade, Jan. Eles dependeram de Firenzcia para isso por tempo demais e esqueceram. Se nós pudéssemos mandar nossa Garde Civile e um batalhão de bons Lanceiros Vermelhos para lá por um mês, debelaríamos esses ocidentais de uma vez por todas.)

O archigos Semini especulou sobre quem o Colégio A’téni poderia nomear como novo archigos “daquela Fé falsa e desprezível em Nessântico” e teceu um longo e tedioso comentário sobre cada a’téni das principais cidades dos Domínios e seus relativos pontos fortes e fracos. Ele alegou que o a’téni ca’Weber de Prajnoli se tornaria o próximo archigos em Nessântico, em última análise. (— E, no fim das contas, não importa quem eles escolham, portanto todo esse esforço e conversa fiada é uma perda do nosso tempo, não é?)

Havia relatórios sobre a falta de comida na Magyaria Oriental (— Você comeu o suficiente no almoço, não é?), sobre práticas comerciais injustas entre Firenzcia e Sesemora (— Você acha isso tão chato quanto eu?), sobre o valor relativo das solas firenzcianas contra as solas dos Domínios (— Por Cénzi, acorde-me quando este aí terminar de falar, pode ser, sobrinho?). No fim, Jan já não escutava mais. Ao dar uma olhadela para Fynn, viu que os olhos do onczio também perderam o foco. Os dedos do novo hïrzg tamborilavam no tampo da mesa com impaciência, e ele remexia o corpo inquieto na cadeira. Quando a próxima ministra ficou de pé para dar seu relatório, Fynn ergueu a mão e disse — Chega. Mande-me o relatório que eu lerei. Tenho certeza de que é fascinante, mas meus ouvidos estão prestes a cair pelo uso exagerado, e eu prometi uma caçada ao meu sobrinho. Saiam!

Eles resmungaram baixinho, franziram a testa, mas todos fizeram uma mesura e saíram da sala. O hïrzg fez um gesto para que os criados em pé contra as paredes trouxessem comes e bebes. — Então... — falou Fynn enquanto os dois beliscavam os pães e frios e bebiam o vinho — a vida de um hïrzg é uma delícia, não é? Todo aquele falatório sem parar... Eu entendo por que o vatarh sempre ficava de péssimo humor antes dessas reuniões.

— Eu acho que o archigos Semini estava errado — disse Jan. Ele não tinha certeza por que disse isso; de alguma forma confiou que Fynn fosse dar ouvidos. A matarh sempre deu sermões, como se ela fosse uma professora e ele, o estudante; o vatarh estava mais preocupado com o próprio prazer do que escutar as opiniões do filho. O onczio Fynn, por outro lado, realmente deu ouvidos a ele na noite anterior, durante o jantar, enquanto os demais à mesa teriam preferido que ele ficasse calado. Então, agora, Jan falou o que pensava, apenas com a voz um pouco trêmula. — Ca’Weber não será nomeado archigos. O Colégio vai escolher Kenne ca’Fionta.

Fynn ergueu uma sobrancelha grossa e escura. — Por que você diz isso? Semini pareceu achar que ca’Fionta era o mais fraco do grupo.

— É exatamente por isso — respondeu Jan com mais avidez agora. Ele assinalou os argumentos com a ponta dos dedos. — O archigos Semini presumiu que o Colégio A’téni pensará como ele pensaria e escolherá a pessoa que ele escolheria. Eles não farão isso. O resto dos a’ténis está preocupado nesse momento: o assassinato da archigos Ana fez com que eles vissem que um archigos forte tem inimigos, e os a’ténis também se perguntam por quanto tempo a Fé pode se manter dividida, agora que a archigos Ana está morta. Então, eles escolherão Kenne: porque ele é fraco e porque é mais velho do que qualquer um dos a’ténis. E mesmo que Kenne seja uma má escolha, eles não terão que aguentá-lo por décadas.

Fynn riu. Ele bateu com a borda de sua taça na de Jan. Ao se inclinar na direção do sobrinho, o hïrzg passou um braço parrudo sobre seus ombros. — Muito bem dito, e veremos em breve se você está certo. O que mais anda escondendo? Vamos, você não pode esconder o resto de mim.

Fynn estava sorrindo. Jan sorriu de volta e sentiu apreço pelo homem. — O starkkapitän ca’Damont pode estar certo a respeito da guerra nos Hellins, mas ele não nota a importância da guerra. Com a Garde Civile dos Domínios concentrada naquele conflito e gastando recursos, dinheiro e soldados todo mês, eles não podem se voltar para leste com força alguma. Os Domínios estão em uma posição fraca de negociação contra a Coalizão; em termos militares, eles estão em uma posição ainda pior. Um hïrzg forte pode tirar vantagem disso, de uma forma ou de outra.

Fynn levantou ainda mais as sobrancelhas e deu um abraço apertado nos ombros de Jan. — Por Cénzi, eu deveria fazer de você meu novo conselheiro, sobrinho. Você tem a mente sutil de sua matarh.

Ele abraçou Jan novamente com um braço só, depois desmoronou na cadeira. — Ah! Eu gosto de você, Jan! Isso me faz pensar no que perdi com a minha irmã. — Fynn franziu a testa ao dizer isso e tomou outro gole de vinho. — Você sabia que eu sequer fazia ideia de que tinha uma irmã até mais ou menos os nove anos? O vatarh jamais a mencionou para mim uma vez sequer. Jamais. Não falou o nome dela uma vez que fosse; era como se Allesandra jamais tivesse existido para ele. Então, quando decidiu que finalmente pagaria o resgate por ela, o vatarh sentou-se comigo e me explicou que Allesandra fora levada pela archigos bruxa. Ele não me contou como esse fato acabou com a guerra com os Domínios; isso eu aprendi muito tempo depois. O vatarh sempre foi amargo a respeito daquilo, sua única derrota. Creio que Allesandra era o símbolo daquele fracasso para ele, por isso certamente casou a filha, assim que ela retornou. Eu nunca a conheci realmente...

O hïrzg tomou outro longo gole do vinho e bateu a taça na mesa com tanta força que Jan deu um pulo. O vinho derramou; a base da taça deixou uma mancha em formato de lua crescente na mesa.

— Agora vamos caçar! — declarou Fynn. Ele empurrou a cadeira e ficou de pé. — Ande, sobrinho. Vamos para a Encosta do Cervo.

 

Enéas co’Kinnear

SE ELE ESTAVA MORTO, a vida após a morte não era nada como a que os ténis prometiam aos fiéis.

A vida após a morte de Éneas era iluminada por uma luz fraca e avermelhada e fedia à carne podre e enxofre. O solo onde estava deitado era molhado e duro, com punhos de pedra cutucando suas costas. Os ténis sempre disseram que os males do corpo de uma pessoa seriam curados quando ela finalmente descansasse nos braços de Cénzi, que braços e pernas perdidos seriam restaurados, que não haveria mais dor.

Mas a respiração de Enéas tremeu nos pulmões, e, quando tentou se mover, a agonia fez com que ele berrasse.

Enéas ouviu asas baterem em resposta, pontuadas por grasnidos roucos de alerta. Ele piscou, e a vermelhidão acompanhou as pálpebras. Ergueu lentamente uma mão ferida e esfregou os olhos. O filtro vermelho clareou um pouco, e Éneas percebeu que olhava para uma paisagem iluminada pelo luar através de uma película viscosa de sangue, com a cabeça no solo lamacento. Uma montanha marrom erguia-se a um metro dedo de distância. Ele piscou novamente e franziu os olhos; era um cavalo caído e morto, seu cavalo de guerra. Cénzi, o Senhor me deixou vivo. Quando se deu conta disso, duas patas com garras apareceram no cume da montanha equina, acompanhadas por outro grasnido irritado, e Enéas ergueu o olhar para ver uma das aves carniceiras dos Hellins, a criatura que os soldados chamavam de estripadores: pássaros feios com uma envergadura da altura de dois homens ou mais, grandes bicos curvos em um rosto sem penas e branco como um fantasma, olhos sem expressão, como contas negras, e garras curvas para abrir os cadáveres que eles preferiam comer. Não havia nada como esses bichos nos Domínios.

O pássaro olhou fixamente para Enéas, como se observasse uma bela refeição posta diante de si. O o’offizier apoiou-se nos cotovelos; era o mais próximo que conseguiria chegar de se sentar. Irritado, o pássaro guinchou e foi embora voando. Enéas sentiu o vento desagradável provocado pelas asas.

Não morri. Não ainda. Louvado seja Cénzi.

Ele tentou se lembrar de como chegou ali, mas a cabeça estava confusa. Lembrava-se de ter falado com o a’offizier ca’Matin e do início da investida, a corrida morro abaixo em direção à força ocidental. Então... então...

Nada.

Enéas balançou a cabeça para desprender a memória. O gesto foi um erro. O mundo ao redor girou, a vermelhidão voltou, e ele sentiu uma pontada de dor nas têmporas. Ele se equilibrou antes que caísse no chão novamente e esperou que a terra parasse de girar. Novamente, fez um esforço para ficar sentado e tocou a cabeça com hesitação; o cabelo estava empastado com sangue seco e os dedos sentiram o contorno irregular de um corte comprido e profundo. Enéas começou a passar mal. Deixou a mão cair, fechou os olhos e respirou fundo várias vezes até que a náusea passasse, enquanto recitava a Prece da Aceitação para se acalmar. Abriu os olhos novamente e olhou em volta com cuidado.

Havia estripadores por toda parte; sob o fraco luar, o campo parecia vivo com eles e o solo corcovado com os morros escuros dos corpos dos companheiros de Enéas e seus cavalos caídos. O som repugnante, úmido e rascante dos pássaros comendo os corpos era um barulho que atormentaria seus pesadelos para sempre. Bem ao longe, abaixo do declive onde estava sentado, Enéas viu o brilho de uma fogueira, e ao redor dela as silhuetas escuras de gente se mexendo. Havia outro som, mais fraco: cantoria?

As figuras recortadas pelas chamas usavam acessórios com penas na cabeça, Enéas viu. Eles eram ocidentais, então. “Tehuantinos”, como se chamavam. Todos os corpos ao redor usavam os uniformes com detalhes dourados de Nessântico, agora pretos pelo sangue e pelo luar mortiço em vez do azul reluzente que deveriam ter.

Nós perdemos. Fomos massacrados aqui, e as pessoas em Munereo podem não saber o resultado ainda. Cénzi, é por isso que o Senhor me salvou, para que eu pudesse avisá-los...?

Enéas tentou se mexer; as pernas não quiseram cooperar, e ele percebeu que uma delas ainda estava presa debaixo do seu cavalo. Com o máximo de silêncio possível, Enéas empurrou a carcaça com a perna livre, e enfim a perna se soltou. O tornozelo estava inchado e sensível; Enéas não tinha certeza se poderia se apoiar nele.

O o’offizier encontrou a espada ao seu lado meio enterrada na lama. Enfiou a lâmina imunda na bainha presa ao cinto. Com uma careta, rastejou na direção das chamas, meio que se arrastando em volta do cavalo.

Parte de Enéas gritou em alerta. Ele ia na direção do inimigo; os tehuantinos o matariam se o vissem. Todos os a’offiziers contavam como os ocidentais percorreram o campo de batalha após o combate no lago Malik, como eles mataram todos os gardai que ainda estavam vivos mas aleijados ou gravemente feridos. Aqueles que estavam apenas levemente feridos foram levados como prisioneiros. Os rumores sobre o que os ocidentais tinham feito com eles eram muito, muito piores.

A fogueira — imensa e furiosa — estalava no pé da ladeira, e reunidos ao redor estavam os ocidentais: milhares deles, enquanto fogueiras menores pontuavam a paisagem depois do grande fogaréu onde o inimigo estava acampado. Enéas viu um grupo de cavalos atrelados de um lado da fogueira, um pouco distante dos ocidentais sentados em volta das chamas.

Se ele não podia andar, ainda podia cavalgar.

A jornada pareceu levar séculos. As estrelas deram voltas pela Estrela Velejante, a lua chegou ao ápice e começou a descer, os estripadores continuaram o festim sangrento. Exausto, Enéas descansou atrás da cobertura de uma pilha de toras. Os cavalos relincharam perto dali; ele sentiu o cheiro dos animais e ouviu seus movimentos agitados. A cantoria estava mais alta agora, uma melodia grave e dissonante, as palavras que os ocidentais cantavam eram estranhas e desconhecidas: mil vozes, todas cantando juntas. O zumbido monótono era alto e enlouquecedor; a música vibrava no peito e parecia fazer tremer o próprio solo. Ele conseguiu ver os ocidentais: a pele bronzeada como o povo de Namarro, a armadura de bambu com anéis de ferro que tilintavam enquanto eles cantavam e se agitavam. As imensas toras da pira desmoronaram e dispararam fagulhas para o alto com um ribombar.

Um ocidental à frente das fileiras ficou de pé e avançou. Ele ergueu os braços nus e musculosos; como os demais, o homem usava um elmo de bambu decorado com penas compridas e reluzentes. Havia um grande disco prateado e amassado sobre o peito, pendurado no pescoço por uma corrente, e pintado com figuras: o que identificava o homem como um offizier ocidental. Ele parou de cantar ao proclamar alguma coisa em voz alta. Mais dois guerreiros ocidentais saíram da escuridão do outro lado da fogueira e arrastando com eles a figura ensanguentada de um homem. Sua cabeça levantou-se quando os soldados se aproximaram da luz da fogueira, e, mesmo àquela distância, Enéas reconheceu o a’offizier ca’Matin. Ele estava nu até a cintura e agora era forçado a ficar de joelhos em frente ao offizier ocidental. Enéas ouviu ca’Matin rezar para Cénzi, com a face erguida para as fagulhas, as estrelas e a lua; para qualquer coisa, menos para o ocidental.

O ocidental falava com ca’Matin enquanto retirava um apetrecho estranho de uma bolsinha no cinto. Enéas apertou os olhos para tentar ver o que era no momento em que o offizier ergueu o objeto para mostrá-lo às tropas reunidas. Um cano curto e curvo como o chifre de um touro de cor marfim reluziu; o apetrecho tinha um cabo de madeira. O offizier ofereceu o objeto para ca’Matin com o cabo voltado para frente. Quando ca’Matin o pegou, com mãos visivelmente trêmulas e uma expressão de dúvida, o guerreiro virou o chifre de marfim — Enéas ouviu um nítido clique metálico — e deu um passo para trás. Ele fez um gesto como se virasse o apetrecho, depois como se tocasse a ponta do chifre no abdômen. Ca’Matin balançou a cabeça e o offizier ocidental suspirou. Sua expressão parecia quase solidária ao pegar o instrumento e virá-lo nas mãos de ca’Matin. Ele fez um gesto de apoio com a cabeça ao empurrar as mãos de ca’Matin para trás. O chifre tocou no estômago de ca’Matin.

Houve um clarão que iluminou toda a paisagem como se fosse um raio, e ecoou um trovão estrondoso que abafou o grito involuntário de Enéas e fez os cavalos relincharem nervosos e lutarem contra as amarras. Ca’Matin escancarou a boca e os olhos, embora a expressão parecesse estranhamente estática para Enéas, como se no momento final Cénzi tivesse tocado o a’offizier com Sua glória.

Ca’Matin desmoronou, e o apetrecho caiu de suas mãos. O estômago era uma cavidade sangrenta, como se tivesse sido rasgado por um punho com garras. Entranhas e sangue estavam espalhados pelo chão debaixo do homem, bem como nas pernas dos ocidentais em volta dele. O offizier ocidental levantou as mãos novamente, e a cantoria recomeçou. Com uma estranha reverência, os dois soldados que trouxeram ca’Matin até a fogueira envolveram o corpo em um pano tingido com cores intensas dispostas em padrões geométricos. Eles entraram correndo nas sombras com o cadáver embrulhado.

Enéas forçou-se a andar novamente, agora mais desesperadamente. Ele não sabia que feitiçaria fora feita com ca’Matin, mas tinha que dar um jeito de voltar para Munereo: para avisá-los. Ajude-me a fazer isso, Cénzi... Enéas começou a rastejar na direção dos cavalos. Se conseguisse erguer o corpo e jogar a perna ferida por cima... Os ocidentais poderiam persegui-lo, mas Enéas conhecia esse terreno tão bem quanto eles, talvez até melhor, e seria encoberto pela noite.

Ele chegou aos cavalos agora. Eram cavalos de guerra capturados de Nessântico, usavam os uniformes que ele conhecia tão bem e, mais importante, ainda estavam selados. Eram mais lentos do que as montarias dos ocidentais, mas mais vigorosos. Se Enéas conseguisse uma vantagem razoável, os cavalos dos ocidentais poderiam se cansar antes de alcançá-lo.

Com a ajuda de Cénzi...

Enéas desamarrou as patas de uma grande égua cinzenta e manteve o animal entre ele e a fogueira. O cavalo de guerra relinchou, mostrando o branco de seus olhos sob o luar. Enéas sussurrou com delicadeza para ela. — Shh... shh... Tudo bem... Você vai ficar bem... — Ele agarrou as correias da sela e ficou de pé, tirando o peso do tornozelo machucado. Pegou as rédeas com uma mão e acariciou o pescoço do animal. — Shh... Quieta, agora... — Ele teria que se equilibrar parcialmente no tornozelo machucado para colocar um pé no estribo; com delicadeza, Enéas pousou o pé no chão e apoiou o peso sobre ele devagar. Mordeu o lábio inferior ao sentir a dor. Ele conseguiria por um instante. Era tudo que era preciso...

Enéas levantou o pé que estava bom e o colocou no estribo. Uma onda de facadas se espalhou do tornozelo até a perna durante o instante em que ele sustentou todo o peso, e a agonia quase fez com que Enéas desmaiasse. Desesperadamente, ele passou a perna machucada sobre a espinha do cavalo e quase gritou quando o tornozelo bateu no outro lado do corpo maciço do animal. Mas agora Enéas estava no cavalo de guerra, meio deitado sobre o pescoço grosso e musculoso da montaria. Ele estalou as rédeas e cutucou com a perna boa. — Devagar — falou para a égua cinzenta. — Muito devagar agora. Quieta...

A égua balançou a cabeça e começou a se afastar dos outros cavalos. Ela voltou para a encosta, longe da luz da fogueira e do acampamento. A cantoria dos ocidentais encobriu o som dos cascos com ferraduras no solo. Assim que entrasse na escuridão novamente, assim que conseguisse colocar a saliência de um daqueles morros entre ele e os ocidentais, Enéas poderia galopar a toda.

Ele começava a ousar pensar que seria possível.

Enéas quase não notou a silhueta que se movia à sua esquerda, um pedaço de escuridão que se levantou subitamente e se atirou sobre ele. Enéas teve apenas um vislumbre do rosto sinistro antes que o homem o acertasse e derrubasse da sela. Um clarão de luz flamejou atrás dos olhos quando Enéas caiu no chão, e ele gritou de dor na perna machucada, que ficou torcida debaixo do corpo. Ele ouviu o cavalo de guerra ir embora a galope, sem cavaleiro, e então a sombra de um guerreiro ocidental com os braços erguidos surgiu sobre ele, e Enéas caiu novamente na escuridão.

 

Allesandra ca’Vörl

— EU GOSTARIA DE ME DESCULPAR pela minha esposa, a’hïrzg. Ela... bem, o assunto da archigos bruxa sempre a aborrece. Elas têm... uma história em comum, afinal. Ainda assim, minha esposa não deveria ter dito o que pensa no jantar ontem à noite, especialmente para a senhora, como anfitriã.

Allesandra assentiu com a cabeça para o archigos Semini. Eles estavam sentados em uma plataforma de observação no alto de uma ladeira atrás da residência particular do hïrzg — o palácio na Encosta do Cervo, bem afastado de Brezno. Os dois olhavam para leste, para a vista de uma campina comprida e larga, de grama alta, cheia de flores silvestres. Lá embaixo, eles enxergavam um grupo de figuras e cavalos: Fynn, Jan e vários outros. De ambos os lados da campina, em uma floresta de abetos altos, tambores ecoavam dos flancos dos morros íngremes e verdejantes que formavam a paisagem: o som dos batedores, que arrebanhavam a presa para a campina e para o hïrzg, à espera.

Atrás de Allesandra, na sacada, criados corriam de um lado para o outro com comes e bebes enquanto preparavam uma mesa comprida para o jantar. Fora isso, Allesandra e o archigos estavam sozinhos; todos os outros privilegiados ca’ e co’ que jantariam com eles naquela noite estavam com o grupo do hïrzg na campina. Allesandra não tinha a menor vontade de ficar tão próxima do irmão por tanto tempo assim. Ela não tinha certeza por que Semini ficou para trás, no palácio — Francesca estava na campina com os demais.

— Por favor, acredite em mim quando digo que não me ofendi, archigos — falou Allesandra. — Embora eu tenha muito mais simpatia pela archigos Ana, entendo que sua esposa se sinta dessa maneira.

Ela deu uma olhadela para Semini e viu o archigos sorrir. — Obrigado. Isso é gentil de sua parte. — O homem olhou com cuidado para os criados, depois abaixou o tom de voz para que eles não conseguissem escutar. — Cá entre nós, a’hïrzg, eu gostaria de ter convencido seu vatarh a nomear a senhora como herdeira. Aquele menino... — ele apontou com o queixo para o grupo na campina — ... seria um starkkapitän perfeitamente adequado para a Garde Civile, mas ele não tem a visão ou a inteligência para ser um bom hïrzg.

— Creio que ouvi o archigos falar em traição. — Allesandra teve a cautela de manter o olhar afastado do archigos e concentrou sua atenção em Jan, a cavalo ao lado de Fynn. Ela perguntou-se se podia acreditar no que ca’Cellibrecca dizia e por que ele declararia tal opinião para ela. O archigos tinha motivos para agir assim, Allesandra tinha certeza: Semini não era um homem de fazer declarações acidentais. Mas qual era o motivo? O que ele queria, e como isso o beneficiaria?

— Será que eu talvez tenha dito o que também está no seu coração, a’hïrzg,
mesmo que a senhora não ouse dizer em voz alta? — respondeu Semini no mesmo sussurro baixo e rouco. O archigos voltou-se para ela. — Meu coração está aqui, neste país, a’hïrzg Allesandra. Eu quero o que é melhor para Firenzcia. Nada mais. Eu dei minha vida a serviço de Cénzi e a serviço de Firenzcia. Eu compartilhava a visão de seu vatarh de que os Domínios deviam ter Brezno, e não Nessântico, como o centro de todas as coisas. Ele quase conseguiu realizar essa visão. Ele teria realizado, estou convencido, se não tivesse sido a feitiçaria herege da archigos bruxa.

Havia ódio na voz de Semini, genuíno e intenso. E também uma estranha satisfação.

O vatarh teria sido bem-sucedido se Ana não tivesse me capturado como refém, se não tivesse me arrancado do vatarh e me usado para terminar a guerra. Enquanto Allesandra permanecesse em Nessântico, enquanto o vatarh se recusasse a pagar o resgate exigido, sua derrota ainda não seria completa. Ainda havia esperança de que os resultados pudessem mudar, e o vatarh levou pouco mais de uma década para perder aquela esperança.

Era o que Allesandra dizia para si mesma. Era o que Ana dizia para ela. Ana jamais falou mal do hïrzg Jan; sempre pintou seu vatarh da maneira mais favorável possível, mesmo quando Allesandra bufava de raiva por ele demorar a pagar o resgate.

Allesandra tomou fôlego e levou a mão à garganta, tocando o globo partido de Cénzi em volta do pescoço.

Ca’Cellibrecca evidentemente interpretou mal o pensamento por trás do gesto. — Ah, vejo que compartilhamos a mesma opinião sobre Ana ca’Seranta. Aquela criatura impediu que os Domínios desmoronassem sob o governo de Justi, aquele tolo perneta. E agora, finalmente, ela morreu, louvado seja Cénzi. — O tom de voz ficou ainda mais baixo quando ele inclinou o corpo e se aproximou de Allesandra. — Agora seria a hora para um novo hïrzg fazer aquilo que seu vatarh não conseguiu... ou seria a hora, se tivéssemos um hïrzg, ou hïrzgin, à altura da tarefa. Alguém que não fosse Fynn. Existem aqueles em Nessântico que acreditam nisso, a’hïrzg. Pessoas que a senhora não suspeitaria que tenham ideias assim.

O clamor dos batedores estava se aproximando no vale abaixo. Os cavaleiros remexiam-se irrequietos, e Allesandra viu Fynn sinalizar para que Jan encaixasse a flecha no arco. — O que você está me dizendo, archigos? — perguntou ela enquanto observava a cena abaixo dos dois.

— Estou dizendo que a senhora atualmente é a a’hïrzg, mas ambos sabemos que esta é uma situação temporária. Mas se Fynn, de alguma forma... — Ele hesitou. Os tambores bateram alto lá embaixo, e agora eles podiam ouvir uma movimentação debaixo da sombra das árvores à direita. — ... não fosse mais hïrzg, então a senhora se tornaria hïrzgin. — Outra pausa. — Como deveria ter sido.

Os tambores e a gritaria ficaram mais altos, e de repente um cervo surgiu da linha de árvores a várias dezenas de passos do grupo do hïrzg. O animal era magnífico, a galhada tinha a envergadura dos braços e ombros de uma pessoa, alcançava facilmente a altura de um homem alto ou mais. A pele tinha um tom deslumbrante de marrom-avermelhado com um toque de branco debaixo da garganta. O cervo saiu do matagal a meio galope, e sentiu o cheiro do grupamento de caça. Allesandra sentiu uma aflição ao ver a bela criatura; ao lado, ela ouviu Semini murmurar — Por Cénzi, olhe aquele animal lindo!

O cervo parou e olhou fixamente para os cavaleiros por um instante antes de dar um pulo enorme e fugir na direção do fim da campina, ao longe. No mesmo instante, eles viram uma flecha ser disparada pelo arco de Fynn, e o estalo da corda do arco chegou com atraso aos seus ouvidos. O cervo caiu com as patas traseiras emaranhadas e a flecha enterrada nas ancas. Então, o animal levantou-se outra vez e começou a correr.

Jan esporeou o cavalo no momento do disparo de Fynn. Ele correu atrás do cervo ferido e controlou a montaria apenas com as pernas enquanto puxava o arco. A toda velocidade, Jan disparou a própria flecha com o cervo a apenas poucos passos de chegar à cobertura da floresta novamente.

O cervo estremeceu quando a flecha penetrou fundo no lado esquerdo do peito. O animal correu por mais alguns passos, quase até a floresta. Pareceu se recuperar, pulou, mas as patas dianteiras esbarraram na tora sobre a qual ele tentou saltar, e caiu.

O cervo ficou caído de lado, as patas debateram-se no matagal, a galhada arrancou punhados de terra com grama do solo. Fynn galopou até onde Jan parou com seu cavalo. Allesandra viu o irmão dar um tapinha no ombro de Jan e depois colocar outra flecha no arco.

Com o disparo de Fynn, o cervo ficou imóvel. Uma vibração distante ecoou do grupamento de caça.

— Seu filho pode ter um físico franzino, mas é um excelente cavaleiro, e arqueiro ainda melhor. Aquilo foi impressionante: atirar daquele jeito em plena perseguição.

Allesandra sorriu. Por um instante, ele quase pareceu com o seu vavatarh ao cavalgar daquela maneira... Lá embaixo, Fynn e Jan desmontaram para se dirigir até o cervo caído. — Atirar flechas a cavalo é uma habilidade ensinada à cavalaria magyariana, e Jan teve excelentes professores.

— Ele também teve uma excelente educação em política. Jan esperou que o hïrzg desse o golpe final. Presumo que a senhora tenha sido sua professora neste quesito.

— Jan sabe o que tem que fazer, mesmo que algumas vezes ignore meu conselho — falou Allesandra. — Geralmente porque fui eu que dei o conselho.

— Filhos na idade dele acham que devem se rebelar contra a família. É natural, e eu não me preocuparia muito com isso, a’hïrzg. Jan vai aprender. E um dia, se ele for o a’hïrzg em vez de apenas outro ca’ em algum ponto da linha sucessória para ser o gyula da Magyaria Ocidental... — Semini deixou a voz sumir gradualmente.

Allesandra finalmente se virou para ele. O archigos agigantava-se sobre ela como um urso vestido de verde. Os olhos escuros do homem encaravam os de Allesandra. Sim, ele tinha olhos em que uma pessoa podia se perder. — Você continua a me dizer estas pequenas insinuações e sugestões, archigos — falou ela baixinho. — Você tem mais do que isso para oferecer ou está tentando me provocar a ponto de eu me revelar? Isso não vai acontecer.

Ca’Cellibrecca concordou devagar com a cabeça e inclinou o corpo na direção dela. A boca ficou tão próxima da orelha de Allesandra que ela sentiu o hálito quente de Semini. Ela arrepiou-se. — Eu tenho uma proposta, a’hïrzg. Se isso for algo que lhe interesse, eu realmente tenho — sussurrou o archigos. Então ele se levantou e aplaudiu na direção da campina. — Os cozinheiros terão alguns belos filés de cervo — disse Semini em voz alta — e haverá uma galhada nova para enfeitar o palácio. Nós devíamos descer e encontrar os bravos caçadores, a’hïrzg. O que a senhora diz?

Ele ofereceu o braço.

Ela se levantou e aceitou.

 

Karl ca’Vliomani

— ONDE VOCÊ ESTÁ INDO? — perguntou Varina para ele.

Karl passou a primeira noite após a morte de Ana na casa de Mika, mas apesar da boa vontade do homem e de sua esposa, Karl achou a casa deles — com os filhos e agora o primeiro neto sempre entrando e saindo — cheia demais de vida e energia. Ele voltou para o próprio apartamento na margem sul. Era Varina que passava lá todo dia, que atormentava os criados e geralmente garantia que Karl estivesse sendo alimentado e cuidado. Ela o deixava sozinho com sua tristeza; estava lá quando ele precisava conversar ou quando Karl simplesmente quisesse sentir a sensação de ter outra pessoa no cômodo. Varina parecia saber quando ele precisava de silêncio e permitia isso. Karl era grato por essa atitude.

Ele lembrou-se de quando mostrou para Ana, pela primeira vez, o que os numetodos conseguiam fazer, há muito tempo. Naquela noite, havia sido Varina, uma recém-chegada sem experiência ao grupo, que Ana tinha visto demonstrando um feitiço. Varina cresceu muito desde então; ela era a segunda em poder depois de Mika dentro da facção dos numetodos na cidade, e não havia ninguém que rivalizasse sua dedicação à pesquisa, nem sua habilidade com o Scáth Cumhacht. Karl nunca entendeu exatamente como ela permaneceu sozinha todos esses anos. Varina havia sido muito notável na juventude: cabelo da cor do trigo no outono; olhos grandes e expressivos da cor de carvalho antigo e envernizado; um sorriso e uma risada maravilhosos e encantadores que sempre faziam os outros sorrirem com ela. Varina ainda era atraente, mesmo agora, na meia idade, mesmo que nos últimos anos ela tenha parecido envelhecer rapidamente. No entanto... Varina parecia ter pegado toda a vitalidade e energia que possuía e colocado exclusivamente no aprendizado das complexidades do Scáth Cumhacht e do Segundo Mundo, para descobrir todas as maneiras de conter aquele poder. Mesmo entre os numetodos, ela raramente parecia falar por muito tempo com alguém além de Mika ou Karl. Até onde ele sabia, Varina não tinha outros amigos ou amantes fora do grupo. Ela era um enigma, até mesmo para os mais próximos.

Karl dava valor à presença de Varina agora, mesmo que não soubesse como expressar sua gratidão.

Ele remoía a morte de Ana há uma semana agora, remexeu na mente o ocorrido sem parar, como se fosse um adubo repugnante. Alguém a queria morta. Ana fora o alvo, o assassino esperou que ela fosse ao Alto Púlpito; certamente Karl tinha visto os outros ténis na missa subirem ao púlpito para colocar as leituras e o pergaminho com a Admoestação que a archigos pretendia ler, e não foram eles que acionaram a explosão.

Quanto mais Karl considerava essa situação, mais parecia haver uma única resposta. Uma resposta que ele queria verificar.

Varina estava apoiada na arcada da antessala de braços cruzados enquanto Karl encolhia os ombros em seu manto. Ela não repetiu a pergunta, apenas olhou para ele com ternura, como se estivesse preocupada.

— Eu tenho um compromisso — respondeu Karl. Ela concordou com a cabeça. Ainda em silêncio. Os olhos estavam arregalados e não piscavam. — Eu tenho perguntas a fazer.

Outro gesto com a cabeça. — Eu vou com você — disse Varina. Karl hesitou. — Não vou interferir — falou ela. — Se você vai aonde eu penso que vai, pode precisar de apoio. Estou certa?

— Pegue sua capa — disse Karl. Ela deu um breve sorriso, um relance de dentes brancos, e pegou a capa em um gancho na parede.


O embaixador da Coalizão Firenzciana, Andreas co’Görin, tinha um rosto tão fino e anguloso quanto o de um falcão. Quando o homem se levantou da cadeira, os olhos da cor de urze observaram Karl e Varina como se os dois fossem coelhos a serem capturados e devorados. O rosto aquilino era complementado pelo corpo esguio de um espadachim. Karl imaginava que o sujeito ficava mais à vontade de armadura do que na bashta respeitável e conservadora que usava.

Isso fez com que Karl pensasse se teria sucesso aqui.

— Embaixador ca’Vliomani, vajica ci’Pallo, sua visita é... inesperada — falou co’Görin. — O que posso fazer pelos senhores?

Karl olhou enfaticamente para o assistente que ocupava a mesa menor do outro lado do gabinete.

— Gerald, por que você não vai ver se acha aquela proposta sobre as novas regulamentações de fronteira? — disse co’Görin. O assistente, tão robusto e corpulento quanto co’Görin era magro, concordou com a cabeça e remexeu em alguns papéis ruidosamente por um momento antes de sair da sala.

Karl esperou até ouvir o clique da porta se fechando quando o homem saiu. — Eu passei os últimos dias pensando na morte da archigos Ana, embaixador — falou ele. As palavras soaram quase casuais, até mesmo para seus ouvidos. Varina baralhou os pés ao lado de Karl, irrequieta. — Sabe, por mais que eu tente encontrar motivos para alguém ter feito aquilo, não consigo pensar em ninguém que quisesse Ana morta, a não ser as pessoas que o senhor representa.

Varina ficou nitidamente aflita. Uma nuvem passou sobre os olhos de urze de co’Görin, que escureceram e ficaram verdes. Os músculos do rosto do homem retesaram-se, e ele fechou a mão direita como se procurasse pelo cabo de uma espada. — O senhor é bem curto e grosso, embaixador.

— Eu desisti da diplomacia por enquanto — respondeu Karl.

Co’Görin o olhou com desdém. — Certamente. Então serei curto e grosso também. Eu considero uma ofensa a sua acusação. Eu o perdoo por saber... — ele torceu o nariz e franziu os olhos — ... como o senhor era próximo da archigos de Nessântico, mas também espero por um pedido de desculpas imediato.

— Pela minha experiência, as esperanças geralmente viram decepção — disse Karl.

— Karl... — falou Varina com delicadeza. Ela tocou levemente o braço dele. — Talvez...

Varina parou de falar, como se soubesse que ele não escutava. A raiva o queimava por dentro. Karl queria apenas que co’Görin fizesse um gesto brusco ou o insultasse abertamente, qualquer coisa que servisse como desculpa para usar o Scáth Cumhacht que ardia em sua mente à espera da palavra de ativação. Mas co’Görin balançou a cabeça; não se sentou, pareceu relaxar atrás da mesa, tranquilo.

— Eu acho, embaixador ca’Vliomani, que o senhor descartou a possibilidade de que o assassino pode ter sido um elemento sem vínculos, ou talvez uma pessoa contratada por alguém com contas a acertar com a archigos, alguém dentro dos Domínios de Nessântico. Não há necessidade de atrelar uma conspiração ao fato. — Ele ergueu as sobrancelhas; o resto do corpo permaneceu imóvel. — A não ser, é claro, que o senhor tenha provas que gostaria de compartilhar comigo? Mas não, se tivesse isso, o senhor teria ido ao regente, não é? O comandante da Garde Kralji estaria aqui, não dois hereges numetodos. — Devagar, quase de maneira debochada, ele sentou-se outra vez. Seus dedos compridos brincaram com os pergaminhos espalhados sobre a superfície da mesa, e a expressão aquilina se voltou com um olhar de desdém para Karl. — Acho que terminamos por aqui, embaixador. Firenzcia não se envolve com hereges e jamais se envolverá. Estamos perdendo o tempo um do outro.

A dispensa atiçou o fogo que ardia dentro de Karl. — Não! — berrou ele. — Nós não terminamos! — Karl gesticulou e falou uma das palavras de ativação que havia preparado antes de vir. Um fogo rápido lambeu a papelada sobre a mesa do embaixador e consumiu os papéis no mesmo tempo que co’Görin levou para reagir. O homem deu um pulo para trás e saiu da cadeira. Um vento ligeiro veio em seguida soprando a papelada que passou por co’Görin e saiu pela janela, além de balançar a bashta do embaixador; isso só podia ter sido obra de Varina. — Aquele fogo podia muito bem ter sido direcionado para o senhor em vez dos documentos — disse Karl, que ouviu a porta ser escancarada atrás de si e ergueu uma mão preventivamente ao sentir Varina se virar para encarar a ameaça. — Eu não vim com apenas um feitiço, embaixador, e minha amiga é mais poderosa do que eu. Diga ao seu pessoal para ficar onde está, ou garanto que o senhor, pelo menos, não sairá vivo desta sala.

— Nem o senhor, se insistir com essa tolice — rosnou co’Görin, e Karl quase gargalhou.

— Isso pouco me importa a esta altura — disse Karl. As costas de Varina apoiadas nas costas dele. Karl sentiu que ela ergueu os braços para preparar um feitiço.

O embaixador acenou para as pessoas atrás de Karl, que ouviu uma espada ser embainhada e sentiu Varina abaixar os braços novamente. Co’Görin falou — Vou lhe dizer novamente, embaixador, o senhor está enganado se pensa que Firenzcia está envolvida na morte da archigos. Mate-me, não me mate; isso não vai mudar o fato.

— Eu não acredito nisso.

Co’Görin torceu o nariz. — Falta de crença é o principal problema com os numetodos, não é? O senhor quer que eu fique de luto pela sua archigos, embaixador? Não ficarei. Ela atraiu este destino ao acolher os numetodos e se recusar a reconhecer o archigos de Brezno como o verdadeiro líder da Fé. A violência era um resultado inevitável de suas ações, mas, até onde eu sei, não foi Firenzcia que fez isso. Essa é a verdade, e se o senhor não consegue acreditar em mim... — Ele deu de ombros. — Então faça o que tem que fazer. O senhor apenas provará que os numetodos são realmente os tolos perigosos que todo fiel de verdade sabe que eles são. Olhe para mim, embaixador. Olhe para mim — falou co’Görin com mais rispidez, e Karl encarou o embaixador com raiva. — O senhor enxerga uma mentira em meu rosto? Eu vou lhe dizer: quem matou a archigos não foi alguém que eu conheça ou tenha contratado. Essa é a verdade.

Karl sentiu o Scáth Cumhacht vibrar loucamente por dentro. Ele não queria outra coisa a não ser atacar esse tolo metido, ver a arrogância do sujeito desmoronar e virar um grito, fazer com que berrasse em agonia ao morrer. Mas também ouviu Ana. Karl sabia o que ela lhe diria e deixou a mão cair ao lado do corpo. Ouviu Varina suspirar de alívio.

As palavras de co’Görin não tranquilizaram Karl, mas ele começou a se perguntar se o embaixador talvez não tivesse dito a verdade segundo o que sabia. Karl também se lembrou de um tempo, há muitos anos, e de uma outra pessoa que era capaz de invocar o Scáth Cumhacht — embora ele não chamasse a energia dessa maneira, nem de Ilmodo.

— Se eu descobrir que o senhor está mentindo, embaixador — falou Karl —, não vou lhe dar a chance de pedir desculpas ou de sacar sua espada. Matarei o senhor onde quer que eu lhe encontre. Isso também é a verdade.

Dito isso, ele deu meia-volta, e Varina ficou ao seu lado. Havia três guardas bloqueando a porta, mas Karl empurrou os homens e saiu a passos largos para o ar fresco e a luz do sol.

— O que, em nome dos Seis Abismos Eternos, foi aquilo? — Varina estourou com Karl quando os dois estavam novamente do lado de fora, na Avi a’Parete. Ela agarrou a manga dele e o puxou para pará-lo. — Karl! Eu estou falando sério. O que você achou que estava fazendo?

— O que eu precisava fazer — disparou ele com mais rispidez do que pretendia, ainda vermelho de raiva por co’Görin, pela atitude do homem e pelas próprias dúvidas que o remoíam. Toda essa raiva estava contida na resposta. — Se você não queria estar ali, não precisava vir.

— Ana está morta, Karl. Você não pode trazê-la de volta. Acusar pessoas sem provas só vai fazer você morrer também.

— Ana merece justiça.

— Sim, merece — disparou Varina em resposta. — Deixe para aqueles que têm essa função fazer isso por ela. Vocês não eram amantes. Ana não era a matarh de seus filhos.

A fúria ferveu dentro dele. Karl ergueu a mão, o calor frio do Scáth Cumhacht aumentou, e Varina espalmou as mãos. — Faça isso! — disparou outra vez. — Vamos! Isso vai fazer você se sentir melhor? Vai mudar alguma coisa?

Karl pestanejou; em volta dos dois, as pessoas na rua olhavam fixamente. Ele abaixou as mãos. — Eu... eu sinto muito, Varina.

Ela olhou com raiva para Karl e franziu os lábios. — Ela era sua amiga, e eu compreendo isso. Ela era minha amiga também. Mas Ana também cegou você, Karl. Você jamais foi capaz de ver o que está bem à sua frente.

Dito isso, ela deu meia-volta e deixou Karl, seguiu quase correndo pela Avi. — Varina — chamou ele, mas ela enfiou-se na multidão e desapareceu como se jamais tivesse estado ali. Karl ficou parado na rua, as pessoas passando à sua volta. Karl ouviu as trompas do Templo da Archigos, o templo de Ana, começarem a soar para conclamar a Segunda Chamada, e o som pareceu uma risada debochada.

 

Sergei ca’Rudka

— VOCÊ não confia em mim, Karl?

Sergei observou a onda de emoções que percorreu a face do embaixador. O sujeito tinha um rosto impressionantemente franco para quem era diplomata, um defeito que ele possuía desde que Sergei o conheceu. Tudo que Karl pensava ficava nítido para um observador que soubesse ler expressões. Talvez fosse apenas o estilo Paeti; o regente tinha conhecido algumas pessoas da Ilha ao longo de décadas, e a maioria costumava não apenas falar com muita franqueza o que pensava, mas também fazia pouco esforço para esconder opiniões e emoções sinceras. Talvez fosse isso o que tornava a Ilha reconhecida por seus grandes poetas e bardos, pelas canções e pelo temperamento e paixão intensos de seu povo, mas que também os tornava vulneráveis, na avaliação de Sergei.

O estilo deles não era o de Sergei.

Karl pestanejou diante da brutalidade da pergunta, que Sergei disparou antes mesmo que o criado tivesse fechado a porta. O embaixador estava parado na entrada do gabinete do regente, hesitante, quando a porta foi fechada delicadamente atrás dele. — Claro que confio, Sergei — gaguejou um pouco Karl, as palavras saíram carregadas pelo sotaque cantado de Paeti. — Eu não sei do que você está... — E então — Ah.

— Sim. Ah. — Sergei respirou fundo e coçou o nariz. — Eu acabei de receber uma visita bastante desagradável do embaixador co’Görin, embora francamente qualquer visita da parte dele costume ser desagradável. Ainda assim, o sujeito parece achar que você é um homem perigoso que deveria morar na Bastida em vez de andar pelas ruas. Na verdade, ele disse: “em Brezno, o homem seria estripado e pendurado em público por sua impertinência, quanto mais por sua dedicação à heresia.” Eu não acho realmente que ele goste de você. — Sergei ficou de pé, foi até Karl e deu um tapa em suas costas.

Co’Görin realmente reclamara sobre Karl, mas o embaixador firenzciano havia comparecido a pedido de Sergei, e ido embora com uma mensagem selada que o regente esperava que já estivesse na bolsa de um mensageiro disparando pela Avi a’Firenzcia a caminho de Brezno. Mas nada disso era algo que ele contaria para ca’Vliomani. — Venha, sente-se comigo, velho amigo. Vou mandar Rodger trazer um chá para nós. Eu ainda não tomei meu café da manhã.

Pouco tempo depois, eles estavam sentados em uma sacada com vista para os jardins. Jardineiros rondavam o terreno e arrancavam qualquer erva daninha que metia sua cara comum no meio da realeza das flores. O chá e os biscoitos permaneciam intocados por qualquer um dos dois.

— Karl, você tem que deixar esse assunto comigo.

— Eu não posso.

— Você deve. Meu pessoal está procurando intensamente a pessoa ou pessoas que fizeram isso com Ana. Estou em cima do comandante co’Falla nessa questão como se ele fosse um cavalo. Não vou deixar o assunto quieto, não vou deixar morrer. Eu lhe prometo. Eu quero justiça para Ana tanto quanto você, mas você tem que me deixar fazer isso. Não você. Você precisa ficar fora do caminho da investigação.

Karl então encarou Sergei, e o regente viu o desespero pulsar nas bolsas embaixo dos olhos do homem e puxar os cantos da boca. — Sergei, estou convencido de que só pode ter sido um plano firenzciano. Com o hïrzg Jan morto e Fynn no trono, só faz sentido que ele, e talvez o archigos Semini de Brezno... — Karl umedeceu os lábios. — Todos eles têm uma razão para odiar Ana.

Sergei interrompeu Karl com a mão erguida. — Razões, sim, mas você não tem provas. Nem eu. Não ainda.

— Quem mais iria querer Ana morta? Diga para mim. Existe alguém nos Domínios, talvez um a’téni invejoso que queria ser archigos? Ou alguém das províncias? Nós suspeitamos de mais alguém?

— Não — admitiu Sergei. — Eu mesmo suspeito de Firenzcia, mas precisamos saber antes de agir, Karl. — A mentira, como sempre, vinha fácil à boca. Sergei estava acostumado a mentiras. Uma mentira não seria ouvida em sua voz ou vista no espasmo de um músculo.

Às vezes o regente pensava que era composto inteiramente por mentiras e falsidades, que se alguém tirasse essas coisas de Sergei, ele não seria nada além de um fantasma.

— Saber? — repetiu Karl. — Da mesma forma que você sabia quando me atirou na Bastida anos atrás? Da mesma forma que sabia que eu e os numetodos devíamos ter algo a ver com a morte da kraljica Marguerite?

Sergei esfregou o nariz de prata ao fazer uma careta diante da memória. — Eu estava cumprindo ordens do kraljiki Justi na época. Você sabe disso. E note que você ainda está vivo, enquanto Justi preferiria que estivesse morto. Reconheça o meu mérito quanto a isso. Karl, o que está em jogo aqui é importante demais para palpites ou para que pessoas esquentadas invadam o gabinete do embaixador da Coalizão para ameaçá-lo. Se seu palpite estiver correto e o hïrzg Fynn for responsável por esse ato, a única coisa que você conseguiu foi alertá-lo de nossas suspeitas. Você e Varina realmente usaram feitiços numetodos? — Ele estalou alto com a língua e balançou a cabeça. — Estou surpreso que você não o tenha matado logo de saída.

— Eu queria — disse Karl. Por um momento, as rugas em volta da boca foram repuxadas, e os olhos brilharam sob a luz do sol. — Mas eu pensei em Ana... — O brilho nos olhos aumentou. Ele limpou-os com a manga da bashta.

Por um instante, Sergei genuinamente sentiu pena e compaixão pelo homem. Ele respeitava a archigos Ana porque não havia outra escolha. Ana jamais deixou alguém chegar muito próximo a ela, mesmo aqueles — como Karl — que podiam ter desejado tal coisa. Sergei sabia disso porque observava Karl ao longo dos anos, observava-o porque era seu dever saber as preferências e interesses das pessoas de destaque nos Domínios. Sergei sabia que ele usava os serviços das mais caras e discretas grandes horizontales da cidade, e — o que era interessante para o regente — cada uma dessas mulheres que Karl preferia tinha uma semelhança física com a archigos, e mudava ao longo das décadas, assim como a própria Ana. Foi preciso pouca intuição para adivinhar o motivo dessa preferência.

Karl... Sergei gostava do homem, tanto quanto ele jamais se permitiu gostar de alguém. Ele acenou com a cabeça para o numetodo. — Estou contente que o fantasma de Ana conteve sua mão, do contrário, eu poderia não ter outra escolha. Karl, você tem que deixar essa questão de lado. Prometa para mim. Deixe meus subordinados investigarem. Contarei qualquer coisa que eu descobrir. — Essa era outra mentira, obviamente. Sergei já sabia detalhes do assassinato que não tinha a menor intenção de compartilhar com Karl; tinha suspeitas em mente que ele não falaria.

Na escuridão da Bastida, ele mandou que os gardai o deixassem a sós com um homem, um empregado do comerciante Gairdi, que regularmente viajava entre Nessântico e Brezno. Ele ouviu o choramingo delicioso quando desenrolou o pedaço de lona com as terríveis ferramentas amarradas dentro dela e sorriu para o prisioneiro. — Diga-me a verdade — falou Sergei — e talvez não precisemos de nada disso aqui. — Aquilo também fora uma mentira, mas o homem animou-se com a oportunidade e balbuciou em uma voz alta e rápida. Os gritos, quando vieram depois, foram maravilhosos.

Havia alguns vícios de Sergei que ficavam mais fortes com a idade, não mais fracos. — Prometa para mim — repetiu o regente.

Karl hesitou. O olhar afastou-se de Sergei para pousar no jardim abaixo, e o regente acompanhou o gesto. Lá, um jardineiro enfiou o dedo em um solo tão úmido e rico que parecia negro e arrancou outra erva daninha. O funcionário jogou o emaranhado de folhas e raízes na bolsa de lona pendurada no ombro. Sergei acenou com a cabeça: o trabalho necessário para manter o jardim bonito também exigia morte.

— Eu prometo, Sergei. — O regente, preso na imagem, olhou de volta para Karl e viu que o embaixador sorria palidamente para ele.

Ainda assim... havia alguma coisa que Karl não estava dizendo, alguma informação que estava escondendo. Sergei pôde perceber. O regente concordou com a cabeça, como se acreditasse nele, e decidiu que faria com que co’Falla colocasse alguém para vigiar Karl, com a intenção de descobrir o que o homem sabia, bem como de evitar que o embaixador de Paeti cometesse outro erro crítico — especialmente um erro que pudesse interferir nas próprias intenções de Sergei.

Ana estava morta. Quando ela era viva e uma presença firme e forte que guiava a fé concénziana, Sergei não esteve disposto a tomar o rumo que considerava estar tomando no momento. Porém, com sua morte, com o hesitante e bem mais fraco Kenne eleito para o trono de archigos, com o kraljiki Audric tão doente, frágil e jovem...

Tudo mudou.

— Bom — falou Sergei, que devolveu com afeto o sorriso de Karl. — Tem sido difícil para todos nós, mas especialmente para você, meu bom amigo. Agora, vamos tomar este chá antes que esfrie e provar os biscoitos. Aposto que você não come há dias, pela sua cara. Varina e Mika não estão cuidando de você...?


Naquela noite, uma virada da ampulheta após as trompas anunciarem a Terceira Chamada, Sergei sentou-se com o novo archigos Kenne na sacada de observação do templo na margem sul, para assistir à Cerimônia da Luz, que ocorria diariamente. Há dois séculos ou mais, os ténis da Fé saíam do templo à noite e — com a dádiva do Ilmodo — acendiam as lâmpadas que expulsavam a noite da cidade. Por toda sua vida, Sergei testemunhou o ritual diário. Douradas e dentro de globos de cristal, as lâmpadas mágicas eram colocadas em intervalos de cinco passos ao longo da grande Avi a’Parete, a larga avenida circular que cercava os trechos mais antigos da cidade. Até tarde da noite, as lâmpadas bradavam seu desafio para a lua e as estrelas e proclamavam a grandeza de Nessântico.

Para Sergei, esta era a cerimônia que definia Nessântico para a população. Essa era a cerimônia que proclamava o apoio de Cénzi aos kralji e à fé concénziana, uma cerimônia que ocorria sem alterações há gerações — até a época da archigos Ana. Agora o significado era menor, havia pessoas pelas ruas que podiam produzir luz sozinhas: sem invocar Cénzi, e sem o treinamento de um téni. A aceitação de Ana à heresia dos numetodos diminuiu a Fé, na opinião de Sergei, e forçou a mudança de visão das pessoas.

Mudança. Sergei não gostava de mudança. Mudança significava instabilidade, e instabilidade significava conflito.

Mudança significava que tudo tinha que ser reavaliado. Ana... Sergei nunca fora especialmente íntimo da mulher, porém, no papel de comandante da Garde Civile, e depois como regente, ele certamente tinha trabalhado em conjunto com ela. Independentemente dos defeitos pessoais, Ana tinha sido forte, e Sergei admirava sua força. Foi somente sua presença no trono de archigos que impediu que o reinado de Justi como kraljiki fosse uma catástrofe completa. Só por isso, ele sempre seria grato à memória de Ana.

Mas agora Kenne era o archigos. Sergei gostava genuinamente de Kenne como pessoa. Gostava da companhia do homem e de sua amizade. Contudo, Kenne não seria o archigos que Ana tinha sido. Não podia ser porque não tinha a coragem interior. Sergei sabia por que o Colégio A’téni o escolhera — porque nenhum dos outros a’ténis queria o título, a responsabilidade ou os conflitos que vinham com o trono e o cajado de archigos, e eles temiam o cargo especialmente agora. Kenne não era inimigo de ninguém e, principalmente, Kenne era velho. Era frágil. Ele não seguraria o cajado de Cénzi por muitos anos... e talvez quando ele morresse, os tempos fossem menos turbulentos.

O Colégio agiu em nome da autopreservação e, portanto, entregou a Fé a um archigos fraco.

Sergei perguntou-se se algum dia Kenne o perdoaria pelo que ele pretendia fazer.

Os dois homens ficaram parados enquanto os ténis-luminosos saíam em uma longa procissão pelas grandes portas principais bem abaixo deles. Sergei ouviu a melodia sonora do coro que terminava os cultos da noite na capela principal do templo. O som ecoou como uma lamúria pela praça quando as portas se abriram. O sol havia acabado de se pôr, embora o céu nublado do oeste ainda fosse um turbilhão revolto de tons de vermelho e laranja. Sob aquela luz, os ténis deram meia-volta e fizeram o sinal de Cénzi para o archigos, e Kenne abençoou-os com o mesmo gesto.

Os e’ténis — todos pareciam jovem demais aos olhos de Sergei, todos solenes com o fardo do dever — curvaram-se simultaneamente para o archigos, os robes verdes tremularam como um campo de grama ao vento, antes de darem meia-volta novamente para cruzar o enorme pátio diante do templo. A multidão de sempre estava reunida para assistir à cerimônia, embora fosse menor nos últimos anos do que fora na época da kraljica Marguerite, quando os Domínios eram um só e os visitantes afluíam para Nessântico de todos os pontos da bússola. Nos últimos anos, houve muito menos visitantes do leste e do sul, de Firenzcia ou das Magyarias, de Sesemora ou Miscoli. Com a guerra nos Hellins do outro lado do Strettosei, muitos jovens foram embora e as famílias viajavam menos. Embora o pátio do Velho Templo estivesse repleto de espectadores, a Garde Kralji não tinha dificuldades em abrir espaço para os ténis-luminosos; Sergei conseguia enxergar as pedras de pavimentação entre eles. Os ténis chegaram à Avi e dividiram-se em duas fileiras, espalharam-se à leste e à oeste pela avenida e seguiram para as lâmpadas mais próximas, dispostas de cada lado do portão de entrada do Templo do Archigos.

Os primeiros ténis-luminosos alcançaram as lâmpadas. Eles se postaram debaixo do globo reluzente de vidro trabalhado e ergueram os olhos para o céu do anoitecer como se vissem que Cénzi os observava. Os ténis falaram uma única palavra e gesticularam do peito para a lâmpada, os punhos fechados abrindo-se em mãos espalmadas.

As lâmpadas irromperam em uma luz amarela brilhante.

Sergei aplaudiu com Kenne. Mesmo assim...

Aquela única palavra que ativou o feitiço: aquilo era uma mudança também, uma concessão aos numetodos, que conseguiam lançar rapidamente seus feitiços. Era outra mudança provocada por Ana. — Às vezes eu sinto saudade dos velhos costumes, archigos — falou Sergei. — Os cânticos demorados, a sequência de gestos, a maneira como o esforço cansava visivelmente seus ténis... O jeito numetodo de usar o Ilmodo faz tudo parecer muito fácil. Havia... — ele suspirou quando os dois homens se sentaram novamente — ...um mistério envolvido naquela época, uma noção de trabalho e amor ao ritual que desapareceu. Não tenho certeza se Ana tomou a decisão certa quando permitiu que os ténis começassem a usar os métodos dos numetodos para iluminar nossas ruas.

Ele viu Kenne concordar com a cabeça. — Eu entendo — respondeu o archigos. — Parte de mim concorda com você, Sergei; havia uma emoção nos velhos rituais que sumiu agora. Porém, os numetodos provaram seu valor contra o hïrzg Jan, e Ana dificilmente poderia abandoná-los depois, não é? — Sergei ouviu Kenne dar uma risadinha irônica. — Nós somos velhos, Sergei. Queremos que as coisas sejam como eram na época da nossa juventude. Quando o mundo era certo e Marguerite ficaria sentada no Trono do Sol para sempre.

Sim. Eu quero isso mais do que você acreditaria. Sergei coçou o lado do nariz onde a cola irritava a pele; alguns pedacinhos da resina saíram sob a unha. — Não há nada de errado com isso. As coisas eram boas naquela época, com a kraljica Marguerite e Dhosti vestindo o robe de archigos. Não houve momento melhor para os Domínios ou para a Fé. Nós vivíamos em uma época perfeita e nem sabíamos.

— Sim, vivíamos. Eu concordo. — Kenne suspirou com a memória.

As portas douradas do templo atrás deles foram abertas, e um u’téni mais velho surgiu, Sergei o reconheceu: Petros co’Magnaio, o assistente de Kenne. O homem vivia com Kenne desde a época do archigos Dhosti. Kenne acenou com a cabeça e sorriu para co’Magnaio quando ele pousou uma travessa com frutas e chá entre os dois. Sergei nunca ficou incomodado por Kenne sofrer do que era eufemisticamente chamado de “doença dos gardai”. Havia alguma verdade, afinal, no termo: quando passavam anos em uma campanha, os soldados às vezes encontravam satisfação onde fosse possível, com aqueles que estavam em volta. — O tempo ficará frio com o pôr do sol — disse co’Magnaio. — Pensei que fossem gostar de chá quente.

A mão de Kenne pairou sobre a de co’Magnaio, mas não exatamente a tocou; Sergei sabia que a situação seria diferente se ele não estivesse aqui. — Obrigado, Petros. Não vamos demorar muito aqui, mas agradeço.

Co’Magnaio curvou-se e fez o sinal de Cénzi para eles. — Vou cuidar para que os senhores não sejam incomodados enquanto conversam. Archigos, regente... — O assistente deixou os dois e fechou as portas da sacada ao sair.

— Ele é um bom homem — falou Sergei. — Você deu sorte com ele.

Kenne concordou com a cabeça e olhou afetuosamente para as portas por onde Petros passou. — Falando sobre aqueles que se sentaram no Trono do Sol, Sergei, sinto muito que o kraljiki não tenha podido se juntar a nós na noite de hoje. Como está Audric?

Sergei deu de ombros. Lá embaixo, os ténis-luminosos saíram do templo e seguiram para as lâmpadas mais afastadas da Avi e foram acompanhados pela multidão murmurante. Os pombos desceram dos domos do templo e dos telhados dos prédios do complexo para ciscar nas pedras que ficaram vagas na praça, atrás de restos. — Ele não está bem. — O regente olhou para trás; as portas permaneciam fechadas, mas, ainda assim, Sergei abaixou a voz. — Você teve sorte em achar outro téni com dons de cura?

Kenne suspirou. — Esses sempre foram os dons mais raros, e uma vez que a Divolonté condena seu uso em especial... bem, tem sido difícil, mas eu tenho esperanças. Petros está realizando uma apuração criteriosa. Encontraremos alguém. — O archigos fez uma pausa, olhou para as frutas no prato entre eles e escolheu um pedaço. Kenne tinha mãos compridas e delicadas, mas a pele em volta dos ossos era fina e enrugada, e Sergei notou o tremor quando o archigos levou uma casca de fruta doce aos lábios e a chupou. Não podemos permitir fraqueza tanto no kraljiki quanto no archigos, não se quisermos sobreviver.

— Sergei, temos que considerar o que pode acontecer se o menino morrer — continuou Kenne, quase como se tivesse escutado os pensamentos de Sergei. — Os filhos de Justi... — Ele franziu a testa e devolveu a casca de fruta ao prato. — Amarga demais. Os filhos de Justi nunca foram conhecidos pela longevidade.

Os ténis seguiram pela Avi e sumiram de vista. O som do coro terminou em um acorde etéreo e persistente. — Espero que Cénzi não nos faça encarar essa escolha — falou Sergei com cuidado. — Mas é o que todo mundo está se perguntando, não é?

— Existem os gêmeos ca’Ludovici, Sigourney ou Donatien. Eles são, o quê...? — Kenne franziu os lábios finos em concentração — ...primos em segundo grau de Audric e primos diretos de Justi, pois Marguerite era tantzia-bisamatarh deles. Já são maiores de idade, o que é bom. Donatien, em especial, destacou-se na Guerra dos Hellins, mesmo que as coisas não andem bem ultimamente, e ele é casado com uma ca’Sibelli, uma tradicional família de Nessântico; nós poderíamos chamá-lo de volta dos Hellins. Sigourney, entretanto, pode ser a melhor escolha. Ela ainda carrega o sobrenome ca’Ludovici, logicamente: isto certamente tem um peso incrível aqui, e Sigourney fez sua presença ser sentida no Conselho dos Ca’. Os dois têm direito ao trono mais direto em termos de linhagem, creio eu, e tenho certeza de que o Conselho dos Ca’ apoiaria qualquer uma das duas reivindicações ao Trono do Sol.

Sergei não ficou surpreso ao ver que o pensamento do archigos corria tão paralelo ao seu; ele suspeitava que este fosse o caso por toda parte dos Domínios e também da Coalizão. O regente fez uma pausa e perguntou-se se deveria falar mais. Seria interessante, talvez, ver como Kenne reagiria. — Allesandra ca’Vörl pode alegar ter a mesma linhagem e o mesmo relacionamento através de sua matarh — respondeu Sergei, como se divagasse à toa. — Por falar nisso, o novo hïrzg Fynn pode alegar o mesmo. Eles também são primos em segundo grau de Marguerite, com o mesmo direito ao trono que Sigourney ou Donatien.

Sob a luz intensa das lâmpadas mágicas, as sobrancelhas de Kenne escalaram os sulcos em sua testa. — Você não está sugerindo seriamente...

O tom volúvel era a reação que o regente esperava, e Sergei sorriu rapidamente para dar a impressão de que as palavras eram uma simples brincadeira. — Longe disso. Apenas apontei como Allesandra poderia reagir. Certamente Sigourney ou Donatien seriam boas escolhas, como você sugere, embora talvez nós precisemos que Donatien permaneça como comandante nos Hellins. No entanto, Audric não está morto, e eu preferiria que ele continuasse assim. Porém, se o pior acontecer... Você está certo; nós devemos considerar a sucessão. Os Domínios já estão partidos, graças à incompetência de Justi, e não podemos permitir que o que sobrou se rompa ainda mais. — O regente fez uma pausa. Ele cerrou os olhos e coçou o queixo propositalmente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Mas... talvez os Domínios e a Coalizão possam chegar a um meio-termo se o pior acontecer, Kenne. Um ca’Vörl tomaria o Trono do Sol, mas a fé concénziana seria regida por você, não por Semini ca’Cellibrecca. — Pronto. Vejamos como ele considera a oferta.

— Você aceitaria os assassinos de Ana sentados no Trono do Sol? — O horror na voz do homem era palpável.

Sergei bufou com desdém, um assobio alto soou pelas narinas de metal do nariz falso. — Você está fazendo a mesma acusação que o embaixador ca’Vliomani. Até o presente momento, não tem fundamento.

— Quem mais teria feito isso com Ana, Sergei? Sabemos que não foram os numetodos, pois ela era aliada deles.

Sergei não insistiu mais na questão. Ele já sabia o que precisava. — Isso é algo que meu pessoal está tentando determinar. E vão conseguir. — O fogo do pôr do sol não ardia mais no céu do oeste. As estrelas lutavam contra as chamas frias das lâmpadas mágicas, e o frio da noite tomava conta da cidade. Sergei sentiu um arrepio e levantou-se da cadeira. As juntas do joelho estalaram e protestaram com o movimento; ele gemeu com o esforço. O regente ainda sentia a dor nos músculos e os hematomas da ocasião em que se jogou sobre Audric no templo.

Velhos, realmente...

Petros devia estar vigiando (e com certeza escutando também) pelas frestas das portas do templo; assim que Sergei se levantou, elas foram abertas e um atendente e’téni correu até ele com seu sobretudo. O regente viu Petros parado na penumbra do corredor atrás das portas. — Eu tenho que verificar como Audric está, archigos — disse Sergei ao se ajeitar nas dobras de lã. — Se você encontrar alguém com os dons que discutimos, por favor, mande esta pessoa para o palácio imediatamente.

— Eu mesmo passarei lá em mais ou menos uma virada da ampulheta — falou Kenne. — Petros já deve ter aprontado minha sopa neste momento, mas passarei depois, para ver o que posso fazer.

— Obrigado, archigos. Eu talvez veja você, então.

Ao sair do templo, Sergei perguntou-se se sua mensagem já chegara a Brezno e que recepção teria recebido.

 

Allesandra ca’Vörl

— A FLECHADA DO SEU FILHO foi tão boa quanto uma das minhas — declarou Fynn.

Allesandra duvidava disso. Jan podia não ter o volume e o poder da massa muscular de Fynn. Podia não ser capaz de manejar o peso do aço temperado que alguém como Fynn podia com facilidade fazer, mas o menino cavalgava como ninguém e tinha uma mira com flechas que pouquíssimos poderiam igualar. Allesandra tinha certeza de que nem Fynn, nem outra pessoa qualquer poderia ter acertado, quanto mais derrubado, o cervo montado nas costas de um cavalo a galope.

Porém, pareceu simplesmente melhor apenas aquiescer com a cabeça, dar um falso sorriso para Fynn e concordar. Era a atitude mais segura, mas concordar com a falsidade machucava, pois o orgulho pelo filho fazia com que ela quisesse discordar. Allesandra guardou o sentimento, juntamente com outras mágoas e insultos que Fynn e seu vatarh deram a ela ao longo dos anos.

— Foi sorte eu ter estado lá para dar a última flechada, ou o cervo teria escapado.

Allesandra sorriu novamente, embora soubesse que não tinha sido sorte ou destino, apenas a demonstração de que Jan sabia que não deveria eclipsar a presença do hïrzg. Um gesto político, tão habilidoso quanto qualquer um que ela pudesse ter feito.

Os dois andavam pela sacada leste do Palácio da Encosta do Cervo — tão reservado quanto qualquer um podia ser dentro da propriedade. Os gardai estavam em rígida posição de sentido no ponto onde a sacada fazia uma curva do norte para o sul; era evidente que eles evitavam o hïrzg e a a’hïrzg de maneira impassível enquanto olhavam para fora. Das janelas abertas para entrar a brisa da noite, Allesandra e Fynn ouviam os murmúrios dos convidados na mesa de onde acabaram de sair. Ela conseguiu distinguir a voz de Jan quando ele riu de algo que Semini disse.

Allesandra olhou para leste, na direção da bruma da noite que subia como uma maré lenta que vinha dos vales para as encostas íngremes onde o palácio estava instalado. O topo das sempre-vivas embaixo deles estava envolvido por filamentos de nuvens brancas, embora os picos sem árvores e assolados pelo vento permanecessem banhados pelo sol, que reluzia nos penhascos de granito e nos bancos de neve presos às rochas. Em algum lugar escondido na bruma lá embaixo, uma cachoeira borbulhava e cantava.

— É realmente bonito aqui — disse Allesandra. — Eu nunca me dei conta quando estive aqui quando era menina. O vavatarh Karin escolheu um lugar perfeito: deslumbrante e perfeitamente defensável. Nenhum exército jamais conseguiria tomar a Encosta do Cervo se o local fosse bem defendido.

Fynn concordou com a cabeça, embora não parecesse estar olhando para a paisagem. Em vez disso, ele remexia o punho brocado da manga. — Eu pedi que andasse comigo para que pudéssemos conversar sozinhos, irmã.

— Imaginei que fosse isso. Nós, ca’Vörls, raramente fazemos alguma coisa sem motivos ocultos, não é? — falou Allesandra, que deu um rápido sorriso. — O que você queria me dizer, irmãozinho?

Ele sorriu, brevemente, ao ouvir isso, e o movimento contorceu a larga cicatriz na bochecha. — Você nunca me conheceu quando eu era pequeno.

— Houve uma boa razão para isso. — Sim, aquela mágoa estava bem no âmago da montanha interior, a semente de onde tudo brotou...

— Ou uma má razão. Eu não entendi na época, Allesandra, por que o vatarh deixou você em Nessântico por tanto tempo. Depois que ele finalmente me contou a seu respeito, eu sempre me perguntei por que o vatarh deixou minha irmã mofar em outro país, que ele obviamente odiava tanto.

— Você entende agora? — perguntou ela, e continuou antes que Fynn pudesse responder. — Porque eu ainda não entendo. Sempre esperei que o vatarh se desculpasse ou explicasse, mas ele nunca fez isso. E agora...

— Eu não quero ser seu inimigo, Allesandra.

— Nós somos inimigos, Fynn?

— É o que pergunto a você. Eu gostaria de saber.

Allesandra esperou antes de responder. O parapeito de mármore da sacada sob sua mão estava molhado, o orvalho lustrou os torvelinhos azul-claros na pedra leitosa. — Você acha que, se nossas posições fossem invertidas, e eu tivesse sido nomeada hïrzgin pelo vatarh, então você me consideraria sua inimiga? — perguntou ela com cautela.

Fynn fez uma careta e abanou o ar fresco como se estivesse espantando um inseto irritante. — Tantas palavras... — Ele suspirou alto, e a irmã ouviu a irritação no gesto. — Você faz discursos que entram em meus ouvidos e distorcem o significado das minhas próprias palavras, Allesandra. Eu nunca fui capaz de duelar com palavras e discursos; esta não é uma das minhas habilidades. Também não era uma habilidade do vatarh. Ele sempre dizia exatamente o que pensava: nem menos, nem mais, e o que não queria que alguém soubesse, ele não dizia de maneira alguma. Eu fiz uma pergunta bem simples, Allesandra: você é minha inimiga? Por favor, faça a gentileza de dar uma resposta simples, sem enfeites.

— Não — respondeu ela com firmeza, depois balançou a cabeça. — Fynn, apenas um idiota responderia com outra coisa que não “não, nós não somos inimigos”. Você também sabe disso, apesar dos protestos. Você pode ser muitas coisas, mas não é tão simples assim, e eu não sou tão tola a ponto de cair em uma armadilha tão óbvia. Qual é a verdadeira pergunta que você está escondendo?

Fynn bufou com irritação e bateu com a mão no parapeito. Allesandra pôde sentir o impacto da mão, que fez tremer o parapeito. — Existem... existem pessoas... — Ele parou e respirou fundo, bem alto. Quando soltou o ar, Allesandra viu a condensação diante do rosto de Fynn. Ele tocou a coroa dourada e lisa que usava na cabeça. — O vatarh me disse antes de morrer que havia rumores entre os chevarittai e os ténis mais graduados da fé concénziana. Alguns deles eram contra minha nomeação como o a’hïrzg ou diziam que eu era... estúpido demais. — Ele cuspiu a palavra como se tivesse um gosto desagradável na língua. — Alguns deles queriam que você tivesse aquele título ou queriam outra pessoa completamente diferente para assumir a coroa dos hïrzgai.

— O vatarh disse para você quem espalhava esses rumores? De onde eles vinham? — indagou ela. Allesandra tinha que fazer a pergunta. Ela tremeu um pouco e esperou que Fynn não tivesse notado. — O vatarh contou quem disse isso?

No entanto, Fynn apenas balançou a cabeça. — Não. Nenhum nome. Apenas... que havia pessoas que seriam contra mim. Se eu encontrá-las... — O hïrzg respirou fundo pelo nariz e fez uma expressão séria. — Eu acabarei com elas. — Ele olhou diretamente para a irmã. — Eu não me importo com quem elas sejam e não me importo com quem eu tenha que machucar.

Allesandra virou a face para que ele não pudesse vê-la e olhou para a névoa que passava pelos pinheiros logo abaixo. Ótimo. Porque eu conheço algumas dessas pessoas, e elas me conhecem... — Você não pode punir rumores, Fynn. Não pode acorrentar e aprisionar fofocas da mesma forma que não pode capturar a bruma.

— Eu não acho que o vatarh tenha sido enganado pela bruma.

— Então, o que você quer de mim, irmãozinho?

Era isso que Fynn queria que ela perguntasse. Allesandra percebeu pela expressão dele, sob a luz que diminuía no céu. — No Besteigung — ele começou a falar, depois parou para colocar a mão em cima da mão da irmã, no parapeito. Não pareceu um gesto afetuoso. — Você é aquela para quem todos olham. Você é aquela que poderia ter sido hïrzgin se o vatarh não mudasse de ideia. Os ca’ e co’ ainda gostam de você, e muitos acham que o vatarh agiu mal a seu respeito. Os rumores sempre giram em torno de você, Allesandra. Você. Eu quero parar com os rumores; quero que não haja razão alguma para eles existirem. Então... no Besteigung, eu quero que você, e Pauli e Jan também, façam um voto formal de lealdade ao trono. Em público, para que todos ouçam vocês dizerem as palavras.

Elas seriam apenas palavras, Allesandra quis dizer para o irmão, com tanto significado quanto as que eu disse agora “não, Fynn, não sou sua inimiga”. Palavras e votos não significam nada: para saber isso, basta olhar para a história... Mas ela sorriu gentilmente para o irmão e deu um tapinha na mão dele. Talvez ele realmente fosse simples assim, tão inocente? — Claro que faremos isso — disse Allesandra. — Eu sei qual é o meu lugar. Sei onde eu devo estar e onde quero estar no futuro.

Fynn concordou com a cabeça e afastou a mão da irmã. — Ótimo — disse ele com um tom alto de alívio na voz. — Então nós esperamos por isso. — Nós... Ela ouviu o plural real na voz, completamente inconsciente, e franziu os lábios diante disso. — Eu gosto de seu filho — disse Fynn subitamente. — Ele é inteligente, como você, Allesandra. Eu odiaria achar que Jan esteve envolvido em algum plano contra mim, mas se ele esteve, ou se a família dele esteve... — O rosto ficou contraído novamente. — O ar está frio e úmido aqui fora, Allesandra. Eu vou entrar. — Fynn deixou a irmã e voltou para o calor do salão comunal do palácio. Allesandra ficou ao lado do parapeito um instante mais antes de segui-lo. Observando até que as brumas estivessem quase no mesmo nível que ela e o mundo lá embaixo tivesse desaparecido na penumbra e nas nuvens.

Allesandra pensou em ser hïrzgin e percebeu que o Grande Trono de Brezno jamais a satisfaria, mesmo que tivesse sido dela. Era uma conclusão difícil, mas ela soube agora que foi em Nessântico que tinha sido mais feliz, que tinha se sentido mais em casa.

— Eu sei qual é o meu lugar, irmão — sussurrou Allesandra para o silêncio da bruma. — Eu sei. E será meu.

 

Nico Morel

NICO OUVIU TALIS FALAR no outro cômodo, embora a matarh tenha ido à praça para comprar pão.

A matarh deu um beijo e mandou Nico tirar uma soneca, disse que voltaria antes do jantar. Mas ele não conseguiu dormir, não com o barulho de gente na rua bem do lado de fora das persianas da janela, nem com o sol que penetrava pelas frestas entre as tábuas. De qualquer maneira, Nico estava velho demais para sonecas. Aquilo era coisa de criança, e ele estava se tornando um homenzinho. A matarh também disse isso para ele.

Nico jogou os cobertores para o lado e cruzou o quarto de mansinho. Inclinou o corpo para frente, o suficiente para enxergar pela borda da porta arranhada e empenada que nunca fechava direito — fez questão de não tocá-la, pois sabia que as dobradiças dariam um alarme enferrujado. Através da fenda entre a porta e a ombreira, ele conseguiu ver Talis. Ele estava debruçado sobre a mesa que a matarh usava para preparar as refeições. Havia uma tigela rasa sobre a mesa, e Nico franziu os olhos em um esforço para ver melhor: animais entalhados dançavam pela borda, e a tigela tinha o mesmo tom castigado pelo clima da estátua de bronze de Henri IV, na praça do Velho Distrito. A matarh não tinha uma tigela de metal, pelo menos nenhuma que Nico tivesse percebido; os animais entalhados também eram estranhos: um pássaro com a cabeça de uma cobra; um lagarto escamoso com um focinho comprido cheio de dentes arreganhados. Talis despejou água do jarro da matarh dentro da tigela, depois desamarrou uma bolsinha de couro do cinto e sacudiu um pó avermelhado e fino na palma da mão. Ele polvilhou o pó na água como se estivesse salgando comida. Passou a mão sobre a tigela como se acalmasse alguma coisa, depois disse palavras na língua estranha que às vezes falava quando sonhava à noite, aninhado com a matarh de Nico na cama.

Uma luz pareceu brilhar dentro da tigela e iluminou o rosto de Talis com um tom pálido de amarelo esverdeado. Ele olhou fixamente o interior da tigela brilhante, de boca aberta, e a cabeça foi se aproximando cada vez mais, como se Talis estivesse pegando no sono, embora os olhos estivessem arregalados. Nico não sabia dizer por quanto tempo ele encarou a tigela — bem mais do que o tempo em que Nico tentou prender a respiração. Enquanto assistia, Nico achou que sentiu uma friagem, como se soprasse um vento de inverno da tigela, tão frígido que ele estremeceu. A sensação ficou mais intensa, e o fôlego que Nico tomou deu a impressão de sugar todo o frio, embora o ar, de alguma forma, quase parecesse quente dentro do corpo. O que fez com que ele quisesse expelir o ar, como se pudesse cuspir fogo gelado.

No outro cômodo, a cabeça de Talis pendeu ainda mais. Quando o rosto pareceu estar a dois centímetros de tocar a borda da tigela, o brilho sumiu tão repentinamente quanto surgiu, e Talis arfou como se respirasse pela primeira vez.

Nico também arfou, involuntariamente, como se o frio e o fogo dentro dele tivessem sumido no mesmo momento. O menino começou a recuar a cabeça da porta, mas foi detido pela voz de Talis. — Nico. Filho.

Ele voltou a espiar. Talis olhava fixamente para Nico, com um sorriso que contorcia as linhas do rosto moreno-escuro. Havia mais rugas ali ultimamente, e o cabelo de Talis começou a ficar salpicado de fios grisalhos. Ele gemeu ao se levantar rápido demais, e as juntas às vezes rangiam, embora a matarh dissesse que Talis tinha a mesma idade que ela. — Está tudo bem, filho. Não estou bravo com você. — O sotaque de Talis também parecia mais carregado do que o normal. Ele gesticulou para Nico, que notou uma mancha de pó vermelho ainda na palma da mão. Ele suspirou como se estivesse cansado e precisasse dormir. — Venha aqui. — Nico hesitou. — Não se preocupe; venha aqui.

Nico empurrou a porta para abri-la; a dobradiça, como ele sabia, rangeu alto, e foi até Talis. O homem ergueu o menino (sim, ele gemeu com o esforço) e colocou-o em uma cadeira perto da mesa para que pudesse ver a tigela. — Nico, esta é uma tigela especial que eu trouxe comigo do país onde costumava viver. Veja... tem água dentro. — Talis mexeu na água com um dedo. Ela parecia completamente normal agora.

— A tigela é especial porque faz a água brilhar? — perguntou Nico.

Talis continuou a sorrir, mas o jeito com que as sobrancelhas desceram sobre os olhos fez o sorriso parecer de certa forma inadequado no rosto. Nico viu o próprio rosto no reflexo das íris marrom-escuras dos olhos de Talis. Havia dobras fundas nos cantos daqueles olhos. — Ah, você viu aquilo, não é?

Nico concordou com a cabeça e perguntou — Aquilo era magia? Eu sei que não é um téni porque nunca vi você ir ao templo com a matarh e eu. Você é um numetodo?

— Não, não sou um numetodo, nem um téni da fé concénziana. O que você viu não era magia, Nico. Era apenas a luz do sol que entrou pela janela e foi refletida pela água na tigela, só isso. Eu também vi; era tão intensa que parecia que havia um pequeno sol debaixo d’água. Eu gostei como a tigela ficou, então a observei por um tempo.

Nico concordou com a cabeça, mas se lembrou do pó vermelho, da cor estranha e verdejante da luz e da maneira como a claridade banhou o rosto de Talis, como se fosse acariciado por uma mão de luz. Ele lembrou do fogo frio, mas não mencionou nada disso. Pareceu melhor não mencionar, embora não tivesse certeza do porquê.

— Eu amo você, Nico — continuou Talis, que se ajoelhou no chão perto da cadeira de Nico, de maneira que os rostos ficassem na mesma altura. Ele pousou as mãos nos ombros do menino. — Eu amo Serafina... sua matarh... também. E a melhor coisa que ela me deu na vida, a coisa que mais me deixou feliz, é você. Sabia disso?

Nico concordou novamente. Talis apertou os dedos em seus braços com tanta força que ele não conseguia se mexer. O rosto de Talis estava quase próximo ao seu, e Nico sentiu o cheiro de bacon e chá adoçado com mel no hálito do homem, e também um leve traço de algum condimento que não conseguiu identificar de forma alguma. — Ótimo — falou Talis. — Agora, preste atenção, não há necessidade de comentar sobre a tigela ou a luz do sol com sua matarh. Eu pensei que um dia pudesse dá-la de presente para sua matarh, e quero que seja uma surpresa, e você não quer estragá-la, não é?

Nico balançou a cabeça ao ouvir isso, e Talis deu um largo sorriso, como se tivesse contado uma piada para si mesmo que Nico não ouviu. — Excelente — disse ele. — Agora, deixe-me terminar de lavar a tigela, que era o que eu estava começando a fazer quando você me viu. É por isso que coloquei água dentro dela. — Talis soltou Nico; o menino esfregou os ombros enquanto o homem pegou a tigela, mexeu de maneira ostentosa a água dentro dela e depois abriu as persianas da janela para jogá-la na jardineira com flores. Talis secou a tigela com a bashta de linho, e Nico ouviu o tom do metal. Viu Talis colocar a tigela dentro de uma bolsa que ele mantinha debaixo da cama que compartilhava com sua matarh, depois recolocar a bolsa debaixo do colchão de palha.

— Pronto — falou Talis ao endireitar o corpo novamente. — Este será nosso segredinho, hein, Nico? — Ele piscou para o menino.

Esse seria o segredo deles. Sim.

Nico gostava de segredos.

 

A Pedra Branca

ELES VINHAM A ELA À NOITE, aqueles que a Pedra Branca matou. À noite, eles agitavam-se e acordavam. Reuniam-se em volta da Pedra Branca em sonhos e falavam com ela. Geralmente, quem falava mais alto era o Velho Pieter, a primeira pessoa que ela matou.

Ela tinha 12 anos.

— Lembre-se de mim... — murmurava o Velho Pieter para ela durante o sono. — Lembre-se de mim...

O Velho Pieter era um vizinho no modorrento vilarejo na Ilha de Paeti, e ela conhecia o homem desde que nasceu, especialmente depois que seu vatarh morreu, quando ela tinha seis anos. O Velho Pieter sempre foi amigável com ela, ria e dava como presentes os animais que ele entalhava a partir de galhos de árvore, com a pequena faca que sempre levava no cinto. Ela pintava os animais que ganhava e colocava no parapeito da janela em seu pequeno quarto, onde pudesse vê-los todas as manhãs.

O Velho Pieter tinha cabras, e, quando sua matarh permitia, ela às vezes ajudava o homem com o pequeno rebanho. No dia em que sua vida mudou, no dia que entrou no caminho que a traria até aqui, ela havia saído com Pieter e as cabras perto do Água Berrante, um córrego barulhento que descia rápido das encostas da Colina dos Carneiros, um dos morros altos ao sul do vilarejo. As cabras pastavam placidamente perto do córrego, e ela andava perto dos animais quando viu um corpo no chão: uma corça recém-morta, com o corpo dilacerado por carniceiros e moscas que começavam a se agitar em volta da carcaça. A cabeça da corça, no longo pescoço castanho-amarelado, olhava com desespero com seus belos olhos grandes.

— Se cê olhar no olho direito, cê vai ver o que matou ela.

Uma mão acariciou seu ombro e desceu pelas costas antes de se afastar. Ela levou um susto, pois não percebeu que o Velho Pieter surgira por trás. — O olho direito tá ligado à alma de uma pessoa ou de um animal — continuou ele. — Quando um ser vivo morre, bem, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto ou a coisa que matou ele. Olhe dentro do olho daquela corça que cê vai ver lá dentro: um lobo, tarvez. Acontece com gente, também. Assassinos são capturados desse jeito: quando alguém olha no olho direito da pessoa que eles mataram e vê o rosto do assassino ali.

Ela estremeceu ao ouvir isso e afastou-se, o Velho Pieter riu. A mão do homem tirou do rosto da menina as mechas de cabelo que escaparam das tranças, e ele sorriu afetuosamente para ela. — Agora, não fique transtornada, menina. Anda, vai cuidar das cabras, que eu vou entalhar alguma coisa procê.

O Velho Pieter voltou a ela no fim da tarde, quando a menina estava sentada às margens do Água Berrante vendo o córrego passar pelo leito rochoso. — Aqui, cê gostou? — perguntou ele.

Era uma figura humana entalhada, pequena o suficiente para ela esconder facilmente na mão: uma figura nua e inegavelmente feminina, com pequenos seios como os que brotavam em seu próprio peito. O cabelo a deixou mais perturbada: há uma lua, uma mulher ca’ de Nessântico passou pela cidade e ficou uma noite na estalagem da estrada para An Uaimth. O cabelo da mulher era trançado e preso em um nó complicado atrás da cabeça; fascinada por este vislumbre da moda de fora, a menina trabalhou por dias para imitar aquelas tranças; desde então, ela trançava o cabelo todo dia, da mesma maneira. Estava trançado agora, igual ao da figura nua, e a mão foi involuntariamente ao nó do cabelo atrás da cabeça. Ela quis, de repente, desmanchá-lo.

A menina olhou fixamente para o entalhe, sem saber o que dizer, e sentiu a mão do Velho Pieter na bochecha. — É ocê. Tá virando uma mulher agora.

A mão do homem pegou a cabeça dela e puxou a menina em sua direção, apertou-a com força contra ele. Ela sentiu a excitação do Velho Pieter, dura contra a sua coxa. A menina soltou a boneca.

O que aconteceu em seguida ela jamais esqueceria: a dor e a humilhação do ato. A vergonha. E depois que acabou, depois que o peso do homem saiu de cima dela, a menina viu o cinto caído na grama ao lado, e ali estava a bainha com a faca, que ela pegou. A menina pegou o cabo com as mãos tremendo, chorando, com sua tashta arrancada e meio rasgada, com seu sangue e o sêmen dele espalhados nas coxas, pegou com toda a raiva, fúria e medo por dentro e esfaqueou o Velho Pieter. Enfiou a faca na parte baixa da barriga do homem, e quando ele gemeu e berrou assustado, ela puxou a lâmina e a enfiou mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez até que ele parou de gritar, parou de bater na menina com os punhos e parou de se mover completamente.

Coberta no próprio sangue e no sangue do Velho Pieter, ela deixou a faca cair quando se ajoelhou ao lado dele. Os olhos mortos do homem encararam a menina.

— Quando um ser vivo morre, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto que viu...

Ela quase se arrastou até a margem do Água Berrante. Encontrou uma pedra ali, um seixo branco e polido pela água, do tamanho de uma moeda grande. A menina trouxe a pedra de volta e enfiou no olho direito do homem. Depois, ficou encolhida ali, a poucos passos do Velho Pieter, até que o sol estivesse praticamente posto e as cabras se reunissem ao redor dela. Os animais baliram e queriam voltar aos estábulos. A menina acordou, como se tivesse dormido, viu o corpo ali e se percebeu sendo levada na direção dele pela curiosidade. Ela levou a mão trêmula ao rosto do homem, ao olho direito coberto pelo seixo, e pegou a pedra. O seixo pareceu quente de um modo estranho. O olho embaixo estava cinza e opaco, e embora a menina tenha olhado com cuidado, não viu nada ali: nenhuma imagem de si mesma. Absolutamente nada. Ela apertou com força o seixo na mão: a pedra quente quase pulsava com vida. Sua respiração estremeceu quando ela apertou o seixo contra o peito.

Então, ela foi embora e deixou o corpo ali. Foi para o sul, não para o norte, e levou o seixo consigo.

A menina jamais retornaria para o vilarejo onde nasceu. Nunca mais veria sua matarh novamente.

A Pedra Branca revirou-se no sono. — Eu não queria machucar ocê, menina — sussurrou o Velho Pieter nos sonhos. — Não queria mudar ocê. Sinto muito, sinto muito...


CONTINUA

SE UMA CIDADE TIVESSE SEXO, Nessântico seria mulher...
Antigamente, ela era jovem e cheia de vitalidade: a cidade, a mulher. Durante sua ascensão, transformou-se na mais famosa, mais bonita e mais poderosa de sua espécie.
Agora, ela olhou para si mesma e imaginou — como alguém que se vislumbra inesperadamente em um espelho e fica assustado e incomodado pelo reflexo — se esses atributos ainda carregavam verdade.
Ah, ela sabia que a juventude era passageira e efêmera. Afinal, as pessoas que moravam entre suas muralhas levavam vidas curtas e difíceis. Para elas, o rosto refletido mudava implacavelmente a cada dia que passava, até surgir a manhã em que perceberiam que a imagem no espelho estaria enrugada e cansada, que os cabelos grisalhos nas têmporas se espalhariam e ficariam mais brancos. Elas talvez sintam suas juntas reclamando durante um movimento que antigamente não exigia qualquer esforço ou pensamento, ou talvez descubram que agora as feridas levariam semanas em vez de dias para sarar, ou que a doença permaneceria como um convidado indesejado — ou pior, que mudaria de “persistente” para “crônica”.
O frio da mortalidade penetrou lentamente em seus ossos mortais como gelo.

Mortalidade: Nessântico também sentia esta condição. Os habitantes da cidade escondiam as rugas e dobras com a cosmética da arquitetura. Vejam, ela poderia dizer: lá está o grande domo de co’Brunelli para o Velho Tempo — há 15 anos sendo construído neste momento —, que, quando terminado, será o maior domo sem suportes do já mundo conhecido. Aquele lá na Ilha A’Kralji é o lindo e ornamentado Teatro A’Kralji de ca’Casseli, capaz de abrigar uma plateia de duas mil pessoas, com acústica tão excelente que todo mundo pode ouvir o mais baixo sussurro no palco; ali, a Grande Biblioteca da margem sul, que começou a ser construída no reinado do kraljiki Justi e que contém as maiores obras intelectuais da humanidade. Ouçam: aquela é a doce música de ce’Miella, cujas composições rivalizam com as melodias magníficas do mestre Darkmavis. Vejam as pinturas e os murais cheios de símbolos de ce’Vaggio, cuja habilidade de retratar figuras geralmente é comparada àquela do trágico mestre ci’Recroix. Há uma vida tão vibrante aqui no interior de Nessântico: todas as peças e danças, as celebrações e a alegria.
Tudo aqui é igual ao que sempre foi; não, tudo é melhor.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_A_MAGIA_DO_ANOITECER_2.png

 

No entanto, ela mudou, e sabia disso. Havia sinais e portentos. No Velho Distrito, há não muito tempo, havia uma mulher que nasceu com as patas de uma tarântula e (diziam os rumores) que podia matar com um único olhar de seus olhos multifacetados. Houve a praga de milhares de sapos verdes nos Brejos há duas primaveras, tão intensa que eles cobriram as passagens próximas com uma massa agitada que tinha um palmo de profundidade. Nos esgotos da margem norte, diziam que havia uma criatura à espreita, com cabeça de dragão, corpo de touro e pés e mãos de humano, e que se alimentava de ratos que cresciam do tamanho de lobos.

Havia os sinais reais e indiscutíveis também. Os Domínios foram rachados, aquela forte aliança forjada lentamente ao longo dos séculos. Após um malfadado ataque a Nessântico, depois do assassinato da kraljica Marguerite, a cidade de Brezno tornou-se sua rival, à medida que Firenzcia tomava várias terras vizinhas ao seu redor: uma Coalizão sob o comando do hïrzg Jan ca’Vörl.

A fé concénziana também fora cindida, e não era mais o que tinha sido. A archigos Ana ocupava o templo na margem sul, era verdade, mas outra pessoa dizia-se archigos em Brezno. Dentro de Nessântico, os hereges numetodos adquiriam novos partidários, e não era incomum ver alguém conjurar um feitiço sem vestir um robe verde ou apelar primeiro para Cénzi.

Sinais e portentos. Mudança. Quanto mais velha ficava Nessântico, mais difíceis ficavam as mudanças para ela.

Pega em seu próprio outono indesejado, Nessântico — a cidade, a mulher — encarava o reflexo nas águas escuras do rio A’Sele e imaginava...

E, como muitos em sua posição, Nessântico negava o que via.


??? RESPOSTAS ???

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

O VATARH DE Allesandra ca’Vörl era o sol ao redor de quem ela orbitava desde que se entendia por gente. Agora aquele sol finalmente estava se pondo.

A mensagem chegara de Brezno através de um mensageiro rápido, ela olhava fixamente para as palavras escritas em uma caligrafia legível e apressada. — Seu vatarh está morrendo. Se a senhora quiser vê-lo, apresse-se. Essa foi toda a mensagem. Estava assinada pelo archigos Semini de Brezno e selada pelo seu sinete.

O vatarh está morrendo... O grande hïrzg Jan de Firenzcia, em homenagem a quem ela batizara seu único filho, estava falecendo. As palavras acenderam um fogo amargo em seu estômago; elas nadaram na página com as lágrimas salgadas que surgiram espontaneamente em seus olhos. Allesandra ficou sentada ali — à elegante escrivaninha, no gabinete opulento perto do palácio do gyula em Malacki — e viu uma gotícula cair no papel e borrar a tinta das palavras.

Ela odiava que o vatarh ainda a abalasse tanto; odiava se importar. Allesandra deveria odiá-lo, mas não conseguia. Não importava o quanto tentasse ao longo dos anos, ela não conseguia.

Pode-se amaldiçoar o sol pelo calor escaldante ou por sua ausência, mas sem o sol não haveria vida.

— Eu o odeio — declarou ela para a archigos Ana. Havia dois anos que Ana tirara Allesandra de seu vatarh para mantê-la como refém. Dois anos, e ele ainda não tinha pagado o resgate para trazê-la de volta. Ela tinha 13 anos, na iminência da menarca, e fora abandonada pelo vatarh. O que originalmente era ansiedade e decepção, aos poucos se transformara em raiva dentro dela. Pelo menos era o que Allesandra acreditava.

— Não, você não o odeia — falou Ana baixinho enquanto acariciava o cabelo de Allesandra. As duas estavam na sacada de seus aposentos no complexo do templo em Nessântico e olhavam para a confusão de ténis vestidos de verde que corriam com suas tarefas lá embaixo. — Não de verdade. Se ele pagasse o resgate amanhã, você ficaria radiante e pronta para correr de volta para seu vatarh. Olhe para dentro de si, Allesandra. Olhe sinceramente. Não é verdade?

— Bem, ele deve me odiar — retrucou ela — ou teria pagado.

Ana abraçou-a com força então. — Ele vai pagar. Vai sim. É que... Allesandra, seu vatarh queria se sentar no Trono do Sol. Ele sempre foi um homem orgulhoso, e uma vez que eu levei você embora, seu vatarh jamais foi capaz de realizar seu sonho. Você é uma lembrança de tudo o que ele perdeu. E isto é culpa minha. Não é sua. Não é sua de forma alguma.

O vatarh não pagou. Não por dez longos anos. Era Fynn, o novo filho que sua matarh, Greta, deu ao hïrzg que gozava do carinho do vatarh, que aprendera a guerrear, e fora nomeado o novo a’hïrzg — o título que deveria ter sido dela.

Em vez do vatarh e da matarh, era a archigos Ana que se tornara sua responsável, que a orientara durante a puberdade e adolescência, que confortara Allesandra em suas primeiras paixões, que ensinara os modos da sociedade ca’ e co’, que a acompanhara em bailes e festas, que a tratara não como uma prisioneira, mas como uma sobrinha que tinha se tornado sua responsabilidade criar.

— Eu amo você, tantzia — disse Allesandra para Ana. Ela passara a chamar a archigos de “tia”. O kraljiki Justi recebera a notícia de que um tratado entre os Domínios e a “Coalizão” Firenzciana estava para ser assinado em Passe a’Fiume, e, como parte das negociações, o hïrzg Jan finalmente pagara o resgate de sua filha. Ela passara uma década em Nessântico, praticamente metade de sua vida. Agora, aos 21 anos, ela deveria retornar à vida que perdera há tanto tempo, e estava assustada pela perspectiva. Antigamente, isso era tudo o que ela queria. Agora...

Parte de Allesandra queria ficar aqui. Aqui, onde ela sabia que era amada.

Ana abraçou-a com mais força. Allesandra era mais alta do que a archigos agora, e Ana teve que ficar na ponta dos pés para beijar sua testa. — Eu também amo você, Allesandra, e sentirei a sua falta, mas chegou a hora de ir para casa. Saiba que eu sempre estarei aqui para você. Sempre. Você faz parte do meu coração, minha querida. Eternamente.

Allesandra tinha esperanças de poder banhar-se ao sol do amor de seu vatarh novamente. Sim, ela tinha ouvido falar que o novo a’hïrzg Fynn era o filho que o hïrzg Jan sempre desejou: habilidoso com o cavalo, com a espada, com a diplomacia. Ela sabia que o irmão estava sendo preparado para a carreira na Garde Firenzcia. Mas ela também fora um dia o orgulho de seu vatarh. Com certeza poderia voltar a ser.

Mas Allesandra soube assim que o vatarh olhou para ela, do outro lado da tenda de negociação em Passe a’Fiume, que isso não aconteceria. No olhar de predador de Jan havia uma aversão que ardia lentamente. Ele avaliou Allesandra como se olhasse para uma estranha — e ela era realmente uma estranha para o vatarh: uma jovem agora, não mais a menina que Jan perdera. Ele pegou as mãos dela, aceitou a mesura como faria com qualquer ca’ e co’ e passou a filha para o archigos Semini um momento depois.

Fynn estava ao lado dele — agora com a idade que Allesandra tinha ao ser capturada — e avaliou a irmã mais velha como faria com um rival qualquer.

Allesandra procurou o olhar de Ana através da tenda, e a mulher deu um sorriso triste e um aceno de despedida. Havia lágrimas nos olhos de Ana, que brilharam ao sol que passava pela lona fina da tenda. A archigos, pelo menos, fora fiel à própria palavra. Ela escrevera regularmente para Allesandra. Negociara com o vatarh para que tivesse a permissão de comparecer ao casamento de Allesandra com Pauli ca’Xielt, o filho do gyula da Magyaria Ocidental, e, portanto, um matrimônio politicamente vantajoso para o hïrzg, e um enlace sem amor para Allesandra.

Ana tinha até mesmo estado presente, em segredo, no nascimento do filho de Allesandra, há quase 16 anos agora. A archigos Ana — a archigos falsa e herege de acordo com Firenzcia, a quem Allesandra era obrigada a odiar como uma boa cidadã da Coalizão — abençoara e batizara a criança com o nome que Allesandra lhe dera: Jan. E o fizera sem uma crítica ou um comentário. Fizera com um sorriso gentil e um beijo.

Até mesmo batizar a criança em homenagem ao vatarh não mudou nada. Isso não o aproximara de Allesandra — na maior parte do tempo, o hïrzg Jan ignorava seu neto e homônimo. Jan ficava na companhia do hïrzg Jan cerca de duas vezes ao ano, quando ele e Allesandra o visitavam em ocasiões de estado, e raramente o hïrzg falava diretamente com o neto.

Agora... agora seu vatarh estava morrendo e Allesandra não conseguia evitar chorar por ele. Ou talvez não conseguisse evitar chorar por si mesma. Com raiva, ela atacou a umidade nas bochechas com a manga. — Aeri! — Allesandra chamou o secretário. — Venha aqui! Tenho que ir para Brezno.

Allesandra irrompeu no quarto do hïrzg e jogou longe a capa suja de viagem. O cabelo estava despenteado pelo vento, e as roupas cheiravam a cavalo. Ela empurrou os criados que tentaram ajudá-la e se dirigiu para a cama. Os chevarittai e vários parentes reunidos ali afastaram-se para deixar que ela se aproximasse; Allesandra sentiu os olhares de avaliação às suas costas. Ela olhou fixamente para o rosto murcho e encarquilhado no travesseiro e mal o reconheceu.

— Ele está...? — perguntou Allesandra bruscamente, mas então ela ouviu o barulho causado pela respiração cheia de catarro do hïrzg e viu o lento movimento do peito sob as cobertas. O quarto cheirava a doença, apesar das velas perfumadas. — Fora! — falou ela para todos, gesticulando. — Digam a Fynn que eu vim, mas deixem-me sozinha com meu vatarh. Fora!

Eles dispersaram-se, como Allesandra sabia que fariam. Ninguém tentou protestar, embora os curandeiros dirigissem olhares de desaprovação sob frontes cautelosamente franzidas, e ela pôde ouvir os sussurros enquanto as pessoas saíam. “Não é de admirar que o marido fique longe dela... Um bode tem melhores maneiras... Ela tem a arrogância de Nessântico...”.

Allesandra bateu a porta na cara deles.

Então, finalmente, ao olhar para o rosto encovado e cinzento do vatarh, ela permitiu-se chorar, ajoelhada ao lado da cama, segurando as mãos frias e debilitadas. — Eu amei o senhor, vatarh — falou Allesandra. Sozinha com ele, a verdade era possível. — Eu amei. Mesmo depois que o senhor me abandonou, mesmo depois que o senhor deu a Fynn todo o carinho que eu queria, eu ainda o amei. Eu poderia ter sido a herdeira que o senhor merecia. Ainda posso ser, se tiver a chance.

Allesandra ouviu o arrastar de botas na porta e ficou de pé. Secou os olhos com a manga da tashta e fungou assim que Fynn empurrou a porta para abri-la. Ele irrompeu no quarto; Fynn nunca simplesmente entrava em um aposento. — Irmã, noto que as notícias chegaram até você.

Allesandra cruzou os braços. Ela não deixaria que o irmão notasse como havia ficado abalada ao ver o vatarh em seu leito de morte. Deu de ombros. — Eu ainda tenho fontes aqui em Brezno, mesmo que meu irmão deixe de mandar um mensageiro.

— Eu esqueci, mas imaginei que você saberia, de qualquer maneira. — O sorriso que ele deu era mais uma careta de desprezo, contorcida pela longa cicatriz enrugada que ia do canto do olho direito atravessando o lábio até o queixo: a marca de uma cimitarra de Tennshah. Fynn, aos 24 anos, tinha o corpo esbelto e forte de um soldado profissional, uma forma física que caía bem nas calças e blusas soltas que usava. Esse estilo de vestir de Tennshah tinha virado moda em Firenzcia desde as guerras de fronteira, há seis anos, quando Fynn enfrentou as forças do t’sha e empurrou os limites de Firenzcia quase 165 quilômetros para o leste, e ganhou a cicatriz comprida que maculava o belo rosto.

Foi durante essa guerra que Fynn conquistou plenamente o carinho do vatarh e acabou com qualquer esperança persistente de Allesandra de que pudesse vir a se tornar a hïrzgin.

— Os curandeiros disseram que o fim virá em algum momento do dia de hoje ou possivelmente à noite se ele continuar a lutar; o vatarh nunca desistiu facilmente, não é? Mas os retalhadores de almas virão atrás dele desta vez. Não há mais dúvida alguma quanto a isso. — Fynn abaixou os olhos na direção da figura na cama quando o hïrzg estremeceu novamente ao respirar. O olhar do jovem era carinhoso e triste, e, no entanto, também era avaliador, como se calculasse quanto tempo levaria até que ele pudesse retirar o anel com sinete das mãos unidas e colocá-lo no próprio dedo; até que pudesse colocar a coroa fina de ouro de hïrzg nos cachos da própria cabeça. — Não há nada que eu ou você possamos fazer, irmã, além de rezar para que Cénzi receba a alma do vatarh com carinho. Fora isso... — Fynn deu de ombros. — Como está meu sobrinho Jan?

— Você o verá em breve — falou Allesandra. — Ele está a caminho de Brezno atrás de mim e deve chegar amanhã.

— E seu marido? O querido Pauli?

Allesandra torceu o nariz. — Se você está tentando me provocar, Fynn, não vai funcionar. Eu sugeri que Pauli permanecesse em Malacki e cuidasse dos negócios de estado. E quanto a você? Já encontrou alguém para casar ou ainda prefere a companhia de soldados e cavalos?

O sorriso demorou a surgir, e era vacilante quando apareceu. — Agora quem provoca quem? O vatarh e eu ainda não tomamos uma decisão quanto a isso, e agora parece que a decisão será somente minha, embora eu certamente ouvirei quaisquer sugestões que você tenha. — Fynn abriu os braços e Allesandra relutantemente permitiu que ele a abraçasse. Nenhum dos dois deu um abraço apertado, mas apenas envolveram um ao outro, como se abraçassem um espinheiro, e o gesto acabou em um piscar de olhos. — Allesandra, eu sei que sempre houve uma distância entre nós, e espero que possamos trabalhar em conjunto quando... — ele hesitou, e Allesandra observou o peito de Fynn inchar após respirar fundo — ... quando eu for o hïrzg. Precisarei de seus conselhos, irmã.

— E eu os darei a você — ela aproximou-se e cautelosamente beijou o ar a um dedo de distância da bochecha marcada pela cicatriz —, irmãozinho.

— Eu queria que nós realmente pudéssemos ter sido irmãozinho e irmãzona. Eu queria ter conhecido você naquela época.

— Eu também — disse Allesandra para Fynn. E eu queria que estas fossem mais do que palavras vazias e educadas que ambos dizemos porque sabemos que são o que a etiqueta exige. — Ficaria aqui comigo agora? Deixe o vatarh perceber que estamos juntos pelo menos uma vez.

Ela sentiu sua hesitação e perguntou-se se Fynn iria recusar. Porém, após um instante, o irmão deu de ombros. — Por uma virada da ampulheta ou menos, nós podemos rezar por ele. Juntos.

 

Jan ca’Vörl

— EU TENHO QUE CAVALGAR o mais rápido possível para Brezno — falou a matarh de Jan para ele. — Eu dei ordens para os criados arrumarem o que temos nos quartos em malas para viagem. Quero que você venha atrás assim que eles aprontarem as carruagens. E, Jan, veja se consegue convencer seu vatarh a vir com você. — Ela deu um beijo na testa do filho, com mais intensidade do que em anos, e abraçou-o. — Eu amo você — sussurrou. — Espero que saiba disso.

— Eu sei. — Jan afastou-se e sorriu para a matarh. — E eu espero que a senhora saiba disso.

Ela sorriu e deu um último abraço no filho antes de subir no cavalo mantido pelos dois chevarittai que iriam acompanhá-la. Jan observou o trio se afastar pela estrada da propriedade a galope.

Isto foi há dois dias. Sua matarh devia ter chegado a Brezno ontem. Jan recostou a cabeça nas almofadas da carruagem e viu a paisagem do sul de Firenzcia passar sob a luz dourado-esverdeada do fim da tarde. O condutor dissera que eles parariam no próximo vilarejo à noite e chegariam a Brezno ao meio-dia de amanhã. Jan imaginou o que ele encontraria lá.

Ele estava sozinho na carruagem.

Jan pedira ao vatarh Pauli para vir com ele, como a matarh solicitara. Os criados disseram que Pauli estava em seus aposentos na propriedade, em uma ala separada dos aposentos de Allesandra. O assistente chefe de Pauli entrou para anunciar o filho e retornou com as sobrancelhas arqueadas. — Seu vatarh disse que pode ceder alguns momentos — falou o homem ao acompanhar Jan em uma das salas de recepção depois do corredor principal.

Jan ouviu os risinhos abafados de duas mulheres vindo de um quarto que dava para a sala de recepção. A porta foi aberta em meio a risada rouca de um homem. O vatarh vestia um robe, o cabelo estava desgrenhado e revolto, a barba encontrava-se por fazer. Ele cheirava a perfume e vinho. — Um instante — disse Pauli para Jan. Ele tocou os lábios com um dedo antes de cambalear um pouco até a porta que levava ao quarto abrindo-a ligeiramente. — Shh! — falou alto. — Estou tentando levar uma conversa sobre minha esposa com meu filho. — O que foi recebido com uma risada estridente.

— Diga ao garoto para se juntar a nós. — Jan ouviu uma delas gritar, e sentiu o rosto ficar vermelho com o comentário, enquanto Pauli apontava o dedo na direção da mulher que não podia ser vista.

— Vocês duas são umas safadas encantadoras — disse Pauli para elas. Jan imaginou as mulheres: com perucas e ruge no rosto, seminuas ou talvez completamente nuas, como um dos quadros das deusas moitidis que decoravam os salões. — Voltarei em um instante — continuou Pauli. — Bebam mais vinho, moças.

Ele fechou a porta e apoiou-se pesadamente contra ela. — Desculpe. Eu estou com... companhia. Então, o que a megera queria? Ah, é melhor você dizer por mim para a sua matarh que o a’gyula da Magyaria Ocidental tem coisas melhores para fazer do que ir a Brezno porque alguém pode ou não estar morrendo. Quando o velho desgraçado finalmente der seu último suspiro, sem dúvida eu serei enviado ao funeral como nosso representante, e isso ocorrerá em breve. — As palavras saíram arrastadas. Ele pestanejou lentamente e arrotou. — Você também não precisa ir, garoto. Por que não fica aqui? Nós dois podemos nos divertir, hein? Tenho certeza de que estas moças têm amigas...

Jan balançou a cabeça. — Eu prometi para a matarh que pediria ao senhor que viesse, e foi o que fiz. Eu parto hoje à noite; os criados estão quase terminando de arrumar as carruagens.

— Ah sim — disse Pauli. — Você é um filho tão bom e obediente, não é? O orgulho e alegria de sua matarh. — Ele afastou-se da porta e cambaleou enquanto apontava um dedo para Jan, que andava de um lado para o outro. — Você não quer ser como ela. Sua matarh não ficará satisfeita enquanto não dominar o mundo inteiro. Ela é uma vadia ambiciosa com um coração duro como pedra.

Jan já tinha ouvido Pauli insultar sua matarh mil vezes, e a cada ano que passava mais. Antes ele sempre rangia os dentes, fingia não escutar ou murmurava uma reclamação que Pauli ignoraria. Agora... o rubor que surgia no rosto de Jan tornou-se vermelho como lava. Ele cruzou o aposento acarpetado com três passos ligeiros, levou a mão para trás e deu um tapa na cara do vatarh. Pauli cambaleou contra a porta, que se abriu e fez com que ele desmoronasse ali, sobre um tapete trançado. Jan viu duas mulheres dentro do quarto — realmente seminuas sobre a cama do vatarh. Elas cobriram os seios com os lençóis e gritaram. Sem acreditar, Pauli levou a mão ao rosto; sobre a barba fina, Jan pôde ver a marca dos dedos na bochecha do vatarh.

Ele imaginou por um instante o que faria se Pauli se levantasse, mas o vatarh apenas pestanejou novamente e riu como se tivesse levado um susto.

— Bem, você não precisava fazer isso — disse Pauli.

— O senhor pode pensar o que bem entender da matarh. Eu não me importo. Porém, de agora em diante, vatarh, guarde suas opiniões para o senhor ou trocaremos mais do que palavras. — Dito isso, antes que Pauli conseguisse se levantar do tapete ou responder, Jan virou-se e apressou-se a sair da sala.

Ele se sentiu estranhamente alegre. A mão formigava. Pelo resto do dia, Jan esperou ser chamado à presença do vatarh — assim que o vinho tivesse ido embora da cabeça do homem. Porém, até ser informado de que as carruagens estavam prontas e à espera, Jan não tinha ouvido nada. Ele ergueu os olhos para as janelas da ala do vatarh ao entrar na carruagem principal, enquanto os criados que viajariam com ele subiam nas outras. Jan pensou ter vislumbrado uma silhueta observando da janela e levantou a mão — a mão que batera no vatarh.

Outra silhueta, uma forma feminina, aproximou-se do vatarh por trás, e a cortina fechou-se novamente. Jan entrou na carruagem. — Vamos — falou para o condutor. — Temos uma longa jornada à frente.

Ele olhou mais uma vez pela janela da carruagem. Pela maior parte da jornada, Jan ficou remoendo o que aconteceu. Ele tinha quase 16 anos. Era quase um homem. Até já tivera sua primeira amante: uma garota ce’ que fizera parte do corpo de funcionários da casa, embora a matarh de Jan tivesse mandado a menina embora quando percebeu que eles se tornaram íntimos. Ela também deu um longo sermão sobre o que esperava dele. — Mas o vatarh... — Jan começara a falar, e Allesandra interrompeu o protesto com um golpe forte da mão.

— Pare aí, Jan. Seu vatarh é preguiçoso e libertino, e, desculpe a grosseria, ele geralmente pensa com o que tem entre as pernas, não com a cabeça. Você é melhor do que ele, Jan. Vai ser importante neste mundo, se escolher não ser o filho de seu vatarh. Eu sei disso. Prometo a você.

Ela não dissera tudo que poderia ter dito, e ambos sabiam disso. Pauli podia ser o vatarh de Jan, mas para ele isto era apenas outro título, e não uma ocupação. Era a matarh quem Jan via todo dia, que brincava com ele quando era pequeno, que ia vê-lo todas as noites após as babás o colocarem na cama. Seu vatarh... Ele era uma figura alta que às vezes mexia no cabelo de Jan ou dava presentes extravagantes que pareciam mais um pagamento pela ausência do que presentes de verdade.

Seu vatarh era o a’gyula da Magyaria Ocidental, filho do atual gyula, o governante que Jan via com tanta frequência quanto o outro vavatarh, o hïrzg. As pessoas faziam mesuras na presença de Pauli, riam e sorriam quando falavam com ele. Mas Jan ouvia os sussurros dos funcionários e dos convidados quando eles pensavam que ninguém escutava.

Sua mão direita pulsava, como se lembrasse do tapa na cara do vatarh. Jan olhou para a mão à luz do fim do dia: uma mão de adulto agora. O tapa na cara do vatarh fez com que ele rompesse com a infância para sempre.

Jan não seria como seu vatarh. Ao menos isso ele se prometeu. Jan teria a própria personalidade. Independente.

 

Varina ci’Pallo

VARINA ESTAVA AO LADO de Karl na elegante sala de recepção da archigos, mas — como quase sempre era o caso quando Ana se encontrava no mesmo ambiente — ela parecia invisível a ele. Toda a atenção de Karl estava voltada para a archigos. Varina queria se virar e dar um tapa na cara dele. Você não enxerga o que está diante da sua cara? Você é tão distraído assim?

Parecia que ele era. Karl sempre fora abstraído e sempre seria quando Ana estivesse envolvida. Ao longo dos anos, Varina chegou a essa conclusão. Talvez tivesse sido diferente se a própria Varina não gostasse e admirasse a archigos, se não considerasse a mulher uma amiga. Ainda assim...

— Você tem certeza disso? — perguntou Karl para Ana. Ele olhava para um pergaminho dado pela archigos e batia com o indicador nas palavras escritas ali. — Ele está morto? — Não havia traço algum de tristeza em sua voz; na verdade, Karl sorria ao devolver o papel para a archigos.

Ana franziu a testa. Se Karl considerou boas as notícias, era óbvio para Varina que a opinião de Ana era mais ambígua. — O hïrzg Jan está morrendo — falou a archigos. — E suspeito que ele provavelmente já morreu a esta altura, se a informação for correta. O téni que enviou esta mensagem tem o toque da cura; ele saberia dizer se o homem está além da salvação.

— Até que enfim o velho urubu morreu — disse Karl. Ele olhou ao redor da sala, pensativo, mas não para Varina. — Você já falou com Allesandra? Ela vai contestar o direito de Fynn ao trono?

— Não sei. — Ana pareceu suspirar. Ela nunca fora bonita; na melhor das hipóteses, quando jovem, Ana fora uma mulher singela. Até mesmo ela teria admitido isso. Agora, ao chegar à meia-idade, Ana tornou-se uma figura matrona, mas havia algo de impressionante, confiável e cativante a seu respeito. Varina conseguia entender a atração e a devoção de Karl pela mulher, mesmo que parte dela se ressentisse com isso. A reputação de Ana só cresceu ao longo dos anos. As pessoas riam do kraljiki Justi pelas costas, e a situação não parecia ser diferente com seu filho, Audric, e havia aqueles na Fé que consideravam heréticas a tolerância e a franqueza de Ana, mas o povo de Nessântico e dos Domínios parecia adorar sua archigos e ter afeição por ela. Varina já tinha visto as multidões em volta do templo sempre que Ana ia dar uma Admoestação e já tinha ouvido a aclamação quando a carruagem da archigos passava pela Avi a’Parete.

— Se Allesandra estivesse no trono de Firenzcia, eu me sentiria melhor a respeito disso tudo — continuou Ana. — Sentiria que haveria esperança de que os Domínios pudessem ser restaurados. Se Allesandra fosse a hïrzgin... — Outro suspiro. Ana olhou sobre seus ombros, na direção do enorme ornamento de globo partido que se destacava no outro canto da sala: dourado e cravejado de joias, com esculturas dos moitidis, os semideuses que eram filhos de Cénzi, se contorcendo de agonia na base. A voz era quase um sussurro, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse escutá-la secretamente. — Então eu poderia considerar abrir negociações com Semini ca’Cellibrecca, para ver se a fé concénziana também poderia ser reunificada.

Varina fez uma expressão de aflição, e Ana dirigiu um olhar compreensivo a ela. — Eu sei, Varina. Garanto que a segurança dos numetodos não será negociável, mesmo que eu estivesse disposta a abdicar do título de archigos em favor de Semini. Eu não permitiria que as perseguições se repetissem.

— Você não pode confiar que ca’Cellibrecca manterá essas promessas — falou Varina. — Ele é praticamente filho de seu vatarh por casamento.

— Ca’Cellibrecca estaria obrigado a cumprir uma promessa pública, assim como seus votos a Cénzi.

— Você tem mais fé nele do que eu — respondeu Varina. O que fez Ana sorrir.

— É estranho ouvir um numetodo falar de fé — disse a archigos. Ela tocou o ombro de Varina sob a tashta e deu uma risada amigável. — Mas entendo sua preocupação e seu ceticismo. Peço que confie em mim; se a situação chegar a este ponto, eu garanto que você, Karl e seu povo serão protegidos.

— Será que a situação chegará a esse ponto? — interrompeu Karl, que observou as mãos de Ana como se quisesse que ela o tocasse. — Acha que há chances, Ana?

Ela olhou para o papel em sua mão como se procurasse uma resposta ali, depois se virou para pousar o pergaminho em uma mesa próxima. Ele emitiu um pequeno ruído; estranho, pensou Varina, para algo com tão pesada importância. — Eu não sei — falou Ana. — Allesandra e o irmão não se toleram. Dado o tempo que Allesandra esteve aqui comigo enquanto ambos cresciam, eles são mais estranhos do que irmãos, e o jeito com que o hïrzg Jan tratou Allesandra quando ele de fato pagou o resgate por ela... — Ana balançou a cabeça. — Mas eu não sei mais o que Allesandra quer ou quais seriam seus desejos e ambições. Eu achei que soubesse antigamente, mas...

— Você foi uma matarh para ela — disse Karl, Ana riu novamente.

— Não, não fui isso. Talvez uma irmã mais velha ou uma tantzia. Tentei ser alguém com quem ela pudesse estar segura, porque a pobre criança ficou completamente sozinha aqui por tempo demais. Não consigo imaginar como isso pode tê-la magoado.

— Você foi maravilhosa com ela — insistiu Karl. Varina observou Karl estender a mão para pegar a de Ana. Doía ver o gesto. — Foi sim.

— Obrigada, mas eu sempre imagino se poderia ter feito mais, ou melhor — disse Ana, que afastou lentamente suas mãos das de Karl. — Fiz o que pude. Isto é tudo que Cénzi pode pedir, creio eu. — Ana sorriu. — Vamos ver o que acontece, não é? Manterei vocês dois informados assim que souber de mais notícias.

— Você ainda está disponível para jantar amanhã? — perguntou Karl para Ana.

O olhar da archigos deslizou de Karl para Varina e de volta para Karl. — Sim, após a Terceira Chamada. Gostaria de se juntar a nós, Varina?

Ela sentiu o olhar de Karl. — Não — disse Varina, às pressas. — Não posso, archigos. Tenho uma reunião com Mika e uma aula para dar... — Desculpas demais, mas Karl assentiu com a cabeça. A satisfação dele diante da resposta de Varina foi como o corte de uma pequena navalha.

— Amanhã à noite, então — disse Karl. — Aguardo ansiosamente o jantar. Talvez fosse melhor nós irmos embora, Varina. Tenho certeza de que a archigos tem outros compromissos... — Ele inclinou a cabeça na direção de Ana e começou a andar na direção da porta. Varina virou-se para segui-lo, mas Ana chamou-a quando eles deram as costas.

— Varina, um momento? Karl, eu a mando imediatamente, prometo.

Karl olhou para trás, intrigado, mas fez uma mesura novamente e caminhou em direção às portas. Os dois enormes painéis eram entalhados com baixos-relevos dos moitidis em batalha, com espadas que se sobrepunham e colidiam na junção. Karl puxou as portas e os combatentes se separaram. Varina esperou até que a madeira escura e envernizada se fechasse enquanto ele saia e os moitidis novamente estivessem em guerra.

— Archigos?

— Eu queria um momento com você, Varina, porque estou preocupada — falou Ana. — Você parece tão cansada e abatida. Magra. Eu sei o quanto você anda envolvida com sua... pesquisa. Está se lembrando de comer?

Varina tocou seu rosto. Ela sabia o que Ana dizia. Tinha visto o rosto no espelhinho que mantinha sobre a penteadeira. As pontas dos dedos percorreram o traçado das novas rugas que surgiram nos últimos meses e sentiram a aspereza dos cabelos grisalhos nas têmporas. Ela tinha medo de se olhar no espelho a maioria das manhãs; o rosto refletido era o de uma estranha mais velha que Varina mal reconhecia. — Eu estou bem — respondeu automaticamente.

— Está mesmo? — perguntou Ana novamente. — Estas “experiências” que Karl diz que você está fazendo para tentar recriar o que Mahri podia fazer... — Ela balançou a cabeça. — Eu me preocupo com você, Varina. E Karl também.

“E Karl também...”, ela queria poder acreditar nessas palavras. — Eu estou bem — repetiu Varina.

— Eu poderia usar o Ilmodo, se você quisesse. Isso pode ajudar, se você estiver sofrendo.

— Você desobedeceria a Divolonté e me curaria? Uma ateísta? Archigos! — Varina sorriu para Ana, que devolveu o gesto.

— Eu confio a você meus segredos — disse Ana. — E a oferta continua de pé, se algum dia sentir necessidade.

— Obrigada, archigos. Não me esquecerei disso. — Ela apontou com a cabeça para os moitidis em guerra silenciosa. — É melhor eu alcançar Karl.

— Sim, é melhor. — Ana começou a fazer o sinal de Cénzi para Varina, depois se deteve. — Eu posso falar com ele.

— Archigos?

— Eu tenho olhos. Quando vejo você com ele...

Varina riu. — Você é a única que ele enxerga, archigos.

— E eu sou comprometida com Cénzi. Com ninguém mais. Não estou destinada a este tipo de relacionamento nesta vida. Eu disse isso a ele. Aprecio a amizade de Karl e tudo que ele fez por mim e por Nessântico. Eu o amo muito, mais do que um dia amei outra pessoa. Mas o que ele quer... — A cabeça acenou lentamente de um lado para outro enquanto Ana cerrava os lábios. — Você deveria dizer a ele como você se sente.

— Se eu preciso dizer a ele, então é óbvio que o sentimento não é mútuo — respondeu Varina. Ela conseguiu dar um sorriso forçado. — E estou comprometida com meu trabalho, como você é comprometida com Cénzi.

Ana deu um passo à frente e um rápido abraço em Varina. — Então Karl é um tolo por não ver como somos parecidas.

 

Audric ca’Dakwi

NEM MESMO UM KRALJIKI podia evitar ter aulas ou fazer provas para raspar qualquer essência de conhecimento grudada no interior do crânio.

Audric estava diante do Trono do Sol com as mãos entrelaçadas nas costas, voltado para seu professor, mestre ci’Blaylock. Atrás do mestre magro, frágil e sujo de giz, a plateia olhava Audric com sorrisos de incentivo: alguns chevarittai enfeitados com Medalhas de Sangue, os ca’ e co’, os cortesãos de sempre, Sigourney ca’Ludovici, e alguns outros integrantes do Conselho dos Ca’... todos aqueles que queriam que Audric notasse seu comparecimento ao exame trimestral do jovem kraljiki. Com 14 anos, Audric estava bem ciente da atenção bajuladora que recebia por conta de seu título e linhagem.

Eles não estavam aqui pelo exame; estavam aqui para serem vistos. Por ele. E apenas por ele.

Audric sentia prazer ao pensar nisto.

— Ano 471 — entoou ci’Blaylock ao erguer os olhos do púlpito carregado de papiros onde estava. — A linhagem dos kralji.

Uma pergunta fácil. Sem desafio algum. — Kraljica Marguerite ca’Ludovici — respondeu Audric rapidamente e com firmeza. Ele tossiu, então, como fazia frequentemente, e acrescentou — Também conhecida como a Généra a’Pace.

E também minha mamatarh... O retrato de Marguerite ficava pendurado no quarto de Audric. A obra era de um realismo perturbador e foi pintada pelo falecido mestre artista Edouard ci’Recroix, que também criara o grande painel de uma família de camponeses que enfeitava o próprio salão do Trono do Sol. Marguerite observava o neto toda noite, enquanto ele dormia, e dava o mesmo meio sorriso cansado e estranho toda manhã quando Audric acordava. Muitas vezes ele quis ter tido a oportunidade de conhecê-la de verdade, ele certamente já tinha ouvido muitas histórias a respeito da mamatarh. Às vezes Audric imaginava se todas elas eram verdade: na memória do povo de Nessântico, a kraljica Marguerite governou durante uma Era de Ouro, uma era de luz do sol, comparada às políticas tempestuosas do presente.

A corte sorriu e aplaudiu com educação a resposta. A maior parte da alegria era indubitavelmente motivada pelo fato de que eles finalmente se aproximavam do fim do exame, conforme o mestre ci’Blaylock descia a escada da história. Eles começaram há quase meia-virada da ampulheta, no ano 413, com o kraljiki Henri VI, o primeiro ano da linhagem ca’Ludovici, da qual o próprio Audric descendia; os espectadores ficaram de pé o tempo todo, desde então; afinal, ninguém se senta na presença do kraljiki sem permissão. Audric sabia as respostas das próximas perguntas que faltavam; e como não saberia, sendo elas tão envolvidas com a vida de sua família? Um suspiro praticamente inaudível veio da corte, juntamente com o farfalhar de tecido conforme as pessoas trocavam os pés de apoio. — Correto — disse ci’Blaylock, bufando. Ele tinha pele negra, como muitos que vinham da província de Navarro. O mestre molhou a ponta da pena no pote de nanquim do púlpito e fez uma demorada marca no papiro aberto. O traçado da pena era sonoro. As sobrancelhas brancas tremulavam sobre os olhos opacos de catarata. — Ano 485. A linhagem dos archigi.

Tosse. — Archigos Kasim ca’Velarina. — Tosse.

Mais aplausos educados, e outro mergulho e traçado da pena. — Correto. Ano 503. A linhagem dos archigi.

Audric respirou fundo e tossiu novamente. — Archigos Dhosti ca’Millac, o Anão. — Aplausos. Traço da pena. Audric ouviu as portas do fundo do salão serem abertas; o regente Sergei ca’Rudka entrou a passos largos e rápidos na direção de Audric. Apesar da idade, o regente movia-se com energia e uma postura ereta. Os cortesãos, com um olhar cauteloso, afastaram-se rapidamente para abrir caminho. O nariz artificial de prata de Sergei alternava entre brilhar e se ofuscar sob os fracos feixes de luz do sol que entravam pelas janelas.

— Correto — entoou ci’Blaylock. — Ano 521. A linhagem dos kralji.

Esta era fácil: esse foi o ano em que o vatarh de Audric assumiu o Trono do Sol, após o assassinato de Marguerite. Audric respirou fundo novamente, mas o esforço rendeu outro espasmo momentâneo de tosse preenchida pelo horrível som de líquido nos pulmões. Passada a tosse, ele empertigou-se e pigarreou. — Kraljiki Justi ca’Dakwi — disse ele para ci’Blaylock e os cortesãos. — O Grande Guerreiro — acrescentou. Esta foi a alcunha que Justi deu a si mesmo. Audric tinha ouvido as outras alcunhas dadas a Justi, que as pessoas sussurravam quando achavam que ninguém as estava escutando. Justi, o Perneta; Justi, o Incompetente; Justi, o Grande Fracasso.

Ninguém teria se atrevido a dizer essas alcunhas na cara do kraljiki quando Justi era vivo. Audric olhou para os sorrisos estampados nas caras dos ca’ e co’ e imaginou por quais alcunhas ele era chamado quando não estava presente para escutar.

Audric, o Enfermo. Audric, o Fantoche do Regente.

Novamente os espectadores aplaudiram. Sergei, de braços cruzados, não se juntou a eles. Ele observava logo atrás do mestre ci’Blaylock, que parecia sentir a pressão da presença do homem. Ele deu uma olhadela sobre seus ombros, viu o regente e tremeu visivelmente. — Hum... — O velho balançou a cabeça, olhou para o papiro, mergulhou um dedo sujo de nanquim no papel. — Ano 521. A linhagem dos archigi.

Esta era uma resposta mais longa, mas ainda fácil. — Archigos Orlandi ca’Cellibrecca, o Grande Traidor e primeiro falso archigos de Brezno. — Audric tossiu novamente e fez uma pausa para pigarrear. — Então, no mesmo ano, depois que ca’Cellibrecca traiu a fé concénziana e o kraljiki Justi em Passe a’Fiume: archigos Ana ca’Seranta, a mais jovem téni a ser nomeada archigos da história.

Ana, que ainda mantinha o título de archigos. Ana, que Audric amava como se fosse a matarh que ele jamais conhecera. Audric sorriu ao mencionar seu nome, e o aplauso que se seguiu foi genuíno — a archigos Ana era muito amada, com sinceridade, pelo povo de Nessântico.

— Correto — falou ci’Blaylock. — Também no ano 521. Guerra e política.

— A rebelião do hïrzg Jan ca’Vörl — respondeu Audric rapidamente. As guturais sílabas firenzcianas provocaram um espasmo em seus pulmões novamente. Foram necessárias várias respirações para que a tosse parasse e ele conseguisse falar novamente. — O hïrzg foi derrotado pelo kraljiki Justi na Batalha dos Brejos — disse Audric com a voz rouca, finalmente.

— Excelente! — A voz não era de ci’Blaylock, mas sim de Sergei, que aplaudiu alto e caminhou até ficar ao lado de Audric. Os cortesãos uniram-se aos aplausos com atraso e incerteza. Audric notou que Sigourney ca’Ludovici não aplaudiu, apenas cruzou os braços e o olhou intensamente. — Mestre ci’Blaylock, tenho certeza de que o senhor já ouviu o suficiente para fazer seu julgamento — continuou Sergei.

Ci’Blaylock franziu a testa. — Regente, eu não termi... — Ele parou, e Audric viu o mestre encarar a expressão fechada do regente. Ci’Blaylock pousou a pena e começou a enrolar o papiro da prova. — Sim, foi muito satisfatório. Muito bem, kraljiki, como sempre.

— Ótimo — disse Sergei. — Agora, se todos os senhores nos dão licença...

A dispensa do regente foi abrupta, mas efetiva. O mestre ci’Blaylock reuniu os papiros e mancou na direção da porta mais próxima; os cortesãos recuaram como filetes de neblina em uma manhã de sol e sorriram até virar as costas. Audric ouviu as frenéticas especulações sussurradas ao saírem do salão. Sigourney, no entanto, fez uma pausa. — É algo que o Conselho dos Ca’ deva saber? — perguntou ela para Sergei. Sigourney não olhava para Audric; era como se ele não fosse importante o suficiente para ser notado.

Sergei balançou a cabeça. — Não no momento, conselheira ca’Ludovici. Se for o caso, fique tranquila que a senhora será avisada imediatamente.

Sigourney torceu o nariz diante da resposta, mas acenou com a cabeça para Sergei e fez a mesura apropriada para Audric antes de sair do salão. Apenas alguns criados permaneceram, parados em silêncio perto das paredes de pedra cobertas por tapeçarias, enquanto dois e’ténis — sacerdotes da fé concénziana — sussurravam preces ao acender lamparinas para diminuir a luz difusa. Na parede próxima ao Trono do Sol, os rostos da família de camponeses no quadro de ci’Recroix pareciam tremer sob a luz do fogo mágico.

— Obrigado, Sergei — disse Audric. Ele tossiu e cobriu a boca com a mão fechada. — Mas você podia ter vindo meia-virada da ampulheta mais cedo e me poupado de todo esse martírio.

Sergei deu um sorriso irônico. — E encarar a fúria do mestre ci’Blaylock? Nem pensar. — Ele fez uma pausa, e as rugas em volta do nariz de metal adquiriram uma expressão séria. — Eu teria estado aqui mais cedo para ouvir sua prova, kraljiki, mas acabei de receber uma mensagem de um contato em Firenzcia. Há notícias que acho que o senhor deve ouvir antes do Conselho: o hïrzg Jan de Firenzcia está em seu leito de morte. Não esperam que ele sobreviva além desta semana. Pode ser que já esteja morto, pois a mensagem é de dias atrás.

— Então o a’hïrzg Fynn se tornará o novo hïrzg? Ou Allesandra irá se contrapor à ascensão do irmão?

O sorriso irônico de Sergei voltou momentaneamente. — Ah, então o senhor presta mesmo atenção nos meus relatórios. Que bom. Isto é bem mais importante do que as aulas do mestre ci’Blaylock. — Ele meneou a cabeça. — Duvido que Allesandra vá protestar. Ela não tem apoio suficiente entre os ca’ e co’ de Firenzcia para contestar o testamento do hïrzg Jan.

— Qual dos dois nós preferiríamos?

— Nossa preferência seria por Allesandra, kraljiki. Após uma década ou mais que ela passou aqui, à espera que o hïrzg Jan pagasse seu resgate, nós a conhecemos muito mais. A archigos Ana sempre teve um bom relacionamento com ela, e Allesandra é bem mais favorável aos Domínios. Se ela se tornasse a hïrzgin... bem, talvez houvesse alguma esperança de reconciliação entre os Domínios e a Coalizão. Poderia até mesmo haver uma pequena possibilidade de que conseguíssemos voltar a como as coisas eram na época de sua mamatarh, com o senhor no Trono do Sol sob os Domínios reunificados. Mas com Fynn como hïrzg... — Sergei meneou a cabeça outra vez. — Fynn puxou ao vatarh, tão belicoso e teimoso quanto ele. Se Fynn for hïrzg, teremos de vigiar nossa fronteira oriental com atenção, o que significa ter menos recursos à disposição para a guerra nos Hellins, infelizmente.

Audric curvou-se com outro acesso de tosse, e Sergei colocou a mão com gentileza em seu ombro. — Sua tosse está piorando novamente, kraljiki. Mandarei os curandeiros fazerem outra poção para o senhor, e talvez a archigos Ana faça uma visita amanhã, depois da cerimônia do Dia do Retorno. É um pouco cedo, mas com as chuvas do mês passado...

— Eu estou melhor agora — disse Audric. — É apenas o ar úmido aqui no salão. — A e’téni mais próxima interrompeu o cântico, as mãos ficaram paralisadas em meio à moldagem do Ilmodo – a energia que abastecia sua magia. Ela era uma jovem moça não muito mais velha que Audric e ficou vermelha quando se vira notada pelo kraljiki, rapidamente afastou o olhar e recomeçou o cântico: a lamparina presa no alto da parede foi acesa quando as mãos realizaram o gestual do Ilmodo abaixo dela.

O peito de Audric começava a doer com o esforço da tosse. Ele odiava ficar doente, mas parecia estar sempre assim desde que se entendia por gente. Se uma doença fosse contraída pelo corpo de funcionários do palácio, certamente ele pegaria; Audric sofria constantemente de acessos de tosse e de uma dificuldade para respirar. Qualquer esforço físico rapidamente deixava o kraljiki exausto e ofegante. Entretanto, de alguma maneira Cénzi o protegera de um surto de febre do sol aos quatro anos de idade, embora a doença tenha levado sua irmã mais velha, Marguerite, batizada em homenagem à famosa mamatarh e preparada para ser a kraljica quando o vatarh deles morresse. O funeral oficial da irmã — uma cerimônia longa e triste — foi uma de suas primeiras memórias.

Deveria ser Marguerite aqui, agora, não ele. Audric tinha esperanças de que isso significasse que Cénzi tinha um plano para ele.

Ele respirou fundo e desta vez prendeu a tosse que ameaçava surgir. — Pronto, viu só? É só o ar úmido e ter que responder a todas aquelas malditas perguntas do mestre.

— Ao menos as perguntas do mestre têm respostas definitivas. As soluções para um kraljiki raramente são claras, como o senhor já sabe. — Sergei colocou o braço em volta de Audric, que se apoiou no abraço do homem. “Confie em ca’Rudka como seu regente”, sussurrara seu vatarh deitado na cama durante aquele último dia. “Confie nele como você confiaria em mim...”

A verdade era que Audric nunca confiou totalmente em seu vatarh, cujo temperamento e favoritismo eram, na melhor das hipóteses, inconstantes. Mas Sergei... Audric achava que o homem tinha sido a última boa escolha de seu vatarh. Sim, ele podia sofrer cada vez mais nas mãos do regente conforme se aproximava da maioridade, podia se irritar com as pessoas às vezes tratando Sergei como se ele fosse o kraljiki, mas Audric não podia ter pedido um aliado mais leal nos ventos caóticos da corte do kraljiki.

Não importava o que os cortesãos murmuravam a respeito do regente. Não importava o que o homem fazia nas masmorras da Bastida ou com as grandes horizontales que ele às vezes levava para a cama.

— Imagino que devemos redigir um comunicado pela morte do hïrzg — falou Audric. — E que devemos ouvir dez conselheiros diferentes pedindo que respondam de vinte maneiras diferentes. E mais dez assessores que nos dirão o que precisamos fazer a respeito dos Hellins no oeste.

Sergei riu. Seu braço estreitou-se em volta do ombro de Audric, depois soltou o kraljiki e esfregou o nariz de prata como se tivesse sentido uma coceira. — Sem dúvida. Eu diria que o senhor aprendeu muito bem todas suas lições, kraljiki.

 

Sergei ca’Rudka

SUA AUGUSTA PRESENÇA, o kraljiki Audric, curvou-se em sua cadeira elevada e estofada ao lado de Sergei e tossiu tão desesperadamente que o regente inclinou seu corpo na direção do garoto. — O senhor precisa de um pouco do xarope do curandeiro, kraljiki? Eu mando um dos criados trazer aqui... — Ele começou a gesticular, mas Audric pegou seu braço.

— Espere, Sergei. Vai passar — disse Audric ao tomar fôlego três vezes. Espere, Sergei (fôlego). Vai (fôlego) passar... O mero esforço de segurar o braço de Sergei deixou o garoto visivelmente cansado.

Sergei esfregou a superfície reluzente do nariz falso grudado em seu rosto; o original fora perdido há décadas em uma luta de espada na juventude. — O senhor prefere retornar ao palácio, kraljiki? A fumaça dos incensários e o incenso não devem fazer bem para seus pulmões, e a archigos entenderá. De qualquer maneira, ela visitará o senhor assim que terminar aqui.

— Nós ficaremos, Sergei. É aqui que devo estar. — Nós ficaremos (fôlego) Sergei (fôlego, tosse, fôlego). É aqui (fôlego) que devo (fôlego) estar...

Sergei concordou com a cabeça. Quanto a isso, o garoto estava certo. Os dois estavam sentados na sacada real do Templo da Archigos, na margem sul do rio A’Sele, em Nessântico. Embaixo, o piso principal do templo estava lotado de devotos para o Dia do Retorno. A archigos Ana estava com vários a’ténis no coro do templo. Seu cabelo, com mechas grisalhas nas têmporas, reluzia sob a luz das lamparinas mágicas, a voz forte e possante recitava os trechos do Toustour. O Dia do Retorno era a cerimônia do solstício da primavera, que preparava os fiéis para o eventual retorno de Cénzi ao mundo que Ele criara. Comparecer era dever do kraljiki Audric, e era por isso que o templo estava com todos os cantos absolutamente lotados de chevarittai, dos ca’ e co’, de famílias de menor status que conseguiram se enfiar nos espaços que sobraram; todo mundo estava lá para ver o jovem kraljiki e talvez também para ser visto por ele: atrás de um pedido, de uma requisição, ou talvez porque o kraljiki ainda não fosse comprometido com ninguém, apesar dos insistentes rumores de que o regente tinha a intenção de fazer um arranjo com uma das grandes famílias dos Domínios.

Eles também deviam ter notado as tosses fortes e secas do kraljiki, que pontuavam a leitura da archigos Ana. Até mesmo ela parou uma vez no meio da recitação para erguer o olhar com preocupação e solidariedade na direção da sacada. A archigos acenou com a cabeça de maneira praticamente imperceptível para Sergei, e o regente soube que ela correria para o palácio depois da cerimônia. Sergei inclinou o corpo novamente e sussurrou no ouvido do garoto. — A archigos prometeu fazer uma visita após terminarmos aqui e rezar pelo senhor. Ela sempre o ajuda, eu sei. O senhor conseguirá aguentar essa crise sabendo que se sentirá melhor em breve.

Audric concordou com a cabeça, de olhos arregalados, e conteve outra tosse com um lenço perfumado. Sergei perguntou-se se Audric sabia — tanto quanto ele — que a razão pela qual as “preces” da archigos o ajudavam tanto era que Ana usava suas habilidades com a magia do Ilmodo para curar os pulmões arruinados de Audric, o que ia contra as leis da Divolonté que governavam a fé concénziana. Era algo que Ana fazia desde pouco depois do nascimento de Audric, quando ficou claro que a vida do menino estava em perigo. Ela fizera praticamente a mesma coisa pela mamatarh de Audric, a tão lastimada kraljica Marguerite, em seus últimos dias, mantendo a soberana viva quando ela teria morrido sem interferência.

Fazia um mês desde a última visita da archigos Ana com este objetivo; era óbvio que a doença do garoto retornou mais uma vez, como sempre fazia, inevitavelmente. Audric dobrou o lenço e guardou novamente na bashta; Sergei viu manchinhas vermelhas no linho. Não falou nada, mas decidiu que mandaria um recado para Ana dizendo que, em vez de ela ir ao palácio, eles a encontrariam imediatamente depois da missa, nos aposentos da archigos. O garoto precisava de cuidados rapidamente.

Sergei recostou-se na cadeira quando a archigos Ana foi até o Alto Púlpito para proferir a Admoestação para o público, enquanto o coro na galeria começava um hino de Darkmavis. Os ca’ e co’ agitaram-se em suas roupas elegantes. Sergei viu Karl ca’Vliomani acenar com a mão para ele perto da lateral do templo — ca’Vliomani, embaixador da Ilha de Paeti e da facção dos numetodos, não era um fiel, mas Sergei sabia que o embaixador e a archigos Ana tinham sido, se não amantes de fato, ao menos amigos e confidentes desde antes da Batalha dos Brejos, há 24 anos. Durante aquele combate, a jovem archigos Ana usou tanto a magia dos numetodos quanto a própria para tirar a a’hïrzg Allesandra de Firenzcia de seu vatarh e mantê-la como refém contra a retirada do hïrzg. O plano funcionou, embora Firenzcia e os países vizinhos tenham se separado dos Domínios como resultado das hostilidades e tenham formado a Coalizão Firenzciana.

Sergei viu-se considerando, novamente, se a derrota das forças firenzcianas nas mãos de Ana foi realmente o triunfo que todos eles pensavam, se não teria sido melhor para os Domínios que o hïrzg Jan tivesse tomado a cidade e se tornado kraljiki. Se isso tivesse ocorrido, tanto Ana quanto o próprio Sergei estariam mortos, mas muito provavelmente haveria apenas os Domínios, e nenhuma Coalizão rival. Haveria apenas uma fé concénziana. Se isso tivesse ocorrido, o então novo kraljiki teria lidado plenamente com o levante dos ocidentais em Hellins com todos os recursos da Garde Civile, e sem ter que se preocupar com o que poderia acontecer no leste.

Se isso tivesse ocorrido, Justi então, o Tolo Perneta, jamais teria se tornado kraljiki e Audric nunca teria sido seu herdeiro, e Nessântico prosperaria em vez de definhar.

Sergei, francamente, nunca esperou que a archigos Ana fosse capaz de manter o título — ela fora muito jovem e inocente, mas o fogo da Batalha dos Brejos forjou o espírito de aço dentro dela. Ana provou ser mais forte do que qualquer a’téni que pudesse ter tentado tomar seu lugar, mais forte do que o archigos rival em Brezno, e certamente mais forte do que o kraljiki Justi, que acreditou que poderia controlar a Fé através dela.

No fim das contas, Jan não foi capaz de dominar nada: nem Ana, nem a Fé, nem os Domínios. Enquanto Ana fora bem-sucedida de maneira surpreendente como archigos, Justi fora uma catástrofe como kraljiki.

Justi, o Perneta, gastou em duas décadas o que sua matarh e os kralji antes dela levaram mais de cinco séculos para criar, e coube a nós pagar por sua incompetência com os Domínios e a Fé rompidos em facções orientais e ocidentais. E agora os problemas nos Hellins complicam a questão, ao mesmo tempo em que temos um menino no Trono do Sol que pode não viver para gerar um herdeiro.

Sergei suspirou e fechou os olhos enquanto ouvia o coral. Ele iria à Bastida amanhã de manhã e aplacaria suas preocupações com dor. Encontraria alívio nos gritos. Sim, isto seria ótimo. Os acordes finais flutuavam reluzentes na mente do regente, e ele ouviu a archigos subir os degraus do Alto Púlpito.

Sergei se lembraria do momento seguinte pelo resto da vida.

Uma luz violenta e impossível surgiu, como se Cénzi tivesse mandado um raio dos céus através do domo dourado acima. A luz intensa penetrou as pálpebras fechadas de Sergei; um trovão rugiu em seus ouvidos, e uma onda de choque bateu em seu peito. Por instinto, o regente jogou-se sobre Audric, derrubou o garoto no chão da sacada e cobriu o corpo do kraljiki com o próprio corpo. As velhas juntas reclamaram pelo movimento repentino e pelo abuso. Ele ouviu a respiração ofegante de Audric; também ouviu gritos e lamentos vindos de baixo, cortados pelo berro abalado e horrorizado de Karl ca’Vliomani, que ecoou mais alto do que todos eles: — Ana! Ana! Nãoooooo!

— Kraljiki! Regente! — Mãos puxaram e levantaram Sergei, um quarteto da Garde Kralji, cujo dever era proteger o kraljiki e o regente. Uma nuvem de poeira surgiu dentro do templo, e Sergei piscou em meio à poeira; ele mesmo quase não conseguia respirar. O regente ouviu a tosse desesperada de Audric. O templo fedia a enxofre.

— Você e você, escoltem o kraljiki para fora daqui e de volta para o palácio, imediatamente — disse Sergei ao apontar os dedos para os gardai. — Vocês dois, venham comigo.

Sergei desceu correndo a escada da sacada, flanqueado por gardai com espadas desembainhadas e empurrando quem estivesse no caminho. As pessoas gritavam e berravam, ele ouviu os gemidos e ganidos estridentes dos feridos. O regente foi forçado a mancar, pois o joelho direito estava ferido e inchou rapidamente; ele levou muito tempo para descer a escada enquanto agarrava o corrimão a cada degrau. Lá embaixo, tudo era confusão.

— Regente! Aqui! — Aris co’Falla, o comandante da Garde Kralji, fez um gesto acima das cabeças para Sergei enquanto os gardai empurravam a multidão. O barulho de dor e sofrimento era enorme, e o regente notou vários rostos e braços ensanguentados. A fachada do templo estava cheia de pedras quebradas e madeira estilhaçada; ele notou vários corpos nos escombros.

Um dos corpos usava o robe da archigos. Sergei perdeu o fôlego, que foi substituído por uma raiva fria. — Comandante, o que aconteceu aqui?

Co’Falla balançou a cabeça. — Eu não sei, regente. Não ainda. Eu assistia à cerimônia próximo à saída do templo. Quando a archigos chegou ao Alto Púlpito... Eu nunca tinha visto algo assim, regente. Foi alguma espécie de feitiço, tenho quase certeza, mas algo que um téni-guerreiro faria. O clarão, o barulho, a pedra e a madeira e... — Ele franziu a testa. — ... outras coisas voaram para todos os lados. A explosão pareceu ter vindo debaixo do Alto Púlpito. Há pelo menos meia dúzia de mortos, e muitos mais feridos, alguns gravemente...

O regente gemeu pela dor no joelho ao se ajoelhar ao lado do corpo de Ana. O rosto estava praticamente irreconhecível, ela perdera a metade inferior do corpo completamente e o braço direito. Sergei soube imediatamente que Ana estava morta, que não havia esperança ali. Uma estranha poeira negra cobria o chão em volta dela. Ele virou o rosto e viu Karl ca’Vliomani sendo contido pelos gardai, com o rosto em pânico e a bashta coberta de pó. Sergei ficou de pé devagar e fez uma careta quando os joelhos estalaram. — Cubra a archigos e os outros corpos — falou o regente para co’Falla. — Tire todo mundo do templo, a não ser os ténis e os gardai. Mande chamar o comandante co’Ulcai da Garde Civile se precisar de mais ajuda. — Ele estremeceu ao respirar. — E deixe o embaixador vir até mim.

Co’Falla meneou a cabeça e deu as ordens. Ca’Vliomani disparou imediatamente na direção do corpo de Ana, Sergei interceptou o embaixador. — Não — ele disse para Karl ao agarrar seus ombros. — Ela morreu, Karl. Não há nada que você possa fazer. Nada.

Ele sentiu o homem desmoronar e ouviu um soluço. — Sergei, eu tenho que vê-la. Por favor. Eu preciso saber. — Seu olhar estava abalado, e subitamente Karl ca’Vliomani pareceu décadas mais velho. O sotaque de Paeti, que o embaixador jamais perdeu, apesar dos anos em Nessântico, ficou mais forte do que nunca nesse momento.

— Não, você não precisa, meu amigo — insistiu Sergei. — Por favor, me ouça. Você não quer que esta seja a última imagem que tem dela. Você não quer isso. De verdade. Eu digo isso pelo seu bem.

Então ca’Vliomani começou a chorar, e Sergei segurou o embaixador enquanto os gardai se movimentavam em volta deles, conforme os ténis do templo — calados pelo choque e horror — cuidavam dos mortos e feridos, e a poeira negra assentava-se sobre eles e ao redor deles, e o rugido do feitiço ecoava eternamente nos ouvidos de Sergei.

Ele achava que jamais se esqueceria daquele som e perguntou-se o que ele anunciava: para si próprio, para Audric, para a fé concénziana, para Nessântico.

 

Nico Morel

NICO TOMOU UM PEQUENO GOLE DO CHÁ que sua matarh colocara diante dele, com a caneca de madeira nas duas mãos pequenas. — Matarh, por que alguém iria querer matar a archigos Ana?

— Eu não sei, Nico — respondeu ela, que colocou uma fatia de pão e alguns pedaços de queijo diante do filho, na mesa arranhada perto da janela. A mulher afastou as mechas do cabelo castanho de sua testa e olhou pelas persianas abertas para a rua estreita do lado de fora. — Eu não sei — repetiu. — Só torço...

— A senhora torce para que, matarh?

Ela balançou a cabeça. — Por nada, Nico. Ande, coma.

Eles compareceram à cerimônia do Dia do Retorno no Parque do Templo, à distância de uma longa caminhada de seu apartamento no Velho Distrito. Nico sempre gostava quando eles iam ao Parque do Templo, pois o espaço verde e aberto contrastava bastante com as ruas sujas e apinhadas de gente do labirinto do Velho Distrito. Bem na hora em que saíam do parque, eles ouviram as trompas começarem a soar, e então os rumores se espalharam pela multidão como fogo em um campo seco de verão: a archigos tinha sido morta. Por magia, diziam alguns. Magia terrível, como a que os hereges numetodos sabiam fazer, ou talvez um téni-guerreiro.

Nico chorou um pouco, porque todo mundo chorava, e sua matarh pareceu preocupada. Eles voltaram correndo para casa.

Certa vez, a matarh de Nico atravessou a Pontica Mordei na direção da a Ilha A’Kralji com o filho, e eles viram o terreno do palácio do regente e do Velho Templo, o primeiro construído em Nessântico. Nico ficou maravilhado com o novo domo que estava sendo construído no topo do Velho Templo, com as fileiras de andaimes que alçavam os trabalhadores tão alto no céu, de maneira impossível. Nico ficou tonto só de vê-los.

Depois, eles passaram pela Pontica a’Brezi Nippoli na direção da margem sul, onde a maioria dos ca’ e co’ viviam. Nico atravessou com sua matarh o grande complexo do Templo da Archigos e viu a archigos em pessoa: uma figura minúscula de verde em uma das janelas dos prédios ligados ao enorme templo que acenava para a multidão na praça.

Agora ela estava morta. Algo fácil de imaginar. A morte era totalmente comum; Nico costumava vê-la nas ruas, e a viu visitar a sua própria família. A matarh disse que Ana era a archigos desde quando ela era um bebê, e a matarh tinha 28 anos — praticamente uma anciã, portanto, não chegava a ser uma surpresa que a archigos morresse. Nico mal se lembrava de sua mamatarh, que morreu quando ele tinha cinco anos. Talvez ela fosse tão velha quanto a archigos Ana. Nico lembrava-se muito do irmão mais velho, que morreu de febre do sul há quatro anos. A matarh disse que houve outro irmão, ainda mais velho, que também morreu, mas Nico não se lembrava dele. Havia Fiona, a irmã que nascera primeiro — Nico não sabia se ela ainda estava viva, embora sempre tenha imaginado que estivesse; ela fugira aos 12 anos, há quase três anos agora. Talis vivia com eles — Talis vivia com a matarh desde que Nico se entendia por gente, mas Fiona dissera a ele que nem sempre foi assim, que houve outro homem antes de Talis, que era o vatarh de Fiona e de seus irmãos. Ela dissera que Talis era o vatarh de Nico, mas que nunca quis ser chamado assim.

Nico sentia saudade de Fiona. Ele às vezes imaginava que a irmã tinha ido para outra cidade e ficado rica. Gostava de pensar assim, às vezes. Sonhava com o retorno de Fiona a Nessântico com um ce’ ou até mesmo um ci’ antes do nome, e ele abriria a porta para vê-la sorrindo com uma tashta limpa e muito colorida. — Nico — diria a irmã. — Você, a matarh e Talis vão morar comigo...

Talvez Nico saísse de casa quando tivesse 12 anos também, daqui a dois anos. Nico notou as rugas marcadas no rosto da matarh enquanto ela olhava para a rua lá fora. O cabelo nas têmporas tinha mechas grisalhas. — A senhora está esperando por Talis? — perguntou ele.

Nico viu a testa franzida, depois o sorriso quando ela se virou para ele. — Apenas coma, querido. Não se preocupe com Talis. Ele vai chegar em breve.

Nico concordou com a cabeça enquanto roía a crosta dura do pão quase velho e tentava evitar o molar solto no fundo da boca que ameaçava cair, o último dos dentes de leite. Ele não estava preocupado com Talis, apenas com o dente. Não queria perdê-lo, uma vez que, se perdesse, a matarh mandaria que ele esmagasse o dente com um martelo até virar pó, e isso era muito trabalhoso. Quando Nico terminasse, ela o ajudaria a salpicar o pó em um pouco de pão umedecido com leite, e os dois colocariam o pão do lado de fora da janela ao lado de sua cama. À noite, ele ouviria os ratos e camundongos comerem a oferenda e correrem de um lado para o outro lá fora. De manhã, o prato estaria vazio; a matarh dizia que isso significava que seus novos dentes cresceriam tão fortes quanto os dentes de um rato.

Nico já tinha visto o que os ratos conseguiam fazer com os dentes. Eles podiam arrancar a carne de um gato morto em poucas horas. Nico torcia para que seus dentes ficassem fortes assim. Ele meteu o indicador na boca e mexeu no dente, sentiu que balançava facilmente para trás e para frente nas gengivas. Se puxasse com força, o dente sairia...

— Serafina?

Nico ouviu Talis chamar sua matarh. Ela correu até ele e os dois se abraçaram logo após Talis fechar a porta ao entrar.

— Eu estava preocupada — disse sua matarh. — Quando soube...

— Shh... — falou Talis ao dar um beijo na testa de Serafina. Seu olhar estava voltado para Nico, que observava os dois. — Ei, Nico. Sua matarh levou você ao Parque do Templo hoje?

— Sim — respondeu Nico. O menino se aproximou dos dois e se esgueirou em sua matarh, de maneira que ela passasse o braço por ele. Nico torceu o nariz e ergueu os olhos para o homem. — Você está com um cheiro esquisito, Talis.

— Nico... — A matarh começou a falar, mas Talis riu e mexeu no cabelo de Nico. O menino odiava que ele fizesse isso.

— Tudo bem, Serafina — disse Talis. — Não se pode culpar o menino por ser honesto. — Ele não falava como as outras pessoas do Velho Distrito; Talis pronunciava as palavras de um modo esquisito, como se a língua não gostasse do sabor das sílabas, então ele as cuspia o mais rápido possível em vez de falar com calma, como a maioria das pessoas fazia. Talis agachou-se próximo a Nico e disse — Eu passei por um incêndio a caminho daqui. Havia muita fumaça preta. Os ténis-bombeiros apagaram o fogo, contudo.

Nico assentiu com a cabeça, embora achasse que Talis não cheirava exatamente à fumaça. O odor era mais intenso e pungente. — A archigos Ana morreu, Talis — falou o menino.

— Foi o que eu ouvi — respondeu Talis. — O regente vai varrer a cidade à procura de um bode expiatório para culpar. É hora de os estrangeiros não chamarem atenção se quiserem continuar a salvo. — Ele parecia falar mais para a matarh de Nico do que para o menino, os olhos erguidos na direção dela.

— Talis... — A matarh sussurrou o nome da mesma maneira que às vezes dizia o de Nico quando o menino estava doente ou tinha se machucado. Talis ficou de pé novamente e a abraçou. — Vai ficar tudo bem, Sera. — Nico ouviu Talis sussurrar para ela. — Eu prometo.

Enquanto ouvia Talis, Nico empurrou o dente solto com a língua. Ele escutou um estalinho e sentiu gosto de sangue.

— Matarh, meu dente caiu...

 

Allesandra ca’Vörl

— MATARH?

Allesandra ouviu o chamado, seguido por uma batida hesitante na porta. Seu filho, Jan, estava parado na porta aberta. Aos 15 anos, quase 16, ele era magricelo e desajeitado. Somente nos últimos meses o corpo começara a se transformar no de um jovem, com uma bela penugem no queixo e debaixo dos braços. Ele ainda era bem mais baixo do que as meninas da mesma idade, muitas das quais tiveram a primeira menarca no ano anterior. Batizado com o nome do vatarh de Allesandra, ela enxergava algumas características dele no filho, mas também havia um forte traço da família ca’Xielt — a família de Pauli. Jan tinha a cor da pele mais escura dos magyarianos, os olhos negros e o cabelo encaracolado quase preto de seu vatarh. Ela duvidava que algum dia o filho teria a musculatura mais parruda dos ca’Belgradin, como a de seu onczio Fynn, que o vavatarh Karin e o vatarh Jan de Allesandra também possuíram.

Ela, às vezes, tinha dificuldade em imaginar o filho galopando loucamente para entrar em combate — embora Jan cavalgasse tão bem quanto qualquer pessoa e possuísse a visão aguçada que um arqueiro invejaria. Ainda assim, ele geralmente parecia mais à vontade com pergaminhos e livros do que com espadas. E, apesar da linhagem paterna, apesar do ato (por puro dever) que o produziu, apesar do mau humor e da raiva mal contida que pareciam consumi-lo ultimamente, Allesandra amava o filho mais do que pensou ser possível amar alguém.

E ela temeu, especialmente no ano anterior, que estivesse perdendo Jan, que ele pudesse estar cedendo à influência de Pauli. Ele esteve ausente na maior parte da vida do filho, mas talvez essa fosse a sua vantagem: era mais fácil não gostar do vatarh ou da matarh que estava sempre corrigindo; admirar aquele ou aquela que deixava fazer o que quisesse. Houve aquele incidente com a funcionária, e Allesandra precisou mandá-la embora — aquilo foi bem parecido com Pauli.

— Entre, querido — chamou Allesandra.

Jan aquiesceu sem sorrir, foi até a penteadeira onde ela estava sentada e encostou os lábios no topo da cabeça da matarh, um beijo discretíssimo, enquanto as mulheres que ajudavam Allesandra a se vestir se afastavam em silêncio. — O onczio Fynn mandou que eu buscasse a senhora — falou Jan. — Evidentemente chegou o momento. — Uma pausa. — E evidentemente eu sou pouco mais do que um criado para ele. Apenas um traste magyariano que serve para levar recados.

— Jan! — disse Allesandra com rispidez. Ela apontou para as aias com o olhar. Todas eram magyarianas ocidentais, parte da comitiva que veio de Malacki com Jan.

Ele deu de ombros, sem se importar. — A senhora vem, matarh, ou vai me mandar de volta para Fynn com sua própria resposta, como se eu fosse um bom menininho de recados?

Você não pode responder aqui do jeito que quer. Não onde tudo o que nós dissermos possa virar fofoca na corte hoje à noite. — Estou quase pronta, Jan. — Allesandra gesticulou. — Vamos descer juntos, uma vez que você já está aqui. — As aias voltaram, uma escovou o cabelo dela, outra colocou no pescoço
o colar de pérolas que antigamente fora de sua matarh Greta, e mais uma ajustou as dobras da tashta. Allesandra passou outro colar para a aia: um globo partido em uma corrente elegante, com continentes de ouro, mares do mais puro lápis-lazúli, e a fenda cheia de rubis nas profundezas: o globo de Cénzi. A archigos Ana dera o colar para Allesandra quando ela teve a primeira menarca, em Nessântico.

— Isto antigamente pertencia ao archigos Dhosti — dissera Ana para ela. — Ele deu para mim; agora eu dou para você. — Allesandra tocou o globo enquanto a criada o prendia em seu pescoço e lembrou-se de Ana: o som da voz, seu cheiro.

— Todo mundo vive me dizendo que o onczio Fynn dará um belo hïrzg — disse Jan, e a lembrança foi interrompida.

— Eu sei. — Allesandra começou a dizer. E por que você esperaria outra coisa?, ela queria acrescentar. Jan entendia muito bem a etiqueta da corte para saber disso.

Evidentemente ele viu o comentário implícito no rosto da matarh. — Eu não tinha terminado. Eu ia dizer que a senhora daria uma hïrzgin melhor. Era a senhora que deveria usar a coroa e o anel, matarh.

— Quieto — falou Allesandra novamente para Jan, embora com mais gentileza desta vez. As aias eram dela, era verdade, mas nunca se sabia. Segredos podiam ser comprados ou arrancados pelo amor ou pela dor. — Nós não estamos em casa, Jan. Você tem que se lembrar disso. Especialmente aqui...

A expressão mal-humorada de Jan foi desfeita por um momento, e ele pareceu tão arrependido que toda a irritação de Allesandra passou. Ela fez um carinho no braço do filho. Era assim com Jan nos últimos tempos: cara fechada em um instante e sorrisos afetuosos no próximo. No entanto, as caras fechadas apareciam mais frequentemente conforme a criança amorosa dentro dele recuava cada vez mais fundo no interior da nova carapaça adolescente. — Tudo bem, Jan. Apenas... bem, você tem que tomar muito cuidado enquanto estivermos aqui. Sempre. — E especialmente com Fynn. Ela tirou a ideia da cabeça. Diria para Jan mais tarde. Em particular. Allesandra ficou de pé e as criadas foram embora, como folhas no outono. Ela abraçou Jan: ele permitiu o gesto, e nada mais, os próprios braços mal se mexeram. — Tudo bem, vamos descer agora. Lembre-se de que você é o filho do a’gyula da Magyaria Ocidental, e também o filho da atual a’hïrzg de Firenzcia.

Fynn dera o título a Allesandra ontem, após a morte do vatarh: o título que deveria ter sido dela desde o início, que a teria tornado hïrzgin. Ela sabia que até mesmo este presente era temporário, que Fynn nomearia outra pessoa como a’hïrzg com o tempo: o próprio filho, talvez, se algum dia ele se casasse e produzisse um herdeiro, ou algum protegido da corte. Allesandra seria a herdeira de Fynn até ele encontrar alguém de quem gostasse mais.

— Matarh — interrompeu Jan. Ele bufou bem alto, e a cara fechada voltou. — Eu conheço o sermão. “Os olhos e ouvidos dos ca’ e co’ estarão em você.” Eu sei. A senhora não precisa me dizer. De novo.

Allesandra gostaria de poder acreditar nisso. — Tudo bem — falou baixinho. — Vamos descer então e ficar com o novo hïrzg enquanto sepultamos seu vavatarh.

Com a morte do hïrzg Jan, foi proclamado o obrigatório mês de luto e marcadas uma dúzia de cerimônias necessárias. O novo hïrzg, Fynn, presidiria vários rituais nas próximas semanas: alguns apenas para os ca’ e co’, outros para o benefício moral do público. O Besteigung formal, o ritual final, aconteceria no fim do mês, no Templo de Brezno, presidido pelo archigos Semini — marcado assim para dar tempo de os líderes dos outros países da Coalizão Firenzciana chegarem a Brezno para prestar homenagem ao novo hïrzg. Allesandra já havia sido informada de que o a’gyula Pauli chegaria para o Besteigung, pelo menos — ela já estava apreensiva pela chegada do marido.

E hoje à noite... hoje à noite era o Confinamento.

Os kralji queimavam os mortos; os hïrzgai os enterravam. O corpo do hïrzg Jan seria enterrado na catacumba dos ca’Belgradins, onde várias gerações de seus ancestrais estavam sepultadas, e um punhado ou mais destes antecessores dividiram com Jan a coroa dourada que agora estava na cabeça de Fynn. Fynn aguardava Allesandra e Jan nos próprios aposentos; dali, eles desceriam para as catacumbas abaixo do piso térreo do Palácio de Brezno. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos e outros nobres de Firenzcia já esperavam por eles lá.

Os salões do palácio estavam em silêncio, os criados que Jan e Allesandra viram pararam o que faziam e curvaram-se calados com os olhos abaixados conforme eles passavam. Dois gardai parados do lado de fora dos aposentos de Fynn abriram as portas quando eles se aproximaram. Allesandra ouviu vozes vindo do interior quando ela e o filho entraram.

— ... acabo de receber notícias de Gairdi. Isto vai complicar a situação. Não sabemos exatamente o quanto, ainda... — O archigos Semini ca’Cellibrecca parou no meio da frase assim que Allesandra e Jan entraram na sala. O homem sempre trouxera a imagem de um urso à mente de Allesandra, desde quando ela era uma criança, e ele, um jovem téni-guerreiro em ascensão: mesmo quando moço, Semini era enorme, peludo e perigoso. A barba negra agora estava salpicada de branco, e a massa de cabelo encaracolado recuava na testa como uma maré lenta, mas ele ainda era parrudo e musculoso. O archigos fez o sinal de Cénzi para Jan e Allesandra, com as mãos entrelaçadas na testa, enquanto sua esposa, Francesca, fazia o mesmo atrás dele. Disseram para Alle-sandra que antigamente Francesca era linda; na verdade, havia rumores de que ela um dia fora amante de Justi, o Perneta, mas Allesandra não a conhecia na época. Agora Francesca era uma matrona corcunda sem vários dentes, com o corpo arrasado pelos rigores de uma dezena de gestações ao longo dos anos. A personalidade era tão amarga quanto o rosto.

Fynn levantou-se da cadeira.

— Irmã — disse ele enquanto pegava as mãos de Allesandra ao ficar diante dela. Fynn sorria, parecia quase exultante. — Semini acabou de trazer notícias interessantes de Nessântico. A archigos Ana foi assassinada.

Allesandra engasgou, sem conseguir esconder sua reação. As mãos se dirigiram para o pingente com o globo partido no pescoço, então ela se forçou a abaixá-las. A sensação era de que não conseguiria respirar. — Assassinada? Por quem...? — Allesandra parou e olhou para Semini, que também sorria, quase presunçoso, pensou ela, e depois se voltou para o irmão. — Fomos nós? — perguntou. A voz saiu afiada como uma adaga. Ela sentiu Jan colocar a mão em seu ombro por trás ao sentir sua angústia.

Fynn deu um muxoxo de desdém e perguntou — Isso faria diferença?

— Sim — disse Allesandra para ele. — Apenas um tolo pensaria o contrário. — As palavras saíram antes que ela conseguisse impedi-las. E bem depois que acabei de alertar Jan...

Fynn fechou a cara diante do insulto implícito. A mão de Jan apertou o ombro de Allesandra. Semini pigarreou alto antes que Fynn pudesse falar.

— Isso não foi obra do hïrzg, Allesandra. — Semini respondeu rapidamente enquanto balançava a cabeça e abanava a mão com desdém. — Firenzcia pode estar em desacordo com a Fé em Nessântico, mas o hïrzg não participa de assassinatos. Nem a Fé.

Ela olhou de Semini para Francesca. A mulher afastou o olhar rapidamente, mas não tentou esconder a satisfação no rosto. O prazer com a notícia era óbvio. A mulher tinha tanto calor humano quanto o inverno de Boail. Allesandra perguntou-se se algum dia Semini gostou dela ou se o casamento entre os dois era tão sem amor e premeditado quanto o seu, apesar dos vários filhos do casal. Allesandra não conseguia imaginar se submeter ao prazer de Pauli com tanta frequência. — Temos certeza de que esta informação é verdadeira? — perguntou ela para o archigos.

— Ela veio até mim por três fontes diferentes, uma em que confio implicitamente, o comerciante Gairdi, e todas concordam nos detalhes básicos — falou Semini. — A archigos Ana realizava a missa do Dia do Retorno quando houve uma explosão. “Como o feitiço de um téni-guerreiro”, todos dizem, o que quer dizer que foi alguém usando o Ilmodo. Isso está claro.

— O que também quer dizer que eles podem se voltar para o leste, em nossa direção — disse Fynn. Ele parecia ávido pela ideia, como se estivesse ansioso para convocar o exército de Firenzcia para a batalha. Isso seria a cara dele; Allesandra ficaria terrivelmente surpresa se o reinado de Fynn fosse pacífico.

— Ou eles se voltarão para o oeste — argumentou Allesandra, e Fynn olhou para a irmã como se ela fosse um inseto chato e insistente. — Nessântico também tem inimigos lá, e os ocidentais também podem usar o Ilmodo, mesmo que o chamem por outro nome, como os numetodos.

— Os ocidentais? Como os numetodos, eles são hereges que merecem a morte — disparou Semini. — Eles abusam da dádiva de Cénzi, que é destinada apenas aos ténis, e um dia nós os faremos pagar pelo insulto, se Nessântico não fizer isso.

Fynn grunhiu em acordo com a opinião, e Allesandra viu o filho Jan também aquiescer com a cabeça — isso também era a influência do maldito vatarh do menino, ou pelo menos do téni magyariano que Pauli insistiu que educasse o filho deles, apesar das reservas de Allesandra. Ela cerrou os lábios.

Ana está morta. Ela colocou os dedos no colar do globo partido, sentindo sua superfície lisa e cravejada. O toque trouxe novamente a memória do rosto de Ana, do sorriso assimétrico que surgia nos lábios da mulher quando algo a divertia, das rugas severas que apareciam em volta dos olhos quando ficava irritada. Allesandra passou uma década com Ana; captora, amiga e matarh postiça, tudo ao mesmo tempo para ela durante os longos anos que passou como refém de Nessântico. Os sentimentos de Allesandra para com Ana eram tão complexos e contraditórios quanto o relacionamento entre as duas. Eles eram quase tão conflitantes quanto os sentimentos com relação ao vatarh, que a deixara em Nessântico enquanto Fynn se tornava o a’hïrzg e seu favorito.

Allesandra queria chorar por causa da notícia, de tristeza por alguém que a tratou bem, com gentileza, quando não havia obrigação alguma para que agisse assim. Mas ela não podia chorar. Não aqui. Não na frente de pessoas que odiavam a mulher. Aqui, Allesandra teria que fingir.

Mais tarde. Mais tarde eu choro por ela como se deve...

— Eu esperava um pouco mais de reação de você, irmã — disse Fynn. — Afinal, aquela mulher abominável e o impostor perneta mantiveram você como prisioneira. O vatarh praguejava sempre que alguém falava o nome dela e dizia que Ana não era diferente de uma bruxa.

Fynn observava Allesandra, e ambos sabiam o que ele deixou de fora no comentário: que o hïrzg Jan poderia ter pagado o resgate por ela a qualquer momento durante aqueles anos, e que, se ele o tivesse feito, provavelmente a coroa dourada estaria na cabeça de Allesandra, não na de Fynn. — Você não ficará aqui nem meio ano — disse Ana para Allesandra naqueles primeiros meses. — O kraljiki Justi cobrou um resgate justo, e seu vatarh irá pagá-lo. Em breve...

Mas, por algum motivo, o hïrzg Jan não pagou.

Allesandra fez uma expressão impassível. Você não vai chorar. Não vai deixar que eles vejam seu sofrimento. Não era difícil; era o que ela fazia frequentemente, e dava certo na maioria das vezes. Allesandra sabia como os ca’ e co’ a chamavam pelas costas: a Megera de Pedra. — A morte de Ana ca’Seranta é importante. Eu agradeço ao archigos Semini por nos trazer a notícia, e nós devemos, nós temos que decidir o que isso significa para Firenzcia, mas ainda levaremos semanas para conhecer todas as consequências. E neste momento o vatarh espera por nós. Eu sugiro que cuidemos dele primeiro.

 

As Tumbas dos Hïrzgai eram catacumbas abaixo do Palácio de Brezno, não eram como os níveis inferiores da mais nova propriedade privada fora da cidade conhecida como Encosta do Cervo, que fora construída na época do hïrzg Karin. Uma escada comprida e larga descia para as Tumbas, e uma crosta de nitrato cobria as paredes suadas e crescia como pústula branca nas faces dos murais pintados ali há dois séculos e restaurados uma dezena de vezes desde então: a umidade sempre vencia os pigmentos. Um ar frio, quase fétido, subia lá de baixo, como se os avisasse que o reino dos mortos se aproximava. As tochas acesas nos suportes preveniam a escuridão, mas tornavam as sombras da ocasional passagem lateral mais escuras e misteriosas em contraste. Uma dezena de gerações de hïrzgai esperava por eles lá embaixo, com suas várias esposas e muitos dos descendentes diretos. O irmão mais velho de Allesandra, Toma, fora enterrado ali quando ela era apenas um bebê, e sua matarh, Greta, estava deitada ao lado dele há 19 anos agora. Com o tempo, a própria Allesandra poderia se juntar à família, embora passar a eternidade ao lado da matarh Greta não fosse uma ideia agradável.

A procissão desceu pela escadaria em um silêncio pomposo: em frente os e’ténis com lamparinas acesas por fogo mágico, depois o hïrzg Fynn acompanhado pelo archigos Semini e Francesca, e Allesandra e Jan alguns passos atrás deles, seguidos por um último grupo de criados e e’ténis. Conforme eles se aproximavam da entrada ricamente entalhada em direção às catacumbas, decoradas com baixos-relevos de feitos históricos dos hïrzgai, Allesandra pôde ouvir sussurros, o farfalhar de tecido e um espirro ou tosse ocasionais: os ca’ e co’ foram convidados para testemunhar as cerimônias. Era a elite de Firenzcia, a maioria composta por parentes de Fynn e Allesandra: famílias que haviam sido misturadas com a deles, ou aqueles que serviram por décadas ao hïrzg Jan.

Luzes mágicas e de tochas banhavam os corpos enroscados de criaturas fantásticas entalhados nas paredes, as sisudas feições esculpidas dos hïrzgai e os corpos massacrados dos inimigos aos seus pés. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos entraram em posição de sentido, as lanças (com lâminas cobertas por panos vermelhos) bateram contra as lustrosas armaduras de gala. Os outros ca’ e co’ fizeram mesuras e os sussurros caíram no silêncio quando o novo hïrzg entrou na câmara enorme. Allesandra notou os olhares deslizarem de Fynn para ela, e também para Jan. O filho notou a atenção; ela sentiu Jan respirar fundo e empertigar o corpo. Allesandra acenou para eles — um movimento mínimo da cabeça, um sorriso quase imperceptível.

Olhe para ela, tão fria quanto esta câmara... Era o que alguns deles deveriam estar pensando. Com certeza ela está contente de ver o velho Jan morto depois de ele deixá-la com o kraljiki e a falsa archigos por tanto tempo. Ela provavelmente deseja que Fynn também estivesse lá com o vatarh para que ela pudesse ser a hïrzgin.

Nenhum deles conhecia Allesandra. Nenhum deles conhecia seus verdadeiros pensamentos. Com efeito, ela mesma não tinha certeza se sabia. Allesandra ainda estava abalada com a notícia sobre Ana, e se demonstrava sinais de tristeza, era pela archigos, não pelo vatarh.

O caixão que continha os restos do hïrzg Jan estava perto da entrada da câmara de confinamento, ao lado da enorme pedra redonda que selaria o nicho.
O caixão estava coberto por uma tapeçaria que representava sua vitória sobre o t’sha no lago Cresci. Não havia nada que celebrasse Passe a’Fiume ou o ataque tolo e ousado contra Nessântico há uma década: aqueles dias em que Allesandra cavalgara com ele, quando olhava o vatarh com adoração, quando ele prometera dar para ela a cidade de Nessântico.

Em vez disso, Nessântico tirou Allesandra de seu vatarh e deu a Fynn o lugar de braço direito de Jan.

Fynn prestou continência aos lanceiros, que relaxaram sua postura, e disse — Eu gostaria de agradecer a todos por estarem aqui. Eu sei que o vatarh olha lá de cima, dos braços de Cénzi, e agradece esse tributo a ele. E também sei que o vatarh nos perdoaria por não ficarmos muito tempo aqui quando lareiras e comidas quentes esperam por nós lá em cima. — Fynn recebeu risos discretos ao dizer isso e sorriu. — Archigos, por obséquio...

Semini dirigiu-se rapidamente à frente com os ténis e abençoou o caixão. Ele chamou Allesandra e Jan com um gesto quando os ténis começaram a entoar a oração. Os dois foram até o caixão e colocaram as mãos na tapeçaria. — Eu queria que você tivesse tido a chance de conhecê-lo melhor — sussurrou ela para Jan e colocou a mão em cima da mão do filho enquanto os ténis entoavam. — Ele não foi sempre tão furioso e rude quanto nos últimos anos.

— A senhora me disse isso — falou Jan. — Várias vezes. Mas, ainda assim, não é a memória dele que levarei comigo, não é? — Ela olhou para o filho; ele olhou com uma cara feia para o caixão.

— Falaremos a respeito disso depois — disse Allesandra.

— Não duvido, matarh.

Allesandra conteve a resposta que teria dado; ela não falaria nada aqui. As pessoas já olhavam com curiosidade, imaginavam que segredos os dois estariam sussurrando e o porquê da rispidez na voz de seu filho. Allesandra ergueu a mão e deu um passo para trás para permitir que Fynn se aproximasse.

Ela imaginou o que o irmão estaria pensando ao ficar parado ali, com a mão no caixão e a cabeça baixa.

Após alguns minutos, Fynn também se afastou. Ele acenou com a cabeça para os lanceiros; quatro vieram à frente para pegar o caixão. Com expressões soturnas, eles ergueram e enfiaram o caixão no nicho que o aguardava. A pedra roçou na madeira, e o som ecoou. Os quatro deram passos para trás, e outro quarteto empurrou com os ombros o selo de pedra, que gemeu e resistiu enquanto rolava devagar. A enorme roda de pedra avançou por um sulco aberto no chão na direção da enorme fenda onde se assentaria e ficaria. A pedra era entalhada com glifos em firenzciano antigo, uma língua falada hoje apenas por estudiosos, tão grossa quanto o braço de uma pessoa e com metade da altura de um homem. Quando a grande roda chegou ao fim do sulco e entrou na brecha onde deveria ficar, houve um enorme som de rachadura. Uma fenda cortou a face entalhada da roda e um terço da parte de cima desmoronou. Allesandra sabia que deveria ter dado um alerta, mas tudo acabou antes que qualquer um deles pudesse se mexer ou reagir. A massa de pedra esmagou completamente um lanceiro embaixo dela e as pernas de outro soldado ao cair no chão.

Os gritos do lanceiro preso eram agudos e estridentes, e sangue espesso escorreu debaixo da pedra.

Isso é um sinal... Ela não conseguiu evitar o pensamento enquanto o restante dos lanceiros avançou e os ca’ e co’, ténis e criados corriam para ajudar ou encaravam paralisados o horror no fundo da câmara. Jan estava entre aqueles que tentavam desesperadamente levantar a lápide, e Fynn gritava ordens inúteis no caos.

Foi o vatarh que fez isso. De alguma forma, ele fez isso. Ele não descansa em paz...

 

Enéas co’Kinnear

ELE IA MORRER aqui nos Hellins.

A sensação de um destino horrível tomou conta de Enéas enquanto ele estava com as forças dos Domínios no cume de um morro não muito longe das cercanias de Munereo. As tropas observavam os estandartes de formato estranho dos ocidentais se aproximarem vindos da direção do lago Malik, e Enéas escutava o início dos cânticos dos ténis-guerreiros em preparação para a batalha. O a’offizier Meric ca’Matin estava com ele, assim como os outros offiziers do batalhão e vários pajens prontos para levar mensagens entre as companhias. As cornetas e bandeiras estavam de prontidão para transmitir ordens. A uma centena de passos encosta abaixo, as fileiras do exército dos Domínios estavam reunidas, inquietas e nervosas.

Enéas esteve em meia dúzia de batalhas e incontáveis escaramuças e confrontos nos últimos anos. Esta sensação de ruína iminente era algo que nunca havia sentido antes. Ele sentiu o suor descer pelo rosto debaixo do elmo grosso de ferro, e não era apenas o sol que causava a transpiração. Enéas queria gritar em negação para o céu, mas não podia. Não aqui. Não na frente de suas tropas. Em vez disso, abaixou a cabeça e rezou.

Ó, Grande Cénzi, por que o Senhor manda esta premonição para mim? O que o Senhor está me dizendo?

Enéas era um o’offizier da Garde Civile dos Domínios. Seu comandante de campo, o a’offizier ca’Matin, dissera justamente ontem que tinha feito a recomendação de que Enéas fosse sagrado chevaritt, que o documento já estava cruzando o Strettosei a caminho de Nessântico. Seu vatarh ficaria orgulhoso — há 25 anos, o vatarh de Enéas serviu com o regente ca’Rudka em Passe a’Fiume e ficou severamente queimado, perdeu um braço e um olho durante aquele cerco horrível. A Garde Civile dera a condecoração e a pensão que ele merecia, e embora a família tenha sido promovida de ce’Kinnear para ci’Kinnear como consequência, seu vatarh sempre falava que poderia ter se tornado um chevaritt se não tivesse sido ferido, que aquelas aspirações foram arrancadas pelo fogo mágico firenzciano que o desfigurou e encerrou sua carreira.

Enéas nunca quis ser um chevaritt ou um offizier. Teria preferido seguir a carreira de um téni da fé concénziana do que aquela que encontrou na Garde Civile. Ele sentia o chamado de Cénzi desde que era um menino; na verdade, Enéas pediu aos pais que o mandassem para o templo como um acólito. Porém, seu vatarh insistiu que trilhasse o caminho marcial. — Somos apenas ci’, e mal conseguimos nos manter assim — dissera o vatarh. — Nossa família não tem as solas para mandá-lo para os ténis. Isso é uma coisa para os ca’ e co’, que podem bancar. Você entrará para a Garde, como eu. Vai fazer como eu fiz...

Enéas saiu-se melhor que seu vatarh. “Falsoténi” era como seus homens o chamavam por sua religiosidade, por seguir rigidamente as regras da Divolonté, e pela insistência em que seus comandados comparecessem aos rituais no Templo de Munereo nos Dias da Observância, como era devido. Mas seus comandados também alegavam que o próprio Cénzi protegia Enéas — e que, através de Éneas, eles próprios eram protegidos. Na Batalha das Colinas perto do lago Malik, como um e’offizier, em sua segunda batalha de verdade, ele foi o único offizier sobrevivente de sua companhia, quando os homens foram massacrados por uma força ocidental bem superior. Enéas conseguiu surpreender os ocidentais ao fingir uma retirada, depois marchou com o restante das tropas pelos pântanos para atacar o inimigo por um flanco desprotegido pelos nahualli — os terríveis feiticeiros ocidentais, aqueles que chamavam o Ilmodo de X’in Ka.

Hereges, eles eram. Falsos ténis que adoravam falsos deuses. Pensar nos nahualli enfurecia Enéas.

Ele conseguiu infligir grandes baixas no flanco dos ocidentais e manter a posição até a chegada de reforços. Como recompensa por suas ações, Enéas foi promovido a o’offizier; poucos meses depois, após a Campanha dos Brejos Profundos, o a’offizier ca’Matin disse que a Gardes a’Liste promovera sua família a co’.

Quando o período de serviço militar terminasse, daqui a um ano, após voltar para Nessântico, Enéas prometeu a Cénzi que daria baixa na Garde Civile e se ofereceria para o treino como téni, mesmo que ele fosse muito mais velho do que os acólitos usuais. Enéas tinha certeza de que isso era o que Cénzi queria dele.

A Guerra dos Hellins vinha sendo boa para Enéas, embora não para os Domínios.

Ao menos vinha sendo assim até essa sombra surgir. Esse arrepio na espinha.

Não é uma premonição. É apenas medo...

Ele sentiu medo antes. Todo soldado sentia medo, a não ser que fosse um completo tolo, mas Enéas nunca tinha sido tocado pelo sentimento dessa forma. O medo estremecia os ossos na carne; fazia o sangue zunir nos ouvidos. O medo transformava as entranhas em água podre e marrom. O medo fazia a arma tremer na mão. Mas Enéas não estremeceu, o estômago estava calmo, e a ponta da espada não tremeu em sua mão.

Aquilo não era medo — ou nenhum tipo de medo que tivesse sentido antes. Aquilo o preocupava mais que tudo.

O que é isso que o Senhor me manda, Cénzi? Diga-me, para que eu possa Lhe servir como o Senhor quiser...

— O’offizier co’Kinnear! — vociferou o a’offizier ca’Matin, e Enéas balançou a cabeça para afastar os pensamentos. Ele prestou continência ao offizier superior, que já estava montado no cavalo de guerra. — Preciso que o senhor entre com seus homens no flanco direito do inimigo; empurre-os para dentro do vale para que os ténis-guerreiros cuidem deles. Não devemos nos preocupar com os nahualli; os batedores disseram que eles ainda estão lá atrás, perto do Tecuhtli no lago Malik. Compreendido?

Enéas concordou com a cabeça.

— Ótimo — falou ca’Matin. — Então vamos começar. Pajem, diga aos corneteiros para anunciar o avanço. — O garoto a quem o a’offizier se dirigiu correu para a colina onde as trompas e bandeiras de sinalização estavam concentradas enquanto ca’Matin cumprimentava Enéas com o sinal de Cénzi, que ele devolveu solenemente e com devoção. — Que a fortuna de Cénzi esteja com o senhor, Enéas — disse o a’offizier.

— E com todos nós — respondeu Enéas com fervor.

Ca’Matin puxou as rédeas e foi embora a meio galope, o poderoso cavalo de guerra atravessou a grama alta com cuidado na direção do centro das fileiras onde os estandartes dos Domínios tremulavam com a brisa da tarde.

As cornetas soaram então, estridentes e altas. O chamado pairou diante deles em desafio aos ocidentais, e o som de armas batendo contra armaduras ecoou rapidamente. Enéas pegou as rédeas do próprio cavalo de guerra das mãos de um pajem à espera e montou. Seus e’offiziers olharam para ele com expectativa. — Façam suas pazes com Cénzi — disse o o’offizier. — É chegado o momento.

Enéas ergueu a mão para sinalizar na direção do flanco direito e dos morros íngremes ali.

Um bramido respondeu ao o’offizier, o grito de mil gargantas. Eles começaram a se mover, primeiro lentamente, depois mais rápido, até correrem impetuosamente na direção das lanças do inimigo. Enquanto investiam, o fogo mágico dos ténis-guerreiros na retaguarda passava estridente por cima da cabeça de Enéas e de suas tropas, acertando as fileiras da vanguarda das forças ocidentais e abrindo buracos nas fileiras irregulares. Não pareceu haver uma resposta dos nahualli; Enéas achou que isso faria o medo desagradável ir embora, mas a sensação permaneceu.

Éneas e seus homens avançaram pelas brechas fumegantes. O choque de aço contra aço ecoou dos flancos dos morros verdejantes, assim como os gritos dos feridos que caíram debaixo dos cascos dos cavalos de guerra que eles montavam. Éneas atacou uma lança curta que foi estocada em sua direção, afastou a ponta serrada com um golpe e cortou com o sabre a mão que empunhava a arma. O sangue jorrou e o rosto selvagem abaixo dele caiu. O cavalo avançou, e Enéas atacou os ocidentais de ambos os lados, protegidos por placas peitorais de bambu e tecido grosso com pequenos anéis de latão costurados. Eles usavam elmos decorados com plumas de pássaros muito coloridos, a pele avermelhada era pintada com faixas laranjas e amarelas, que faziam os rostos parecerem com crânios, ou era tatuada com linhas rubro-negras. Eram oponentes ferozes, os ocidentais, e nenhum soldado dos Domínios que os encarou ousava menosprezar suas habilidades e bravura. No entanto, eles tinham dado espaço agora — o que era estranho — e recuaram na direção da massa principal do exército. Enéas viu uma escuridão debaixo dos pés calçados com sandálias dos inimigos: o solo diretamente em frente a ele parecia um círculo de areia, mas aquela areia era tão negra quanto restos de lenha queimada.

A inquietação que afligiu Enéas antes da batalha aumentou e tornou-se um frio mortal dentro dos pulmões, de maneira que ele teve dificuldade para respirar e a espada pareceu como um peso de chumbo nas mãos. Ele obrigou o cavalo a entrar na areia e, ao fazer isso, berrou: um grito sem palavras para banir a sensação com barulho e fúria.

Éneas teve como resposta um som que nunca tinha ouvido antes.

O som... era como se um dos moitidis da terra — os filhos indignos de Cénzi — tivesse soltado um grito forte e sobrenatural, e fez com que Enéas girasse a cabeça para esquerda, na direção de sua origem. Um fogo laranja e uma fumaça negra e desagradável foram cuspidos do chão. Punhados de terra caíram em volta do o’offizier como uma chuva sólida que respingou sobre ele, e com a terra... e com a terra havia pedaços de corpos. Uma mão, ainda segurando uma espada quebrada, quicou no pescoço do cavalo de Enéas e caiu no chão. Ele olhou para o objeto ensanguentado. Então ouviu os gritos, com atraso.

— São os nahualli! Feitiçaria! — gritou Enéas para avisar as tropas, para a mão horrível que caiu do céu.

O o’offizier recebeu como resposta um rugido ainda mais alto que o primeiro, uma explosão cuja luz o cegou e a força arrancou seu corpo da sela e do cavalo. Um semideus ergueu Enéas — ele pareceu levitar por um instante ou dois: isso... isso é a premonição e o aviso de Cénzi... — e jogou o o’offizier de volta para a terra como se estivesse com nojo.

A terra levantou-se para recebê-lo.

Ele não se lembrou de mais nada depois disso.

 

Karl ca’Vliomani

KARL SEGUROU FIRME O COLAR na mão: uma concha de pedra cinza e polida que ele dera para Ana há muito tempo. O colar estivera no pescoço da archigos quando ela morreu; Sergei dera o objeto para ele. Havia manchas do sangue de Ana nos sulcos profundos. Karl apertou os dedos em volta da concha e sentiu as bordas duras forçarem a palma da mão. A dor não importava; significava que ele ainda conseguia sentir algo além do vazio que o tomava agora.

Quem fez isso? Por que matariam Ana?

Karl perdeu muitas pessoas de que gostava ao longo dos anos. O embaixador era tomado pelo sofrimento, tristeza e, às vezes, raiva diante da morte delas. Karl acordava à noite com a certeza de que tinha ouvido suas vozes ou pensando “ah, hoje tenho que visitá-lo ou visitá-la...”, apenas para lembrar que a pessoa em mente foi embora para sempre, de maneira irrevogável.

Isso... isso era pior do que qualquer uma daquelas mortes. Isso era uma facada no coração, e ele sentiu o sangramento por dentro.

Será que consigo sobreviver a isso? Perdi minha melhor amiga, a mulher que eu amo...

Karl estava sentado na frente do templo, com o regente Sergei e o kraljiki Audric à sua esquerda, e o recém-empossado archigos Kenne e os a’ténis da Fé à sua direita. Kenne foi amigo e aliado de Ana desde o início, quando ambos fizeram parte da equipe do archigos Dhosti. Agora, parecendo duas décadas mais velho do que sua idade de verdade, de cabelos brancos e mãos que tremiam com uma eterna paralisia, Kenne parecia extremamente pouco à vontade com a responsabilidade confiada a ele. O archigos debruçou-se sobre Karl e deu um tapinha em sua mão. Disse algo que o embaixador não conseguiu ouvir contra o canto do coro: “Longo lamento”, do compositor ce’Miella. As palavras que Kenne realmente falou não importavam: Karl concordou com a cabeça porque sabia que era a reação esperada.

No banco diretamente atrás deles, no meio dos ca’ e co’, estavam Varina e Mika ci’Gilan; como Varina, Mika também era um amigo de longa data de Karl e Ana. Ele era o líder local da facção dos numetodos em Nessântico e dirigia a pesquisa da seita aqui. A mão de Varina tocou o ombro de Karl; sem olhar para trás, o embaixador a cobriu com a própria mão antes de deixá-la cair no colo como se estivesse morta. Os dedos de Varina apertaram o ombro de Karl, e sua mão permaneceu ali.

O gesto tinha a intenção de confortá-lo, ele sabia, mas era simplesmente um peso morto.

Quem fez isso? Karl ouviu uma dezena de rumores. Previsivelmente, alguns culpavam os numetodos. Outros, Firenzcia. Alguns apontavam a facção da fé concénziana de Brezno. A história mais absurda dizia que o assassino, conhecido como a Pedra Branca, era o responsável, que havia uma pedrinha branca no olho esquerdo de Ana quando ela foi encontrada, a assinatura da Pedra Branca.

O último rumor certamente não era verdade. Porém, os outros... Karl não sabia, mas jurou que descobriria.

Às vezes ele invejava o consolo da fé que Ana tinha. Karl e ela até mesmo conversaram a respeito disso na noite em que ele descobriu que Kaitlin estava morta: a mulher com quem Karl havia se casado e que dera à luz seus dois filhos na Ilha de Paeti. Ela recusou-se terminantemente a vir a Nessântico com o marido. Kaitlin sabia da profunda amizade entre ele e Ana; assim como Karl também tinha certeza de que a esposa sabia que — apesar das promessas e garantias dele — havia mais do que amizade ali, pelo menos para o embaixador numetodo.

Ele nunca fora capaz de mentir facilmente para Kaitlin. Karl dizia para si mesmo que amava a esposa, mas também nunca fora realmente capaz de mentir para si mesmo.

Na noite em que recebeu a terrível carta de Paeti com a informação de que Kaitlin tinha adoecido e morrido, ele ficou arrasado. Karl nunca soube exatamente como Ana soube da notícia, mas ela o visitou naquela noite. A archigos o alimentou, o abraçou, deixou que gritasse, gemesse, berrasse e sofresse. Mais que isso, ela jamais tentou oferecer para Karl o consolo da fé como teria feito com qualquer um de seus seguidores. Ela jamais mencionou Cénzi, não até ele mencionar enquanto secava as lágrimas com a manga da bashta...

— Eu invejo você — disse Karl.

Os dois estavam sentados ao lado das chamas que ela acendera na lareira. O chá fervia lentamente em uma chaleira. A madeira estava molhada; ela assobiava e estalava sob o ataque das chamas e cuspia jatos rodopiantes de cinzas de tom vermelho-alaranjado chaminé acima.

Ana ergueu uma sobrancelha na direção de Karl.

— Você acredita que Cénzi leva as almas daqueles que morrem — falou o embaixador. — Você acredita que os mortos continuam a existir dentro Dele, e que é possível um dia encontrá-los novamente. Eu... — Lágrimas ameaçaram cair novamente, e foram contidas à força por Karl. — Eu não tenho essa esperança.

— Ter fé não leva a dor embora — disse Ana. — Ou leva muito pouco. Nada pode aliviar o sofrimento e a perda que todos nós sentimos: nem a fé, nem o Ilmodo. O tempo, talvez, consiga dar jeito, e, ainda assim, apenas diminui a tristeza. — Ela enrolou a manga do robe na mão, pegou a chaleira no suporte e serviu a bebida nas xícaras. Passou para Karl o jarro de mel. — Eu ainda me lembro da minha matarh. Às vezes, tudo volta à mente, tudo que senti quando ela morreu, como se tivesse acontecido ontem. — Ana passou os dedos na bochecha de Karl, que sentiu a maciez contra a barba por fazer. — Isso vai acontecer com você também, infelizmente.

— Então para que serve a sua fé, Ana?

Ela sorriu, como se estivesse à espera da pergunta. — Fé não é um bem. A pessoa não a compra porque ela vai fazer isto ou aquilo. A pessoa acredita ou não, e a crença oferece o que oferece. Você não tem fé, meu amor; Cénzi sabe que eu lhe daria fé se pudesse. Eu certamente conversei o bastante com você a respeito disso ao longo dos anos. Vocês, numetodos... vocês tentam envolver o mundo em razão e lógica e, portanto, a fé vira pó sempre que vocês a tocam, porque tentam impor racionalidade sobre ela. Você vai fazer isso com Kaitlin também, vai tentar encontrar razões e lógica na morte dela. — Ana tocou Karl novamente. — Não há razão para ela ter morrido, Karl. Não há lógica nisso. Apenas aconteceu, e não teve nada a ver com você ou com seus sentimentos por ela, ou com o que aconteceu entre vocês dois.

— Nem com a vontade de Cénzi?

Ela empinou o queixo e deu um sorriso triste para Karl. O rosto de Ana foi banhado pela luz quente e amarela da lareira. — Nem mesmo isso. É rara a pessoa com quem Cénzi se importa a ponto de mudar o resultado dos dados rolados pelo moitidi do destino. Era a hora de sua Kaitlin. Só isso. Não é culpa sua, Karl. Não é.

Isto aconteceu há nove anos. Ele viajou de volta para Paeti a fim de ver a sepultura de Kaitlin e estar com os filhos. Karl até trouxe Nilles e Colin para Nessântico quando retornou no ano seguinte. Nilles ficou dois anos com o vatarh, Colin ficou quatro, até que eles atingiram a maioridade, aos 16 anos. Com o tempo, ambos deixaram a cidade para retornar à Ilha de Paeti. Nilles já tinha dado uma neta a Karl — com três anos agora — que ele ainda precisava conhecer.

Karl ficou aqui porque seu trabalho era nos Domínios, dizia ele para qualquer um que perguntasse. Porém, na verdade, era porque Ana estava aqui. Havia aqueles que sabiam disso, mas não eram muitos e fingiam não ver.

A mão de Varina apertou o ombro de Karl novamente e se afastou.

Karl olhou fixamente para o corpo de Ana, embrulhado em uma mortalha no altar de pedra, e para a falange de seis ténis-bombeiros reunidos em um círculo em volta dela. O cadáver estava enrolado sob camadas de uma seda verde bordada com linhas metálicas douradas, que reluziam sob a luz multicolorida do vitral das janelas do templo; incensários fumegavam pelo altar e envolviam os raios de luz com fumaça aromática. Karl não conseguia acreditar que era Ana embrulhada em exposição ali. Não acreditaria. Era outra pessoa qualquer. A memória que ele tinha da luz, do bramido impactante, do corpo sendo dilacerado, do sangue, da poeira negra... Era falsa. Tinha que ser falsa. Mesmo o pensamento era doloroso demais para suportar.

A morte de Kaitlin, de sua família, de todos os outros que faleceram ao longo das décadas: nenhuma doeu como esta. Nenhuma.

Alguém matou a pessoa que Karl mais amava no mundo, acabou com uma mulher que lutou mais do que qualquer um desde a kraljica Marguerite para manter a paz nos Domínios, que acreditava em reconciliação antes de confronto, que tinha o potencial de reunir as duas metades partidas dos Domínios e da fé concénziana. Não haveria paz para Karl até que soubesse quem fez isso e até que essa pessoa estivesse morta. Se houvesse vida além da morte, como Ana acreditava, então Karl deixaria que a alma do assassino fosse condenada a cuidar de Ana pela eternidade. Se houvesse deuses, se Cénzi realmente existisse, se houvesse justiça após a morte, então era isso que deveria acontecer.

Ele teria fé nisso: uma fé sombria, implacável e intransigente.

O archigos Kenne deu um tapinha na mão de Karl e sussurrou mais palavras que ele não conseguiu ouvir. O ombro do regente Sergei estava pressionado contra o esquerdo do embaixador. O kraljiki Audric ofegou do outro lado do regente, sua respiração difícil era mais alta que o cântico dos ténis. Karl ouviu Varina chorar baixinho no banco atrás dele.

Os ténis-bombeiros agitaram-se em volta do corpo embrulhado em pano verde. As mãos moveram-se na dança do Ilmodo, as vozes ergueram-se em uníssono em um cântico que lutou contra as vozes etéreas do coro. Eles espalmaram bem as mãos como em uma benção, e a chama feroz do fogo mágico irrompeu em volta do corpo de Ana. A onda de calor das chamas mágicas passou por eles, selvagem e implacável. Não havia fagulhas, nem pira alimentando as labaredas: enquanto os corpos dos kralji e dos ca’ e co’ queimavam em chamas alimentadas por madeira e óleo, os ténis queimavam seus próprios mortos com o Ilmodo — rápida e furiosamente. O fogo do Ilmodo consumiu o corpo no espaço de alguns instantes, o tecido verde metálico ficou preto instantaneamente, o brilho do calor era tão intenso que o corpo de Ana parecia se mexer ali dentro. Enquanto Karl observava, conforme seu corpo recostou-se por instinto contra o ataque violento do calor, Ana foi levada.

As chamas morreram abruptamente quando o coro encerrou a canção. O ar frio voltou a correr em volta deles, um vento que desmanchou penteados e tremulou roupas. Agora no altar não havia nada além de cinzas e alguns fragmentos de ossos.

A prisão mortal de Ana sumiu.

— Ela voltou para as mãos de Cénzi agora — falou o archigos Kenne para Karl. — Ele dará consolo para Ana.

E eu darei algo melhor que consolo para ela. Ele aquiesceu em silêncio para o archigos. Darei vingança.

 

Allesandra ca’Vörl

— NÃO FOI um sinal.

Fynn socou com força o braço da cadeira. Os criados postados ao longo da parede, de prontidão para servir o jantar, tremeram com o som. A longa cicatriz que descia pelo lado direito do rosto ficou branca contra o rosto corado. — Eu não me importo com o que dizem. O que aconteceu foi um terrível acidente. Nada mais. Não foi um sinal.

— Claro que você está certo, irmão — falou Allesandra, para acalmá-lo. Ela fez uma pausa por um instante e gesticulou para os criados magyarianos: os dois irmãos ceavam nos aposentos de Allesandra no palácio. Os criados se aproximaram e serviram sopa nas tigelas e encheram as taças de vinho. Fynn estava sentado à cabeceira; Allesandra, ao pé da mesa. O archigos Semini e a esposa estavam à direita de Fynn; seu filho, Jan, à esquerda.

A própria Allesandra tinha ouvido alguns dos rumores. O hïrzg Jan está irritado que Fynn tomou a coroa, e não sua filha... A alma do hïrzg não consegue descansar... Ouvi da parte de um criado do palácio que seu fantasma ainda anda pelos salões à noite, gemendo e gritando como se estivesse furioso... Havia dezenas de histórias que surgiam por toda Brezno, deturpadas dependendo dos interesses de quem as espalhasse, e que ficavam maiores e mais absurdas a cada vez que eram contadas. Cénzi manda um aviso ao hïrzg de que os Domínios e a Fé devem se unir novamente... As almas de todos aqueles que o hïrzg matou — os numetodos, os nessânticos, os tennsha — o perseguem e não permitem que ele descanse... Dizem que, quando o selo de pedra caiu, aqueles na câmara ouviram a voz do velho hïrzg amaldiçoar Firenzcia...

A sopa foi servida e o silêncio durou tempo demais. Allesandra ouviu a respiração dos criados e o barulho distante e abafado do cozinheiro e dos funcionários da cozinha no andar debaixo. — Eu soube que o outro lanceiro também morreu — ela comentou quando ficou claro que ninguém mais estava disposto a começar uma conversa.

Fynn olhou feio para a irmã do outro lado da mesa e falou — Isso foi uma benção de Cénzi. O homem jamais teria voltado a andar. O curandeiro disse que a espinha estava quebrada; se eu fosse ele, preferiria morrer a viver o resto da vida como um aleijado inútil.

— Tenho certeza de que ele tinha a mesma opinião que você, irmão. — Ela manteve o tom de voz cautelosamente neutro. — E tenho certeza de que o archigos fez o possível para aliviar seu sofrimento. — Outra pausa. — Até onde a Divolonté permite, é claro — acrescentou.

Francesca deixou a colher bater na mesa ao ouvir isso. — A senhora pode ter sido maculada pelas crenças da falsa archigos durante seus anos com ela, a’hïrzg — declarou ela com frieza —, mas eu lhe garanto que meu marido não se maculou. Ele jamais...

— Francesca! — A bronca de Semini fez Francesca fechar a boca como uma carpa agonizante na margem de um rio. Ele olhou fixamente para a esposa, depois levou as mãos entrelaçadas à testa ao se voltar para Allesandra. Semini sustentou o olhar da a’hïrzg. Allesandra sempre achou que o archigos tinha belos olhos: poderosos e encantadores. Também notou que, quando ela estava em um ambiente, Semini geralmente prestava atenção nela. Isso nunca incomodou Allesandra, que gostava da atenção dele. A a’hïrzg pensou, na época em que seu vatarh finalmente pagou o resgate por ela, que o hïrzg Jan poderia tê-la casado com Semini, se o archigos já não estivesse comprometido com Francesca. Este teria sido um casamento poderoso, que permitiria reunir os poderes políticos e religiosos do estado, e Semini poderia ter sido alguém que ela viesse a amar, também. Mesmo agora... Allesandra afastou essa ideia rapidamente. Ela teve amantes durante o casamento, sim, como sabia que Pauli também tinha, mas sempre com cautela. Um caso com o archigos... isso seria difícil de esconder.

— Eu peço desculpas, a’hïrzg — disse Semini. — Às vezes, hã, a devoção da minha esposa pela Fé faz com que ela fale com muita grosseria. Eu realmente dei ao pobre lanceiro o consolo que pude, a pedido do hïrzg. — Ele então se dirigiu a Fynn. — Meu hïrzg, o senhor não deveria se preocupar com as fofocas da ralé. Na verdade, eu deixarei claro na minha próxima Admoestação que aqueles que acreditam que existem portentos nesse acidente horrível estão enganados, e que esses rumores absurdos são simplesmente mentiras. Já mandei começarem a investigar quem está espalhando essa fofoca sórdida. Eu diria que, se a Garde Hïrzg levasse alguns deles sob custódia, especialmente alguns do baixo escalão, e... hã, os convencesse a desmentir publicamente antes de serem executados por traição, isto certamente serviria de lição para os outros. Acho que veríamos que toda essa conversa sobre o que aconteceu no enterro de seu vatarh desapareceria tão rápido quanto neve em Daritria.

Francesca concordava com a cabeça ao ouvir as palavras do marido. — Nós devemos tratar essas pessoas da mesma maneira que trataríamos os numetodos — aquiesceu ela. — Da mesma forma que os numetodos são traidores da Fé, esses fofoqueiros são traidores de nosso hïrzg. Alguns corpos balançando na forca calarão a boca do populacho. — Ela olhou para Allesandra. — A senhora não concorda, a’hïrzg? — perguntou Francesca com voz gentil e ávida demais. A mulher chegou mesmo a se debruçar sobre a mesa, o que enfatizou a corcunda.

— Acho que é perigoso igualar fofocas com heresias, vajica ca’Cellibrecca — ela começava a dizer com cautela, mas Jan a interrompeu.

— Se você punir as pessoas por boataria, vai convencê-las de que os rumores são verdadeiros — disse o filho de Allesandra, as primeiras palavras que Jan disse desde que se sentaram à mesa, e deu de ombros quando os demais olharam para ele. — Bem, é verdade — insistiu. — Se o senhor der o sermão que sugere, archigos, estará apenas atraindo mais atenção para o que aconteceu, o que fará as pessoas acreditarem ainda mais nos rumores. É melhor não dizer, nem fazer nada; todo esse falatório vai passar por conta própria quando nada mais acontecer. Toda vez que um de nós repete a fofoca, mesmo que para negá-la ou refutá-la, nós fazemos com que pareça mais real e mais importante do que ela é.

Allesandra acompanhou o olhar de Jan deslizar de Semini para os demais à mesa. O archigos estava furioso, com as sobrancelhas baixas como nuvens carregadas sobre aqueles olhos cativantes; Francesca estava boquiaberta, como se estivesse atordoada e sem palavras diante da insolência do garoto; ela soltou uma tosse de desdém e abanou uma mão parecida com uma garra na direção de Jan, como se afastasse a praga de um mendigo. Fynn encarava a toalha de mesa diante dele. — É melhor não dizer e não fazer nada — repetiu Jan no silêncio, com a voz mais fraca e vacilante agora — ou o que aconteceu vai virar um sinal. Todos os senhores transformarão o boato em um sinal.

Allesandra tocou no braço do filho: foi o que ela teria dito, embora de uma maneira menos diplomática. — Muito bem dito — sussurrou Allesandra para Jan. Ele talvez tivesse sorrido momentaneamente; era difícil dizer.

— Então, se você fosse o hïrzg, não faria nada? — falou Francesca. — Então agradeçamos a Cénzi por você não ser, criança.

O que fez Jan erguer a cabeça novamente e responder — Se eu fosse o hïrzg, pensaria que esses rumores não valem o meu tempo. Há eventos mais importantes que eu consideraria, como a morte da archigos Ana, ou a guerra nos Hellins que consome os recursos e a atenção de Nessântico, e o que tudo isso significa para Firenzcia e a Coalizão.

Francesca olhou com desdém novamente. Ela voltou a atenção para a sopa, como se o comentário de Jan não merecesse ser levado em consideração. Semini balançava a cabeça e olhava feio para Allesandra como se ela fosse diretamente responsável pela impertinência de Jan.

Allesandra imaginou que Fynn estivesse irritado sob a carranca que fazia, mas o irmão a surpreendeu e quebrou o silêncio incômodo. — Eu acho que o jovem está certo — disse Fynn, que deu para Jan um sorriso distorcido pela cicatriz no rosto. — Eu odeio pensar em ouvir os boatos por outro instante sequer, mas... você está certo, sobrinho. Se não fizermos nada, a boataria sumirá em uma semana, talvez até mesmo em alguns dias. Talvez eu devesse tornar você meu novo conselheiro, hein?

Jan ficou radiante com o elogio de Fynn enquanto Francesca se recostou abruptamente com a testa franzida. Semini tentou parecer despreocupado. — Você criou um jovem inteligente, irmã — falou Fynn para Allesandra. — Ele é tão ousado quanto eu gostaria que meu próprio filho fosse. Devo conversar mais com você, Jan, e sinto muito por não conhecê-lo tão bem quanto um onczio deveria. Vamos começar a retificar isso amanhã. Vamos caçar depois das reuniões da tarde, eu e você. Que tal?

— Sim! — disparou Jan, de repente criança novamente, recebendo um presente inesperado. Então ele pareceu perceber como soou jovem e concordou solenemente com a cabeça. — Eu gostaria muito, onczio Fynn — falou com a voz grave. — Matarh?

— O hïrzg é muito gentil — disse Allesandra sorrindo enquanto a suspeita martelava em sua cabeça. Primeiro o vatarh, agora Fynn. O que o desgraçado pensa que vai ganhar com isso? Será que está apenas tentando me aborrecer ao roubar a afeição de Jan? Estou perdendo meu filho, e quanto mais forte tento me agarrar a ele, mais rápido ele vai escapar... — Parece uma ideia maravilhosa — falou ela para Jan.

 

A Pedra Branca

HAVIA ASSASSINATOS FÁCEIS, e havia os difíceis. Este foi um dos fáceis.

O alvo era Honori co’Belgradi, um comerciante de mercadorias das Magyarias, e um mulherengo que cometera o erro de dormir com a esposa da pessoa errada: a esposa do cliente da Pedra Branca.

— Eu vi o sujeito cobrir minha mulher — disse o homem para Pedra Branca com a voz trêmula de raiva diante da lembrança. — Eu o vi possuir minha esposa como um animal, e eu a ouvi chamar seu nome no momento de desejo. E agora... agora ela está grávida, e eu não sei se a criança é minha ou... — Ele se interrompeu, com a cabeça baixa. — Mas vou garantir que ele não faça isso com nenhum outro marido, vou garantir que a criança jamais seja capaz de chamá-lo de vatarh...

Relacionamentos e desejo eram responsáveis por metade do trabalho da Pedra Branca. Ganância e poder respondiam pelo resto. Jamais faltou gente à procura da Pedra Branca; se a pessoa precisava encontrá-la, ela achava um jeito.

Honori co’Belgradi era um sujeito com hábitos, e hábitos geravam uma presa fácil. Pedra observou o comerciante por três dias, e o ritual do homem jamais variava por mais que uma marca da ampulheta. Ele fechava a loja em Ville Serne, uma cidade a meio dia de cavalgada ao sul de Brezno, depois ia a uma taverna na esquina da próxima rua. Ficava por lá até por quatro viradas da ampulheta, após a Terceira Chamada, e então se dirigia aos aposentos onde a mulher — a esposa do cliente da Pedra — esperava pela aventura noturna.

A caminho daqueles aposentos, Honori passava pelo beco onde a Pedra esperava agora. Ela já era capaz de ouvir os passos no ar fresco da noite. — Honori co’Belgradi — chamou a Pedra quando a silhueta do homem passou pela boca do beco. O comerciante parou com uma expressão cautelosa, depois olhou com muito interesse quando a Pedra ficou sob a luz das lâmpadas mágicas da rua.

— Você me conhece? — perguntou co’Belgradi, e a Pedra deu um sorriso gentil.

— Conheço. E queria conhecer melhor, meu amigo. Você e eu, nós temos um negócio para acertar.

— O que quer dizer? — indagou co’Belgradi quando a Pedra se aproximou. Tão fácil... A apenas um passo de distância. A uma facada de distância, e co’Belgradi inclinou a cabeça, intrigado.

— Assim — respondeu a Pedra. Ela olhou para a rua, viu que ninguém observava, e deu um tapinha no ombro de co’Belgradi, como se o homem fosse um amigo que não via há anos. Ao mesmo tempo, a mão com a adaga envenenada cravou a arma com força debaixo das costelas do comerciante em direção ao coração. Co’Belgradi soltou um grito sufocado pelo sangue, e de repente o corpo ficou pesado contra a compleição atlética do assassino. A Pedra meio arrastou, meio carregou o moribundo co’Belgradi para dentro do beco e deitou o corpo rapidamente no chão. Os olhos do comerciante estavam abertos, ela tirou duas pedras de um bolso na capa: ambas brancas sob a luz fraca do beco, embora uma estivesse lisa e polida como se fosse muito manuseada. O assassino colocou as pedras sobre os olhos abertos de co’Belgradi e pressionou fundo dentro das órbitas. A pedra do olho esquerdo foi deixada ali; já a pedra reluzente, branca e lisa que estava sobre o olho direito (o olho do ego, aquele que guardava a imagem do rosto que o olho viu no último momento), esta a Pedra Branca pegou novamente e recolocou em uma bolsinha de couro pendurada no pescoço.

— E agora eu possuo você para sempre — sussurrou a aparição conhecida como a Pedra Branca.

Um instante depois, não havia mais ninguém vivo no beco, apenas um cadáver com uma pedrinha sobre o olho esquerdo: um contrato cumprido.


??? SUBSTITUIÇÕES ???

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Jan ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ESTA ERA UMA daquelas noites ruins.

Cada tomada individual de fôlego era uma luta. Audric tinha que forçar o ar velho e inútil para fora dos pulmões, e o peito doía a cada inalação, mas ele nunca conseguia aspirar ar suficiente. O kraljiki sentou-se na cama; sentiu que, se ficasse deitado, poderia sufocar. Os curandeiros do palácio agitaram-se em volta dele, com expressões de muita preocupação nos rostos — ainda que por medo do que poderia acontecer com eles se o kraljiki morresse sob seus cuidados —, mas Audric prestou pouca atenção neles, a não ser quando tentavam fazer com que tomasse uma poção ou inalasse a fumaça de alguma erva desagradável. Os braços estavam marcados por novas casquinhas; os curandeiros quase o deixaram sem sangue, e um deles estava abrindo um novo corte, mas Audric sequer fez uma careta. Seaton e Marlon, os camareiros de Audric, entravam e saíam correndo do quarto para pegar o que quer que os curandeiros pedissem a eles.

Toda a atenção de Audric estava voltada para a guerra com o fôlego. O mundo fora reduzido à batalha por cada inalação, pela tentativa de aspirar ar suficiente para os pulmões a fim de permanecer consciente. Os limites da visão ficaram escuros; ele apenas conseguia enxergar o que estava diretamente à sua frente. Sentia pouca coisa a não ser a eterna dor no peito.

Audric prestou atenção ao quadro da kraljica Marguerite sobre a lareira ao pé da cama. A mamatarh devolvia o olhar, o rosto pintado era completamente realista, como se a moldura dourada fosse uma janela por trás da qual a kraljica estivesse sentada. Ele podia jurar que a viu se mover ligeiramente contra o pano de fundo do Trono do Sol, que o próprio trono pintado reluzia com a luz do Ilmodo como o verdadeiro fazia sempre que Audric se sentava nele.

A archigos Ana nunca dera mais do que um olhar amargo para o quadro, que sempre parecia capturar o olhar de outros visitantes ao quarto de Audric. Uma vez, ele perguntou para a archigos por que ela dava tão pouca atenção à obra-prima. A archigos apenas balançou a cabeça e disse — Tem coisa demais de sua mamatarh naquele quadro. Eu sofro por vê-la presa ali. — Então Ana franziu a testa. — Porém, seu vatarh adorava a pintura, por seus próprios motivos.

Marguerite encarava Audric agora com seu olhar penetrante e avaliador. Ele esperou que o acesso passasse. A crise passaria; sempre passara. Precisava passar. A boca de Audric moveu-se em silêncio ao rezar para Cénzi para que o acesso passasse, para que o gigante invisível montado em seu peito e que amassava seus pulmões se levantasse lentamente e fosse embora, e que ele pudesse respirar facilmente outra vez.

Isso aconteceria. Precisava acontecer.

Sua mamatarh parecia acenar com a cabeça, como se concordasse.

Enquanto encarava o quadro, Audric mais ouviu do que viu o regente ca’Rudka irromper no quarto e afastar os curandeiros. Ele debruçou-se sobre a cama e afastou a fumaça desagradável dos incensários. — Tirem essas coisas daqui — rosnou Sergei. — A archigos Ana disse que a fumaça piora a respiração do kraljiki em vez de melhorar. E saiam daqui vocês também. — Os curandeiros afastaram-se entre murmúrios, dedos ensanguentados e barulho de frascos, e deixaram o regente sozinho com Audric. Não, não sozinho... Havia outra pessoa com ele. Relutantemente, Audric tirou o olhar do quadro e cerrou os olhos na escuridão.

O esforço provocou um gemido.

— Archigos... Kenne... — Cada palavra saiu depois de um fôlego, acompanhada por uma arfada agitada de ar; ele não conseguia fazer melhor do que isso.

— Kraljiki — falou o archigos. — Por favor, não se mexa. Eu vim rezar com o senhor. — Audric viu o archigos Kenne olhar com preocupação para o regente. — A archigos Ana tinha uma... relação especial com Cénzi que infelizmente poucos ténis conseguem igualar, mas farei o que for possível. Deite-se com o máximo de conforto que conseguir. Feche os olhos e não pense em nada além da respiração. Concentre-se apenas nisso...

A respiração estava rápida e ofegante. Ele sentiu o solavanco brusco do coração contra o espaço restrito das costelas. Só conseguiu tomar um gole mínimo do precioso ar. Audric fechou os olhos quando o archigos começou a rezar. A archigos Ana, quando o visitava, também rezava e colocava as mãos com delicadeza em seu peito. Era como se Audric pudesse senti-la dentro dele. O kraljiki ouvia a voz de Ana dentro da cabeça e sentia o poder do Ilmodo queimar no peito, consumir os bloqueios e permitir que ele respirasse plenamente outra vez. Ana envolvia Audric naquele calor interior, sua voz entoava e ao mesmo tempo falava dentro de sua cabeça. — Você vai ficar bem, Audric. Cénzi está com você agora, e Ele fará sua saúde melhorar novamente. Apenas respire devagar: respire fundo e bem. Isso, assim... — Dentro de poucos minutos, ele respiraria naturalmente e com facilidade mais uma vez, um alívio que, no início, durava meses, mas recentemente durava apenas algumas semanas.

Agora, com Kenne, Audric só ouvia as preces meio sussurradas pelo homem com os ouvidos. Não havia nada dentro. Não havia calor que se espalhava pelo peito. Havia apenas as preces de um velho, ditas por uma voz vacilante do lado de fora de Audric. Não havia sensação do Ilmodo, nem sinal do poder de Cénzi — ou talvez houvesse, só que era tão fraco que Audric mal conseguia sentir. Talvez houvesse calor, talvez a expansão e a contração dos pulmões estivessem um pouco mais fáceis. Audric tentou respirar fundo, mas o esforço provocou uma tosse seca e espasmódica que fez com que dobrasse o corpo na cama. Ele abriu os olhos, e viu Marguerite franzir a testa no quadro. Audric viu as gotículas de sangue que espirraram sobre o lençol.

— Você tem que lutar contra isso, Audric. Se você morrer, nossa linhagem morre, e com ela nosso sonho para Nessântico e os Domínios... — Ele viu os lábios pintados de Marguerite se moverem, ouviu a voz que sempre imaginou que ela tivesse. — Você tem que lutar contra isso. Eu vou ajudar você...

Sergei correu rapidamente para o lado de Audric, que sentiu a mão forte do regente em suas costas e ouviu sua voz chamar Marlon com rispidez. Deram um pano molhado em água fria para o kraljiki. Audric pegou com gratidão e levou o pano aos lábios. Sentiu o gosto doce da água. E sim, ele conseguia respirar um pouco melhor. — Obrigado, regente — falou o kraljiki. — Estou muito... melhor agora... archigos. — A própria voz soou distante e abafada, como se alguém meio que cobrisse seus ouvidos. Era a voz de Marguerite que soava mais claramente.

— Escute o que digo, Audric. Eu vou ajudar você. Escute a sua mamatarh...

O archigos Kenne assentiu com a cabeça, mas Audric apenas viu a dúvida nos olhos do homem. — Sinto muito, kraljiki. A archigos Ana... Eu sei que ela podia fazer mais pelo senhor.

Audric esticou o braço para tocar a mão do homem. A pele de Kenne era fria e seca como papel velho. — Eu vou ficar bem — disse o kraljiki. — Acho que... encontrei a solução.

O retrato de Marguerite dirigiu um sorriso sutil para o neto, e ele devolveu o gesto.

— Você não pode morrer porque tem muita coisa a fazer...

— Eu não posso morrer porque tenho muita coisa a fazer — falou Audric para ele, para os dois. Foi tanto uma promessa quanto uma ameaça.

 

Varina ci’Pallo

À ÉPOCA EM QUE ELA se juntou aos numetodos, quando era apenas uma humilde iniciada na sociedade deles e tinha acabado de conhecer Mika e Karl, a Casa dos Numetodos era um local decadente no centro do Velho Distrito, oculto pela pobreza e sujeira dos prédios do entorno.

Agora, a Casa dos Numetodos ocupava um belo prédio na margem sul, com um jardim, piso lustroso do lado de fora e portões que davam para a Avi a’Parete — um presente da archigos Ana e (com mais relutância) do kraljiki Justi pela ajuda dos numetodos em acabar com o cerco firenzciano à cidade em 521. As acomodações mais espaçosas e luxuosas ajudaram a tornar os numetodos mais aceitáveis para os ca’ e co’, mas também os deixou mais visíveis. No passado, eles reuniam-se em segredo, e a maioria dos integrantes mantinha a afiliação em segredo. Isso acabou. Varina não tinha dúvidas de que todos aqueles que cruzavam os portões eram observados pelo utilino e pela Garde Kralji, que constantemente patrulhavam a Avi, e de que a informação era transmitida ao comandante — e dele seguia para Sergei ca’Rudka, o Conselho dos ca’ e do kraljiki.

Os numetodos eram conhecidos — o que não era problema, desde que suas crenças fossem toleradas. Porém, com a morte de Ana, Varina não tinha mais certeza de quanto tempo essa situação duraria. Seus receios a levaram de volta à pesquisa...

Apesar dos rumores paranoicos entre os fiéis conservadores, grande parte da pesquisa dos numetodos não tinha nada a ver com magia: eles realizavam experiências de física e biologia; criavam belos e elegantes teoremas matemáticos; pesquisavam medicina; exploravam alquimia; examinavam livros empoeirados e cavavam antigos sítios arqueológicos para recriar a história. Mas, para Varina, era a magia que a fascinava. O que a intrigava em particular era como a Fé, os numetodos e os ocidentais abordavam a conjuração de feitiços.

Os numetodos provaram há muito tempo — apesar da negação irritada e por vezes violenta da fé concénziana — que a energia do Segundo Mundo não precisava de crença em deus algum. Podia ser chamada de “Ilmodo”, “Scáth Cumhacht” ou “X’in Ka.” Não importava. Essa compreensão dissolveu quaisquer resquícios de fé que Varina tivesse quando se juntou aos numetodos.

“Conhecimento e compreensão podem ser moldados somente pela razão e lógica; só que não é algo fácil ou simples. As pessoas criam deuses para explicar o mundo de modo que não tenhamos a responsabilidade de descobrir as coisas por nós mesmos.” Foi o que ela ouviu Karl dizer em uma palestra há anos, quando ela considerou se juntar aos numetodos pela primeira vez. “A magia é uma manifestação tão religiosa quanto o fato de que um objeto solto da mão cairá no chão.”

Sim, tanto os ténis da fé concénziana quanto os ocidentais usavam cânticos e gestuais para criar a estrutura do feitiço, e, no entanto, cada um deles tinha uma “crença” diferente como base, que permitia que dominassem a energia da magia. O que os numetodos perceberam foi que os cânticos e gestuais usados pelos feiticeiros eram apenas uma “fórmula”. Uma receita. Nada mais. Falar essa sequência de sílabas com aquele conjunto de movimentos daria nesse resultado.

Mas os ocidentais... Varina não conheceu Mahri, o Maluco, mas Karl e Ana conheceram, e as histórias dos nahualli ocidentais dos Hellins apenas confirmavam o que eles disseram sobre Mahri. Os nahualli eram capazes de colocar os feitiços dentro de objetos, que depois podiam ser disparados por uma palavra, um gesto ou uma ação. Nem os ténis, nem os numetodos conseguiam fazer isso. Os feiticeiros ocidentais invocavam os próprios deuses para os feitiços, assim como os ténis faziam com os seus, mas Varina tinha certeza de que os deuses ocidentais eram tão imaginários e desnecessários quanto Cénzi e seu moitidi.

Se ela conseguisse aprender os métodos dos ocidentais, se fosse capaz de encontrar a fórmula das palavras e gestos corretos para colocar o Scáth Cumhacht dentro de um objeto inanimado, então ela poderia começar a replicar o que Mahri foi capaz de fazer. Ela vinha trabalhando nisso, de tempos em tempos, há anos. Agora a preocupação movia Varina mais do que nunca: preocupação com o significado da morte de Ana para os numetodos; com a imensa tristeza de Karl, que abalava Varina como se fosse sua.

Se ela não conseguia entender por que as pessoas faziam coisas tão terríveis umas com as outras, pelo menos tentaria compreender isso.

Varina estava em um cômodo quase sem mobília, nos níveis inferiores da Casa. Na mesa diante dela havia uma bola de vidro que Varina comprara de um vendedor no Mercado do Rio, pousada em um ninho de pano para que não rolasse. A bola era feita inabilmente: havia uma linha de pequenas bolhas de ar no interior e o vidro ao redor dela estava manchado e marrom, mas Varina não se importava — ela tinha sido barata. Varina entoou e mexeu as mãos: um simples e fácil feitiço de luz, um dos primeiros truques ensinados a um iniciado numetodo. Moldar o feitiço de luz não exigia esforço, mas colocá-lo dentro do vidro era bem, bem mais difícil. Era como empurrar um fio de cabelo por uma parede de pedra. Ela sentiu a fadiga minar sua força. Varina ignorou a sensação e concentrou-se na bola de vidro à sua frente, tentou imaginar o poder do Scáth Cumhacht entrando no vidro da mesma forma que ela teria colocado a energia dentro da própria mente, visualizou a luz potencial depositada em volta daquelas bolhas bem no fundo do vidro e colocou uma palavra ali que acionaria o feitiço.

O encantamento terminou; Varina abriu os olhos. Seus músculos tremiam como se ela tivesse corrido quilômetros ou levantado pesos por uma virada da ampulheta. Ela teve que fazer um esforço para continuar de pé. A bola estava apoiada na mesa, e Varina permitiu-se dar um sorrisinho. Agora, se...

A bola começou a vibrar sem ser tocada. Varina deu um passo para trás quando ela soou como uma taça de vidro batida por uma faca, houve um faiscar súbito de uma brilhante luz amarela e o globo estilhaçou-se. Ela sentiu uma lasca atingir seu braço erguido e gritou.

— Você está bem? — Varina escutou a voz atrás dela na porta: Mika. O líder dos numetodos entrou rapidamente no aposento, enquanto balançava a cabeça cada vez mais careca e esfregava a barba por fazer no queixo. — Você está sangrando, e parece que não dorme há uma semana. — Ele puxou uma cadeira até a mesa e ajudou Varina a se sentar.

Ela ergueu o braço, que parecia tão pesado quanto um bloco de mármore do Palácio do Kraljiki, e examinou o corte no antebraço. Era comprido, mas não fundo, e Varina fez uma careta ao puxar uma lasca de vidro da ferida. Um filete de sangue escorreu no braço próximo à mão, que ela ignorou. — Droga. — Varina fechou os olhos, depois abriu de novo com esforço para olhar a mesa: o globo havia se partido praticamente ao meio na linha de bolhas, e o pano de apoio estava cheio de cacos. — Eu cheguei tão perto.

— Eu estava vendo — disse Mika, que deu uma olhadela para o globo quebrado. — Pensei que você finalmente tivesse conseguido.

— Eu também pensei. — Varina balançou a cabeça. — Mas estou cansada demais para tentar novamente.

— Melhor assim. Eu desci para lhe dizer: Karl voltou para o próprio apartamento.

Varina inclinou a cabeça, intrigada. — Eu pensei que ele ficaria com você, Alia e as crianças por enquanto.

Mika deu de ombros. — Ele disse que estava bem, que precisava retomar a própria vida. Que precisava retomar os compromissos numetodos e o trabalho como embaixador.

— Você não parece acreditar nisso.

— Eu acho... — Mika cerrou os lábios finos. — Estas são desculpas. Karl está magoado e com raiva, e eu não tenho certeza do que ele vai fazer. Acho que Karl precisa de alguém ao lado dele, para conversar se ele quiser, para garantir que esteja bem e que não faça nenhuma estupidez. A morte de Ana abalou Karl mais do que ele admite.

Mika ficou em silêncio, e Varina sentiu que ele esperava por uma resposta. Mas estava difícil simplesmente manter a cabeça erguida. O sangue pingou do dedo para o chão; as metades partidas do globo de vidro reluziam de maneira acusadora para ela sob a luz da lamparina. — Acho que posso mandar Karoli ou Lauren visitá-lo — disse Mika em meio ao silêncio.

— Eu vou. Apenas dê-me alguns minutos. Tenho que me arrumar.

Mika sorriu e falou — Deixe-me ajudar você.

 

Jan ca’Vörl

JAN GOSTAVA DE FYNN. Ele não tinha certeza do que sua matarh pensaria a esse respeito.

Allesandra contou para o filho que ela nunca conheceu Fynn, que o irmão nasceu poucos meses depois que ela foi sequestrada pela archigos Ana da tenda do hïrzg Jan no campo de batalha. Quando era criança, Jan não tinha compreendido todas as implicações dessa situação; agora, ele achava que finalmente começara a entender a dinâmica do relacionamento entre irmã mais velha e irmão caçula, distorcido e desvirtuado pelo orgulho e pela vaidade do vatarh de Allesandra e Fynn. Ele entendia que sua matarh jamais se permitiria gostar de Fynn, nunca poderia tratá-lo como irmão, jamais confiaria nele.

Mas ele gostava do sujeito, seu onczio.

Fynn mandou um bilhete para Jan imediatamente depois da Segunda Chamada, para convidá-lo a se juntar a ele na reunião da tarde. Jan sentou-se ao lado de Fynn, que se inclinava para sussurrar comentários irônicos enquanto os vários ministros e conselheiros colocavam o novo hïrzg a par das novidades sobre a atual situação política. Helmad co’Göttering, comandante da Garde Brezno, relatou que houve um pequeno conflito com forças leais de Tennshah a leste do lago Cresci, facilmente debelada. (— Você devia ver como eles correm como cães açoitados quando veem soldados de verdade cavalgando entre suas cabanas. Todos eles têm medo de um bom aço firenzciano — disse Fynn baixinho no ouvido de Jan. — Minha própria espada tem manchas de sangue de incontáveis dezenas de soldados de Tennshah. No outono, se quiser, podemos passear pela região, e talvez colocar alguns desses rebeldes para correr nós mesmos.)

O starkkapitän Armen ca’Damont da Garde Civile firenzciana atualizou as informações sobre a guerra dos Domínios nos Hellins, a qual, se tudo o que o starkkapitän disse fosse verdade, não estava indo bem para os Domínios e o kraljiki. (— Os Domínios não sabem guerrear de verdade, Jan. Eles dependeram de Firenzcia para isso por tempo demais e esqueceram. Se nós pudéssemos mandar nossa Garde Civile e um batalhão de bons Lanceiros Vermelhos para lá por um mês, debelaríamos esses ocidentais de uma vez por todas.)

O archigos Semini especulou sobre quem o Colégio A’téni poderia nomear como novo archigos “daquela Fé falsa e desprezível em Nessântico” e teceu um longo e tedioso comentário sobre cada a’téni das principais cidades dos Domínios e seus relativos pontos fortes e fracos. Ele alegou que o a’téni ca’Weber de Prajnoli se tornaria o próximo archigos em Nessântico, em última análise. (— E, no fim das contas, não importa quem eles escolham, portanto todo esse esforço e conversa fiada é uma perda do nosso tempo, não é?)

Havia relatórios sobre a falta de comida na Magyaria Oriental (— Você comeu o suficiente no almoço, não é?), sobre práticas comerciais injustas entre Firenzcia e Sesemora (— Você acha isso tão chato quanto eu?), sobre o valor relativo das solas firenzcianas contra as solas dos Domínios (— Por Cénzi, acorde-me quando este aí terminar de falar, pode ser, sobrinho?). No fim, Jan já não escutava mais. Ao dar uma olhadela para Fynn, viu que os olhos do onczio também perderam o foco. Os dedos do novo hïrzg tamborilavam no tampo da mesa com impaciência, e ele remexia o corpo inquieto na cadeira. Quando a próxima ministra ficou de pé para dar seu relatório, Fynn ergueu a mão e disse — Chega. Mande-me o relatório que eu lerei. Tenho certeza de que é fascinante, mas meus ouvidos estão prestes a cair pelo uso exagerado, e eu prometi uma caçada ao meu sobrinho. Saiam!

Eles resmungaram baixinho, franziram a testa, mas todos fizeram uma mesura e saíram da sala. O hïrzg fez um gesto para que os criados em pé contra as paredes trouxessem comes e bebes. — Então... — falou Fynn enquanto os dois beliscavam os pães e frios e bebiam o vinho — a vida de um hïrzg é uma delícia, não é? Todo aquele falatório sem parar... Eu entendo por que o vatarh sempre ficava de péssimo humor antes dessas reuniões.

— Eu acho que o archigos Semini estava errado — disse Jan. Ele não tinha certeza por que disse isso; de alguma forma confiou que Fynn fosse dar ouvidos. A matarh sempre deu sermões, como se ela fosse uma professora e ele, o estudante; o vatarh estava mais preocupado com o próprio prazer do que escutar as opiniões do filho. O onczio Fynn, por outro lado, realmente deu ouvidos a ele na noite anterior, durante o jantar, enquanto os demais à mesa teriam preferido que ele ficasse calado. Então, agora, Jan falou o que pensava, apenas com a voz um pouco trêmula. — Ca’Weber não será nomeado archigos. O Colégio vai escolher Kenne ca’Fionta.

Fynn ergueu uma sobrancelha grossa e escura. — Por que você diz isso? Semini pareceu achar que ca’Fionta era o mais fraco do grupo.

— É exatamente por isso — respondeu Jan com mais avidez agora. Ele assinalou os argumentos com a ponta dos dedos. — O archigos Semini presumiu que o Colégio A’téni pensará como ele pensaria e escolherá a pessoa que ele escolheria. Eles não farão isso. O resto dos a’ténis está preocupado nesse momento: o assassinato da archigos Ana fez com que eles vissem que um archigos forte tem inimigos, e os a’ténis também se perguntam por quanto tempo a Fé pode se manter dividida, agora que a archigos Ana está morta. Então, eles escolherão Kenne: porque ele é fraco e porque é mais velho do que qualquer um dos a’ténis. E mesmo que Kenne seja uma má escolha, eles não terão que aguentá-lo por décadas.

Fynn riu. Ele bateu com a borda de sua taça na de Jan. Ao se inclinar na direção do sobrinho, o hïrzg passou um braço parrudo sobre seus ombros. — Muito bem dito, e veremos em breve se você está certo. O que mais anda escondendo? Vamos, você não pode esconder o resto de mim.

Fynn estava sorrindo. Jan sorriu de volta e sentiu apreço pelo homem. — O starkkapitän ca’Damont pode estar certo a respeito da guerra nos Hellins, mas ele não nota a importância da guerra. Com a Garde Civile dos Domínios concentrada naquele conflito e gastando recursos, dinheiro e soldados todo mês, eles não podem se voltar para leste com força alguma. Os Domínios estão em uma posição fraca de negociação contra a Coalizão; em termos militares, eles estão em uma posição ainda pior. Um hïrzg forte pode tirar vantagem disso, de uma forma ou de outra.

Fynn levantou ainda mais as sobrancelhas e deu um abraço apertado nos ombros de Jan. — Por Cénzi, eu deveria fazer de você meu novo conselheiro, sobrinho. Você tem a mente sutil de sua matarh.

Ele abraçou Jan novamente com um braço só, depois desmoronou na cadeira. — Ah! Eu gosto de você, Jan! Isso me faz pensar no que perdi com a minha irmã. — Fynn franziu a testa ao dizer isso e tomou outro gole de vinho. — Você sabia que eu sequer fazia ideia de que tinha uma irmã até mais ou menos os nove anos? O vatarh jamais a mencionou para mim uma vez sequer. Jamais. Não falou o nome dela uma vez que fosse; era como se Allesandra jamais tivesse existido para ele. Então, quando decidiu que finalmente pagaria o resgate por ela, o vatarh sentou-se comigo e me explicou que Allesandra fora levada pela archigos bruxa. Ele não me contou como esse fato acabou com a guerra com os Domínios; isso eu aprendi muito tempo depois. O vatarh sempre foi amargo a respeito daquilo, sua única derrota. Creio que Allesandra era o símbolo daquele fracasso para ele, por isso certamente casou a filha, assim que ela retornou. Eu nunca a conheci realmente...

O hïrzg tomou outro longo gole do vinho e bateu a taça na mesa com tanta força que Jan deu um pulo. O vinho derramou; a base da taça deixou uma mancha em formato de lua crescente na mesa.

— Agora vamos caçar! — declarou Fynn. Ele empurrou a cadeira e ficou de pé. — Ande, sobrinho. Vamos para a Encosta do Cervo.

 

Enéas co’Kinnear

SE ELE ESTAVA MORTO, a vida após a morte não era nada como a que os ténis prometiam aos fiéis.

A vida após a morte de Éneas era iluminada por uma luz fraca e avermelhada e fedia à carne podre e enxofre. O solo onde estava deitado era molhado e duro, com punhos de pedra cutucando suas costas. Os ténis sempre disseram que os males do corpo de uma pessoa seriam curados quando ela finalmente descansasse nos braços de Cénzi, que braços e pernas perdidos seriam restaurados, que não haveria mais dor.

Mas a respiração de Enéas tremeu nos pulmões, e, quando tentou se mover, a agonia fez com que ele berrasse.

Enéas ouviu asas baterem em resposta, pontuadas por grasnidos roucos de alerta. Ele piscou, e a vermelhidão acompanhou as pálpebras. Ergueu lentamente uma mão ferida e esfregou os olhos. O filtro vermelho clareou um pouco, e Éneas percebeu que olhava para uma paisagem iluminada pelo luar através de uma película viscosa de sangue, com a cabeça no solo lamacento. Uma montanha marrom erguia-se a um metro dedo de distância. Ele piscou novamente e franziu os olhos; era um cavalo caído e morto, seu cavalo de guerra. Cénzi, o Senhor me deixou vivo. Quando se deu conta disso, duas patas com garras apareceram no cume da montanha equina, acompanhadas por outro grasnido irritado, e Enéas ergueu o olhar para ver uma das aves carniceiras dos Hellins, a criatura que os soldados chamavam de estripadores: pássaros feios com uma envergadura da altura de dois homens ou mais, grandes bicos curvos em um rosto sem penas e branco como um fantasma, olhos sem expressão, como contas negras, e garras curvas para abrir os cadáveres que eles preferiam comer. Não havia nada como esses bichos nos Domínios.

O pássaro olhou fixamente para Enéas, como se observasse uma bela refeição posta diante de si. O o’offizier apoiou-se nos cotovelos; era o mais próximo que conseguiria chegar de se sentar. Irritado, o pássaro guinchou e foi embora voando. Enéas sentiu o vento desagradável provocado pelas asas.

Não morri. Não ainda. Louvado seja Cénzi.

Ele tentou se lembrar de como chegou ali, mas a cabeça estava confusa. Lembrava-se de ter falado com o a’offizier ca’Matin e do início da investida, a corrida morro abaixo em direção à força ocidental. Então... então...

Nada.

Enéas balançou a cabeça para desprender a memória. O gesto foi um erro. O mundo ao redor girou, a vermelhidão voltou, e ele sentiu uma pontada de dor nas têmporas. Ele se equilibrou antes que caísse no chão novamente e esperou que a terra parasse de girar. Novamente, fez um esforço para ficar sentado e tocou a cabeça com hesitação; o cabelo estava empastado com sangue seco e os dedos sentiram o contorno irregular de um corte comprido e profundo. Enéas começou a passar mal. Deixou a mão cair, fechou os olhos e respirou fundo várias vezes até que a náusea passasse, enquanto recitava a Prece da Aceitação para se acalmar. Abriu os olhos novamente e olhou em volta com cuidado.

Havia estripadores por toda parte; sob o fraco luar, o campo parecia vivo com eles e o solo corcovado com os morros escuros dos corpos dos companheiros de Enéas e seus cavalos caídos. O som repugnante, úmido e rascante dos pássaros comendo os corpos era um barulho que atormentaria seus pesadelos para sempre. Bem ao longe, abaixo do declive onde estava sentado, Enéas viu o brilho de uma fogueira, e ao redor dela as silhuetas escuras de gente se mexendo. Havia outro som, mais fraco: cantoria?

As figuras recortadas pelas chamas usavam acessórios com penas na cabeça, Enéas viu. Eles eram ocidentais, então. “Tehuantinos”, como se chamavam. Todos os corpos ao redor usavam os uniformes com detalhes dourados de Nessântico, agora pretos pelo sangue e pelo luar mortiço em vez do azul reluzente que deveriam ter.

Nós perdemos. Fomos massacrados aqui, e as pessoas em Munereo podem não saber o resultado ainda. Cénzi, é por isso que o Senhor me salvou, para que eu pudesse avisá-los...?

Enéas tentou se mexer; as pernas não quiseram cooperar, e ele percebeu que uma delas ainda estava presa debaixo do seu cavalo. Com o máximo de silêncio possível, Enéas empurrou a carcaça com a perna livre, e enfim a perna se soltou. O tornozelo estava inchado e sensível; Enéas não tinha certeza se poderia se apoiar nele.

O o’offizier encontrou a espada ao seu lado meio enterrada na lama. Enfiou a lâmina imunda na bainha presa ao cinto. Com uma careta, rastejou na direção das chamas, meio que se arrastando em volta do cavalo.

Parte de Enéas gritou em alerta. Ele ia na direção do inimigo; os tehuantinos o matariam se o vissem. Todos os a’offiziers contavam como os ocidentais percorreram o campo de batalha após o combate no lago Malik, como eles mataram todos os gardai que ainda estavam vivos mas aleijados ou gravemente feridos. Aqueles que estavam apenas levemente feridos foram levados como prisioneiros. Os rumores sobre o que os ocidentais tinham feito com eles eram muito, muito piores.

A fogueira — imensa e furiosa — estalava no pé da ladeira, e reunidos ao redor estavam os ocidentais: milhares deles, enquanto fogueiras menores pontuavam a paisagem depois do grande fogaréu onde o inimigo estava acampado. Enéas viu um grupo de cavalos atrelados de um lado da fogueira, um pouco distante dos ocidentais sentados em volta das chamas.

Se ele não podia andar, ainda podia cavalgar.

A jornada pareceu levar séculos. As estrelas deram voltas pela Estrela Velejante, a lua chegou ao ápice e começou a descer, os estripadores continuaram o festim sangrento. Exausto, Enéas descansou atrás da cobertura de uma pilha de toras. Os cavalos relincharam perto dali; ele sentiu o cheiro dos animais e ouviu seus movimentos agitados. A cantoria estava mais alta agora, uma melodia grave e dissonante, as palavras que os ocidentais cantavam eram estranhas e desconhecidas: mil vozes, todas cantando juntas. O zumbido monótono era alto e enlouquecedor; a música vibrava no peito e parecia fazer tremer o próprio solo. Ele conseguiu ver os ocidentais: a pele bronzeada como o povo de Namarro, a armadura de bambu com anéis de ferro que tilintavam enquanto eles cantavam e se agitavam. As imensas toras da pira desmoronaram e dispararam fagulhas para o alto com um ribombar.

Um ocidental à frente das fileiras ficou de pé e avançou. Ele ergueu os braços nus e musculosos; como os demais, o homem usava um elmo de bambu decorado com penas compridas e reluzentes. Havia um grande disco prateado e amassado sobre o peito, pendurado no pescoço por uma corrente, e pintado com figuras: o que identificava o homem como um offizier ocidental. Ele parou de cantar ao proclamar alguma coisa em voz alta. Mais dois guerreiros ocidentais saíram da escuridão do outro lado da fogueira e arrastando com eles a figura ensanguentada de um homem. Sua cabeça levantou-se quando os soldados se aproximaram da luz da fogueira, e, mesmo àquela distância, Enéas reconheceu o a’offizier ca’Matin. Ele estava nu até a cintura e agora era forçado a ficar de joelhos em frente ao offizier ocidental. Enéas ouviu ca’Matin rezar para Cénzi, com a face erguida para as fagulhas, as estrelas e a lua; para qualquer coisa, menos para o ocidental.

O ocidental falava com ca’Matin enquanto retirava um apetrecho estranho de uma bolsinha no cinto. Enéas apertou os olhos para tentar ver o que era no momento em que o offizier ergueu o objeto para mostrá-lo às tropas reunidas. Um cano curto e curvo como o chifre de um touro de cor marfim reluziu; o apetrecho tinha um cabo de madeira. O offizier ofereceu o objeto para ca’Matin com o cabo voltado para frente. Quando ca’Matin o pegou, com mãos visivelmente trêmulas e uma expressão de dúvida, o guerreiro virou o chifre de marfim — Enéas ouviu um nítido clique metálico — e deu um passo para trás. Ele fez um gesto como se virasse o apetrecho, depois como se tocasse a ponta do chifre no abdômen. Ca’Matin balançou a cabeça e o offizier ocidental suspirou. Sua expressão parecia quase solidária ao pegar o instrumento e virá-lo nas mãos de ca’Matin. Ele fez um gesto de apoio com a cabeça ao empurrar as mãos de ca’Matin para trás. O chifre tocou no estômago de ca’Matin.

Houve um clarão que iluminou toda a paisagem como se fosse um raio, e ecoou um trovão estrondoso que abafou o grito involuntário de Enéas e fez os cavalos relincharem nervosos e lutarem contra as amarras. Ca’Matin escancarou a boca e os olhos, embora a expressão parecesse estranhamente estática para Enéas, como se no momento final Cénzi tivesse tocado o a’offizier com Sua glória.

Ca’Matin desmoronou, e o apetrecho caiu de suas mãos. O estômago era uma cavidade sangrenta, como se tivesse sido rasgado por um punho com garras. Entranhas e sangue estavam espalhados pelo chão debaixo do homem, bem como nas pernas dos ocidentais em volta dele. O offizier ocidental levantou as mãos novamente, e a cantoria recomeçou. Com uma estranha reverência, os dois soldados que trouxeram ca’Matin até a fogueira envolveram o corpo em um pano tingido com cores intensas dispostas em padrões geométricos. Eles entraram correndo nas sombras com o cadáver embrulhado.

Enéas forçou-se a andar novamente, agora mais desesperadamente. Ele não sabia que feitiçaria fora feita com ca’Matin, mas tinha que dar um jeito de voltar para Munereo: para avisá-los. Ajude-me a fazer isso, Cénzi... Enéas começou a rastejar na direção dos cavalos. Se conseguisse erguer o corpo e jogar a perna ferida por cima... Os ocidentais poderiam persegui-lo, mas Enéas conhecia esse terreno tão bem quanto eles, talvez até melhor, e seria encoberto pela noite.

Ele chegou aos cavalos agora. Eram cavalos de guerra capturados de Nessântico, usavam os uniformes que ele conhecia tão bem e, mais importante, ainda estavam selados. Eram mais lentos do que as montarias dos ocidentais, mas mais vigorosos. Se Enéas conseguisse uma vantagem razoável, os cavalos dos ocidentais poderiam se cansar antes de alcançá-lo.

Com a ajuda de Cénzi...

Enéas desamarrou as patas de uma grande égua cinzenta e manteve o animal entre ele e a fogueira. O cavalo de guerra relinchou, mostrando o branco de seus olhos sob o luar. Enéas sussurrou com delicadeza para ela. — Shh... shh... Tudo bem... Você vai ficar bem... — Ele agarrou as correias da sela e ficou de pé, tirando o peso do tornozelo machucado. Pegou as rédeas com uma mão e acariciou o pescoço do animal. — Shh... Quieta, agora... — Ele teria que se equilibrar parcialmente no tornozelo machucado para colocar um pé no estribo; com delicadeza, Enéas pousou o pé no chão e apoiou o peso sobre ele devagar. Mordeu o lábio inferior ao sentir a dor. Ele conseguiria por um instante. Era tudo que era preciso...

Enéas levantou o pé que estava bom e o colocou no estribo. Uma onda de facadas se espalhou do tornozelo até a perna durante o instante em que ele sustentou todo o peso, e a agonia quase fez com que Enéas desmaiasse. Desesperadamente, ele passou a perna machucada sobre a espinha do cavalo e quase gritou quando o tornozelo bateu no outro lado do corpo maciço do animal. Mas agora Enéas estava no cavalo de guerra, meio deitado sobre o pescoço grosso e musculoso da montaria. Ele estalou as rédeas e cutucou com a perna boa. — Devagar — falou para a égua cinzenta. — Muito devagar agora. Quieta...

A égua balançou a cabeça e começou a se afastar dos outros cavalos. Ela voltou para a encosta, longe da luz da fogueira e do acampamento. A cantoria dos ocidentais encobriu o som dos cascos com ferraduras no solo. Assim que entrasse na escuridão novamente, assim que conseguisse colocar a saliência de um daqueles morros entre ele e os ocidentais, Enéas poderia galopar a toda.

Ele começava a ousar pensar que seria possível.

Enéas quase não notou a silhueta que se movia à sua esquerda, um pedaço de escuridão que se levantou subitamente e se atirou sobre ele. Enéas teve apenas um vislumbre do rosto sinistro antes que o homem o acertasse e derrubasse da sela. Um clarão de luz flamejou atrás dos olhos quando Enéas caiu no chão, e ele gritou de dor na perna machucada, que ficou torcida debaixo do corpo. Ele ouviu o cavalo de guerra ir embora a galope, sem cavaleiro, e então a sombra de um guerreiro ocidental com os braços erguidos surgiu sobre ele, e Enéas caiu novamente na escuridão.

 

Allesandra ca’Vörl

— EU GOSTARIA DE ME DESCULPAR pela minha esposa, a’hïrzg. Ela... bem, o assunto da archigos bruxa sempre a aborrece. Elas têm... uma história em comum, afinal. Ainda assim, minha esposa não deveria ter dito o que pensa no jantar ontem à noite, especialmente para a senhora, como anfitriã.

Allesandra assentiu com a cabeça para o archigos Semini. Eles estavam sentados em uma plataforma de observação no alto de uma ladeira atrás da residência particular do hïrzg — o palácio na Encosta do Cervo, bem afastado de Brezno. Os dois olhavam para leste, para a vista de uma campina comprida e larga, de grama alta, cheia de flores silvestres. Lá embaixo, eles enxergavam um grupo de figuras e cavalos: Fynn, Jan e vários outros. De ambos os lados da campina, em uma floresta de abetos altos, tambores ecoavam dos flancos dos morros íngremes e verdejantes que formavam a paisagem: o som dos batedores, que arrebanhavam a presa para a campina e para o hïrzg, à espera.

Atrás de Allesandra, na sacada, criados corriam de um lado para o outro com comes e bebes enquanto preparavam uma mesa comprida para o jantar. Fora isso, Allesandra e o archigos estavam sozinhos; todos os outros privilegiados ca’ e co’ que jantariam com eles naquela noite estavam com o grupo do hïrzg na campina. Allesandra não tinha a menor vontade de ficar tão próxima do irmão por tanto tempo assim. Ela não tinha certeza por que Semini ficou para trás, no palácio — Francesca estava na campina com os demais.

— Por favor, acredite em mim quando digo que não me ofendi, archigos — falou Allesandra. — Embora eu tenha muito mais simpatia pela archigos Ana, entendo que sua esposa se sinta dessa maneira.

Ela deu uma olhadela para Semini e viu o archigos sorrir. — Obrigado. Isso é gentil de sua parte. — O homem olhou com cuidado para os criados, depois abaixou o tom de voz para que eles não conseguissem escutar. — Cá entre nós, a’hïrzg, eu gostaria de ter convencido seu vatarh a nomear a senhora como herdeira. Aquele menino... — ele apontou com o queixo para o grupo na campina — ... seria um starkkapitän perfeitamente adequado para a Garde Civile, mas ele não tem a visão ou a inteligência para ser um bom hïrzg.

— Creio que ouvi o archigos falar em traição. — Allesandra teve a cautela de manter o olhar afastado do archigos e concentrou sua atenção em Jan, a cavalo ao lado de Fynn. Ela perguntou-se se podia acreditar no que ca’Cellibrecca dizia e por que ele declararia tal opinião para ela. O archigos tinha motivos para agir assim, Allesandra tinha certeza: Semini não era um homem de fazer declarações acidentais. Mas qual era o motivo? O que ele queria, e como isso o beneficiaria?

— Será que eu talvez tenha dito o que também está no seu coração, a’hïrzg,
mesmo que a senhora não ouse dizer em voz alta? — respondeu Semini no mesmo sussurro baixo e rouco. O archigos voltou-se para ela. — Meu coração está aqui, neste país, a’hïrzg Allesandra. Eu quero o que é melhor para Firenzcia. Nada mais. Eu dei minha vida a serviço de Cénzi e a serviço de Firenzcia. Eu compartilhava a visão de seu vatarh de que os Domínios deviam ter Brezno, e não Nessântico, como o centro de todas as coisas. Ele quase conseguiu realizar essa visão. Ele teria realizado, estou convencido, se não tivesse sido a feitiçaria herege da archigos bruxa.

Havia ódio na voz de Semini, genuíno e intenso. E também uma estranha satisfação.

O vatarh teria sido bem-sucedido se Ana não tivesse me capturado como refém, se não tivesse me arrancado do vatarh e me usado para terminar a guerra. Enquanto Allesandra permanecesse em Nessântico, enquanto o vatarh se recusasse a pagar o resgate exigido, sua derrota ainda não seria completa. Ainda havia esperança de que os resultados pudessem mudar, e o vatarh levou pouco mais de uma década para perder aquela esperança.

Era o que Allesandra dizia para si mesma. Era o que Ana dizia para ela. Ana jamais falou mal do hïrzg Jan; sempre pintou seu vatarh da maneira mais favorável possível, mesmo quando Allesandra bufava de raiva por ele demorar a pagar o resgate.

Allesandra tomou fôlego e levou a mão à garganta, tocando o globo partido de Cénzi em volta do pescoço.

Ca’Cellibrecca evidentemente interpretou mal o pensamento por trás do gesto. — Ah, vejo que compartilhamos a mesma opinião sobre Ana ca’Seranta. Aquela criatura impediu que os Domínios desmoronassem sob o governo de Justi, aquele tolo perneta. E agora, finalmente, ela morreu, louvado seja Cénzi. — O tom de voz ficou ainda mais baixo quando ele inclinou o corpo e se aproximou de Allesandra. — Agora seria a hora para um novo hïrzg fazer aquilo que seu vatarh não conseguiu... ou seria a hora, se tivéssemos um hïrzg, ou hïrzgin, à altura da tarefa. Alguém que não fosse Fynn. Existem aqueles em Nessântico que acreditam nisso, a’hïrzg. Pessoas que a senhora não suspeitaria que tenham ideias assim.

O clamor dos batedores estava se aproximando no vale abaixo. Os cavaleiros remexiam-se irrequietos, e Allesandra viu Fynn sinalizar para que Jan encaixasse a flecha no arco. — O que você está me dizendo, archigos? — perguntou ela enquanto observava a cena abaixo dos dois.

— Estou dizendo que a senhora atualmente é a a’hïrzg, mas ambos sabemos que esta é uma situação temporária. Mas se Fynn, de alguma forma... — Ele hesitou. Os tambores bateram alto lá embaixo, e agora eles podiam ouvir uma movimentação debaixo da sombra das árvores à direita. — ... não fosse mais hïrzg, então a senhora se tornaria hïrzgin. — Outra pausa. — Como deveria ter sido.

Os tambores e a gritaria ficaram mais altos, e de repente um cervo surgiu da linha de árvores a várias dezenas de passos do grupo do hïrzg. O animal era magnífico, a galhada tinha a envergadura dos braços e ombros de uma pessoa, alcançava facilmente a altura de um homem alto ou mais. A pele tinha um tom deslumbrante de marrom-avermelhado com um toque de branco debaixo da garganta. O cervo saiu do matagal a meio galope, e sentiu o cheiro do grupamento de caça. Allesandra sentiu uma aflição ao ver a bela criatura; ao lado, ela ouviu Semini murmurar — Por Cénzi, olhe aquele animal lindo!

O cervo parou e olhou fixamente para os cavaleiros por um instante antes de dar um pulo enorme e fugir na direção do fim da campina, ao longe. No mesmo instante, eles viram uma flecha ser disparada pelo arco de Fynn, e o estalo da corda do arco chegou com atraso aos seus ouvidos. O cervo caiu com as patas traseiras emaranhadas e a flecha enterrada nas ancas. Então, o animal levantou-se outra vez e começou a correr.

Jan esporeou o cavalo no momento do disparo de Fynn. Ele correu atrás do cervo ferido e controlou a montaria apenas com as pernas enquanto puxava o arco. A toda velocidade, Jan disparou a própria flecha com o cervo a apenas poucos passos de chegar à cobertura da floresta novamente.

O cervo estremeceu quando a flecha penetrou fundo no lado esquerdo do peito. O animal correu por mais alguns passos, quase até a floresta. Pareceu se recuperar, pulou, mas as patas dianteiras esbarraram na tora sobre a qual ele tentou saltar, e caiu.

O cervo ficou caído de lado, as patas debateram-se no matagal, a galhada arrancou punhados de terra com grama do solo. Fynn galopou até onde Jan parou com seu cavalo. Allesandra viu o irmão dar um tapinha no ombro de Jan e depois colocar outra flecha no arco.

Com o disparo de Fynn, o cervo ficou imóvel. Uma vibração distante ecoou do grupamento de caça.

— Seu filho pode ter um físico franzino, mas é um excelente cavaleiro, e arqueiro ainda melhor. Aquilo foi impressionante: atirar daquele jeito em plena perseguição.

Allesandra sorriu. Por um instante, ele quase pareceu com o seu vavatarh ao cavalgar daquela maneira... Lá embaixo, Fynn e Jan desmontaram para se dirigir até o cervo caído. — Atirar flechas a cavalo é uma habilidade ensinada à cavalaria magyariana, e Jan teve excelentes professores.

— Ele também teve uma excelente educação em política. Jan esperou que o hïrzg desse o golpe final. Presumo que a senhora tenha sido sua professora neste quesito.

— Jan sabe o que tem que fazer, mesmo que algumas vezes ignore meu conselho — falou Allesandra. — Geralmente porque fui eu que dei o conselho.

— Filhos na idade dele acham que devem se rebelar contra a família. É natural, e eu não me preocuparia muito com isso, a’hïrzg. Jan vai aprender. E um dia, se ele for o a’hïrzg em vez de apenas outro ca’ em algum ponto da linha sucessória para ser o gyula da Magyaria Ocidental... — Semini deixou a voz sumir gradualmente.

Allesandra finalmente se virou para ele. O archigos agigantava-se sobre ela como um urso vestido de verde. Os olhos escuros do homem encaravam os de Allesandra. Sim, ele tinha olhos em que uma pessoa podia se perder. — Você continua a me dizer estas pequenas insinuações e sugestões, archigos — falou ela baixinho. — Você tem mais do que isso para oferecer ou está tentando me provocar a ponto de eu me revelar? Isso não vai acontecer.

Ca’Cellibrecca concordou devagar com a cabeça e inclinou o corpo na direção dela. A boca ficou tão próxima da orelha de Allesandra que ela sentiu o hálito quente de Semini. Ela arrepiou-se. — Eu tenho uma proposta, a’hïrzg. Se isso for algo que lhe interesse, eu realmente tenho — sussurrou o archigos. Então ele se levantou e aplaudiu na direção da campina. — Os cozinheiros terão alguns belos filés de cervo — disse Semini em voz alta — e haverá uma galhada nova para enfeitar o palácio. Nós devíamos descer e encontrar os bravos caçadores, a’hïrzg. O que a senhora diz?

Ele ofereceu o braço.

Ela se levantou e aceitou.

 

Karl ca’Vliomani

— ONDE VOCÊ ESTÁ INDO? — perguntou Varina para ele.

Karl passou a primeira noite após a morte de Ana na casa de Mika, mas apesar da boa vontade do homem e de sua esposa, Karl achou a casa deles — com os filhos e agora o primeiro neto sempre entrando e saindo — cheia demais de vida e energia. Ele voltou para o próprio apartamento na margem sul. Era Varina que passava lá todo dia, que atormentava os criados e geralmente garantia que Karl estivesse sendo alimentado e cuidado. Ela o deixava sozinho com sua tristeza; estava lá quando ele precisava conversar ou quando Karl simplesmente quisesse sentir a sensação de ter outra pessoa no cômodo. Varina parecia saber quando ele precisava de silêncio e permitia isso. Karl era grato por essa atitude.

Ele lembrou-se de quando mostrou para Ana, pela primeira vez, o que os numetodos conseguiam fazer, há muito tempo. Naquela noite, havia sido Varina, uma recém-chegada sem experiência ao grupo, que Ana tinha visto demonstrando um feitiço. Varina cresceu muito desde então; ela era a segunda em poder depois de Mika dentro da facção dos numetodos na cidade, e não havia ninguém que rivalizasse sua dedicação à pesquisa, nem sua habilidade com o Scáth Cumhacht. Karl nunca entendeu exatamente como ela permaneceu sozinha todos esses anos. Varina havia sido muito notável na juventude: cabelo da cor do trigo no outono; olhos grandes e expressivos da cor de carvalho antigo e envernizado; um sorriso e uma risada maravilhosos e encantadores que sempre faziam os outros sorrirem com ela. Varina ainda era atraente, mesmo agora, na meia idade, mesmo que nos últimos anos ela tenha parecido envelhecer rapidamente. No entanto... Varina parecia ter pegado toda a vitalidade e energia que possuía e colocado exclusivamente no aprendizado das complexidades do Scáth Cumhacht e do Segundo Mundo, para descobrir todas as maneiras de conter aquele poder. Mesmo entre os numetodos, ela raramente parecia falar por muito tempo com alguém além de Mika ou Karl. Até onde ele sabia, Varina não tinha outros amigos ou amantes fora do grupo. Ela era um enigma, até mesmo para os mais próximos.

Karl dava valor à presença de Varina agora, mesmo que não soubesse como expressar sua gratidão.

Ele remoía a morte de Ana há uma semana agora, remexeu na mente o ocorrido sem parar, como se fosse um adubo repugnante. Alguém a queria morta. Ana fora o alvo, o assassino esperou que ela fosse ao Alto Púlpito; certamente Karl tinha visto os outros ténis na missa subirem ao púlpito para colocar as leituras e o pergaminho com a Admoestação que a archigos pretendia ler, e não foram eles que acionaram a explosão.

Quanto mais Karl considerava essa situação, mais parecia haver uma única resposta. Uma resposta que ele queria verificar.

Varina estava apoiada na arcada da antessala de braços cruzados enquanto Karl encolhia os ombros em seu manto. Ela não repetiu a pergunta, apenas olhou para ele com ternura, como se estivesse preocupada.

— Eu tenho um compromisso — respondeu Karl. Ela concordou com a cabeça. Ainda em silêncio. Os olhos estavam arregalados e não piscavam. — Eu tenho perguntas a fazer.

Outro gesto com a cabeça. — Eu vou com você — disse Varina. Karl hesitou. — Não vou interferir — falou ela. — Se você vai aonde eu penso que vai, pode precisar de apoio. Estou certa?

— Pegue sua capa — disse Karl. Ela deu um breve sorriso, um relance de dentes brancos, e pegou a capa em um gancho na parede.


O embaixador da Coalizão Firenzciana, Andreas co’Görin, tinha um rosto tão fino e anguloso quanto o de um falcão. Quando o homem se levantou da cadeira, os olhos da cor de urze observaram Karl e Varina como se os dois fossem coelhos a serem capturados e devorados. O rosto aquilino era complementado pelo corpo esguio de um espadachim. Karl imaginava que o sujeito ficava mais à vontade de armadura do que na bashta respeitável e conservadora que usava.

Isso fez com que Karl pensasse se teria sucesso aqui.

— Embaixador ca’Vliomani, vajica ci’Pallo, sua visita é... inesperada — falou co’Görin. — O que posso fazer pelos senhores?

Karl olhou enfaticamente para o assistente que ocupava a mesa menor do outro lado do gabinete.

— Gerald, por que você não vai ver se acha aquela proposta sobre as novas regulamentações de fronteira? — disse co’Görin. O assistente, tão robusto e corpulento quanto co’Görin era magro, concordou com a cabeça e remexeu em alguns papéis ruidosamente por um momento antes de sair da sala.

Karl esperou até ouvir o clique da porta se fechando quando o homem saiu. — Eu passei os últimos dias pensando na morte da archigos Ana, embaixador — falou ele. As palavras soaram quase casuais, até mesmo para seus ouvidos. Varina baralhou os pés ao lado de Karl, irrequieta. — Sabe, por mais que eu tente encontrar motivos para alguém ter feito aquilo, não consigo pensar em ninguém que quisesse Ana morta, a não ser as pessoas que o senhor representa.

Varina ficou nitidamente aflita. Uma nuvem passou sobre os olhos de urze de co’Görin, que escureceram e ficaram verdes. Os músculos do rosto do homem retesaram-se, e ele fechou a mão direita como se procurasse pelo cabo de uma espada. — O senhor é bem curto e grosso, embaixador.

— Eu desisti da diplomacia por enquanto — respondeu Karl.

Co’Görin o olhou com desdém. — Certamente. Então serei curto e grosso também. Eu considero uma ofensa a sua acusação. Eu o perdoo por saber... — ele torceu o nariz e franziu os olhos — ... como o senhor era próximo da archigos de Nessântico, mas também espero por um pedido de desculpas imediato.

— Pela minha experiência, as esperanças geralmente viram decepção — disse Karl.

— Karl... — falou Varina com delicadeza. Ela tocou levemente o braço dele. — Talvez...

Varina parou de falar, como se soubesse que ele não escutava. A raiva o queimava por dentro. Karl queria apenas que co’Görin fizesse um gesto brusco ou o insultasse abertamente, qualquer coisa que servisse como desculpa para usar o Scáth Cumhacht que ardia em sua mente à espera da palavra de ativação. Mas co’Görin balançou a cabeça; não se sentou, pareceu relaxar atrás da mesa, tranquilo.

— Eu acho, embaixador ca’Vliomani, que o senhor descartou a possibilidade de que o assassino pode ter sido um elemento sem vínculos, ou talvez uma pessoa contratada por alguém com contas a acertar com a archigos, alguém dentro dos Domínios de Nessântico. Não há necessidade de atrelar uma conspiração ao fato. — Ele ergueu as sobrancelhas; o resto do corpo permaneceu imóvel. — A não ser, é claro, que o senhor tenha provas que gostaria de compartilhar comigo? Mas não, se tivesse isso, o senhor teria ido ao regente, não é? O comandante da Garde Kralji estaria aqui, não dois hereges numetodos. — Devagar, quase de maneira debochada, ele sentou-se outra vez. Seus dedos compridos brincaram com os pergaminhos espalhados sobre a superfície da mesa, e a expressão aquilina se voltou com um olhar de desdém para Karl. — Acho que terminamos por aqui, embaixador. Firenzcia não se envolve com hereges e jamais se envolverá. Estamos perdendo o tempo um do outro.

A dispensa atiçou o fogo que ardia dentro de Karl. — Não! — berrou ele. — Nós não terminamos! — Karl gesticulou e falou uma das palavras de ativação que havia preparado antes de vir. Um fogo rápido lambeu a papelada sobre a mesa do embaixador e consumiu os papéis no mesmo tempo que co’Görin levou para reagir. O homem deu um pulo para trás e saiu da cadeira. Um vento ligeiro veio em seguida soprando a papelada que passou por co’Görin e saiu pela janela, além de balançar a bashta do embaixador; isso só podia ter sido obra de Varina. — Aquele fogo podia muito bem ter sido direcionado para o senhor em vez dos documentos — disse Karl, que ouviu a porta ser escancarada atrás de si e ergueu uma mão preventivamente ao sentir Varina se virar para encarar a ameaça. — Eu não vim com apenas um feitiço, embaixador, e minha amiga é mais poderosa do que eu. Diga ao seu pessoal para ficar onde está, ou garanto que o senhor, pelo menos, não sairá vivo desta sala.

— Nem o senhor, se insistir com essa tolice — rosnou co’Görin, e Karl quase gargalhou.

— Isso pouco me importa a esta altura — disse Karl. As costas de Varina apoiadas nas costas dele. Karl sentiu que ela ergueu os braços para preparar um feitiço.

O embaixador acenou para as pessoas atrás de Karl, que ouviu uma espada ser embainhada e sentiu Varina abaixar os braços novamente. Co’Görin falou — Vou lhe dizer novamente, embaixador, o senhor está enganado se pensa que Firenzcia está envolvida na morte da archigos. Mate-me, não me mate; isso não vai mudar o fato.

— Eu não acredito nisso.

Co’Görin torceu o nariz. — Falta de crença é o principal problema com os numetodos, não é? O senhor quer que eu fique de luto pela sua archigos, embaixador? Não ficarei. Ela atraiu este destino ao acolher os numetodos e se recusar a reconhecer o archigos de Brezno como o verdadeiro líder da Fé. A violência era um resultado inevitável de suas ações, mas, até onde eu sei, não foi Firenzcia que fez isso. Essa é a verdade, e se o senhor não consegue acreditar em mim... — Ele deu de ombros. — Então faça o que tem que fazer. O senhor apenas provará que os numetodos são realmente os tolos perigosos que todo fiel de verdade sabe que eles são. Olhe para mim, embaixador. Olhe para mim — falou co’Görin com mais rispidez, e Karl encarou o embaixador com raiva. — O senhor enxerga uma mentira em meu rosto? Eu vou lhe dizer: quem matou a archigos não foi alguém que eu conheça ou tenha contratado. Essa é a verdade.

Karl sentiu o Scáth Cumhacht vibrar loucamente por dentro. Ele não queria outra coisa a não ser atacar esse tolo metido, ver a arrogância do sujeito desmoronar e virar um grito, fazer com que berrasse em agonia ao morrer. Mas também ouviu Ana. Karl sabia o que ela lhe diria e deixou a mão cair ao lado do corpo. Ouviu Varina suspirar de alívio.

As palavras de co’Görin não tranquilizaram Karl, mas ele começou a se perguntar se o embaixador talvez não tivesse dito a verdade segundo o que sabia. Karl também se lembrou de um tempo, há muitos anos, e de uma outra pessoa que era capaz de invocar o Scáth Cumhacht — embora ele não chamasse a energia dessa maneira, nem de Ilmodo.

— Se eu descobrir que o senhor está mentindo, embaixador — falou Karl —, não vou lhe dar a chance de pedir desculpas ou de sacar sua espada. Matarei o senhor onde quer que eu lhe encontre. Isso também é a verdade.

Dito isso, ele deu meia-volta, e Varina ficou ao seu lado. Havia três guardas bloqueando a porta, mas Karl empurrou os homens e saiu a passos largos para o ar fresco e a luz do sol.

— O que, em nome dos Seis Abismos Eternos, foi aquilo? — Varina estourou com Karl quando os dois estavam novamente do lado de fora, na Avi a’Parete. Ela agarrou a manga dele e o puxou para pará-lo. — Karl! Eu estou falando sério. O que você achou que estava fazendo?

— O que eu precisava fazer — disparou ele com mais rispidez do que pretendia, ainda vermelho de raiva por co’Görin, pela atitude do homem e pelas próprias dúvidas que o remoíam. Toda essa raiva estava contida na resposta. — Se você não queria estar ali, não precisava vir.

— Ana está morta, Karl. Você não pode trazê-la de volta. Acusar pessoas sem provas só vai fazer você morrer também.

— Ana merece justiça.

— Sim, merece — disparou Varina em resposta. — Deixe para aqueles que têm essa função fazer isso por ela. Vocês não eram amantes. Ana não era a matarh de seus filhos.

A fúria ferveu dentro dele. Karl ergueu a mão, o calor frio do Scáth Cumhacht aumentou, e Varina espalmou as mãos. — Faça isso! — disparou outra vez. — Vamos! Isso vai fazer você se sentir melhor? Vai mudar alguma coisa?

Karl pestanejou; em volta dos dois, as pessoas na rua olhavam fixamente. Ele abaixou as mãos. — Eu... eu sinto muito, Varina.

Ela olhou com raiva para Karl e franziu os lábios. — Ela era sua amiga, e eu compreendo isso. Ela era minha amiga também. Mas Ana também cegou você, Karl. Você jamais foi capaz de ver o que está bem à sua frente.

Dito isso, ela deu meia-volta e deixou Karl, seguiu quase correndo pela Avi. — Varina — chamou ele, mas ela enfiou-se na multidão e desapareceu como se jamais tivesse estado ali. Karl ficou parado na rua, as pessoas passando à sua volta. Karl ouviu as trompas do Templo da Archigos, o templo de Ana, começarem a soar para conclamar a Segunda Chamada, e o som pareceu uma risada debochada.

 

Sergei ca’Rudka

— VOCÊ não confia em mim, Karl?

Sergei observou a onda de emoções que percorreu a face do embaixador. O sujeito tinha um rosto impressionantemente franco para quem era diplomata, um defeito que ele possuía desde que Sergei o conheceu. Tudo que Karl pensava ficava nítido para um observador que soubesse ler expressões. Talvez fosse apenas o estilo Paeti; o regente tinha conhecido algumas pessoas da Ilha ao longo de décadas, e a maioria costumava não apenas falar com muita franqueza o que pensava, mas também fazia pouco esforço para esconder opiniões e emoções sinceras. Talvez fosse isso o que tornava a Ilha reconhecida por seus grandes poetas e bardos, pelas canções e pelo temperamento e paixão intensos de seu povo, mas que também os tornava vulneráveis, na avaliação de Sergei.

O estilo deles não era o de Sergei.

Karl pestanejou diante da brutalidade da pergunta, que Sergei disparou antes mesmo que o criado tivesse fechado a porta. O embaixador estava parado na entrada do gabinete do regente, hesitante, quando a porta foi fechada delicadamente atrás dele. — Claro que confio, Sergei — gaguejou um pouco Karl, as palavras saíram carregadas pelo sotaque cantado de Paeti. — Eu não sei do que você está... — E então — Ah.

— Sim. Ah. — Sergei respirou fundo e coçou o nariz. — Eu acabei de receber uma visita bastante desagradável do embaixador co’Görin, embora francamente qualquer visita da parte dele costume ser desagradável. Ainda assim, o sujeito parece achar que você é um homem perigoso que deveria morar na Bastida em vez de andar pelas ruas. Na verdade, ele disse: “em Brezno, o homem seria estripado e pendurado em público por sua impertinência, quanto mais por sua dedicação à heresia.” Eu não acho realmente que ele goste de você. — Sergei ficou de pé, foi até Karl e deu um tapa em suas costas.

Co’Görin realmente reclamara sobre Karl, mas o embaixador firenzciano havia comparecido a pedido de Sergei, e ido embora com uma mensagem selada que o regente esperava que já estivesse na bolsa de um mensageiro disparando pela Avi a’Firenzcia a caminho de Brezno. Mas nada disso era algo que ele contaria para ca’Vliomani. — Venha, sente-se comigo, velho amigo. Vou mandar Rodger trazer um chá para nós. Eu ainda não tomei meu café da manhã.

Pouco tempo depois, eles estavam sentados em uma sacada com vista para os jardins. Jardineiros rondavam o terreno e arrancavam qualquer erva daninha que metia sua cara comum no meio da realeza das flores. O chá e os biscoitos permaneciam intocados por qualquer um dos dois.

— Karl, você tem que deixar esse assunto comigo.

— Eu não posso.

— Você deve. Meu pessoal está procurando intensamente a pessoa ou pessoas que fizeram isso com Ana. Estou em cima do comandante co’Falla nessa questão como se ele fosse um cavalo. Não vou deixar o assunto quieto, não vou deixar morrer. Eu lhe prometo. Eu quero justiça para Ana tanto quanto você, mas você tem que me deixar fazer isso. Não você. Você precisa ficar fora do caminho da investigação.

Karl então encarou Sergei, e o regente viu o desespero pulsar nas bolsas embaixo dos olhos do homem e puxar os cantos da boca. — Sergei, estou convencido de que só pode ter sido um plano firenzciano. Com o hïrzg Jan morto e Fynn no trono, só faz sentido que ele, e talvez o archigos Semini de Brezno... — Karl umedeceu os lábios. — Todos eles têm uma razão para odiar Ana.

Sergei interrompeu Karl com a mão erguida. — Razões, sim, mas você não tem provas. Nem eu. Não ainda.

— Quem mais iria querer Ana morta? Diga para mim. Existe alguém nos Domínios, talvez um a’téni invejoso que queria ser archigos? Ou alguém das províncias? Nós suspeitamos de mais alguém?

— Não — admitiu Sergei. — Eu mesmo suspeito de Firenzcia, mas precisamos saber antes de agir, Karl. — A mentira, como sempre, vinha fácil à boca. Sergei estava acostumado a mentiras. Uma mentira não seria ouvida em sua voz ou vista no espasmo de um músculo.

Às vezes o regente pensava que era composto inteiramente por mentiras e falsidades, que se alguém tirasse essas coisas de Sergei, ele não seria nada além de um fantasma.

— Saber? — repetiu Karl. — Da mesma forma que você sabia quando me atirou na Bastida anos atrás? Da mesma forma que sabia que eu e os numetodos devíamos ter algo a ver com a morte da kraljica Marguerite?

Sergei esfregou o nariz de prata ao fazer uma careta diante da memória. — Eu estava cumprindo ordens do kraljiki Justi na época. Você sabe disso. E note que você ainda está vivo, enquanto Justi preferiria que estivesse morto. Reconheça o meu mérito quanto a isso. Karl, o que está em jogo aqui é importante demais para palpites ou para que pessoas esquentadas invadam o gabinete do embaixador da Coalizão para ameaçá-lo. Se seu palpite estiver correto e o hïrzg Fynn for responsável por esse ato, a única coisa que você conseguiu foi alertá-lo de nossas suspeitas. Você e Varina realmente usaram feitiços numetodos? — Ele estalou alto com a língua e balançou a cabeça. — Estou surpreso que você não o tenha matado logo de saída.

— Eu queria — disse Karl. Por um momento, as rugas em volta da boca foram repuxadas, e os olhos brilharam sob a luz do sol. — Mas eu pensei em Ana... — O brilho nos olhos aumentou. Ele limpou-os com a manga da bashta.

Por um instante, Sergei genuinamente sentiu pena e compaixão pelo homem. Ele respeitava a archigos Ana porque não havia outra escolha. Ana jamais deixou alguém chegar muito próximo a ela, mesmo aqueles — como Karl — que podiam ter desejado tal coisa. Sergei sabia disso porque observava Karl ao longo dos anos, observava-o porque era seu dever saber as preferências e interesses das pessoas de destaque nos Domínios. Sergei sabia que ele usava os serviços das mais caras e discretas grandes horizontales da cidade, e — o que era interessante para o regente — cada uma dessas mulheres que Karl preferia tinha uma semelhança física com a archigos, e mudava ao longo das décadas, assim como a própria Ana. Foi preciso pouca intuição para adivinhar o motivo dessa preferência.

Karl... Sergei gostava do homem, tanto quanto ele jamais se permitiu gostar de alguém. Ele acenou com a cabeça para o numetodo. — Estou contente que o fantasma de Ana conteve sua mão, do contrário, eu poderia não ter outra escolha. Karl, você tem que deixar essa questão de lado. Prometa para mim. Deixe meus subordinados investigarem. Contarei qualquer coisa que eu descobrir. — Essa era outra mentira, obviamente. Sergei já sabia detalhes do assassinato que não tinha a menor intenção de compartilhar com Karl; tinha suspeitas em mente que ele não falaria.

Na escuridão da Bastida, ele mandou que os gardai o deixassem a sós com um homem, um empregado do comerciante Gairdi, que regularmente viajava entre Nessântico e Brezno. Ele ouviu o choramingo delicioso quando desenrolou o pedaço de lona com as terríveis ferramentas amarradas dentro dela e sorriu para o prisioneiro. — Diga-me a verdade — falou Sergei — e talvez não precisemos de nada disso aqui. — Aquilo também fora uma mentira, mas o homem animou-se com a oportunidade e balbuciou em uma voz alta e rápida. Os gritos, quando vieram depois, foram maravilhosos.

Havia alguns vícios de Sergei que ficavam mais fortes com a idade, não mais fracos. — Prometa para mim — repetiu o regente.

Karl hesitou. O olhar afastou-se de Sergei para pousar no jardim abaixo, e o regente acompanhou o gesto. Lá, um jardineiro enfiou o dedo em um solo tão úmido e rico que parecia negro e arrancou outra erva daninha. O funcionário jogou o emaranhado de folhas e raízes na bolsa de lona pendurada no ombro. Sergei acenou com a cabeça: o trabalho necessário para manter o jardim bonito também exigia morte.

— Eu prometo, Sergei. — O regente, preso na imagem, olhou de volta para Karl e viu que o embaixador sorria palidamente para ele.

Ainda assim... havia alguma coisa que Karl não estava dizendo, alguma informação que estava escondendo. Sergei pôde perceber. O regente concordou com a cabeça, como se acreditasse nele, e decidiu que faria com que co’Falla colocasse alguém para vigiar Karl, com a intenção de descobrir o que o homem sabia, bem como de evitar que o embaixador de Paeti cometesse outro erro crítico — especialmente um erro que pudesse interferir nas próprias intenções de Sergei.

Ana estava morta. Quando ela era viva e uma presença firme e forte que guiava a fé concénziana, Sergei não esteve disposto a tomar o rumo que considerava estar tomando no momento. Porém, com sua morte, com o hesitante e bem mais fraco Kenne eleito para o trono de archigos, com o kraljiki Audric tão doente, frágil e jovem...

Tudo mudou.

— Bom — falou Sergei, que devolveu com afeto o sorriso de Karl. — Tem sido difícil para todos nós, mas especialmente para você, meu bom amigo. Agora, vamos tomar este chá antes que esfrie e provar os biscoitos. Aposto que você não come há dias, pela sua cara. Varina e Mika não estão cuidando de você...?


Naquela noite, uma virada da ampulheta após as trompas anunciarem a Terceira Chamada, Sergei sentou-se com o novo archigos Kenne na sacada de observação do templo na margem sul, para assistir à Cerimônia da Luz, que ocorria diariamente. Há dois séculos ou mais, os ténis da Fé saíam do templo à noite e — com a dádiva do Ilmodo — acendiam as lâmpadas que expulsavam a noite da cidade. Por toda sua vida, Sergei testemunhou o ritual diário. Douradas e dentro de globos de cristal, as lâmpadas mágicas eram colocadas em intervalos de cinco passos ao longo da grande Avi a’Parete, a larga avenida circular que cercava os trechos mais antigos da cidade. Até tarde da noite, as lâmpadas bradavam seu desafio para a lua e as estrelas e proclamavam a grandeza de Nessântico.

Para Sergei, esta era a cerimônia que definia Nessântico para a população. Essa era a cerimônia que proclamava o apoio de Cénzi aos kralji e à fé concénziana, uma cerimônia que ocorria sem alterações há gerações — até a época da archigos Ana. Agora o significado era menor, havia pessoas pelas ruas que podiam produzir luz sozinhas: sem invocar Cénzi, e sem o treinamento de um téni. A aceitação de Ana à heresia dos numetodos diminuiu a Fé, na opinião de Sergei, e forçou a mudança de visão das pessoas.

Mudança. Sergei não gostava de mudança. Mudança significava instabilidade, e instabilidade significava conflito.

Mudança significava que tudo tinha que ser reavaliado. Ana... Sergei nunca fora especialmente íntimo da mulher, porém, no papel de comandante da Garde Civile, e depois como regente, ele certamente tinha trabalhado em conjunto com ela. Independentemente dos defeitos pessoais, Ana tinha sido forte, e Sergei admirava sua força. Foi somente sua presença no trono de archigos que impediu que o reinado de Justi como kraljiki fosse uma catástrofe completa. Só por isso, ele sempre seria grato à memória de Ana.

Mas agora Kenne era o archigos. Sergei gostava genuinamente de Kenne como pessoa. Gostava da companhia do homem e de sua amizade. Contudo, Kenne não seria o archigos que Ana tinha sido. Não podia ser porque não tinha a coragem interior. Sergei sabia por que o Colégio A’téni o escolhera — porque nenhum dos outros a’ténis queria o título, a responsabilidade ou os conflitos que vinham com o trono e o cajado de archigos, e eles temiam o cargo especialmente agora. Kenne não era inimigo de ninguém e, principalmente, Kenne era velho. Era frágil. Ele não seguraria o cajado de Cénzi por muitos anos... e talvez quando ele morresse, os tempos fossem menos turbulentos.

O Colégio agiu em nome da autopreservação e, portanto, entregou a Fé a um archigos fraco.

Sergei perguntou-se se algum dia Kenne o perdoaria pelo que ele pretendia fazer.

Os dois homens ficaram parados enquanto os ténis-luminosos saíam em uma longa procissão pelas grandes portas principais bem abaixo deles. Sergei ouviu a melodia sonora do coro que terminava os cultos da noite na capela principal do templo. O som ecoou como uma lamúria pela praça quando as portas se abriram. O sol havia acabado de se pôr, embora o céu nublado do oeste ainda fosse um turbilhão revolto de tons de vermelho e laranja. Sob aquela luz, os ténis deram meia-volta e fizeram o sinal de Cénzi para o archigos, e Kenne abençoou-os com o mesmo gesto.

Os e’ténis — todos pareciam jovem demais aos olhos de Sergei, todos solenes com o fardo do dever — curvaram-se simultaneamente para o archigos, os robes verdes tremularam como um campo de grama ao vento, antes de darem meia-volta novamente para cruzar o enorme pátio diante do templo. A multidão de sempre estava reunida para assistir à cerimônia, embora fosse menor nos últimos anos do que fora na época da kraljica Marguerite, quando os Domínios eram um só e os visitantes afluíam para Nessântico de todos os pontos da bússola. Nos últimos anos, houve muito menos visitantes do leste e do sul, de Firenzcia ou das Magyarias, de Sesemora ou Miscoli. Com a guerra nos Hellins do outro lado do Strettosei, muitos jovens foram embora e as famílias viajavam menos. Embora o pátio do Velho Templo estivesse repleto de espectadores, a Garde Kralji não tinha dificuldades em abrir espaço para os ténis-luminosos; Sergei conseguia enxergar as pedras de pavimentação entre eles. Os ténis chegaram à Avi e dividiram-se em duas fileiras, espalharam-se à leste e à oeste pela avenida e seguiram para as lâmpadas mais próximas, dispostas de cada lado do portão de entrada do Templo do Archigos.

Os primeiros ténis-luminosos alcançaram as lâmpadas. Eles se postaram debaixo do globo reluzente de vidro trabalhado e ergueram os olhos para o céu do anoitecer como se vissem que Cénzi os observava. Os ténis falaram uma única palavra e gesticularam do peito para a lâmpada, os punhos fechados abrindo-se em mãos espalmadas.

As lâmpadas irromperam em uma luz amarela brilhante.

Sergei aplaudiu com Kenne. Mesmo assim...

Aquela única palavra que ativou o feitiço: aquilo era uma mudança também, uma concessão aos numetodos, que conseguiam lançar rapidamente seus feitiços. Era outra mudança provocada por Ana. — Às vezes eu sinto saudade dos velhos costumes, archigos — falou Sergei. — Os cânticos demorados, a sequência de gestos, a maneira como o esforço cansava visivelmente seus ténis... O jeito numetodo de usar o Ilmodo faz tudo parecer muito fácil. Havia... — ele suspirou quando os dois homens se sentaram novamente — ...um mistério envolvido naquela época, uma noção de trabalho e amor ao ritual que desapareceu. Não tenho certeza se Ana tomou a decisão certa quando permitiu que os ténis começassem a usar os métodos dos numetodos para iluminar nossas ruas.

Ele viu Kenne concordar com a cabeça. — Eu entendo — respondeu o archigos. — Parte de mim concorda com você, Sergei; havia uma emoção nos velhos rituais que sumiu agora. Porém, os numetodos provaram seu valor contra o hïrzg Jan, e Ana dificilmente poderia abandoná-los depois, não é? — Sergei ouviu Kenne dar uma risadinha irônica. — Nós somos velhos, Sergei. Queremos que as coisas sejam como eram na época da nossa juventude. Quando o mundo era certo e Marguerite ficaria sentada no Trono do Sol para sempre.

Sim. Eu quero isso mais do que você acreditaria. Sergei coçou o lado do nariz onde a cola irritava a pele; alguns pedacinhos da resina saíram sob a unha. — Não há nada de errado com isso. As coisas eram boas naquela época, com a kraljica Marguerite e Dhosti vestindo o robe de archigos. Não houve momento melhor para os Domínios ou para a Fé. Nós vivíamos em uma época perfeita e nem sabíamos.

— Sim, vivíamos. Eu concordo. — Kenne suspirou com a memória.

As portas douradas do templo atrás deles foram abertas, e um u’téni mais velho surgiu, Sergei o reconheceu: Petros co’Magnaio, o assistente de Kenne. O homem vivia com Kenne desde a época do archigos Dhosti. Kenne acenou com a cabeça e sorriu para co’Magnaio quando ele pousou uma travessa com frutas e chá entre os dois. Sergei nunca ficou incomodado por Kenne sofrer do que era eufemisticamente chamado de “doença dos gardai”. Havia alguma verdade, afinal, no termo: quando passavam anos em uma campanha, os soldados às vezes encontravam satisfação onde fosse possível, com aqueles que estavam em volta. — O tempo ficará frio com o pôr do sol — disse co’Magnaio. — Pensei que fossem gostar de chá quente.

A mão de Kenne pairou sobre a de co’Magnaio, mas não exatamente a tocou; Sergei sabia que a situação seria diferente se ele não estivesse aqui. — Obrigado, Petros. Não vamos demorar muito aqui, mas agradeço.

Co’Magnaio curvou-se e fez o sinal de Cénzi para eles. — Vou cuidar para que os senhores não sejam incomodados enquanto conversam. Archigos, regente... — O assistente deixou os dois e fechou as portas da sacada ao sair.

— Ele é um bom homem — falou Sergei. — Você deu sorte com ele.

Kenne concordou com a cabeça e olhou afetuosamente para as portas por onde Petros passou. — Falando sobre aqueles que se sentaram no Trono do Sol, Sergei, sinto muito que o kraljiki não tenha podido se juntar a nós na noite de hoje. Como está Audric?

Sergei deu de ombros. Lá embaixo, os ténis-luminosos saíram do templo e seguiram para as lâmpadas mais afastadas da Avi e foram acompanhados pela multidão murmurante. Os pombos desceram dos domos do templo e dos telhados dos prédios do complexo para ciscar nas pedras que ficaram vagas na praça, atrás de restos. — Ele não está bem. — O regente olhou para trás; as portas permaneciam fechadas, mas, ainda assim, Sergei abaixou a voz. — Você teve sorte em achar outro téni com dons de cura?

Kenne suspirou. — Esses sempre foram os dons mais raros, e uma vez que a Divolonté condena seu uso em especial... bem, tem sido difícil, mas eu tenho esperanças. Petros está realizando uma apuração criteriosa. Encontraremos alguém. — O archigos fez uma pausa, olhou para as frutas no prato entre eles e escolheu um pedaço. Kenne tinha mãos compridas e delicadas, mas a pele em volta dos ossos era fina e enrugada, e Sergei notou o tremor quando o archigos levou uma casca de fruta doce aos lábios e a chupou. Não podemos permitir fraqueza tanto no kraljiki quanto no archigos, não se quisermos sobreviver.

— Sergei, temos que considerar o que pode acontecer se o menino morrer — continuou Kenne, quase como se tivesse escutado os pensamentos de Sergei. — Os filhos de Justi... — Ele franziu a testa e devolveu a casca de fruta ao prato. — Amarga demais. Os filhos de Justi nunca foram conhecidos pela longevidade.

Os ténis seguiram pela Avi e sumiram de vista. O som do coro terminou em um acorde etéreo e persistente. — Espero que Cénzi não nos faça encarar essa escolha — falou Sergei com cuidado. — Mas é o que todo mundo está se perguntando, não é?

— Existem os gêmeos ca’Ludovici, Sigourney ou Donatien. Eles são, o quê...? — Kenne franziu os lábios finos em concentração — ...primos em segundo grau de Audric e primos diretos de Justi, pois Marguerite era tantzia-bisamatarh deles. Já são maiores de idade, o que é bom. Donatien, em especial, destacou-se na Guerra dos Hellins, mesmo que as coisas não andem bem ultimamente, e ele é casado com uma ca’Sibelli, uma tradicional família de Nessântico; nós poderíamos chamá-lo de volta dos Hellins. Sigourney, entretanto, pode ser a melhor escolha. Ela ainda carrega o sobrenome ca’Ludovici, logicamente: isto certamente tem um peso incrível aqui, e Sigourney fez sua presença ser sentida no Conselho dos Ca’. Os dois têm direito ao trono mais direto em termos de linhagem, creio eu, e tenho certeza de que o Conselho dos Ca’ apoiaria qualquer uma das duas reivindicações ao Trono do Sol.

Sergei não ficou surpreso ao ver que o pensamento do archigos corria tão paralelo ao seu; ele suspeitava que este fosse o caso por toda parte dos Domínios e também da Coalizão. O regente fez uma pausa e perguntou-se se deveria falar mais. Seria interessante, talvez, ver como Kenne reagiria. — Allesandra ca’Vörl pode alegar ter a mesma linhagem e o mesmo relacionamento através de sua matarh — respondeu Sergei, como se divagasse à toa. — Por falar nisso, o novo hïrzg Fynn pode alegar o mesmo. Eles também são primos em segundo grau de Marguerite, com o mesmo direito ao trono que Sigourney ou Donatien.

Sob a luz intensa das lâmpadas mágicas, as sobrancelhas de Kenne escalaram os sulcos em sua testa. — Você não está sugerindo seriamente...

O tom volúvel era a reação que o regente esperava, e Sergei sorriu rapidamente para dar a impressão de que as palavras eram uma simples brincadeira. — Longe disso. Apenas apontei como Allesandra poderia reagir. Certamente Sigourney ou Donatien seriam boas escolhas, como você sugere, embora talvez nós precisemos que Donatien permaneça como comandante nos Hellins. No entanto, Audric não está morto, e eu preferiria que ele continuasse assim. Porém, se o pior acontecer... Você está certo; nós devemos considerar a sucessão. Os Domínios já estão partidos, graças à incompetência de Justi, e não podemos permitir que o que sobrou se rompa ainda mais. — O regente fez uma pausa. Ele cerrou os olhos e coçou o queixo propositalmente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Mas... talvez os Domínios e a Coalizão possam chegar a um meio-termo se o pior acontecer, Kenne. Um ca’Vörl tomaria o Trono do Sol, mas a fé concénziana seria regida por você, não por Semini ca’Cellibrecca. — Pronto. Vejamos como ele considera a oferta.

— Você aceitaria os assassinos de Ana sentados no Trono do Sol? — O horror na voz do homem era palpável.

Sergei bufou com desdém, um assobio alto soou pelas narinas de metal do nariz falso. — Você está fazendo a mesma acusação que o embaixador ca’Vliomani. Até o presente momento, não tem fundamento.

— Quem mais teria feito isso com Ana, Sergei? Sabemos que não foram os numetodos, pois ela era aliada deles.

Sergei não insistiu mais na questão. Ele já sabia o que precisava. — Isso é algo que meu pessoal está tentando determinar. E vão conseguir. — O fogo do pôr do sol não ardia mais no céu do oeste. As estrelas lutavam contra as chamas frias das lâmpadas mágicas, e o frio da noite tomava conta da cidade. Sergei sentiu um arrepio e levantou-se da cadeira. As juntas do joelho estalaram e protestaram com o movimento; ele gemeu com o esforço. O regente ainda sentia a dor nos músculos e os hematomas da ocasião em que se jogou sobre Audric no templo.

Velhos, realmente...

Petros devia estar vigiando (e com certeza escutando também) pelas frestas das portas do templo; assim que Sergei se levantou, elas foram abertas e um atendente e’téni correu até ele com seu sobretudo. O regente viu Petros parado na penumbra do corredor atrás das portas. — Eu tenho que verificar como Audric está, archigos — disse Sergei ao se ajeitar nas dobras de lã. — Se você encontrar alguém com os dons que discutimos, por favor, mande esta pessoa para o palácio imediatamente.

— Eu mesmo passarei lá em mais ou menos uma virada da ampulheta — falou Kenne. — Petros já deve ter aprontado minha sopa neste momento, mas passarei depois, para ver o que posso fazer.

— Obrigado, archigos. Eu talvez veja você, então.

Ao sair do templo, Sergei perguntou-se se sua mensagem já chegara a Brezno e que recepção teria recebido.

 

Allesandra ca’Vörl

— A FLECHADA DO SEU FILHO foi tão boa quanto uma das minhas — declarou Fynn.

Allesandra duvidava disso. Jan podia não ter o volume e o poder da massa muscular de Fynn. Podia não ser capaz de manejar o peso do aço temperado que alguém como Fynn podia com facilidade fazer, mas o menino cavalgava como ninguém e tinha uma mira com flechas que pouquíssimos poderiam igualar. Allesandra tinha certeza de que nem Fynn, nem outra pessoa qualquer poderia ter acertado, quanto mais derrubado, o cervo montado nas costas de um cavalo a galope.

Porém, pareceu simplesmente melhor apenas aquiescer com a cabeça, dar um falso sorriso para Fynn e concordar. Era a atitude mais segura, mas concordar com a falsidade machucava, pois o orgulho pelo filho fazia com que ela quisesse discordar. Allesandra guardou o sentimento, juntamente com outras mágoas e insultos que Fynn e seu vatarh deram a ela ao longo dos anos.

— Foi sorte eu ter estado lá para dar a última flechada, ou o cervo teria escapado.

Allesandra sorriu novamente, embora soubesse que não tinha sido sorte ou destino, apenas a demonstração de que Jan sabia que não deveria eclipsar a presença do hïrzg. Um gesto político, tão habilidoso quanto qualquer um que ela pudesse ter feito.

Os dois andavam pela sacada leste do Palácio da Encosta do Cervo — tão reservado quanto qualquer um podia ser dentro da propriedade. Os gardai estavam em rígida posição de sentido no ponto onde a sacada fazia uma curva do norte para o sul; era evidente que eles evitavam o hïrzg e a a’hïrzg de maneira impassível enquanto olhavam para fora. Das janelas abertas para entrar a brisa da noite, Allesandra e Fynn ouviam os murmúrios dos convidados na mesa de onde acabaram de sair. Ela conseguiu distinguir a voz de Jan quando ele riu de algo que Semini disse.

Allesandra olhou para leste, na direção da bruma da noite que subia como uma maré lenta que vinha dos vales para as encostas íngremes onde o palácio estava instalado. O topo das sempre-vivas embaixo deles estava envolvido por filamentos de nuvens brancas, embora os picos sem árvores e assolados pelo vento permanecessem banhados pelo sol, que reluzia nos penhascos de granito e nos bancos de neve presos às rochas. Em algum lugar escondido na bruma lá embaixo, uma cachoeira borbulhava e cantava.

— É realmente bonito aqui — disse Allesandra. — Eu nunca me dei conta quando estive aqui quando era menina. O vavatarh Karin escolheu um lugar perfeito: deslumbrante e perfeitamente defensável. Nenhum exército jamais conseguiria tomar a Encosta do Cervo se o local fosse bem defendido.

Fynn concordou com a cabeça, embora não parecesse estar olhando para a paisagem. Em vez disso, ele remexia o punho brocado da manga. — Eu pedi que andasse comigo para que pudéssemos conversar sozinhos, irmã.

— Imaginei que fosse isso. Nós, ca’Vörls, raramente fazemos alguma coisa sem motivos ocultos, não é? — falou Allesandra, que deu um rápido sorriso. — O que você queria me dizer, irmãozinho?

Ele sorriu, brevemente, ao ouvir isso, e o movimento contorceu a larga cicatriz na bochecha. — Você nunca me conheceu quando eu era pequeno.

— Houve uma boa razão para isso. — Sim, aquela mágoa estava bem no âmago da montanha interior, a semente de onde tudo brotou...

— Ou uma má razão. Eu não entendi na época, Allesandra, por que o vatarh deixou você em Nessântico por tanto tempo. Depois que ele finalmente me contou a seu respeito, eu sempre me perguntei por que o vatarh deixou minha irmã mofar em outro país, que ele obviamente odiava tanto.

— Você entende agora? — perguntou ela, e continuou antes que Fynn pudesse responder. — Porque eu ainda não entendo. Sempre esperei que o vatarh se desculpasse ou explicasse, mas ele nunca fez isso. E agora...

— Eu não quero ser seu inimigo, Allesandra.

— Nós somos inimigos, Fynn?

— É o que pergunto a você. Eu gostaria de saber.

Allesandra esperou antes de responder. O parapeito de mármore da sacada sob sua mão estava molhado, o orvalho lustrou os torvelinhos azul-claros na pedra leitosa. — Você acha que, se nossas posições fossem invertidas, e eu tivesse sido nomeada hïrzgin pelo vatarh, então você me consideraria sua inimiga? — perguntou ela com cautela.

Fynn fez uma careta e abanou o ar fresco como se estivesse espantando um inseto irritante. — Tantas palavras... — Ele suspirou alto, e a irmã ouviu a irritação no gesto. — Você faz discursos que entram em meus ouvidos e distorcem o significado das minhas próprias palavras, Allesandra. Eu nunca fui capaz de duelar com palavras e discursos; esta não é uma das minhas habilidades. Também não era uma habilidade do vatarh. Ele sempre dizia exatamente o que pensava: nem menos, nem mais, e o que não queria que alguém soubesse, ele não dizia de maneira alguma. Eu fiz uma pergunta bem simples, Allesandra: você é minha inimiga? Por favor, faça a gentileza de dar uma resposta simples, sem enfeites.

— Não — respondeu ela com firmeza, depois balançou a cabeça. — Fynn, apenas um idiota responderia com outra coisa que não “não, nós não somos inimigos”. Você também sabe disso, apesar dos protestos. Você pode ser muitas coisas, mas não é tão simples assim, e eu não sou tão tola a ponto de cair em uma armadilha tão óbvia. Qual é a verdadeira pergunta que você está escondendo?

Fynn bufou com irritação e bateu com a mão no parapeito. Allesandra pôde sentir o impacto da mão, que fez tremer o parapeito. — Existem... existem pessoas... — Ele parou e respirou fundo, bem alto. Quando soltou o ar, Allesandra viu a condensação diante do rosto de Fynn. Ele tocou a coroa dourada e lisa que usava na cabeça. — O vatarh me disse antes de morrer que havia rumores entre os chevarittai e os ténis mais graduados da fé concénziana. Alguns deles eram contra minha nomeação como o a’hïrzg ou diziam que eu era... estúpido demais. — Ele cuspiu a palavra como se tivesse um gosto desagradável na língua. — Alguns deles queriam que você tivesse aquele título ou queriam outra pessoa completamente diferente para assumir a coroa dos hïrzgai.

— O vatarh disse para você quem espalhava esses rumores? De onde eles vinham? — indagou ela. Allesandra tinha que fazer a pergunta. Ela tremeu um pouco e esperou que Fynn não tivesse notado. — O vatarh contou quem disse isso?

No entanto, Fynn apenas balançou a cabeça. — Não. Nenhum nome. Apenas... que havia pessoas que seriam contra mim. Se eu encontrá-las... — O hïrzg respirou fundo pelo nariz e fez uma expressão séria. — Eu acabarei com elas. — Ele olhou diretamente para a irmã. — Eu não me importo com quem elas sejam e não me importo com quem eu tenha que machucar.

Allesandra virou a face para que ele não pudesse vê-la e olhou para a névoa que passava pelos pinheiros logo abaixo. Ótimo. Porque eu conheço algumas dessas pessoas, e elas me conhecem... — Você não pode punir rumores, Fynn. Não pode acorrentar e aprisionar fofocas da mesma forma que não pode capturar a bruma.

— Eu não acho que o vatarh tenha sido enganado pela bruma.

— Então, o que você quer de mim, irmãozinho?

Era isso que Fynn queria que ela perguntasse. Allesandra percebeu pela expressão dele, sob a luz que diminuía no céu. — No Besteigung — ele começou a falar, depois parou para colocar a mão em cima da mão da irmã, no parapeito. Não pareceu um gesto afetuoso. — Você é aquela para quem todos olham. Você é aquela que poderia ter sido hïrzgin se o vatarh não mudasse de ideia. Os ca’ e co’ ainda gostam de você, e muitos acham que o vatarh agiu mal a seu respeito. Os rumores sempre giram em torno de você, Allesandra. Você. Eu quero parar com os rumores; quero que não haja razão alguma para eles existirem. Então... no Besteigung, eu quero que você, e Pauli e Jan também, façam um voto formal de lealdade ao trono. Em público, para que todos ouçam vocês dizerem as palavras.

Elas seriam apenas palavras, Allesandra quis dizer para o irmão, com tanto significado quanto as que eu disse agora “não, Fynn, não sou sua inimiga”. Palavras e votos não significam nada: para saber isso, basta olhar para a história... Mas ela sorriu gentilmente para o irmão e deu um tapinha na mão dele. Talvez ele realmente fosse simples assim, tão inocente? — Claro que faremos isso — disse Allesandra. — Eu sei qual é o meu lugar. Sei onde eu devo estar e onde quero estar no futuro.

Fynn concordou com a cabeça e afastou a mão da irmã. — Ótimo — disse ele com um tom alto de alívio na voz. — Então nós esperamos por isso. — Nós... Ela ouviu o plural real na voz, completamente inconsciente, e franziu os lábios diante disso. — Eu gosto de seu filho — disse Fynn subitamente. — Ele é inteligente, como você, Allesandra. Eu odiaria achar que Jan esteve envolvido em algum plano contra mim, mas se ele esteve, ou se a família dele esteve... — O rosto ficou contraído novamente. — O ar está frio e úmido aqui fora, Allesandra. Eu vou entrar. — Fynn deixou a irmã e voltou para o calor do salão comunal do palácio. Allesandra ficou ao lado do parapeito um instante mais antes de segui-lo. Observando até que as brumas estivessem quase no mesmo nível que ela e o mundo lá embaixo tivesse desaparecido na penumbra e nas nuvens.

Allesandra pensou em ser hïrzgin e percebeu que o Grande Trono de Brezno jamais a satisfaria, mesmo que tivesse sido dela. Era uma conclusão difícil, mas ela soube agora que foi em Nessântico que tinha sido mais feliz, que tinha se sentido mais em casa.

— Eu sei qual é o meu lugar, irmão — sussurrou Allesandra para o silêncio da bruma. — Eu sei. E será meu.

 

Nico Morel

NICO OUVIU TALIS FALAR no outro cômodo, embora a matarh tenha ido à praça para comprar pão.

A matarh deu um beijo e mandou Nico tirar uma soneca, disse que voltaria antes do jantar. Mas ele não conseguiu dormir, não com o barulho de gente na rua bem do lado de fora das persianas da janela, nem com o sol que penetrava pelas frestas entre as tábuas. De qualquer maneira, Nico estava velho demais para sonecas. Aquilo era coisa de criança, e ele estava se tornando um homenzinho. A matarh também disse isso para ele.

Nico jogou os cobertores para o lado e cruzou o quarto de mansinho. Inclinou o corpo para frente, o suficiente para enxergar pela borda da porta arranhada e empenada que nunca fechava direito — fez questão de não tocá-la, pois sabia que as dobradiças dariam um alarme enferrujado. Através da fenda entre a porta e a ombreira, ele conseguiu ver Talis. Ele estava debruçado sobre a mesa que a matarh usava para preparar as refeições. Havia uma tigela rasa sobre a mesa, e Nico franziu os olhos em um esforço para ver melhor: animais entalhados dançavam pela borda, e a tigela tinha o mesmo tom castigado pelo clima da estátua de bronze de Henri IV, na praça do Velho Distrito. A matarh não tinha uma tigela de metal, pelo menos nenhuma que Nico tivesse percebido; os animais entalhados também eram estranhos: um pássaro com a cabeça de uma cobra; um lagarto escamoso com um focinho comprido cheio de dentes arreganhados. Talis despejou água do jarro da matarh dentro da tigela, depois desamarrou uma bolsinha de couro do cinto e sacudiu um pó avermelhado e fino na palma da mão. Ele polvilhou o pó na água como se estivesse salgando comida. Passou a mão sobre a tigela como se acalmasse alguma coisa, depois disse palavras na língua estranha que às vezes falava quando sonhava à noite, aninhado com a matarh de Nico na cama.

Uma luz pareceu brilhar dentro da tigela e iluminou o rosto de Talis com um tom pálido de amarelo esverdeado. Ele olhou fixamente o interior da tigela brilhante, de boca aberta, e a cabeça foi se aproximando cada vez mais, como se Talis estivesse pegando no sono, embora os olhos estivessem arregalados. Nico não sabia dizer por quanto tempo ele encarou a tigela — bem mais do que o tempo em que Nico tentou prender a respiração. Enquanto assistia, Nico achou que sentiu uma friagem, como se soprasse um vento de inverno da tigela, tão frígido que ele estremeceu. A sensação ficou mais intensa, e o fôlego que Nico tomou deu a impressão de sugar todo o frio, embora o ar, de alguma forma, quase parecesse quente dentro do corpo. O que fez com que ele quisesse expelir o ar, como se pudesse cuspir fogo gelado.

No outro cômodo, a cabeça de Talis pendeu ainda mais. Quando o rosto pareceu estar a dois centímetros de tocar a borda da tigela, o brilho sumiu tão repentinamente quanto surgiu, e Talis arfou como se respirasse pela primeira vez.

Nico também arfou, involuntariamente, como se o frio e o fogo dentro dele tivessem sumido no mesmo momento. O menino começou a recuar a cabeça da porta, mas foi detido pela voz de Talis. — Nico. Filho.

Ele voltou a espiar. Talis olhava fixamente para Nico, com um sorriso que contorcia as linhas do rosto moreno-escuro. Havia mais rugas ali ultimamente, e o cabelo de Talis começou a ficar salpicado de fios grisalhos. Ele gemeu ao se levantar rápido demais, e as juntas às vezes rangiam, embora a matarh dissesse que Talis tinha a mesma idade que ela. — Está tudo bem, filho. Não estou bravo com você. — O sotaque de Talis também parecia mais carregado do que o normal. Ele gesticulou para Nico, que notou uma mancha de pó vermelho ainda na palma da mão. Ele suspirou como se estivesse cansado e precisasse dormir. — Venha aqui. — Nico hesitou. — Não se preocupe; venha aqui.

Nico empurrou a porta para abri-la; a dobradiça, como ele sabia, rangeu alto, e foi até Talis. O homem ergueu o menino (sim, ele gemeu com o esforço) e colocou-o em uma cadeira perto da mesa para que pudesse ver a tigela. — Nico, esta é uma tigela especial que eu trouxe comigo do país onde costumava viver. Veja... tem água dentro. — Talis mexeu na água com um dedo. Ela parecia completamente normal agora.

— A tigela é especial porque faz a água brilhar? — perguntou Nico.

Talis continuou a sorrir, mas o jeito com que as sobrancelhas desceram sobre os olhos fez o sorriso parecer de certa forma inadequado no rosto. Nico viu o próprio rosto no reflexo das íris marrom-escuras dos olhos de Talis. Havia dobras fundas nos cantos daqueles olhos. — Ah, você viu aquilo, não é?

Nico concordou com a cabeça e perguntou — Aquilo era magia? Eu sei que não é um téni porque nunca vi você ir ao templo com a matarh e eu. Você é um numetodo?

— Não, não sou um numetodo, nem um téni da fé concénziana. O que você viu não era magia, Nico. Era apenas a luz do sol que entrou pela janela e foi refletida pela água na tigela, só isso. Eu também vi; era tão intensa que parecia que havia um pequeno sol debaixo d’água. Eu gostei como a tigela ficou, então a observei por um tempo.

Nico concordou com a cabeça, mas se lembrou do pó vermelho, da cor estranha e verdejante da luz e da maneira como a claridade banhou o rosto de Talis, como se fosse acariciado por uma mão de luz. Ele lembrou do fogo frio, mas não mencionou nada disso. Pareceu melhor não mencionar, embora não tivesse certeza do porquê.

— Eu amo você, Nico — continuou Talis, que se ajoelhou no chão perto da cadeira de Nico, de maneira que os rostos ficassem na mesma altura. Ele pousou as mãos nos ombros do menino. — Eu amo Serafina... sua matarh... também. E a melhor coisa que ela me deu na vida, a coisa que mais me deixou feliz, é você. Sabia disso?

Nico concordou novamente. Talis apertou os dedos em seus braços com tanta força que ele não conseguia se mexer. O rosto de Talis estava quase próximo ao seu, e Nico sentiu o cheiro de bacon e chá adoçado com mel no hálito do homem, e também um leve traço de algum condimento que não conseguiu identificar de forma alguma. — Ótimo — falou Talis. — Agora, preste atenção, não há necessidade de comentar sobre a tigela ou a luz do sol com sua matarh. Eu pensei que um dia pudesse dá-la de presente para sua matarh, e quero que seja uma surpresa, e você não quer estragá-la, não é?

Nico balançou a cabeça ao ouvir isso, e Talis deu um largo sorriso, como se tivesse contado uma piada para si mesmo que Nico não ouviu. — Excelente — disse ele. — Agora, deixe-me terminar de lavar a tigela, que era o que eu estava começando a fazer quando você me viu. É por isso que coloquei água dentro dela. — Talis soltou Nico; o menino esfregou os ombros enquanto o homem pegou a tigela, mexeu de maneira ostentosa a água dentro dela e depois abriu as persianas da janela para jogá-la na jardineira com flores. Talis secou a tigela com a bashta de linho, e Nico ouviu o tom do metal. Viu Talis colocar a tigela dentro de uma bolsa que ele mantinha debaixo da cama que compartilhava com sua matarh, depois recolocar a bolsa debaixo do colchão de palha.

— Pronto — falou Talis ao endireitar o corpo novamente. — Este será nosso segredinho, hein, Nico? — Ele piscou para o menino.

Esse seria o segredo deles. Sim.

Nico gostava de segredos.

 

A Pedra Branca

ELES VINHAM A ELA À NOITE, aqueles que a Pedra Branca matou. À noite, eles agitavam-se e acordavam. Reuniam-se em volta da Pedra Branca em sonhos e falavam com ela. Geralmente, quem falava mais alto era o Velho Pieter, a primeira pessoa que ela matou.

Ela tinha 12 anos.

— Lembre-se de mim... — murmurava o Velho Pieter para ela durante o sono. — Lembre-se de mim...

O Velho Pieter era um vizinho no modorrento vilarejo na Ilha de Paeti, e ela conhecia o homem desde que nasceu, especialmente depois que seu vatarh morreu, quando ela tinha seis anos. O Velho Pieter sempre foi amigável com ela, ria e dava como presentes os animais que ele entalhava a partir de galhos de árvore, com a pequena faca que sempre levava no cinto. Ela pintava os animais que ganhava e colocava no parapeito da janela em seu pequeno quarto, onde pudesse vê-los todas as manhãs.

O Velho Pieter tinha cabras, e, quando sua matarh permitia, ela às vezes ajudava o homem com o pequeno rebanho. No dia em que sua vida mudou, no dia que entrou no caminho que a traria até aqui, ela havia saído com Pieter e as cabras perto do Água Berrante, um córrego barulhento que descia rápido das encostas da Colina dos Carneiros, um dos morros altos ao sul do vilarejo. As cabras pastavam placidamente perto do córrego, e ela andava perto dos animais quando viu um corpo no chão: uma corça recém-morta, com o corpo dilacerado por carniceiros e moscas que começavam a se agitar em volta da carcaça. A cabeça da corça, no longo pescoço castanho-amarelado, olhava com desespero com seus belos olhos grandes.

— Se cê olhar no olho direito, cê vai ver o que matou ela.

Uma mão acariciou seu ombro e desceu pelas costas antes de se afastar. Ela levou um susto, pois não percebeu que o Velho Pieter surgira por trás. — O olho direito tá ligado à alma de uma pessoa ou de um animal — continuou ele. — Quando um ser vivo morre, bem, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto ou a coisa que matou ele. Olhe dentro do olho daquela corça que cê vai ver lá dentro: um lobo, tarvez. Acontece com gente, também. Assassinos são capturados desse jeito: quando alguém olha no olho direito da pessoa que eles mataram e vê o rosto do assassino ali.

Ela estremeceu ao ouvir isso e afastou-se, o Velho Pieter riu. A mão do homem tirou do rosto da menina as mechas de cabelo que escaparam das tranças, e ele sorriu afetuosamente para ela. — Agora, não fique transtornada, menina. Anda, vai cuidar das cabras, que eu vou entalhar alguma coisa procê.

O Velho Pieter voltou a ela no fim da tarde, quando a menina estava sentada às margens do Água Berrante vendo o córrego passar pelo leito rochoso. — Aqui, cê gostou? — perguntou ele.

Era uma figura humana entalhada, pequena o suficiente para ela esconder facilmente na mão: uma figura nua e inegavelmente feminina, com pequenos seios como os que brotavam em seu próprio peito. O cabelo a deixou mais perturbada: há uma lua, uma mulher ca’ de Nessântico passou pela cidade e ficou uma noite na estalagem da estrada para An Uaimth. O cabelo da mulher era trançado e preso em um nó complicado atrás da cabeça; fascinada por este vislumbre da moda de fora, a menina trabalhou por dias para imitar aquelas tranças; desde então, ela trançava o cabelo todo dia, da mesma maneira. Estava trançado agora, igual ao da figura nua, e a mão foi involuntariamente ao nó do cabelo atrás da cabeça. Ela quis, de repente, desmanchá-lo.

A menina olhou fixamente para o entalhe, sem saber o que dizer, e sentiu a mão do Velho Pieter na bochecha. — É ocê. Tá virando uma mulher agora.

A mão do homem pegou a cabeça dela e puxou a menina em sua direção, apertou-a com força contra ele. Ela sentiu a excitação do Velho Pieter, dura contra a sua coxa. A menina soltou a boneca.

O que aconteceu em seguida ela jamais esqueceria: a dor e a humilhação do ato. A vergonha. E depois que acabou, depois que o peso do homem saiu de cima dela, a menina viu o cinto caído na grama ao lado, e ali estava a bainha com a faca, que ela pegou. A menina pegou o cabo com as mãos tremendo, chorando, com sua tashta arrancada e meio rasgada, com seu sangue e o sêmen dele espalhados nas coxas, pegou com toda a raiva, fúria e medo por dentro e esfaqueou o Velho Pieter. Enfiou a faca na parte baixa da barriga do homem, e quando ele gemeu e berrou assustado, ela puxou a lâmina e a enfiou mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez até que ele parou de gritar, parou de bater na menina com os punhos e parou de se mover completamente.

Coberta no próprio sangue e no sangue do Velho Pieter, ela deixou a faca cair quando se ajoelhou ao lado dele. Os olhos mortos do homem encararam a menina.

— Quando um ser vivo morre, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto que viu...

Ela quase se arrastou até a margem do Água Berrante. Encontrou uma pedra ali, um seixo branco e polido pela água, do tamanho de uma moeda grande. A menina trouxe a pedra de volta e enfiou no olho direito do homem. Depois, ficou encolhida ali, a poucos passos do Velho Pieter, até que o sol estivesse praticamente posto e as cabras se reunissem ao redor dela. Os animais baliram e queriam voltar aos estábulos. A menina acordou, como se tivesse dormido, viu o corpo ali e se percebeu sendo levada na direção dele pela curiosidade. Ela levou a mão trêmula ao rosto do homem, ao olho direito coberto pelo seixo, e pegou a pedra. O seixo pareceu quente de um modo estranho. O olho embaixo estava cinza e opaco, e embora a menina tenha olhado com cuidado, não viu nada ali: nenhuma imagem de si mesma. Absolutamente nada. Ela apertou com força o seixo na mão: a pedra quente quase pulsava com vida. Sua respiração estremeceu quando ela apertou o seixo contra o peito.

Então, ela foi embora e deixou o corpo ali. Foi para o sul, não para o norte, e levou o seixo consigo.

A menina jamais retornaria para o vilarejo onde nasceu. Nunca mais veria sua matarh novamente.

A Pedra Branca revirou-se no sono. — Eu não queria machucar ocê, menina — sussurrou o Velho Pieter nos sonhos. — Não queria mudar ocê. Sinto muito, sinto muito...


CONTINUA

SE UMA CIDADE TIVESSE SEXO, Nessântico seria mulher...
Antigamente, ela era jovem e cheia de vitalidade: a cidade, a mulher. Durante sua ascensão, transformou-se na mais famosa, mais bonita e mais poderosa de sua espécie.
Agora, ela olhou para si mesma e imaginou — como alguém que se vislumbra inesperadamente em um espelho e fica assustado e incomodado pelo reflexo — se esses atributos ainda carregavam verdade.
Ah, ela sabia que a juventude era passageira e efêmera. Afinal, as pessoas que moravam entre suas muralhas levavam vidas curtas e difíceis. Para elas, o rosto refletido mudava implacavelmente a cada dia que passava, até surgir a manhã em que perceberiam que a imagem no espelho estaria enrugada e cansada, que os cabelos grisalhos nas têmporas se espalhariam e ficariam mais brancos. Elas talvez sintam suas juntas reclamando durante um movimento que antigamente não exigia qualquer esforço ou pensamento, ou talvez descubram que agora as feridas levariam semanas em vez de dias para sarar, ou que a doença permaneceria como um convidado indesejado — ou pior, que mudaria de “persistente” para “crônica”.
O frio da mortalidade penetrou lentamente em seus ossos mortais como gelo.

Mortalidade: Nessântico também sentia esta condição. Os habitantes da cidade escondiam as rugas e dobras com a cosmética da arquitetura. Vejam, ela poderia dizer: lá está o grande domo de co’Brunelli para o Velho Tempo — há 15 anos sendo construído neste momento —, que, quando terminado, será o maior domo sem suportes do já mundo conhecido. Aquele lá na Ilha A’Kralji é o lindo e ornamentado Teatro A’Kralji de ca’Casseli, capaz de abrigar uma plateia de duas mil pessoas, com acústica tão excelente que todo mundo pode ouvir o mais baixo sussurro no palco; ali, a Grande Biblioteca da margem sul, que começou a ser construída no reinado do kraljiki Justi e que contém as maiores obras intelectuais da humanidade. Ouçam: aquela é a doce música de ce’Miella, cujas composições rivalizam com as melodias magníficas do mestre Darkmavis. Vejam as pinturas e os murais cheios de símbolos de ce’Vaggio, cuja habilidade de retratar figuras geralmente é comparada àquela do trágico mestre ci’Recroix. Há uma vida tão vibrante aqui no interior de Nessântico: todas as peças e danças, as celebrações e a alegria.
Tudo aqui é igual ao que sempre foi; não, tudo é melhor.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/2_A_MAGIA_DO_ANOITECER_2.png

 

No entanto, ela mudou, e sabia disso. Havia sinais e portentos. No Velho Distrito, há não muito tempo, havia uma mulher que nasceu com as patas de uma tarântula e (diziam os rumores) que podia matar com um único olhar de seus olhos multifacetados. Houve a praga de milhares de sapos verdes nos Brejos há duas primaveras, tão intensa que eles cobriram as passagens próximas com uma massa agitada que tinha um palmo de profundidade. Nos esgotos da margem norte, diziam que havia uma criatura à espreita, com cabeça de dragão, corpo de touro e pés e mãos de humano, e que se alimentava de ratos que cresciam do tamanho de lobos.

Havia os sinais reais e indiscutíveis também. Os Domínios foram rachados, aquela forte aliança forjada lentamente ao longo dos séculos. Após um malfadado ataque a Nessântico, depois do assassinato da kraljica Marguerite, a cidade de Brezno tornou-se sua rival, à medida que Firenzcia tomava várias terras vizinhas ao seu redor: uma Coalizão sob o comando do hïrzg Jan ca’Vörl.

A fé concénziana também fora cindida, e não era mais o que tinha sido. A archigos Ana ocupava o templo na margem sul, era verdade, mas outra pessoa dizia-se archigos em Brezno. Dentro de Nessântico, os hereges numetodos adquiriam novos partidários, e não era incomum ver alguém conjurar um feitiço sem vestir um robe verde ou apelar primeiro para Cénzi.

Sinais e portentos. Mudança. Quanto mais velha ficava Nessântico, mais difíceis ficavam as mudanças para ela.

Pega em seu próprio outono indesejado, Nessântico — a cidade, a mulher — encarava o reflexo nas águas escuras do rio A’Sele e imaginava...

E, como muitos em sua posição, Nessântico negava o que via.


??? RESPOSTAS ???

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

O VATARH DE Allesandra ca’Vörl era o sol ao redor de quem ela orbitava desde que se entendia por gente. Agora aquele sol finalmente estava se pondo.

A mensagem chegara de Brezno através de um mensageiro rápido, ela olhava fixamente para as palavras escritas em uma caligrafia legível e apressada. — Seu vatarh está morrendo. Se a senhora quiser vê-lo, apresse-se. Essa foi toda a mensagem. Estava assinada pelo archigos Semini de Brezno e selada pelo seu sinete.

O vatarh está morrendo... O grande hïrzg Jan de Firenzcia, em homenagem a quem ela batizara seu único filho, estava falecendo. As palavras acenderam um fogo amargo em seu estômago; elas nadaram na página com as lágrimas salgadas que surgiram espontaneamente em seus olhos. Allesandra ficou sentada ali — à elegante escrivaninha, no gabinete opulento perto do palácio do gyula em Malacki — e viu uma gotícula cair no papel e borrar a tinta das palavras.

Ela odiava que o vatarh ainda a abalasse tanto; odiava se importar. Allesandra deveria odiá-lo, mas não conseguia. Não importava o quanto tentasse ao longo dos anos, ela não conseguia.

Pode-se amaldiçoar o sol pelo calor escaldante ou por sua ausência, mas sem o sol não haveria vida.

— Eu o odeio — declarou ela para a archigos Ana. Havia dois anos que Ana tirara Allesandra de seu vatarh para mantê-la como refém. Dois anos, e ele ainda não tinha pagado o resgate para trazê-la de volta. Ela tinha 13 anos, na iminência da menarca, e fora abandonada pelo vatarh. O que originalmente era ansiedade e decepção, aos poucos se transformara em raiva dentro dela. Pelo menos era o que Allesandra acreditava.

— Não, você não o odeia — falou Ana baixinho enquanto acariciava o cabelo de Allesandra. As duas estavam na sacada de seus aposentos no complexo do templo em Nessântico e olhavam para a confusão de ténis vestidos de verde que corriam com suas tarefas lá embaixo. — Não de verdade. Se ele pagasse o resgate amanhã, você ficaria radiante e pronta para correr de volta para seu vatarh. Olhe para dentro de si, Allesandra. Olhe sinceramente. Não é verdade?

— Bem, ele deve me odiar — retrucou ela — ou teria pagado.

Ana abraçou-a com força então. — Ele vai pagar. Vai sim. É que... Allesandra, seu vatarh queria se sentar no Trono do Sol. Ele sempre foi um homem orgulhoso, e uma vez que eu levei você embora, seu vatarh jamais foi capaz de realizar seu sonho. Você é uma lembrança de tudo o que ele perdeu. E isto é culpa minha. Não é sua. Não é sua de forma alguma.

O vatarh não pagou. Não por dez longos anos. Era Fynn, o novo filho que sua matarh, Greta, deu ao hïrzg que gozava do carinho do vatarh, que aprendera a guerrear, e fora nomeado o novo a’hïrzg — o título que deveria ter sido dela.

Em vez do vatarh e da matarh, era a archigos Ana que se tornara sua responsável, que a orientara durante a puberdade e adolescência, que confortara Allesandra em suas primeiras paixões, que ensinara os modos da sociedade ca’ e co’, que a acompanhara em bailes e festas, que a tratara não como uma prisioneira, mas como uma sobrinha que tinha se tornado sua responsabilidade criar.

— Eu amo você, tantzia — disse Allesandra para Ana. Ela passara a chamar a archigos de “tia”. O kraljiki Justi recebera a notícia de que um tratado entre os Domínios e a “Coalizão” Firenzciana estava para ser assinado em Passe a’Fiume, e, como parte das negociações, o hïrzg Jan finalmente pagara o resgate de sua filha. Ela passara uma década em Nessântico, praticamente metade de sua vida. Agora, aos 21 anos, ela deveria retornar à vida que perdera há tanto tempo, e estava assustada pela perspectiva. Antigamente, isso era tudo o que ela queria. Agora...

Parte de Allesandra queria ficar aqui. Aqui, onde ela sabia que era amada.

Ana abraçou-a com mais força. Allesandra era mais alta do que a archigos agora, e Ana teve que ficar na ponta dos pés para beijar sua testa. — Eu também amo você, Allesandra, e sentirei a sua falta, mas chegou a hora de ir para casa. Saiba que eu sempre estarei aqui para você. Sempre. Você faz parte do meu coração, minha querida. Eternamente.

Allesandra tinha esperanças de poder banhar-se ao sol do amor de seu vatarh novamente. Sim, ela tinha ouvido falar que o novo a’hïrzg Fynn era o filho que o hïrzg Jan sempre desejou: habilidoso com o cavalo, com a espada, com a diplomacia. Ela sabia que o irmão estava sendo preparado para a carreira na Garde Firenzcia. Mas ela também fora um dia o orgulho de seu vatarh. Com certeza poderia voltar a ser.

Mas Allesandra soube assim que o vatarh olhou para ela, do outro lado da tenda de negociação em Passe a’Fiume, que isso não aconteceria. No olhar de predador de Jan havia uma aversão que ardia lentamente. Ele avaliou Allesandra como se olhasse para uma estranha — e ela era realmente uma estranha para o vatarh: uma jovem agora, não mais a menina que Jan perdera. Ele pegou as mãos dela, aceitou a mesura como faria com qualquer ca’ e co’ e passou a filha para o archigos Semini um momento depois.

Fynn estava ao lado dele — agora com a idade que Allesandra tinha ao ser capturada — e avaliou a irmã mais velha como faria com um rival qualquer.

Allesandra procurou o olhar de Ana através da tenda, e a mulher deu um sorriso triste e um aceno de despedida. Havia lágrimas nos olhos de Ana, que brilharam ao sol que passava pela lona fina da tenda. A archigos, pelo menos, fora fiel à própria palavra. Ela escrevera regularmente para Allesandra. Negociara com o vatarh para que tivesse a permissão de comparecer ao casamento de Allesandra com Pauli ca’Xielt, o filho do gyula da Magyaria Ocidental, e, portanto, um matrimônio politicamente vantajoso para o hïrzg, e um enlace sem amor para Allesandra.

Ana tinha até mesmo estado presente, em segredo, no nascimento do filho de Allesandra, há quase 16 anos agora. A archigos Ana — a archigos falsa e herege de acordo com Firenzcia, a quem Allesandra era obrigada a odiar como uma boa cidadã da Coalizão — abençoara e batizara a criança com o nome que Allesandra lhe dera: Jan. E o fizera sem uma crítica ou um comentário. Fizera com um sorriso gentil e um beijo.

Até mesmo batizar a criança em homenagem ao vatarh não mudou nada. Isso não o aproximara de Allesandra — na maior parte do tempo, o hïrzg Jan ignorava seu neto e homônimo. Jan ficava na companhia do hïrzg Jan cerca de duas vezes ao ano, quando ele e Allesandra o visitavam em ocasiões de estado, e raramente o hïrzg falava diretamente com o neto.

Agora... agora seu vatarh estava morrendo e Allesandra não conseguia evitar chorar por ele. Ou talvez não conseguisse evitar chorar por si mesma. Com raiva, ela atacou a umidade nas bochechas com a manga. — Aeri! — Allesandra chamou o secretário. — Venha aqui! Tenho que ir para Brezno.

Allesandra irrompeu no quarto do hïrzg e jogou longe a capa suja de viagem. O cabelo estava despenteado pelo vento, e as roupas cheiravam a cavalo. Ela empurrou os criados que tentaram ajudá-la e se dirigiu para a cama. Os chevarittai e vários parentes reunidos ali afastaram-se para deixar que ela se aproximasse; Allesandra sentiu os olhares de avaliação às suas costas. Ela olhou fixamente para o rosto murcho e encarquilhado no travesseiro e mal o reconheceu.

— Ele está...? — perguntou Allesandra bruscamente, mas então ela ouviu o barulho causado pela respiração cheia de catarro do hïrzg e viu o lento movimento do peito sob as cobertas. O quarto cheirava a doença, apesar das velas perfumadas. — Fora! — falou ela para todos, gesticulando. — Digam a Fynn que eu vim, mas deixem-me sozinha com meu vatarh. Fora!

Eles dispersaram-se, como Allesandra sabia que fariam. Ninguém tentou protestar, embora os curandeiros dirigissem olhares de desaprovação sob frontes cautelosamente franzidas, e ela pôde ouvir os sussurros enquanto as pessoas saíam. “Não é de admirar que o marido fique longe dela... Um bode tem melhores maneiras... Ela tem a arrogância de Nessântico...”.

Allesandra bateu a porta na cara deles.

Então, finalmente, ao olhar para o rosto encovado e cinzento do vatarh, ela permitiu-se chorar, ajoelhada ao lado da cama, segurando as mãos frias e debilitadas. — Eu amei o senhor, vatarh — falou Allesandra. Sozinha com ele, a verdade era possível. — Eu amei. Mesmo depois que o senhor me abandonou, mesmo depois que o senhor deu a Fynn todo o carinho que eu queria, eu ainda o amei. Eu poderia ter sido a herdeira que o senhor merecia. Ainda posso ser, se tiver a chance.

Allesandra ouviu o arrastar de botas na porta e ficou de pé. Secou os olhos com a manga da tashta e fungou assim que Fynn empurrou a porta para abri-la. Ele irrompeu no quarto; Fynn nunca simplesmente entrava em um aposento. — Irmã, noto que as notícias chegaram até você.

Allesandra cruzou os braços. Ela não deixaria que o irmão notasse como havia ficado abalada ao ver o vatarh em seu leito de morte. Deu de ombros. — Eu ainda tenho fontes aqui em Brezno, mesmo que meu irmão deixe de mandar um mensageiro.

— Eu esqueci, mas imaginei que você saberia, de qualquer maneira. — O sorriso que ele deu era mais uma careta de desprezo, contorcida pela longa cicatriz enrugada que ia do canto do olho direito atravessando o lábio até o queixo: a marca de uma cimitarra de Tennshah. Fynn, aos 24 anos, tinha o corpo esbelto e forte de um soldado profissional, uma forma física que caía bem nas calças e blusas soltas que usava. Esse estilo de vestir de Tennshah tinha virado moda em Firenzcia desde as guerras de fronteira, há seis anos, quando Fynn enfrentou as forças do t’sha e empurrou os limites de Firenzcia quase 165 quilômetros para o leste, e ganhou a cicatriz comprida que maculava o belo rosto.

Foi durante essa guerra que Fynn conquistou plenamente o carinho do vatarh e acabou com qualquer esperança persistente de Allesandra de que pudesse vir a se tornar a hïrzgin.

— Os curandeiros disseram que o fim virá em algum momento do dia de hoje ou possivelmente à noite se ele continuar a lutar; o vatarh nunca desistiu facilmente, não é? Mas os retalhadores de almas virão atrás dele desta vez. Não há mais dúvida alguma quanto a isso. — Fynn abaixou os olhos na direção da figura na cama quando o hïrzg estremeceu novamente ao respirar. O olhar do jovem era carinhoso e triste, e, no entanto, também era avaliador, como se calculasse quanto tempo levaria até que ele pudesse retirar o anel com sinete das mãos unidas e colocá-lo no próprio dedo; até que pudesse colocar a coroa fina de ouro de hïrzg nos cachos da própria cabeça. — Não há nada que eu ou você possamos fazer, irmã, além de rezar para que Cénzi receba a alma do vatarh com carinho. Fora isso... — Fynn deu de ombros. — Como está meu sobrinho Jan?

— Você o verá em breve — falou Allesandra. — Ele está a caminho de Brezno atrás de mim e deve chegar amanhã.

— E seu marido? O querido Pauli?

Allesandra torceu o nariz. — Se você está tentando me provocar, Fynn, não vai funcionar. Eu sugeri que Pauli permanecesse em Malacki e cuidasse dos negócios de estado. E quanto a você? Já encontrou alguém para casar ou ainda prefere a companhia de soldados e cavalos?

O sorriso demorou a surgir, e era vacilante quando apareceu. — Agora quem provoca quem? O vatarh e eu ainda não tomamos uma decisão quanto a isso, e agora parece que a decisão será somente minha, embora eu certamente ouvirei quaisquer sugestões que você tenha. — Fynn abriu os braços e Allesandra relutantemente permitiu que ele a abraçasse. Nenhum dos dois deu um abraço apertado, mas apenas envolveram um ao outro, como se abraçassem um espinheiro, e o gesto acabou em um piscar de olhos. — Allesandra, eu sei que sempre houve uma distância entre nós, e espero que possamos trabalhar em conjunto quando... — ele hesitou, e Allesandra observou o peito de Fynn inchar após respirar fundo — ... quando eu for o hïrzg. Precisarei de seus conselhos, irmã.

— E eu os darei a você — ela aproximou-se e cautelosamente beijou o ar a um dedo de distância da bochecha marcada pela cicatriz —, irmãozinho.

— Eu queria que nós realmente pudéssemos ter sido irmãozinho e irmãzona. Eu queria ter conhecido você naquela época.

— Eu também — disse Allesandra para Fynn. E eu queria que estas fossem mais do que palavras vazias e educadas que ambos dizemos porque sabemos que são o que a etiqueta exige. — Ficaria aqui comigo agora? Deixe o vatarh perceber que estamos juntos pelo menos uma vez.

Ela sentiu sua hesitação e perguntou-se se Fynn iria recusar. Porém, após um instante, o irmão deu de ombros. — Por uma virada da ampulheta ou menos, nós podemos rezar por ele. Juntos.

 

Jan ca’Vörl

— EU TENHO QUE CAVALGAR o mais rápido possível para Brezno — falou a matarh de Jan para ele. — Eu dei ordens para os criados arrumarem o que temos nos quartos em malas para viagem. Quero que você venha atrás assim que eles aprontarem as carruagens. E, Jan, veja se consegue convencer seu vatarh a vir com você. — Ela deu um beijo na testa do filho, com mais intensidade do que em anos, e abraçou-o. — Eu amo você — sussurrou. — Espero que saiba disso.

— Eu sei. — Jan afastou-se e sorriu para a matarh. — E eu espero que a senhora saiba disso.

Ela sorriu e deu um último abraço no filho antes de subir no cavalo mantido pelos dois chevarittai que iriam acompanhá-la. Jan observou o trio se afastar pela estrada da propriedade a galope.

Isto foi há dois dias. Sua matarh devia ter chegado a Brezno ontem. Jan recostou a cabeça nas almofadas da carruagem e viu a paisagem do sul de Firenzcia passar sob a luz dourado-esverdeada do fim da tarde. O condutor dissera que eles parariam no próximo vilarejo à noite e chegariam a Brezno ao meio-dia de amanhã. Jan imaginou o que ele encontraria lá.

Ele estava sozinho na carruagem.

Jan pedira ao vatarh Pauli para vir com ele, como a matarh solicitara. Os criados disseram que Pauli estava em seus aposentos na propriedade, em uma ala separada dos aposentos de Allesandra. O assistente chefe de Pauli entrou para anunciar o filho e retornou com as sobrancelhas arqueadas. — Seu vatarh disse que pode ceder alguns momentos — falou o homem ao acompanhar Jan em uma das salas de recepção depois do corredor principal.

Jan ouviu os risinhos abafados de duas mulheres vindo de um quarto que dava para a sala de recepção. A porta foi aberta em meio a risada rouca de um homem. O vatarh vestia um robe, o cabelo estava desgrenhado e revolto, a barba encontrava-se por fazer. Ele cheirava a perfume e vinho. — Um instante — disse Pauli para Jan. Ele tocou os lábios com um dedo antes de cambalear um pouco até a porta que levava ao quarto abrindo-a ligeiramente. — Shh! — falou alto. — Estou tentando levar uma conversa sobre minha esposa com meu filho. — O que foi recebido com uma risada estridente.

— Diga ao garoto para se juntar a nós. — Jan ouviu uma delas gritar, e sentiu o rosto ficar vermelho com o comentário, enquanto Pauli apontava o dedo na direção da mulher que não podia ser vista.

— Vocês duas são umas safadas encantadoras — disse Pauli para elas. Jan imaginou as mulheres: com perucas e ruge no rosto, seminuas ou talvez completamente nuas, como um dos quadros das deusas moitidis que decoravam os salões. — Voltarei em um instante — continuou Pauli. — Bebam mais vinho, moças.

Ele fechou a porta e apoiou-se pesadamente contra ela. — Desculpe. Eu estou com... companhia. Então, o que a megera queria? Ah, é melhor você dizer por mim para a sua matarh que o a’gyula da Magyaria Ocidental tem coisas melhores para fazer do que ir a Brezno porque alguém pode ou não estar morrendo. Quando o velho desgraçado finalmente der seu último suspiro, sem dúvida eu serei enviado ao funeral como nosso representante, e isso ocorrerá em breve. — As palavras saíram arrastadas. Ele pestanejou lentamente e arrotou. — Você também não precisa ir, garoto. Por que não fica aqui? Nós dois podemos nos divertir, hein? Tenho certeza de que estas moças têm amigas...

Jan balançou a cabeça. — Eu prometi para a matarh que pediria ao senhor que viesse, e foi o que fiz. Eu parto hoje à noite; os criados estão quase terminando de arrumar as carruagens.

— Ah sim — disse Pauli. — Você é um filho tão bom e obediente, não é? O orgulho e alegria de sua matarh. — Ele afastou-se da porta e cambaleou enquanto apontava um dedo para Jan, que andava de um lado para o outro. — Você não quer ser como ela. Sua matarh não ficará satisfeita enquanto não dominar o mundo inteiro. Ela é uma vadia ambiciosa com um coração duro como pedra.

Jan já tinha ouvido Pauli insultar sua matarh mil vezes, e a cada ano que passava mais. Antes ele sempre rangia os dentes, fingia não escutar ou murmurava uma reclamação que Pauli ignoraria. Agora... o rubor que surgia no rosto de Jan tornou-se vermelho como lava. Ele cruzou o aposento acarpetado com três passos ligeiros, levou a mão para trás e deu um tapa na cara do vatarh. Pauli cambaleou contra a porta, que se abriu e fez com que ele desmoronasse ali, sobre um tapete trançado. Jan viu duas mulheres dentro do quarto — realmente seminuas sobre a cama do vatarh. Elas cobriram os seios com os lençóis e gritaram. Sem acreditar, Pauli levou a mão ao rosto; sobre a barba fina, Jan pôde ver a marca dos dedos na bochecha do vatarh.

Ele imaginou por um instante o que faria se Pauli se levantasse, mas o vatarh apenas pestanejou novamente e riu como se tivesse levado um susto.

— Bem, você não precisava fazer isso — disse Pauli.

— O senhor pode pensar o que bem entender da matarh. Eu não me importo. Porém, de agora em diante, vatarh, guarde suas opiniões para o senhor ou trocaremos mais do que palavras. — Dito isso, antes que Pauli conseguisse se levantar do tapete ou responder, Jan virou-se e apressou-se a sair da sala.

Ele se sentiu estranhamente alegre. A mão formigava. Pelo resto do dia, Jan esperou ser chamado à presença do vatarh — assim que o vinho tivesse ido embora da cabeça do homem. Porém, até ser informado de que as carruagens estavam prontas e à espera, Jan não tinha ouvido nada. Ele ergueu os olhos para as janelas da ala do vatarh ao entrar na carruagem principal, enquanto os criados que viajariam com ele subiam nas outras. Jan pensou ter vislumbrado uma silhueta observando da janela e levantou a mão — a mão que batera no vatarh.

Outra silhueta, uma forma feminina, aproximou-se do vatarh por trás, e a cortina fechou-se novamente. Jan entrou na carruagem. — Vamos — falou para o condutor. — Temos uma longa jornada à frente.

Ele olhou mais uma vez pela janela da carruagem. Pela maior parte da jornada, Jan ficou remoendo o que aconteceu. Ele tinha quase 16 anos. Era quase um homem. Até já tivera sua primeira amante: uma garota ce’ que fizera parte do corpo de funcionários da casa, embora a matarh de Jan tivesse mandado a menina embora quando percebeu que eles se tornaram íntimos. Ela também deu um longo sermão sobre o que esperava dele. — Mas o vatarh... — Jan começara a falar, e Allesandra interrompeu o protesto com um golpe forte da mão.

— Pare aí, Jan. Seu vatarh é preguiçoso e libertino, e, desculpe a grosseria, ele geralmente pensa com o que tem entre as pernas, não com a cabeça. Você é melhor do que ele, Jan. Vai ser importante neste mundo, se escolher não ser o filho de seu vatarh. Eu sei disso. Prometo a você.

Ela não dissera tudo que poderia ter dito, e ambos sabiam disso. Pauli podia ser o vatarh de Jan, mas para ele isto era apenas outro título, e não uma ocupação. Era a matarh quem Jan via todo dia, que brincava com ele quando era pequeno, que ia vê-lo todas as noites após as babás o colocarem na cama. Seu vatarh... Ele era uma figura alta que às vezes mexia no cabelo de Jan ou dava presentes extravagantes que pareciam mais um pagamento pela ausência do que presentes de verdade.

Seu vatarh era o a’gyula da Magyaria Ocidental, filho do atual gyula, o governante que Jan via com tanta frequência quanto o outro vavatarh, o hïrzg. As pessoas faziam mesuras na presença de Pauli, riam e sorriam quando falavam com ele. Mas Jan ouvia os sussurros dos funcionários e dos convidados quando eles pensavam que ninguém escutava.

Sua mão direita pulsava, como se lembrasse do tapa na cara do vatarh. Jan olhou para a mão à luz do fim do dia: uma mão de adulto agora. O tapa na cara do vatarh fez com que ele rompesse com a infância para sempre.

Jan não seria como seu vatarh. Ao menos isso ele se prometeu. Jan teria a própria personalidade. Independente.

 

Varina ci’Pallo

VARINA ESTAVA AO LADO de Karl na elegante sala de recepção da archigos, mas — como quase sempre era o caso quando Ana se encontrava no mesmo ambiente — ela parecia invisível a ele. Toda a atenção de Karl estava voltada para a archigos. Varina queria se virar e dar um tapa na cara dele. Você não enxerga o que está diante da sua cara? Você é tão distraído assim?

Parecia que ele era. Karl sempre fora abstraído e sempre seria quando Ana estivesse envolvida. Ao longo dos anos, Varina chegou a essa conclusão. Talvez tivesse sido diferente se a própria Varina não gostasse e admirasse a archigos, se não considerasse a mulher uma amiga. Ainda assim...

— Você tem certeza disso? — perguntou Karl para Ana. Ele olhava para um pergaminho dado pela archigos e batia com o indicador nas palavras escritas ali. — Ele está morto? — Não havia traço algum de tristeza em sua voz; na verdade, Karl sorria ao devolver o papel para a archigos.

Ana franziu a testa. Se Karl considerou boas as notícias, era óbvio para Varina que a opinião de Ana era mais ambígua. — O hïrzg Jan está morrendo — falou a archigos. — E suspeito que ele provavelmente já morreu a esta altura, se a informação for correta. O téni que enviou esta mensagem tem o toque da cura; ele saberia dizer se o homem está além da salvação.

— Até que enfim o velho urubu morreu — disse Karl. Ele olhou ao redor da sala, pensativo, mas não para Varina. — Você já falou com Allesandra? Ela vai contestar o direito de Fynn ao trono?

— Não sei. — Ana pareceu suspirar. Ela nunca fora bonita; na melhor das hipóteses, quando jovem, Ana fora uma mulher singela. Até mesmo ela teria admitido isso. Agora, ao chegar à meia-idade, Ana tornou-se uma figura matrona, mas havia algo de impressionante, confiável e cativante a seu respeito. Varina conseguia entender a atração e a devoção de Karl pela mulher, mesmo que parte dela se ressentisse com isso. A reputação de Ana só cresceu ao longo dos anos. As pessoas riam do kraljiki Justi pelas costas, e a situação não parecia ser diferente com seu filho, Audric, e havia aqueles na Fé que consideravam heréticas a tolerância e a franqueza de Ana, mas o povo de Nessântico e dos Domínios parecia adorar sua archigos e ter afeição por ela. Varina já tinha visto as multidões em volta do templo sempre que Ana ia dar uma Admoestação e já tinha ouvido a aclamação quando a carruagem da archigos passava pela Avi a’Parete.

— Se Allesandra estivesse no trono de Firenzcia, eu me sentiria melhor a respeito disso tudo — continuou Ana. — Sentiria que haveria esperança de que os Domínios pudessem ser restaurados. Se Allesandra fosse a hïrzgin... — Outro suspiro. Ana olhou sobre seus ombros, na direção do enorme ornamento de globo partido que se destacava no outro canto da sala: dourado e cravejado de joias, com esculturas dos moitidis, os semideuses que eram filhos de Cénzi, se contorcendo de agonia na base. A voz era quase um sussurro, como se ela estivesse com medo de que alguém pudesse escutá-la secretamente. — Então eu poderia considerar abrir negociações com Semini ca’Cellibrecca, para ver se a fé concénziana também poderia ser reunificada.

Varina fez uma expressão de aflição, e Ana dirigiu um olhar compreensivo a ela. — Eu sei, Varina. Garanto que a segurança dos numetodos não será negociável, mesmo que eu estivesse disposta a abdicar do título de archigos em favor de Semini. Eu não permitiria que as perseguições se repetissem.

— Você não pode confiar que ca’Cellibrecca manterá essas promessas — falou Varina. — Ele é praticamente filho de seu vatarh por casamento.

— Ca’Cellibrecca estaria obrigado a cumprir uma promessa pública, assim como seus votos a Cénzi.

— Você tem mais fé nele do que eu — respondeu Varina. O que fez Ana sorrir.

— É estranho ouvir um numetodo falar de fé — disse a archigos. Ela tocou o ombro de Varina sob a tashta e deu uma risada amigável. — Mas entendo sua preocupação e seu ceticismo. Peço que confie em mim; se a situação chegar a este ponto, eu garanto que você, Karl e seu povo serão protegidos.

— Será que a situação chegará a esse ponto? — interrompeu Karl, que observou as mãos de Ana como se quisesse que ela o tocasse. — Acha que há chances, Ana?

Ela olhou para o papel em sua mão como se procurasse uma resposta ali, depois se virou para pousar o pergaminho em uma mesa próxima. Ele emitiu um pequeno ruído; estranho, pensou Varina, para algo com tão pesada importância. — Eu não sei — falou Ana. — Allesandra e o irmão não se toleram. Dado o tempo que Allesandra esteve aqui comigo enquanto ambos cresciam, eles são mais estranhos do que irmãos, e o jeito com que o hïrzg Jan tratou Allesandra quando ele de fato pagou o resgate por ela... — Ana balançou a cabeça. — Mas eu não sei mais o que Allesandra quer ou quais seriam seus desejos e ambições. Eu achei que soubesse antigamente, mas...

— Você foi uma matarh para ela — disse Karl, Ana riu novamente.

— Não, não fui isso. Talvez uma irmã mais velha ou uma tantzia. Tentei ser alguém com quem ela pudesse estar segura, porque a pobre criança ficou completamente sozinha aqui por tempo demais. Não consigo imaginar como isso pode tê-la magoado.

— Você foi maravilhosa com ela — insistiu Karl. Varina observou Karl estender a mão para pegar a de Ana. Doía ver o gesto. — Foi sim.

— Obrigada, mas eu sempre imagino se poderia ter feito mais, ou melhor — disse Ana, que afastou lentamente suas mãos das de Karl. — Fiz o que pude. Isto é tudo que Cénzi pode pedir, creio eu. — Ana sorriu. — Vamos ver o que acontece, não é? Manterei vocês dois informados assim que souber de mais notícias.

— Você ainda está disponível para jantar amanhã? — perguntou Karl para Ana.

O olhar da archigos deslizou de Karl para Varina e de volta para Karl. — Sim, após a Terceira Chamada. Gostaria de se juntar a nós, Varina?

Ela sentiu o olhar de Karl. — Não — disse Varina, às pressas. — Não posso, archigos. Tenho uma reunião com Mika e uma aula para dar... — Desculpas demais, mas Karl assentiu com a cabeça. A satisfação dele diante da resposta de Varina foi como o corte de uma pequena navalha.

— Amanhã à noite, então — disse Karl. — Aguardo ansiosamente o jantar. Talvez fosse melhor nós irmos embora, Varina. Tenho certeza de que a archigos tem outros compromissos... — Ele inclinou a cabeça na direção de Ana e começou a andar na direção da porta. Varina virou-se para segui-lo, mas Ana chamou-a quando eles deram as costas.

— Varina, um momento? Karl, eu a mando imediatamente, prometo.

Karl olhou para trás, intrigado, mas fez uma mesura novamente e caminhou em direção às portas. Os dois enormes painéis eram entalhados com baixos-relevos dos moitidis em batalha, com espadas que se sobrepunham e colidiam na junção. Karl puxou as portas e os combatentes se separaram. Varina esperou até que a madeira escura e envernizada se fechasse enquanto ele saia e os moitidis novamente estivessem em guerra.

— Archigos?

— Eu queria um momento com você, Varina, porque estou preocupada — falou Ana. — Você parece tão cansada e abatida. Magra. Eu sei o quanto você anda envolvida com sua... pesquisa. Está se lembrando de comer?

Varina tocou seu rosto. Ela sabia o que Ana dizia. Tinha visto o rosto no espelhinho que mantinha sobre a penteadeira. As pontas dos dedos percorreram o traçado das novas rugas que surgiram nos últimos meses e sentiram a aspereza dos cabelos grisalhos nas têmporas. Ela tinha medo de se olhar no espelho a maioria das manhãs; o rosto refletido era o de uma estranha mais velha que Varina mal reconhecia. — Eu estou bem — respondeu automaticamente.

— Está mesmo? — perguntou Ana novamente. — Estas “experiências” que Karl diz que você está fazendo para tentar recriar o que Mahri podia fazer... — Ela balançou a cabeça. — Eu me preocupo com você, Varina. E Karl também.

“E Karl também...”, ela queria poder acreditar nessas palavras. — Eu estou bem — repetiu Varina.

— Eu poderia usar o Ilmodo, se você quisesse. Isso pode ajudar, se você estiver sofrendo.

— Você desobedeceria a Divolonté e me curaria? Uma ateísta? Archigos! — Varina sorriu para Ana, que devolveu o gesto.

— Eu confio a você meus segredos — disse Ana. — E a oferta continua de pé, se algum dia sentir necessidade.

— Obrigada, archigos. Não me esquecerei disso. — Ela apontou com a cabeça para os moitidis em guerra silenciosa. — É melhor eu alcançar Karl.

— Sim, é melhor. — Ana começou a fazer o sinal de Cénzi para Varina, depois se deteve. — Eu posso falar com ele.

— Archigos?

— Eu tenho olhos. Quando vejo você com ele...

Varina riu. — Você é a única que ele enxerga, archigos.

— E eu sou comprometida com Cénzi. Com ninguém mais. Não estou destinada a este tipo de relacionamento nesta vida. Eu disse isso a ele. Aprecio a amizade de Karl e tudo que ele fez por mim e por Nessântico. Eu o amo muito, mais do que um dia amei outra pessoa. Mas o que ele quer... — A cabeça acenou lentamente de um lado para outro enquanto Ana cerrava os lábios. — Você deveria dizer a ele como você se sente.

— Se eu preciso dizer a ele, então é óbvio que o sentimento não é mútuo — respondeu Varina. Ela conseguiu dar um sorriso forçado. — E estou comprometida com meu trabalho, como você é comprometida com Cénzi.

Ana deu um passo à frente e um rápido abraço em Varina. — Então Karl é um tolo por não ver como somos parecidas.

 

Audric ca’Dakwi

NEM MESMO UM KRALJIKI podia evitar ter aulas ou fazer provas para raspar qualquer essência de conhecimento grudada no interior do crânio.

Audric estava diante do Trono do Sol com as mãos entrelaçadas nas costas, voltado para seu professor, mestre ci’Blaylock. Atrás do mestre magro, frágil e sujo de giz, a plateia olhava Audric com sorrisos de incentivo: alguns chevarittai enfeitados com Medalhas de Sangue, os ca’ e co’, os cortesãos de sempre, Sigourney ca’Ludovici, e alguns outros integrantes do Conselho dos Ca’... todos aqueles que queriam que Audric notasse seu comparecimento ao exame trimestral do jovem kraljiki. Com 14 anos, Audric estava bem ciente da atenção bajuladora que recebia por conta de seu título e linhagem.

Eles não estavam aqui pelo exame; estavam aqui para serem vistos. Por ele. E apenas por ele.

Audric sentia prazer ao pensar nisto.

— Ano 471 — entoou ci’Blaylock ao erguer os olhos do púlpito carregado de papiros onde estava. — A linhagem dos kralji.

Uma pergunta fácil. Sem desafio algum. — Kraljica Marguerite ca’Ludovici — respondeu Audric rapidamente e com firmeza. Ele tossiu, então, como fazia frequentemente, e acrescentou — Também conhecida como a Généra a’Pace.

E também minha mamatarh... O retrato de Marguerite ficava pendurado no quarto de Audric. A obra era de um realismo perturbador e foi pintada pelo falecido mestre artista Edouard ci’Recroix, que também criara o grande painel de uma família de camponeses que enfeitava o próprio salão do Trono do Sol. Marguerite observava o neto toda noite, enquanto ele dormia, e dava o mesmo meio sorriso cansado e estranho toda manhã quando Audric acordava. Muitas vezes ele quis ter tido a oportunidade de conhecê-la de verdade, ele certamente já tinha ouvido muitas histórias a respeito da mamatarh. Às vezes Audric imaginava se todas elas eram verdade: na memória do povo de Nessântico, a kraljica Marguerite governou durante uma Era de Ouro, uma era de luz do sol, comparada às políticas tempestuosas do presente.

A corte sorriu e aplaudiu com educação a resposta. A maior parte da alegria era indubitavelmente motivada pelo fato de que eles finalmente se aproximavam do fim do exame, conforme o mestre ci’Blaylock descia a escada da história. Eles começaram há quase meia-virada da ampulheta, no ano 413, com o kraljiki Henri VI, o primeiro ano da linhagem ca’Ludovici, da qual o próprio Audric descendia; os espectadores ficaram de pé o tempo todo, desde então; afinal, ninguém se senta na presença do kraljiki sem permissão. Audric sabia as respostas das próximas perguntas que faltavam; e como não saberia, sendo elas tão envolvidas com a vida de sua família? Um suspiro praticamente inaudível veio da corte, juntamente com o farfalhar de tecido conforme as pessoas trocavam os pés de apoio. — Correto — disse ci’Blaylock, bufando. Ele tinha pele negra, como muitos que vinham da província de Navarro. O mestre molhou a ponta da pena no pote de nanquim do púlpito e fez uma demorada marca no papiro aberto. O traçado da pena era sonoro. As sobrancelhas brancas tremulavam sobre os olhos opacos de catarata. — Ano 485. A linhagem dos archigi.

Tosse. — Archigos Kasim ca’Velarina. — Tosse.

Mais aplausos educados, e outro mergulho e traçado da pena. — Correto. Ano 503. A linhagem dos archigi.

Audric respirou fundo e tossiu novamente. — Archigos Dhosti ca’Millac, o Anão. — Aplausos. Traço da pena. Audric ouviu as portas do fundo do salão serem abertas; o regente Sergei ca’Rudka entrou a passos largos e rápidos na direção de Audric. Apesar da idade, o regente movia-se com energia e uma postura ereta. Os cortesãos, com um olhar cauteloso, afastaram-se rapidamente para abrir caminho. O nariz artificial de prata de Sergei alternava entre brilhar e se ofuscar sob os fracos feixes de luz do sol que entravam pelas janelas.

— Correto — entoou ci’Blaylock. — Ano 521. A linhagem dos kralji.

Esta era fácil: esse foi o ano em que o vatarh de Audric assumiu o Trono do Sol, após o assassinato de Marguerite. Audric respirou fundo novamente, mas o esforço rendeu outro espasmo momentâneo de tosse preenchida pelo horrível som de líquido nos pulmões. Passada a tosse, ele empertigou-se e pigarreou. — Kraljiki Justi ca’Dakwi — disse ele para ci’Blaylock e os cortesãos. — O Grande Guerreiro — acrescentou. Esta foi a alcunha que Justi deu a si mesmo. Audric tinha ouvido as outras alcunhas dadas a Justi, que as pessoas sussurravam quando achavam que ninguém as estava escutando. Justi, o Perneta; Justi, o Incompetente; Justi, o Grande Fracasso.

Ninguém teria se atrevido a dizer essas alcunhas na cara do kraljiki quando Justi era vivo. Audric olhou para os sorrisos estampados nas caras dos ca’ e co’ e imaginou por quais alcunhas ele era chamado quando não estava presente para escutar.

Audric, o Enfermo. Audric, o Fantoche do Regente.

Novamente os espectadores aplaudiram. Sergei, de braços cruzados, não se juntou a eles. Ele observava logo atrás do mestre ci’Blaylock, que parecia sentir a pressão da presença do homem. Ele deu uma olhadela sobre seus ombros, viu o regente e tremeu visivelmente. — Hum... — O velho balançou a cabeça, olhou para o papiro, mergulhou um dedo sujo de nanquim no papel. — Ano 521. A linhagem dos archigi.

Esta era uma resposta mais longa, mas ainda fácil. — Archigos Orlandi ca’Cellibrecca, o Grande Traidor e primeiro falso archigos de Brezno. — Audric tossiu novamente e fez uma pausa para pigarrear. — Então, no mesmo ano, depois que ca’Cellibrecca traiu a fé concénziana e o kraljiki Justi em Passe a’Fiume: archigos Ana ca’Seranta, a mais jovem téni a ser nomeada archigos da história.

Ana, que ainda mantinha o título de archigos. Ana, que Audric amava como se fosse a matarh que ele jamais conhecera. Audric sorriu ao mencionar seu nome, e o aplauso que se seguiu foi genuíno — a archigos Ana era muito amada, com sinceridade, pelo povo de Nessântico.

— Correto — falou ci’Blaylock. — Também no ano 521. Guerra e política.

— A rebelião do hïrzg Jan ca’Vörl — respondeu Audric rapidamente. As guturais sílabas firenzcianas provocaram um espasmo em seus pulmões novamente. Foram necessárias várias respirações para que a tosse parasse e ele conseguisse falar novamente. — O hïrzg foi derrotado pelo kraljiki Justi na Batalha dos Brejos — disse Audric com a voz rouca, finalmente.

— Excelente! — A voz não era de ci’Blaylock, mas sim de Sergei, que aplaudiu alto e caminhou até ficar ao lado de Audric. Os cortesãos uniram-se aos aplausos com atraso e incerteza. Audric notou que Sigourney ca’Ludovici não aplaudiu, apenas cruzou os braços e o olhou intensamente. — Mestre ci’Blaylock, tenho certeza de que o senhor já ouviu o suficiente para fazer seu julgamento — continuou Sergei.

Ci’Blaylock franziu a testa. — Regente, eu não termi... — Ele parou, e Audric viu o mestre encarar a expressão fechada do regente. Ci’Blaylock pousou a pena e começou a enrolar o papiro da prova. — Sim, foi muito satisfatório. Muito bem, kraljiki, como sempre.

— Ótimo — disse Sergei. — Agora, se todos os senhores nos dão licença...

A dispensa do regente foi abrupta, mas efetiva. O mestre ci’Blaylock reuniu os papiros e mancou na direção da porta mais próxima; os cortesãos recuaram como filetes de neblina em uma manhã de sol e sorriram até virar as costas. Audric ouviu as frenéticas especulações sussurradas ao saírem do salão. Sigourney, no entanto, fez uma pausa. — É algo que o Conselho dos Ca’ deva saber? — perguntou ela para Sergei. Sigourney não olhava para Audric; era como se ele não fosse importante o suficiente para ser notado.

Sergei balançou a cabeça. — Não no momento, conselheira ca’Ludovici. Se for o caso, fique tranquila que a senhora será avisada imediatamente.

Sigourney torceu o nariz diante da resposta, mas acenou com a cabeça para Sergei e fez a mesura apropriada para Audric antes de sair do salão. Apenas alguns criados permaneceram, parados em silêncio perto das paredes de pedra cobertas por tapeçarias, enquanto dois e’ténis — sacerdotes da fé concénziana — sussurravam preces ao acender lamparinas para diminuir a luz difusa. Na parede próxima ao Trono do Sol, os rostos da família de camponeses no quadro de ci’Recroix pareciam tremer sob a luz do fogo mágico.

— Obrigado, Sergei — disse Audric. Ele tossiu e cobriu a boca com a mão fechada. — Mas você podia ter vindo meia-virada da ampulheta mais cedo e me poupado de todo esse martírio.

Sergei deu um sorriso irônico. — E encarar a fúria do mestre ci’Blaylock? Nem pensar. — Ele fez uma pausa, e as rugas em volta do nariz de metal adquiriram uma expressão séria. — Eu teria estado aqui mais cedo para ouvir sua prova, kraljiki, mas acabei de receber uma mensagem de um contato em Firenzcia. Há notícias que acho que o senhor deve ouvir antes do Conselho: o hïrzg Jan de Firenzcia está em seu leito de morte. Não esperam que ele sobreviva além desta semana. Pode ser que já esteja morto, pois a mensagem é de dias atrás.

— Então o a’hïrzg Fynn se tornará o novo hïrzg? Ou Allesandra irá se contrapor à ascensão do irmão?

O sorriso irônico de Sergei voltou momentaneamente. — Ah, então o senhor presta mesmo atenção nos meus relatórios. Que bom. Isto é bem mais importante do que as aulas do mestre ci’Blaylock. — Ele meneou a cabeça. — Duvido que Allesandra vá protestar. Ela não tem apoio suficiente entre os ca’ e co’ de Firenzcia para contestar o testamento do hïrzg Jan.

— Qual dos dois nós preferiríamos?

— Nossa preferência seria por Allesandra, kraljiki. Após uma década ou mais que ela passou aqui, à espera que o hïrzg Jan pagasse seu resgate, nós a conhecemos muito mais. A archigos Ana sempre teve um bom relacionamento com ela, e Allesandra é bem mais favorável aos Domínios. Se ela se tornasse a hïrzgin... bem, talvez houvesse alguma esperança de reconciliação entre os Domínios e a Coalizão. Poderia até mesmo haver uma pequena possibilidade de que conseguíssemos voltar a como as coisas eram na época de sua mamatarh, com o senhor no Trono do Sol sob os Domínios reunificados. Mas com Fynn como hïrzg... — Sergei meneou a cabeça outra vez. — Fynn puxou ao vatarh, tão belicoso e teimoso quanto ele. Se Fynn for hïrzg, teremos de vigiar nossa fronteira oriental com atenção, o que significa ter menos recursos à disposição para a guerra nos Hellins, infelizmente.

Audric curvou-se com outro acesso de tosse, e Sergei colocou a mão com gentileza em seu ombro. — Sua tosse está piorando novamente, kraljiki. Mandarei os curandeiros fazerem outra poção para o senhor, e talvez a archigos Ana faça uma visita amanhã, depois da cerimônia do Dia do Retorno. É um pouco cedo, mas com as chuvas do mês passado...

— Eu estou melhor agora — disse Audric. — É apenas o ar úmido aqui no salão. — A e’téni mais próxima interrompeu o cântico, as mãos ficaram paralisadas em meio à moldagem do Ilmodo – a energia que abastecia sua magia. Ela era uma jovem moça não muito mais velha que Audric e ficou vermelha quando se vira notada pelo kraljiki, rapidamente afastou o olhar e recomeçou o cântico: a lamparina presa no alto da parede foi acesa quando as mãos realizaram o gestual do Ilmodo abaixo dela.

O peito de Audric começava a doer com o esforço da tosse. Ele odiava ficar doente, mas parecia estar sempre assim desde que se entendia por gente. Se uma doença fosse contraída pelo corpo de funcionários do palácio, certamente ele pegaria; Audric sofria constantemente de acessos de tosse e de uma dificuldade para respirar. Qualquer esforço físico rapidamente deixava o kraljiki exausto e ofegante. Entretanto, de alguma maneira Cénzi o protegera de um surto de febre do sol aos quatro anos de idade, embora a doença tenha levado sua irmã mais velha, Marguerite, batizada em homenagem à famosa mamatarh e preparada para ser a kraljica quando o vatarh deles morresse. O funeral oficial da irmã — uma cerimônia longa e triste — foi uma de suas primeiras memórias.

Deveria ser Marguerite aqui, agora, não ele. Audric tinha esperanças de que isso significasse que Cénzi tinha um plano para ele.

Ele respirou fundo e desta vez prendeu a tosse que ameaçava surgir. — Pronto, viu só? É só o ar úmido e ter que responder a todas aquelas malditas perguntas do mestre.

— Ao menos as perguntas do mestre têm respostas definitivas. As soluções para um kraljiki raramente são claras, como o senhor já sabe. — Sergei colocou o braço em volta de Audric, que se apoiou no abraço do homem. “Confie em ca’Rudka como seu regente”, sussurrara seu vatarh deitado na cama durante aquele último dia. “Confie nele como você confiaria em mim...”

A verdade era que Audric nunca confiou totalmente em seu vatarh, cujo temperamento e favoritismo eram, na melhor das hipóteses, inconstantes. Mas Sergei... Audric achava que o homem tinha sido a última boa escolha de seu vatarh. Sim, ele podia sofrer cada vez mais nas mãos do regente conforme se aproximava da maioridade, podia se irritar com as pessoas às vezes tratando Sergei como se ele fosse o kraljiki, mas Audric não podia ter pedido um aliado mais leal nos ventos caóticos da corte do kraljiki.

Não importava o que os cortesãos murmuravam a respeito do regente. Não importava o que o homem fazia nas masmorras da Bastida ou com as grandes horizontales que ele às vezes levava para a cama.

— Imagino que devemos redigir um comunicado pela morte do hïrzg — falou Audric. — E que devemos ouvir dez conselheiros diferentes pedindo que respondam de vinte maneiras diferentes. E mais dez assessores que nos dirão o que precisamos fazer a respeito dos Hellins no oeste.

Sergei riu. Seu braço estreitou-se em volta do ombro de Audric, depois soltou o kraljiki e esfregou o nariz de prata como se tivesse sentido uma coceira. — Sem dúvida. Eu diria que o senhor aprendeu muito bem todas suas lições, kraljiki.

 

Sergei ca’Rudka

SUA AUGUSTA PRESENÇA, o kraljiki Audric, curvou-se em sua cadeira elevada e estofada ao lado de Sergei e tossiu tão desesperadamente que o regente inclinou seu corpo na direção do garoto. — O senhor precisa de um pouco do xarope do curandeiro, kraljiki? Eu mando um dos criados trazer aqui... — Ele começou a gesticular, mas Audric pegou seu braço.

— Espere, Sergei. Vai passar — disse Audric ao tomar fôlego três vezes. Espere, Sergei (fôlego). Vai (fôlego) passar... O mero esforço de segurar o braço de Sergei deixou o garoto visivelmente cansado.

Sergei esfregou a superfície reluzente do nariz falso grudado em seu rosto; o original fora perdido há décadas em uma luta de espada na juventude. — O senhor prefere retornar ao palácio, kraljiki? A fumaça dos incensários e o incenso não devem fazer bem para seus pulmões, e a archigos entenderá. De qualquer maneira, ela visitará o senhor assim que terminar aqui.

— Nós ficaremos, Sergei. É aqui que devo estar. — Nós ficaremos (fôlego) Sergei (fôlego, tosse, fôlego). É aqui (fôlego) que devo (fôlego) estar...

Sergei concordou com a cabeça. Quanto a isso, o garoto estava certo. Os dois estavam sentados na sacada real do Templo da Archigos, na margem sul do rio A’Sele, em Nessântico. Embaixo, o piso principal do templo estava lotado de devotos para o Dia do Retorno. A archigos Ana estava com vários a’ténis no coro do templo. Seu cabelo, com mechas grisalhas nas têmporas, reluzia sob a luz das lamparinas mágicas, a voz forte e possante recitava os trechos do Toustour. O Dia do Retorno era a cerimônia do solstício da primavera, que preparava os fiéis para o eventual retorno de Cénzi ao mundo que Ele criara. Comparecer era dever do kraljiki Audric, e era por isso que o templo estava com todos os cantos absolutamente lotados de chevarittai, dos ca’ e co’, de famílias de menor status que conseguiram se enfiar nos espaços que sobraram; todo mundo estava lá para ver o jovem kraljiki e talvez também para ser visto por ele: atrás de um pedido, de uma requisição, ou talvez porque o kraljiki ainda não fosse comprometido com ninguém, apesar dos insistentes rumores de que o regente tinha a intenção de fazer um arranjo com uma das grandes famílias dos Domínios.

Eles também deviam ter notado as tosses fortes e secas do kraljiki, que pontuavam a leitura da archigos Ana. Até mesmo ela parou uma vez no meio da recitação para erguer o olhar com preocupação e solidariedade na direção da sacada. A archigos acenou com a cabeça de maneira praticamente imperceptível para Sergei, e o regente soube que ela correria para o palácio depois da cerimônia. Sergei inclinou o corpo novamente e sussurrou no ouvido do garoto. — A archigos prometeu fazer uma visita após terminarmos aqui e rezar pelo senhor. Ela sempre o ajuda, eu sei. O senhor conseguirá aguentar essa crise sabendo que se sentirá melhor em breve.

Audric concordou com a cabeça, de olhos arregalados, e conteve outra tosse com um lenço perfumado. Sergei perguntou-se se Audric sabia — tanto quanto ele — que a razão pela qual as “preces” da archigos o ajudavam tanto era que Ana usava suas habilidades com a magia do Ilmodo para curar os pulmões arruinados de Audric, o que ia contra as leis da Divolonté que governavam a fé concénziana. Era algo que Ana fazia desde pouco depois do nascimento de Audric, quando ficou claro que a vida do menino estava em perigo. Ela fizera praticamente a mesma coisa pela mamatarh de Audric, a tão lastimada kraljica Marguerite, em seus últimos dias, mantendo a soberana viva quando ela teria morrido sem interferência.

Fazia um mês desde a última visita da archigos Ana com este objetivo; era óbvio que a doença do garoto retornou mais uma vez, como sempre fazia, inevitavelmente. Audric dobrou o lenço e guardou novamente na bashta; Sergei viu manchinhas vermelhas no linho. Não falou nada, mas decidiu que mandaria um recado para Ana dizendo que, em vez de ela ir ao palácio, eles a encontrariam imediatamente depois da missa, nos aposentos da archigos. O garoto precisava de cuidados rapidamente.

Sergei recostou-se na cadeira quando a archigos Ana foi até o Alto Púlpito para proferir a Admoestação para o público, enquanto o coro na galeria começava um hino de Darkmavis. Os ca’ e co’ agitaram-se em suas roupas elegantes. Sergei viu Karl ca’Vliomani acenar com a mão para ele perto da lateral do templo — ca’Vliomani, embaixador da Ilha de Paeti e da facção dos numetodos, não era um fiel, mas Sergei sabia que o embaixador e a archigos Ana tinham sido, se não amantes de fato, ao menos amigos e confidentes desde antes da Batalha dos Brejos, há 24 anos. Durante aquele combate, a jovem archigos Ana usou tanto a magia dos numetodos quanto a própria para tirar a a’hïrzg Allesandra de Firenzcia de seu vatarh e mantê-la como refém contra a retirada do hïrzg. O plano funcionou, embora Firenzcia e os países vizinhos tenham se separado dos Domínios como resultado das hostilidades e tenham formado a Coalizão Firenzciana.

Sergei viu-se considerando, novamente, se a derrota das forças firenzcianas nas mãos de Ana foi realmente o triunfo que todos eles pensavam, se não teria sido melhor para os Domínios que o hïrzg Jan tivesse tomado a cidade e se tornado kraljiki. Se isso tivesse ocorrido, tanto Ana quanto o próprio Sergei estariam mortos, mas muito provavelmente haveria apenas os Domínios, e nenhuma Coalizão rival. Haveria apenas uma fé concénziana. Se isso tivesse ocorrido, o então novo kraljiki teria lidado plenamente com o levante dos ocidentais em Hellins com todos os recursos da Garde Civile, e sem ter que se preocupar com o que poderia acontecer no leste.

Se isso tivesse ocorrido, Justi então, o Tolo Perneta, jamais teria se tornado kraljiki e Audric nunca teria sido seu herdeiro, e Nessântico prosperaria em vez de definhar.

Sergei, francamente, nunca esperou que a archigos Ana fosse capaz de manter o título — ela fora muito jovem e inocente, mas o fogo da Batalha dos Brejos forjou o espírito de aço dentro dela. Ana provou ser mais forte do que qualquer a’téni que pudesse ter tentado tomar seu lugar, mais forte do que o archigos rival em Brezno, e certamente mais forte do que o kraljiki Justi, que acreditou que poderia controlar a Fé através dela.

No fim das contas, Jan não foi capaz de dominar nada: nem Ana, nem a Fé, nem os Domínios. Enquanto Ana fora bem-sucedida de maneira surpreendente como archigos, Justi fora uma catástrofe como kraljiki.

Justi, o Perneta, gastou em duas décadas o que sua matarh e os kralji antes dela levaram mais de cinco séculos para criar, e coube a nós pagar por sua incompetência com os Domínios e a Fé rompidos em facções orientais e ocidentais. E agora os problemas nos Hellins complicam a questão, ao mesmo tempo em que temos um menino no Trono do Sol que pode não viver para gerar um herdeiro.

Sergei suspirou e fechou os olhos enquanto ouvia o coral. Ele iria à Bastida amanhã de manhã e aplacaria suas preocupações com dor. Encontraria alívio nos gritos. Sim, isto seria ótimo. Os acordes finais flutuavam reluzentes na mente do regente, e ele ouviu a archigos subir os degraus do Alto Púlpito.

Sergei se lembraria do momento seguinte pelo resto da vida.

Uma luz violenta e impossível surgiu, como se Cénzi tivesse mandado um raio dos céus através do domo dourado acima. A luz intensa penetrou as pálpebras fechadas de Sergei; um trovão rugiu em seus ouvidos, e uma onda de choque bateu em seu peito. Por instinto, o regente jogou-se sobre Audric, derrubou o garoto no chão da sacada e cobriu o corpo do kraljiki com o próprio corpo. As velhas juntas reclamaram pelo movimento repentino e pelo abuso. Ele ouviu a respiração ofegante de Audric; também ouviu gritos e lamentos vindos de baixo, cortados pelo berro abalado e horrorizado de Karl ca’Vliomani, que ecoou mais alto do que todos eles: — Ana! Ana! Nãoooooo!

— Kraljiki! Regente! — Mãos puxaram e levantaram Sergei, um quarteto da Garde Kralji, cujo dever era proteger o kraljiki e o regente. Uma nuvem de poeira surgiu dentro do templo, e Sergei piscou em meio à poeira; ele mesmo quase não conseguia respirar. O regente ouviu a tosse desesperada de Audric. O templo fedia a enxofre.

— Você e você, escoltem o kraljiki para fora daqui e de volta para o palácio, imediatamente — disse Sergei ao apontar os dedos para os gardai. — Vocês dois, venham comigo.

Sergei desceu correndo a escada da sacada, flanqueado por gardai com espadas desembainhadas e empurrando quem estivesse no caminho. As pessoas gritavam e berravam, ele ouviu os gemidos e ganidos estridentes dos feridos. O regente foi forçado a mancar, pois o joelho direito estava ferido e inchou rapidamente; ele levou muito tempo para descer a escada enquanto agarrava o corrimão a cada degrau. Lá embaixo, tudo era confusão.

— Regente! Aqui! — Aris co’Falla, o comandante da Garde Kralji, fez um gesto acima das cabeças para Sergei enquanto os gardai empurravam a multidão. O barulho de dor e sofrimento era enorme, e o regente notou vários rostos e braços ensanguentados. A fachada do templo estava cheia de pedras quebradas e madeira estilhaçada; ele notou vários corpos nos escombros.

Um dos corpos usava o robe da archigos. Sergei perdeu o fôlego, que foi substituído por uma raiva fria. — Comandante, o que aconteceu aqui?

Co’Falla balançou a cabeça. — Eu não sei, regente. Não ainda. Eu assistia à cerimônia próximo à saída do templo. Quando a archigos chegou ao Alto Púlpito... Eu nunca tinha visto algo assim, regente. Foi alguma espécie de feitiço, tenho quase certeza, mas algo que um téni-guerreiro faria. O clarão, o barulho, a pedra e a madeira e... — Ele franziu a testa. — ... outras coisas voaram para todos os lados. A explosão pareceu ter vindo debaixo do Alto Púlpito. Há pelo menos meia dúzia de mortos, e muitos mais feridos, alguns gravemente...

O regente gemeu pela dor no joelho ao se ajoelhar ao lado do corpo de Ana. O rosto estava praticamente irreconhecível, ela perdera a metade inferior do corpo completamente e o braço direito. Sergei soube imediatamente que Ana estava morta, que não havia esperança ali. Uma estranha poeira negra cobria o chão em volta dela. Ele virou o rosto e viu Karl ca’Vliomani sendo contido pelos gardai, com o rosto em pânico e a bashta coberta de pó. Sergei ficou de pé devagar e fez uma careta quando os joelhos estalaram. — Cubra a archigos e os outros corpos — falou o regente para co’Falla. — Tire todo mundo do templo, a não ser os ténis e os gardai. Mande chamar o comandante co’Ulcai da Garde Civile se precisar de mais ajuda. — Ele estremeceu ao respirar. — E deixe o embaixador vir até mim.

Co’Falla meneou a cabeça e deu as ordens. Ca’Vliomani disparou imediatamente na direção do corpo de Ana, Sergei interceptou o embaixador. — Não — ele disse para Karl ao agarrar seus ombros. — Ela morreu, Karl. Não há nada que você possa fazer. Nada.

Ele sentiu o homem desmoronar e ouviu um soluço. — Sergei, eu tenho que vê-la. Por favor. Eu preciso saber. — Seu olhar estava abalado, e subitamente Karl ca’Vliomani pareceu décadas mais velho. O sotaque de Paeti, que o embaixador jamais perdeu, apesar dos anos em Nessântico, ficou mais forte do que nunca nesse momento.

— Não, você não precisa, meu amigo — insistiu Sergei. — Por favor, me ouça. Você não quer que esta seja a última imagem que tem dela. Você não quer isso. De verdade. Eu digo isso pelo seu bem.

Então ca’Vliomani começou a chorar, e Sergei segurou o embaixador enquanto os gardai se movimentavam em volta deles, conforme os ténis do templo — calados pelo choque e horror — cuidavam dos mortos e feridos, e a poeira negra assentava-se sobre eles e ao redor deles, e o rugido do feitiço ecoava eternamente nos ouvidos de Sergei.

Ele achava que jamais se esqueceria daquele som e perguntou-se o que ele anunciava: para si próprio, para Audric, para a fé concénziana, para Nessântico.

 

Nico Morel

NICO TOMOU UM PEQUENO GOLE DO CHÁ que sua matarh colocara diante dele, com a caneca de madeira nas duas mãos pequenas. — Matarh, por que alguém iria querer matar a archigos Ana?

— Eu não sei, Nico — respondeu ela, que colocou uma fatia de pão e alguns pedaços de queijo diante do filho, na mesa arranhada perto da janela. A mulher afastou as mechas do cabelo castanho de sua testa e olhou pelas persianas abertas para a rua estreita do lado de fora. — Eu não sei — repetiu. — Só torço...

— A senhora torce para que, matarh?

Ela balançou a cabeça. — Por nada, Nico. Ande, coma.

Eles compareceram à cerimônia do Dia do Retorno no Parque do Templo, à distância de uma longa caminhada de seu apartamento no Velho Distrito. Nico sempre gostava quando eles iam ao Parque do Templo, pois o espaço verde e aberto contrastava bastante com as ruas sujas e apinhadas de gente do labirinto do Velho Distrito. Bem na hora em que saíam do parque, eles ouviram as trompas começarem a soar, e então os rumores se espalharam pela multidão como fogo em um campo seco de verão: a archigos tinha sido morta. Por magia, diziam alguns. Magia terrível, como a que os hereges numetodos sabiam fazer, ou talvez um téni-guerreiro.

Nico chorou um pouco, porque todo mundo chorava, e sua matarh pareceu preocupada. Eles voltaram correndo para casa.

Certa vez, a matarh de Nico atravessou a Pontica Mordei na direção da a Ilha A’Kralji com o filho, e eles viram o terreno do palácio do regente e do Velho Templo, o primeiro construído em Nessântico. Nico ficou maravilhado com o novo domo que estava sendo construído no topo do Velho Templo, com as fileiras de andaimes que alçavam os trabalhadores tão alto no céu, de maneira impossível. Nico ficou tonto só de vê-los.

Depois, eles passaram pela Pontica a’Brezi Nippoli na direção da margem sul, onde a maioria dos ca’ e co’ viviam. Nico atravessou com sua matarh o grande complexo do Templo da Archigos e viu a archigos em pessoa: uma figura minúscula de verde em uma das janelas dos prédios ligados ao enorme templo que acenava para a multidão na praça.

Agora ela estava morta. Algo fácil de imaginar. A morte era totalmente comum; Nico costumava vê-la nas ruas, e a viu visitar a sua própria família. A matarh disse que Ana era a archigos desde quando ela era um bebê, e a matarh tinha 28 anos — praticamente uma anciã, portanto, não chegava a ser uma surpresa que a archigos morresse. Nico mal se lembrava de sua mamatarh, que morreu quando ele tinha cinco anos. Talvez ela fosse tão velha quanto a archigos Ana. Nico lembrava-se muito do irmão mais velho, que morreu de febre do sul há quatro anos. A matarh disse que houve outro irmão, ainda mais velho, que também morreu, mas Nico não se lembrava dele. Havia Fiona, a irmã que nascera primeiro — Nico não sabia se ela ainda estava viva, embora sempre tenha imaginado que estivesse; ela fugira aos 12 anos, há quase três anos agora. Talis vivia com eles — Talis vivia com a matarh desde que Nico se entendia por gente, mas Fiona dissera a ele que nem sempre foi assim, que houve outro homem antes de Talis, que era o vatarh de Fiona e de seus irmãos. Ela dissera que Talis era o vatarh de Nico, mas que nunca quis ser chamado assim.

Nico sentia saudade de Fiona. Ele às vezes imaginava que a irmã tinha ido para outra cidade e ficado rica. Gostava de pensar assim, às vezes. Sonhava com o retorno de Fiona a Nessântico com um ce’ ou até mesmo um ci’ antes do nome, e ele abriria a porta para vê-la sorrindo com uma tashta limpa e muito colorida. — Nico — diria a irmã. — Você, a matarh e Talis vão morar comigo...

Talvez Nico saísse de casa quando tivesse 12 anos também, daqui a dois anos. Nico notou as rugas marcadas no rosto da matarh enquanto ela olhava para a rua lá fora. O cabelo nas têmporas tinha mechas grisalhas. — A senhora está esperando por Talis? — perguntou ele.

Nico viu a testa franzida, depois o sorriso quando ela se virou para ele. — Apenas coma, querido. Não se preocupe com Talis. Ele vai chegar em breve.

Nico concordou com a cabeça enquanto roía a crosta dura do pão quase velho e tentava evitar o molar solto no fundo da boca que ameaçava cair, o último dos dentes de leite. Ele não estava preocupado com Talis, apenas com o dente. Não queria perdê-lo, uma vez que, se perdesse, a matarh mandaria que ele esmagasse o dente com um martelo até virar pó, e isso era muito trabalhoso. Quando Nico terminasse, ela o ajudaria a salpicar o pó em um pouco de pão umedecido com leite, e os dois colocariam o pão do lado de fora da janela ao lado de sua cama. À noite, ele ouviria os ratos e camundongos comerem a oferenda e correrem de um lado para o outro lá fora. De manhã, o prato estaria vazio; a matarh dizia que isso significava que seus novos dentes cresceriam tão fortes quanto os dentes de um rato.

Nico já tinha visto o que os ratos conseguiam fazer com os dentes. Eles podiam arrancar a carne de um gato morto em poucas horas. Nico torcia para que seus dentes ficassem fortes assim. Ele meteu o indicador na boca e mexeu no dente, sentiu que balançava facilmente para trás e para frente nas gengivas. Se puxasse com força, o dente sairia...

— Serafina?

Nico ouviu Talis chamar sua matarh. Ela correu até ele e os dois se abraçaram logo após Talis fechar a porta ao entrar.

— Eu estava preocupada — disse sua matarh. — Quando soube...

— Shh... — falou Talis ao dar um beijo na testa de Serafina. Seu olhar estava voltado para Nico, que observava os dois. — Ei, Nico. Sua matarh levou você ao Parque do Templo hoje?

— Sim — respondeu Nico. O menino se aproximou dos dois e se esgueirou em sua matarh, de maneira que ela passasse o braço por ele. Nico torceu o nariz e ergueu os olhos para o homem. — Você está com um cheiro esquisito, Talis.

— Nico... — A matarh começou a falar, mas Talis riu e mexeu no cabelo de Nico. O menino odiava que ele fizesse isso.

— Tudo bem, Serafina — disse Talis. — Não se pode culpar o menino por ser honesto. — Ele não falava como as outras pessoas do Velho Distrito; Talis pronunciava as palavras de um modo esquisito, como se a língua não gostasse do sabor das sílabas, então ele as cuspia o mais rápido possível em vez de falar com calma, como a maioria das pessoas fazia. Talis agachou-se próximo a Nico e disse — Eu passei por um incêndio a caminho daqui. Havia muita fumaça preta. Os ténis-bombeiros apagaram o fogo, contudo.

Nico assentiu com a cabeça, embora achasse que Talis não cheirava exatamente à fumaça. O odor era mais intenso e pungente. — A archigos Ana morreu, Talis — falou o menino.

— Foi o que eu ouvi — respondeu Talis. — O regente vai varrer a cidade à procura de um bode expiatório para culpar. É hora de os estrangeiros não chamarem atenção se quiserem continuar a salvo. — Ele parecia falar mais para a matarh de Nico do que para o menino, os olhos erguidos na direção dela.

— Talis... — A matarh sussurrou o nome da mesma maneira que às vezes dizia o de Nico quando o menino estava doente ou tinha se machucado. Talis ficou de pé novamente e a abraçou. — Vai ficar tudo bem, Sera. — Nico ouviu Talis sussurrar para ela. — Eu prometo.

Enquanto ouvia Talis, Nico empurrou o dente solto com a língua. Ele escutou um estalinho e sentiu gosto de sangue.

— Matarh, meu dente caiu...

 

Allesandra ca’Vörl

— MATARH?

Allesandra ouviu o chamado, seguido por uma batida hesitante na porta. Seu filho, Jan, estava parado na porta aberta. Aos 15 anos, quase 16, ele era magricelo e desajeitado. Somente nos últimos meses o corpo começara a se transformar no de um jovem, com uma bela penugem no queixo e debaixo dos braços. Ele ainda era bem mais baixo do que as meninas da mesma idade, muitas das quais tiveram a primeira menarca no ano anterior. Batizado com o nome do vatarh de Allesandra, ela enxergava algumas características dele no filho, mas também havia um forte traço da família ca’Xielt — a família de Pauli. Jan tinha a cor da pele mais escura dos magyarianos, os olhos negros e o cabelo encaracolado quase preto de seu vatarh. Ela duvidava que algum dia o filho teria a musculatura mais parruda dos ca’Belgradin, como a de seu onczio Fynn, que o vavatarh Karin e o vatarh Jan de Allesandra também possuíram.

Ela, às vezes, tinha dificuldade em imaginar o filho galopando loucamente para entrar em combate — embora Jan cavalgasse tão bem quanto qualquer pessoa e possuísse a visão aguçada que um arqueiro invejaria. Ainda assim, ele geralmente parecia mais à vontade com pergaminhos e livros do que com espadas. E, apesar da linhagem paterna, apesar do ato (por puro dever) que o produziu, apesar do mau humor e da raiva mal contida que pareciam consumi-lo ultimamente, Allesandra amava o filho mais do que pensou ser possível amar alguém.

E ela temeu, especialmente no ano anterior, que estivesse perdendo Jan, que ele pudesse estar cedendo à influência de Pauli. Ele esteve ausente na maior parte da vida do filho, mas talvez essa fosse a sua vantagem: era mais fácil não gostar do vatarh ou da matarh que estava sempre corrigindo; admirar aquele ou aquela que deixava fazer o que quisesse. Houve aquele incidente com a funcionária, e Allesandra precisou mandá-la embora — aquilo foi bem parecido com Pauli.

— Entre, querido — chamou Allesandra.

Jan aquiesceu sem sorrir, foi até a penteadeira onde ela estava sentada e encostou os lábios no topo da cabeça da matarh, um beijo discretíssimo, enquanto as mulheres que ajudavam Allesandra a se vestir se afastavam em silêncio. — O onczio Fynn mandou que eu buscasse a senhora — falou Jan. — Evidentemente chegou o momento. — Uma pausa. — E evidentemente eu sou pouco mais do que um criado para ele. Apenas um traste magyariano que serve para levar recados.

— Jan! — disse Allesandra com rispidez. Ela apontou para as aias com o olhar. Todas eram magyarianas ocidentais, parte da comitiva que veio de Malacki com Jan.

Ele deu de ombros, sem se importar. — A senhora vem, matarh, ou vai me mandar de volta para Fynn com sua própria resposta, como se eu fosse um bom menininho de recados?

Você não pode responder aqui do jeito que quer. Não onde tudo o que nós dissermos possa virar fofoca na corte hoje à noite. — Estou quase pronta, Jan. — Allesandra gesticulou. — Vamos descer juntos, uma vez que você já está aqui. — As aias voltaram, uma escovou o cabelo dela, outra colocou no pescoço
o colar de pérolas que antigamente fora de sua matarh Greta, e mais uma ajustou as dobras da tashta. Allesandra passou outro colar para a aia: um globo partido em uma corrente elegante, com continentes de ouro, mares do mais puro lápis-lazúli, e a fenda cheia de rubis nas profundezas: o globo de Cénzi. A archigos Ana dera o colar para Allesandra quando ela teve a primeira menarca, em Nessântico.

— Isto antigamente pertencia ao archigos Dhosti — dissera Ana para ela. — Ele deu para mim; agora eu dou para você. — Allesandra tocou o globo enquanto a criada o prendia em seu pescoço e lembrou-se de Ana: o som da voz, seu cheiro.

— Todo mundo vive me dizendo que o onczio Fynn dará um belo hïrzg — disse Jan, e a lembrança foi interrompida.

— Eu sei. — Allesandra começou a dizer. E por que você esperaria outra coisa?, ela queria acrescentar. Jan entendia muito bem a etiqueta da corte para saber disso.

Evidentemente ele viu o comentário implícito no rosto da matarh. — Eu não tinha terminado. Eu ia dizer que a senhora daria uma hïrzgin melhor. Era a senhora que deveria usar a coroa e o anel, matarh.

— Quieto — falou Allesandra novamente para Jan, embora com mais gentileza desta vez. As aias eram dela, era verdade, mas nunca se sabia. Segredos podiam ser comprados ou arrancados pelo amor ou pela dor. — Nós não estamos em casa, Jan. Você tem que se lembrar disso. Especialmente aqui...

A expressão mal-humorada de Jan foi desfeita por um momento, e ele pareceu tão arrependido que toda a irritação de Allesandra passou. Ela fez um carinho no braço do filho. Era assim com Jan nos últimos tempos: cara fechada em um instante e sorrisos afetuosos no próximo. No entanto, as caras fechadas apareciam mais frequentemente conforme a criança amorosa dentro dele recuava cada vez mais fundo no interior da nova carapaça adolescente. — Tudo bem, Jan. Apenas... bem, você tem que tomar muito cuidado enquanto estivermos aqui. Sempre. — E especialmente com Fynn. Ela tirou a ideia da cabeça. Diria para Jan mais tarde. Em particular. Allesandra ficou de pé e as criadas foram embora, como folhas no outono. Ela abraçou Jan: ele permitiu o gesto, e nada mais, os próprios braços mal se mexeram. — Tudo bem, vamos descer agora. Lembre-se de que você é o filho do a’gyula da Magyaria Ocidental, e também o filho da atual a’hïrzg de Firenzcia.

Fynn dera o título a Allesandra ontem, após a morte do vatarh: o título que deveria ter sido dela desde o início, que a teria tornado hïrzgin. Ela sabia que até mesmo este presente era temporário, que Fynn nomearia outra pessoa como a’hïrzg com o tempo: o próprio filho, talvez, se algum dia ele se casasse e produzisse um herdeiro, ou algum protegido da corte. Allesandra seria a herdeira de Fynn até ele encontrar alguém de quem gostasse mais.

— Matarh — interrompeu Jan. Ele bufou bem alto, e a cara fechada voltou. — Eu conheço o sermão. “Os olhos e ouvidos dos ca’ e co’ estarão em você.” Eu sei. A senhora não precisa me dizer. De novo.

Allesandra gostaria de poder acreditar nisso. — Tudo bem — falou baixinho. — Vamos descer então e ficar com o novo hïrzg enquanto sepultamos seu vavatarh.

Com a morte do hïrzg Jan, foi proclamado o obrigatório mês de luto e marcadas uma dúzia de cerimônias necessárias. O novo hïrzg, Fynn, presidiria vários rituais nas próximas semanas: alguns apenas para os ca’ e co’, outros para o benefício moral do público. O Besteigung formal, o ritual final, aconteceria no fim do mês, no Templo de Brezno, presidido pelo archigos Semini — marcado assim para dar tempo de os líderes dos outros países da Coalizão Firenzciana chegarem a Brezno para prestar homenagem ao novo hïrzg. Allesandra já havia sido informada de que o a’gyula Pauli chegaria para o Besteigung, pelo menos — ela já estava apreensiva pela chegada do marido.

E hoje à noite... hoje à noite era o Confinamento.

Os kralji queimavam os mortos; os hïrzgai os enterravam. O corpo do hïrzg Jan seria enterrado na catacumba dos ca’Belgradins, onde várias gerações de seus ancestrais estavam sepultadas, e um punhado ou mais destes antecessores dividiram com Jan a coroa dourada que agora estava na cabeça de Fynn. Fynn aguardava Allesandra e Jan nos próprios aposentos; dali, eles desceriam para as catacumbas abaixo do piso térreo do Palácio de Brezno. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos e outros nobres de Firenzcia já esperavam por eles lá.

Os salões do palácio estavam em silêncio, os criados que Jan e Allesandra viram pararam o que faziam e curvaram-se calados com os olhos abaixados conforme eles passavam. Dois gardai parados do lado de fora dos aposentos de Fynn abriram as portas quando eles se aproximaram. Allesandra ouviu vozes vindo do interior quando ela e o filho entraram.

— ... acabo de receber notícias de Gairdi. Isto vai complicar a situação. Não sabemos exatamente o quanto, ainda... — O archigos Semini ca’Cellibrecca parou no meio da frase assim que Allesandra e Jan entraram na sala. O homem sempre trouxera a imagem de um urso à mente de Allesandra, desde quando ela era uma criança, e ele, um jovem téni-guerreiro em ascensão: mesmo quando moço, Semini era enorme, peludo e perigoso. A barba negra agora estava salpicada de branco, e a massa de cabelo encaracolado recuava na testa como uma maré lenta, mas ele ainda era parrudo e musculoso. O archigos fez o sinal de Cénzi para Jan e Allesandra, com as mãos entrelaçadas na testa, enquanto sua esposa, Francesca, fazia o mesmo atrás dele. Disseram para Alle-sandra que antigamente Francesca era linda; na verdade, havia rumores de que ela um dia fora amante de Justi, o Perneta, mas Allesandra não a conhecia na época. Agora Francesca era uma matrona corcunda sem vários dentes, com o corpo arrasado pelos rigores de uma dezena de gestações ao longo dos anos. A personalidade era tão amarga quanto o rosto.

Fynn levantou-se da cadeira.

— Irmã — disse ele enquanto pegava as mãos de Allesandra ao ficar diante dela. Fynn sorria, parecia quase exultante. — Semini acabou de trazer notícias interessantes de Nessântico. A archigos Ana foi assassinada.

Allesandra engasgou, sem conseguir esconder sua reação. As mãos se dirigiram para o pingente com o globo partido no pescoço, então ela se forçou a abaixá-las. A sensação era de que não conseguiria respirar. — Assassinada? Por quem...? — Allesandra parou e olhou para Semini, que também sorria, quase presunçoso, pensou ela, e depois se voltou para o irmão. — Fomos nós? — perguntou. A voz saiu afiada como uma adaga. Ela sentiu Jan colocar a mão em seu ombro por trás ao sentir sua angústia.

Fynn deu um muxoxo de desdém e perguntou — Isso faria diferença?

— Sim — disse Allesandra para ele. — Apenas um tolo pensaria o contrário. — As palavras saíram antes que ela conseguisse impedi-las. E bem depois que acabei de alertar Jan...

Fynn fechou a cara diante do insulto implícito. A mão de Jan apertou o ombro de Allesandra. Semini pigarreou alto antes que Fynn pudesse falar.

— Isso não foi obra do hïrzg, Allesandra. — Semini respondeu rapidamente enquanto balançava a cabeça e abanava a mão com desdém. — Firenzcia pode estar em desacordo com a Fé em Nessântico, mas o hïrzg não participa de assassinatos. Nem a Fé.

Ela olhou de Semini para Francesca. A mulher afastou o olhar rapidamente, mas não tentou esconder a satisfação no rosto. O prazer com a notícia era óbvio. A mulher tinha tanto calor humano quanto o inverno de Boail. Allesandra perguntou-se se algum dia Semini gostou dela ou se o casamento entre os dois era tão sem amor e premeditado quanto o seu, apesar dos vários filhos do casal. Allesandra não conseguia imaginar se submeter ao prazer de Pauli com tanta frequência. — Temos certeza de que esta informação é verdadeira? — perguntou ela para o archigos.

— Ela veio até mim por três fontes diferentes, uma em que confio implicitamente, o comerciante Gairdi, e todas concordam nos detalhes básicos — falou Semini. — A archigos Ana realizava a missa do Dia do Retorno quando houve uma explosão. “Como o feitiço de um téni-guerreiro”, todos dizem, o que quer dizer que foi alguém usando o Ilmodo. Isso está claro.

— O que também quer dizer que eles podem se voltar para o leste, em nossa direção — disse Fynn. Ele parecia ávido pela ideia, como se estivesse ansioso para convocar o exército de Firenzcia para a batalha. Isso seria a cara dele; Allesandra ficaria terrivelmente surpresa se o reinado de Fynn fosse pacífico.

— Ou eles se voltarão para o oeste — argumentou Allesandra, e Fynn olhou para a irmã como se ela fosse um inseto chato e insistente. — Nessântico também tem inimigos lá, e os ocidentais também podem usar o Ilmodo, mesmo que o chamem por outro nome, como os numetodos.

— Os ocidentais? Como os numetodos, eles são hereges que merecem a morte — disparou Semini. — Eles abusam da dádiva de Cénzi, que é destinada apenas aos ténis, e um dia nós os faremos pagar pelo insulto, se Nessântico não fizer isso.

Fynn grunhiu em acordo com a opinião, e Allesandra viu o filho Jan também aquiescer com a cabeça — isso também era a influência do maldito vatarh do menino, ou pelo menos do téni magyariano que Pauli insistiu que educasse o filho deles, apesar das reservas de Allesandra. Ela cerrou os lábios.

Ana está morta. Ela colocou os dedos no colar do globo partido, sentindo sua superfície lisa e cravejada. O toque trouxe novamente a memória do rosto de Ana, do sorriso assimétrico que surgia nos lábios da mulher quando algo a divertia, das rugas severas que apareciam em volta dos olhos quando ficava irritada. Allesandra passou uma década com Ana; captora, amiga e matarh postiça, tudo ao mesmo tempo para ela durante os longos anos que passou como refém de Nessântico. Os sentimentos de Allesandra para com Ana eram tão complexos e contraditórios quanto o relacionamento entre as duas. Eles eram quase tão conflitantes quanto os sentimentos com relação ao vatarh, que a deixara em Nessântico enquanto Fynn se tornava o a’hïrzg e seu favorito.

Allesandra queria chorar por causa da notícia, de tristeza por alguém que a tratou bem, com gentileza, quando não havia obrigação alguma para que agisse assim. Mas ela não podia chorar. Não aqui. Não na frente de pessoas que odiavam a mulher. Aqui, Allesandra teria que fingir.

Mais tarde. Mais tarde eu choro por ela como se deve...

— Eu esperava um pouco mais de reação de você, irmã — disse Fynn. — Afinal, aquela mulher abominável e o impostor perneta mantiveram você como prisioneira. O vatarh praguejava sempre que alguém falava o nome dela e dizia que Ana não era diferente de uma bruxa.

Fynn observava Allesandra, e ambos sabiam o que ele deixou de fora no comentário: que o hïrzg Jan poderia ter pagado o resgate por ela a qualquer momento durante aqueles anos, e que, se ele o tivesse feito, provavelmente a coroa dourada estaria na cabeça de Allesandra, não na de Fynn. — Você não ficará aqui nem meio ano — disse Ana para Allesandra naqueles primeiros meses. — O kraljiki Justi cobrou um resgate justo, e seu vatarh irá pagá-lo. Em breve...

Mas, por algum motivo, o hïrzg Jan não pagou.

Allesandra fez uma expressão impassível. Você não vai chorar. Não vai deixar que eles vejam seu sofrimento. Não era difícil; era o que ela fazia frequentemente, e dava certo na maioria das vezes. Allesandra sabia como os ca’ e co’ a chamavam pelas costas: a Megera de Pedra. — A morte de Ana ca’Seranta é importante. Eu agradeço ao archigos Semini por nos trazer a notícia, e nós devemos, nós temos que decidir o que isso significa para Firenzcia, mas ainda levaremos semanas para conhecer todas as consequências. E neste momento o vatarh espera por nós. Eu sugiro que cuidemos dele primeiro.

 

As Tumbas dos Hïrzgai eram catacumbas abaixo do Palácio de Brezno, não eram como os níveis inferiores da mais nova propriedade privada fora da cidade conhecida como Encosta do Cervo, que fora construída na época do hïrzg Karin. Uma escada comprida e larga descia para as Tumbas, e uma crosta de nitrato cobria as paredes suadas e crescia como pústula branca nas faces dos murais pintados ali há dois séculos e restaurados uma dezena de vezes desde então: a umidade sempre vencia os pigmentos. Um ar frio, quase fétido, subia lá de baixo, como se os avisasse que o reino dos mortos se aproximava. As tochas acesas nos suportes preveniam a escuridão, mas tornavam as sombras da ocasional passagem lateral mais escuras e misteriosas em contraste. Uma dezena de gerações de hïrzgai esperava por eles lá embaixo, com suas várias esposas e muitos dos descendentes diretos. O irmão mais velho de Allesandra, Toma, fora enterrado ali quando ela era apenas um bebê, e sua matarh, Greta, estava deitada ao lado dele há 19 anos agora. Com o tempo, a própria Allesandra poderia se juntar à família, embora passar a eternidade ao lado da matarh Greta não fosse uma ideia agradável.

A procissão desceu pela escadaria em um silêncio pomposo: em frente os e’ténis com lamparinas acesas por fogo mágico, depois o hïrzg Fynn acompanhado pelo archigos Semini e Francesca, e Allesandra e Jan alguns passos atrás deles, seguidos por um último grupo de criados e e’ténis. Conforme eles se aproximavam da entrada ricamente entalhada em direção às catacumbas, decoradas com baixos-relevos de feitos históricos dos hïrzgai, Allesandra pôde ouvir sussurros, o farfalhar de tecido e um espirro ou tosse ocasionais: os ca’ e co’ foram convidados para testemunhar as cerimônias. Era a elite de Firenzcia, a maioria composta por parentes de Fynn e Allesandra: famílias que haviam sido misturadas com a deles, ou aqueles que serviram por décadas ao hïrzg Jan.

Luzes mágicas e de tochas banhavam os corpos enroscados de criaturas fantásticas entalhados nas paredes, as sisudas feições esculpidas dos hïrzgai e os corpos massacrados dos inimigos aos seus pés. Os chevarittai dos Lanceiros Vermelhos entraram em posição de sentido, as lanças (com lâminas cobertas por panos vermelhos) bateram contra as lustrosas armaduras de gala. Os outros ca’ e co’ fizeram mesuras e os sussurros caíram no silêncio quando o novo hïrzg entrou na câmara enorme. Allesandra notou os olhares deslizarem de Fynn para ela, e também para Jan. O filho notou a atenção; ela sentiu Jan respirar fundo e empertigar o corpo. Allesandra acenou para eles — um movimento mínimo da cabeça, um sorriso quase imperceptível.

Olhe para ela, tão fria quanto esta câmara... Era o que alguns deles deveriam estar pensando. Com certeza ela está contente de ver o velho Jan morto depois de ele deixá-la com o kraljiki e a falsa archigos por tanto tempo. Ela provavelmente deseja que Fynn também estivesse lá com o vatarh para que ela pudesse ser a hïrzgin.

Nenhum deles conhecia Allesandra. Nenhum deles conhecia seus verdadeiros pensamentos. Com efeito, ela mesma não tinha certeza se sabia. Allesandra ainda estava abalada com a notícia sobre Ana, e se demonstrava sinais de tristeza, era pela archigos, não pelo vatarh.

O caixão que continha os restos do hïrzg Jan estava perto da entrada da câmara de confinamento, ao lado da enorme pedra redonda que selaria o nicho.
O caixão estava coberto por uma tapeçaria que representava sua vitória sobre o t’sha no lago Cresci. Não havia nada que celebrasse Passe a’Fiume ou o ataque tolo e ousado contra Nessântico há uma década: aqueles dias em que Allesandra cavalgara com ele, quando olhava o vatarh com adoração, quando ele prometera dar para ela a cidade de Nessântico.

Em vez disso, Nessântico tirou Allesandra de seu vatarh e deu a Fynn o lugar de braço direito de Jan.

Fynn prestou continência aos lanceiros, que relaxaram sua postura, e disse — Eu gostaria de agradecer a todos por estarem aqui. Eu sei que o vatarh olha lá de cima, dos braços de Cénzi, e agradece esse tributo a ele. E também sei que o vatarh nos perdoaria por não ficarmos muito tempo aqui quando lareiras e comidas quentes esperam por nós lá em cima. — Fynn recebeu risos discretos ao dizer isso e sorriu. — Archigos, por obséquio...

Semini dirigiu-se rapidamente à frente com os ténis e abençoou o caixão. Ele chamou Allesandra e Jan com um gesto quando os ténis começaram a entoar a oração. Os dois foram até o caixão e colocaram as mãos na tapeçaria. — Eu queria que você tivesse tido a chance de conhecê-lo melhor — sussurrou ela para Jan e colocou a mão em cima da mão do filho enquanto os ténis entoavam. — Ele não foi sempre tão furioso e rude quanto nos últimos anos.

— A senhora me disse isso — falou Jan. — Várias vezes. Mas, ainda assim, não é a memória dele que levarei comigo, não é? — Ela olhou para o filho; ele olhou com uma cara feia para o caixão.

— Falaremos a respeito disso depois — disse Allesandra.

— Não duvido, matarh.

Allesandra conteve a resposta que teria dado; ela não falaria nada aqui. As pessoas já olhavam com curiosidade, imaginavam que segredos os dois estariam sussurrando e o porquê da rispidez na voz de seu filho. Allesandra ergueu a mão e deu um passo para trás para permitir que Fynn se aproximasse.

Ela imaginou o que o irmão estaria pensando ao ficar parado ali, com a mão no caixão e a cabeça baixa.

Após alguns minutos, Fynn também se afastou. Ele acenou com a cabeça para os lanceiros; quatro vieram à frente para pegar o caixão. Com expressões soturnas, eles ergueram e enfiaram o caixão no nicho que o aguardava. A pedra roçou na madeira, e o som ecoou. Os quatro deram passos para trás, e outro quarteto empurrou com os ombros o selo de pedra, que gemeu e resistiu enquanto rolava devagar. A enorme roda de pedra avançou por um sulco aberto no chão na direção da enorme fenda onde se assentaria e ficaria. A pedra era entalhada com glifos em firenzciano antigo, uma língua falada hoje apenas por estudiosos, tão grossa quanto o braço de uma pessoa e com metade da altura de um homem. Quando a grande roda chegou ao fim do sulco e entrou na brecha onde deveria ficar, houve um enorme som de rachadura. Uma fenda cortou a face entalhada da roda e um terço da parte de cima desmoronou. Allesandra sabia que deveria ter dado um alerta, mas tudo acabou antes que qualquer um deles pudesse se mexer ou reagir. A massa de pedra esmagou completamente um lanceiro embaixo dela e as pernas de outro soldado ao cair no chão.

Os gritos do lanceiro preso eram agudos e estridentes, e sangue espesso escorreu debaixo da pedra.

Isso é um sinal... Ela não conseguiu evitar o pensamento enquanto o restante dos lanceiros avançou e os ca’ e co’, ténis e criados corriam para ajudar ou encaravam paralisados o horror no fundo da câmara. Jan estava entre aqueles que tentavam desesperadamente levantar a lápide, e Fynn gritava ordens inúteis no caos.

Foi o vatarh que fez isso. De alguma forma, ele fez isso. Ele não descansa em paz...

 

Enéas co’Kinnear

ELE IA MORRER aqui nos Hellins.

A sensação de um destino horrível tomou conta de Enéas enquanto ele estava com as forças dos Domínios no cume de um morro não muito longe das cercanias de Munereo. As tropas observavam os estandartes de formato estranho dos ocidentais se aproximarem vindos da direção do lago Malik, e Enéas escutava o início dos cânticos dos ténis-guerreiros em preparação para a batalha. O a’offizier Meric ca’Matin estava com ele, assim como os outros offiziers do batalhão e vários pajens prontos para levar mensagens entre as companhias. As cornetas e bandeiras estavam de prontidão para transmitir ordens. A uma centena de passos encosta abaixo, as fileiras do exército dos Domínios estavam reunidas, inquietas e nervosas.

Enéas esteve em meia dúzia de batalhas e incontáveis escaramuças e confrontos nos últimos anos. Esta sensação de ruína iminente era algo que nunca havia sentido antes. Ele sentiu o suor descer pelo rosto debaixo do elmo grosso de ferro, e não era apenas o sol que causava a transpiração. Enéas queria gritar em negação para o céu, mas não podia. Não aqui. Não na frente de suas tropas. Em vez disso, abaixou a cabeça e rezou.

Ó, Grande Cénzi, por que o Senhor manda esta premonição para mim? O que o Senhor está me dizendo?

Enéas era um o’offizier da Garde Civile dos Domínios. Seu comandante de campo, o a’offizier ca’Matin, dissera justamente ontem que tinha feito a recomendação de que Enéas fosse sagrado chevaritt, que o documento já estava cruzando o Strettosei a caminho de Nessântico. Seu vatarh ficaria orgulhoso — há 25 anos, o vatarh de Enéas serviu com o regente ca’Rudka em Passe a’Fiume e ficou severamente queimado, perdeu um braço e um olho durante aquele cerco horrível. A Garde Civile dera a condecoração e a pensão que ele merecia, e embora a família tenha sido promovida de ce’Kinnear para ci’Kinnear como consequência, seu vatarh sempre falava que poderia ter se tornado um chevaritt se não tivesse sido ferido, que aquelas aspirações foram arrancadas pelo fogo mágico firenzciano que o desfigurou e encerrou sua carreira.

Enéas nunca quis ser um chevaritt ou um offizier. Teria preferido seguir a carreira de um téni da fé concénziana do que aquela que encontrou na Garde Civile. Ele sentia o chamado de Cénzi desde que era um menino; na verdade, Enéas pediu aos pais que o mandassem para o templo como um acólito. Porém, seu vatarh insistiu que trilhasse o caminho marcial. — Somos apenas ci’, e mal conseguimos nos manter assim — dissera o vatarh. — Nossa família não tem as solas para mandá-lo para os ténis. Isso é uma coisa para os ca’ e co’, que podem bancar. Você entrará para a Garde, como eu. Vai fazer como eu fiz...

Enéas saiu-se melhor que seu vatarh. “Falsoténi” era como seus homens o chamavam por sua religiosidade, por seguir rigidamente as regras da Divolonté, e pela insistência em que seus comandados comparecessem aos rituais no Templo de Munereo nos Dias da Observância, como era devido. Mas seus comandados também alegavam que o próprio Cénzi protegia Enéas — e que, através de Éneas, eles próprios eram protegidos. Na Batalha das Colinas perto do lago Malik, como um e’offizier, em sua segunda batalha de verdade, ele foi o único offizier sobrevivente de sua companhia, quando os homens foram massacrados por uma força ocidental bem superior. Enéas conseguiu surpreender os ocidentais ao fingir uma retirada, depois marchou com o restante das tropas pelos pântanos para atacar o inimigo por um flanco desprotegido pelos nahualli — os terríveis feiticeiros ocidentais, aqueles que chamavam o Ilmodo de X’in Ka.

Hereges, eles eram. Falsos ténis que adoravam falsos deuses. Pensar nos nahualli enfurecia Enéas.

Ele conseguiu infligir grandes baixas no flanco dos ocidentais e manter a posição até a chegada de reforços. Como recompensa por suas ações, Enéas foi promovido a o’offizier; poucos meses depois, após a Campanha dos Brejos Profundos, o a’offizier ca’Matin disse que a Gardes a’Liste promovera sua família a co’.

Quando o período de serviço militar terminasse, daqui a um ano, após voltar para Nessântico, Enéas prometeu a Cénzi que daria baixa na Garde Civile e se ofereceria para o treino como téni, mesmo que ele fosse muito mais velho do que os acólitos usuais. Enéas tinha certeza de que isso era o que Cénzi queria dele.

A Guerra dos Hellins vinha sendo boa para Enéas, embora não para os Domínios.

Ao menos vinha sendo assim até essa sombra surgir. Esse arrepio na espinha.

Não é uma premonição. É apenas medo...

Ele sentiu medo antes. Todo soldado sentia medo, a não ser que fosse um completo tolo, mas Enéas nunca tinha sido tocado pelo sentimento dessa forma. O medo estremecia os ossos na carne; fazia o sangue zunir nos ouvidos. O medo transformava as entranhas em água podre e marrom. O medo fazia a arma tremer na mão. Mas Enéas não estremeceu, o estômago estava calmo, e a ponta da espada não tremeu em sua mão.

Aquilo não era medo — ou nenhum tipo de medo que tivesse sentido antes. Aquilo o preocupava mais que tudo.

O que é isso que o Senhor me manda, Cénzi? Diga-me, para que eu possa Lhe servir como o Senhor quiser...

— O’offizier co’Kinnear! — vociferou o a’offizier ca’Matin, e Enéas balançou a cabeça para afastar os pensamentos. Ele prestou continência ao offizier superior, que já estava montado no cavalo de guerra. — Preciso que o senhor entre com seus homens no flanco direito do inimigo; empurre-os para dentro do vale para que os ténis-guerreiros cuidem deles. Não devemos nos preocupar com os nahualli; os batedores disseram que eles ainda estão lá atrás, perto do Tecuhtli no lago Malik. Compreendido?

Enéas concordou com a cabeça.

— Ótimo — falou ca’Matin. — Então vamos começar. Pajem, diga aos corneteiros para anunciar o avanço. — O garoto a quem o a’offizier se dirigiu correu para a colina onde as trompas e bandeiras de sinalização estavam concentradas enquanto ca’Matin cumprimentava Enéas com o sinal de Cénzi, que ele devolveu solenemente e com devoção. — Que a fortuna de Cénzi esteja com o senhor, Enéas — disse o a’offizier.

— E com todos nós — respondeu Enéas com fervor.

Ca’Matin puxou as rédeas e foi embora a meio galope, o poderoso cavalo de guerra atravessou a grama alta com cuidado na direção do centro das fileiras onde os estandartes dos Domínios tremulavam com a brisa da tarde.

As cornetas soaram então, estridentes e altas. O chamado pairou diante deles em desafio aos ocidentais, e o som de armas batendo contra armaduras ecoou rapidamente. Enéas pegou as rédeas do próprio cavalo de guerra das mãos de um pajem à espera e montou. Seus e’offiziers olharam para ele com expectativa. — Façam suas pazes com Cénzi — disse o o’offizier. — É chegado o momento.

Enéas ergueu a mão para sinalizar na direção do flanco direito e dos morros íngremes ali.

Um bramido respondeu ao o’offizier, o grito de mil gargantas. Eles começaram a se mover, primeiro lentamente, depois mais rápido, até correrem impetuosamente na direção das lanças do inimigo. Enquanto investiam, o fogo mágico dos ténis-guerreiros na retaguarda passava estridente por cima da cabeça de Enéas e de suas tropas, acertando as fileiras da vanguarda das forças ocidentais e abrindo buracos nas fileiras irregulares. Não pareceu haver uma resposta dos nahualli; Enéas achou que isso faria o medo desagradável ir embora, mas a sensação permaneceu.

Éneas e seus homens avançaram pelas brechas fumegantes. O choque de aço contra aço ecoou dos flancos dos morros verdejantes, assim como os gritos dos feridos que caíram debaixo dos cascos dos cavalos de guerra que eles montavam. Éneas atacou uma lança curta que foi estocada em sua direção, afastou a ponta serrada com um golpe e cortou com o sabre a mão que empunhava a arma. O sangue jorrou e o rosto selvagem abaixo dele caiu. O cavalo avançou, e Enéas atacou os ocidentais de ambos os lados, protegidos por placas peitorais de bambu e tecido grosso com pequenos anéis de latão costurados. Eles usavam elmos decorados com plumas de pássaros muito coloridos, a pele avermelhada era pintada com faixas laranjas e amarelas, que faziam os rostos parecerem com crânios, ou era tatuada com linhas rubro-negras. Eram oponentes ferozes, os ocidentais, e nenhum soldado dos Domínios que os encarou ousava menosprezar suas habilidades e bravura. No entanto, eles tinham dado espaço agora — o que era estranho — e recuaram na direção da massa principal do exército. Enéas viu uma escuridão debaixo dos pés calçados com sandálias dos inimigos: o solo diretamente em frente a ele parecia um círculo de areia, mas aquela areia era tão negra quanto restos de lenha queimada.

A inquietação que afligiu Enéas antes da batalha aumentou e tornou-se um frio mortal dentro dos pulmões, de maneira que ele teve dificuldade para respirar e a espada pareceu como um peso de chumbo nas mãos. Ele obrigou o cavalo a entrar na areia e, ao fazer isso, berrou: um grito sem palavras para banir a sensação com barulho e fúria.

Éneas teve como resposta um som que nunca tinha ouvido antes.

O som... era como se um dos moitidis da terra — os filhos indignos de Cénzi — tivesse soltado um grito forte e sobrenatural, e fez com que Enéas girasse a cabeça para esquerda, na direção de sua origem. Um fogo laranja e uma fumaça negra e desagradável foram cuspidos do chão. Punhados de terra caíram em volta do o’offizier como uma chuva sólida que respingou sobre ele, e com a terra... e com a terra havia pedaços de corpos. Uma mão, ainda segurando uma espada quebrada, quicou no pescoço do cavalo de Enéas e caiu no chão. Ele olhou para o objeto ensanguentado. Então ouviu os gritos, com atraso.

— São os nahualli! Feitiçaria! — gritou Enéas para avisar as tropas, para a mão horrível que caiu do céu.

O o’offizier recebeu como resposta um rugido ainda mais alto que o primeiro, uma explosão cuja luz o cegou e a força arrancou seu corpo da sela e do cavalo. Um semideus ergueu Enéas — ele pareceu levitar por um instante ou dois: isso... isso é a premonição e o aviso de Cénzi... — e jogou o o’offizier de volta para a terra como se estivesse com nojo.

A terra levantou-se para recebê-lo.

Ele não se lembrou de mais nada depois disso.

 

Karl ca’Vliomani

KARL SEGUROU FIRME O COLAR na mão: uma concha de pedra cinza e polida que ele dera para Ana há muito tempo. O colar estivera no pescoço da archigos quando ela morreu; Sergei dera o objeto para ele. Havia manchas do sangue de Ana nos sulcos profundos. Karl apertou os dedos em volta da concha e sentiu as bordas duras forçarem a palma da mão. A dor não importava; significava que ele ainda conseguia sentir algo além do vazio que o tomava agora.

Quem fez isso? Por que matariam Ana?

Karl perdeu muitas pessoas de que gostava ao longo dos anos. O embaixador era tomado pelo sofrimento, tristeza e, às vezes, raiva diante da morte delas. Karl acordava à noite com a certeza de que tinha ouvido suas vozes ou pensando “ah, hoje tenho que visitá-lo ou visitá-la...”, apenas para lembrar que a pessoa em mente foi embora para sempre, de maneira irrevogável.

Isso... isso era pior do que qualquer uma daquelas mortes. Isso era uma facada no coração, e ele sentiu o sangramento por dentro.

Será que consigo sobreviver a isso? Perdi minha melhor amiga, a mulher que eu amo...

Karl estava sentado na frente do templo, com o regente Sergei e o kraljiki Audric à sua esquerda, e o recém-empossado archigos Kenne e os a’ténis da Fé à sua direita. Kenne foi amigo e aliado de Ana desde o início, quando ambos fizeram parte da equipe do archigos Dhosti. Agora, parecendo duas décadas mais velho do que sua idade de verdade, de cabelos brancos e mãos que tremiam com uma eterna paralisia, Kenne parecia extremamente pouco à vontade com a responsabilidade confiada a ele. O archigos debruçou-se sobre Karl e deu um tapinha em sua mão. Disse algo que o embaixador não conseguiu ouvir contra o canto do coro: “Longo lamento”, do compositor ce’Miella. As palavras que Kenne realmente falou não importavam: Karl concordou com a cabeça porque sabia que era a reação esperada.

No banco diretamente atrás deles, no meio dos ca’ e co’, estavam Varina e Mika ci’Gilan; como Varina, Mika também era um amigo de longa data de Karl e Ana. Ele era o líder local da facção dos numetodos em Nessântico e dirigia a pesquisa da seita aqui. A mão de Varina tocou o ombro de Karl; sem olhar para trás, o embaixador a cobriu com a própria mão antes de deixá-la cair no colo como se estivesse morta. Os dedos de Varina apertaram o ombro de Karl, e sua mão permaneceu ali.

O gesto tinha a intenção de confortá-lo, ele sabia, mas era simplesmente um peso morto.

Quem fez isso? Karl ouviu uma dezena de rumores. Previsivelmente, alguns culpavam os numetodos. Outros, Firenzcia. Alguns apontavam a facção da fé concénziana de Brezno. A história mais absurda dizia que o assassino, conhecido como a Pedra Branca, era o responsável, que havia uma pedrinha branca no olho esquerdo de Ana quando ela foi encontrada, a assinatura da Pedra Branca.

O último rumor certamente não era verdade. Porém, os outros... Karl não sabia, mas jurou que descobriria.

Às vezes ele invejava o consolo da fé que Ana tinha. Karl e ela até mesmo conversaram a respeito disso na noite em que ele descobriu que Kaitlin estava morta: a mulher com quem Karl havia se casado e que dera à luz seus dois filhos na Ilha de Paeti. Ela recusou-se terminantemente a vir a Nessântico com o marido. Kaitlin sabia da profunda amizade entre ele e Ana; assim como Karl também tinha certeza de que a esposa sabia que — apesar das promessas e garantias dele — havia mais do que amizade ali, pelo menos para o embaixador numetodo.

Ele nunca fora capaz de mentir facilmente para Kaitlin. Karl dizia para si mesmo que amava a esposa, mas também nunca fora realmente capaz de mentir para si mesmo.

Na noite em que recebeu a terrível carta de Paeti com a informação de que Kaitlin tinha adoecido e morrido, ele ficou arrasado. Karl nunca soube exatamente como Ana soube da notícia, mas ela o visitou naquela noite. A archigos o alimentou, o abraçou, deixou que gritasse, gemesse, berrasse e sofresse. Mais que isso, ela jamais tentou oferecer para Karl o consolo da fé como teria feito com qualquer um de seus seguidores. Ela jamais mencionou Cénzi, não até ele mencionar enquanto secava as lágrimas com a manga da bashta...

— Eu invejo você — disse Karl.

Os dois estavam sentados ao lado das chamas que ela acendera na lareira. O chá fervia lentamente em uma chaleira. A madeira estava molhada; ela assobiava e estalava sob o ataque das chamas e cuspia jatos rodopiantes de cinzas de tom vermelho-alaranjado chaminé acima.

Ana ergueu uma sobrancelha na direção de Karl.

— Você acredita que Cénzi leva as almas daqueles que morrem — falou o embaixador. — Você acredita que os mortos continuam a existir dentro Dele, e que é possível um dia encontrá-los novamente. Eu... — Lágrimas ameaçaram cair novamente, e foram contidas à força por Karl. — Eu não tenho essa esperança.

— Ter fé não leva a dor embora — disse Ana. — Ou leva muito pouco. Nada pode aliviar o sofrimento e a perda que todos nós sentimos: nem a fé, nem o Ilmodo. O tempo, talvez, consiga dar jeito, e, ainda assim, apenas diminui a tristeza. — Ela enrolou a manga do robe na mão, pegou a chaleira no suporte e serviu a bebida nas xícaras. Passou para Karl o jarro de mel. — Eu ainda me lembro da minha matarh. Às vezes, tudo volta à mente, tudo que senti quando ela morreu, como se tivesse acontecido ontem. — Ana passou os dedos na bochecha de Karl, que sentiu a maciez contra a barba por fazer. — Isso vai acontecer com você também, infelizmente.

— Então para que serve a sua fé, Ana?

Ela sorriu, como se estivesse à espera da pergunta. — Fé não é um bem. A pessoa não a compra porque ela vai fazer isto ou aquilo. A pessoa acredita ou não, e a crença oferece o que oferece. Você não tem fé, meu amor; Cénzi sabe que eu lhe daria fé se pudesse. Eu certamente conversei o bastante com você a respeito disso ao longo dos anos. Vocês, numetodos... vocês tentam envolver o mundo em razão e lógica e, portanto, a fé vira pó sempre que vocês a tocam, porque tentam impor racionalidade sobre ela. Você vai fazer isso com Kaitlin também, vai tentar encontrar razões e lógica na morte dela. — Ana tocou Karl novamente. — Não há razão para ela ter morrido, Karl. Não há lógica nisso. Apenas aconteceu, e não teve nada a ver com você ou com seus sentimentos por ela, ou com o que aconteceu entre vocês dois.

— Nem com a vontade de Cénzi?

Ela empinou o queixo e deu um sorriso triste para Karl. O rosto de Ana foi banhado pela luz quente e amarela da lareira. — Nem mesmo isso. É rara a pessoa com quem Cénzi se importa a ponto de mudar o resultado dos dados rolados pelo moitidi do destino. Era a hora de sua Kaitlin. Só isso. Não é culpa sua, Karl. Não é.

Isto aconteceu há nove anos. Ele viajou de volta para Paeti a fim de ver a sepultura de Kaitlin e estar com os filhos. Karl até trouxe Nilles e Colin para Nessântico quando retornou no ano seguinte. Nilles ficou dois anos com o vatarh, Colin ficou quatro, até que eles atingiram a maioridade, aos 16 anos. Com o tempo, ambos deixaram a cidade para retornar à Ilha de Paeti. Nilles já tinha dado uma neta a Karl — com três anos agora — que ele ainda precisava conhecer.

Karl ficou aqui porque seu trabalho era nos Domínios, dizia ele para qualquer um que perguntasse. Porém, na verdade, era porque Ana estava aqui. Havia aqueles que sabiam disso, mas não eram muitos e fingiam não ver.

A mão de Varina apertou o ombro de Karl novamente e se afastou.

Karl olhou fixamente para o corpo de Ana, embrulhado em uma mortalha no altar de pedra, e para a falange de seis ténis-bombeiros reunidos em um círculo em volta dela. O cadáver estava enrolado sob camadas de uma seda verde bordada com linhas metálicas douradas, que reluziam sob a luz multicolorida do vitral das janelas do templo; incensários fumegavam pelo altar e envolviam os raios de luz com fumaça aromática. Karl não conseguia acreditar que era Ana embrulhada em exposição ali. Não acreditaria. Era outra pessoa qualquer. A memória que ele tinha da luz, do bramido impactante, do corpo sendo dilacerado, do sangue, da poeira negra... Era falsa. Tinha que ser falsa. Mesmo o pensamento era doloroso demais para suportar.

A morte de Kaitlin, de sua família, de todos os outros que faleceram ao longo das décadas: nenhuma doeu como esta. Nenhuma.

Alguém matou a pessoa que Karl mais amava no mundo, acabou com uma mulher que lutou mais do que qualquer um desde a kraljica Marguerite para manter a paz nos Domínios, que acreditava em reconciliação antes de confronto, que tinha o potencial de reunir as duas metades partidas dos Domínios e da fé concénziana. Não haveria paz para Karl até que soubesse quem fez isso e até que essa pessoa estivesse morta. Se houvesse vida além da morte, como Ana acreditava, então Karl deixaria que a alma do assassino fosse condenada a cuidar de Ana pela eternidade. Se houvesse deuses, se Cénzi realmente existisse, se houvesse justiça após a morte, então era isso que deveria acontecer.

Ele teria fé nisso: uma fé sombria, implacável e intransigente.

O archigos Kenne deu um tapinha na mão de Karl e sussurrou mais palavras que ele não conseguiu ouvir. O ombro do regente Sergei estava pressionado contra o esquerdo do embaixador. O kraljiki Audric ofegou do outro lado do regente, sua respiração difícil era mais alta que o cântico dos ténis. Karl ouviu Varina chorar baixinho no banco atrás dele.

Os ténis-bombeiros agitaram-se em volta do corpo embrulhado em pano verde. As mãos moveram-se na dança do Ilmodo, as vozes ergueram-se em uníssono em um cântico que lutou contra as vozes etéreas do coro. Eles espalmaram bem as mãos como em uma benção, e a chama feroz do fogo mágico irrompeu em volta do corpo de Ana. A onda de calor das chamas mágicas passou por eles, selvagem e implacável. Não havia fagulhas, nem pira alimentando as labaredas: enquanto os corpos dos kralji e dos ca’ e co’ queimavam em chamas alimentadas por madeira e óleo, os ténis queimavam seus próprios mortos com o Ilmodo — rápida e furiosamente. O fogo do Ilmodo consumiu o corpo no espaço de alguns instantes, o tecido verde metálico ficou preto instantaneamente, o brilho do calor era tão intenso que o corpo de Ana parecia se mexer ali dentro. Enquanto Karl observava, conforme seu corpo recostou-se por instinto contra o ataque violento do calor, Ana foi levada.

As chamas morreram abruptamente quando o coro encerrou a canção. O ar frio voltou a correr em volta deles, um vento que desmanchou penteados e tremulou roupas. Agora no altar não havia nada além de cinzas e alguns fragmentos de ossos.

A prisão mortal de Ana sumiu.

— Ela voltou para as mãos de Cénzi agora — falou o archigos Kenne para Karl. — Ele dará consolo para Ana.

E eu darei algo melhor que consolo para ela. Ele aquiesceu em silêncio para o archigos. Darei vingança.

 

Allesandra ca’Vörl

— NÃO FOI um sinal.

Fynn socou com força o braço da cadeira. Os criados postados ao longo da parede, de prontidão para servir o jantar, tremeram com o som. A longa cicatriz que descia pelo lado direito do rosto ficou branca contra o rosto corado. — Eu não me importo com o que dizem. O que aconteceu foi um terrível acidente. Nada mais. Não foi um sinal.

— Claro que você está certo, irmão — falou Allesandra, para acalmá-lo. Ela fez uma pausa por um instante e gesticulou para os criados magyarianos: os dois irmãos ceavam nos aposentos de Allesandra no palácio. Os criados se aproximaram e serviram sopa nas tigelas e encheram as taças de vinho. Fynn estava sentado à cabeceira; Allesandra, ao pé da mesa. O archigos Semini e a esposa estavam à direita de Fynn; seu filho, Jan, à esquerda.

A própria Allesandra tinha ouvido alguns dos rumores. O hïrzg Jan está irritado que Fynn tomou a coroa, e não sua filha... A alma do hïrzg não consegue descansar... Ouvi da parte de um criado do palácio que seu fantasma ainda anda pelos salões à noite, gemendo e gritando como se estivesse furioso... Havia dezenas de histórias que surgiam por toda Brezno, deturpadas dependendo dos interesses de quem as espalhasse, e que ficavam maiores e mais absurdas a cada vez que eram contadas. Cénzi manda um aviso ao hïrzg de que os Domínios e a Fé devem se unir novamente... As almas de todos aqueles que o hïrzg matou — os numetodos, os nessânticos, os tennsha — o perseguem e não permitem que ele descanse... Dizem que, quando o selo de pedra caiu, aqueles na câmara ouviram a voz do velho hïrzg amaldiçoar Firenzcia...

A sopa foi servida e o silêncio durou tempo demais. Allesandra ouviu a respiração dos criados e o barulho distante e abafado do cozinheiro e dos funcionários da cozinha no andar debaixo. — Eu soube que o outro lanceiro também morreu — ela comentou quando ficou claro que ninguém mais estava disposto a começar uma conversa.

Fynn olhou feio para a irmã do outro lado da mesa e falou — Isso foi uma benção de Cénzi. O homem jamais teria voltado a andar. O curandeiro disse que a espinha estava quebrada; se eu fosse ele, preferiria morrer a viver o resto da vida como um aleijado inútil.

— Tenho certeza de que ele tinha a mesma opinião que você, irmão. — Ela manteve o tom de voz cautelosamente neutro. — E tenho certeza de que o archigos fez o possível para aliviar seu sofrimento. — Outra pausa. — Até onde a Divolonté permite, é claro — acrescentou.

Francesca deixou a colher bater na mesa ao ouvir isso. — A senhora pode ter sido maculada pelas crenças da falsa archigos durante seus anos com ela, a’hïrzg — declarou ela com frieza —, mas eu lhe garanto que meu marido não se maculou. Ele jamais...

— Francesca! — A bronca de Semini fez Francesca fechar a boca como uma carpa agonizante na margem de um rio. Ele olhou fixamente para a esposa, depois levou as mãos entrelaçadas à testa ao se voltar para Allesandra. Semini sustentou o olhar da a’hïrzg. Allesandra sempre achou que o archigos tinha belos olhos: poderosos e encantadores. Também notou que, quando ela estava em um ambiente, Semini geralmente prestava atenção nela. Isso nunca incomodou Allesandra, que gostava da atenção dele. A a’hïrzg pensou, na época em que seu vatarh finalmente pagou o resgate por ela, que o hïrzg Jan poderia tê-la casado com Semini, se o archigos já não estivesse comprometido com Francesca. Este teria sido um casamento poderoso, que permitiria reunir os poderes políticos e religiosos do estado, e Semini poderia ter sido alguém que ela viesse a amar, também. Mesmo agora... Allesandra afastou essa ideia rapidamente. Ela teve amantes durante o casamento, sim, como sabia que Pauli também tinha, mas sempre com cautela. Um caso com o archigos... isso seria difícil de esconder.

— Eu peço desculpas, a’hïrzg — disse Semini. — Às vezes, hã, a devoção da minha esposa pela Fé faz com que ela fale com muita grosseria. Eu realmente dei ao pobre lanceiro o consolo que pude, a pedido do hïrzg. — Ele então se dirigiu a Fynn. — Meu hïrzg, o senhor não deveria se preocupar com as fofocas da ralé. Na verdade, eu deixarei claro na minha próxima Admoestação que aqueles que acreditam que existem portentos nesse acidente horrível estão enganados, e que esses rumores absurdos são simplesmente mentiras. Já mandei começarem a investigar quem está espalhando essa fofoca sórdida. Eu diria que, se a Garde Hïrzg levasse alguns deles sob custódia, especialmente alguns do baixo escalão, e... hã, os convencesse a desmentir publicamente antes de serem executados por traição, isto certamente serviria de lição para os outros. Acho que veríamos que toda essa conversa sobre o que aconteceu no enterro de seu vatarh desapareceria tão rápido quanto neve em Daritria.

Francesca concordava com a cabeça ao ouvir as palavras do marido. — Nós devemos tratar essas pessoas da mesma maneira que trataríamos os numetodos — aquiesceu ela. — Da mesma forma que os numetodos são traidores da Fé, esses fofoqueiros são traidores de nosso hïrzg. Alguns corpos balançando na forca calarão a boca do populacho. — Ela olhou para Allesandra. — A senhora não concorda, a’hïrzg? — perguntou Francesca com voz gentil e ávida demais. A mulher chegou mesmo a se debruçar sobre a mesa, o que enfatizou a corcunda.

— Acho que é perigoso igualar fofocas com heresias, vajica ca’Cellibrecca — ela começava a dizer com cautela, mas Jan a interrompeu.

— Se você punir as pessoas por boataria, vai convencê-las de que os rumores são verdadeiros — disse o filho de Allesandra, as primeiras palavras que Jan disse desde que se sentaram à mesa, e deu de ombros quando os demais olharam para ele. — Bem, é verdade — insistiu. — Se o senhor der o sermão que sugere, archigos, estará apenas atraindo mais atenção para o que aconteceu, o que fará as pessoas acreditarem ainda mais nos rumores. É melhor não dizer, nem fazer nada; todo esse falatório vai passar por conta própria quando nada mais acontecer. Toda vez que um de nós repete a fofoca, mesmo que para negá-la ou refutá-la, nós fazemos com que pareça mais real e mais importante do que ela é.

Allesandra acompanhou o olhar de Jan deslizar de Semini para os demais à mesa. O archigos estava furioso, com as sobrancelhas baixas como nuvens carregadas sobre aqueles olhos cativantes; Francesca estava boquiaberta, como se estivesse atordoada e sem palavras diante da insolência do garoto; ela soltou uma tosse de desdém e abanou uma mão parecida com uma garra na direção de Jan, como se afastasse a praga de um mendigo. Fynn encarava a toalha de mesa diante dele. — É melhor não dizer e não fazer nada — repetiu Jan no silêncio, com a voz mais fraca e vacilante agora — ou o que aconteceu vai virar um sinal. Todos os senhores transformarão o boato em um sinal.

Allesandra tocou no braço do filho: foi o que ela teria dito, embora de uma maneira menos diplomática. — Muito bem dito — sussurrou Allesandra para Jan. Ele talvez tivesse sorrido momentaneamente; era difícil dizer.

— Então, se você fosse o hïrzg, não faria nada? — falou Francesca. — Então agradeçamos a Cénzi por você não ser, criança.

O que fez Jan erguer a cabeça novamente e responder — Se eu fosse o hïrzg, pensaria que esses rumores não valem o meu tempo. Há eventos mais importantes que eu consideraria, como a morte da archigos Ana, ou a guerra nos Hellins que consome os recursos e a atenção de Nessântico, e o que tudo isso significa para Firenzcia e a Coalizão.

Francesca olhou com desdém novamente. Ela voltou a atenção para a sopa, como se o comentário de Jan não merecesse ser levado em consideração. Semini balançava a cabeça e olhava feio para Allesandra como se ela fosse diretamente responsável pela impertinência de Jan.

Allesandra imaginou que Fynn estivesse irritado sob a carranca que fazia, mas o irmão a surpreendeu e quebrou o silêncio incômodo. — Eu acho que o jovem está certo — disse Fynn, que deu para Jan um sorriso distorcido pela cicatriz no rosto. — Eu odeio pensar em ouvir os boatos por outro instante sequer, mas... você está certo, sobrinho. Se não fizermos nada, a boataria sumirá em uma semana, talvez até mesmo em alguns dias. Talvez eu devesse tornar você meu novo conselheiro, hein?

Jan ficou radiante com o elogio de Fynn enquanto Francesca se recostou abruptamente com a testa franzida. Semini tentou parecer despreocupado. — Você criou um jovem inteligente, irmã — falou Fynn para Allesandra. — Ele é tão ousado quanto eu gostaria que meu próprio filho fosse. Devo conversar mais com você, Jan, e sinto muito por não conhecê-lo tão bem quanto um onczio deveria. Vamos começar a retificar isso amanhã. Vamos caçar depois das reuniões da tarde, eu e você. Que tal?

— Sim! — disparou Jan, de repente criança novamente, recebendo um presente inesperado. Então ele pareceu perceber como soou jovem e concordou solenemente com a cabeça. — Eu gostaria muito, onczio Fynn — falou com a voz grave. — Matarh?

— O hïrzg é muito gentil — disse Allesandra sorrindo enquanto a suspeita martelava em sua cabeça. Primeiro o vatarh, agora Fynn. O que o desgraçado pensa que vai ganhar com isso? Será que está apenas tentando me aborrecer ao roubar a afeição de Jan? Estou perdendo meu filho, e quanto mais forte tento me agarrar a ele, mais rápido ele vai escapar... — Parece uma ideia maravilhosa — falou ela para Jan.

 

A Pedra Branca

HAVIA ASSASSINATOS FÁCEIS, e havia os difíceis. Este foi um dos fáceis.

O alvo era Honori co’Belgradi, um comerciante de mercadorias das Magyarias, e um mulherengo que cometera o erro de dormir com a esposa da pessoa errada: a esposa do cliente da Pedra Branca.

— Eu vi o sujeito cobrir minha mulher — disse o homem para Pedra Branca com a voz trêmula de raiva diante da lembrança. — Eu o vi possuir minha esposa como um animal, e eu a ouvi chamar seu nome no momento de desejo. E agora... agora ela está grávida, e eu não sei se a criança é minha ou... — Ele se interrompeu, com a cabeça baixa. — Mas vou garantir que ele não faça isso com nenhum outro marido, vou garantir que a criança jamais seja capaz de chamá-lo de vatarh...

Relacionamentos e desejo eram responsáveis por metade do trabalho da Pedra Branca. Ganância e poder respondiam pelo resto. Jamais faltou gente à procura da Pedra Branca; se a pessoa precisava encontrá-la, ela achava um jeito.

Honori co’Belgradi era um sujeito com hábitos, e hábitos geravam uma presa fácil. Pedra observou o comerciante por três dias, e o ritual do homem jamais variava por mais que uma marca da ampulheta. Ele fechava a loja em Ville Serne, uma cidade a meio dia de cavalgada ao sul de Brezno, depois ia a uma taverna na esquina da próxima rua. Ficava por lá até por quatro viradas da ampulheta, após a Terceira Chamada, e então se dirigia aos aposentos onde a mulher — a esposa do cliente da Pedra — esperava pela aventura noturna.

A caminho daqueles aposentos, Honori passava pelo beco onde a Pedra esperava agora. Ela já era capaz de ouvir os passos no ar fresco da noite. — Honori co’Belgradi — chamou a Pedra quando a silhueta do homem passou pela boca do beco. O comerciante parou com uma expressão cautelosa, depois olhou com muito interesse quando a Pedra ficou sob a luz das lâmpadas mágicas da rua.

— Você me conhece? — perguntou co’Belgradi, e a Pedra deu um sorriso gentil.

— Conheço. E queria conhecer melhor, meu amigo. Você e eu, nós temos um negócio para acertar.

— O que quer dizer? — indagou co’Belgradi quando a Pedra se aproximou. Tão fácil... A apenas um passo de distância. A uma facada de distância, e co’Belgradi inclinou a cabeça, intrigado.

— Assim — respondeu a Pedra. Ela olhou para a rua, viu que ninguém observava, e deu um tapinha no ombro de co’Belgradi, como se o homem fosse um amigo que não via há anos. Ao mesmo tempo, a mão com a adaga envenenada cravou a arma com força debaixo das costelas do comerciante em direção ao coração. Co’Belgradi soltou um grito sufocado pelo sangue, e de repente o corpo ficou pesado contra a compleição atlética do assassino. A Pedra meio arrastou, meio carregou o moribundo co’Belgradi para dentro do beco e deitou o corpo rapidamente no chão. Os olhos do comerciante estavam abertos, ela tirou duas pedras de um bolso na capa: ambas brancas sob a luz fraca do beco, embora uma estivesse lisa e polida como se fosse muito manuseada. O assassino colocou as pedras sobre os olhos abertos de co’Belgradi e pressionou fundo dentro das órbitas. A pedra do olho esquerdo foi deixada ali; já a pedra reluzente, branca e lisa que estava sobre o olho direito (o olho do ego, aquele que guardava a imagem do rosto que o olho viu no último momento), esta a Pedra Branca pegou novamente e recolocou em uma bolsinha de couro pendurada no pescoço.

— E agora eu possuo você para sempre — sussurrou a aparição conhecida como a Pedra Branca.

Um instante depois, não havia mais ninguém vivo no beco, apenas um cadáver com uma pedrinha sobre o olho esquerdo: um contrato cumprido.


??? SUBSTITUIÇÕES ???

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Jan ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ESTA ERA UMA daquelas noites ruins.

Cada tomada individual de fôlego era uma luta. Audric tinha que forçar o ar velho e inútil para fora dos pulmões, e o peito doía a cada inalação, mas ele nunca conseguia aspirar ar suficiente. O kraljiki sentou-se na cama; sentiu que, se ficasse deitado, poderia sufocar. Os curandeiros do palácio agitaram-se em volta dele, com expressões de muita preocupação nos rostos — ainda que por medo do que poderia acontecer com eles se o kraljiki morresse sob seus cuidados —, mas Audric prestou pouca atenção neles, a não ser quando tentavam fazer com que tomasse uma poção ou inalasse a fumaça de alguma erva desagradável. Os braços estavam marcados por novas casquinhas; os curandeiros quase o deixaram sem sangue, e um deles estava abrindo um novo corte, mas Audric sequer fez uma careta. Seaton e Marlon, os camareiros de Audric, entravam e saíam correndo do quarto para pegar o que quer que os curandeiros pedissem a eles.

Toda a atenção de Audric estava voltada para a guerra com o fôlego. O mundo fora reduzido à batalha por cada inalação, pela tentativa de aspirar ar suficiente para os pulmões a fim de permanecer consciente. Os limites da visão ficaram escuros; ele apenas conseguia enxergar o que estava diretamente à sua frente. Sentia pouca coisa a não ser a eterna dor no peito.

Audric prestou atenção ao quadro da kraljica Marguerite sobre a lareira ao pé da cama. A mamatarh devolvia o olhar, o rosto pintado era completamente realista, como se a moldura dourada fosse uma janela por trás da qual a kraljica estivesse sentada. Ele podia jurar que a viu se mover ligeiramente contra o pano de fundo do Trono do Sol, que o próprio trono pintado reluzia com a luz do Ilmodo como o verdadeiro fazia sempre que Audric se sentava nele.

A archigos Ana nunca dera mais do que um olhar amargo para o quadro, que sempre parecia capturar o olhar de outros visitantes ao quarto de Audric. Uma vez, ele perguntou para a archigos por que ela dava tão pouca atenção à obra-prima. A archigos apenas balançou a cabeça e disse — Tem coisa demais de sua mamatarh naquele quadro. Eu sofro por vê-la presa ali. — Então Ana franziu a testa. — Porém, seu vatarh adorava a pintura, por seus próprios motivos.

Marguerite encarava Audric agora com seu olhar penetrante e avaliador. Ele esperou que o acesso passasse. A crise passaria; sempre passara. Precisava passar. A boca de Audric moveu-se em silêncio ao rezar para Cénzi para que o acesso passasse, para que o gigante invisível montado em seu peito e que amassava seus pulmões se levantasse lentamente e fosse embora, e que ele pudesse respirar facilmente outra vez.

Isso aconteceria. Precisava acontecer.

Sua mamatarh parecia acenar com a cabeça, como se concordasse.

Enquanto encarava o quadro, Audric mais ouviu do que viu o regente ca’Rudka irromper no quarto e afastar os curandeiros. Ele debruçou-se sobre a cama e afastou a fumaça desagradável dos incensários. — Tirem essas coisas daqui — rosnou Sergei. — A archigos Ana disse que a fumaça piora a respiração do kraljiki em vez de melhorar. E saiam daqui vocês também. — Os curandeiros afastaram-se entre murmúrios, dedos ensanguentados e barulho de frascos, e deixaram o regente sozinho com Audric. Não, não sozinho... Havia outra pessoa com ele. Relutantemente, Audric tirou o olhar do quadro e cerrou os olhos na escuridão.

O esforço provocou um gemido.

— Archigos... Kenne... — Cada palavra saiu depois de um fôlego, acompanhada por uma arfada agitada de ar; ele não conseguia fazer melhor do que isso.

— Kraljiki — falou o archigos. — Por favor, não se mexa. Eu vim rezar com o senhor. — Audric viu o archigos Kenne olhar com preocupação para o regente. — A archigos Ana tinha uma... relação especial com Cénzi que infelizmente poucos ténis conseguem igualar, mas farei o que for possível. Deite-se com o máximo de conforto que conseguir. Feche os olhos e não pense em nada além da respiração. Concentre-se apenas nisso...

A respiração estava rápida e ofegante. Ele sentiu o solavanco brusco do coração contra o espaço restrito das costelas. Só conseguiu tomar um gole mínimo do precioso ar. Audric fechou os olhos quando o archigos começou a rezar. A archigos Ana, quando o visitava, também rezava e colocava as mãos com delicadeza em seu peito. Era como se Audric pudesse senti-la dentro dele. O kraljiki ouvia a voz de Ana dentro da cabeça e sentia o poder do Ilmodo queimar no peito, consumir os bloqueios e permitir que ele respirasse plenamente outra vez. Ana envolvia Audric naquele calor interior, sua voz entoava e ao mesmo tempo falava dentro de sua cabeça. — Você vai ficar bem, Audric. Cénzi está com você agora, e Ele fará sua saúde melhorar novamente. Apenas respire devagar: respire fundo e bem. Isso, assim... — Dentro de poucos minutos, ele respiraria naturalmente e com facilidade mais uma vez, um alívio que, no início, durava meses, mas recentemente durava apenas algumas semanas.

Agora, com Kenne, Audric só ouvia as preces meio sussurradas pelo homem com os ouvidos. Não havia nada dentro. Não havia calor que se espalhava pelo peito. Havia apenas as preces de um velho, ditas por uma voz vacilante do lado de fora de Audric. Não havia sensação do Ilmodo, nem sinal do poder de Cénzi — ou talvez houvesse, só que era tão fraco que Audric mal conseguia sentir. Talvez houvesse calor, talvez a expansão e a contração dos pulmões estivessem um pouco mais fáceis. Audric tentou respirar fundo, mas o esforço provocou uma tosse seca e espasmódica que fez com que dobrasse o corpo na cama. Ele abriu os olhos, e viu Marguerite franzir a testa no quadro. Audric viu as gotículas de sangue que espirraram sobre o lençol.

— Você tem que lutar contra isso, Audric. Se você morrer, nossa linhagem morre, e com ela nosso sonho para Nessântico e os Domínios... — Ele viu os lábios pintados de Marguerite se moverem, ouviu a voz que sempre imaginou que ela tivesse. — Você tem que lutar contra isso. Eu vou ajudar você...

Sergei correu rapidamente para o lado de Audric, que sentiu a mão forte do regente em suas costas e ouviu sua voz chamar Marlon com rispidez. Deram um pano molhado em água fria para o kraljiki. Audric pegou com gratidão e levou o pano aos lábios. Sentiu o gosto doce da água. E sim, ele conseguia respirar um pouco melhor. — Obrigado, regente — falou o kraljiki. — Estou muito... melhor agora... archigos. — A própria voz soou distante e abafada, como se alguém meio que cobrisse seus ouvidos. Era a voz de Marguerite que soava mais claramente.

— Escute o que digo, Audric. Eu vou ajudar você. Escute a sua mamatarh...

O archigos Kenne assentiu com a cabeça, mas Audric apenas viu a dúvida nos olhos do homem. — Sinto muito, kraljiki. A archigos Ana... Eu sei que ela podia fazer mais pelo senhor.

Audric esticou o braço para tocar a mão do homem. A pele de Kenne era fria e seca como papel velho. — Eu vou ficar bem — disse o kraljiki. — Acho que... encontrei a solução.

O retrato de Marguerite dirigiu um sorriso sutil para o neto, e ele devolveu o gesto.

— Você não pode morrer porque tem muita coisa a fazer...

— Eu não posso morrer porque tenho muita coisa a fazer — falou Audric para ele, para os dois. Foi tanto uma promessa quanto uma ameaça.

 

Varina ci’Pallo

À ÉPOCA EM QUE ELA se juntou aos numetodos, quando era apenas uma humilde iniciada na sociedade deles e tinha acabado de conhecer Mika e Karl, a Casa dos Numetodos era um local decadente no centro do Velho Distrito, oculto pela pobreza e sujeira dos prédios do entorno.

Agora, a Casa dos Numetodos ocupava um belo prédio na margem sul, com um jardim, piso lustroso do lado de fora e portões que davam para a Avi a’Parete — um presente da archigos Ana e (com mais relutância) do kraljiki Justi pela ajuda dos numetodos em acabar com o cerco firenzciano à cidade em 521. As acomodações mais espaçosas e luxuosas ajudaram a tornar os numetodos mais aceitáveis para os ca’ e co’, mas também os deixou mais visíveis. No passado, eles reuniam-se em segredo, e a maioria dos integrantes mantinha a afiliação em segredo. Isso acabou. Varina não tinha dúvidas de que todos aqueles que cruzavam os portões eram observados pelo utilino e pela Garde Kralji, que constantemente patrulhavam a Avi, e de que a informação era transmitida ao comandante — e dele seguia para Sergei ca’Rudka, o Conselho dos ca’ e do kraljiki.

Os numetodos eram conhecidos — o que não era problema, desde que suas crenças fossem toleradas. Porém, com a morte de Ana, Varina não tinha mais certeza de quanto tempo essa situação duraria. Seus receios a levaram de volta à pesquisa...

Apesar dos rumores paranoicos entre os fiéis conservadores, grande parte da pesquisa dos numetodos não tinha nada a ver com magia: eles realizavam experiências de física e biologia; criavam belos e elegantes teoremas matemáticos; pesquisavam medicina; exploravam alquimia; examinavam livros empoeirados e cavavam antigos sítios arqueológicos para recriar a história. Mas, para Varina, era a magia que a fascinava. O que a intrigava em particular era como a Fé, os numetodos e os ocidentais abordavam a conjuração de feitiços.

Os numetodos provaram há muito tempo — apesar da negação irritada e por vezes violenta da fé concénziana — que a energia do Segundo Mundo não precisava de crença em deus algum. Podia ser chamada de “Ilmodo”, “Scáth Cumhacht” ou “X’in Ka.” Não importava. Essa compreensão dissolveu quaisquer resquícios de fé que Varina tivesse quando se juntou aos numetodos.

“Conhecimento e compreensão podem ser moldados somente pela razão e lógica; só que não é algo fácil ou simples. As pessoas criam deuses para explicar o mundo de modo que não tenhamos a responsabilidade de descobrir as coisas por nós mesmos.” Foi o que ela ouviu Karl dizer em uma palestra há anos, quando ela considerou se juntar aos numetodos pela primeira vez. “A magia é uma manifestação tão religiosa quanto o fato de que um objeto solto da mão cairá no chão.”

Sim, tanto os ténis da fé concénziana quanto os ocidentais usavam cânticos e gestuais para criar a estrutura do feitiço, e, no entanto, cada um deles tinha uma “crença” diferente como base, que permitia que dominassem a energia da magia. O que os numetodos perceberam foi que os cânticos e gestuais usados pelos feiticeiros eram apenas uma “fórmula”. Uma receita. Nada mais. Falar essa sequência de sílabas com aquele conjunto de movimentos daria nesse resultado.

Mas os ocidentais... Varina não conheceu Mahri, o Maluco, mas Karl e Ana conheceram, e as histórias dos nahualli ocidentais dos Hellins apenas confirmavam o que eles disseram sobre Mahri. Os nahualli eram capazes de colocar os feitiços dentro de objetos, que depois podiam ser disparados por uma palavra, um gesto ou uma ação. Nem os ténis, nem os numetodos conseguiam fazer isso. Os feiticeiros ocidentais invocavam os próprios deuses para os feitiços, assim como os ténis faziam com os seus, mas Varina tinha certeza de que os deuses ocidentais eram tão imaginários e desnecessários quanto Cénzi e seu moitidi.

Se ela conseguisse aprender os métodos dos ocidentais, se fosse capaz de encontrar a fórmula das palavras e gestos corretos para colocar o Scáth Cumhacht dentro de um objeto inanimado, então ela poderia começar a replicar o que Mahri foi capaz de fazer. Ela vinha trabalhando nisso, de tempos em tempos, há anos. Agora a preocupação movia Varina mais do que nunca: preocupação com o significado da morte de Ana para os numetodos; com a imensa tristeza de Karl, que abalava Varina como se fosse sua.

Se ela não conseguia entender por que as pessoas faziam coisas tão terríveis umas com as outras, pelo menos tentaria compreender isso.

Varina estava em um cômodo quase sem mobília, nos níveis inferiores da Casa. Na mesa diante dela havia uma bola de vidro que Varina comprara de um vendedor no Mercado do Rio, pousada em um ninho de pano para que não rolasse. A bola era feita inabilmente: havia uma linha de pequenas bolhas de ar no interior e o vidro ao redor dela estava manchado e marrom, mas Varina não se importava — ela tinha sido barata. Varina entoou e mexeu as mãos: um simples e fácil feitiço de luz, um dos primeiros truques ensinados a um iniciado numetodo. Moldar o feitiço de luz não exigia esforço, mas colocá-lo dentro do vidro era bem, bem mais difícil. Era como empurrar um fio de cabelo por uma parede de pedra. Ela sentiu a fadiga minar sua força. Varina ignorou a sensação e concentrou-se na bola de vidro à sua frente, tentou imaginar o poder do Scáth Cumhacht entrando no vidro da mesma forma que ela teria colocado a energia dentro da própria mente, visualizou a luz potencial depositada em volta daquelas bolhas bem no fundo do vidro e colocou uma palavra ali que acionaria o feitiço.

O encantamento terminou; Varina abriu os olhos. Seus músculos tremiam como se ela tivesse corrido quilômetros ou levantado pesos por uma virada da ampulheta. Ela teve que fazer um esforço para continuar de pé. A bola estava apoiada na mesa, e Varina permitiu-se dar um sorrisinho. Agora, se...

A bola começou a vibrar sem ser tocada. Varina deu um passo para trás quando ela soou como uma taça de vidro batida por uma faca, houve um faiscar súbito de uma brilhante luz amarela e o globo estilhaçou-se. Ela sentiu uma lasca atingir seu braço erguido e gritou.

— Você está bem? — Varina escutou a voz atrás dela na porta: Mika. O líder dos numetodos entrou rapidamente no aposento, enquanto balançava a cabeça cada vez mais careca e esfregava a barba por fazer no queixo. — Você está sangrando, e parece que não dorme há uma semana. — Ele puxou uma cadeira até a mesa e ajudou Varina a se sentar.

Ela ergueu o braço, que parecia tão pesado quanto um bloco de mármore do Palácio do Kraljiki, e examinou o corte no antebraço. Era comprido, mas não fundo, e Varina fez uma careta ao puxar uma lasca de vidro da ferida. Um filete de sangue escorreu no braço próximo à mão, que ela ignorou. — Droga. — Varina fechou os olhos, depois abriu de novo com esforço para olhar a mesa: o globo havia se partido praticamente ao meio na linha de bolhas, e o pano de apoio estava cheio de cacos. — Eu cheguei tão perto.

— Eu estava vendo — disse Mika, que deu uma olhadela para o globo quebrado. — Pensei que você finalmente tivesse conseguido.

— Eu também pensei. — Varina balançou a cabeça. — Mas estou cansada demais para tentar novamente.

— Melhor assim. Eu desci para lhe dizer: Karl voltou para o próprio apartamento.

Varina inclinou a cabeça, intrigada. — Eu pensei que ele ficaria com você, Alia e as crianças por enquanto.

Mika deu de ombros. — Ele disse que estava bem, que precisava retomar a própria vida. Que precisava retomar os compromissos numetodos e o trabalho como embaixador.

— Você não parece acreditar nisso.

— Eu acho... — Mika cerrou os lábios finos. — Estas são desculpas. Karl está magoado e com raiva, e eu não tenho certeza do que ele vai fazer. Acho que Karl precisa de alguém ao lado dele, para conversar se ele quiser, para garantir que esteja bem e que não faça nenhuma estupidez. A morte de Ana abalou Karl mais do que ele admite.

Mika ficou em silêncio, e Varina sentiu que ele esperava por uma resposta. Mas estava difícil simplesmente manter a cabeça erguida. O sangue pingou do dedo para o chão; as metades partidas do globo de vidro reluziam de maneira acusadora para ela sob a luz da lamparina. — Acho que posso mandar Karoli ou Lauren visitá-lo — disse Mika em meio ao silêncio.

— Eu vou. Apenas dê-me alguns minutos. Tenho que me arrumar.

Mika sorriu e falou — Deixe-me ajudar você.

 

Jan ca’Vörl

JAN GOSTAVA DE FYNN. Ele não tinha certeza do que sua matarh pensaria a esse respeito.

Allesandra contou para o filho que ela nunca conheceu Fynn, que o irmão nasceu poucos meses depois que ela foi sequestrada pela archigos Ana da tenda do hïrzg Jan no campo de batalha. Quando era criança, Jan não tinha compreendido todas as implicações dessa situação; agora, ele achava que finalmente começara a entender a dinâmica do relacionamento entre irmã mais velha e irmão caçula, distorcido e desvirtuado pelo orgulho e pela vaidade do vatarh de Allesandra e Fynn. Ele entendia que sua matarh jamais se permitiria gostar de Fynn, nunca poderia tratá-lo como irmão, jamais confiaria nele.

Mas ele gostava do sujeito, seu onczio.

Fynn mandou um bilhete para Jan imediatamente depois da Segunda Chamada, para convidá-lo a se juntar a ele na reunião da tarde. Jan sentou-se ao lado de Fynn, que se inclinava para sussurrar comentários irônicos enquanto os vários ministros e conselheiros colocavam o novo hïrzg a par das novidades sobre a atual situação política. Helmad co’Göttering, comandante da Garde Brezno, relatou que houve um pequeno conflito com forças leais de Tennshah a leste do lago Cresci, facilmente debelada. (— Você devia ver como eles correm como cães açoitados quando veem soldados de verdade cavalgando entre suas cabanas. Todos eles têm medo de um bom aço firenzciano — disse Fynn baixinho no ouvido de Jan. — Minha própria espada tem manchas de sangue de incontáveis dezenas de soldados de Tennshah. No outono, se quiser, podemos passear pela região, e talvez colocar alguns desses rebeldes para correr nós mesmos.)

O starkkapitän Armen ca’Damont da Garde Civile firenzciana atualizou as informações sobre a guerra dos Domínios nos Hellins, a qual, se tudo o que o starkkapitän disse fosse verdade, não estava indo bem para os Domínios e o kraljiki. (— Os Domínios não sabem guerrear de verdade, Jan. Eles dependeram de Firenzcia para isso por tempo demais e esqueceram. Se nós pudéssemos mandar nossa Garde Civile e um batalhão de bons Lanceiros Vermelhos para lá por um mês, debelaríamos esses ocidentais de uma vez por todas.)

O archigos Semini especulou sobre quem o Colégio A’téni poderia nomear como novo archigos “daquela Fé falsa e desprezível em Nessântico” e teceu um longo e tedioso comentário sobre cada a’téni das principais cidades dos Domínios e seus relativos pontos fortes e fracos. Ele alegou que o a’téni ca’Weber de Prajnoli se tornaria o próximo archigos em Nessântico, em última análise. (— E, no fim das contas, não importa quem eles escolham, portanto todo esse esforço e conversa fiada é uma perda do nosso tempo, não é?)

Havia relatórios sobre a falta de comida na Magyaria Oriental (— Você comeu o suficiente no almoço, não é?), sobre práticas comerciais injustas entre Firenzcia e Sesemora (— Você acha isso tão chato quanto eu?), sobre o valor relativo das solas firenzcianas contra as solas dos Domínios (— Por Cénzi, acorde-me quando este aí terminar de falar, pode ser, sobrinho?). No fim, Jan já não escutava mais. Ao dar uma olhadela para Fynn, viu que os olhos do onczio também perderam o foco. Os dedos do novo hïrzg tamborilavam no tampo da mesa com impaciência, e ele remexia o corpo inquieto na cadeira. Quando a próxima ministra ficou de pé para dar seu relatório, Fynn ergueu a mão e disse — Chega. Mande-me o relatório que eu lerei. Tenho certeza de que é fascinante, mas meus ouvidos estão prestes a cair pelo uso exagerado, e eu prometi uma caçada ao meu sobrinho. Saiam!

Eles resmungaram baixinho, franziram a testa, mas todos fizeram uma mesura e saíram da sala. O hïrzg fez um gesto para que os criados em pé contra as paredes trouxessem comes e bebes. — Então... — falou Fynn enquanto os dois beliscavam os pães e frios e bebiam o vinho — a vida de um hïrzg é uma delícia, não é? Todo aquele falatório sem parar... Eu entendo por que o vatarh sempre ficava de péssimo humor antes dessas reuniões.

— Eu acho que o archigos Semini estava errado — disse Jan. Ele não tinha certeza por que disse isso; de alguma forma confiou que Fynn fosse dar ouvidos. A matarh sempre deu sermões, como se ela fosse uma professora e ele, o estudante; o vatarh estava mais preocupado com o próprio prazer do que escutar as opiniões do filho. O onczio Fynn, por outro lado, realmente deu ouvidos a ele na noite anterior, durante o jantar, enquanto os demais à mesa teriam preferido que ele ficasse calado. Então, agora, Jan falou o que pensava, apenas com a voz um pouco trêmula. — Ca’Weber não será nomeado archigos. O Colégio vai escolher Kenne ca’Fionta.

Fynn ergueu uma sobrancelha grossa e escura. — Por que você diz isso? Semini pareceu achar que ca’Fionta era o mais fraco do grupo.

— É exatamente por isso — respondeu Jan com mais avidez agora. Ele assinalou os argumentos com a ponta dos dedos. — O archigos Semini presumiu que o Colégio A’téni pensará como ele pensaria e escolherá a pessoa que ele escolheria. Eles não farão isso. O resto dos a’ténis está preocupado nesse momento: o assassinato da archigos Ana fez com que eles vissem que um archigos forte tem inimigos, e os a’ténis também se perguntam por quanto tempo a Fé pode se manter dividida, agora que a archigos Ana está morta. Então, eles escolherão Kenne: porque ele é fraco e porque é mais velho do que qualquer um dos a’ténis. E mesmo que Kenne seja uma má escolha, eles não terão que aguentá-lo por décadas.

Fynn riu. Ele bateu com a borda de sua taça na de Jan. Ao se inclinar na direção do sobrinho, o hïrzg passou um braço parrudo sobre seus ombros. — Muito bem dito, e veremos em breve se você está certo. O que mais anda escondendo? Vamos, você não pode esconder o resto de mim.

Fynn estava sorrindo. Jan sorriu de volta e sentiu apreço pelo homem. — O starkkapitän ca’Damont pode estar certo a respeito da guerra nos Hellins, mas ele não nota a importância da guerra. Com a Garde Civile dos Domínios concentrada naquele conflito e gastando recursos, dinheiro e soldados todo mês, eles não podem se voltar para leste com força alguma. Os Domínios estão em uma posição fraca de negociação contra a Coalizão; em termos militares, eles estão em uma posição ainda pior. Um hïrzg forte pode tirar vantagem disso, de uma forma ou de outra.

Fynn levantou ainda mais as sobrancelhas e deu um abraço apertado nos ombros de Jan. — Por Cénzi, eu deveria fazer de você meu novo conselheiro, sobrinho. Você tem a mente sutil de sua matarh.

Ele abraçou Jan novamente com um braço só, depois desmoronou na cadeira. — Ah! Eu gosto de você, Jan! Isso me faz pensar no que perdi com a minha irmã. — Fynn franziu a testa ao dizer isso e tomou outro gole de vinho. — Você sabia que eu sequer fazia ideia de que tinha uma irmã até mais ou menos os nove anos? O vatarh jamais a mencionou para mim uma vez sequer. Jamais. Não falou o nome dela uma vez que fosse; era como se Allesandra jamais tivesse existido para ele. Então, quando decidiu que finalmente pagaria o resgate por ela, o vatarh sentou-se comigo e me explicou que Allesandra fora levada pela archigos bruxa. Ele não me contou como esse fato acabou com a guerra com os Domínios; isso eu aprendi muito tempo depois. O vatarh sempre foi amargo a respeito daquilo, sua única derrota. Creio que Allesandra era o símbolo daquele fracasso para ele, por isso certamente casou a filha, assim que ela retornou. Eu nunca a conheci realmente...

O hïrzg tomou outro longo gole do vinho e bateu a taça na mesa com tanta força que Jan deu um pulo. O vinho derramou; a base da taça deixou uma mancha em formato de lua crescente na mesa.

— Agora vamos caçar! — declarou Fynn. Ele empurrou a cadeira e ficou de pé. — Ande, sobrinho. Vamos para a Encosta do Cervo.

 

Enéas co’Kinnear

SE ELE ESTAVA MORTO, a vida após a morte não era nada como a que os ténis prometiam aos fiéis.

A vida após a morte de Éneas era iluminada por uma luz fraca e avermelhada e fedia à carne podre e enxofre. O solo onde estava deitado era molhado e duro, com punhos de pedra cutucando suas costas. Os ténis sempre disseram que os males do corpo de uma pessoa seriam curados quando ela finalmente descansasse nos braços de Cénzi, que braços e pernas perdidos seriam restaurados, que não haveria mais dor.

Mas a respiração de Enéas tremeu nos pulmões, e, quando tentou se mover, a agonia fez com que ele berrasse.

Enéas ouviu asas baterem em resposta, pontuadas por grasnidos roucos de alerta. Ele piscou, e a vermelhidão acompanhou as pálpebras. Ergueu lentamente uma mão ferida e esfregou os olhos. O filtro vermelho clareou um pouco, e Éneas percebeu que olhava para uma paisagem iluminada pelo luar através de uma película viscosa de sangue, com a cabeça no solo lamacento. Uma montanha marrom erguia-se a um metro dedo de distância. Ele piscou novamente e franziu os olhos; era um cavalo caído e morto, seu cavalo de guerra. Cénzi, o Senhor me deixou vivo. Quando se deu conta disso, duas patas com garras apareceram no cume da montanha equina, acompanhadas por outro grasnido irritado, e Enéas ergueu o olhar para ver uma das aves carniceiras dos Hellins, a criatura que os soldados chamavam de estripadores: pássaros feios com uma envergadura da altura de dois homens ou mais, grandes bicos curvos em um rosto sem penas e branco como um fantasma, olhos sem expressão, como contas negras, e garras curvas para abrir os cadáveres que eles preferiam comer. Não havia nada como esses bichos nos Domínios.

O pássaro olhou fixamente para Enéas, como se observasse uma bela refeição posta diante de si. O o’offizier apoiou-se nos cotovelos; era o mais próximo que conseguiria chegar de se sentar. Irritado, o pássaro guinchou e foi embora voando. Enéas sentiu o vento desagradável provocado pelas asas.

Não morri. Não ainda. Louvado seja Cénzi.

Ele tentou se lembrar de como chegou ali, mas a cabeça estava confusa. Lembrava-se de ter falado com o a’offizier ca’Matin e do início da investida, a corrida morro abaixo em direção à força ocidental. Então... então...

Nada.

Enéas balançou a cabeça para desprender a memória. O gesto foi um erro. O mundo ao redor girou, a vermelhidão voltou, e ele sentiu uma pontada de dor nas têmporas. Ele se equilibrou antes que caísse no chão novamente e esperou que a terra parasse de girar. Novamente, fez um esforço para ficar sentado e tocou a cabeça com hesitação; o cabelo estava empastado com sangue seco e os dedos sentiram o contorno irregular de um corte comprido e profundo. Enéas começou a passar mal. Deixou a mão cair, fechou os olhos e respirou fundo várias vezes até que a náusea passasse, enquanto recitava a Prece da Aceitação para se acalmar. Abriu os olhos novamente e olhou em volta com cuidado.

Havia estripadores por toda parte; sob o fraco luar, o campo parecia vivo com eles e o solo corcovado com os morros escuros dos corpos dos companheiros de Enéas e seus cavalos caídos. O som repugnante, úmido e rascante dos pássaros comendo os corpos era um barulho que atormentaria seus pesadelos para sempre. Bem ao longe, abaixo do declive onde estava sentado, Enéas viu o brilho de uma fogueira, e ao redor dela as silhuetas escuras de gente se mexendo. Havia outro som, mais fraco: cantoria?

As figuras recortadas pelas chamas usavam acessórios com penas na cabeça, Enéas viu. Eles eram ocidentais, então. “Tehuantinos”, como se chamavam. Todos os corpos ao redor usavam os uniformes com detalhes dourados de Nessântico, agora pretos pelo sangue e pelo luar mortiço em vez do azul reluzente que deveriam ter.

Nós perdemos. Fomos massacrados aqui, e as pessoas em Munereo podem não saber o resultado ainda. Cénzi, é por isso que o Senhor me salvou, para que eu pudesse avisá-los...?

Enéas tentou se mexer; as pernas não quiseram cooperar, e ele percebeu que uma delas ainda estava presa debaixo do seu cavalo. Com o máximo de silêncio possível, Enéas empurrou a carcaça com a perna livre, e enfim a perna se soltou. O tornozelo estava inchado e sensível; Enéas não tinha certeza se poderia se apoiar nele.

O o’offizier encontrou a espada ao seu lado meio enterrada na lama. Enfiou a lâmina imunda na bainha presa ao cinto. Com uma careta, rastejou na direção das chamas, meio que se arrastando em volta do cavalo.

Parte de Enéas gritou em alerta. Ele ia na direção do inimigo; os tehuantinos o matariam se o vissem. Todos os a’offiziers contavam como os ocidentais percorreram o campo de batalha após o combate no lago Malik, como eles mataram todos os gardai que ainda estavam vivos mas aleijados ou gravemente feridos. Aqueles que estavam apenas levemente feridos foram levados como prisioneiros. Os rumores sobre o que os ocidentais tinham feito com eles eram muito, muito piores.

A fogueira — imensa e furiosa — estalava no pé da ladeira, e reunidos ao redor estavam os ocidentais: milhares deles, enquanto fogueiras menores pontuavam a paisagem depois do grande fogaréu onde o inimigo estava acampado. Enéas viu um grupo de cavalos atrelados de um lado da fogueira, um pouco distante dos ocidentais sentados em volta das chamas.

Se ele não podia andar, ainda podia cavalgar.

A jornada pareceu levar séculos. As estrelas deram voltas pela Estrela Velejante, a lua chegou ao ápice e começou a descer, os estripadores continuaram o festim sangrento. Exausto, Enéas descansou atrás da cobertura de uma pilha de toras. Os cavalos relincharam perto dali; ele sentiu o cheiro dos animais e ouviu seus movimentos agitados. A cantoria estava mais alta agora, uma melodia grave e dissonante, as palavras que os ocidentais cantavam eram estranhas e desconhecidas: mil vozes, todas cantando juntas. O zumbido monótono era alto e enlouquecedor; a música vibrava no peito e parecia fazer tremer o próprio solo. Ele conseguiu ver os ocidentais: a pele bronzeada como o povo de Namarro, a armadura de bambu com anéis de ferro que tilintavam enquanto eles cantavam e se agitavam. As imensas toras da pira desmoronaram e dispararam fagulhas para o alto com um ribombar.

Um ocidental à frente das fileiras ficou de pé e avançou. Ele ergueu os braços nus e musculosos; como os demais, o homem usava um elmo de bambu decorado com penas compridas e reluzentes. Havia um grande disco prateado e amassado sobre o peito, pendurado no pescoço por uma corrente, e pintado com figuras: o que identificava o homem como um offizier ocidental. Ele parou de cantar ao proclamar alguma coisa em voz alta. Mais dois guerreiros ocidentais saíram da escuridão do outro lado da fogueira e arrastando com eles a figura ensanguentada de um homem. Sua cabeça levantou-se quando os soldados se aproximaram da luz da fogueira, e, mesmo àquela distância, Enéas reconheceu o a’offizier ca’Matin. Ele estava nu até a cintura e agora era forçado a ficar de joelhos em frente ao offizier ocidental. Enéas ouviu ca’Matin rezar para Cénzi, com a face erguida para as fagulhas, as estrelas e a lua; para qualquer coisa, menos para o ocidental.

O ocidental falava com ca’Matin enquanto retirava um apetrecho estranho de uma bolsinha no cinto. Enéas apertou os olhos para tentar ver o que era no momento em que o offizier ergueu o objeto para mostrá-lo às tropas reunidas. Um cano curto e curvo como o chifre de um touro de cor marfim reluziu; o apetrecho tinha um cabo de madeira. O offizier ofereceu o objeto para ca’Matin com o cabo voltado para frente. Quando ca’Matin o pegou, com mãos visivelmente trêmulas e uma expressão de dúvida, o guerreiro virou o chifre de marfim — Enéas ouviu um nítido clique metálico — e deu um passo para trás. Ele fez um gesto como se virasse o apetrecho, depois como se tocasse a ponta do chifre no abdômen. Ca’Matin balançou a cabeça e o offizier ocidental suspirou. Sua expressão parecia quase solidária ao pegar o instrumento e virá-lo nas mãos de ca’Matin. Ele fez um gesto de apoio com a cabeça ao empurrar as mãos de ca’Matin para trás. O chifre tocou no estômago de ca’Matin.

Houve um clarão que iluminou toda a paisagem como se fosse um raio, e ecoou um trovão estrondoso que abafou o grito involuntário de Enéas e fez os cavalos relincharem nervosos e lutarem contra as amarras. Ca’Matin escancarou a boca e os olhos, embora a expressão parecesse estranhamente estática para Enéas, como se no momento final Cénzi tivesse tocado o a’offizier com Sua glória.

Ca’Matin desmoronou, e o apetrecho caiu de suas mãos. O estômago era uma cavidade sangrenta, como se tivesse sido rasgado por um punho com garras. Entranhas e sangue estavam espalhados pelo chão debaixo do homem, bem como nas pernas dos ocidentais em volta dele. O offizier ocidental levantou as mãos novamente, e a cantoria recomeçou. Com uma estranha reverência, os dois soldados que trouxeram ca’Matin até a fogueira envolveram o corpo em um pano tingido com cores intensas dispostas em padrões geométricos. Eles entraram correndo nas sombras com o cadáver embrulhado.

Enéas forçou-se a andar novamente, agora mais desesperadamente. Ele não sabia que feitiçaria fora feita com ca’Matin, mas tinha que dar um jeito de voltar para Munereo: para avisá-los. Ajude-me a fazer isso, Cénzi... Enéas começou a rastejar na direção dos cavalos. Se conseguisse erguer o corpo e jogar a perna ferida por cima... Os ocidentais poderiam persegui-lo, mas Enéas conhecia esse terreno tão bem quanto eles, talvez até melhor, e seria encoberto pela noite.

Ele chegou aos cavalos agora. Eram cavalos de guerra capturados de Nessântico, usavam os uniformes que ele conhecia tão bem e, mais importante, ainda estavam selados. Eram mais lentos do que as montarias dos ocidentais, mas mais vigorosos. Se Enéas conseguisse uma vantagem razoável, os cavalos dos ocidentais poderiam se cansar antes de alcançá-lo.

Com a ajuda de Cénzi...

Enéas desamarrou as patas de uma grande égua cinzenta e manteve o animal entre ele e a fogueira. O cavalo de guerra relinchou, mostrando o branco de seus olhos sob o luar. Enéas sussurrou com delicadeza para ela. — Shh... shh... Tudo bem... Você vai ficar bem... — Ele agarrou as correias da sela e ficou de pé, tirando o peso do tornozelo machucado. Pegou as rédeas com uma mão e acariciou o pescoço do animal. — Shh... Quieta, agora... — Ele teria que se equilibrar parcialmente no tornozelo machucado para colocar um pé no estribo; com delicadeza, Enéas pousou o pé no chão e apoiou o peso sobre ele devagar. Mordeu o lábio inferior ao sentir a dor. Ele conseguiria por um instante. Era tudo que era preciso...

Enéas levantou o pé que estava bom e o colocou no estribo. Uma onda de facadas se espalhou do tornozelo até a perna durante o instante em que ele sustentou todo o peso, e a agonia quase fez com que Enéas desmaiasse. Desesperadamente, ele passou a perna machucada sobre a espinha do cavalo e quase gritou quando o tornozelo bateu no outro lado do corpo maciço do animal. Mas agora Enéas estava no cavalo de guerra, meio deitado sobre o pescoço grosso e musculoso da montaria. Ele estalou as rédeas e cutucou com a perna boa. — Devagar — falou para a égua cinzenta. — Muito devagar agora. Quieta...

A égua balançou a cabeça e começou a se afastar dos outros cavalos. Ela voltou para a encosta, longe da luz da fogueira e do acampamento. A cantoria dos ocidentais encobriu o som dos cascos com ferraduras no solo. Assim que entrasse na escuridão novamente, assim que conseguisse colocar a saliência de um daqueles morros entre ele e os ocidentais, Enéas poderia galopar a toda.

Ele começava a ousar pensar que seria possível.

Enéas quase não notou a silhueta que se movia à sua esquerda, um pedaço de escuridão que se levantou subitamente e se atirou sobre ele. Enéas teve apenas um vislumbre do rosto sinistro antes que o homem o acertasse e derrubasse da sela. Um clarão de luz flamejou atrás dos olhos quando Enéas caiu no chão, e ele gritou de dor na perna machucada, que ficou torcida debaixo do corpo. Ele ouviu o cavalo de guerra ir embora a galope, sem cavaleiro, e então a sombra de um guerreiro ocidental com os braços erguidos surgiu sobre ele, e Enéas caiu novamente na escuridão.

 

Allesandra ca’Vörl

— EU GOSTARIA DE ME DESCULPAR pela minha esposa, a’hïrzg. Ela... bem, o assunto da archigos bruxa sempre a aborrece. Elas têm... uma história em comum, afinal. Ainda assim, minha esposa não deveria ter dito o que pensa no jantar ontem à noite, especialmente para a senhora, como anfitriã.

Allesandra assentiu com a cabeça para o archigos Semini. Eles estavam sentados em uma plataforma de observação no alto de uma ladeira atrás da residência particular do hïrzg — o palácio na Encosta do Cervo, bem afastado de Brezno. Os dois olhavam para leste, para a vista de uma campina comprida e larga, de grama alta, cheia de flores silvestres. Lá embaixo, eles enxergavam um grupo de figuras e cavalos: Fynn, Jan e vários outros. De ambos os lados da campina, em uma floresta de abetos altos, tambores ecoavam dos flancos dos morros íngremes e verdejantes que formavam a paisagem: o som dos batedores, que arrebanhavam a presa para a campina e para o hïrzg, à espera.

Atrás de Allesandra, na sacada, criados corriam de um lado para o outro com comes e bebes enquanto preparavam uma mesa comprida para o jantar. Fora isso, Allesandra e o archigos estavam sozinhos; todos os outros privilegiados ca’ e co’ que jantariam com eles naquela noite estavam com o grupo do hïrzg na campina. Allesandra não tinha a menor vontade de ficar tão próxima do irmão por tanto tempo assim. Ela não tinha certeza por que Semini ficou para trás, no palácio — Francesca estava na campina com os demais.

— Por favor, acredite em mim quando digo que não me ofendi, archigos — falou Allesandra. — Embora eu tenha muito mais simpatia pela archigos Ana, entendo que sua esposa se sinta dessa maneira.

Ela deu uma olhadela para Semini e viu o archigos sorrir. — Obrigado. Isso é gentil de sua parte. — O homem olhou com cuidado para os criados, depois abaixou o tom de voz para que eles não conseguissem escutar. — Cá entre nós, a’hïrzg, eu gostaria de ter convencido seu vatarh a nomear a senhora como herdeira. Aquele menino... — ele apontou com o queixo para o grupo na campina — ... seria um starkkapitän perfeitamente adequado para a Garde Civile, mas ele não tem a visão ou a inteligência para ser um bom hïrzg.

— Creio que ouvi o archigos falar em traição. — Allesandra teve a cautela de manter o olhar afastado do archigos e concentrou sua atenção em Jan, a cavalo ao lado de Fynn. Ela perguntou-se se podia acreditar no que ca’Cellibrecca dizia e por que ele declararia tal opinião para ela. O archigos tinha motivos para agir assim, Allesandra tinha certeza: Semini não era um homem de fazer declarações acidentais. Mas qual era o motivo? O que ele queria, e como isso o beneficiaria?

— Será que eu talvez tenha dito o que também está no seu coração, a’hïrzg,
mesmo que a senhora não ouse dizer em voz alta? — respondeu Semini no mesmo sussurro baixo e rouco. O archigos voltou-se para ela. — Meu coração está aqui, neste país, a’hïrzg Allesandra. Eu quero o que é melhor para Firenzcia. Nada mais. Eu dei minha vida a serviço de Cénzi e a serviço de Firenzcia. Eu compartilhava a visão de seu vatarh de que os Domínios deviam ter Brezno, e não Nessântico, como o centro de todas as coisas. Ele quase conseguiu realizar essa visão. Ele teria realizado, estou convencido, se não tivesse sido a feitiçaria herege da archigos bruxa.

Havia ódio na voz de Semini, genuíno e intenso. E também uma estranha satisfação.

O vatarh teria sido bem-sucedido se Ana não tivesse me capturado como refém, se não tivesse me arrancado do vatarh e me usado para terminar a guerra. Enquanto Allesandra permanecesse em Nessântico, enquanto o vatarh se recusasse a pagar o resgate exigido, sua derrota ainda não seria completa. Ainda havia esperança de que os resultados pudessem mudar, e o vatarh levou pouco mais de uma década para perder aquela esperança.

Era o que Allesandra dizia para si mesma. Era o que Ana dizia para ela. Ana jamais falou mal do hïrzg Jan; sempre pintou seu vatarh da maneira mais favorável possível, mesmo quando Allesandra bufava de raiva por ele demorar a pagar o resgate.

Allesandra tomou fôlego e levou a mão à garganta, tocando o globo partido de Cénzi em volta do pescoço.

Ca’Cellibrecca evidentemente interpretou mal o pensamento por trás do gesto. — Ah, vejo que compartilhamos a mesma opinião sobre Ana ca’Seranta. Aquela criatura impediu que os Domínios desmoronassem sob o governo de Justi, aquele tolo perneta. E agora, finalmente, ela morreu, louvado seja Cénzi. — O tom de voz ficou ainda mais baixo quando ele inclinou o corpo e se aproximou de Allesandra. — Agora seria a hora para um novo hïrzg fazer aquilo que seu vatarh não conseguiu... ou seria a hora, se tivéssemos um hïrzg, ou hïrzgin, à altura da tarefa. Alguém que não fosse Fynn. Existem aqueles em Nessântico que acreditam nisso, a’hïrzg. Pessoas que a senhora não suspeitaria que tenham ideias assim.

O clamor dos batedores estava se aproximando no vale abaixo. Os cavaleiros remexiam-se irrequietos, e Allesandra viu Fynn sinalizar para que Jan encaixasse a flecha no arco. — O que você está me dizendo, archigos? — perguntou ela enquanto observava a cena abaixo dos dois.

— Estou dizendo que a senhora atualmente é a a’hïrzg, mas ambos sabemos que esta é uma situação temporária. Mas se Fynn, de alguma forma... — Ele hesitou. Os tambores bateram alto lá embaixo, e agora eles podiam ouvir uma movimentação debaixo da sombra das árvores à direita. — ... não fosse mais hïrzg, então a senhora se tornaria hïrzgin. — Outra pausa. — Como deveria ter sido.

Os tambores e a gritaria ficaram mais altos, e de repente um cervo surgiu da linha de árvores a várias dezenas de passos do grupo do hïrzg. O animal era magnífico, a galhada tinha a envergadura dos braços e ombros de uma pessoa, alcançava facilmente a altura de um homem alto ou mais. A pele tinha um tom deslumbrante de marrom-avermelhado com um toque de branco debaixo da garganta. O cervo saiu do matagal a meio galope, e sentiu o cheiro do grupamento de caça. Allesandra sentiu uma aflição ao ver a bela criatura; ao lado, ela ouviu Semini murmurar — Por Cénzi, olhe aquele animal lindo!

O cervo parou e olhou fixamente para os cavaleiros por um instante antes de dar um pulo enorme e fugir na direção do fim da campina, ao longe. No mesmo instante, eles viram uma flecha ser disparada pelo arco de Fynn, e o estalo da corda do arco chegou com atraso aos seus ouvidos. O cervo caiu com as patas traseiras emaranhadas e a flecha enterrada nas ancas. Então, o animal levantou-se outra vez e começou a correr.

Jan esporeou o cavalo no momento do disparo de Fynn. Ele correu atrás do cervo ferido e controlou a montaria apenas com as pernas enquanto puxava o arco. A toda velocidade, Jan disparou a própria flecha com o cervo a apenas poucos passos de chegar à cobertura da floresta novamente.

O cervo estremeceu quando a flecha penetrou fundo no lado esquerdo do peito. O animal correu por mais alguns passos, quase até a floresta. Pareceu se recuperar, pulou, mas as patas dianteiras esbarraram na tora sobre a qual ele tentou saltar, e caiu.

O cervo ficou caído de lado, as patas debateram-se no matagal, a galhada arrancou punhados de terra com grama do solo. Fynn galopou até onde Jan parou com seu cavalo. Allesandra viu o irmão dar um tapinha no ombro de Jan e depois colocar outra flecha no arco.

Com o disparo de Fynn, o cervo ficou imóvel. Uma vibração distante ecoou do grupamento de caça.

— Seu filho pode ter um físico franzino, mas é um excelente cavaleiro, e arqueiro ainda melhor. Aquilo foi impressionante: atirar daquele jeito em plena perseguição.

Allesandra sorriu. Por um instante, ele quase pareceu com o seu vavatarh ao cavalgar daquela maneira... Lá embaixo, Fynn e Jan desmontaram para se dirigir até o cervo caído. — Atirar flechas a cavalo é uma habilidade ensinada à cavalaria magyariana, e Jan teve excelentes professores.

— Ele também teve uma excelente educação em política. Jan esperou que o hïrzg desse o golpe final. Presumo que a senhora tenha sido sua professora neste quesito.

— Jan sabe o que tem que fazer, mesmo que algumas vezes ignore meu conselho — falou Allesandra. — Geralmente porque fui eu que dei o conselho.

— Filhos na idade dele acham que devem se rebelar contra a família. É natural, e eu não me preocuparia muito com isso, a’hïrzg. Jan vai aprender. E um dia, se ele for o a’hïrzg em vez de apenas outro ca’ em algum ponto da linha sucessória para ser o gyula da Magyaria Ocidental... — Semini deixou a voz sumir gradualmente.

Allesandra finalmente se virou para ele. O archigos agigantava-se sobre ela como um urso vestido de verde. Os olhos escuros do homem encaravam os de Allesandra. Sim, ele tinha olhos em que uma pessoa podia se perder. — Você continua a me dizer estas pequenas insinuações e sugestões, archigos — falou ela baixinho. — Você tem mais do que isso para oferecer ou está tentando me provocar a ponto de eu me revelar? Isso não vai acontecer.

Ca’Cellibrecca concordou devagar com a cabeça e inclinou o corpo na direção dela. A boca ficou tão próxima da orelha de Allesandra que ela sentiu o hálito quente de Semini. Ela arrepiou-se. — Eu tenho uma proposta, a’hïrzg. Se isso for algo que lhe interesse, eu realmente tenho — sussurrou o archigos. Então ele se levantou e aplaudiu na direção da campina. — Os cozinheiros terão alguns belos filés de cervo — disse Semini em voz alta — e haverá uma galhada nova para enfeitar o palácio. Nós devíamos descer e encontrar os bravos caçadores, a’hïrzg. O que a senhora diz?

Ele ofereceu o braço.

Ela se levantou e aceitou.

 

Karl ca’Vliomani

— ONDE VOCÊ ESTÁ INDO? — perguntou Varina para ele.

Karl passou a primeira noite após a morte de Ana na casa de Mika, mas apesar da boa vontade do homem e de sua esposa, Karl achou a casa deles — com os filhos e agora o primeiro neto sempre entrando e saindo — cheia demais de vida e energia. Ele voltou para o próprio apartamento na margem sul. Era Varina que passava lá todo dia, que atormentava os criados e geralmente garantia que Karl estivesse sendo alimentado e cuidado. Ela o deixava sozinho com sua tristeza; estava lá quando ele precisava conversar ou quando Karl simplesmente quisesse sentir a sensação de ter outra pessoa no cômodo. Varina parecia saber quando ele precisava de silêncio e permitia isso. Karl era grato por essa atitude.

Ele lembrou-se de quando mostrou para Ana, pela primeira vez, o que os numetodos conseguiam fazer, há muito tempo. Naquela noite, havia sido Varina, uma recém-chegada sem experiência ao grupo, que Ana tinha visto demonstrando um feitiço. Varina cresceu muito desde então; ela era a segunda em poder depois de Mika dentro da facção dos numetodos na cidade, e não havia ninguém que rivalizasse sua dedicação à pesquisa, nem sua habilidade com o Scáth Cumhacht. Karl nunca entendeu exatamente como ela permaneceu sozinha todos esses anos. Varina havia sido muito notável na juventude: cabelo da cor do trigo no outono; olhos grandes e expressivos da cor de carvalho antigo e envernizado; um sorriso e uma risada maravilhosos e encantadores que sempre faziam os outros sorrirem com ela. Varina ainda era atraente, mesmo agora, na meia idade, mesmo que nos últimos anos ela tenha parecido envelhecer rapidamente. No entanto... Varina parecia ter pegado toda a vitalidade e energia que possuía e colocado exclusivamente no aprendizado das complexidades do Scáth Cumhacht e do Segundo Mundo, para descobrir todas as maneiras de conter aquele poder. Mesmo entre os numetodos, ela raramente parecia falar por muito tempo com alguém além de Mika ou Karl. Até onde ele sabia, Varina não tinha outros amigos ou amantes fora do grupo. Ela era um enigma, até mesmo para os mais próximos.

Karl dava valor à presença de Varina agora, mesmo que não soubesse como expressar sua gratidão.

Ele remoía a morte de Ana há uma semana agora, remexeu na mente o ocorrido sem parar, como se fosse um adubo repugnante. Alguém a queria morta. Ana fora o alvo, o assassino esperou que ela fosse ao Alto Púlpito; certamente Karl tinha visto os outros ténis na missa subirem ao púlpito para colocar as leituras e o pergaminho com a Admoestação que a archigos pretendia ler, e não foram eles que acionaram a explosão.

Quanto mais Karl considerava essa situação, mais parecia haver uma única resposta. Uma resposta que ele queria verificar.

Varina estava apoiada na arcada da antessala de braços cruzados enquanto Karl encolhia os ombros em seu manto. Ela não repetiu a pergunta, apenas olhou para ele com ternura, como se estivesse preocupada.

— Eu tenho um compromisso — respondeu Karl. Ela concordou com a cabeça. Ainda em silêncio. Os olhos estavam arregalados e não piscavam. — Eu tenho perguntas a fazer.

Outro gesto com a cabeça. — Eu vou com você — disse Varina. Karl hesitou. — Não vou interferir — falou ela. — Se você vai aonde eu penso que vai, pode precisar de apoio. Estou certa?

— Pegue sua capa — disse Karl. Ela deu um breve sorriso, um relance de dentes brancos, e pegou a capa em um gancho na parede.


O embaixador da Coalizão Firenzciana, Andreas co’Görin, tinha um rosto tão fino e anguloso quanto o de um falcão. Quando o homem se levantou da cadeira, os olhos da cor de urze observaram Karl e Varina como se os dois fossem coelhos a serem capturados e devorados. O rosto aquilino era complementado pelo corpo esguio de um espadachim. Karl imaginava que o sujeito ficava mais à vontade de armadura do que na bashta respeitável e conservadora que usava.

Isso fez com que Karl pensasse se teria sucesso aqui.

— Embaixador ca’Vliomani, vajica ci’Pallo, sua visita é... inesperada — falou co’Görin. — O que posso fazer pelos senhores?

Karl olhou enfaticamente para o assistente que ocupava a mesa menor do outro lado do gabinete.

— Gerald, por que você não vai ver se acha aquela proposta sobre as novas regulamentações de fronteira? — disse co’Görin. O assistente, tão robusto e corpulento quanto co’Görin era magro, concordou com a cabeça e remexeu em alguns papéis ruidosamente por um momento antes de sair da sala.

Karl esperou até ouvir o clique da porta se fechando quando o homem saiu. — Eu passei os últimos dias pensando na morte da archigos Ana, embaixador — falou ele. As palavras soaram quase casuais, até mesmo para seus ouvidos. Varina baralhou os pés ao lado de Karl, irrequieta. — Sabe, por mais que eu tente encontrar motivos para alguém ter feito aquilo, não consigo pensar em ninguém que quisesse Ana morta, a não ser as pessoas que o senhor representa.

Varina ficou nitidamente aflita. Uma nuvem passou sobre os olhos de urze de co’Görin, que escureceram e ficaram verdes. Os músculos do rosto do homem retesaram-se, e ele fechou a mão direita como se procurasse pelo cabo de uma espada. — O senhor é bem curto e grosso, embaixador.

— Eu desisti da diplomacia por enquanto — respondeu Karl.

Co’Görin o olhou com desdém. — Certamente. Então serei curto e grosso também. Eu considero uma ofensa a sua acusação. Eu o perdoo por saber... — ele torceu o nariz e franziu os olhos — ... como o senhor era próximo da archigos de Nessântico, mas também espero por um pedido de desculpas imediato.

— Pela minha experiência, as esperanças geralmente viram decepção — disse Karl.

— Karl... — falou Varina com delicadeza. Ela tocou levemente o braço dele. — Talvez...

Varina parou de falar, como se soubesse que ele não escutava. A raiva o queimava por dentro. Karl queria apenas que co’Görin fizesse um gesto brusco ou o insultasse abertamente, qualquer coisa que servisse como desculpa para usar o Scáth Cumhacht que ardia em sua mente à espera da palavra de ativação. Mas co’Görin balançou a cabeça; não se sentou, pareceu relaxar atrás da mesa, tranquilo.

— Eu acho, embaixador ca’Vliomani, que o senhor descartou a possibilidade de que o assassino pode ter sido um elemento sem vínculos, ou talvez uma pessoa contratada por alguém com contas a acertar com a archigos, alguém dentro dos Domínios de Nessântico. Não há necessidade de atrelar uma conspiração ao fato. — Ele ergueu as sobrancelhas; o resto do corpo permaneceu imóvel. — A não ser, é claro, que o senhor tenha provas que gostaria de compartilhar comigo? Mas não, se tivesse isso, o senhor teria ido ao regente, não é? O comandante da Garde Kralji estaria aqui, não dois hereges numetodos. — Devagar, quase de maneira debochada, ele sentou-se outra vez. Seus dedos compridos brincaram com os pergaminhos espalhados sobre a superfície da mesa, e a expressão aquilina se voltou com um olhar de desdém para Karl. — Acho que terminamos por aqui, embaixador. Firenzcia não se envolve com hereges e jamais se envolverá. Estamos perdendo o tempo um do outro.

A dispensa atiçou o fogo que ardia dentro de Karl. — Não! — berrou ele. — Nós não terminamos! — Karl gesticulou e falou uma das palavras de ativação que havia preparado antes de vir. Um fogo rápido lambeu a papelada sobre a mesa do embaixador e consumiu os papéis no mesmo tempo que co’Görin levou para reagir. O homem deu um pulo para trás e saiu da cadeira. Um vento ligeiro veio em seguida soprando a papelada que passou por co’Görin e saiu pela janela, além de balançar a bashta do embaixador; isso só podia ter sido obra de Varina. — Aquele fogo podia muito bem ter sido direcionado para o senhor em vez dos documentos — disse Karl, que ouviu a porta ser escancarada atrás de si e ergueu uma mão preventivamente ao sentir Varina se virar para encarar a ameaça. — Eu não vim com apenas um feitiço, embaixador, e minha amiga é mais poderosa do que eu. Diga ao seu pessoal para ficar onde está, ou garanto que o senhor, pelo menos, não sairá vivo desta sala.

— Nem o senhor, se insistir com essa tolice — rosnou co’Görin, e Karl quase gargalhou.

— Isso pouco me importa a esta altura — disse Karl. As costas de Varina apoiadas nas costas dele. Karl sentiu que ela ergueu os braços para preparar um feitiço.

O embaixador acenou para as pessoas atrás de Karl, que ouviu uma espada ser embainhada e sentiu Varina abaixar os braços novamente. Co’Görin falou — Vou lhe dizer novamente, embaixador, o senhor está enganado se pensa que Firenzcia está envolvida na morte da archigos. Mate-me, não me mate; isso não vai mudar o fato.

— Eu não acredito nisso.

Co’Görin torceu o nariz. — Falta de crença é o principal problema com os numetodos, não é? O senhor quer que eu fique de luto pela sua archigos, embaixador? Não ficarei. Ela atraiu este destino ao acolher os numetodos e se recusar a reconhecer o archigos de Brezno como o verdadeiro líder da Fé. A violência era um resultado inevitável de suas ações, mas, até onde eu sei, não foi Firenzcia que fez isso. Essa é a verdade, e se o senhor não consegue acreditar em mim... — Ele deu de ombros. — Então faça o que tem que fazer. O senhor apenas provará que os numetodos são realmente os tolos perigosos que todo fiel de verdade sabe que eles são. Olhe para mim, embaixador. Olhe para mim — falou co’Görin com mais rispidez, e Karl encarou o embaixador com raiva. — O senhor enxerga uma mentira em meu rosto? Eu vou lhe dizer: quem matou a archigos não foi alguém que eu conheça ou tenha contratado. Essa é a verdade.

Karl sentiu o Scáth Cumhacht vibrar loucamente por dentro. Ele não queria outra coisa a não ser atacar esse tolo metido, ver a arrogância do sujeito desmoronar e virar um grito, fazer com que berrasse em agonia ao morrer. Mas também ouviu Ana. Karl sabia o que ela lhe diria e deixou a mão cair ao lado do corpo. Ouviu Varina suspirar de alívio.

As palavras de co’Görin não tranquilizaram Karl, mas ele começou a se perguntar se o embaixador talvez não tivesse dito a verdade segundo o que sabia. Karl também se lembrou de um tempo, há muitos anos, e de uma outra pessoa que era capaz de invocar o Scáth Cumhacht — embora ele não chamasse a energia dessa maneira, nem de Ilmodo.

— Se eu descobrir que o senhor está mentindo, embaixador — falou Karl —, não vou lhe dar a chance de pedir desculpas ou de sacar sua espada. Matarei o senhor onde quer que eu lhe encontre. Isso também é a verdade.

Dito isso, ele deu meia-volta, e Varina ficou ao seu lado. Havia três guardas bloqueando a porta, mas Karl empurrou os homens e saiu a passos largos para o ar fresco e a luz do sol.

— O que, em nome dos Seis Abismos Eternos, foi aquilo? — Varina estourou com Karl quando os dois estavam novamente do lado de fora, na Avi a’Parete. Ela agarrou a manga dele e o puxou para pará-lo. — Karl! Eu estou falando sério. O que você achou que estava fazendo?

— O que eu precisava fazer — disparou ele com mais rispidez do que pretendia, ainda vermelho de raiva por co’Görin, pela atitude do homem e pelas próprias dúvidas que o remoíam. Toda essa raiva estava contida na resposta. — Se você não queria estar ali, não precisava vir.

— Ana está morta, Karl. Você não pode trazê-la de volta. Acusar pessoas sem provas só vai fazer você morrer também.

— Ana merece justiça.

— Sim, merece — disparou Varina em resposta. — Deixe para aqueles que têm essa função fazer isso por ela. Vocês não eram amantes. Ana não era a matarh de seus filhos.

A fúria ferveu dentro dele. Karl ergueu a mão, o calor frio do Scáth Cumhacht aumentou, e Varina espalmou as mãos. — Faça isso! — disparou outra vez. — Vamos! Isso vai fazer você se sentir melhor? Vai mudar alguma coisa?

Karl pestanejou; em volta dos dois, as pessoas na rua olhavam fixamente. Ele abaixou as mãos. — Eu... eu sinto muito, Varina.

Ela olhou com raiva para Karl e franziu os lábios. — Ela era sua amiga, e eu compreendo isso. Ela era minha amiga também. Mas Ana também cegou você, Karl. Você jamais foi capaz de ver o que está bem à sua frente.

Dito isso, ela deu meia-volta e deixou Karl, seguiu quase correndo pela Avi. — Varina — chamou ele, mas ela enfiou-se na multidão e desapareceu como se jamais tivesse estado ali. Karl ficou parado na rua, as pessoas passando à sua volta. Karl ouviu as trompas do Templo da Archigos, o templo de Ana, começarem a soar para conclamar a Segunda Chamada, e o som pareceu uma risada debochada.

 

Sergei ca’Rudka

— VOCÊ não confia em mim, Karl?

Sergei observou a onda de emoções que percorreu a face do embaixador. O sujeito tinha um rosto impressionantemente franco para quem era diplomata, um defeito que ele possuía desde que Sergei o conheceu. Tudo que Karl pensava ficava nítido para um observador que soubesse ler expressões. Talvez fosse apenas o estilo Paeti; o regente tinha conhecido algumas pessoas da Ilha ao longo de décadas, e a maioria costumava não apenas falar com muita franqueza o que pensava, mas também fazia pouco esforço para esconder opiniões e emoções sinceras. Talvez fosse isso o que tornava a Ilha reconhecida por seus grandes poetas e bardos, pelas canções e pelo temperamento e paixão intensos de seu povo, mas que também os tornava vulneráveis, na avaliação de Sergei.

O estilo deles não era o de Sergei.

Karl pestanejou diante da brutalidade da pergunta, que Sergei disparou antes mesmo que o criado tivesse fechado a porta. O embaixador estava parado na entrada do gabinete do regente, hesitante, quando a porta foi fechada delicadamente atrás dele. — Claro que confio, Sergei — gaguejou um pouco Karl, as palavras saíram carregadas pelo sotaque cantado de Paeti. — Eu não sei do que você está... — E então — Ah.

— Sim. Ah. — Sergei respirou fundo e coçou o nariz. — Eu acabei de receber uma visita bastante desagradável do embaixador co’Görin, embora francamente qualquer visita da parte dele costume ser desagradável. Ainda assim, o sujeito parece achar que você é um homem perigoso que deveria morar na Bastida em vez de andar pelas ruas. Na verdade, ele disse: “em Brezno, o homem seria estripado e pendurado em público por sua impertinência, quanto mais por sua dedicação à heresia.” Eu não acho realmente que ele goste de você. — Sergei ficou de pé, foi até Karl e deu um tapa em suas costas.

Co’Görin realmente reclamara sobre Karl, mas o embaixador firenzciano havia comparecido a pedido de Sergei, e ido embora com uma mensagem selada que o regente esperava que já estivesse na bolsa de um mensageiro disparando pela Avi a’Firenzcia a caminho de Brezno. Mas nada disso era algo que ele contaria para ca’Vliomani. — Venha, sente-se comigo, velho amigo. Vou mandar Rodger trazer um chá para nós. Eu ainda não tomei meu café da manhã.

Pouco tempo depois, eles estavam sentados em uma sacada com vista para os jardins. Jardineiros rondavam o terreno e arrancavam qualquer erva daninha que metia sua cara comum no meio da realeza das flores. O chá e os biscoitos permaneciam intocados por qualquer um dos dois.

— Karl, você tem que deixar esse assunto comigo.

— Eu não posso.

— Você deve. Meu pessoal está procurando intensamente a pessoa ou pessoas que fizeram isso com Ana. Estou em cima do comandante co’Falla nessa questão como se ele fosse um cavalo. Não vou deixar o assunto quieto, não vou deixar morrer. Eu lhe prometo. Eu quero justiça para Ana tanto quanto você, mas você tem que me deixar fazer isso. Não você. Você precisa ficar fora do caminho da investigação.

Karl então encarou Sergei, e o regente viu o desespero pulsar nas bolsas embaixo dos olhos do homem e puxar os cantos da boca. — Sergei, estou convencido de que só pode ter sido um plano firenzciano. Com o hïrzg Jan morto e Fynn no trono, só faz sentido que ele, e talvez o archigos Semini de Brezno... — Karl umedeceu os lábios. — Todos eles têm uma razão para odiar Ana.

Sergei interrompeu Karl com a mão erguida. — Razões, sim, mas você não tem provas. Nem eu. Não ainda.

— Quem mais iria querer Ana morta? Diga para mim. Existe alguém nos Domínios, talvez um a’téni invejoso que queria ser archigos? Ou alguém das províncias? Nós suspeitamos de mais alguém?

— Não — admitiu Sergei. — Eu mesmo suspeito de Firenzcia, mas precisamos saber antes de agir, Karl. — A mentira, como sempre, vinha fácil à boca. Sergei estava acostumado a mentiras. Uma mentira não seria ouvida em sua voz ou vista no espasmo de um músculo.

Às vezes o regente pensava que era composto inteiramente por mentiras e falsidades, que se alguém tirasse essas coisas de Sergei, ele não seria nada além de um fantasma.

— Saber? — repetiu Karl. — Da mesma forma que você sabia quando me atirou na Bastida anos atrás? Da mesma forma que sabia que eu e os numetodos devíamos ter algo a ver com a morte da kraljica Marguerite?

Sergei esfregou o nariz de prata ao fazer uma careta diante da memória. — Eu estava cumprindo ordens do kraljiki Justi na época. Você sabe disso. E note que você ainda está vivo, enquanto Justi preferiria que estivesse morto. Reconheça o meu mérito quanto a isso. Karl, o que está em jogo aqui é importante demais para palpites ou para que pessoas esquentadas invadam o gabinete do embaixador da Coalizão para ameaçá-lo. Se seu palpite estiver correto e o hïrzg Fynn for responsável por esse ato, a única coisa que você conseguiu foi alertá-lo de nossas suspeitas. Você e Varina realmente usaram feitiços numetodos? — Ele estalou alto com a língua e balançou a cabeça. — Estou surpreso que você não o tenha matado logo de saída.

— Eu queria — disse Karl. Por um momento, as rugas em volta da boca foram repuxadas, e os olhos brilharam sob a luz do sol. — Mas eu pensei em Ana... — O brilho nos olhos aumentou. Ele limpou-os com a manga da bashta.

Por um instante, Sergei genuinamente sentiu pena e compaixão pelo homem. Ele respeitava a archigos Ana porque não havia outra escolha. Ana jamais deixou alguém chegar muito próximo a ela, mesmo aqueles — como Karl — que podiam ter desejado tal coisa. Sergei sabia disso porque observava Karl ao longo dos anos, observava-o porque era seu dever saber as preferências e interesses das pessoas de destaque nos Domínios. Sergei sabia que ele usava os serviços das mais caras e discretas grandes horizontales da cidade, e — o que era interessante para o regente — cada uma dessas mulheres que Karl preferia tinha uma semelhança física com a archigos, e mudava ao longo das décadas, assim como a própria Ana. Foi preciso pouca intuição para adivinhar o motivo dessa preferência.

Karl... Sergei gostava do homem, tanto quanto ele jamais se permitiu gostar de alguém. Ele acenou com a cabeça para o numetodo. — Estou contente que o fantasma de Ana conteve sua mão, do contrário, eu poderia não ter outra escolha. Karl, você tem que deixar essa questão de lado. Prometa para mim. Deixe meus subordinados investigarem. Contarei qualquer coisa que eu descobrir. — Essa era outra mentira, obviamente. Sergei já sabia detalhes do assassinato que não tinha a menor intenção de compartilhar com Karl; tinha suspeitas em mente que ele não falaria.

Na escuridão da Bastida, ele mandou que os gardai o deixassem a sós com um homem, um empregado do comerciante Gairdi, que regularmente viajava entre Nessântico e Brezno. Ele ouviu o choramingo delicioso quando desenrolou o pedaço de lona com as terríveis ferramentas amarradas dentro dela e sorriu para o prisioneiro. — Diga-me a verdade — falou Sergei — e talvez não precisemos de nada disso aqui. — Aquilo também fora uma mentira, mas o homem animou-se com a oportunidade e balbuciou em uma voz alta e rápida. Os gritos, quando vieram depois, foram maravilhosos.

Havia alguns vícios de Sergei que ficavam mais fortes com a idade, não mais fracos. — Prometa para mim — repetiu o regente.

Karl hesitou. O olhar afastou-se de Sergei para pousar no jardim abaixo, e o regente acompanhou o gesto. Lá, um jardineiro enfiou o dedo em um solo tão úmido e rico que parecia negro e arrancou outra erva daninha. O funcionário jogou o emaranhado de folhas e raízes na bolsa de lona pendurada no ombro. Sergei acenou com a cabeça: o trabalho necessário para manter o jardim bonito também exigia morte.

— Eu prometo, Sergei. — O regente, preso na imagem, olhou de volta para Karl e viu que o embaixador sorria palidamente para ele.

Ainda assim... havia alguma coisa que Karl não estava dizendo, alguma informação que estava escondendo. Sergei pôde perceber. O regente concordou com a cabeça, como se acreditasse nele, e decidiu que faria com que co’Falla colocasse alguém para vigiar Karl, com a intenção de descobrir o que o homem sabia, bem como de evitar que o embaixador de Paeti cometesse outro erro crítico — especialmente um erro que pudesse interferir nas próprias intenções de Sergei.

Ana estava morta. Quando ela era viva e uma presença firme e forte que guiava a fé concénziana, Sergei não esteve disposto a tomar o rumo que considerava estar tomando no momento. Porém, com sua morte, com o hesitante e bem mais fraco Kenne eleito para o trono de archigos, com o kraljiki Audric tão doente, frágil e jovem...

Tudo mudou.

— Bom — falou Sergei, que devolveu com afeto o sorriso de Karl. — Tem sido difícil para todos nós, mas especialmente para você, meu bom amigo. Agora, vamos tomar este chá antes que esfrie e provar os biscoitos. Aposto que você não come há dias, pela sua cara. Varina e Mika não estão cuidando de você...?


Naquela noite, uma virada da ampulheta após as trompas anunciarem a Terceira Chamada, Sergei sentou-se com o novo archigos Kenne na sacada de observação do templo na margem sul, para assistir à Cerimônia da Luz, que ocorria diariamente. Há dois séculos ou mais, os ténis da Fé saíam do templo à noite e — com a dádiva do Ilmodo — acendiam as lâmpadas que expulsavam a noite da cidade. Por toda sua vida, Sergei testemunhou o ritual diário. Douradas e dentro de globos de cristal, as lâmpadas mágicas eram colocadas em intervalos de cinco passos ao longo da grande Avi a’Parete, a larga avenida circular que cercava os trechos mais antigos da cidade. Até tarde da noite, as lâmpadas bradavam seu desafio para a lua e as estrelas e proclamavam a grandeza de Nessântico.

Para Sergei, esta era a cerimônia que definia Nessântico para a população. Essa era a cerimônia que proclamava o apoio de Cénzi aos kralji e à fé concénziana, uma cerimônia que ocorria sem alterações há gerações — até a época da archigos Ana. Agora o significado era menor, havia pessoas pelas ruas que podiam produzir luz sozinhas: sem invocar Cénzi, e sem o treinamento de um téni. A aceitação de Ana à heresia dos numetodos diminuiu a Fé, na opinião de Sergei, e forçou a mudança de visão das pessoas.

Mudança. Sergei não gostava de mudança. Mudança significava instabilidade, e instabilidade significava conflito.

Mudança significava que tudo tinha que ser reavaliado. Ana... Sergei nunca fora especialmente íntimo da mulher, porém, no papel de comandante da Garde Civile, e depois como regente, ele certamente tinha trabalhado em conjunto com ela. Independentemente dos defeitos pessoais, Ana tinha sido forte, e Sergei admirava sua força. Foi somente sua presença no trono de archigos que impediu que o reinado de Justi como kraljiki fosse uma catástrofe completa. Só por isso, ele sempre seria grato à memória de Ana.

Mas agora Kenne era o archigos. Sergei gostava genuinamente de Kenne como pessoa. Gostava da companhia do homem e de sua amizade. Contudo, Kenne não seria o archigos que Ana tinha sido. Não podia ser porque não tinha a coragem interior. Sergei sabia por que o Colégio A’téni o escolhera — porque nenhum dos outros a’ténis queria o título, a responsabilidade ou os conflitos que vinham com o trono e o cajado de archigos, e eles temiam o cargo especialmente agora. Kenne não era inimigo de ninguém e, principalmente, Kenne era velho. Era frágil. Ele não seguraria o cajado de Cénzi por muitos anos... e talvez quando ele morresse, os tempos fossem menos turbulentos.

O Colégio agiu em nome da autopreservação e, portanto, entregou a Fé a um archigos fraco.

Sergei perguntou-se se algum dia Kenne o perdoaria pelo que ele pretendia fazer.

Os dois homens ficaram parados enquanto os ténis-luminosos saíam em uma longa procissão pelas grandes portas principais bem abaixo deles. Sergei ouviu a melodia sonora do coro que terminava os cultos da noite na capela principal do templo. O som ecoou como uma lamúria pela praça quando as portas se abriram. O sol havia acabado de se pôr, embora o céu nublado do oeste ainda fosse um turbilhão revolto de tons de vermelho e laranja. Sob aquela luz, os ténis deram meia-volta e fizeram o sinal de Cénzi para o archigos, e Kenne abençoou-os com o mesmo gesto.

Os e’ténis — todos pareciam jovem demais aos olhos de Sergei, todos solenes com o fardo do dever — curvaram-se simultaneamente para o archigos, os robes verdes tremularam como um campo de grama ao vento, antes de darem meia-volta novamente para cruzar o enorme pátio diante do templo. A multidão de sempre estava reunida para assistir à cerimônia, embora fosse menor nos últimos anos do que fora na época da kraljica Marguerite, quando os Domínios eram um só e os visitantes afluíam para Nessântico de todos os pontos da bússola. Nos últimos anos, houve muito menos visitantes do leste e do sul, de Firenzcia ou das Magyarias, de Sesemora ou Miscoli. Com a guerra nos Hellins do outro lado do Strettosei, muitos jovens foram embora e as famílias viajavam menos. Embora o pátio do Velho Templo estivesse repleto de espectadores, a Garde Kralji não tinha dificuldades em abrir espaço para os ténis-luminosos; Sergei conseguia enxergar as pedras de pavimentação entre eles. Os ténis chegaram à Avi e dividiram-se em duas fileiras, espalharam-se à leste e à oeste pela avenida e seguiram para as lâmpadas mais próximas, dispostas de cada lado do portão de entrada do Templo do Archigos.

Os primeiros ténis-luminosos alcançaram as lâmpadas. Eles se postaram debaixo do globo reluzente de vidro trabalhado e ergueram os olhos para o céu do anoitecer como se vissem que Cénzi os observava. Os ténis falaram uma única palavra e gesticularam do peito para a lâmpada, os punhos fechados abrindo-se em mãos espalmadas.

As lâmpadas irromperam em uma luz amarela brilhante.

Sergei aplaudiu com Kenne. Mesmo assim...

Aquela única palavra que ativou o feitiço: aquilo era uma mudança também, uma concessão aos numetodos, que conseguiam lançar rapidamente seus feitiços. Era outra mudança provocada por Ana. — Às vezes eu sinto saudade dos velhos costumes, archigos — falou Sergei. — Os cânticos demorados, a sequência de gestos, a maneira como o esforço cansava visivelmente seus ténis... O jeito numetodo de usar o Ilmodo faz tudo parecer muito fácil. Havia... — ele suspirou quando os dois homens se sentaram novamente — ...um mistério envolvido naquela época, uma noção de trabalho e amor ao ritual que desapareceu. Não tenho certeza se Ana tomou a decisão certa quando permitiu que os ténis começassem a usar os métodos dos numetodos para iluminar nossas ruas.

Ele viu Kenne concordar com a cabeça. — Eu entendo — respondeu o archigos. — Parte de mim concorda com você, Sergei; havia uma emoção nos velhos rituais que sumiu agora. Porém, os numetodos provaram seu valor contra o hïrzg Jan, e Ana dificilmente poderia abandoná-los depois, não é? — Sergei ouviu Kenne dar uma risadinha irônica. — Nós somos velhos, Sergei. Queremos que as coisas sejam como eram na época da nossa juventude. Quando o mundo era certo e Marguerite ficaria sentada no Trono do Sol para sempre.

Sim. Eu quero isso mais do que você acreditaria. Sergei coçou o lado do nariz onde a cola irritava a pele; alguns pedacinhos da resina saíram sob a unha. — Não há nada de errado com isso. As coisas eram boas naquela época, com a kraljica Marguerite e Dhosti vestindo o robe de archigos. Não houve momento melhor para os Domínios ou para a Fé. Nós vivíamos em uma época perfeita e nem sabíamos.

— Sim, vivíamos. Eu concordo. — Kenne suspirou com a memória.

As portas douradas do templo atrás deles foram abertas, e um u’téni mais velho surgiu, Sergei o reconheceu: Petros co’Magnaio, o assistente de Kenne. O homem vivia com Kenne desde a época do archigos Dhosti. Kenne acenou com a cabeça e sorriu para co’Magnaio quando ele pousou uma travessa com frutas e chá entre os dois. Sergei nunca ficou incomodado por Kenne sofrer do que era eufemisticamente chamado de “doença dos gardai”. Havia alguma verdade, afinal, no termo: quando passavam anos em uma campanha, os soldados às vezes encontravam satisfação onde fosse possível, com aqueles que estavam em volta. — O tempo ficará frio com o pôr do sol — disse co’Magnaio. — Pensei que fossem gostar de chá quente.

A mão de Kenne pairou sobre a de co’Magnaio, mas não exatamente a tocou; Sergei sabia que a situação seria diferente se ele não estivesse aqui. — Obrigado, Petros. Não vamos demorar muito aqui, mas agradeço.

Co’Magnaio curvou-se e fez o sinal de Cénzi para eles. — Vou cuidar para que os senhores não sejam incomodados enquanto conversam. Archigos, regente... — O assistente deixou os dois e fechou as portas da sacada ao sair.

— Ele é um bom homem — falou Sergei. — Você deu sorte com ele.

Kenne concordou com a cabeça e olhou afetuosamente para as portas por onde Petros passou. — Falando sobre aqueles que se sentaram no Trono do Sol, Sergei, sinto muito que o kraljiki não tenha podido se juntar a nós na noite de hoje. Como está Audric?

Sergei deu de ombros. Lá embaixo, os ténis-luminosos saíram do templo e seguiram para as lâmpadas mais afastadas da Avi e foram acompanhados pela multidão murmurante. Os pombos desceram dos domos do templo e dos telhados dos prédios do complexo para ciscar nas pedras que ficaram vagas na praça, atrás de restos. — Ele não está bem. — O regente olhou para trás; as portas permaneciam fechadas, mas, ainda assim, Sergei abaixou a voz. — Você teve sorte em achar outro téni com dons de cura?

Kenne suspirou. — Esses sempre foram os dons mais raros, e uma vez que a Divolonté condena seu uso em especial... bem, tem sido difícil, mas eu tenho esperanças. Petros está realizando uma apuração criteriosa. Encontraremos alguém. — O archigos fez uma pausa, olhou para as frutas no prato entre eles e escolheu um pedaço. Kenne tinha mãos compridas e delicadas, mas a pele em volta dos ossos era fina e enrugada, e Sergei notou o tremor quando o archigos levou uma casca de fruta doce aos lábios e a chupou. Não podemos permitir fraqueza tanto no kraljiki quanto no archigos, não se quisermos sobreviver.

— Sergei, temos que considerar o que pode acontecer se o menino morrer — continuou Kenne, quase como se tivesse escutado os pensamentos de Sergei. — Os filhos de Justi... — Ele franziu a testa e devolveu a casca de fruta ao prato. — Amarga demais. Os filhos de Justi nunca foram conhecidos pela longevidade.

Os ténis seguiram pela Avi e sumiram de vista. O som do coro terminou em um acorde etéreo e persistente. — Espero que Cénzi não nos faça encarar essa escolha — falou Sergei com cuidado. — Mas é o que todo mundo está se perguntando, não é?

— Existem os gêmeos ca’Ludovici, Sigourney ou Donatien. Eles são, o quê...? — Kenne franziu os lábios finos em concentração — ...primos em segundo grau de Audric e primos diretos de Justi, pois Marguerite era tantzia-bisamatarh deles. Já são maiores de idade, o que é bom. Donatien, em especial, destacou-se na Guerra dos Hellins, mesmo que as coisas não andem bem ultimamente, e ele é casado com uma ca’Sibelli, uma tradicional família de Nessântico; nós poderíamos chamá-lo de volta dos Hellins. Sigourney, entretanto, pode ser a melhor escolha. Ela ainda carrega o sobrenome ca’Ludovici, logicamente: isto certamente tem um peso incrível aqui, e Sigourney fez sua presença ser sentida no Conselho dos Ca’. Os dois têm direito ao trono mais direto em termos de linhagem, creio eu, e tenho certeza de que o Conselho dos Ca’ apoiaria qualquer uma das duas reivindicações ao Trono do Sol.

Sergei não ficou surpreso ao ver que o pensamento do archigos corria tão paralelo ao seu; ele suspeitava que este fosse o caso por toda parte dos Domínios e também da Coalizão. O regente fez uma pausa e perguntou-se se deveria falar mais. Seria interessante, talvez, ver como Kenne reagiria. — Allesandra ca’Vörl pode alegar ter a mesma linhagem e o mesmo relacionamento através de sua matarh — respondeu Sergei, como se divagasse à toa. — Por falar nisso, o novo hïrzg Fynn pode alegar o mesmo. Eles também são primos em segundo grau de Marguerite, com o mesmo direito ao trono que Sigourney ou Donatien.

Sob a luz intensa das lâmpadas mágicas, as sobrancelhas de Kenne escalaram os sulcos em sua testa. — Você não está sugerindo seriamente...

O tom volúvel era a reação que o regente esperava, e Sergei sorriu rapidamente para dar a impressão de que as palavras eram uma simples brincadeira. — Longe disso. Apenas apontei como Allesandra poderia reagir. Certamente Sigourney ou Donatien seriam boas escolhas, como você sugere, embora talvez nós precisemos que Donatien permaneça como comandante nos Hellins. No entanto, Audric não está morto, e eu preferiria que ele continuasse assim. Porém, se o pior acontecer... Você está certo; nós devemos considerar a sucessão. Os Domínios já estão partidos, graças à incompetência de Justi, e não podemos permitir que o que sobrou se rompa ainda mais. — O regente fez uma pausa. Ele cerrou os olhos e coçou o queixo propositalmente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Mas... talvez os Domínios e a Coalizão possam chegar a um meio-termo se o pior acontecer, Kenne. Um ca’Vörl tomaria o Trono do Sol, mas a fé concénziana seria regida por você, não por Semini ca’Cellibrecca. — Pronto. Vejamos como ele considera a oferta.

— Você aceitaria os assassinos de Ana sentados no Trono do Sol? — O horror na voz do homem era palpável.

Sergei bufou com desdém, um assobio alto soou pelas narinas de metal do nariz falso. — Você está fazendo a mesma acusação que o embaixador ca’Vliomani. Até o presente momento, não tem fundamento.

— Quem mais teria feito isso com Ana, Sergei? Sabemos que não foram os numetodos, pois ela era aliada deles.

Sergei não insistiu mais na questão. Ele já sabia o que precisava. — Isso é algo que meu pessoal está tentando determinar. E vão conseguir. — O fogo do pôr do sol não ardia mais no céu do oeste. As estrelas lutavam contra as chamas frias das lâmpadas mágicas, e o frio da noite tomava conta da cidade. Sergei sentiu um arrepio e levantou-se da cadeira. As juntas do joelho estalaram e protestaram com o movimento; ele gemeu com o esforço. O regente ainda sentia a dor nos músculos e os hematomas da ocasião em que se jogou sobre Audric no templo.

Velhos, realmente...

Petros devia estar vigiando (e com certeza escutando também) pelas frestas das portas do templo; assim que Sergei se levantou, elas foram abertas e um atendente e’téni correu até ele com seu sobretudo. O regente viu Petros parado na penumbra do corredor atrás das portas. — Eu tenho que verificar como Audric está, archigos — disse Sergei ao se ajeitar nas dobras de lã. — Se você encontrar alguém com os dons que discutimos, por favor, mande esta pessoa para o palácio imediatamente.

— Eu mesmo passarei lá em mais ou menos uma virada da ampulheta — falou Kenne. — Petros já deve ter aprontado minha sopa neste momento, mas passarei depois, para ver o que posso fazer.

— Obrigado, archigos. Eu talvez veja você, então.

Ao sair do templo, Sergei perguntou-se se sua mensagem já chegara a Brezno e que recepção teria recebido.

 

Allesandra ca’Vörl

— A FLECHADA DO SEU FILHO foi tão boa quanto uma das minhas — declarou Fynn.

Allesandra duvidava disso. Jan podia não ter o volume e o poder da massa muscular de Fynn. Podia não ser capaz de manejar o peso do aço temperado que alguém como Fynn podia com facilidade fazer, mas o menino cavalgava como ninguém e tinha uma mira com flechas que pouquíssimos poderiam igualar. Allesandra tinha certeza de que nem Fynn, nem outra pessoa qualquer poderia ter acertado, quanto mais derrubado, o cervo montado nas costas de um cavalo a galope.

Porém, pareceu simplesmente melhor apenas aquiescer com a cabeça, dar um falso sorriso para Fynn e concordar. Era a atitude mais segura, mas concordar com a falsidade machucava, pois o orgulho pelo filho fazia com que ela quisesse discordar. Allesandra guardou o sentimento, juntamente com outras mágoas e insultos que Fynn e seu vatarh deram a ela ao longo dos anos.

— Foi sorte eu ter estado lá para dar a última flechada, ou o cervo teria escapado.

Allesandra sorriu novamente, embora soubesse que não tinha sido sorte ou destino, apenas a demonstração de que Jan sabia que não deveria eclipsar a presença do hïrzg. Um gesto político, tão habilidoso quanto qualquer um que ela pudesse ter feito.

Os dois andavam pela sacada leste do Palácio da Encosta do Cervo — tão reservado quanto qualquer um podia ser dentro da propriedade. Os gardai estavam em rígida posição de sentido no ponto onde a sacada fazia uma curva do norte para o sul; era evidente que eles evitavam o hïrzg e a a’hïrzg de maneira impassível enquanto olhavam para fora. Das janelas abertas para entrar a brisa da noite, Allesandra e Fynn ouviam os murmúrios dos convidados na mesa de onde acabaram de sair. Ela conseguiu distinguir a voz de Jan quando ele riu de algo que Semini disse.

Allesandra olhou para leste, na direção da bruma da noite que subia como uma maré lenta que vinha dos vales para as encostas íngremes onde o palácio estava instalado. O topo das sempre-vivas embaixo deles estava envolvido por filamentos de nuvens brancas, embora os picos sem árvores e assolados pelo vento permanecessem banhados pelo sol, que reluzia nos penhascos de granito e nos bancos de neve presos às rochas. Em algum lugar escondido na bruma lá embaixo, uma cachoeira borbulhava e cantava.

— É realmente bonito aqui — disse Allesandra. — Eu nunca me dei conta quando estive aqui quando era menina. O vavatarh Karin escolheu um lugar perfeito: deslumbrante e perfeitamente defensável. Nenhum exército jamais conseguiria tomar a Encosta do Cervo se o local fosse bem defendido.

Fynn concordou com a cabeça, embora não parecesse estar olhando para a paisagem. Em vez disso, ele remexia o punho brocado da manga. — Eu pedi que andasse comigo para que pudéssemos conversar sozinhos, irmã.

— Imaginei que fosse isso. Nós, ca’Vörls, raramente fazemos alguma coisa sem motivos ocultos, não é? — falou Allesandra, que deu um rápido sorriso. — O que você queria me dizer, irmãozinho?

Ele sorriu, brevemente, ao ouvir isso, e o movimento contorceu a larga cicatriz na bochecha. — Você nunca me conheceu quando eu era pequeno.

— Houve uma boa razão para isso. — Sim, aquela mágoa estava bem no âmago da montanha interior, a semente de onde tudo brotou...

— Ou uma má razão. Eu não entendi na época, Allesandra, por que o vatarh deixou você em Nessântico por tanto tempo. Depois que ele finalmente me contou a seu respeito, eu sempre me perguntei por que o vatarh deixou minha irmã mofar em outro país, que ele obviamente odiava tanto.

— Você entende agora? — perguntou ela, e continuou antes que Fynn pudesse responder. — Porque eu ainda não entendo. Sempre esperei que o vatarh se desculpasse ou explicasse, mas ele nunca fez isso. E agora...

— Eu não quero ser seu inimigo, Allesandra.

— Nós somos inimigos, Fynn?

— É o que pergunto a você. Eu gostaria de saber.

Allesandra esperou antes de responder. O parapeito de mármore da sacada sob sua mão estava molhado, o orvalho lustrou os torvelinhos azul-claros na pedra leitosa. — Você acha que, se nossas posições fossem invertidas, e eu tivesse sido nomeada hïrzgin pelo vatarh, então você me consideraria sua inimiga? — perguntou ela com cautela.

Fynn fez uma careta e abanou o ar fresco como se estivesse espantando um inseto irritante. — Tantas palavras... — Ele suspirou alto, e a irmã ouviu a irritação no gesto. — Você faz discursos que entram em meus ouvidos e distorcem o significado das minhas próprias palavras, Allesandra. Eu nunca fui capaz de duelar com palavras e discursos; esta não é uma das minhas habilidades. Também não era uma habilidade do vatarh. Ele sempre dizia exatamente o que pensava: nem menos, nem mais, e o que não queria que alguém soubesse, ele não dizia de maneira alguma. Eu fiz uma pergunta bem simples, Allesandra: você é minha inimiga? Por favor, faça a gentileza de dar uma resposta simples, sem enfeites.

— Não — respondeu ela com firmeza, depois balançou a cabeça. — Fynn, apenas um idiota responderia com outra coisa que não “não, nós não somos inimigos”. Você também sabe disso, apesar dos protestos. Você pode ser muitas coisas, mas não é tão simples assim, e eu não sou tão tola a ponto de cair em uma armadilha tão óbvia. Qual é a verdadeira pergunta que você está escondendo?

Fynn bufou com irritação e bateu com a mão no parapeito. Allesandra pôde sentir o impacto da mão, que fez tremer o parapeito. — Existem... existem pessoas... — Ele parou e respirou fundo, bem alto. Quando soltou o ar, Allesandra viu a condensação diante do rosto de Fynn. Ele tocou a coroa dourada e lisa que usava na cabeça. — O vatarh me disse antes de morrer que havia rumores entre os chevarittai e os ténis mais graduados da fé concénziana. Alguns deles eram contra minha nomeação como o a’hïrzg ou diziam que eu era... estúpido demais. — Ele cuspiu a palavra como se tivesse um gosto desagradável na língua. — Alguns deles queriam que você tivesse aquele título ou queriam outra pessoa completamente diferente para assumir a coroa dos hïrzgai.

— O vatarh disse para você quem espalhava esses rumores? De onde eles vinham? — indagou ela. Allesandra tinha que fazer a pergunta. Ela tremeu um pouco e esperou que Fynn não tivesse notado. — O vatarh contou quem disse isso?

No entanto, Fynn apenas balançou a cabeça. — Não. Nenhum nome. Apenas... que havia pessoas que seriam contra mim. Se eu encontrá-las... — O hïrzg respirou fundo pelo nariz e fez uma expressão séria. — Eu acabarei com elas. — Ele olhou diretamente para a irmã. — Eu não me importo com quem elas sejam e não me importo com quem eu tenha que machucar.

Allesandra virou a face para que ele não pudesse vê-la e olhou para a névoa que passava pelos pinheiros logo abaixo. Ótimo. Porque eu conheço algumas dessas pessoas, e elas me conhecem... — Você não pode punir rumores, Fynn. Não pode acorrentar e aprisionar fofocas da mesma forma que não pode capturar a bruma.

— Eu não acho que o vatarh tenha sido enganado pela bruma.

— Então, o que você quer de mim, irmãozinho?

Era isso que Fynn queria que ela perguntasse. Allesandra percebeu pela expressão dele, sob a luz que diminuía no céu. — No Besteigung — ele começou a falar, depois parou para colocar a mão em cima da mão da irmã, no parapeito. Não pareceu um gesto afetuoso. — Você é aquela para quem todos olham. Você é aquela que poderia ter sido hïrzgin se o vatarh não mudasse de ideia. Os ca’ e co’ ainda gostam de você, e muitos acham que o vatarh agiu mal a seu respeito. Os rumores sempre giram em torno de você, Allesandra. Você. Eu quero parar com os rumores; quero que não haja razão alguma para eles existirem. Então... no Besteigung, eu quero que você, e Pauli e Jan também, façam um voto formal de lealdade ao trono. Em público, para que todos ouçam vocês dizerem as palavras.

Elas seriam apenas palavras, Allesandra quis dizer para o irmão, com tanto significado quanto as que eu disse agora “não, Fynn, não sou sua inimiga”. Palavras e votos não significam nada: para saber isso, basta olhar para a história... Mas ela sorriu gentilmente para o irmão e deu um tapinha na mão dele. Talvez ele realmente fosse simples assim, tão inocente? — Claro que faremos isso — disse Allesandra. — Eu sei qual é o meu lugar. Sei onde eu devo estar e onde quero estar no futuro.

Fynn concordou com a cabeça e afastou a mão da irmã. — Ótimo — disse ele com um tom alto de alívio na voz. — Então nós esperamos por isso. — Nós... Ela ouviu o plural real na voz, completamente inconsciente, e franziu os lábios diante disso. — Eu gosto de seu filho — disse Fynn subitamente. — Ele é inteligente, como você, Allesandra. Eu odiaria achar que Jan esteve envolvido em algum plano contra mim, mas se ele esteve, ou se a família dele esteve... — O rosto ficou contraído novamente. — O ar está frio e úmido aqui fora, Allesandra. Eu vou entrar. — Fynn deixou a irmã e voltou para o calor do salão comunal do palácio. Allesandra ficou ao lado do parapeito um instante mais antes de segui-lo. Observando até que as brumas estivessem quase no mesmo nível que ela e o mundo lá embaixo tivesse desaparecido na penumbra e nas nuvens.

Allesandra pensou em ser hïrzgin e percebeu que o Grande Trono de Brezno jamais a satisfaria, mesmo que tivesse sido dela. Era uma conclusão difícil, mas ela soube agora que foi em Nessântico que tinha sido mais feliz, que tinha se sentido mais em casa.

— Eu sei qual é o meu lugar, irmão — sussurrou Allesandra para o silêncio da bruma. — Eu sei. E será meu.

 

Nico Morel

NICO OUVIU TALIS FALAR no outro cômodo, embora a matarh tenha ido à praça para comprar pão.

A matarh deu um beijo e mandou Nico tirar uma soneca, disse que voltaria antes do jantar. Mas ele não conseguiu dormir, não com o barulho de gente na rua bem do lado de fora das persianas da janela, nem com o sol que penetrava pelas frestas entre as tábuas. De qualquer maneira, Nico estava velho demais para sonecas. Aquilo era coisa de criança, e ele estava se tornando um homenzinho. A matarh também disse isso para ele.

Nico jogou os cobertores para o lado e cruzou o quarto de mansinho. Inclinou o corpo para frente, o suficiente para enxergar pela borda da porta arranhada e empenada que nunca fechava direito — fez questão de não tocá-la, pois sabia que as dobradiças dariam um alarme enferrujado. Através da fenda entre a porta e a ombreira, ele conseguiu ver Talis. Ele estava debruçado sobre a mesa que a matarh usava para preparar as refeições. Havia uma tigela rasa sobre a mesa, e Nico franziu os olhos em um esforço para ver melhor: animais entalhados dançavam pela borda, e a tigela tinha o mesmo tom castigado pelo clima da estátua de bronze de Henri IV, na praça do Velho Distrito. A matarh não tinha uma tigela de metal, pelo menos nenhuma que Nico tivesse percebido; os animais entalhados também eram estranhos: um pássaro com a cabeça de uma cobra; um lagarto escamoso com um focinho comprido cheio de dentes arreganhados. Talis despejou água do jarro da matarh dentro da tigela, depois desamarrou uma bolsinha de couro do cinto e sacudiu um pó avermelhado e fino na palma da mão. Ele polvilhou o pó na água como se estivesse salgando comida. Passou a mão sobre a tigela como se acalmasse alguma coisa, depois disse palavras na língua estranha que às vezes falava quando sonhava à noite, aninhado com a matarh de Nico na cama.

Uma luz pareceu brilhar dentro da tigela e iluminou o rosto de Talis com um tom pálido de amarelo esverdeado. Ele olhou fixamente o interior da tigela brilhante, de boca aberta, e a cabeça foi se aproximando cada vez mais, como se Talis estivesse pegando no sono, embora os olhos estivessem arregalados. Nico não sabia dizer por quanto tempo ele encarou a tigela — bem mais do que o tempo em que Nico tentou prender a respiração. Enquanto assistia, Nico achou que sentiu uma friagem, como se soprasse um vento de inverno da tigela, tão frígido que ele estremeceu. A sensação ficou mais intensa, e o fôlego que Nico tomou deu a impressão de sugar todo o frio, embora o ar, de alguma forma, quase parecesse quente dentro do corpo. O que fez com que ele quisesse expelir o ar, como se pudesse cuspir fogo gelado.

No outro cômodo, a cabeça de Talis pendeu ainda mais. Quando o rosto pareceu estar a dois centímetros de tocar a borda da tigela, o brilho sumiu tão repentinamente quanto surgiu, e Talis arfou como se respirasse pela primeira vez.

Nico também arfou, involuntariamente, como se o frio e o fogo dentro dele tivessem sumido no mesmo momento. O menino começou a recuar a cabeça da porta, mas foi detido pela voz de Talis. — Nico. Filho.

Ele voltou a espiar. Talis olhava fixamente para Nico, com um sorriso que contorcia as linhas do rosto moreno-escuro. Havia mais rugas ali ultimamente, e o cabelo de Talis começou a ficar salpicado de fios grisalhos. Ele gemeu ao se levantar rápido demais, e as juntas às vezes rangiam, embora a matarh dissesse que Talis tinha a mesma idade que ela. — Está tudo bem, filho. Não estou bravo com você. — O sotaque de Talis também parecia mais carregado do que o normal. Ele gesticulou para Nico, que notou uma mancha de pó vermelho ainda na palma da mão. Ele suspirou como se estivesse cansado e precisasse dormir. — Venha aqui. — Nico hesitou. — Não se preocupe; venha aqui.

Nico empurrou a porta para abri-la; a dobradiça, como ele sabia, rangeu alto, e foi até Talis. O homem ergueu o menino (sim, ele gemeu com o esforço) e colocou-o em uma cadeira perto da mesa para que pudesse ver a tigela. — Nico, esta é uma tigela especial que eu trouxe comigo do país onde costumava viver. Veja... tem água dentro. — Talis mexeu na água com um dedo. Ela parecia completamente normal agora.

— A tigela é especial porque faz a água brilhar? — perguntou Nico.

Talis continuou a sorrir, mas o jeito com que as sobrancelhas desceram sobre os olhos fez o sorriso parecer de certa forma inadequado no rosto. Nico viu o próprio rosto no reflexo das íris marrom-escuras dos olhos de Talis. Havia dobras fundas nos cantos daqueles olhos. — Ah, você viu aquilo, não é?

Nico concordou com a cabeça e perguntou — Aquilo era magia? Eu sei que não é um téni porque nunca vi você ir ao templo com a matarh e eu. Você é um numetodo?

— Não, não sou um numetodo, nem um téni da fé concénziana. O que você viu não era magia, Nico. Era apenas a luz do sol que entrou pela janela e foi refletida pela água na tigela, só isso. Eu também vi; era tão intensa que parecia que havia um pequeno sol debaixo d’água. Eu gostei como a tigela ficou, então a observei por um tempo.

Nico concordou com a cabeça, mas se lembrou do pó vermelho, da cor estranha e verdejante da luz e da maneira como a claridade banhou o rosto de Talis, como se fosse acariciado por uma mão de luz. Ele lembrou do fogo frio, mas não mencionou nada disso. Pareceu melhor não mencionar, embora não tivesse certeza do porquê.

— Eu amo você, Nico — continuou Talis, que se ajoelhou no chão perto da cadeira de Nico, de maneira que os rostos ficassem na mesma altura. Ele pousou as mãos nos ombros do menino. — Eu amo Serafina... sua matarh... também. E a melhor coisa que ela me deu na vida, a coisa que mais me deixou feliz, é você. Sabia disso?

Nico concordou novamente. Talis apertou os dedos em seus braços com tanta força que ele não conseguia se mexer. O rosto de Talis estava quase próximo ao seu, e Nico sentiu o cheiro de bacon e chá adoçado com mel no hálito do homem, e também um leve traço de algum condimento que não conseguiu identificar de forma alguma. — Ótimo — falou Talis. — Agora, preste atenção, não há necessidade de comentar sobre a tigela ou a luz do sol com sua matarh. Eu pensei que um dia pudesse dá-la de presente para sua matarh, e quero que seja uma surpresa, e você não quer estragá-la, não é?

Nico balançou a cabeça ao ouvir isso, e Talis deu um largo sorriso, como se tivesse contado uma piada para si mesmo que Nico não ouviu. — Excelente — disse ele. — Agora, deixe-me terminar de lavar a tigela, que era o que eu estava começando a fazer quando você me viu. É por isso que coloquei água dentro dela. — Talis soltou Nico; o menino esfregou os ombros enquanto o homem pegou a tigela, mexeu de maneira ostentosa a água dentro dela e depois abriu as persianas da janela para jogá-la na jardineira com flores. Talis secou a tigela com a bashta de linho, e Nico ouviu o tom do metal. Viu Talis colocar a tigela dentro de uma bolsa que ele mantinha debaixo da cama que compartilhava com sua matarh, depois recolocar a bolsa debaixo do colchão de palha.

— Pronto — falou Talis ao endireitar o corpo novamente. — Este será nosso segredinho, hein, Nico? — Ele piscou para o menino.

Esse seria o segredo deles. Sim.

Nico gostava de segredos.

 

A Pedra Branca

ELES VINHAM A ELA À NOITE, aqueles que a Pedra Branca matou. À noite, eles agitavam-se e acordavam. Reuniam-se em volta da Pedra Branca em sonhos e falavam com ela. Geralmente, quem falava mais alto era o Velho Pieter, a primeira pessoa que ela matou.

Ela tinha 12 anos.

— Lembre-se de mim... — murmurava o Velho Pieter para ela durante o sono. — Lembre-se de mim...

O Velho Pieter era um vizinho no modorrento vilarejo na Ilha de Paeti, e ela conhecia o homem desde que nasceu, especialmente depois que seu vatarh morreu, quando ela tinha seis anos. O Velho Pieter sempre foi amigável com ela, ria e dava como presentes os animais que ele entalhava a partir de galhos de árvore, com a pequena faca que sempre levava no cinto. Ela pintava os animais que ganhava e colocava no parapeito da janela em seu pequeno quarto, onde pudesse vê-los todas as manhãs.

O Velho Pieter tinha cabras, e, quando sua matarh permitia, ela às vezes ajudava o homem com o pequeno rebanho. No dia em que sua vida mudou, no dia que entrou no caminho que a traria até aqui, ela havia saído com Pieter e as cabras perto do Água Berrante, um córrego barulhento que descia rápido das encostas da Colina dos Carneiros, um dos morros altos ao sul do vilarejo. As cabras pastavam placidamente perto do córrego, e ela andava perto dos animais quando viu um corpo no chão: uma corça recém-morta, com o corpo dilacerado por carniceiros e moscas que começavam a se agitar em volta da carcaça. A cabeça da corça, no longo pescoço castanho-amarelado, olhava com desespero com seus belos olhos grandes.

— Se cê olhar no olho direito, cê vai ver o que matou ela.

Uma mão acariciou seu ombro e desceu pelas costas antes de se afastar. Ela levou um susto, pois não percebeu que o Velho Pieter surgira por trás. — O olho direito tá ligado à alma de uma pessoa ou de um animal — continuou ele. — Quando um ser vivo morre, bem, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto ou a coisa que matou ele. Olhe dentro do olho daquela corça que cê vai ver lá dentro: um lobo, tarvez. Acontece com gente, também. Assassinos são capturados desse jeito: quando alguém olha no olho direito da pessoa que eles mataram e vê o rosto do assassino ali.

Ela estremeceu ao ouvir isso e afastou-se, o Velho Pieter riu. A mão do homem tirou do rosto da menina as mechas de cabelo que escaparam das tranças, e ele sorriu afetuosamente para ela. — Agora, não fique transtornada, menina. Anda, vai cuidar das cabras, que eu vou entalhar alguma coisa procê.

O Velho Pieter voltou a ela no fim da tarde, quando a menina estava sentada às margens do Água Berrante vendo o córrego passar pelo leito rochoso. — Aqui, cê gostou? — perguntou ele.

Era uma figura humana entalhada, pequena o suficiente para ela esconder facilmente na mão: uma figura nua e inegavelmente feminina, com pequenos seios como os que brotavam em seu próprio peito. O cabelo a deixou mais perturbada: há uma lua, uma mulher ca’ de Nessântico passou pela cidade e ficou uma noite na estalagem da estrada para An Uaimth. O cabelo da mulher era trançado e preso em um nó complicado atrás da cabeça; fascinada por este vislumbre da moda de fora, a menina trabalhou por dias para imitar aquelas tranças; desde então, ela trançava o cabelo todo dia, da mesma maneira. Estava trançado agora, igual ao da figura nua, e a mão foi involuntariamente ao nó do cabelo atrás da cabeça. Ela quis, de repente, desmanchá-lo.

A menina olhou fixamente para o entalhe, sem saber o que dizer, e sentiu a mão do Velho Pieter na bochecha. — É ocê. Tá virando uma mulher agora.

A mão do homem pegou a cabeça dela e puxou a menina em sua direção, apertou-a com força contra ele. Ela sentiu a excitação do Velho Pieter, dura contra a sua coxa. A menina soltou a boneca.

O que aconteceu em seguida ela jamais esqueceria: a dor e a humilhação do ato. A vergonha. E depois que acabou, depois que o peso do homem saiu de cima dela, a menina viu o cinto caído na grama ao lado, e ali estava a bainha com a faca, que ela pegou. A menina pegou o cabo com as mãos tremendo, chorando, com sua tashta arrancada e meio rasgada, com seu sangue e o sêmen dele espalhados nas coxas, pegou com toda a raiva, fúria e medo por dentro e esfaqueou o Velho Pieter. Enfiou a faca na parte baixa da barriga do homem, e quando ele gemeu e berrou assustado, ela puxou a lâmina e a enfiou mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez até que ele parou de gritar, parou de bater na menina com os punhos e parou de se mover completamente.

Coberta no próprio sangue e no sangue do Velho Pieter, ela deixou a faca cair quando se ajoelhou ao lado dele. Os olhos mortos do homem encararam a menina.

— Quando um ser vivo morre, o olho direito se lembra da última coisa que viu: o último rosto que viu...

Ela quase se arrastou até a margem do Água Berrante. Encontrou uma pedra ali, um seixo branco e polido pela água, do tamanho de uma moeda grande. A menina trouxe a pedra de volta e enfiou no olho direito do homem. Depois, ficou encolhida ali, a poucos passos do Velho Pieter, até que o sol estivesse praticamente posto e as cabras se reunissem ao redor dela. Os animais baliram e queriam voltar aos estábulos. A menina acordou, como se tivesse dormido, viu o corpo ali e se percebeu sendo levada na direção dele pela curiosidade. Ela levou a mão trêmula ao rosto do homem, ao olho direito coberto pelo seixo, e pegou a pedra. O seixo pareceu quente de um modo estranho. O olho embaixo estava cinza e opaco, e embora a menina tenha olhado com cuidado, não viu nada ali: nenhuma imagem de si mesma. Absolutamente nada. Ela apertou com força o seixo na mão: a pedra quente quase pulsava com vida. Sua respiração estremeceu quando ela apertou o seixo contra o peito.

Então, ela foi embora e deixou o corpo ali. Foi para o sul, não para o norte, e levou o seixo consigo.

A menina jamais retornaria para o vilarejo onde nasceu. Nunca mais veria sua matarh novamente.

A Pedra Branca revirou-se no sono. — Eu não queria machucar ocê, menina — sussurrou o Velho Pieter nos sonhos. — Não queria mudar ocê. Sinto muito, sinto muito...

 

 


CONTINUA