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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MAGIA DO ANOITECER
A MAGIA DO ANOITECER

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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                            PRESSÁGIOS 

 

          Enéas co’Kinnear

          Audric ca’Dakwi

          Sergei ca’Rudka

          Allesandra ca’Vörl

          Karl ca’Vliomani

          Enéas co’Kinnear

          Jan ca’Vörl

          Sergei ca’Rudka

          Nico Morel

          Varina ci’Pallo

          Allesandra ca’Vörl

          A Pedra Branca


Enéas co’Kinnear

AGORA ELE QUERIA ter se preocupado em aprender mais da língua ocidental.

Enéas conhecia algumas das palavras, o suficiente para se virar nos bazares ruidosos, cheirosos e lotados de Munereo. Lá, entre a multidão que tagarelava e se acotovelava, podia-se encontrar perfumes doces das planícies de Horn Ocidental; iguarias doces, escuras e saborosas das florestas do Grande Rio do Sul; cestas com pinturas elaboradas dos povos da Grande Espinha; belas peças de lã das ovelhas dos morros do nordeste de Paeti, tingidas com tons intensos de verde e laranja, com estampas elaboradas, bordadas em padrões geométricos; frutas e ervas exóticas que os vendedores diziam vir de todas as partes dos grandes lagos internos do continente ocidental. Nos mercados oficiais, Enéas encontrava produtos inferiores com preços duas ou três vezes mais altos do que pagaria nos mercados abertos, vendidos por ocidentais que sabiam a língua de Nessântico.

Mas era nos bazares, escondidos no labirinto de ruas estreitas da cidade onde os habitantes nativos ainda moravam, que os verdadeiros tesouros eram encontrados, e lá ninguém falava a língua de Nessântico, mesmo que soubesse.

Munereo... era um sonho. Outra vida, como a época em que ele viveu na própria Nessântico. Comparados à dura realidade, aqueles tempos pareciam ter acontecido com outra pessoa, inteiramente em outra vida.

Enéas sabia que as pessoas de puro sangue nativo eram chamadas de tehuantinos. Neste momento, era com os tehuantinos que eles lutavam. Os tehuantinos fluíram para os Hellins vindos das montanhas a oeste, após o comandante Petrus ca’Helfier ter sido assassinado por ter estuprado ou se apaixonado por — dependia de quem contava — uma mulher tehuantina. Ca’Helfier fora assassinado por um ocidental. Então, o novo comandante — Donatien ca’Sibelli — retaliou, houve tumultos, baderna e agitação crescentes, e o conflito finalmente se expandiu em uma guerra aberta, com cada vez mais tehuantinos vindo dos Hellins.

Agora Enéas seria uma nova baixa naquela guerra. Se esta for a Sua vontade, Cénzi, então irei até o Senhor com prazer...

Ele gemeu ao levar um chute nas costelas de um pé em sandálias levando o fôlego e as memórias embora. Alguém rosnou alguma coisa rápida e praticamente ininteligível na língua dos tehuantinos para Enéas. — ...pé... — ouviu ele. — ...momento... — Enéas fez um esforço para abrir os olhos, que estavam apertados contra o sol implacável, para ver a carranca do ocidental: a pele da cor de chá; as bochechas tatuadas com faixas azuis e pretas da classe guerreira; os dentes brancos; a armadura de bambu no corpo, e, na mão, uma espada curva ocidental que o homem usava para gesticular e que fazia um som audível quando a lâmina cortava o ar.

Enéas tentou mexer as mãos e descobriu que estavam firmemente amarradas atrás das costas. Ele lutou para se levantar, mas a perna e o tornozelo feridos recusaram-se a cooperar. — Não — falou Enéas na língua ocidental. O o’offizier tentou fazer com que a recusa soasse menos rebelde e procurou na mente confusa pelo cansaço as palavras que poderia usar. — Eu... machucado. Não posso... pé. — Enéas torceu para que o ocidental entendesse a sintaxe e o sotaque capengas.

O ocidental suspirou com irritação. O homem ergueu a espada, e Enéas soube que estava prestes a morrer. Eu vou ao Senhor, Cénzi. Ele esperou pelo golpe e ergueu os olhos para ver o golpe mortal, para que o ocidental soubesse que não tinha medo.

— Não. — Enéas ouviu a palavra; outra voz. Uma mão deteve o braço do ocidental assim que começou a descer. Outro tehuantino entrou no campo de visão de Enéas. Não havia marcas de classe no rosto deste homem, as mãos não tinham calos e pareciam ser macias, e ele usava uma roupa simples e folgada que não era diferente das bashtas e tashtas da terra natal do o’offizier. À exceção do chapéu decorado com plumas que o homem usava sobre o cabelo escuro e oleoso, ele poderia se passar simplesmente por um estrangeiro qualquer em Nessântico. — Não, Zolin — repetiu o sujeito para o guerreiro, depois liberou uma enxurrada de palavras velozes demais para Enéas compreender.
O guerreiro grunhiu e embainhou a arma. Ele gesticulou uma vez para Enéas. — ...ruim... sua escolha... nahual Niente — disse o homem e foi embora.

Nahual. Isso queria dizer que seu salvador era o líder dos nahualli, os ténis-guerreiros dos ocidentais. “Niente” podia ser um nome, podia ser um título secundário; Enéas não sabia. Ele encarou o homem e notou que seu cinto continha dois dos estranhos apetrechos em forma de tubo de marfim que foram usados para matar o a’offizier ca’Matin. Enéas perguntou-se se seria o próximo; teria preferido a espada. Ele fechou os olhos e ofereceu outra rápida prece silenciosa para Cénzi.

— Você consegue andar, o’offizier?

Enéas abriu os olhos ao ouvir o sotaque carregado de Nessântico. O nahual Niente olhava fixamente para ele, que balançou a cabeça. — Com dificuldade. Meu tornozelo e a perna...

O homem resmungou e ajoelhou-se ao lado de Enéas. Ele tocou a perna do o’offizier sob o uniforme e sondou com as mãos. Enéas soltou um ganido involuntário quando o nahualli manipulou seu pé. Niente resmungou novamente e chamou alguém. Um jovem veio correndo com uma grande bolsa de couro e entregou para o feiticeiro. O homem vasculhou o interior e tirou uma peça comprida de linho branco. Ele enfaixou a perna de Enéas e bateu na mão do o’offizier quando ele tentou detê-lo. — Deite-se, se quiser viver — falou o nahualli.

Após enfaixar completamente a perna de Enéas, o nahualli ficou de pé. Fez um gesto e falou uma palavra na própria língua. Imediatamente, Enéas sentiu o pano se apertar na perna e gritou. Ele tentou arrancá-lo com as unhas, mas o pano não era mais feito de linho macio. A perna parecia presa por um torno de aço implacável, e um fogo lento ardeu dentro dela enquanto o o’offizier se debatia no chão e o nahual entoava um cântico na própria língua.

A agitação de Éneas não adiantou. O coração inflamou até ele gritar de dor...

... e o fogo abruptamente se apagou. Enéas atacou o pano novamente, que agora era apenas pano e nada mais. Ele desenfaixou a perna enquanto o nahualli assistia impassivelmente, esperou ver a perna negra, cheia de bolhas e esmagada. Mas os hematomas que manchavam a perna tinham sumido, e o inchaço em volta do tornozelo diminuiu.

— Agora, fique de pé — disse o nahualli.

Enéas levantou-se. Não havia mais dor, e a perna estava intacta e forte.

Cénzi, o que ele fez? Sinto muito... — Por que você fez isso? — disse o o’offizier com raiva.

O homem encarou Enéas da maneira como se encara uma criança retardada. — Para que você pudesse andar.

— Curar com o Ilmodo vai contra a Divolonté — disse Enéas com raiva. — Minha recuperação estava nas mãos de Cénzi, não nas suas. É Dele a escolha de me curar ou não. Vocês selvagens usam o Ilmodo de modo errado.

O nahualli torceu o nariz ao ouvir isso. — Eu usei um encantamento que poderia ter usado em um dos meus homens, o’offizier. Você está de pé, curado e, no entanto, está sendo ingrato. Toda sua gente é assim arrogante e estúpida?

— Cénzi... — Enéas começou a falar, mas o homem o interrompeu com um gesto.

— Seu Cénzi não está aqui. Aqui, Axat e Sakal reinam, e foi o X’in Ka e não o seu Ilmodo que eu usei. Agora, venha comigo.

— Por quê? Onde estamos indo?

— Para nenhum lugar que você conheça. Venha ou morra aqui, caso se sinta melhor assim.

— Você vai me matar de qualquer maneira. Eu vi o que vocês fazem com os capturados. — Enéas gesticulou para os apetrechos no cinto do homem. O nahualli tocou os objetos, os dedos alisaram o osso curvo.

— Acredite no que quiser — disse ele. — Venha comigo ou morra aqui. Não me importo com a sua escolha.

O nahualli começou a ir embora. De pé, Enéas pôde ver o acampamento dos ocidentais sendo desmanchado à sua volta em uma manhã escura, que ameaçava chover. Agora mesmo, muitas tropas dos tehuantinos iam embora marchando para o nordeste: os offiziers deles estavam montados, os homens andavam com longas lanças nos ombros. Enéas notou o grande círculo enegrecido, o resquício da grande fogueira ainda fumegante que ele tinha visto na noite anterior. Uma arcada inconfundível de costelas queimadas surgiu das brasas. Enéas estremeceu ao ver aquilo, pois sabia que o esqueleto devia ser de ca’Matin ou de outro colega soldado.

Ele viu o nahualli gesticular para um dos guerreiros por quem passou e apontar de volta para Enéas. Cénzi, o que devo fazer? O que o Senhor quer de mim?

Como se fosse a resposta, as nuvens abriram-se a noroeste, e ele viu um facho de luz do sol pintar os morros da cor de esmeralda ao longe, antes de sumir novamente.

— Espere — falou Enéas. — Eu vou com você.

 

Audric ca’Dakwi

— VOCÊ NÃO PODE CONTAR PARA NINGUÉM que eu converso com você, Audric — disse a mamatarh. Os olhos pintados do quadro cintilaram ao dar o aviso, e o rosto envernizado ficou sério. — Você entendeu, não é?

— Eu podia... contar para Sergei — sugeriu Audric, que estava diante do quadro com um candelabro na mão. Ele dispensou Seaton e Marlon pelo resto da noite, embora soubesse que os dois dormiam na câmara ao lado e viriam se fossem chamados. A respiração estava difícil; ele lutava por cada fôlego, as palavras saíam em espasmos ofegantes. Audric sentiu o calor do fogo na lareira em frente. — Ele... acreditaria em mim. Ele... entenderia. A senhora... confiava nele, não?

Mas o rosto no quadro balançou a cabeça, um movimento praticamente imperceptível à luz instável das velas. — Não — sussurrou ela. — Nem mesmo Sergei. Que eu converso com você, que dou conselhos, isso deve ser segredo nosso, Audric. Segredo nosso. E você tem que começar a se impor, Audric: como eu me impus, desde o início.

— Eu não tenho... 16 anos. Sergei é... o regente, e é... a palavra dele... que o Conselho dos Ca’... ouve... Sigourney e os demais... — O esforço de falar era um sacrifício, e Audric não conseguiu terminar. Ele fechou os olhos e ouviu a resposta de sua mamatarh.

— O regente e o Conselho têm que entender que você é o kraljiki, não Sergei — interrompeu Marguerite com rispidez. — A Guerra nos Hellins... não vai bem. Há perigo lá.

Audric concordou com a cabeça, com os olhos ainda fechados. — Sergei... sugeriu retirar... nossas tropas, ou talvez... — ele fez uma pausa porque foi acometido por outro acesso de tosse — ... até mesmo abandonar as cidades... em que nos estabelecemos... nos Hellins até... que os Domínios sejam... unificados novamente, quando pudermos... dar recursos a elas...

— Não! — A palavra foi quase um guincho, tão alto que Audric tapou os ouvidos e arregalou os olhos, surpreso ao ver que a boca no quadro não estava aberta em fúria e que Seaton e Marlon não entraram correndo no quarto, em pânico; porém, as mãos nos ouvidos não conseguiam deter a voz de Marguerite em sua cabeça. — Você sabe do que me chamavam no início do meu reinado, Audric? O seu mestre de lições lhe contou?

— Ele contou. Eles chamavam a senhora... de “Spada Terribile”... a Espada Terrível.

O rosto no quadro assentiu sob o brilho fraco das velas. — Eu era a Espada Terrível. Eu trouxe a paz aos Domínios primeiro pela espada do meu exército, antes de um dia eu virar a Généra a’Pace. Eles se esquecem disso, aqueles que se lembram de mim. Você tem que ser forte e firme da mesma maneira, Audric. Os Hellins: eles têm uma terra rica, que traria grande riqueza aos Domínios, se você tiver a coragem de pegá-la e mantê-la.

— Eu terei — falou Audric fervorosamente. Imagens de guerra passaram pela sua mente, de si mesmo no Trono do Sol com mil pessoas ajoelhadas diante dele, e nenhum regente ao lado.

— Ótimo — respondeu Marguerite. — Excelente. Ouça o que eu digo e vou lhe contar o que você tem que fazer para ser o maior dos kraljiki. Audric, o Grande; Audric, o Amado.

Ao ver o sorriso da mamatarh, ele finalmente concordou com a cabeça. — Eu serei tudo isso. — Audric respirou ofegante novamente e tossiu. — Eu serei.

— Será o que, kraljiki?

Audric deu meia-volta ao ouvir a pergunta e quase derrubou o candelabro com o movimento, que foi tão violento que duas das velas foram apagadas. O esforço provocou espasmos ofegantes, e o regente Sergei correu para pegar o candelabro das mãos do kraljiki e apoiar o menino com um braço em volta de sua cintura. No nariz lustroso e reluzente do regente, Audric vislumbrou o archigos Kenne à espreita, nas sombras perto da porta, mantida aberta para os dois por Marlon. Ca’Rudka ajudou Audric a desmoronar em uma das cadeiras estofadas em frente à lareira. Marguerite olhou para ele com uma expressão indecifrável. — Aqui, meu kraljiki, um pouco do xarope do curandeiro — falou ca’Rudka ao colocar uma taça nos lábios de Audric, que encarava o quadro. O menino balançou a cabeça e afastou a bebida.

Ela diz que os curandeiros não ajudarão, Audric quis falar, mas não falou, e a boca bem fechada de Marguerite curvou-se em um ligeiro sorriso. As pálpebras do kraljiki queriam se fechar, mas ele obrigou-as a ficarem abertas. — Não — disse o menino.

Ca’Rudka franziu a testa, mas pousou a taça e falou — Eu trouxe o archigos. Deixe que ele reze pelo senhor...

Audric ergueu o olhar para o quadro e viu a mamatarh concordar com a cabeça. Ele fez o mesmo, e o archigos Kenne entrou apressadamente no quarto. Enquanto o archigos se ocupava com o cântico e o gestual, Audric ignorou os dois homens. Ele só tinha olhos para o quadro e para o olhar sereno da mamatarh. Marguerite falou com o neto enquanto Kenne tocava em seu peito e o calor do Ilmodo amenizava a congestão nos pulmões.

— Nós podemos fazer isso juntos, Audric. Você é o neto que eu sempre quis ter em vida. Ouça o que eu digo, e em toda a história não haverá um kraljiki que poderá se igualar a você. Eu vou lhe ajudar. Ouça o que eu digo...

— Eu estou ouvindo — disse Audric para ela.

— Kraljiki? — falou o regente ca’Rudka, que acompanhou o olhar de Audric até o quadro. O kraljiki perguntou-se se o homem também tinha ouvido o sussurro, mas aí o nariz de prata do regente reluziu à luz das velas quando ele se virou de volta e refletiu a própria imagem de Audric. — Nenhum de nós disse coisa alguma.

Audric balançou a cabeça e falou — Realmente. E é por isso que eu ouço.

Ca’Rudka deu um sorriso hesitante. Kenne, em meio ao encantamento, deu de ombros. — Ah, uma piada — disse o regente. Ele deu uma risadinha sem graça. — Está se sentindo melhor, kraljiki?

— Estou, Sergei. Sim. Obrigado, archigos. Você pode ir. — O archigos não se mexeu, e Audric fechou a cara. — Eu disse, archigos, você pode ir.

Kenne arregalou os olhos e Audric viu o archigos olhar para Sergei, que deu de ombros. Kenne fez uma mesura e o sinal de Cénzi e saiu.

— Aquilo foi uma grosseria — disse Sergei para Audric depois que Marlon fechou as portas do quarto do kraljiki ao sair. — Depois dos esforços e preces do archigos...

— As preces do homem tinham acabado — falou Audric com uma agressividade que jamais havia usado com Sergei antes. Ele olhou para o quadro e viu a mamatarh acenar com a cabeça, como se estivesse satisfeita. A voz de Marguerite murmurou em sua cabeça. — Sergei não se importa com você, Audric. Ele apenas quer manter o poder que é seu. Não quer que você seja o que pode ser. Quer que você continue fraco, que sempre precise dele, para se manter como regente. — A força da mamatarh pareceu fluir por Audric. Ele descobriu que podia falar sem as pausas, sem tossir. O kraljiki falou tão bem e com tanta força quanto o próprio Sergei. — Preciso falar com você, regente, sobre os Hellins. Andei considerando a situação de lá desde nossa última conversa. Decidi mandar outra divisão da Garde Civile para complementar nossas tropas lá.

Audric ficou orgulhoso de como a voz soou: altiva, forte e intensa. Ele sorriu para Marguerite, e, sob a luz das velas, ela acenou com a cabeça para o neto.

 

Sergei ca’Rudka

— DECIDI... MANDAR outra... divisão da... Garde Civile... para complementar... nossas tropas... lá — falou Audric.

O menino mal conseguiu colocar as palavras para fora no meio das arfadas e da tosse. A raiva dentro dele pareceu tornar a agonia ainda pior do que o normal, como se as preces do archigos Kenne não tivessem feito nada.

Sergei obrigou-se a ficar impassível, a não revelar nada do que pensava. Deixe o menino ter seu acesso de raiva. Porém, as palavras deixaram o regente preocupado: não parecia Audric falando; ele escutava as palavras de outra pessoa. Quem andou falando com o menino? De quem era o conselho que foi sussurrado em seu ouvido para ele declamar? Um dos chevarittai, talvez, em busca de glória na guerra. Talvez a própria Sigourney, uma vez que o irmão era o comandante lá.

Audric olhava por cima do ombro de Sergei, que se voltou para o mórbido retrato da kraljica Marguerite sobre a lareira. — Eu pensei que tinha deixado clara minha opinião sobre a questão, kraljiki — falou o regente em um tom de voz cuidadosamente neutro, cuidadosamente sem emoção. — Não acho que isso seja prudente, não com o tamanho do exército que a Coalizão conseguiria arregimentar se eles quisessem. Esta guerra nos Hellins é como uma ferida que sangra; ela nos enfraquece e desvia a atenção de onde o foco deveria estar: no leste, não no oeste. Devíamos ver o que podemos fazer para restaurar os Domínios.

O olhar do menino desviou do retrato para Sergei e voltou. — Os Hellins nos dão riquezas e bens que não encontramos em nenhum outro lugar. Riquezas... e bens... (tosse)... que... não encontramos... em nenhum outro lugar.

— Realmente, kraljiki, mas nós poderíamos obter esses bens através do comércio com os orientais tão facilmente quanto pela guerra. Mais facilmente, na verdade. Assim que os Domínios forem reunificados, então haverá tempo para olhar para o outro lado do Strettosei, para os Hellins, mais uma vez. Perdemos muito terreno lá porque não pudemos dar a atenção que o território merece.

O rosto de Audric ficou vermelho, pelo esforço de falar ou pela raiva, ou por ambos. — Não foi isso que meu vatarh disse quando os Distúrbios começaram, regente. Você acha que por que eu era apenas uma criança na época eu não me lembraria? ... apenas uma... criança... na época... (arfada)... que não... me lembra... ria?

O rosto impassível do regente não revelou nada. — Quando os Distúrbios começaram, o kraljiki Justi acreditava que ele não tinha escolha a não ser responder. Seu vatarh acreditou no que os a’offiziers disseram para ele: que os ocidentais eram pouco mais do que selvagens, que em pouco tempo seriam repelidos para além do lago Malik. Porém, eu gostaria de lembrá-lo que eu não compartilhava deste ponto de vista. As notícias continuam piorando apesar dos melhores esforços do comandante ca’Sibelli. Nós julgamos mal os ocidentais, e é hora de salvar o que for possível de uma decisão ruim.

— Meu vatarh não tomou uma decisão ruim! — O menino guinchou as palavras e conseguiu falar todas em um fôlego só. Depois ele tossiu muito e intensamente, e Sergei esperou. — Eu quero que outra divisão seja enviada — insistiu Audric. — Esta é a minha vontade. Essa é a vontade do kraljiki.

— O senhor é o kraljiki — disse Sergei, que manteve o tom de voz baixo e reconfortante em contraste com os guinchos estridentes de Audric. — Mas eu fui nomeado regente pelo Conselho dos Ca’ após a morte de seu vatarh até que o senhor atinja a maioridade.

— Eu já sou quase maior de idade — respondeu Audric. O rosto estava tão pálido que Sergei pensou que o menino fosse desmaiar. — Daqui a menos de dois anos. Eu poderia pedir ao Conselho para removê-lo e ter permissão de governar plenamente. Eles já fizeram isso no passado. O mestre ci’Blaylock me disse: o kraljiki Carin dispensou seu regente aos 14 anos, a mesma idade que a minha.

Sergei ergueu a mão. Com delicadeza. Com um sorriso debaixo do nariz de prata. — Sim, isso foi feito, mas o senhor e eu não precisamos estar em desacordo, meu kraljiki.

— Então não me desobedeça, regente. Eu irei ao Conselho. Irei sim. Farei com que o removam. — O menino gesticulou freneticamente, o que provocou outro ataque de tosse.

— Audric... — respondeu Sergei pacientemente enquanto o jovem se deitava no travesseiro. Marlon, à espreita no canto dos fundos do quarto, encarava Sergei de olhos arregalados e balançava a cabeça. — Talvez eu tenha sido negligente por não lhe envolver plenamente, por não fazer com que tomasse parte de todas as reuniões e discussões. Isso pode mudar; isso será mudado. Eu lhe prometo: se quiser tomar parte de todas as discussões de estado, ler todos os relatórios, ouvir todos os conselheiros, realmente ver o que significa governar, então eu me adequarei a isso. Mas os Hellins... — Ele balançou a cabeça. — Já são quase sete anos, Audric. Sete anos e os ocidentais recuperaram a maior parte do que conquistamos por lá originalmente. Sete anos, e perdemos gardai demais, desperdiçamos solas de ouro e sangue vermelho em excesso na tentativa de conter a maré. No fim das contas, eu quero o que o senhor quer. Eu quero que os Domínios tenham as riquezas das Terras Ocidentais. Quero mesmo. Mas esta não é a hora. E não é a hora de discutirmos isso. Amanhã, quando se sentir melhor...

— Então saia! — berrou Audric para Sergei, tão alto que o atendente no corredor abriu um pouquinho a porta para espiar. O regente fez que não para o homem. — Saia e me deixe em paz. — Ele virou o rosto e tossiu no travesseiro.

— Como quiser, kraljiki. — Sergei fez uma mesura para o jovem. Ao se virar para ir embora, ele viu o retrato da kraljica mais uma vez. Ela pareceu dar um sorriso triste para o regente, como se compreendesse.

 

Allesandra ca’Vörl

A CERIMÔNIA NO TEMPLO DE BREZNO foi dolorosamente longa, assim como o discurso de boas-vindas de Fynn para o a’gyula da Magyaria Ocidental: Pauli, o marido de Allesandra. O rosto dela doía por ter de manter um sorriso durante as monótonas saudações de Fynn — escritas, sem dúvida, por um dos escribas do palácio, já que Fynn às vezes espiava intrigado o pergaminho diante de si, quando tropeçava em palavras desconhecidas. A coluna de Allesandra doía por causa dos bancos desconfortáveis e de espaldar reto do templo. Jan, sentado entre ela e seu vatarh, remexia-se sem parar, tanto que Pauli finalmente se inclinou na direção do jovem e sussurrou algo em seu ouvido. Depois disso, Jan parou de se remexer no banco, mas o mau humor era visível em seu rosto quando Allesandra e Pauli saíram do templo atrás de Fynn, do archigos Semini e de sua esposa megera, sendo seguidos pelos ca’ e co’ de Firenzcia como um obediente rebanho de ovelhas.

Depois veio a festa no Grande Palácio de Brezno. Agora eram os pés que doíam, e Allesandra pensou que as barbatanas do espartilho, que apertavam a tashta como a moda ditava, deixariam sulcos permanentes na sua cintura. O salão de baile era um forno na noite úmida e sufocante, mais como em pleno verão do que na primavera que o calendário insistia em marcar. O archigos havia postado e’ténis pelo salão para manter os ventiladores de teto girando com a energia do Ilmodo. O movimento das pás parecia intensificar o calor em vez de diminuí-lo e transformava o ar em uma colônia fétida de suor, pomadas e perfumes. A noite estava ruidosa com a música da orquestra no fim do salão, com o som de pés que dançavam na pista de madeira colocada sobre os ladrilhos, e com uma centena de conversas isoladas, tudo refletido de volta para eles pelo domo acima.

Allesandra desejava fervorosamente que estivesse em outro lugar, mas se os desconfortos incomodavam Pauli, ele não deixou transparecer. Pauli separou-se de Allesandra assim que o decoro permitiu e estava com um grupo de moças em volta de Fynn. Jan estava lá também, ao lado do vatarh, e Allesandra notou que ele recebia quase tanta atenção quanto o hïrzg, e certamente mais do que Pauli. Fynn divertia todo mundo com a história da caçada ao cervo, o braço inclinado para trás como se mirasse o arco enquanto ria, e deu um tapinha nas costas de Jan. — ... o garoto atira praticamente tão bem quanto eu — ela ouviu Fynn dizer, e o rosto de Jan ficou radiante e com um largo sorriso enquanto as moças aplaudiam e faziam os elogios apropriados.

Obviamente, seria Pauli quem certamente encontraria satisfação e alívio entre as coxas de uma delas na noite de hoje. Allesandra tinha certeza disso; o marido não se importava mais em esconder suas aventuras. Ela dizia para si mesma que não se importava.

— A’hïrzg, está se divertindo? — Ela virou-se e viu o archigos Semini ca’Cellibrecca parado atrás dela com duas bebidas geladas na mão. Fynn trouxera, sob grande despesa, carroças cheias de gelo glacial das montanhas em volta do lago Firenz. O homem ofereceu um copo para Allesandra e disse — Por favor, pegue. Francesca parece ter sumido e o gelo vai desaparecer em breve nesse calor.

Com gratidão, Allesandra pegou o copo, que suava. Tomou um gole da bebida gelada e saboreou a sensação fria quando o suco adoçado por mel desceu pela garganta. — Obrigada, archigos. Acho que você acabou de salvar a minha vida.

Ele deu um largo sorriso ao ouvir isso, a barba reluzia por causa do óleo. — A senhora se importaria de andar comigo, a’hïrzg? Eu suspeito que haja um pouco de brisa perto das janelas.

Ela olhou o grupo barulhento em volta de Fynn, o marido e o filho ali com ele. — Certamente — falou Allesandra para o archigos. Semini ofereceu o braço, e ela colocou a mão na dobra do antebraço enquanto andavam. Ele não falou nada até que os dois ficassem bem afastados do hïrzg e então se aproximou de Allesandra. — Seu marido gosta da atenção que recebe como a’gyula, mas é um tolo ao deixar a senhora desacompanhada. — A mão livre de Semini cobriu a de Allesandra em seu braço.

— Eu poderia dizer o mesmo sobre sua esposa, archigos.

Semini riu. Sua mão deu um tapinha na dela. — A esposa ideal é ao mesmo tempo uma aliada e uma amiga, mas este é um ideal raramente alcançado, não é? Uma pena. Eu me pergunto, às vezes, o que poderia ter acontecido se a falsa archigos não tivesse sequestrado a senhora. Talvez, a’hïrzg, nós pudéssemos ter acabado como... aliados. Ou algo mais.

Allesandra acenou com a cabeça para um grupo de esposas ca’ e co’ que passava. Ela viu os olhares especulativos notarem sua mão no braço do archigos. — A filha do archigos ca’Cellibrecca foi uma escolha melhor para você, archigos. Veja onde está agora.

Ela sentiu mais do que ouviu o muxoxo de desdém do archigos. — Uma escolha fria e calculista da parte do jovem Semini e que me deu um casamento com exatamente estas mesmas características. Mas existem outras alianças que podem ser forjadas fora do casamento, a’hïrzg, se a pessoa é cuidadosa. E interessada. — O archigos manteve a mão sobre a de Allesandra e apertou os dedos.

— Eu sempre fui extremamente cuidadosa a respeito de minhas alianças, archigos. Isto foi uma coisa que aprendi cedo.

Ele concordou com a cabeça. Os dois estavam perto da pista de dança agora, a música abafava suas vozes. — Soube que a senhora fará um voto de lealdade ao hïrzg Fynn no Besteigung amanhã?

— Sim. Você tem fontes próximas ao hïrzg.

Sob a barba grisalha, o homem sorriu. — Saber o que os poderosos sabem é uma tática de sobrevivência, a’hïrzg, como tenho certeza que compreende. — Por vários momentos, os dois andaram em silêncio pelo limite da pista. Casais flutuavam ao dançar uma gavota perto deles. — Também ouvi a notícia de Nessântico de que o jovem kraljiki não está bem — falou Semini. Allesandra não disse nada. — Os rumores que chegaram a mim dizem que o Conselho dos Ca’ em Nessântico pode considerar os gêmeos Sigourney ca’Ludovici ou Donatien ca’Sibelli como sucessores caso Audric morra. Eles são primos em segundo grau de Audric, creio eu. — Ele respirou fundo e sorriu. — Assim como a senhora.

Allesandra devolveu um olhar neutro para o homem. Pessoas passaram dançando por eles. — Assim como Fynn — respondeu ela finalmente.

— Sim, mas a senhora é a irmã mais velha. E tem a vantagem de ter vivido lá; a senhora conhece Nessântico, enquanto seu irmão, não. E talvez existam pessoas em Nessântico que saibam reconhecer força quando a veem e desejem uma presença forte no Trono do Sol. Alguém mais forte do que Sigourney ou Donatien. — Semini aproximou-se e abaixou a voz em um murmúrio rouco. — Por falar nisso, existem pessoas aqui que prefeririam que a senhora usasse a coroa que atualmente está na cabeça de Fynn.

— Você fala em traição novamente, archigos? — perguntou Allesandra, tão baixo quanto ele.

— Eu falo a verdade, a’hïrzg.

— E sobre estas pessoas aqui de que você fala, você estaria entre elas, archigos?

Ele apertou os dedos da mão de Allesandra. — Eu estaria. Talvez... talvez até mesmo seja possível unificar tanto a Coalizão quanto a Fé... sob os líderes certos.

O archigos certo seria você mesmo, é claro... Allesandra observou as pessoas dançarem na pista enquanto executavam os passos complicados e predeterminados. O que ele realmente sabe? O que realmente quer? Allesandra não sabia como responder a Semini. Não sabia se o archigos tinha conhecimento da mensagem que ela recebera de Nessântico ou se talvez ele recebera algo igual. Allesandra não sabia se Semini era um aliado em potencial ou um inimigo — e o archigos seria um inimigo terrível, como podiam confirmar os esqueletos dos hereges numetodos pendurados em exibição pública, perto do Templo de Brezno.

O gelo virou água na bebida de Allesandra. Ela entregou o copo para um criado que passava e sorriu para o archigos. — Meu vatarh acreditava que os Domínios seriam unificados novamente quando ele estivesse sentado no Trono do Sol como kraljiki. É o que eu acredito também, archigos: que um hïrzgai também pode ser o kralji. E eu... — Allesandra ergueu a mão que segurou o copo e viu as gotas frias e reluzentes de água nos dedos. — Da última vez que vi, eu não era hïrzgin.

— Não, a senhora não é, mas...

Ela interrompeu Semini antes que ele abrisse a boca novamente. — Não, eu não sou. Isso parece ser a vontade de Cénzi. Você não pretende frustrá-lo, não é, archigos? — Allesandra não deu chance para resposta. Ela retirou a mão do braço de Semini e fez o sinal de Cénzi para ele. — Obrigada pela bebida e pela conversa, archigos. Você me deu muita coisa para pensar. Se... se algo acontecer para, bem, mudar as coisas, sei que você e eu poderíamos ser excelentes aliados. Certamente você é um archigos bem mais competente do que aquele que a Fé de Nessântico nomeou. Kenne nunca me impressionou.

Allesandra notou o prazer no rosto de Semini quando disse aquilo, e ele concordou levemente com a cabeça. — Estou lisonjeado, a’hïrzg.

— Não, sou eu quem deveria estar lisonjeada. Agora... você deve encontrar Francesca, e eu preciso ser a esposa do meu marido e a a’hïrzg, e fingir não notar quando o a’gyula escapulir durante a noite.

 

Karl ca’Vliomani

VARINA ENTREGOU A KARL a bola de vidro enquanto Mika observava. Varina tocou a mão de Karl por um momento antes de soltá-lo e deu um sorriso pontuado por tristeza. O rosto dela parecia mais enrugado do que ele se lembrava, como se tivesse envelhecido de repente no último mês.

Eles estavam no salão de reuniões da Casa dos Numetodos, onde uma vez por semana os vários numetodos faziam relatórios sobre suas pesquisas. Havia cadeiras vazias dispostas impecavelmente em fileiras, na frente de um pequeno tablado onde eles estavam.

Karl não contou para Mika sobre sua visita ao embaixador firenzciano no outro dia; evidentemente, Varina também não, uma vez que Mika não comentou a respeito.

— É só uma bola, certo? — perguntou Mika enquanto Karl ergueu o globo na palma da mão. — Embora seja bem feita. — Ela era pesada e bem feita; Karl não viu bolhas de ar ou defeitos no vidro. A lente da esfera fez com que ele tivesse uma visão deturpada e distorcida do salão. — Você a considera incomum ou notável de alguma outra maneira?

Karl deu de ombros. — Não. É apenas o trabalho de um verdadeiro vidraceiro ou o trabalho de formatura de um aprendiz, mas tirando isso...

Mika sorriu. — Realmente. O que eu quero que você faça, Karl, é que diga a palavra “abra” em paeti e depois jogue a bola para mim.

Karl ergueu a bola de vidro novamente. — Oscail — falou e atirou o pequeno globo na direção de Mika. O que aconteceu a seguir o surpreendeu.

Quando a bola de vidro tocou a mão de Mika, surgiu um clarão branco-azulado que lançou momentaneamente agitadas sombras negras pelo salão dos numetodos e na parede dos fundos. Karl protegeu os olhos com atraso. Ele ouviu a risada ligeira de Varina e palmas de alegria. Karl piscou e tentou enxergar atrás das manchas de imagens persistentes que atormentavam a sua visão. — Por todos os moitidis... vocês dois andaram trabalhando mesmo, pelo que eu vejo.

— Eu, não — respondeu Mika. — Foi Varina, sozinha. — Ele devolveu o globo para Karl, que era simplesmente vidro novamente. — Se os ocidentais eram capazes de encantar objetos com o Scáth Cumhacht da maneira como você e Ana disseram que Mahri fazia, então nós sabíamos que era possível. E não apenas isso: Mahri deu para Ana um objeto encantado que ela podia controlar ao falar a palavra certa. Qualquer um podia usar a magia desde que soubesse a palavra de ativação.

Varina continuava sorrindo. Ela esfregava a crosta de uma ferida comprida no antebraço. — Nós sabíamos que era possível; o resto foi simplesmente uma questão de descobrir a fórmula para fazer.

— Varina finalmente conseguiu decifrar a sequência — acrescentou Mika. — Ela me fez jurar segredo; disse que queria surpreender você. O feitiço é complicado e consome mais tempo e mais energia do que você imaginaria. Comparado com nossos próprios feitiços, algo assim sai caro e exige muito mais do corpo do que qualquer um esperaria, mas... — Ele acenou com a cabeça, feliz. — Dá para ser reproduzido. Finalmente. Varina diz que pode nos ensinar, e qualquer um de nós pode fazer o mesmo.

Karl olhou para Varina, que concordou com a cabeça sem dizer nada e sustentou o olhar do embaixador quase como uma provocação. Ele jogou a bola para o ar e falou — É impressionante, Varina. De verdade. Mas um clarão de luz não chega a ser uma arma.

— Teoricamente, qualquer feitiço dentro do conhecimento arcano pode ser armazenado em qualquer objeto: ofensivo, defensivo, tanto faz — respondeu Varina. Havia empolgação em sua voz. — Teoricamente. Na prática, bem, ainda não. Eu usei o feitiço de luz porque é o primeiro e mais simples que ensinamos a um iniciado, então pareceu ser o melhor. — Ela balançou a cabeça. Havia mechas brancas no cabelo castanho de que Karl não se lembrava, mesmo há uma semana. Será que elas estavam ali há tanto tempo assim? — Olhe, é questão de unir o feitiço ao objeto e criar um gatilho para ativá-lo, de envolver o objeto com a energia do Scáth Cumhacht como se embrulha uma fruta-das-brumas com papel. Depois disso, é como se ele fosse uma extensão do feiticeiro, mas o objeto em si tem que ser de boa qualidade ou não sobreviverá ao esforço. Eu levei um tempo para entender isso. Mas... — Varina suspirou e espalmou as mãos. — Só colocar este simples feitiço dentro de um objeto foi incrivelmente cansativo, Karl. Você não pode imaginar como é cansativo até tentar por si mesmo. Eu levei três viradas da ampulheta para concluir o processo e depois tive que descansar um dia inteiro para me recuperar. Até mesmo agora, eu ainda sinto que minha energia está baixa e imagino o que mais o feitiço possa ter custado. — Ela mordeu o lábio inferior e prendeu fios de cabelo branco atrás das orelhas. — Você falou que a archigos Ana dizia que o velho Mahri, o Maluco, deu para ela um encantamento que podia literalmente parar o tempo?

Karl concordou com a cabeça. — Foi o que ela me contou; foi assim que ela tirou Allesandra de seu vatarh. E Mahri foi capaz de trocar de corpo comigo quando eu estive na Bastida. A magia dele...

— ... era extremamente acima da nossa, então — Varina terminou a sentença por Karl. — Eu sei. Os relatórios da guerra nos Hellins sugerem o mesmo. Os nahualli dos ocidentais podem fazer mais do que nós, mas... eu acabei de provar que o X’in Ka dos ocidentais não tem uma origem divina tanto quanto o Ilmodo, não importa o que eles aleguem ou acreditem. — Ela apontou para a bola de vidro. — Se eu consigo fazer isso, então aposto que também podemos aprender a fazer o mesmo com feitiços mais poderosos. É apenas questão de aprender a fórmula correta de unir o Scáth Cumhacht ao objeto físico. Pode ser feito. Nós podemos fazer.

Karl lembrou-se de Mahri, que fez amizade com ele e Ana quando os dois pensaram que estavam perdidos, e que se revelou não como aliado, mas como inimigo. O rosto arruinado e enrugado de Mahri, com apenas um olho, passou pela mente de Karl quando olhou para Varina. Ele ergueu a bola de vidro novamente. — Então qualquer um pode ter feito este feitiço... — Sua voz foi sumindo. A explosão... o grande clarão de luz terrível... o corpo destroçado de Ana... magia, sem ninguém ser visto ou ouvido enquanto o feitiço era conjurado... talvez você esteja errado; talvez você esteja olhando na direção errada... — Será que o que aconteceu com Ana poderia...? — Karl não conseguiu terminar a pergunta, que ficou entalada na garganta, pesada e maciça.

Mas tanto Varina quanto Mika concordaram com a cabeça como resposta.

— Sim — disse Mika. — Isso é o resto do que queríamos falar com você. Varina e eu já tivemos a mesma ideia. Não podemos descartar envolvimento ocidental na morte de Ana, e, francamente, o que aconteceu lá faz com que pareça provável, ao meu ver. Mas por que, Karl? Por que não assassinar o kraljiki ou o regente, que são diretamente responsáveis pela guerra? Por que matar Ana, dentre tantas possibilidades?

Porque seria vingança por Mahri. Vingança. Isso ele podia compreender. — Nesse momento, eu não sei — respondeu Karl evasivo. — Mas alguém aqui em Nessântico sabe, tenho certeza, e eu vou encontrar essa pessoa. — O embaixador respirou fundo. Ambos olhavam fixamente para ele. — Mas isso fica para depois. Agora, eu quero que vocês me ensinem este truque nahualli. Quero ver como funciona.

Varina pareceu que ia começar a dizer alguma coisa, mas fechou a boca. Mika olhou para ela, depois para Karl. — Acho que vou deixar isso com vocês dois. Alia queria que eu levasse um pouco de carneiro para casa, para o jantar, e o açougueiro vai fechar o açougue daqui a pouco. — Ele despediu-se rapidamente e deixou os dois.

Por um longo tempo após a porta ter sido fechada, nenhum deles falou. Quando falaram foi ao mesmo tempo.

— Eu sinto muito pelo outro dia...

— Eu andei pensando no que você disse...

Eles riram, um pouco sem jeito, diante da colisão de desculpas. — Você primeiro — disse Karl, mas Varina fez que não com a cabeça. — Tudo bem, eu começo então — falou ele. — Você disse que meu... carinho por Ana me cegou. Eu andei pensando a respeito disso e...

— Pare, Karl. Não diga nada. Eu estava furiosa e disse coisas que não tinha direito de falar. Eu... gostaria que você esquecesse o que eu disse.

— Mesmo que elas sejam verdade?

O rosto de Varina ficou vermelho. — Você amava Ana. Eu sei disso. Seja lá que relacionamento vocês dois tiveram... — Ela deu de ombros. — Não é da minha conta. — Varina deu um passo à frente e ficou diante de Karl, tão perto que ele foi capaz de ver as manchas de cor na íris e as linhas finas nos cantos. Ela abaixou as mãos e fechou os dedos de Karl em volta da bola de vidro que ele ainda segurava, depois segurou sua mão. — Eu posso mostrar para você como encantar isto. Você só tem que ser paciente porque...

— Varina — ele interrompeu; ela parou de falar e ergueu os olhos para Karl. — Você não devia se dedicar tanto a isso.

Varina franziu os lábios, como se quisesse dizer alguma coisa. Depois, apertou a mão de Karl e abaixou o olhar. — ... porque é difícil, e você tem que pensar de maneira diferente sobre o processo inteiro. Mas assim que fizer a mudança, tudo fará sentido — disse Varina. — Você tem que imaginar a bola como uma extensão de si mesmo...

 

Enéas co’Kinnear

PASSARAM-SE TRÊS DIAS desde sua captura. Nesse ínterim, o exército ocidental continuou marchando para nordeste, e Enéas seguiu com eles. O o’offizier permaneceu próximo a Niente — que Enéas descobriu ser realmente o nome do nahualli que o curou.

— Ninguém vai amarrá-lo — disse Niente no início da jornada. — Mas se você for descoberto perambulando sem mim, os guerreiros irão matá-lo imediatamente. A escolha é sua.

Eles estavam indo na direção de Munereo. Os dias eram consumidos pelo caminhar e nada mais. Enéas permaneceu perto do nahualli, mas também ficou de olho em uma oportunidade para escapar — este era seu dever como soldado. O que quer que Niente tenha feito com sua perna curou os ferimentos completamente; o tornozelo nunca pareceu tão forte. Se houvesse uma chance de escapulir, bem, não seria um machucado que o impediria.

Não seria fácil. Todos aqueles da classe dos nahualli andavam juntos no meio do exército, bem protegidos, cercados por todos os lados pelos soldados ocidentais tatuados e cheios de cicatrizes. Isso indicava o valor que os tehuantinos davam aos feiticeiros. Cada um dos nahualli carregava um cajado ou bengala, entalhados com figuras de animais e muito elegantes; a maioria dava sinais de muito uso. Uma vez, quando eles pararam para uma refeição no meio do dia, Éneas esticou a mão para tocar no cajado de Niente, curioso em relação à sensação. Niente tirou o cajado de seu alcance.

— Isto não é para você, oriental — falou ele baixinho, mas com um tom ríspido na voz. — Deixe-me dar um alerta: você toca o cajado de um nahualli por sua conta e risco. Não repita isso.

Niente conversou com os outros nahualli, mas sempre na língua dos tehuantinos; se algum deles, como Niente, também falava a língua de Enéas, jamais demonstrou tal habilidade. Na maior parte do tempo, os outros nahualli ignoravam a presença do o’offizier ao lado de Niente, os olhares passavam por Enéas como se ele fosse nada mais do que um cavalo ou uma tenda. Duas vezes ao dia, um guerreiro de classe inferior entregava uma tigela para Enéas com purê de raízes que parecia ser a comida básica do exército; ele comia faminto e com rapidez — nunca era o suficiente para satisfazer a fome gerada pelas longas marchas. Niente também deu um odre para Enéas, que ele enchia nos pequenos lagos e córregos abundantes da região montanhosa.

O exército cruzou os vales sinuosos como um rio maciço, os homens eram envolvidos pelos paredões íngremes e verdejantes.

Eram sempre os guerreiros de classe inferior que montavam as tendas dos nahualli — os próprios feiticeiros pareciam fazer pouco trabalho físico. Niente supervisionava a colocação de várias dezenas de barris em sua tenda pessoal toda noite, marcados com símbolos queimados na madeira. Havia quatro símbolos que Enéas conseguiu discernir. Niente não parecia muito preocupado com a maior parte dos barris, mas aqueles marcados com o que parecia ser um dragão com asas ele observava com atenção quando eram alocados. Niente fazia uma cara feia e repreendia sempre que um dos guerreiros pousava o barril com muita força. Um barril estava cheio com pedaços do que parecia ser (e tinha cheiro de) madeira queimada; em outro havia um pó branco; enquanto um terceiro continha reluzentes cristais amarelos. Enéas espiou com mais atenção o conteúdo dos barris marcados com dragões e viu que estavam cheios com uma areia espessa cinza-escura, que reluzia um pouco ao luar.

Ele lembrou-se da areia espalhada em círculos no chão. O trovão, o clarão, a dor...

Toda noite, os dois juntos na tenda, Niente sentava-se com as costas eretas e entoava um cântico por pelo menos algumas viradas da ampulheta, de olhos fechados, enquanto Enéas ficava deitado perto dele. Algumas vezes ele polvilhava um dos ingredientes dos barris no chão entre os dois enquanto entoava. Enéas sentia no ar o poder do Ilmodo, que arrepiava a nuca e pinicava a pele, e ele rezava para Cénzi enquanto Niente conjurava seus feitiços, para tentar compensar com suas preces o uso herege do Ilmodo. Por toda parte havia silêncio: nenhum dos outros nahualli entoava enquanto Niente recitava os cânticos, e Enéas perguntou-se por quê. Também se perguntou como — depois — ele parecia sentir um calor por dentro, como se o esplendor do sol preenchesse os próprios pulmões. Seja qual fosse o feitiço que Niente conjurava, Enéas parecia ser afetado por ele.

O o’offizier imaginou se Niente sentia o mesmo calor e energia, mas o nahualli sempre parecia mais exausto do que empolgado pelos esforços. O homem gemia ao dormir, como se estivesse sentindo dor, e quando acordava pela manhã havia novas rugas no rosto, como uma maçã velha.

Na terceira noite, após os cânticos, em vez de dormir, como geralmente fazia, Niente colocou uma pequena tigela de bronze perto da abertura da tenda, de maneira que fosse banhada pela claridade da fogueira. A tigela era decorada em volta da borda com um friso de pessoas e animais estilizados, muitos dos quais Enéas não reconheceu. Enquanto o o’offizier observava, Niente colocou água na tigela, depois separou uma pequena quantidade de pó fininho e avermelhado que tirou de uma bolsa de couro e pôs na mão. O nahualli polvilhou a superfície da água com o pó enquanto entoava um cântico. A água começou a brilhar com uma claridade azul-esverdeada e anormal, que fez o rosto de Niente parecer fantasmagórico e morto. O homem olhou no interior da tigela, em silêncio, enquanto a luz sinistra dançava e se fundia com o rosto. A curiosidade fez Enéas se arrastar mais adiante para ver melhor. Ele ergueu o corpo e olhou sobre o ombro de Niente.

Dentro da tigela, na água, havia a vista de uma cidade. Ele a reconheceu imediatamente: Nessântico. Enéas notou a Pontica a’Brezi Veste e a vista da Avi a’Parete, que levava aos pilares de mármore da entrada pública do Palácio do Kraljiki. Ele viu o Velho Templo, mas o novo domo magnífico de co’Brunelli dava a impressão de ter desmoronado completamente; não havia nada ali a não ser um buraco escuro onde o domo deveria estar. As pessoas pareciam andar pelas ruas, mas havia poucas, a maioria corria de cabeça baixa como se estivesse com medo de ser vista. As ruas estavam sujas e cheias de lixo, e o palácio exibia uma rachadura visível na parede do sul e a ala norte estava em ruínas. Do outro lado da rua, o que tinha sido uma residência deslumbrante agora era uma massa negra. Parecia que uma mortalha de fumaça pairava sobre a cidade. Enéas aproximou-se para ver melhor na água...

... que foi agitada pelos dedos de Niente, e a visão dissolveu-se, a luz apagou-se. Enéas viu apenas água; o fundo de bronze da tigela estava salpicado com grânulos de pó.

— O que foi isto? — perguntou ele para Niente ao voltar a se sentar. O homem deu de ombros.

— Heresia, para você. A magia do deus errado.

— Eu vi... pensei ter visto... Nessântico.

— Talvez tenha visto — respondeu Niente. — Axat concede as visões que Ela quiser.

— Visões do quê? — Ele lembrou-se da fumaça, da rachadura na parede do palácio, das pessoas que corriam assustadas...

Niente não respondeu a Enéas. Ele jogou a água fora da tenda e secou a tigela com a bainha da roupa. Guardou-a na bolsa ao lado do colchonete de algodão que servia de cama. — Como você se sente, Enéas?

— Eu me sinto bem.

— Está na hora de você voltar para seu povo.

— O quê? — Enéas balançou a cabeça, sem acreditar. — Você disse...

— Eu disse que os soldados matariam você se tentasse escapar. E matariam mesmo, mas... não haverá lua hoje à noite. Axat está com o rosto escondido, e vem chuva. Haverá um cavalo do lado de fora de nossa tenda quando a tempestade chegar. No momento em que você ouvir a chuva, vá até o cavalo. Cavalgue sem parar; ninguém irá persegui-lo até o amanhecer. Se tiver sorte, se Axat lhe sorrir, você chegará a Munereo alguns dias antes de nós.

— Você está me deixando ir? Permitiria que eu avisasse meu povo e dissesse para eles ficarem prontos para o seu exército?

Niente sorriu e falou — O exército dos tehuantinos não tem o que temer do seu povo. Não aqui em nosso próprio país. Vá. Axat não quer que você morra aqui. Você foi preparado para outro destino, um bem melhor. Vá até o seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

— Preparado? Por quem, sua Axat? Eu não acredito Nela. Ela não é minha deusa e não controla meu destino, e eu não sou seu menino de recados.

— Ah. — Niente deitou-se no colchonete e puxou um lençol sobre o corpo para se abrigar da noite fria. — Bem, então fique aqui se é o que deseja. A escolha é sua.

— Que mensagem é essa?

— Você saberá quando for a hora.

Niente não falou mais nada. Depois de um tempo, Enéas ouviu os roncos do homem e ficou ali, pensativo. Ainda podia sentir o formigamento residual do cântico de Niente, como se as pontas dos dedos tivessem adormecido. Sentiu fisgadas nos braços e pernas, quase dolorosas, mas revigorantes ao mesmo tempo. A sensação manteve Enéas acordado pelo que pareceu ser várias viradas da ampulheta: enquanto Niente dormia, e os sons do acampamento diminuíam aos poucos até que ele só ouviu homens dormindo à sua volta e o barulho suave da chuva, que começou a bater no pano da tenda, acompanhada por clarões de relâmpagos e o rugido ocasional do trovão.

Ali perto, um cavalo relinchava.

Enéas saiu do cobertor e rastejou até a abertura da tenda. Lá fora, a chuva passou a cair de forma constante e formou poças agitadas pelos respingos. A alguns passos de distância, havia um cavalo de cabeça baixa que arrancava tufos de grama molhada. A criatura estava selada e embridada, mas as rédeas estavam penduradas, como se o animal tivesse sido puxado de onde havia sido posto. O clarão de um relâmpago iluminou o acampamento e congelou momentaneamente os riscos da chuva. O trovão bramiu por perto. O cavalo bateu os cascos, nervoso com a luz e o som, e Enéas pensou que ele pudesse fugir.

Era dever do soldado fugir, se possível.

Está na hora de você voltar para seu povo. Vá ao seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

Enéas olhou em volta; era difícil enxergar na bruma da tempestade, mas parecia não haver alguém acordado. Os guardas do acampamento recolheram-se às tendas para se abrigar da tempestade. Ele reuniu coragem, ficou de pé do lado de fora da tenda. A chuva molhou seu cabelo e ensopou sua roupa quando ele caminhou até o cavalo, com a mão esticada enquanto murmurava suavemente para o animal, para encorajá-lo. O cavalo ergueu a cabeça, mas fora isso permaneceu imóvel e encarou Enéas. Ele pegou as rédeas e deu tapinhas no pescoço musculoso e molhado. — É chegado o momento — falou para o animal.

Poucos momentos depois, ele estava montado e foi embora a galope.

 

Jan ca’Vörl

QUANDO ELE ENTROU para tomar café da manhã com sua matarh, ela estava diante da janela do quarto com as persianas abertas, e Jan pensou ter visto o sol reluzir nos olhos de Allesandra como se, talvez, ela tivesse chorado recentemente. Se fosse o caso, ele fazia ideia do porquê. — O vatarh não deveria tratar a senhora desse jeito — disse Jan. — Especialmente com algo assim tão importante. Eu falei para ele como me sinto, também.

Allesandra virou-se para ele e pegou as mãos do filho. Os cantos dos lábios ergueram-se em um sorriso. — Não importa, Jan. Não mais. Não sou mais capaz de ser magoada por ele. — Jan sentiu o aperto dos dedos da matarh. — Além disso, ele me deu tudo o que eu realmente queria.

A a’hïrzg puxou Jan para perto e deu um beijo em sua testa. — Com fome? — perguntou ela. — Eu mandei a cozinha preparar rétes doces de queijo. Sei que você gosta deles. — Allesandra conduziu o filho até a mesa, cheia de sucos e leite, com ovos, bacon, fatias de pão e manteiga, e uma travessa de delicados strudels com um queijo branco e cremoso escorrendo. — Sente-se à minha frente para que possamos conversar. — Ela passou a travessa de rétes para Jan e sorriu quando ele pegou um.

— A senhora parece cansada, matarh.

— É? — Allesandra levou uma mão ao rosto. — Eu mandarei minha criada cuidar disso. Esse será um longo dia.

Jan deu uma mordida no strudel e saboreou a doçura do mel no queijo e o toque delicado de amêndoa da massa folhada. Ele sentiu que era observado pelo olhar da matarh. — Isso a incomoda? — perguntou o filho impulsivamente. — O onczio Fynn ser hïrzg, quero dizer.

— Já pensei muito a respeito disso. — A mão de Allesandra foi à bochecha novamente. — Confesso que não consegui dormir ontem à noite, pensando sobre esse assunto... — Ela hesitou e baixou o olhar para a toalha de mesa — ... entre outras coisas.

Jan ficou com medo de que isso fosse tudo que ela diria. — E...?

Allesandra sorriu. — Eu decidi que não quero ser hïrzgin. Cénzi tem outros planos para mim.

Jan observou o rosto da matarh à procura de uma mentira. Ele não conseguia se imaginar dizendo tal coisa se estivesse na posição dela, se seu direito de nascença tivesse sido roubado daquela maneira. No entanto, não viu nada na expressão que contradissesse o que Allesandra falou. — Que bom — disse Jan.

Um leve sorriso tocou os lábios de Allesandra. — Por que isso é bom?

— Porque eu gosto do onczio Fynn.

Como neve no verão, o sorriso desmanchou-se. — Jan, uma de suas características que eu adoro é que você está disposto a confiar nas pessoas que gosta. Eu não quero que você perca isso, mas precisa ter cuidado com Fynn.

— A senhora mesma não o conhece de verdade, matarh. A senhora disse isso.

— Eu disse. E não o conheço, mas você também não, não depois de passar alguns dias com ele. Fynn tem um mau temperamento. Ele pode ser generoso com aqueles que acha que são aliados, mas se suspeitar que a pessoa está contra ele...

— Acho que a senhora está exagerando as coisas — interrompeu Jan. — O onczio Fynn não tem sido nada além que gentil comigo, e ele não acha que a senhora esteja do seu lado. Seja justa, matarh.

— Eu sou. Mais do que você imagina. O que você diria se eu falasse que ele ameaçou você?

— Eu não acreditaria — respondeu Jan por reflexo, depois se deu conta de que estaria chamando sua matarh de mentirosa. — A não ser que a senhora mesma tenha ouvido da própria boca de Fynn. — Ele inclinou a cabeça para Allesandra. — A senhora ouviu, matarh?

Ela já estava balançando a cabeça e respondeu — Não, não ouvi. Ainda assim... prometa-me que você tomará mais cuidado com ele.

— Claro que tomarei — disse Jan e foi recompensado com a volta do sorriso da matarh.

— Ótimo. Agora me passe a travessa de rétes? Estou morrendo de vontade de prová-los...

 

Sergei ca’Rudka

A NOTÍCIA NÃO era boa.

O comunicado — o último relatório das contínuas batalhas nos Hellins — veio por envio expresso de Munereo, passou pelo Strettosei até a grande ilha de Karnmor, cruzou o Nostrosei, que ficava entre Karnmor e o continente, até a cidade de Fossano, depois seguiu por mensageiro pelo A’Sele até Villembouchure, e de lá até Nessântico. Com ventos favoráveis e mensageiros que não se importavam em exaurir os cavalos, a mensagem levou duas semanas para chegar. O número de baixas era suficiente para Sergei balançar a cabeça tristemente. Ele passou o papel para o archigos Kenne; o homem mais velho espiou como um míope, segurando o comunicado tão próximo ao rosto que Sergei não conseguiu ver sua expressão.

— Você deve notar, archigos, que agora nós não controlamos nada nos Hellins além da área imediatamente ao redor de Munereo, com um braço ao longo do mar que se estende ao norte, na direção de Tobarro — disse Sergei com impaciência, enquanto Kenne penava com a letrinha compacta do comandante ca’Sibelli. — Ter mandado o a’offizier ca’Matin e seu batalhão para enfrentar o exército ocidental foi um erro, na minha opinião, mas é um erro que já está feito e pago a esta altura, eu suspeito. Espero que ca’Matin ainda esteja vivo; ele é um dos poucos bons offiziers que temos lá. Eu acho que teria sido melhor se ca’Sibelli tivesse recuado para uma posição de defesa contra esta última ofensiva, em vez de tentar repelir os ocidentais, mas ca’Sibelli nunca gostou de defesa. Nós já perdemos a área do lago Malik. Suspeito que perderemos Munereo a seguir.

— Você mostrou isso para Audric? Falou para ele o que acabou de dizer para mim? — Os olhos de Kenne apareceram acima da borda do papel amarelo e grosso, depois sumiram novamente. Sergei ouviu o homem murmurar para si mesmo enquanto lia.

— Sim. Ele falou: “o comandante ca’Sibelli fez exatamente o que eu mandaria que fizesse. É como eu disse: precisamos de mais tropas”. — Sergei fez uma pausa e olhou em volta do gabinete do archigos. Não havia mais ninguém ali, mas o regente abaixou a voz mesmo assim; nunca se sabia quem poderia ouvir atrás das portas. — Nós discutimos; eu pensei que ele fosse morrer na minha frente, Audric estava tossindo e respirando muito mal. Ele ficou olhando por cima de mim para o quadro da kraljica Marguerite e dizia... — Ele hesitou novamente, sem saber quanto queria compartilhar com Kenne. — ... coisas perturbadoras. Audric insiste em convocar o Conselho dos Ca’ e exigir que receba autonomia como kraljiki. Ele quer arrancar meu título; não quer um regente em Nessântico.

O fato pareceu frio, dito sem rodeios. Sergei tinha visto o que Kenne não viu: a maneira como os gritos distorceram as feições de Audric, a vermelhidão que subiu pelo pescoço do menino e cobriu as bochechas, as gotas de saliva que voaram da boca, os olhos arregalados e perturbados.


— Eu sou o kraljiki! — berrou Audric para Sergei com os braços agitados. — Você vai fazer o que eu mandar, regente, ou mando jogá-lo na Bastida! — As últimas palavras foram gritos, cada um berrado a cada tomada de fôlego. A histeria de Audric fez com que os gardai do corredor, bem como seus camareiros, Marlon e Seaton, abrissem as portas do quarto para dar uma olhada. Sergei gesticulou para que fossem embora, e as portas foram fechadas novamente. Audric olhou por cima do regente, que se virou para trás. O quarto estava um forno, quente demais para o gosto de Sergei, as chamas da grande lareira iluminavam o retrato de Marguerite sobre o consolo. Audric encarava a mamatarh com lábios que se moviam sem emitir palavras.

— Este relatório, Audric, é prova conclusiva de que...

— Você irá se dirigir a mim com o devido respeito, regente, ou mandarei açoitá-lo na praça do palácio.

Sergei permitiu-se respirar fundo e conteve a resposta que ameaçava escapulir. — Kraljiki, esse relatório demonstra que os Hellins já podem estar perdidos. Ca’Matin é o melhor offizier que temos lá; francamente, eu confio mais na avaliação dele do que na opinião do comandante ca’Sibelli. Se ele não conseguiu deter os ocidentais...

— Então a fúria de Nessântico cairá de forma plena sobre eles — berrou Audric, que depois foi tomado por um acesso de tosse...


O resto da conversa não seguiu melhor.

— Pode não ser uma loucura genuína, Sergei. Talvez a doença dele ou uma febre... — começou Kenne.

— Não importa — interrompeu Sergei. — Doença ou simples loucura; não há diferença se não pode ser curada. Kenne, eu mesmo pretendo ir ao Conselho dos Ca’ e pedir que declarem Audric incapaz.

Kenne abaixou o papel ao ouvir isso. Sergei viu a tremedeira nos dedos do homem e ouviu o farfalhar do papel. O archigos franziu os lábios como se tivesse provado algo desagradável. — Alguns deles pensarão que você está tentando conquistar o poder, Sergei, que isso não é nada além de uma tentativa sua de se colocar no Trono do Sol. É o que Audric dirá para eles, suspeito. Certamente é o que eu diria para os ca’ no lugar dele. Eu posso ver Sigourney imaginando a mesma coisa.

— É isso que você pensa, Kenne? Com certeza você me conhece melhor que isso. — Sergei deu um muxoxo de desdém, balançou a cabeça e andou de um lado para o outro na frente do archigos. Eu não quero ser kraljiki. O que eu quero é bem pior do que você ou qualquer um dos ca’ imagina, e se soubessem, todos se recusariam a me ajudar...

— Não, Sergei. De maneira alguma — falou Kenne rápido. Rápido demais, na verdade. O homem não olhava para ele, o que indicava a Sergei que também havia dúvida na cabeça do archigos. Isso era ruim; se Kenne se perguntava sobre as intenções do regente, então o Conselho dos Ca’ não teria problema algum em imaginar o pior. — Isso tudo é apenas... tão preocupante — continuou o archigos. — Eu não sei o que pensar. Declarar um kraljiki incapaz... — Ele balançou a cabeça, os dedos tamborilaram sobre o relatório. — Ele ainda é um menino, afinal de contas. Um jovem. Jovens muitas vezes dizem coisas que talvez não devessem ou se empolgam mais do que deveriam, e quando o menino em questão não só é um ca’, mas também foi a’kralj e agora é kraljiki, bem...

— A questão não é juventude e privilégio, Kenne. Você não esteve lá. Não ouviu o que eu ouvi e não viu o que eu presenciei. Você viu indícios da situação nas últimas vezes que esteve com ele, mas isso... O que ouvi de Audric agora era pura loucura. E um kraljiki louco também afetará a Fé.


— Eu pegarei todos os ténis-guerreiros e mandarei para os Hellins — gritou o menino. — Todos eles. Todos aqueles que a Fé puder me dar...


— Sei que você acredita nisso, Sergei.

— Mas?

Mãos tão secas quanto uvas velhas ergueram-se da escrivaninha e repousaram de novo. O olhar do archigos pareceu alcançar o nariz de Sergei, apenas para ver o reflexo distorcido ali e voltar a cair. — Eu sei que você se importa apenas com Nessântico, Sergei. Sei que tem os interesses dos kralji e da fé concénziana em mente. — O regente encarou Kenne, em silêncio. À espera. — Mas — continuou o archigos finalmente —, talvez alguém com as, hum, “habilidades” de Ana ainda possa ser encontrado, e nós possamos trazer o menino de volta da beira da ruína. Sergei, nenhum kraljiki jamais foi deposto pelo Conselho dos Ca’. Nunca. Este é um passo que você não pode dar levianamente. Esse é um passo que temo que vá falhar e destruir você.

— Acredite em mim, eu conheço os riscos. — Sergei levantou-se da cadeira e pegou o relatório na escrivaninha de Kenne. — A guerra nos Hellins custa dinheiro e vidas, Kenne, e nos força a olhar para o lado errado. Quanto mais durar a guerra por lá, mais perigosa ela se torna para os Domínios. Audric está convencido de que a guerra nos Hellins será o triunfo de Nessântico. Não será. Será nossa queda.

— Eu sei que é isso em que você acredita.

Sergei não conseguiu evitar totalmente que a voz demonstrasse irritação diante das evasivas do velho. — É o que eu sei. O que tenho que saber de você, Kenne, é se terei seu apoio.

Um aceno de cabeça. — Eu quero apoiar você. Quero mesmo. Mas primeiro preciso rezar, Sergei. Você diz que acredita. Eu quero acreditar também e confio em Cénzi para me ajudar. Deixe-me rezar. Amanhã... nós nos falaremos, amanhã ou no draiordi no máximo...

Inútil. Isto é inútil... Sergei deu um sorriso falso e fez uma mesura e o sinal de Cénzi para o archigos. — Eu mesmo rezarei em seu nome, archigos, para que Cénzi fale com você em breve. — E é melhor que Ele fale. É melhor ou Nessântico poderá se ver esmagada entre as pedras do leste e do oeste.

Serguei pegou o comunicado da escrivaninha de Kenne. Ele foi até a lareira do gabinete do archigos e deixou o papel flutuar sobre as chamas. Viu o papel escurecer, enroscar-se, soltar fumaça e finalmente pegar fogo.

Ele imaginou a cidade fazendo a mesma coisa.

 

Nico Morel

NICO JAMAIS HAVIA SEGUIDO Talis antes. A matarh do menino trabalhava em uma taverna depois da esquina e do beco próximos à casa deles. Se Talis trabalhava, não era como os outros homens da vizinhança: em uma loja; como aprendiz de algum mestre; como um simples trabalhador, talvez nos engenhos onde gigantescas mós eram movidas pelos cânticos dos e’ténis, ou nas fundições ardentes do lado de fora das velhas muralhas da cidade, cujas fornalhas ardiam com o fogo do Ilmodo e dos cânticos de e’ténis de diferentes habilidades — que, em troca dos serviços, recolhiam uma porção dos lucros para a fé concénziana.

Nico ouvia a matarh ou outras pessoas no Velho Distrito reclamarem muito a respeito disso, que a Fé metia as mãos nos bolsos de cada grande indústria na cidade. A fofoca provocou pensamentos estranhos em Nico: ele imaginava mãos compridas em mangas verdes que saíam dos templos para arrancar moedas das bolsas da população. O menino perguntou-se por que os ténis precisavam fazer isso, pois sua matarh e todos os demais colocavam moedas nas cestas a cada cénzidi quando iam ao templo. Se Nico tivesse tantas moedas assim, ele poderia comprar um palácio na margem sul para viver com a matarh e Talis.

Talis...

Nico estava brincando de chute o sapo na rua com alguns dos outros meninos. Ele estava ganhando: já tinha chutado três vezes na poça o saco cheio de palha que era o sapo, mas seu amigo Jordis conseguira apenas uma vez, e os demais, nenhuma. Nico era bom em chute o sapo. Às vezes, quando jogava, ele sentia um frio estranho por dentro e quase era capaz de ver o sapo ir à poça, e quando chutava, o sapo espirrava bem dentro da água.

Nico retirou o sapo encharcado da poça pela quarta vez quando viu Talis sair da porta de casa e começar a subir a rua. Ele chutou o sapo para Jordis e os outros. — Volto já — disse o menino, e correu atrás de Talis.

Desde que viu Talis com a tigela de latão, ele andou vigiando atentamente seu vatarh sempre que podia. Nico viu e ouviu coisas estranhas quando Talis pensava que ele estava dormindo, até mesmo quando sua matarh estava dormindo também. Talis entoava e gesticulava igual a um téni, geralmente com a bengala diante de si. Quando ele fazia isso, Nico sentia os filamentos de frio no ar até que a bengala parecesse sugá-los para dentro.

Era muito estranho, mas as palavras — elas quase soavam como as palavras de sonho que Nico às vezes escutava, e ele queria saber mais.

A princípio, Nico tinha intenção de simplesmente alcançar Talis e perguntar aonde ele ia, mas quando o vatarh virou no primeiro cruzamento, com a bengala batendo nos paralelepípedos e andando em passos rápidos, como se estivesse com pressa para chegar a algum lugar, o menino decidiu ficar para trás e apenas observá-lo.

Talis andava tão depressa que Nico quase teve que correr para acompanhá-lo. Algumas vezes, quando ele virou para a esquerda ou direita no confuso emaranhado de ruas, o menino quase o perdeu, e quanto mais longe os dois iam, mais assustado Nico ficava — ele não sabia mais onde estava. Nem sabia qual seria o caminho de casa, ficou confuso pelas ruas sinuosas e tortuosas do Velho Distrito.

A luz do sol surgiu de repente à frente, e ele viu Talis fazer uma curva fechada à esquerda. Nico correu atrás do vatarh. O menino viu-se na confluência de um beco com o grande rio da Avi a’Parete, a enorme avenida que cercava o trecho interior da cidade. Ele foi atacado pelas cores, barulhos e movimento: as bashtas e tashtas de todos os tons e padrões imagináveis, as carruagens que passavam em meio às multidões (olha — aquela não tinha cavalos, apenas um téni como condutor, com um a’téni dentro), mil pessoas indo a algum lugar ao mesmo tempo: falando ou em silêncio, sérias ou rindo, juntas ou sozinhas. Os vendedores espalhados pelos muros anunciavam suas mercadorias; condutores gritavam alertas ou tocavam os sinos de aviso; uma dezena de conversas passou por Nico em um instante e foi substituída por outra dezena.

Os prédios aqui, ao longo da avenida mais famosa de Nessântico, pareciam tão grandiosos e altos quanto aqueles na margem sul, embora mais apinhados de gente e mais velhos. À esquerda, Nico viu píeres de uma ponte arqueada que levava à Ilha A’Kralji, onde o kraljiki e o regente viviam. No entanto, em meio à grandiosidade havia sinais de que nem todo mundo na cidade vivia tão bem. Mendigos sentavam-se encolhidos nas esquinas; a mais próxima de Nico, envolta em trapos imundos, parecia ter apenas um braço e o mesmo número de dentes na boca de gengivas vermelhas. Seus olhos eram brancos com cataratas, como a velha cega que morava do outro lado da rua de Nico.
O único braço, que chacoalhava uma caneca surrada de madeira com algumas d’folias de bronze no fundo, tinha uma mão com dedos de menos. A multidão que passava por ela ignorava a mendiga na maioria das vezes, como se as pessoas não a vissem.

Nico percebeu que não fazia ideia de para onde Talis havia ido na multidão. Ele olhou para a esquerda, depois para a direita, e o pânico subiu do estômago para a garganta. O menino correu na direção que achava que Talis tinha ido.

Uma mão agarrou seu ombro; Nico levou um susto e quase gritou.

— O que você está fazendo aqui, Nico? Por que está me seguindo? — Talis franziu a testa para ele, seus dedos agarraram o pano da camiseta de Nico.

O alívio conquistou o medo; Nico exclamou — Talis! Eu estava... você saiu e pensei em ver onde você estava indo e se eu podia ir junto, e aí eu já estava longe demais e fiquei com medo de que estivesse perdido.

A cara feia de Talis desmanchou-se aos poucos. — Você não sabe o caminho de casa?

Nico balançou a cabeça. — Por ali? — perguntou Nico hesitante ao apontar para um dos prédios atrás dele.

Talis bufou. — Só se você quiser tomar um banho no A’Sele. Eu devia simplesmente deixar você aqui — ele começou a falar, e o coração de Nico passou a bater mais forte, lágrimas surgiram em seus olhos, mas o homem continuou —, e Serafina me mataria se descobrisse. Eu já estou atrasado. Você terá que vir comigo, Nico.

Nico concordou enfaticamente com a cabeça. Ele abraçou Talis pela cintura quando o homem colocou a mão em sua cabeça e puxou-o para perto. — Sem me atormentar com perguntas, entendeu? Preciso encontrar uma pessoa.

— Quem você vai encontrar? — perguntou Nico, que engoliu em seco. — Desculpe, Talis — disse o menino, mas o homem já estava rindo.

— Você é um caso perdido, sabia? Vamos. Fique perto de mim, agora.

Com Nico correndo ao lado dele, Talis cruzou a Avi a’Parete, desviou-se de grupos de pessoas a passeio e parou aqui e ali para deixar uma carruagem passar, depois correu pelo caminho do próximo veículo. Quando os dois finalmente chegaram ao outro lado, Talis rapidamente entrou em uma pequena rua transversal, e a agitação, cores e glória da Avi a’Parete sumiram como se nunca tivessem estado lá. Eles viraram à esquerda, depois à direita, enquanto seguiam por uma viela estreita e tortuosa, e surgiram de repente — como se uma floresta feita de casas e prédios fosse contraída em um espaço diminuto — em uma área aberta.

Nico sentiu o cheiro do A’Sele antes de ver o rio: o fedor de peixe morto, dejetos humanos e água oleosa. Eles estavam em um mercado com dezenas de barraquinhas dispostas em fileiras ao longo da margem. À esquerda, Nico viu — do outro lado, desta vez — o grande arco da Pontica A’Kralji, e nas águas reluzentes do A’Sele, a Ilha A’Kralji com o Palácio do Kralji, o Velho Templo e a Residência do Regente. O menino olhou fixamente, depois se deu conta, com atraso, de que Talis já percorria os corredores do mercado, e andou rápido para alcançá-lo. Agora Nico descobriu que mal conseguia manter o olhar em Talis; ele não parava de ser distraído pelas mercadorias nas barraquinhas: grandes pilhas de cebolas, ervas penduradas para secar, peixes frescos e secos, facas brilhantes e pedras reluzentes, rolos de tecido, tamborins e alaúdes, montanhas de maçãs... — Isso aqui é melhor do que o mercado do Velho Distrito — falou ele em uma voz que ecoou seu deslumbramento.

— Isso não é nada — disse Talis. — Eu soube que na época da kraljica Marguerite dava para ouvir as bancadas gemerem com o peso das mercadorias que chegavam pelo A’Sele de todas as partes do mundo conhecido. Não dava para andar aqui por causa das multidões e dos vendedores. Qualquer coisa que se quisesse era possível comprar aqui, não importa o que fosse. — Talis parou. Eles estavam diante de uma barraca protegida do sol por um pano grosso e forrado. Na penumbra sob o toldo, uma grande forma moveu-se. Nico apertou a vista e protegeu os olhos com a mão. O dono da barraca era musculoso, tinha braços grossos que saíam das mangas soltas de uma bashta decorada com um desenho que lembrava talos de trigo. Ele abaixou o corpo, e Nico viu que o rosto era marcado por estranhas linhas brancas, como se a pele estivesse em carne viva. Entre as linhas, a pele intacta era quase da cor de cobre lustroso, como de uma pessoa das províncias do sul.

— Quem é o garoto? — perguntou o homem para Talis. A voz tinha um sotaque carregado que Nico não reconheceu até que Talis respondeu; aí ele notou que era uma versão mais forte e evidente do próprio sotaque do vatarh.

— Meu filho. Nico. — Talis deu um tapinha no ombro do menino com a bengala. — Não se preocupe com ele.

— A matarh do garoto faz você brincar de babá agora, Talis? Mahri ficaria tão orgulhoso.

— Cale a boca, Uly.

O homem riu como se tivesse achado graça no diálogo. Ele falou por um instante em uma língua complemente diferente, e Nico ouviu Talis responder no mesmo idioma. Talis entrou debaixo do toldo com o sujeito. — Fique aqui — falou ele para o menino. — Você pode olhar o que Uly tem para vender, mas não nos incomode.

Nico ouviu os dois homens conversarem na estranha língua deles enquanto mexia à toa nas mercadorias sobre as bancadas de Uly. Ouviu o nome “Mahri” mais algumas vezes. Finalmente, Uly derramou vários punhados de um pó preto e granulado em um saco de couro e entregou para Talis, que amarrou no próprio cinto. Os dois falaram por mais um momento, depois Talis pegou Nico pela mão e conduziu o menino para fora da barraca, na direção da Avi a’Parete. As perguntas saíam espontaneamente de Nico — ele não conseguia mais segurá-las.

— Você e Uly são do mesmo país?

— Sim, originalmente, embora nós dois estejamos longe de lá há muito tempo.

— Você é de Namarro?

— Não. — Talis não disse mais nada, e Nico permaneceu em silêncio enquanto eles cruzavam a avenida e entravam nas ruelas populosas do Velho Distrito novamente.

— Quem é Mahri, Talis?

— Ninguém hoje em dia. Ele está morto.

— Quem era ele, então? — insistiu Nico.

— Ninguém importante.

— Uly disse que Mahri ficaria orgulhoso de você. E eu ouvi Uly mencionar Mahri outra vez também.

— Você vai continuar a me amolar, não vai?

Nico ergueu o olhar para Talis, que não pareceu muito irritado, então ele concordou com a cabeça. — Você conheceu Mahri? Ele era seu vatarh?

Talis riu, embora Nico não soubesse o que tinha dito de tão engraçado, e balançou a cabeça. — Não. Mahri não era meu vatarh, e eu jamais o conheci. Apenas sabia a respeito dele.

— Por quê?

— Porque diziam que Mahri era capaz de fazer coisas que ninguém mais conseguia. Eu pensei ter dito sem perguntas.

Nico ignorou a última frase. — Que coisas?

Talis soltou um suspiro com tom de irritação. — Coisas que nem os ténis conseguem fazer com o Ilmodo deles.

— Ah. — Nico ficou calado ao ouvir aquilo. Todo mundo sussurrava que os ténis conseguiam fazer praticamente tudo com o Ilmodo, e havia rumores de que a archigos Ana também era capaz de fazer tudo que os numetodos faziam. Mas Nico sabia que Talis não acreditava em Cénzi e nem ia ao templo. Então talvez Mahri fosse um numetodo? E os ocidentais também não usavam magia? Ou talvez houvesse vários tipos de magia pelo mundo.

— Você quer ser igual a Mahri? — perguntou Nico.

Ele viu Talis levantar um canto da boca. — Isso depende do que você quer dizer, Nico. Eu não quero estar morto. — O homem riu, mas Nico torceu o nariz em uma careta de irritação.

— Não foi isso que eu quis dizer.

Talis abaixou a mão e desgrenhou o cabelo do menino, mas Nico deu um passo para trás. — Eu sei que não é o que você quis dizer — falou Talis. — E não acho que eu jamais queira ser como Mahri. Agora, será que nós podemos tentar chegar em casa antes que Serafina perceba que você saiu e vire a vizinhança inteira de cabeça para baixo à sua procura?

Talis parou de falar, pegou a mão de Nico e apertou o passo. A bolsa de couro macio e seu pó escuro balançaram no cinto. Nico espiou de rabo de olho enquanto os dois andavam.

Ele continuaria a ficar de olho em Talis. Talvez pudesse aprender a fazer magia também. Afinal de contas, os numetodos diziam que a maioria das pessoas podia fazer magia caso se esforçasse bastante. Nico era esforçado: ele sempre vencia no chute o sapo porque se esforçava bastante. Quando a pessoa fazia isso, era capaz de sentir a energia fria.

Ele ficaria de olho em Talis. Aprenderia a fazer o que Talis fazia.

 

Varina ci’Pallo

SE ELA FOSSE FORÇADA a seguir a carreira de espiã, Varina teria sido capturada e executada no primeiro dia.

Ela encostou o corpo na lateral de um boticário no limite do centro do Velho Distrito, olhou fixamente para a multidão reunida sob o sol intenso e procurou entre as pessoas por um rosto familiar, um que ela tinha perdido no labirinto do Velho Distrito. Varina ofegava um pouco pelo esforço de tentar alcançar o homem depois que ele fez uma curva brusca — ela chegou à esquina e viu que o sujeito não estava ali. Ele desapareceu.

— O que você pensa que está fazendo?

A pergunta, que surgiu atrás dela, assustou-a. Varina deu meia-volta com as mãos erguidas, pronta para falar uma palavra e lançar um rápido feitiço de repulsão, mas uma mão pegou seu braço quando ela se virou e a impediu de conjurar o feitiço, e ela olhou para o rosto que andou procurando.

— Karl...

Ele soltou a mão de Varina e deu um passo para trás. Ela não soube dizer se Karl estava irritado ou não. — Você estava me seguindo. — O olhar, como um mar revolto, sustentou o de Varina.

— Sim — admitiu ela.

— Por quê?

— Porque estou preocupada com você.

Ele riu como se tivesse achado graça. Isso deixou Varina mais irritada do que a expressão dele. — Você ou Mika? — vociferou ele. — Ou talvez Sergei?

Varina sustentou o olhar de Karl com ar de desafio e queixo empinado. Afastou o cabelo do rosto. — Todos nós. Todo mundo que conhece e gosta de você está preocupado, Karl, apesar de parecer que você não nota. Segui-lo foi minha ideia, porém. Não foi de Mika, nem de Sergei. Portanto, você pode gritar comigo se quiser, mas não com eles. Os dois não sabem.

— Eu não sou uma criança que precisa ser vigiada.

— Perdão. Não deixarei de contar isso para Sergei e para o embaixador co’Görin. Ambos ficarão contentes ao saber que você amadureceu.

Karl torceu o nariz novamente. — Aquilo foi um erro. Eu não o repetirei.

— Karl, você se convenceu de que foram os firenzcianos e estava pronto para ser juiz e executor em relação a eles. Agora está igualmente convencido de que é uma trama dos ocidentais e está perseguindo o fantasma de Mahri. Eu estou preocupada com você, sim. Mahri está morto; você não o encontrará. E estou ainda mais preocupada com o que você fará se encontrar algum ocidental, alguém que pode ser completamente inocente. Não sei dizer de outra forma que não sendo direta: faça o que Sergei lhe disse, deixe que eles tomem conta da investigação. Você não os está ajudando, nem a si mesmo.

— E o que eu devo fazer, Varina? — perguntou Karl. Ele contorceu o rosto, a pele abaixo dos olhos estava escura e empapuçada. Karl não aparava a barba há dias.

— Você disse que estava interessado no que eu poderia mostrar sobre o encantamento de objetos. Deixe-me ensinar para você. Vamos trabalhar nisso juntos. Eu certamente poderia contar com sua ajuda e seu conhecimento. Isso poderia tirar sua mente... — ela olhou ao redor — ... desta situação.

— Você não consegue entender. — Karl rangeu os dentes. — Apenas me deixe em paz. — O olhar de desprezo de Karl foi como um tapa na cara de Varina.

— Você já foi bastante magoado, Karl. Eu não quero vê-lo piorar as coisas para si mesmo.

— Eu não preciso de sua piedade, Varina, e não quero nem preciso de sua ajuda — disparou Karl. As palavras machucaram Varina. — O que eu preciso fazer para deixar isso claro para você?

— Você acabou de deixar. Deixou bem claro mesmo. — Dito isso, ela gesticulou para o espaço aberto e ensolarado do centro do Velho Distrito. — Vá em frente. Eu não seguirei mais você.

Com isso, sem arriscar uma olhadela para trás, Varina começou a ir embora para o sul, na direção da Casa dos Numetodos. Ela não olhou para trás. Varina disse para si mesma que não queria ver se Karl a observava ou não.

 

Allesandra ca’Vörl

BESTEIGUNG. O CERIMONIAL de coroação do novo hïrzg.

O dia nasceu brilhante e cooperativo, com o céu de um azul exuberante onde navios de nuvens brancas iam embora para o oeste. O calor cedeu, foi afugentado pela chuva purificadora da noite anterior. Cénzi abençoou o dia, e os ténis estavam radiantes, como se o lindo dia tivesse sido causado por suas preces.

Talvez tivesse sido mesmo.

Allesandra também rezou para Cénzi. Rezou para que o dia fosse como ela esperava, que não tivesse interpretado errado os sinais. E embora tenha rezado, Allesandra também fez questão de levar uma adaga embainhada no antebraço, debaixo das franjas e rendas da manga da tashta. Ela aprendeu há muito tempo com seu vatarh que jamais deveria estar sem uma arma.

O dia seria longo para Fynn — e para aqueles, como Allesandra, que eram obrigados a acompanhá-lo. Primeiro veio a cerimônia no Templo de Brezno na Primeira Chamada, onde o archigos deu ao novo hïrzg a Benção de Cénzi. Depois houve as exigidas visitas de estado: à tumba do hïrzg Kelwin, primeiro hïrzg de Firenzcia; ao templo perto do Palácio do Hïrzg, que continha um frasco de sangue de Misco, o fundador de Firenzcia; ao grande pedregulho rachado perto da praça principal de Brezno, onde diziam que os moitidis — a pedido de Cénzi — mandaram um furioso raio à terra para fulminar o exército de Il Trebbio, que invadira Firenzcia em 183 durante a Guerra das Três Gerações. Em cada local, aconteciam as cerimônias e os discursos obrigatórios, e os ca’ e co’ ouviam com atenção, gratos por não haver chuva torrencial, frio de rachar ou calor úmido para suportar além da frases imbecilizantes já esperadas.

Então veio a procissão final à nova estátua de Falwin I, erigida por Jan, o vatarh de Allesandra, após ele decretar a separação de Firenzcia dos Domínios — foi Falwin que liderou a revolta tragicamente malsucedida contra o kraljiki Henri VI em 418, e foi ali que Fynn erigiu o palanque onde, finalmente, a Coroa e o Anel de Firenzcia seriam oficialmente declarados como seus.

Quando o archigos ca’Cellibrecca passou por Allesandra na carruagem conduzida por um téni a caminho de seu lugar na fila de dignatários, ele inclinou-se para fora da janela e mandou o condutor parar o veículo. O e’téni interrompeu o cântico e as rodas desaceleraram. O archigos acenou para Allesandra sobre o símbolo do globo partido de Cénzi, pintado em ouro e lápis-lazúli. — Com licença um instante — disse ela para Jan e Pauli. Jan deu de ombros para a matarh; Pauli, envolvido em uma conversa com uma jovem bonita da família ca’Belgradin, não deu resposta alguma. Allesandra foi até a carruagem do archigos e fez o sinal de Cénzi para Semini. Francesca estava sentada ao lado do marido, nas sombras. — Cénzi sorriu para Fynn.

— É verdade — respondeu Semini. Ele diminuiu o tom de voz, o bastante para Francesca não ouvi-lo, praticamente inaudível com o tumulto dos músicos que começavam a marcha da procissão. — No entanto, a’hïrzg, eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque.

— Archigos?

Ele olhou para o fim da fila, onde aguardava a carruagem de Fynn, puxada por quatro cavalos brancos, um deles sem cavaleiro. — É realmente um lindo dia — falou Semini, mais alto agora. — Um bom dia para toda Firenzcia, creio eu. Condutor, eles nos esperam.

O e’téni recomeçou o cântico; as rodas rangeram ao começarem a girar novamente. Allesandra afastou-se da carruagem no momento em que Semini acenou com a cabeça para ela e recostou-se no assento estofado ao lado de Francesca, que lançou um olhar azedo para a a’hïrzg quando eles passaram. Allesandra viu o veículo entrar na fila logo atrás da carruagem do hïrzg.

Ela passou o dia nervosa, imaginando se ca’Cellibrecca realmente tinha a intenção de levar a cabo o que havia insinuado — ele não faria nada por conta própria, obviamente, mas trabalharia através de uma camada de intermediários; se algo fosse acontecer, o archigos também gostaria que acontecesse em público, onde poderiam ver que ele não estava envolvido, e onde houvesse maior impacto. Era exatamente o que ela mesma teria feito.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”

Allesandra sentiu um arrepio de medo sobreposto pela empolgação. Ela queria voltar correndo para o archigos e sussurrar três palavras para ele: “a Pedra Branca?” Se Semini concordasse com a cabeça, então o que Allesandra planejou seria realmente uma trama perigosa, dadas as lendas sobre o assassino. Diziam que a Pedra Branca mataria qualquer um que tentasse interferir na execução de um contrato. A Pedra Branca, diziam os mesmos rumores, era um mestre no uso de todas as armas; não havia ninguém que pudesse cruzar espadas com ele. Porém, a Pedra Branca sempre atacava suas vítimas isoladamente, não no meio de multidões. Não poderia ser ele... pelo menos Allesandra torcia para que não fosse.

Seja qual fosse o caso, o assassinato ocorreria em breve, então. E não importava a maneira como isso aconteceria, ela seria a pessoa que mais lucraria, se tomasse cuidado. Allesandra voltou a se juntar à família. — O que o archigos queria, matarh? — perguntou Jan. Pauli continuou conversando com a ca’Belgradin.

— Queria falar do tempo e, de acordo com Francesca, creditar-se por isso — disse Allesandra. Jan riu. — Sim, eu sei, a mulher não é nada além de previsível. Vamos pegar nossa carruagem, querido. A procissão está começando a andar. Pauli, odeio interromper sua tentativa de impressionar a jovem vajica, mas temos nosso dever...

Com uma careta de irritação, Pauli interrompeu a conversa e seguiu na direção de Allesandra, que seguia Jan até a carruagem aberta logo à frente do archigos. Ela viu que estavam sendo observados por Semini e Francesca, e acenou com a cabeça para ele. — Você não precisava ser tão estridente, minha querida — falou Pauli.

— E você não precisava ser tão óbvio — respondeu Allesandra. — Mas essa não é uma conversa que deveríamos ter em público, Pauli.

— Essa não é uma conversa que deveríamos ter de forma alguma, no que me diz respeito. — Pauli entrou na carruagem. Ele ajeitou o corpo desconfortavelmente no couro elegante do assento e bateu nas almofadas com os dedos. O som foi tão agudo e alto quanto se ele tivesse batido em madeira, e a almofada mal afundou. — Firenzcia tem um talento para fazer algo parecer atraente quando na verdade é extraordinariamente desconfortável — comentou Pauli. — Mas eu sei que você já tem intimidade com essa característica, minha querida.

— Vatarh! — falou Jan com rispidez, e Pauli, estranhamente, virou-se para olhar para fora da janela da carruagem. Allesandra sentiu o rosto ficar quente, mas não disse nada. Eles chegariam ao palanque em uma marca da ampulheta, e o dia seria o que seria. De qualquer maneira, Pauli acabaria sendo tão irritante quanto uma mosca, e ela enxotaria o marido com a mesma facilidade quando o momento certo chegasse. Com alívio.

A carruagem deu um solavanco e começou a andar, e por cerca de meia virada da ampulheta eles passaram pela principal avenida de Brezno, com as laterais apinhadas de moradores da capital e das cidades vizinhas. Todos eles vibravam e gritavam, empurravam e acotovelavam os utilinos e gardai posicionados ali no esforço de ver a elite de Firenzcia, os grandes visitantes de outros países da Coalizão Firenzciana e o novo hïrzg.

A praça ao redor da estátua de Falwin estava lotada por uma massa compacta, as carruagens da realeza percorreram um caminho aberto pelos gardai. Ao lado do palanque, eles foram escoltados pela subida por uma larga escada temporária até os lugares à sombra da estátua de Falwin. O antigo hïrzg erguia braços de bronze sobre eles, com a enorme espada em riste. Allesandra podia sentir o som da multidão, os gritos e aplausos aumentaram quando Fynn apareceu na plataforma, com as mãos estendidas como se fosse abraçar todo mundo. Ele regozijou-se com a adulação da multidão, destacado pela luz intensa do sol. Allesandra sentiu uma pontada de inveja ao ver o irmão.

A a’hïrzg estava logo à esquerda de Fynn com Jan próximo a ela, a seguir Pauli (que já se virava de costas para falar com a moça ca’Belgradin novamente); Semini estava à direita do hïrzg com a coroa de archigos na cabeça e o robe cerimonial dourado e esmeralda. Allesandra olhou de relance para ca’Cellibrecca, parado ao lado da azeda Francesca, que parecia ser a única que não estava completamente impressionada com os eventos. Semini acenou com a cabeça sutilmente.

Quando? Quem? Como?

Fynn começou a falar, a voz foi amplificada pelos esforços de dois o’ténis que entoavam um cântico baixinho de ambos os lados do hïrzg. Ela retumbou sobre as massas, a voz possante de um semideus que gritava dos céus. — Firenzcia, estou diante de vocês como seu criado e agradeço humildemente pela dádiva de sua confiança.

Um rugido respondeu ao hïrzg, que ergueu os braços novamente. Porém, a atenção de Allesandra foi desviada. A a’hïrzg vasculhou a linha de frente da multidão, vasculhou as pessoas com ela na plataforma. Havia gardai no parapeito do palanque de ambos os lados de Fynn, que olhavam fixamente para fora e para baixo — certamente eles veriam algo preocupante ali antes que estivesse visível para ela.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”. Um ataque mágico então? Uma bola de fogo como aquelas dos ténis-guerreiros? Semini tinha sido um téni-guerreiro, afinal. Mas o archigos certamente não usaria o Ilmodo ou arriscaria que outra pessoa usasse quando tal coisa atrairia suspeita para os ténis e, portanto, para ele.

— Como seu hïrzg, eu prometo que continuarei com o desejo de meu vatarh de tornar Firenzcia a primeira entre todas as nações...

Allesandra deu uma olhadela para trás. Os ca’ e co’ e dignatários visitantes estavam dispostos atrás dela, e, ao fundo, os criados aguardavam. Não havia nada anormal ali. Allesandra começou a se virar novamente quando um movimento chamou sua atenção.

— ... um sonho que deseja ver Brezno como o centro do mundo...

Um dos criados vinha à frente com uma bandeja e uma jarra de água. Ele andava lentamente pelas fileiras, murmurava desculpas ao passar cuidadosamente pelas pessoas. Andava na direção de Fynn. A atenção do criado jamais pareceu deixar o irmão de Allesandra, que se assustou com alguma coisa na intensidade do olhar do homem. Semini, na ação mais indicativa de todas, sussurrou algo para Francesca e deslizou para longe de Fynn, na direção do outro lado da plataforma.

Existem aqueles que usam magia e são inimigos de Firenzcia, que matariam o novo hïrzg de bom grado e não levantariam suspeitas sobre o archigos, de maneira alguma. Allesandra sentiu um arrepio de medo; ela não estava mais certa de seu plano. Tinha esperado que o ataque fosse físico: uma faca, uma espada, uma flecha. O vatarh não teria hesitado, não se pensasse que ainda havia uma chance de sucesso. E você é a filha dele, a mais parecida com ele...

— Jan — disse ela ao se inclinar para o filho. — Aquele homem, o criado atrás de nós, que está avançando com a bandeja; não, não olhe diretamente para ele, mas você o vê?

Jan moveu a cabeça rapidamente para a esquerda, depois voltou. — Sim.

— Ele é um numetodo. Um assassino.

Jan pestanejou. — O quê?

— Acredite em mim — sussurrou Allesandra furiosamente. No palanque, Fynn ainda declamava. “Um novo dia para Firenzcia, um novo alvorecer...” — Quando ele pousar a bandeja, tudo que ele precisa fazer é falar uma palavra e gesticular com as mãos; não podemos deixar que isso aconteça. Vou confrontá-lo para atrasá-lo; você vem pelo lado. Ande! — Ela empurrou o filho. Com uma olhadela, Jan virou-se e murmurou desculpas enquanto escapuliu para os fundos, através das fileiras dos ca’ e co’. Pauli olhou para eles, curioso, e depois voltou sua atenção para a jovem ca’Belgradin. Allesandra entrou cautelosamente atrás de Fynn e virou-se para encarar o criado.

Havia apenas poucas pessoas entre eles. O criado com a bandeja parou ao ver que ela virou-se para encará-lo, e seu rosto ficou tenso. Por um momento, Allesandra pensou que estivesse enganada, que o homem não era nada mais do que fingia ser. Mas os próximos instantes jamais seriam esquecidos por ela.

... o criado jogou a bandeja para o lado (os ca’ e co’ perto do homem reagiram tarde demais quando a bandeja, a jarra, a caneca e a água caíram em cima deles). O sujeito ergueu as mãos como se fosse rezar...

... Allesandra atirou-se em cima do criado, apenas para ser impedida pelas pessoas entre eles, que contiveram seu avanço...

... um fogo surgiu entre as mãos do assassino quando ele bradou uma única palavra que soava como a língua dos ténis. Allesandra esperou morrer naquele momento, consumida pelo fogo mágico que também mataria seu irmão...

... mas Jan esbarrou no numetodo na hora em que ele abriu as mãos, derrubando o criado. (Em volta dos dois, bocas eram escancaradas em meio aos gritos, a maioria dos ca’ e co’ ainda não tinha se dado conta do que acontecia e perguntava-se por que tinha sido empurrada por este jovem mal-educado ou por que aquele criado trapalhão arruinara sua roupa elegante. Atrás dela, Allesandra ouviu Fynn gaguejar e ficar calado. Ela podia imaginá-lo se virando devagar para ver a comoção às suas costas.) O fogo mágico fez um arco para os lados e para cima, em vez de ir na direção de Fynn e Allesandra. Os ca’ e co’ gritaram quando foram tocados pelo fogo, que irrompeu entre eles e virou uma bola de fogo que explodiu na altura dos olhos da estátua de Falwin. Uma luz vermelha pulsou e morreu, mais intensa que o sol, e agora a multidão gritava também.

— Jan! — berrou Allesandra, em pânico. Ela avançou para chegar até o filho, que parecia incólume e brigava com o numetodo, embora o homem parecesse curiosamente letárgico nas mãos de Jan, como se atordoado pela reviravolta. Ao redor dos dois, havia caos. Allesandra ouviu Fynn gritar.

Ela sacou a adaga da manga, ajoelhou-se rapidamente, cravou a arma debaixo do queixo do homem e puxou para o lado com violência. O sangue jorrou como um chafariz, espesso e grosso ao escorrer pela mão e pelo braço de Allesandra. — Matarh! — disse Jan, e ela ouviu o horror na voz do filho quando o sangue também espirrou sobre ele. Mãos agarraram os dois; os gardai chegaram com espadas em punho e empurraram os ca’ e co’ para o lado. Fynn berrava ordens.

— Quem fez isso? — Allesandra ouviu o irmão gritar às suas costas. Ela virou-se para Fynn com a parte da frente da roupa arruinada pelo sangue.

— Meu filho salvou sua vida e a minha, meu hïrzg, meu irmão. E eu garanti que este assassino jamais ataque você novamente.

A sombra fria da estátua de Falwin tocou Allesandra. Ela viu o archigos ca’Cellibrecca atrás de Fynn, e a confusão e a dúvida lutavam com o horror na cara barbuda de Semini. Allesandra achou que havia quase uma decepção no jeito como Fynn olhava para o corpo. Pauli chegou à frente e parou estupefato ao lado de Fynn quando Allesandra deixou a adaga cair dos dedos. A arma fez um barulho alto sobre as tábuas do palanque.

— Eu preciso me limpar dessa imundície — disse Allesandra calmamente. — Fynn, fale com seu povo. Acalme as pessoas. Tranquilize-as. Isso é o que o hïrzg precisa fazer.

Ele torceu o nariz para a irmã: Fynn sempre fazia cara feia quando alguém ousava dar uma ordem para ele. Mas o hïrzg virou-se para a multidão horrorizada e preocupada e começou a falar.

 

 

A Pedra Branca

ELA ASSISTIU À TENTATIVA de assassinato no meio da multidão, a salvo e sem ser notada. Que trapalhada horrível, pensou a Pedra Branca, enquanto as pessoas ficavam boquiabertas, gritavam e berravam à sua volta. Uma trapalhada estúpida ainda por cima.

Uma faca era uma arma bem melhor do que magia. Furtividade era muito melhor do que um ataque brutal. Deve-se estar presente para ver os olhos da vítima quando se ataca. Deve-se sentir o calor no sangue escorrendo pelas mãos.

Ela aprendeu as habilidades com faca na tenra idade, nas ruas populosas de An Uaimth. O corpo ainda tinha as cicatrizes daquelas lições, e a Pedra Branca pensou mais de uma vez que morreria por causa delas. Seus professores foram a escória da sociedade, gente corrompida e sombria, violenta e perturbada demais para ser tolerada pela sociedade educada. Eram perigosos, e ela viu-se abusada, usada e machucada por eles mais de uma vez. Porém, os professores tinham as habilidades físicas que a Pedra Branca queria ter, adquiridas com sangue, dor e fúria. Ela aprendeu bem essas lições e tirou de cada um deles o que foi possível.

A Pedra Branca jamais deixaria alguém se aproveitar dela. Jamais seria fraca. Jamais se deixaria ficar vulnerável.

Ela teve que matar alguns de seus “professores” quando ficaram muito perigosos ou tentaram se aproximar demais, quando começaram a bisbilhotar ou adivinhar seus segredos. Ela deixou seu cartão de visitas com cada um deles, um seixo branco sobre o olho esquerdo. A Pedra Branca... Ela começou a ouvir o nome sussurrado nas ruas. O assassino sempre deixa uma pedra branca no olho esquerdo...

As pessoas sempre presumiam que era “ele, o assassino”; isso também era uma proteção. Ela podia andar por qualquer lugar e nunca ser suspeitada.

E nunca se soube que eram sempre duas pedras; que ela tirava uma do olho direito da vítima para manter consigo. Para manter as vítimas consigo.

Aquela pedra ficava na pequena bolsinha de couro pendurada em seu pescoço, aninhada entre os seios, debaixo da roupa. Aquela estava sempre com o assassino.

Ela tocou a bolsinha enquanto o povo avançava na direção do palanque, quando a a’hïrzg levantou-se coberta pelo sangue do assassino e o novo hïrzg ergueu as mãos para a multidão e gritou para que as pessoas ficassem calmas.

A Pedra Branca sorriu diante disso.

A morte... a morte era sempre calma.


??? TENDÊNCIAS ???

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Nico Morel

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— É COM IMENSO PRAZER e gratidão que eu lhe concedo a Estrela dos Chevarittai. Você pode ser jovem, chevaritt Jan ca’Vörl, mas não conheço ninguém mais merecedor do título.

O aplauso fluiu entre as pessoas que assistiam na antecâmara no salão de baile do Palácio de Brezno. Jan deu um sorriso radiante quando Fynn — que usava a coroa dourada de hïrzg no cabelo e o anel com sinete no dedo — prendeu a estrela dourada na faixa vermelha de ombro de sua bashta, depois entregou um presente que pertencera ao vatarh de Allesandra e homônimo de Jan: uma espada de aço escuro firenzciano, endurecida pelo fogo e pela água fria, e afiada como uma navalha. Allesandra viu Jan pegar o punho incrustado da arma e enfiar a espada na bainha. Fynn amarrou-a ao cinto de Jan, depois abraçou o sobrinho enquanto os aplausos aumentavam. Parada próximo aos dois, Allesandra ouviu as palavras que Fynn sussurrou no ouvido de Jan.

— Aquele foi realmente um ato de bravura, sobrinho, embora eu não corresse perigo real. Eu certamente teria saído do caminho do feitiço daquele idiota.

Para Allesandra, o verdadeiro idiota era Fynn. A bravata já era ruim, e ele ignorou o papel que Allesandra teve em salvar sua vida. Foi como se ela não tivesse estado ali de forma alguma, como se Jan tivesse notado o assassino por conta própria.

Allesandra disse para si mesma que não se importava, que isso apenas correspondia às baixas expectativas que tinha de seu irmão, mas o pensamento não a convenceu. A porta para o salão de bailes abriu um momento depois, e Fynn gesticulou. — Venham, vamos todos aproveitar essa celebração — falou o hïrzg para os ca’ e co’ e os chevarittai reunidos. Fynn passou o braço pelos ombros de Jan, e juntos os dois entraram no salão quando os músicos começaram a tocar e uma dezena de e’ténis entoou para acender todas as lâmpadas do aposento ao mesmo tempo. Pauli ofereceu o braço à Allesandra; ela aceitou, por dever e aparência, e o casal seguiu. Atrás deles, entraram o archigos Semini e Francesca.

Allesandra sentiu o olhar de Semini em suas costas.

Em seguida à tentativa de assassinato, houve um expurgo a qualquer um em Brezno que fosse suspeito de ser numetodo. Isso, certamente, também era esperado. Houve outro expurgo, um pouco menos brutal, dentro do corpo de funcionários do novo hïrzg — o que confirmou o que Fynn dissera para Allesandra sobre como ele trataria qualquer um que se opusesse a ele. Cada criado, todo mundo abaixo do status de co’ empregado pelo palácio, foi interrogado pelo comandante da Garde Hïrzg. Uma meia dúzia de funcionários, suspeitos como simpatizantes dos numetodos, foram levados para a Bastida para serem interrogados com mais afinco. O mestre do palácio, que contratara o pretenso assassino, foi considerado culpado por negligência. Seu cargo foi tomado, a família reduzida a ce’, e o próprio mestre perdeu as mãos como castigo. A família do assassino foi presa; ninguém mais os viu desde que entraram na Bastida. Um numetodo que disseram ter ajudado o assassino foi chibatado e esquartejado na Praça de Brezno. Ele foi mantido vivo cuidadosamente pelo carrasco pelo máximo de tempo possível, e seus gritos ecoaram entre os prédios enquanto a multidão assistia e gritava insultos e caçoadas para o homem. O corpo do assassino, infelizmente morto durante o ataque, foi pendurado e exposto publicamente em uma jaula de ferro que balançava em uma corrente na espada de Falwin. Dobraram o número de gardai em volta do palácio, com soldados da Garde Firenzcia, trazidos para reforçá-los. Rumores voavam pela cidade tão rapidamente e tão numerosos quanto pardais.

Dois ca’ foram mortos no ataque pelo feitiço errante; seus funerais foram caprichados e atraíram um bom público. Mais seis espectadores no palanque foram queimados e feridos no ataque, quatro gravemente; dizia-se que tinham sido muito bem compensados pelos cofres do hïrzg para manter as famílias caladas e satisfeitas.

Allesandra ainda podia sentir a tensão no ar, mesmo durante esta celebração. Os criados mantinham a cabeça baixa por prudência, e se alguém notou os gardai que vigiavam as festividades perfilados pelas paredes ou o impressionante número de ténis presentes, ninguém comentou. Era melhor sorrir e permanecer calado.

Pauli dançou com Allesandra uma vez — o mínimo de exigência conjugal. Assim que a dança acabou, ele pediu licença. Ela sabia que, dali em diante, só veria Pauli de relance do outro lado do salão, e que em pouco tempo descobriria que o marido sumiu de vez e que somente retornaria em algum momento cedinho de manhã para seu próprio quarto separado, na ala de visitantes do palácio. Jan também dançou com Allesandra, mas as atenções do filho eram exigidas por Fynn e pela multidão de bajuladores em volta do hïrzg. As moças, em especial, pareciam considerar a presença de Jan bastante agradável. Allesandra decidiu que teria que prestar muita atenção ao filho pelo resto da estadia em Brezno quando viu uma ca’ jovem e solteira pegar o braço de Jan e levá-lo para a pista de dança.

— A senhora me surpreendeu, a’hïrzg. — A voz de Semini surgiu atrás dela. — Eu não sabia que tinha um amor tão grande por seu irmão a ponto de se colocar entre ele e um assassino, mesmo que o hïrzg pareça ter convenientemente se esquecido de que a irmã fez isso.

Allesandra olhou em volta para garantir que não havia ninguém que pudesse ouvir, depois se virou para o archigos e inclinou o corpo para sussurrar. — E eu fiquei surpresa que o archigos contratasse um numetodo.

Seu sorriso talvez tenha tremido levemente, seus olhos talvez tivessem se apertado. — Eu jamais faria isso, a’hïrzg.

— Não há necessidade para falsa modéstia, Semini. Eu achei a ideia brilhante quando percebi a ironia.

— Eu não sei do que a senhora está falando, a’hïrzg — respondeu ele com intransigência.

— Ah, mas sabe, sim. E agora você está em dívida comigo, archigos. Afinal de contas, o assassino não foi capaz de responder a quaisquer perguntas embaraçosas depois, não é? Isso fui eu que fiz por você, archigos, embora meu irmão tenha ficado terrivelmente desapontado por não haver alguém para torturar depois. Venha, você quer saber por que eu fiz aquilo, não quer? Vamos tomar um pouco de ar, archigos, onde possamos ser vistos, mas não ouvidos.

Allesandra conduziu Semini para a entrada aberta de uma sacada, que estava vazia. Ela ficou diretamente voltada para as portas, onde qualquer um que olhasse pudesse vê-los. A música passou por eles e flutuou noite afora; Allesandra e Semini podiam ver as pessoas dançando, entre elas o hïrzg e Jan. Ela virou-se para olhar os jardins, iluminados por centenas de lâmpadas mágicas; alguns casais passeavam por lá. — Isso quase me lembra Nessântico e a Avi... — A a’hïrzg voltou-se do parapeito. — Quase. Eu percebo que sei muito pouco a respeito de sua vida pessoal, archigos. Você algum dia já foi a Nessântico?

Sergei concordou com a cabeça. Ele observava Allesandra como um cão desconfiado observaria outro. — Eu fui ordenado aqui em Brezno por Orlandi ca’Cellibrecca, meu vatarh por casamento, mas como um jovem o’téni eu viajei com ele para Nessântico várias vezes quando Orlandi era o a’téni de Brezno.

— Então sem dúvida você entende por que Nessântico sempre foi o centro dos Domínios. Há uma grandiosidade e uma história lá que ninguém consegue sentir em qualquer outro lugar. Dá para entender por que, quando os Domínios forem reunificados, Nessântico será o centro do mundo conhecido novamente. Tenho certeza disso. — Allesandra tocou o braço dele e sentiu o archigos puxá-lo de volta. — Eu quero lhe agradecer, Semini. Você me deu a oportunidade perfeita para demonstrar a Fynn como eu era leal a ele, apesar da maneira como meu vatarh me dispensou como herdeira; apesar da paranoia e das suspeitas de Fynn a meu respeito; apesar de todas as discussões e brigas que tivemos. Meu irmão jamais suspeitará novamente que eu ou Jan conspiraríamos contra ele.

Mesmo na penumbra da sacada, iluminada apenas por lâmpadas mágicas postas em ambas as pontas do parapeito, ela pôde ver a cor do rosto de Semini escurecer. O archigos cerrou os punhos ao lado do corpo e afastou o olhar de Allesandra. Ele não disse nada.

— O kraljiki Audric não viverá muito tempo, pelo que me dizem — continuou ela. — Eu descobri que realmente não quero ser a hïrzgin, Semini, mas quando chegar o dia em que os Domínios estiverem unificados, digamos, sob uma kraljica, eles precisarão de um hïrzg forte para ser sua espada, o papel que Firenzcia sempre cumpriu. Agora, meu filho dará um grande hïrzg um dia, não acha? Um líder maravilhoso.

Semini arregalou os olhos um pouco. — Você quer...

— Sim — respondeu Allesandra antes que ele pudesse terminar a pergunta.

— Você assumiu um risco incrível, Allesandra.

— Sim, admito que você me surpreendeu bastante com sua audácia. Eu quase decidi apenas deixar que acontecesse. Porém, grandes ambições exigem grandes riscos, como você obviamente entende. E você me deve pelo risco que corri, Semini, porque depois eu garanti que a tentativa de assassinato não pudesse conduzir facilmente até você. Eu destruí a prova que podia falar.

— Eu não tive nada a ver com...

Ela dispensou o protesto fraco com a mão. — Ora, vamos. Apenas a lua pode nos ouvir aqui, e ambos sabemos a verdade. Ainda há provas contra você, caso eu seja forçada a revelá-las. Ambos sabemos que se eu relatasse para Fynn algumas das conversas que tivemos ou dissesse para ele sobre a missiva que você recebeu do regente de Nessântico — diante disso, Semini arregalou ainda mais os olhos, e Allesandra soube que o palpite estava certo —, bem, nós sabemos que os interrogadores na Bastida conseguem extrair uma confissão plena de qualquer um. Fynn daria ordens para que se fizesse um interrogatório assim, mesmo com o archigos, caso eu insistisse. Afinal de contas, eu sou sua leal irmã, que se colocou entre ele e aquele numetodo desprezível. E se você tentasse dizer para Fynn que eu estava envolvida também, ora, minhas ações e as de Jan tornariam a acusação uma mentira, não é?

— O que você quer? — perguntou Semini com grosseria. O archigos deu um passo para trás, como se a presença dela fosse infecciosa. Aquilo agradou Allesandra; significava que toda aquela dissimulação tinha acabado. Os belos olhos escuros do archigos brilharam com os reflexos das lâmpadas mágicas abaixo deles, a postura de Semini era a de um urso acuado, forte e pronto para se defender até a morte. Ela descobriu que gostava disso.

— Na verdade, eu não quero nada além do que você mesmo queira. Nós ainda estamos do mesmo lado, embora eu sinta que você tem dúvidas quanto a isso. Eu gosto de você, Semini, gosto mesmo. Gostaria que se tornasse o Único Archigos. E será, se fizer o que eu mandar. Você cometeu dois erros, Semini. Um foi pensar que Fynn só seria útil para nós morto quando, na verdade, nós queremos ele vivo. Por enquanto.

— E o segundo?

Ela inclinou a cabeça para o lado e observou Semini. — Você pensou que fosse a pessoa que deveria tomar as decisões por nós. Não espero que cometa esse erro novamente. Na época em que fui refém em Nessântico, a archigos Ana muitas vezes dizia que o archigos sempre serve a dois mestres: Cénzi, em nome da Fé, e a pessoa no Trono do Sol, em nome dos Domínios.

Allesandra tocou o braço dele novamente. Desta vez Semini não recuou, e ela deu o braço ao archigos. — Vamos dançar juntos, archigos, uma vez que nenhum dos nossos respectivos cônjuges parece se importar. Vejamos quão bem nos movemos juntos.

Allesandra insistiu que Semini saísse da sacada e entrasse no barulho e na luz do salão de baile.

 

Enéas co’Kinnear

— CÉNZI SEM DÚVIDA OLHA pelo senhor, o’offizier co’Kinnear, embora as notícias que traz sejam muito perturbadoras. — Donatien ca’Sibelli, comandante das forças dos Domínios nos Hellins e irmão gêmeo de Sigourney ca’Ludovici do Conselho dos Ca’, andava de um lado para o outro atrás da mesa enquanto Enéas permanecia em posição de sentido diante do superior. A sala era um reflexo do homem: limpa e escassa, sem nada que distraísse os olhos. O tampo da mesa era polido, com uma única pilha de papel em cima, alinhada perfeitamente com a borda do móvel. Havia um pote de nanquim e uma pena do outro lado, com um areeiro que formava um ângulo reto perfeito acima deles. A cesta de lixo estava vazia. Havia uma única cadeira de madeira simples diante da mesa. Em um canto, o estandarte azul e dourado de Nessântico pendia frouxo em um poste.

Ca’Sibelli, pelo menos em seu gabinete, não permitia que nada se intrometesse em seu dever como comandante. Não havia como duvidar da lealdade ou bravura do homem — ele lutara muito bem contra uma força adversária muito superior na Batalha dos Brejos e fora condecorado e promovido pelo kraljiki Justi, sua irmã servia ao Estado da maneira dela, mas Enéas sempre suspeitou que o cérebro do homem tinha tão pouca mobília quanto seu gabinete.

— Sente-se, o’offizier — disse ca’Sibelli, que apontou para a cadeira e sentou-se na própria. Ele tirou a folha de cima dos relatórios e colocou diante de si enquanto Enéas se sentava. O indicador do comandante percorreu o texto enquanto ca’Sibelli vasculhava o documento. — O a’offizier ca’Matin fará muita falta. Deve ter sido horrível vê-lo ser sacrificado aos caprichos dos falsos deuses que aqueles selvagens idolatram, e o senhor é extremamente afortunado por ter evitado o mesmo destino, o’offizier.

O próprio Enéas tinha pensado nisso, e os offiziers que o interrogaram desde seu retorno muitas vezes disseram a mesma coisa, alguns com uma insinuação de acusação na voz. Ele passou três dias cavalgando pelo ermo território ao redor do lago Malik e manteve o cavalo na direção nordeste. No quarto dia, fraco e faminto, com a montaria praticamente exausta, Enéas vislumbrou cavaleiros em um morro. Eles também o viram e vieram galopando em sua direção. Enéas esperou pelos homens, ciente de que não conseguiria fugir dos cavaleiros, fossem amigos ou inimigos. Cénzi sorriu para ele novamente: o grupo era uma pequena patrulha de reconhecimento dos Domínios, e não soldados ocidentais. Eles o alimentaram, ouviram espantados sua história, e o trouxeram de volta para seu posto avançado.

Nos dias seguintes, conforme notícias foram mandadas para Munereo e uma ordem enviada de volta para Enéas retornar para lá, ele soube que somente um terço do exército liderado pelo a’offizier ca’Matin conseguiu se arrastar de volta depois da retirada caótica. Da própria unidade, Enéas era o único sobrevivente. O choque da notícia fez Enéas se ajoelhar e rezar para Cénzi pelas almas dos homens que ele conhecera e comandara. Muitos morreram a esta altura. Homens demais. Ele ficou atordoado e confuso pela perda.

Neste momento, Enéas simplesmente concordou com a cabeça diante do comentário do comandante e observou o homem continuar a ler e murmurar para si mesmo.

— Os nahualli estavam com o exército então. Nossa informação estava errada.

— Sim, senhor. Eu lutei contra eles várias vezes e nunca tinha visto feitiços como aqueles: o fogo explodiu do chão embaixo de nós, aqueles círculos de areia escura... — Enéas engoliu em seco ao se lembrar. — Um daqueles feitiços foi disparado perto de mim, e eu não me lembro de nada depois daquilo até... depois de a batalha já estar encerrada. Eles pensaram que eu estava morto.

— Cénzi colocou Sua mão sobre o senhor e o salvou — comentou ca’Sibelli, e Enéas concordou com a cabeça novamente. Ele acreditava nisso. Com o passar dos dias, cada vez mais tinha certeza, desde que saíra do acampamento tehuantino. Cénzi abençoou-o. Cénzi salvou-o por um motivo especial: Enéas sabia disso. Podia sentir. À noite, ele parecia ouvir a voz de Cénzi dizendo o que queria que Enéas fizesse.

Ele obedeceria como qualquer bom téni faria.

— Cénzi realmente esteve comigo, comandante. — Enéas sentia isso com fervor. Que outra resposta haveria? Ele esperava morrer e, no entanto, Cénzi fez contato com o pagão Niente e tocou o coração do homem. Era a única explicação. E apesar da fome e da sede, apesar da exaustão que sentiu ao fugir dos ocidentais, de certa maneira Enéas jamais se sentiu assim tão revigorado, tão cheio de vida e vivo. A própria alma ardia dentro dele. Às vezes, Enéas era capaz de sentir a energia formigar na ponta dos dedos. — É por isso, comandante, que fiz o pedido de retornar a Nessântico. Eu acho que esta é a tarefa pela qual Cénzi me poupou.

Havia um destino para Enéas cumprir. Foi por isso que ele escapou dos ocidentais; foi Cénzi que trabalhou de dentro do nahual Niente. Certamente não foi o ato do falso deus deles, Axat.

Ca’Sibelli franziu um pouco a testa diante do último comentário de Enéas. Ele mexeu na papelada novamente. — Eu preparei um relatório para enviar a Nessântico — continuou ca’Sibelli — e uma recomendação para uma condecoração para o senhor, o’offizier co’Kinnear. Porém, ainda assim, sua experiência e liderança farão falta aqui, especialmente com a perda do a’offizier ca’Matin.

— É muita gentileza de sua parte, comandante — respondeu Enéas. Não era de seu feitio reclamar de ordens, mas Cénzi era uma autoridade superior. — Mas relatórios são secos, e as pessoas em Nessântico, especialmente o regente e o kraljiki, precisam saber como nossas circunstâncias são desesperadoras. Eu acho... acredito que eu seria a pessoa certa para levar a mensagem. Posso falar diretamente com as pessoas em Nessântico sobre a situação aqui. Elas poderão ouvir da minha boca o que aconteceu. Posso convencê-las; Cénzi me diz que eu posso.

Vá ao seu líder, fale com ele e dê uma mensagem por nós... Ele pensou, por um momento, ter ouvido aquela sentença em uma voz alta e grave em sua cabeça. Ficou assustado demais para falar imediatamente. — Comandante — continuou Enéas —, eu entendo que meu lugar é aqui com as tropas, especialmente com os ocidentais ameaçando avançar contra a própria Munereo. Eu retornarei assim que for possível, mas posso entregar seu relatório com muito mais impacto. Prometo isso ao senhor. Eu sugeriria que o senhor mesmo fosse, mas seu conhecimento e liderança são fundamentais para nossa vitória contra os ocidentais.

Ca’Sibelli abanou a mão. O movimento fez mexer os papéis do topo da pilha na mesa, que ele parou para alinhar novamente. O comandante suspirou. — Eu creio que um offizier a mais ou a menos não fará diferença; ou melhor, acredito no senhor quando diz que pode fazer mais diferença ao falar com o kraljiki e o Conselho dos Ca’ do que empunhando uma espada aqui. Talvez o senhor esteja correto sobre a vontade de Cénzi. Tudo bem, o’offizier co’Kinnear: o senhor partirá amanhã de manhã na alvorada no Nuvem Tempestuosa. O e’offizier co’Montgomeri está com meu relatório para o senhor entregar; pode pegá-lo ao ir embora. Espero o senhor de volta aqui quando o Nuvem Tempestuosa retornar.

Ca’Sibelli levantou-se, e Enéas ficou de pé às pressas para prestar continência. — O senhor já sabe que tinha sido recomendado para o título de chevaritt pelo a’offizier ca’Matin — disse o comandante ao devolver a continência. — Eu aprovei aquela recomendação; ela também estará no Nuvem Tempestuosa para o kraljiki assinar. Eu suspeito que o futuro lhe reserva grandes coisas, o’offizier. Grandes coisas.

Enéas concordou com a cabeça. Ele também suspeitava disso. Cénzi cuidaria disso.

 

Audric ca’Dakwi

AS TROMPAS DO TEMPLO soaram a Primeira Chamada, as notas dissonantes e tristes apagaram os últimos vestígios de sono.

Audric permitiu que Seaton e Marlon o ajudassem a sair da cama. Mesmo com a assistência, o kraljiki ficou sem fôlego ao ficar de pé, com a roupa de dormir. Os camareiros ajudaram Audric, as mãos dos dois tiraram a camisola do kraljiki, depois começaram a vesti-lo para a audiência matinal. Enquanto cambaleava de leve nas mãos dos camareiros e ofegava, Audric olhou o quadro de Marguerite. Ela deu um sorriso cruel para o neto.

— Você é fraco fisicamente porque é fraco politicamente — disse a kraljica. — Cénzi lhe mandou a doença como um aviso. Você está tão envolvido por grilhões de ferro que não consegue enxergar, Audric: são correntes pesadas, que confinam e oprimem, e é este fardo que deixa você doente. Foi o regente que colocou as correntes, Audric. Ele rouba seu poder; rouba sua saúde. Quando você se soltar dos grilhões do regente, quando for o kraljiki na prática, assim como no título, sua doença também lhe deixará.

— Eu sei, mamatarh — falou Audric. Era um esforço apenas erguer a cabeça. Os cantos do quarto estavam escuros, como se ainda fossem encobertos pela noite; ele só conseguia enxergar o quadro. — Eu estou ansioso... por esse dia. — Por um momento, Marlon e Seaton pararam as atenções, assustados com a resposta.

— Em breve — murmurou Marguerite. — O que quer que você faça tem que ser em breve. O regente tem a intenção de enfraquecê-lo até que morra, Audric. Ele o envenena com suas palavras, com conselhos para ter cautela, com o poder que roubou de você. O regente quer tudo para si e está matando você para obtê-lo. Você tem que agir.

— É o que farei hoje, mamatarh.

— Kraljiki? — perguntou Seaton.

Audric olhou com raiva para o camareiro e disparou — Não interrompa quando estou conversando com seus superiores. — As palavras eram interrompidas por arfadas. — Repita isso e você será dispensado do meu serviço, além de ser chibatado pela insolência. Entendeu?

Ele viu Seaton olhar de relance para Marlon e depois fazer uma rápida mesura para Audric. — Minhas desculpas, kraljiki. Eu... eu errei.

Audric torceu o nariz. Marguerite sorriu para o neto enquanto concordava com a cabeça, no quadro. — Andem depressa, vocês dois — falou o menino para os camareiros. — Hoje vai ser um dia cheio.

Meia virada da ampulheta depois, Audric estava vestido e tomava café da manhã na sacada do quarto, que dava vista para os jardins oficiais do palácio. Ele ouviu a batida na porta externa e a conversa do criado no corredor com Marlon. — Kraljiki — disse o camareiro alguns momentos depois, enquanto Audric tomava um gole de chá de menta e saboreava o aroma da erva. — Seus convidados esperam o senhor na antecâmara.

— Excelente. — Ele pousou a xícara e dispensou Marlon e Seaton com um gesto quando os dois correram para atendê-lo. — Deixem-me. Eu estou bem. — Ao passar pelo quadro de Marguerite, Audric acenou com a cabeça para ela, depois foi para a porta da câmara de recepção. Marlon moveu-se para abrir a porta para ele, e Audric ergueu a mão, à espera de recuperar o fôlego, à espera de conseguir respirar sem ofegar. O kraljiki finalmente aquiesceu, e Marlon abriu a porta.

Audric viu todos se levantarem rapidamente e fazerem mesuras quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi e Odil ca’Mazzak — todos integrantes do Conselho dos Ca’, os três mais influentes entre os sete. Sigourney era a pedra fundamental, Audric sabia: ela tinha o sobrenome ca’Ludovici, como a kraljica Marguerite. Magra e ativa, com um rosto animado, comprido e delicado, Sigourney aproximava-se da quarta década de vida e tinha o cabelo pintado de preto como carvão com raízes brancas; com o irmão gêmeo no comando das forças nos Hellins, ela contava com a voz dos militares também. Odil, um saudável sexagenário, era o que estava há mais tempo sentado no Conselho dos Ca’ dentre todos eles. Seu corpo tinha a aparência magra e murcha de carne defumada, e ele arrastava os pés com cuidado ao andar apoiado por uma bengala, mas a mente permanecia afiada. Com quase 30 anos, Aleron era um dos mais jovens integrantes, mas era carismático, charmoso e usava de sua influência muito bem, a ponto de ainda ser considerado bonito — e fez um ótimo casamento com alguém da antiga família ca’Gerodi.

— Por favor, sentem-se — mandou Audric, que tomou o próprio assento perto da lareira, do lado oposto ao lugar onde o quadro da mamatarh estava pendurado. O kraljiki podia imaginá-la com a parte detrás da cabeça voltada para eles enquanto escutava. — Eu pedi que os senhores viessem aqui hoje porque valorizo seus conselhos e gostaria de ouvir suas opiniões. — Ele fez uma pausa, tanto para respirar quanto para dar efeito. — Não perderei seu tempo. Eu gostaria de remover o regente ca’Rudka de seu posto e que os plenos poderes do governo sejam passados para mim.

Audric viu Odil recostar-se visivelmente na cadeira e Sigourney e Aleron trocar olhares cuidadosamente dissimulados. — Kraljiki — Aleron começou a falar, depois parou para passar a língua pelos lábios grossos. — O que o senhor pede... bem, o senhor está a apenas dois anos de chegar à maioridade legal. Eu sei que parece um longo tempo para alguém da sua idade, mas dois anos...

— Eu sei muito bem disso, conselheiro ca’Gerodi — disse Audric com desdém. A voz foi interrompida por tosses ocasionais e pausas para respirar. — O senhor estava lá quando o mestre ci’Blaylock testou meus conhecimentos sobre a linhagem dos kralji. Eu conheço a minha história, talvez melhor do que qualquer um dos senhores. Eu poderia citar o kraljiki Carin...

— Sim, kraljiki. — foi Odil que falou. — Existe um precedente real em Carin, mas Carin...

— “Mas Carin?” — Audric repetiu quando o homem parou. Odil respirou fundo ao se sentar na ponta da cadeira.

— O kraljiki Carin era precoce em quase todos os aspectos — continuou Odil. Ele abaixou o olhar para os dedos, entrelaçados no colo, e falou mais para eles do que para Audric. — Com o perdão do kraljiki, a história de Nessântico é meu passatempo, e eu diria que houve circunstâncias atenuantes na extraordinária ascensão de Carin. Aos 12 anos, ele assumiu o comando da Garde Civile contra as forças de Namarro quando seu vatarh foi morto, e Carin demonstrou habilidades extraordinárias naquela batalha. Todas as histórias dizem que ele era capaz de se lembrar de tudo que ouvia. Ele também tinha o Dom de Cénzi e podia usar o Ilmodo quase tão bem quanto um téni-guerreiro. E a saúde de Carin — dito isso, Odil finalmente olhou diretamente para Audric — era excelente.

— E foi o próprio regente de Carin que foi ao Conselho dos Ca’ com o pedido de que o kraljiki recebesse plenos poderes mais cedo — acrescentou Sigourney rapidamente enquanto Audric sentia o calor do sangue nas bochechas. — Talvez se o regente ca’Rudka viesse até nós com uma recomendação dessas...

— Ca’Rudka é o problema! — berrou Audric. Com calma... Ele ouviu a voz da mamatarh na cabeça. Olhe para os rostos dos conselheiros, Audric. Você os assusta com seu poder e tem que ter cuidado. Use a cabeça. Manipule-os. Você quer que eles escutem, que cumpram suas ordens. Você tem que soar como um adulto, não como uma criança petulante. Tem que parecer sensato. Fazer com que acreditem que é do interesse deles fazer o que você pede. Diga para eles. Diga todas as coisas sobre as quais conversamos...

Audric concordou com a cabeça. Ele tossiu e respirou fundo. Limpou a boca com a manga da bashta e ergueu a outra mão para os conselheiros. — Eu peço desculpas, conselheiros — falou Audric finalmente. — Por favor, entendam que minha... hum, veemência é causada apenas por minha grande preocupação com Nessântico e com os Domínios, e sei que todos os senhores se preocupam comigo. — Ele olhou de relance para Sigourney. — Conselheira ca’Ludovici, o regente ca’Rudka nunca virá até os senhores. Jamais. A verdade é que ele tem intenção de permanecer no poder, não importa qual seja a minha idade.

— Esta é uma acusação preocupante, kraljiki, com certeza — respondeu Sigourney. — O senhor tem alguma prova disso?

— Assim como o kraljiki Carin — disse Audric, acenando para Odil —, eu me lembro do que é dito na minha presença. O regente insinuou tal coisa para mim, e eu ouvi ca’Rudka sussurrar com o archigos Kenne quando eles pensavam que eu estava dormindo ou doente demais para prestar atenção. Provas? Não tenho nada além do que ouvi, mas eu ouvi. Há fatos curiosos também. O regente ca’Rudka, afinal, era o comandante da Garde Civile na época do meu vatarh e também foi o líder da Garde Kralji antes disso. Os homens escolhidos a dedo pelo regente ainda cuidam da segurança de Nessântico: o comandante co’Falla, da Garde Kralji, e o comandante co’Ulcai, da Garde Civile. E, ainda assim, de alguma forma, não só eles não conseguiram impedir o assassinato de nossa amada archigos, Ana, como ambos alegam que sequer sabiam de alguma trama contra ela.

— O que o senhor quer dizer, kraljiki? — perguntou Aleron. — Está dizendo que o regente ca’Rudka...? — Ele parou. Um gordo dedo indicador cofiou o cavanhaque.

— Todos os senhores conhecem os rumores a respeito da archigos Ana, que ela às vezes usava o Ilmodo para curar, apesar de a Divolonté ser contra tais práticas — falou Audric. — Eu sei que essas práticas são verdadeiras porque a archigos Ana me ajudou muitas vezes, desta mesma maneira. Sim, conselheira ca’Ludovici, eu vejo que a senhora concorda. Sei que todos suspeitavam disso. Com a archigos Ana morta, ora, alguém também poderia acreditar que eu também morreria em breve... e que o Conselho dos Ca’, em agradecimento pelo longo serviço, e dado que a linhagem direta da kraljica Marguerite atualmente não importava mais, poderia simplesmente nomear o atual regente como kraljiki em título, assim como na prática. Se ca’Rudka esperasse mais tempo para agir, ora, há o perigo de eu me casar e ter filhos que pudessem reivindicar o título.

Audric percebeu que eles refletiam sobre as acusações, especialmente sua prima ca’Ludovici. Ele tentou conter a tosse e se apressou em dizer o resto. Sim, você tem a atenção dos conselheiros agora, o kraljiki ouviu sua mamatarh dizer com uma voz contente.

— Essa situação chegou a um ponto crítico por causa das más notícias que continuam a vir dos Hellins. — Audric apressou-se para continuar. — Conselheira ca’Ludovici, seu irmão está lutando bravamente com os míseros recursos que demos a ele. O comandante ca’Sibelli é um ótimo guerreiro, mas, ainda assim, estamos sendo humilhados pelos ocidentais; nós, Nessântico, os Domínios, a maior potência do mundo. Essas pessoas são pouco mais do que selvagens, e, no entanto, elas roubam de nós a terra que o sangue de nossos soldados santificou. Eu disse ao regente que não tolerarei isso. Disse que quero mandar tropas adicionais e ténis-guerreiros para os Hellins a fim de ajudar seu irmão a acabar com esta rebelião. Deixem-me perguntar para cada um dos presentes: o regente ca’Rudka falou a respeito disso com algum dos senhores? — Ele viu as cabeças dos conselheiros balançarem em silêncio. — Eu imaginei que não. O regente está satisfeito em perder os Hellins; ele me disse isso. Está satisfeito em desperdiçar o grande sacrifício de nossos gardai. Fosse eu o kraljiki neste momento, ordenaria a imediata prisão de ca’Rudka. Eu o colocaria na Bastida e faria com que assinasse sua confissão, assim como ele fez outros confessarem ao longo de décadas. Porém, se os senhores não fizerem isso, então sugiro que simplesmente perguntem ao regente. Não sobre a morte da archigos ou suas intenções a meu respeito, mas sobre os Hellins. Perguntem a ca’Rudka a respeito de nossa situação lá e qual seria a melhor linha de ação que ele considera. Perguntem por que o regente não sabia nada sobre o plano contra a archigos Ana. Ouçam cuidadosamente as respostas. E quando os senhores perceberem que eu falo a verdade a respeito dessa situação, entenderão que também falo a verdade sobre o resto.

Audric ficou de pé. Sentiu o corpo tremer com o esforço, a exaustão ameaçava tomar conta dele. O kraljiki pareceu enxergar os três conselheiros como se estivessem atrás de um vidro fumê e não queria outra coisa a não ser cair na cama sob o olhar vigilante de Marguerite. Ele tinha que encerrar essa reunião. Rapidamente. — Por enquanto, encerramos por aqui. Falem com ca’Rudka. Depois, pensem no que eu falei para os senhores.

Audric fez uma mesura para os conselheiros e — com o passo mais lento e majestoso que conseguiu ter forças para dar — cruzou a sala até a porta do quarto, que Marlon abriu para ele.

O kraljiki conseguiu esperar até a porta ser fechada para cair nos braços de Seaton.

 

Sergei ca’Rudka

— REGENTE CA’RUDKA! UM momento!

Sergei virou-se na entrada da Bastida a’Drago. Acima dele, cimentado nas pedras do sombrio baluarte, o crânio de um dragão escancarava as enormes mandíbulas com dentes afiados que reluziam. A cabeça do dragão, descoberta durante a construção do que era para ser um castelo de defesa, deu à Bastida seu nome: Fortaleza do Dragão. Agora ela espiava os prisioneiros que entravam na masmorra e parecia rir quando eram devorados pela Bastida.

Ou talvez a cabeça risse de todos eles: os numetodos alegavam que não era um crânio de dragão em hipótese alguma, mas sim de algum animal antigo e extinto que virou pedra. Para Sergei, esta era uma teoria enrolada demais para se acreditar, mas os numetodos também alegavam que as conchas de pedra encontradas no alto dos morros em volta de Nessântico estavam lá porque, em algum passado distante inimaginável, as montanhas foram o leito de um mar.

O passado não importava para Sergei. Apenas o presente, e o que ele podia tocar, sentir e compreender.

Uma carruagem parou na Avi a’Parete. Da janela do veículo, Sigourney ca’Ludovici gesticulou na direção de Sergei. O regente fez uma mesura e andou até a carruagem. — Bom dia, conselheira. A senhora saiu cedo. A Primeira Chamada aconteceu há menos de uma virada da ampulheta.

Os olhos de Sigourney eram de um surpreendente cinza-claro em contraste com o cabelo tingido de preto. Ele notou as linhas finas debaixo do rosto maquiado. — O Conselho dos Ca’ teve uma reunião com o embaixador co’Görin da Coalizão na manhã de hoje, como seu gabinete foi informado.

— Ah, sim. — Sergei empinou o queixo. — Eu vi a declaração que o conselheiro ca’Mazzak escreveu. Ele fez um belo trabalho ao ficar no meio termo entre congratular o novo hïrzg e ameaçá-lo, eu aprovei a declaração. Acho que o conselheiro ca’Mazzak daria um belo embaixador em Brezno, se ele estivesse disposto. E acho que o embaixador co’Görin ficaria convenientemente irritado com a indicação.

Em outra ocasião, Sigourney teria rido do comentário, mas ela parecia distraída. Os lábios estavam parcialmente abertos, como se esperasse para dizer outra coisa, e o olhar continuava a se afastar do rosto de Sergei para a fachada da Bastida. Não era por causa do nariz de metal; Sergei estava acostumado com essa reação da parte de estranhos, com seus olhares ou capturados pela réplica de prata colada no rosto ou tão incomodados pelo nariz que deslizavam do rosto como esquis no gelo do inverno. Mas Sigourney conhecia o regente há décadas. Eles nunca foram amigos, mas também não eram inimigos; na política de Nessântico, isso era suficiente. Algo está errado. Ela não está à vontade. — O que a senhora realmente queria me perguntar, conselheira? — A pergunta atraiu o rosto dela de volta para Sergei.

— O senhor me conhece muito bem, regente.

Ele podia conhecer Sigourney, mas ela não o conhecia. Ninguém realmente o conhecia; Sergei jamais deixara alguém se aproximar tanto do seu âmago desprotegido, e estava velho demais para começar agora. A conselheira ficaria chocada se soubesse o que ele fez na manhã de hoje, nas entranhas da Bastida. — Eu tenho prática em ler as pessoas — disse o regente com um aceno de cabeça para o dragão no baluarte da Bastida. — O problema está nos olhos e nos minúsculos músculos do rosto que ninguém realmente consegue controlar. — Ele deu uma batidinha proposital no nariz falso. — A dilatação das narinas, por exemplo. A senhora está incomodada com alguma coisa.

— Todos nós lemos o último relatório do meu irmão nos Hellins. É a situação por lá que me incomoda.

Sergei colocou o pé no degrau da carruagem e inclinou-se na direção dela. As molas da suspensão do veículo gemeram e cederam sob seu peso. — Isso também me incomoda, conselheira.

— O que o senhor faria a respeito?

— Quando alguém sangra muito, o conselho é atar a ferida. Eu digo isso sem críticas ao seu irmão. O comandante ca’Sibelli está fazendo o possível com os recursos de que podemos abrir mão para ele, mas lutar contra um inimigo obstinado em seu território natal é difícil sob a melhor das circunstâncias, e praticamente impossível a essa distância.

— O senhor está sugerindo que nós atemos a ferida, regente, como o senhor disse tão elegantemente, ou que nós fujamos em desonra do que está causando o dano? — Ela arqueou as sobrancelhas ao fazer a pergunta, e Sergei hesitou. Ele sabia que Audric havia se encontrado com Sigourney, Odil e Aleron, esse tipo de fofoca era impossível de abafar no palácio, e lembrava-se bem demais das discussões sobre a questão que tivera com Audric. O regente ainda não tivera a chance de tocar no assunto com qualquer um do Conselho dos Ca’; agora parecia que Audric fizera isso por ele, e Sergei duvidava que tivesse sido favoravelmente representado pela opinião do kraljiki.

— Se há desonra em recuar depende — respondeu ele com cautela — da pessoa acreditar que a próxima ferida possa ser fatal.

— É nisso que o senhor acredita, regente? — insistiu Sigourney. — Que a guerra nos Hellins está perdida?

Antigamente, ele poderia ter sido evasivo, por não saber qual seria a opinião mais segura de revelar. Ao ficar mais velho, ao ganhar mais poder, Sergei tornou-se menos propenso a ser sutil. — Eu acredito que haja um perigo de a guerra estar perdida, sim. Eu dei minha opinião ao jovem kraljiki, e essa será minha declaração ao Conselho dos Ca’ no meu próximo relatório. Portanto, a senhora tem uma prévia. — Ele sorriu, o que exigiu esforço. — Da maneira que a senhora fala, conselheira, suspeito que o Conselho já esteja ciente da minha opinião. Seu pressentimento é impressionante. — Não houve um sorriso em resposta; o rosto de Sigourney estava impassível nas sombras da carruagem. — Deixe-me contar o resto. O maior perigo, como eu também disse para o kraljiki, é que, ao olharmos para o oeste, nós ignoramos o leste e a Coalizão. Imagino que Audric não tenha mencionado isso para a senhora.

Sigourney permaneceu na sombra, sua reação foi encoberta. — O senhor não aconselha mandar mais tropas para os Hellins? Aconselha que abandonemos o que conquistamos lá?

Sergei olhou para o dragão, que parecia espiá-lo, cheio de dentes. — Por que eu tenho a impressão de que a senhora já sabe as minhas respostas para essas perguntas, conselheira?

— Ainda assim eu gostaria de ouvi-las. De seus lábios.

— Então: não e sim — disse ele secamente. — Se mandarmos mais tropas, mandaremos mais gardai para morrer do outro lado do Strettosei, quando estou convencido de que precisaremos deles aqui, e talvez antes do que gostaríamos. Quanto aos Hellins: minha experiência diz que outro comandante não se sairá melhor do que seu estimado irmão. Seu predecessor, o comandante ca’Helfier, no fundo é o responsável pela terrível situação por lá; foram suas trapalhadas e mau julgamento que causaram o envolvimento do exército tehuantino no conflito, e isso virou o jogo. — Sergei ficou satisfeito ao vê-la recuar ao ouvir isso e desviar o olhar, como se a vista da Pontica à frente da carruagem de repente fosse bem mais interessante. — Nossas dificuldades são a distância, a comunicação e um vasto exército que luta em seu território natal. — Ele deu um tapinha na janela aberta da carruagem. — E um inimigo que agora está mais forte do que a maioria de nós quer acreditar. Quando tomamos os Hellins, os tehuantinos permaneceram nas próprias terras depois das montanhas, mas as ações de ca’Helfier fizeram os nativos da região convocar seus primos para ajudar. Nós podemos chamar os ocidentais de selvagens e infiéis que idolatram apenas os moitidis e dizer que eles são falsos deuses, mas isso não altera o fato de que os ténis-guerreiros dos tehuantinos, através de seja lá a que divindades eles apelam, são pelo menos tão eficientes quanto os nossos. Talvez até mais.

— Algumas pessoas podem dizer que o senhor mesmo passa perigosamente perto da heresia com esta declaração, regente — disse ca’Ludovici ao fazer o sinal de Cénzi.

— Eu considero que meu dever, como regente, é encarar a verdade, não importa qual seja, e dizê-la. — Isto era uma mentira, é claro, mas soava bem; na opinião de Sergei, seu dever como regente era cuidar para que a Nessântico que fosse passada ao próximo kralji estivesse em uma posição mais forte do que a que originalmente encontraria; não importava como isso o implicava se ele fizesse ou dissesse, que fosse legal ou ilegal. — Essa sempre foi minha função em Nessântico. Eu sirvo à própria Nessântico, não a ninguém dentro dela. É por isso que a kraljica Marguerite me nomeou como comandante da Garde Kralji, e por isso que seu primo, o kraljiki Justi, me nomeou primeiro como comandante da Garde Civile e depois como regente, mesmo que nós discordássemos muitas vezes. — Sua boca tremeu diante das memórias das discussões que teve com o grande tolo Justi. Que os retalhadores de almas o façam em pedaços eternamente pelo que ele fez com os Domínios.

— Eu também sirvo à Nessântico em primeiro lugar — falou Sigourney. — Nisso, nós somos parecidos, regente. Eu só quero o que é melhor para ela e para os Domínios. Fora isso... — Ela deu de ombros nas sombras.

— Então nós concordamos, conselheira — respondeu Sergei. — Nessântico precisa de verdade e de olhos abertos, não de arrogância cega. Certamente o Conselho dos Ca’ reconhece isso, não é?

— A verdade é mais maleável do que o senhor parece pensar, regente. Como diz o ditado? “O vinagre de um ca’ pode ser o vinho de um ce’”. Muito daquilo que é chamado de verdade é apenas opinião, na prática.

— Esse pode ser realmente o caso, conselheira, mas o que incomoda as pessoas é também o que elas dizem quando querem ignorar uma verdade — respondeu Sergei, que foi recompensado por um beicinho de irritação e o brilho de lábios umedecidos no rosto mal iluminado. — Mas nós podemos falar a respeito disso depois, com todo o Conselho presente, se a senhora quiser. Deve haver um novo relatório vindo dos Hellins em breve, e talvez este nos diga o que é verdade e o que é apenas opinião.

Ele mais ouviu do que viu Sigourney fungar, e uma mão branca foi erguida no interior escuro para bater no teto da carruagem. — Falaremos mais a respeito desse assunto, regente — falou a conselheira para Sergei em um tom frio e distante, e se dirigiu ao condutor sentado no banco. — Vamos.

Ele observou a conselheira partir enquanto as rodas com aro de ferro da carruagem faziam barulho sobre os paralelepípedos da Avi. O som era tão frio e hostil quando a atitude de Sigourney. Sergei voltou-se novamente para a Bastida e ergueu os olhos para o crânio do dragão acima dos portões. Sua boca feroz sorria.

— Sim — disse ele para o crânio. — A verdade é que um dia todos nós ficaremos iguais a você. Mas não ainda para mim. Não ainda. Eu não me importo com o que Audric tenha dito ao Conselho. Não ainda.

 

Jan ca’Vörl

JAN ENCONTROU SUA MATARH parada na sacada de seus aposentos no Palácio de Brezno. Ela olhava para baixo, para a agitação na praça principal. O Templo do Archigos agigantava-se no horizonte diretamente em frente a eles, quase a 800 metros de distância, e praticamente cada metro daquela distância estava coberto por gente. A praça estava iluminada por lâmpadas mágicas com luzes amarelas, verdes e douradas que dançavam nos globos dos postes, e as feiras e lojas em volta do enorme espaço aberto estavam apinhadas de clientes. A música dos artistas de rua chegava fraca até os dois e flutuava acima do zumbido de mil conversas.

— É uma cena que merece ser pintada, não é? — perguntou Jan para ela, e o jovem emendou antes que Allesandra pudesse responder — Qual é o problema, matarh? A senhora se isolou desde a festa. É o vatarh?

Ela virou-se ao ouvir isso. O olhar deslizou do rosto do filho para a estrela de chevaritt que ele usava, e Jan achou que o sorriso forçoso da matarh vacilou momentaneamente. — Foram semanas muito corridas — falou Allesandra. Sua mão espanou fios soltos imaginários dos ombros do filho. — Só isso.

— Eu acho que o comportamento do vatarh tem sido péssimo desde que ele chegou aqui. Eu juro que às vezes penso que seria capaz de matar o homem, mas tenho certeza de que a senhora já se sentiu bem mais tentada que eu. — Jan riu para abrandar as palavras, mas Allesandra não o acompanhou. Ela deu meia-volta e olhou novamente para a praça lá embaixo.

— Você é um chevaritt. Algum dia você irá à guerra, e algum dia realmente terá que matar alguém ou ser morto. Será forçado a tomar essa decisão, e ela será irrevogável. Eu sei...

— A senhora sabe? — Jan franziu a testa. — Matarh, quando foi que a senhora...

Ela interrompeu o filho antes que ele pudesse terminar a pergunta meio debochada. — Eu tinha 11 anos, quase 12. Eu matei o feiticeiro ocidental Mahri, ou ajudei Ana a matá-lo.

— Mahri? O homem responsável pela morte da kraljica Marguerite? — Isso é uma piada, ele queria acrescentar, mas foi detido pela expressão da matarh.

— Eu esfaqueei Mahri com a faca que o vatarh me deu, ataquei quando ele tentou matar Ana. Eu nunca contei para ninguém depois, e Ana também não. Ela sempre tomou cuidado para me proteger. — Allesandra olhava para as próprias mãos no parapeito. Jan perguntou-se se ela esperava ver sangue ali. Não tinha certeza do que dizer ou como responder. Ele imaginou a matarh com a faca na mão.

— Isso deve ter sido difícil.

Allesandra balançou a cabeça. — Não. Foi fácil. Esta é a parte estranha. Eu nem pensei a respeito, apenas o ataquei. Foi só depois... — Ela respirou fundo. — Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Que poderia ser melhor para todos os envolvidos se esse fosse o caso?

— Ora, que assunto mórbido.

— Alguém matou Ana porque acreditava que o mundo seria melhor se ela estivesse fora do caminho. Ou talvez os assassinos mataram Ana por que alguém em quem eles acreditavam mandou que fizessem isso, e eles apenas seguiram ordens. Ou talvez apenas porque pensaram que o assassinato poderia mudar as coisas. Às vezes, este é todo o motivo que alguém precisa; a pessoa não pensa em quem possa gostar da vítima ou quais seriam as repercussões. A pessoa mata porque... bem, eu acho que às vezes não se sabe por quê.

— A senhora está me deixando preocupado, matarh.

Ela riu ao ouvir isso, embora Jan pensasse que ainda havia uma tristeza no som. — Não fique preocupado, eu só estou com um humor estranho.

— Todo mundo pensa assim, às vezes. — Jan deu de ombros. — Aposto que todas as crianças desejaram, em algum momento, que o vatarh e a matarh estivessem mortos; especialmente após elas terem feito algo estúpido e terem sido flagradas e castigadas. Ora, teve uma ocasião em que eu roubei a faca do seu... — Ele parou e arregalou os olhos. — Foi a mesma faca? A senhora disse que o vavatarh lhe deu.

Outra risada. — Foi sim. Eu me lembro disso; descobri você usando a faca para cortar umas maçãs na cozinha e arranquei da sua mão, depois bati muito em você, mas você se recusou a chorar, ou se desculpar, então bati com mais força.

— Eu chorei sim. Depois. E tenho que admitir que fiquei tão furioso que pensei em... — Jan deu de ombros novamente. — Bem, a senhora sabe. Mas o pensamento não durou muito tempo... não depois que a senhora levou torta ao meu quarto e prometeu que me daria a faca um dia. — Ele sorriu para a matarh. — Ainda estou esperando.

— Fique aí. — Allesandra saiu do parapeito e passou pelo filho. Jan ouviu a matarh remexendo coisas no quarto dela, depois ela retornou para a noite fria. — Aqui — falou Allesandra com uma faca na mão, guardada em uma bainha de couro gasta, com o punho de osso preto, aço ainda reluzente e minúsculos rubis em volta do pomo. — Esta foi originalmente a faca do hïrzg Karin, e ele deu para seu filho, seu vavatarh Jan, que me deu. Agora é sua.

Ele empurrou a arma de volta para Allesandra. — Matarh, eu não posso... — Mas ela estendeu a faca novamente.

— Não, pegue — insistiu Allesandra, e ele pegou. Jan tirou a faca metade da bainha. O escuro aço firenzciano refletiu seu rosto. — Dado quem somos, Jan, nós dois temos que tomar decisões realmente difíceis, com as quais não estamos totalmente à vontade, mas as tomaremos porque parecem ser as melhores para aqueles que gostamos. Apenas lembre-se que às vezes decisões são finais. E fatais.

Dito isso, Allesandra puxou Jan para si e abaixou a cabeça do filho para beijá-lo no rosto. Quando ela falou, pareceu com a matarh que ele se lembrava. — Agora, não vá se cortar com isso, promete?

Jan sorriu para Allesandra e disse — Prometo.

 

Allesandra ca’Vörl

AUDRIC NÃO SERÁ KRALJIKI por muito tempo. É o que a maioria das pessoas acredita. Em breve chegará a hora em que um novo kralji será nomeado. Eu me lembro de você, Allesandra. Lembro-me de sua inteligência e força, e me lembro de que a archigos Ana amava você como se fosse a própria filha, e rumores chegaram até mim de que você não está contente que os Domínios permaneçam divididos.

Pelas minhas conversas com Fynn, não tenho esperanças de que ele queira fazer parte dos Domínios reunificados a não ser que ele esteja no Trono do Sol. Ele tem a força do seu vatarh, mas não a inteligência. Infelizmente, todos os bons atributos do finado hïrzg Jan passaram para você.

Quando o Trono do Sol estiver vazio, eu apoiarei sua reivindicação, a’hïrzg. E existem outros aqui que fariam a mesma coisa. Eu apoiaria você abertamente, se me der um sinal de que concorda comigo...


As palavras estavam gravadas em sua mente, tão nítidas quanto as letras escritas por tinta de fogo no pergaminho. As chamas destruíram o papel quase tão rápido quanto ela leu a mensagem e deixaram para trás cinzas e uma fumaça desagradável. A promessa de Sergei. Allesandra pensava nela quase todo dia desde a chegada da mensagem e agora sabia que o archigos recebera uma missiva similar. Ela era capaz de imaginar o que o regente prometera para Semini.

Ca’Rudka queria os Domínios unificados e a Fé unida. Bem, ela também. Criar Domínios ainda mais fortes do que os da kraljica Marguerite foi o sonho de seu vatarh e — porque era o sonho do hïrzg Jan e Allesandra o amava tão desesperadamente quando era criança — de Allesandra também. Ele traiu o sonho e dividiu o império, mas o sonho permanecia vivo nela.

Era o que Allesandra queria mais do que qualquer outra coisa. Mais do que a sua própria segurança.

... se houvesse um sinal...

O archigos Semini encarou a missiva como a óbvia insinuação que era e agiu afobadamente, antes que as peças estivessem nos lugares corretos. Agora, em parte graças à impaciência e falta de jeito do archigos, elas estavam no lugar.

Um sinal. Allesandra daria aquele sinal para ca’Rudka, embora isso corroesse sua consciência. Embora ela pudesse vir a se odiar depois.

Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Era a pergunta que Allesandra fez para Jan, mas era a mesma que ela se fazia sem parar.


— Infelizmente, eu menti para você, Elzbet — falou Allesandra para a mulher do outro lado da mesa manchada e suja. — Não estou interessada em você como criada. — A mulher deu de ombros e começou a se levantar. Allesandra gesticulou para que voltasse a se sentar. — Fiquei sabendo — disse a a’hïrzg — que você consegue me colocar em contato com um certo homem. — Allesandra pousou um seixo na mesa: uma pedra lisa mais ou menos do tamanho de uma sola, de cor muito clara.

Mesmo ao dizer as palavras, Allesandra duvidava de sua veracidade. A jovem sentada diante da a’hïrzg tinha uma aparência comum. Parecia estar na terceira década, embora fosse difícil dizer; uma vida dura fazia com que ela parecesse mais velha do que a idade real. O cabelo evidentemente não sabia o que era uma escova: comprido e com toques de vermelho intenso no tom castanho, o cabelo tinha mechas soltas que apontavam para todos os lados e estava muito repuxado em uma trança malcuidada, feita em um estilo que Allesandra não via desde que era nova. A franja estava desgrenhada e formava uma floresta que quase escondia os olhos. Allesandra nem conseguia ver a cor dos olhos de tão escondidos que estavam, embora parecessem claros.

A mulher apenas deu de ombros ao olhar para o seixo e falou — Pode ser. — As palavras tinham um sotaque tão leve que Allesandra não conseguiu identificar, e a voz era rouca. — Aquele de quem a senhora fala é difícil de contatar. Mesmo para mim.

Se o sujeito conhece você tão bem assim, menina, eu não fico impressionada com o gosto dele... — Qual é o seu nome completo, Elzbet?

A mulher encarou Allesandra sem piscar os olhos através do emaranhado de mechas castanhas. — Peço desculpas, a’hïrzg, mas a senhora não vai precisar do meu nome. Afinal, a senhora não está me contratando, pelo menos não para outra coisa além de encontrar este homem.

Allesandra levou dias para chegar até esse ponto e não tinha certeza de nada. Houve investigações discretas sobre pessoas que teriam um motivo para matar as três vítimas mais recentes da Pedra Branca, investigações feitas por agentes particulares que, por sua vez, não sabiam quem representavam, apenas que era alguém rico e influente. Nomes e descrições foram dados e, lentamente, aos poucos, tudo levou a esta jovem. Allesandra armou um encontro com ela, em uma taverna no limite de um dos distritos mais pobres de Brezno, sob o pretexto de entrevistá-la para um cargo no corpo de funcionários do palácio. Através das persianas fechadas da taverna, a a’hïrzg enxergou os uniformes dos gardai que a acompanhavam, à espera de Allesandra ao lado da carruagem. — Como eu posso saber se você pode fazer o que diz ser capaz?

— A senhora não tem como saber — respondeu a mulher. Foi tudo o que ela disse. A jovem esperou e manteve os olhos ocultos em Allesandra, sem piscar, como se desafiasse a a’hïrzg a desviar o olhar. O atrevimento e a falta de respeito quase fizeram Allesandra se levantar da cadeira e sair da taverna, mas ela precisava deste contato e foi preciso tempo demais para chegar até aqui.

— Então como procedemos? — perguntou Allesandra.

— Dê-me três dias para ver se eu consigo contatar a pessoa que a senhora procura. — A mulher deu um peteleco na pedra que Allesandra colocou sobre a mesa. — Se eu achar que seus gardai ou agentes estão me vigiando, ou se ele, em especial, os vir, nada vai acontecer. Na noite do terceiro dia, que seria o draiordi, a senhora fará isso... — A jovem debruçou-se sobre a mesa, depois sussurrou instruções no ouvido de Allesandra e voltou a se recostar. — A senhora entendeu, a’hïrzg? Pode fazer isso?

— É muito dinheiro.

— Ninguém barganha com ele — disse a mulher. — Se o que a senhora quer executar fosse uma tarefa fácil, a senhora mesmo faria. E a a’hïrzg pode arcar com o preço que ele cobra.

— Se eu fizer isso, como saberei que ele vai cumprir com sua parte do acordo?

Nenhuma resposta. A mulher simplesmente ficou sentada com as mãos sobre a mesa como se estivesse pronta para empurrar a cadeira.

Allesandra finalmente acenou com a cabeça e disse — Encontre-o, Elzbet. — Ela tirou uma meia sola do bolso da capa e colocou a moeda na mesa entre as duas, perto da pedra. — Pela inconveniência.

A mulher abaixou o olhar para a moeda e contorceu os lábios. A cadeira foi arrastada pelas tábuas do piso. — Draiordi, à noite — falou ela para Allesandra. — Esteja lá como eu falei. Lembre-se do que eu disse sobre eu ser seguida.

Dito isso, Elzbet deu meia-volta e saiu rapidamente da taverna, com os passos largos de uma pessoa que estava acostumada a andar por longas distâncias. A luz irrompeu na penumbra quando ela empurrou a porta com uma força surpreendente. Através das persianas, Allesandra viu os gardai subitamente alertas no momento em que a mulher saiu da taverna.

A moeda continuou na mesa. Allesandra pegou a pedra, mas deixou a moeda, se dirigiu para a porta e fez um sinal negativo com a cabeça para os gardai, um dos quais já abria a porta, preocupado, enquanto os outros observavam Elzbet. — Eu estou bem — disse a a’hïrzg para eles. A mulher já estava no meio da rua e andava rápido sem olhar para trás. O garda que abriu a porta inclinou a cabeça na direção de Elzbet e ergueu as sobrancelhas, intrigado. — Devo...?

— Não. Não vou contratá-la; ela era uma péssima escolha. Deixe-a ir...

 

Karl ca’Vliomani

KARL OBSERVOU O HOMEM com cuidado, ficando perto dele na padaria, onde poderia escutá-lo.

O sujeito parecia diferente dos demais que ele observou. Nas últimas semanas, Karl andou à espreita pelo Velho Distrito, vestido em roupas sujas e esfarrapadas, e observou a multidão que passava por ele. Karl assombrou locais públicos, escondeu-se nas sombras de praças escondidas no labirinto de ruas minúsculas enquanto evitava os utilinos aqui e ali que faziam suas rondas e que podiam reconhecê-lo. Ele olhou os rostos à procura de peles com tom de cobre, por maçãs do rosto pronunciadas e por rostos ligeiramente achatados, como ele se lembrava das próprias incursões às Terras Ocidentais há décadas. Karl encontrou meia dúzia de pessoas, tanto homens quanto mulheres, que seguiu por um tempo ou ouviu às escondidas, que tocou com o Scáth Cumhacht para ver se elas responderiam.

Não houve nada. Nada.

Mas agora...

— Estes croissants passaram o dia inteiro aqui e já estão meio velhos — falou o homem. Karl escutou sua voz perfeitamente de onde estava, na porta aberta da padaria, enquanto olhava para o outro lado da rua como se esperasse por alguém. Ele ouviu a bengala do sujeito bater no piso de madeira. — Eles não valem mais do que uma d’folia a dúzia. — As palavras não significavam nada, mas aquele sotaque... Karl lembrava-se bem: da época de sua juventude, do sotaque de Mahri, que era tão estranho e inconfundível em Nessântico quanto o seu próprio.

Karl olhou o interior da loja a tempo de ver a cara feia do padeiro. — Eles continuam tão fresquinhos e macios quanto estavam hoje de manhã, vajiki. E valem uma se’folia, pelo menos. Ora, eu posso vendê-los para qualquer um por este valor; a farinha que usei foi abençoada pelos u’ténis do Velho Templo.

O homem deu de ombros e abanou a mão. — Eu não vejo ninguém mais aqui, e você? Talvez queira esperar o dia inteiro até que os croissants fiquem tão duros quanto paralelepípedos, enquanto eu posso dar duas d’folias por eles agora. Duas d’folias contra pão jogado fora; parece mais do que justo para mim.

Karl ouviu enquanto os dois negociavam e chegaram ao acordo de quatro d’folias pelos croissants. O padeiro embrulhou os pãezinhos em papel e resmungou o tempo todo sobre o preço da farinha, o tempo gasto assando e o aumento geral dos custos de tudo na cidade recentemente, até que a presa de Karl saiu da padaria. O homem passou perto dele — o cheiro dos croissants fez o próprio estômago de Karl roncar — e seguiu pela alameda estreita na direção leste. Karl deixou o sujeito dar vários passos de vantagem antes de segui-lo. O homem virou à esquerda em um beco transversal; na hora em que Karl chegou ao cruzamento, o sujeito já estava no meio do beco. No fim da tarde, as casas lançavam sombras púrpuras na viela e pareciam se inclinar na direção umas das outras para conversar em sussurros sobre os paralelepípedos. Não havia mais ninguém visível no beco. Os feitiços que Karl havia conjurado naquela manhã ardiam dentro dele, à espera do lançamento. Ele começou a chamar o homem, fazer com que se virasse...

... mas uma criança, um menino de 10 ou 11 anos talvez, surgiu de um cruzamento um pouco mais adiante no beco. — Talis! Aí está você! A matarh estava se perguntando se você viria para o jantar.

— Croissants! — disse o sujeito para o garoto ao erguer os pãezinhos embrulhados. — Eu praticamente os roubei do velho Carvel. Só quatro d’folias... — O homem, o tal Talis, passou o braço pelo ombro do menino. — Vamos então, não podemos deixar Serafina esperando.

Juntos, os dois começaram a descer a rua. Karl hesitou. Você não pode fazer nada com o menino ali ao lado dele. Não é o que Ana iria querer de você.

Os feitiços ainda chiavam e borbulhavam dentro da mente, ansiosos para serem lançados. Ele escolheu um, o mais brando. Karl ergueu o punho e sussurrou uma palavra em paeti, a língua de sua terra, e sentiu a energia ser disparada e lançada para longe. O feitiço fora projetado para não fazer nada; ele apenas espalhava o poder do Scáth Cumhacht por uma área — o suficiente para que alguém acostumado a usar aquele poder o sentisse e reagisse.

A reação foi mais rápida do que Karl esperava. Talis deu meia-volta assim que ele lançou o feitiço. O menino virou-se um momento depois; provavelmente, pensou Karl, porque o homem parou. Não houve tempo para ele se esconder. Talis, com um olhar que jamais se desviou de Karl, deu o pacote de croissants para o menino e um empurrãozinho para que fosse embora. — Nico, vá para casa. Eu sigo você em alguns minutos.

— Mas, Talis...

— Vá — respondeu Talis, em tom mais ríspido desta vez. — Ande ou seu traseiro vai se arrepender assim que eu chegar lá. Vá!

Diante disso, o garoto engoliu em seco e correu. Ele virou a esquina e desapareceu. O homem olhou na penumbra, depois recuou a cabeça e acenou com ela. — Eu devo lhe agradecer, embaixador, por poupar o menino — falou Talis. Uma mão estava enfiada no bolso lateral da bashta, a outra permanecia na bengala; se ele estava prestes a lançar um feitiço, não demonstrava sinais. Ainda assim, Karl ficou tenso, com a mão erguida, e os feitiços restantes que preparou tremendo dentro dele, esperava que tivesse acertado na preparação.

— Você me conhece?

Ele concordou com a cabeça. — O seu rosto é muito conhecido nesta cidade, embaixador. Algumas roupas pobres e sujeira no rosto não o disfarçam bem. Eu realmente espero que o senhor não pense que poderia passar despercebido no Velho Distrito.

— Você sentiu meu feitiço. Isso significa que você é um dos ténis ocidentais, como Mahri.

— Talvez eu simplesmente tenha me virado porque ouvi o senhor falar uma palavra, embaixador. Feitiço? Eu já vi os ténis-luminosos acenderem as lâmpadas da cidade; já vi os ténis girarem as rodas de suas carruagens e limparem a sujeira da água. Já vi algumas pessoas dessa cidade com seus pequenos e triviais feitiços de luz ensinados pelos numetodos, o que eu tenho certeza que a fé concénziana considera preocupante. Mas não vi feitiço algum há instantes.

— Você tem o sotaque.

— Então o senhor tem um bom ouvido, embaixador; a maioria pensa que sou de Namarro — respondeu o homem. — Eu sou um ocidental, sim; como Mahri, não. Houve pouquíssimos como ele. — Talis parecia calmo e confiante, e isso, juntamente com a admissão fácil, deixou Karl preocupado. Ele começou a se perguntar se havia cometido um erro grave. O homem está muito confiante, muito seguro de si. Não está com medo algum de você. Você deveria apenas ter observado, deveria apenas ter seguido o sujeito. — Então por que o embaixador dos numetodos anda por aí, pelo Velho Distrito, enquanto lança feitiços invisíveis para encontrar ocidentais, se me permite perguntar?

— Nós estamos em guerra com os ocidentais.

— “Nós?”. Então os numetodos são tão aceitos assim pelos Domínios? Eu também sei ouvir sotaques e posso lhe dizer que existem aqueles da Ilha de Paeti cujas afinidades estão mais alinhadas com os ocidentais do que com o povo de Nessântico. Afinal, Paeti foi conquistada pelos Domínios da mesma forma que os Hellins, e seu povo lutou contra aquela invasão da mesma forma que o nosso faz agora. Talvez nós devêssemos ser aliados, embaixador, não adversários.

Karl rangeu os dentes ao fechar a cara. — Isso depende, ocidental, do que você está fazendo aqui e do que fez.

— Eu não a matei, se essa é a sua acusação.

Karl quase lançou um feitiço diante disso. Eu não a matei... Então o sujeito sabia exatamente do que Karl estava atrás, e a resposta era uma mentira. Só podia ser uma mentira. O homem diria qualquer coisa para salvar a própria vida. Um ocidental e um téni... A mão erguida de Karl tremeu; a palavra de ativação em paeti já estava nos lábios. Ele era capaz de sentir seu gosto, tão doce quanto a vingança. — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Diante disto, a fúria estourou dentro de Karl, que não conseguiu mais contê-la. Ele deu um soco no ar e falou a palavra — Saighneán! —, e com o gesto e a palavra, um raio branco-azulado estalou e pulou de Karl na direção do ocidental insolente.

Mas o homem moveu-se na mesma hora e levantou a mão com a bengala. Um brilho irrompeu de maneira impossível do objeto, uma claridade que cegou Karl no momento em que filamentos de um brilho incômodo deslizaram pelo ar como se fossem dedos que arranhavam um enorme globo invisível. Os dedos etéreos agarraram seu raio e o apertaram, um pequeno sol pareceu pairar no ar entre os dois enquanto um trovão retumbava. Ele ouviu risadas. Assustado agora, Karl falou outra palavra: um feitiço de proteção contra o ataque que tinha certeza de que viria a seguir.

Mas a proteção se dissipou sem uso, e através da agitada cortina de imagens persistentes, ele viu que o beco minúsculo estava vazio. Talis sumiu. Karl soltou um grito de frustração (enquanto cabeças começavam a espiar com curiosidade das janelas fechadas, conforme chamados e berros de alarme irrompiam das casas mais próximas a ele, e filamentos de fumaça saíam das fachadas queimadas de ambos os lados da rua) e correu para o cruzamento por onde o menino fora embora.

Nem o menino, nem o ocidental estavam visíveis. Karl socou a parede mais próxima e praguejou.

 

Nico Morel

NICO DEU APENAS DOIS PASSOS ao virar a esquina e parou. Ele ouviu Talis discutir com o estranho e voltou de mansinho até eles, apoiando as costas contra a casa da esquina e prestando atenção.

— Eu não a matei, se esta é a sua acusação — falou Talis para o homem, e Nico perguntou-se sobre quem ele falava.

Evidentemente o sujeito estava igualmente perplexo, porque respondeu — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Guerra? Nico não teve tempo para ficar curioso porque o mundo explodiu. Ele nunca teve muita certeza do que aconteceu nos próximos momentos ou como poderia um dia descrever para alguém. Embora fosse dia, houve um clarão de luz que pareceu tão intenso nas sombras da viela quanto uma trovoada pulsando na escuridão da noite. O menino teve certeza de que Talis estava morto, só que ouviu sua risada no momento em que se afastou da casa a fim de correr para ajudar seu vatarh com os croissants ainda na mão, esquecidos.

Então Nico foi agarrado pelo ombro por Talis. — Por todos os moitidis, Nico... — O vatarh correu e puxou o menino com ele pelo beco, entrou em uma viela estreita entre duas casas e saiu em um beco entre os fundos dos prédios. Talis deu voltas até Nico ficar sem fôlego e confuso e então finalmente parou, ofegante.

Ele colocou as mãos nos joelhos e olhou feio para Nico, com a respiração acelerada. — Droga, Nico, eu mandei que fosse embora. Quando chegarmos em casa...

Nico segurou o choro diante do tom severo de Talis e disse — Eu queria escutar. Pensei... pensei que haveria magia.

Talis inclinou a cabeça ligeiramente, embora os olhos muito escuros ainda brilhassem com raiva. — Por que você pensou isso?

— Porque eu senti a magia em toda parte, como na hora em que sinto frio de repente e fico arrepiado. — Nico esfregou o antebraço ao mostrá-lo para Talis.

— Você sentiu a magia? — indagou o vatarh, e agora a voz não parecia tão chateada. Nico concordou com a cabeça enfaticamente. Talis ficou de pé e olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se o homem havia seguido os dois.

— Ele era mesmo o embaixador ca’Vliomani, o numetodo? — perguntou Nico. — A matarh diz que o viu uma vez, perto do Templo do Archigos na margem sul. Ela disse que os numetodos não deviam ser permitidos aqui. Disse que o archigos devia ser mais duro com eles.

Talis torceu o nariz e respondeu — Talvez sua matarh esteja mais certa do que ela pensa. — Ele suspirou e de repente deu um abraço em Nico. — Venha, temos que correr para casa agora, enquanto ainda há tempo.


Nico jantou sozinho no quarto, enquanto Talis e sua matarh conversavam na sala. Ele beliscou os croissants e tomou a sopa de batata-baroa que a matarh tinha feito enquanto ouvia as vozes abafadas. Na maior parte do tempo, o menino não conseguiu distinguir as palavras, mas quando os dois falavam alto, ele era capaz de entendê-los. — ... eu disse para você que eu esperava por isso. Os sinais... só que não tão cedo...

— ... quer que a gente vá embora agora? Hoje à noite? Você enlouqueceu, Talis?

— ... se vocês ficarem, correrão perigo... vá para a sua irmã...

— ... então foi você? Você mentiu para mim...

Nico ergueu a cabeça ao ouvir isso e imaginou se sua matarh falava da mulher que o embaixador acusou Talis de ter matado.

Houve mais murmúrios, depois a matarh bufou de raiva ao escancarar a porta e olhou feio para Nico sem parecer ter visto o menino. Ela começou a reunir panelas e utensílios e enfiá-los ruidosamente em sacolas de pano que usava quando ia ao mercado, enquanto murmurava consigo mesma. Talis, na passagem entre os aposentos, observou Serafina por um momento e gesticulou para Nico, que o seguiu até o quarto e viu o homem fechar a porta assim que entrou.

— A matarh está realmente furiosa — disse Nico ao se sentar na cama.

Talis concordou com tristeza. — Está mesmo, e por um bom motivo. Nico, vocês dois têm que sair da cidade. Hoje à noite. Vocês ficarão com sua tantzia em Ville Paisli, que não é longe de Nessântico.

— Você vai com a gente?

Talis balançou a cabeça. — Não. Nico, depois do que aconteceu, a Garde Kralji estará à minha procura; o embaixador é amigo do regente, e ele mandará os gardai atrás de mim. O embaixador provavelmente sabe meu nome e talvez o seu, sabe como nós somos e onde moramos. Temos algumas viradas da ampulheta antes que ele consiga alertar alguém, mas tenho certeza de que o Velho Distrito não será seguro para vocês dois em breve. Então você terá que ajudar sua matarh a pegar o que for possível e ir embora.

— Mas a Garde Kralji... — falou Nico agitado. — Você fez algo de errado, Talis?

— De errado? Não. Eu explicarei tudo para você quando eu puder, Nico, mas agora você terá que confiar em mim. Você confia em mim, filho?

Nico concordou com a cabeça, incerto. Ele não tinha certeza de nada no momento.

— Ótimo — disse Talis. — Eu vou sair agora e arrumar uma carroça para levar vocês dois para fora da cidade. Lembra-se do homem com quem falei no mercado? Uly? Ele pode me ajudar a fazer estes preparativos. Quando eu voltar, você e sua matarh precisam estar prontos para ir embora, então cuide para pegar tudo que é seu que você queira e ajude sua matarh a juntar as coisas dela.

Nico sentiu um gosto desagradável na boca, e a comida ardeu no estômago. Da cozinha, ele ouviu a matarh ainda empacotando coisas. — Mas, se você ficar, não vão te encontrar?

— Eu tenho maneiras de me esconder se estiver sozinho, Nico, e tenho coisas que preciso fazer que só serei capaz aqui. E também... — Talis fez uma pausa e despenteou a cabeça do menino. Nico fez uma careta e passou os dedos pelo cabelo para arrumá-lo novamente. — O que aconteceu mais cedo também tem que ser segredo, Nico, como todo o resto. Se você contar às pessoas o que viu, bem, irá colocar sua matarh em risco, e você não quer isso, quer?

— Foi magia, não foi?

Talis concordou com a cabeça. — Sim, foi. E, Nico, eu acho que você... — Ele parou e sacudiu a cabeça.

— O que, Talis?

— Nada, Nico. Nada. — Talis enfiou o braço debaixo da cama enquanto falava. Ele puxou a bolsa de couro que continha a estranha tigela de metal e colocou suas roupas e outros pertences dentro. — Agora, por que você não começa a juntar suas coisas? Coloque todas em um só lugar, e você e sua matarh podem decidir o que levar e o que deixar aqui. Vamos, agora.

Talis já olhava para o outro lado enquanto abria o baú ao pé da cama para tirar uma camisola de linho. Nico observou o homem. — Você é um téni?

Talis endireitou-se, já tinha posto metade da camisola na bolsa. — Não — disse ele. A maneira como Talis falou, sem olhar diretamente para Nico e estendendo a sílaba, revelou para o menino que era mentira ou o tipo de resposta evasiva que Nico às vezes usava quando a matarh perguntava se ele fizera algo que não deveria ter feito. — Agora vamos, menino. Rápido!

Nico sentiu um arrepio. Ele saiu e perguntou-se se algum dia veria esta casa novamente.

 

Enéas co’Kinnear

ENÉAS ESTAVA NA POPA do Nuvem Tempestuosa e olhava para as nuvens revoltas que pareciam perseguir o navio. O horizonte tinha um tom sinistro de preto sob as nuvens carregadas, a noite se aproximava pontuada por clarões intermitentes de raios. Ele viu a chuva torrencial difusa caindo sobre o oceano sob as nuvens e ouviu o resmungo do trovão ao longe. O Strettosei assumiu um tom fosco de verde acinzentado manchado pelas cristas brancas formadas pelo vento; as velas do navio de dois mastros inflavam e estalavam ao serem preenchidas pelas rajadas de vento forte e impulsionavam o navio pelas ondas, que ficavam maiores. A proa se ergueu e varou os morros agitados de água; o borrifo frenético molhava o cabelo dos marinheiros e deixou ensopada a bashta militar que Enéas usava. Ele sentiu o gosto de água salgada na boca. O ar parecia ter esfriado drasticamente nos últimos instantes quando os primeiros motores da tempestade aproximaram-se do navio. O mergulho e o balanço do convés sob os pés era tão preocupante que Enéas viu-se agarrado à amurada.

Ele sentia a tempestade. A energia parecia ressoar dentro de Enéas, e as pontas dos dedos formigavam a cada raio que caía, como se o tocassem ao longe.

A tempestade nos segue do oeste, como as hordas dos ocidentais, e estala com o poder dos nahualli. Persegue-nos enquanto fugimos e vem atrás de nós em nossos próprios lares... Enéas sentiu um arrepio ao ver a aproximação da tempestade e ao imaginar que podia ver as formas de guerreiros ocidentais nas nuvens ou que elas eram a fumaça das piras de sacrifício. Ele se perguntou o que teria acontecido nos Hellins desde sua partida. Imaginou e ficou preocupado com o augúrio da tempestade.

— É melhor o senhor descer para seu cabine, o’offizier. Eu farei o que puder, mas Cénzi sabe que não há como acalmar o mar com essa tempestade aí. — A téni dos ventos designada para o navio estava ao lado Enéas, ela tinha subido sem ser ouvida por causa do barulho das velas, do lamento estridente do vento através das cordas e dos chamados urgentes dos offiziers do navio para os marinheiros no convés. A téni encarava a tempestade da mesma forma que Enéas encararia uma força inimiga avançando contra ele; ela avaliava e ponderava que estratégias funcionaram melhor contra o temporal. A tarefa dos ténis dos ventos era inflar as velas quando os ventos naturais do Strettosei não cooperassem. Eles também lutavam para acalmar as tempestades que agitavam as águas profundas entre os Domínios e os Hellins, mas esta era uma tarefa mais difícil, Enéas sabia: os moitidis do céu eram poderosos e desdenhosos do Ilmodo e das tentativas dos ténis dos ventos de acalmar sua fúria.

— É das ruins? — perguntou Enéas.

O convés se elevou quando o navio passou pela próxima onda, depois caiu abruptamente quando o Nuvem Tempestuosa desceu correndo um vale de onda. Enéas passou um braço pela amurada quando a água fluiu pelo convés; a téni dos ventos só trocou o pé de apoio com facilidade e naturalidade. — Já vi piores — respondeu ela, mas aos ouvidos de Enéas isso soou mais como bravata do que confiança. — Mas nunca se sabe na verdade o que há por trás das nuvens carregadas até que se chegue lá. Deixe-me fazer um teste. — Ela ergueu as mãos e fez o gestual de um feitiço, entoou um cântico na língua do Ilmodo com os olhos fechados ao enfrentar a tempestade.

A téni abaixou as mãos, abriu os olhos e encarou Enéas. — O’offizier, o senhor também é um téni?

Ele balançou a cabeça, intrigado. — Não, eu tive um pouco de treinamento, mas...

— Ahh... — Ela fez uma pausa e franziu os olhos. — Talvez seja isso.

— O quê?

— Há um instante, quando eu me abri para a tempestade, pensei ter sentido... — Ela balançou a cabeça, e gotículas voaram do cabelo escurecido pela água. Os primeiros pingos de chuva fria caíram no convés como pedras. — Não importa. Neste momento, eu tenho que ver o que posso fazer com essa tempestade. Por favor, é melhor o senhor descer, o’offizier...

O navio balançou de novo e, com ele, lá se foi o estômago de Enéas. Um raio estalou perto, e o o’offizier quase pôde sentir a queda do relâmpago na própria pele quando os pelos nos braços se eriçaram. Ele fez o sinal de Cénzi para a téni dos ventos. — Que Cénzi esteja com você para que acalme a tempestade — disse Enéas para a mulher, que devolveu o gesto.

— Eu precisarei Dele — falou a téni dos ventos, que encarou a tempestade novamente. Agora as mãos moviam-se em um novo gestual, e o cântico era mais longo e complexo. Enéas pensou ser capaz de sentir o poder se acumular em volta da mulher; ele recuou pelo convés inclinado e escorregadio e segurou-se onde era possível até quase cair na escada estreita que levava para os apertados compartimentos dos passageiros. Lá, o o’offizier deitou-se na maca que balançava e ouviu a tempestade cair sobre eles enquanto a téni dos ventos tentava afastar a pior parte da ventania furiosa da embarcação frágil que era o navio. Enéas também rezou, com as mãos nodosas entrelaçadas à testa, e pediu a Cénzi pela segurança do navio e pelo retorno seguro a Nessântico.

Você estará seguro... Ele pensou ter ouvido as palavras, mas contra a tempestade e a vastidão do Strettosei, elas eram pequenas e insignificantes. As palavras podiam ter sido o sussurro de um mosquito.

A tempestade foi enviada para levá-lo mais rápido ao seu lar... O pensamento surgiu de repente, naquela voz baixa que ele ouvia algumas vezes desde a fuga dos tehuantinos. A Voz de Cénzi. Enéas riu com isso, e de repente não temeu a tempestade, embora o navio balançasse e o vento berrasse de maneira estridente. O medo foi embora, e o o’offizier sentiu uma certeza de que eles estariam seguros.

Enéas agradeceu a Cénzi por lhe dar esta paz.

 

Allesandra ca’Vörl

SERÁ QUE EU REALMENTE QUERO fazer isto? Allesandra sentiu um arrepio diante desse pensamento. Era, talvez, tarde demais para mudar de ideia.

Sozinha, na escuridão de um beco estreito em Brezno, em um draiordi à noite, ela esperava onde tinha sido mandado. Um homem aproximou-se, suas botas com tachas nas solas estalavam alto nos paralelepípedos, e Allesandra empertigou-se, subitamente alerta. Com todos os sentidos sob pressão, ela apertou a mão próxima à faca escondida debaixo da manga da tashta, embora soubesse que, se a Pedra Branca fosse como os rumores diziam, arma alguma a protegeria se o assassino decidisse matá-la. O homem chegou perto, com os olhos voltados para as sombras sob o capuz da tashta de Allesandra, e a avaliou.

— Ah — falou o sujeito. — Acho que você é atraente o suficiente. Que tal um programa comigo, mocinha? — perguntou ele ao se aproximar, enquanto deixava um rastro de cheiro de cerveja.

Ele acha que eu sou uma puta. Este não é ele. Mas, para ter certeza, ela abriu a mão e mostrou o seixo liso e branco acinzentado. O homem não reagiu. — Eu tenho um se’siqil que pode ser seu se você for boazinha comigo — falou o sujeito, e Allesandra fechou os dedos em volta da pedra.

— Vá embora — disse ela — ou eu chamo o utilino.

O homem fez uma cara feia, soluçou, depois passou por ela. Ele cuspiu no chão perto dos pés de Allesandra.

— Você acha que seria fácil assim? — Ao som da voz, Allesandra começou a dar meia-volta, mas uma mão enluvada pegou seu ombro e deteve a a’hïrzg. — Não — falou a voz. — Continue aí e olhe para o outro lado da rua. Eu sou a Pedra Branca. — A voz era rouca, embora com um tom mais agudo do que Allesandra tinha imaginado. Em sua mente, ela imaginava uma voz grossa e sinistra, e não essa, genérica.

— Como eu sei que é você? — perguntou ela.

— Você não tem como saber. Não agora. Você não saberá até ver a pedra no olho esquerdo do homem que quer morto. É um homem, não é? — Ela ouviu uma risadinha baixa. — Para uma mulher, é sempre um homem... ou por causa de um.

— Eu quero ver você — disse Allesandra. — Quero saber com quem falo, quem eu contrato.

— As únicas pessoas que veem a Pedra Branca são aquelas que eu mato. Vire-se e você será uma delas. Eu sei quem você é, e isso basta. Fui bem claro, a’hïrzg ca’Vörl? — Involuntariamente, Allesandra sentiu um arrepio diante da ameaça, e a voz riu novamente. — Ótimo. Eu não gosto de serviço desnecessário e não remunerado. Agora... você trouxe meu pagamento, conforme Elzbet lhe disse?

Ela concordou com a cabeça.

— Ótimo. Você vai pôr a bolsa aos seus pés e colocará a pedra que trouxe em cima dela. É uma pedra clara, tão branca quanto conseguiu achar? Você a reconheceria outra vez?

Allesandra concordou com a cabeça novamente. A a’hïrzg resistiu à tentação de olhar para trás e soltou do cinto da tashta a bolsinha pesada com solas de ouro, abaixou-se e colocou a bolsa nos paralelepípedos da rua, ao lado dos pés. Ela colocou o seixo em cima do couro macio e levantou-se.

— Em quanto tempo? — perguntou Allesandra. — Em quanto tempo você vai fazer?

— No momento que me convier e em um local à minha escolha — respondeu a Pedra Branca. — Mas dentro de uma lua, não mais do que isso. Quem você quer que eu mate? Qual é o nome dele?

— Você pode não querer o dinheiro quando eu lhe disser.

A Pedra Branca deu uma risada debochada. — Você não precisaria de mim se aquele que quer que morra não fosse alguém bem protegido, do alto escalão. Talvez, dada a sua história, seja alguém de Nessântico?

— Não.

— Não? — Havia, pensou Allesandra, decepção na voz. — Então quem, a’hïrzg? Quem você quer que morra tanto assim a ponto de me encontrar?

Ela hesitou, sem querer dizer em voz alta. Allesandra parou de prender o fôlego e suspirou. — Meu irmão. O hïrzg Fynn.

Não houve resposta. Allesandra ouviu um barulho ao longe na rua, à direita, e virou a cabeça involuntariamente para aquela direção. Não havia nada lá; sob o luar, a rua estava vazia a não ser por um utilino que acabara de virar a esquina no outro quarteirão, assobiando e balançando a lanterna. Ele acenou para Allesandra, que devolveu o gesto. — Você me ouviu? — sussurrou ela para a Pedra Branca.

Não houve resposta. Allesandra abaixou o olhar: a bolsa e a pedra sumiram. Ela virou-se. Havia uma porta fechada atrás dela, que levava ao interior de um dos prédios.

Allesandra decidiu que não seria bom para ela abrir aquela porta.

 

A Pedra Branca

— MEU IRMÃO. O hïrzg Fynn.

A Pedra Branca achava que não se surpreenderia mais a esta altura, mas isso...

Ela estava em Firenzcia há mais ou menos três anos agora, o período mais longo que passou em um lugar há algum tempo, mas o trabalho era bom lá. A Pedra Branca sabia um pouco da história de Allesandra e Fynn ca’Vörl; tinha ouvido os rumores, mas nenhum deles falava de um ressentimento tão grande na a’hïrzg. E ela mesma testemunhara Allesandra salvar o irmão de um ataque.

A Pedra Branca viu-se confusa. Ela não gostava de incertezas.

Mas... isso não lhe dizia respeito. As solas de ouro na bolsinha eram bem reais, ela tinha ouvido Allesandra claramente, e o seixo branco da mulher estava na bolsinha ao lado da pedra do olho direito, o seixo que continha as almas de todos aqueles que a Pedra Branca matou.

Os dedos apalparam o seixo branco sobre o couro fino e macio da bolsinha. O toque reconfortou a Pedra Branca, e ela pensou que podia ouvir o chamado fraco de suas vítimas.

— Eu quase matei você primeiro... Você era tão desajeitada naquela época...

— Quantos mais? Nós ficamos mais fortes cada vez que você adiciona outro...

— Em breve você nos ouvirá sempre...

Ela tirou a mão da pedra e as vozes pararam. Nem sempre elas faziam isso. Às vezes, em especial recentemente, ela ouvia mesmo quando não tocava na pedra.

Matar um hïrzg... Seria um desafio. Seria um teste. Ela teria que planejar com cautela; teria que observá-lo e conhecê-lo. Ela teria que se tornar o hïrzg.

Os dedos retornaram à pedra. — Você matou gente sem status, você matou ce’ e ci’, e eles foram fáceis demais. Você matou co’ e ca’ e sabe que eles são bem mais difíceis porque dinheiro traz isolamento e poder atrai proteção. Mas nunca isso. Nunca um governante.

— Você está com medo...

— ... Você duvida de si mesma...

— Não! — disse a Pedra Branca com raiva. — Eu sou capaz de fazer isso. Eu farei. Vocês verão. Verão quando o hïrzg estiver aí com vocês. Verão.

— Eles reconhecerão você. A a’hïrzg reconhecerá você...

— Não, não reconhecerá. Pessoas como ela sequer enxergam pessoas sem status, como eu era para a a’hïrzg. Minha voz será diferente, meu cabelo e, mais importante, minha atitude. Ela não me reconhecerá. Não.

Dito isso, ela tirou da cama a bolsinha de moedas de ouro e colocou no baú com os outros pagamentos. Do baú, ela retirou um espelho surrado de bronze e olhou o reflexo na superfície polida. Tocou no cabelo, viu os olhos atormentados, quase sem cor. Era o momento de ela se tornar outra pessoa. Alguém mais rico, mais influente.

Alguém que pudesse chegar perto do hïrzg...


CONTINUA

??? PRESSÁGIOS ???

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Enéas co’Kinnear

Jan ca’Vörl

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Enéas co’Kinnear

AGORA ELE QUERIA ter se preocupado em aprender mais da língua ocidental.

Enéas conhecia algumas das palavras, o suficiente para se virar nos bazares ruidosos, cheirosos e lotados de Munereo. Lá, entre a multidão que tagarelava e se acotovelava, podia-se encontrar perfumes doces das planícies de Horn Ocidental; iguarias doces, escuras e saborosas das florestas do Grande Rio do Sul; cestas com pinturas elaboradas dos povos da Grande Espinha; belas peças de lã das ovelhas dos morros do nordeste de Paeti, tingidas com tons intensos de verde e laranja, com estampas elaboradas, bordadas em padrões geométricos; frutas e ervas exóticas que os vendedores diziam vir de todas as partes dos grandes lagos internos do continente ocidental. Nos mercados oficiais, Enéas encontrava produtos inferiores com preços duas ou três vezes mais altos do que pagaria nos mercados abertos, vendidos por ocidentais que sabiam a língua de Nessântico.

Mas era nos bazares, escondidos no labirinto de ruas estreitas da cidade onde os habitantes nativos ainda moravam, que os verdadeiros tesouros eram encontrados, e lá ninguém falava a língua de Nessântico, mesmo que soubesse.

Munereo... era um sonho. Outra vida, como a época em que ele viveu na própria Nessântico. Comparados à dura realidade, aqueles tempos pareciam ter acontecido com outra pessoa, inteiramente em outra vida.

Enéas sabia que as pessoas de puro sangue nativo eram chamadas de tehuantinos. Neste momento, era com os tehuantinos que eles lutavam. Os tehuantinos fluíram para os Hellins vindos das montanhas a oeste, após o comandante Petrus ca’Helfier ter sido assassinado por ter estuprado ou se apaixonado por — dependia de quem contava — uma mulher tehuantina. Ca’Helfier fora assassinado por um ocidental. Então, o novo comandante — Donatien ca’Sibelli — retaliou, houve tumultos, baderna e agitação crescentes, e o conflito finalmente se expandiu em uma guerra aberta, com cada vez mais tehuantinos vindo dos Hellins.

Agora Enéas seria uma nova baixa naquela guerra. Se esta for a Sua vontade, Cénzi, então irei até o Senhor com prazer...

Ele gemeu ao levar um chute nas costelas de um pé em sandálias levando o fôlego e as memórias embora. Alguém rosnou alguma coisa rápida e praticamente ininteligível na língua dos tehuantinos para Enéas. — ...pé... — ouviu ele. — ...momento... — Enéas fez um esforço para abrir os olhos, que estavam apertados contra o sol implacável, para ver a carranca do ocidental: a pele da cor de chá; as bochechas tatuadas com faixas azuis e pretas da classe guerreira; os dentes brancos; a armadura de bambu no corpo, e, na mão, uma espada curva ocidental que o homem usava para gesticular e que fazia um som audível quando a lâmina cortava o ar.

Enéas tentou mexer as mãos e descobriu que estavam firmemente amarradas atrás das costas. Ele lutou para se levantar, mas a perna e o tornozelo feridos recusaram-se a cooperar. — Não — falou Enéas na língua ocidental. O o’offizier tentou fazer com que a recusa soasse menos rebelde e procurou na mente confusa pelo cansaço as palavras que poderia usar. — Eu... machucado. Não posso... pé. — Enéas torceu para que o ocidental entendesse a sintaxe e o sotaque capengas.

O ocidental suspirou com irritação. O homem ergueu a espada, e Enéas soube que estava prestes a morrer. Eu vou ao Senhor, Cénzi. Ele esperou pelo golpe e ergueu os olhos para ver o golpe mortal, para que o ocidental soubesse que não tinha medo.

— Não. — Enéas ouviu a palavra; outra voz. Uma mão deteve o braço do ocidental assim que começou a descer. Outro tehuantino entrou no campo de visão de Enéas. Não havia marcas de classe no rosto deste homem, as mãos não tinham calos e pareciam ser macias, e ele usava uma roupa simples e folgada que não era diferente das bashtas e tashtas da terra natal do o’offizier. À exceção do chapéu decorado com plumas que o homem usava sobre o cabelo escuro e oleoso, ele poderia se passar simplesmente por um estrangeiro qualquer em Nessântico. — Não, Zolin — repetiu o sujeito para o guerreiro, depois liberou uma enxurrada de palavras velozes demais para Enéas compreender.
O guerreiro grunhiu e embainhou a arma. Ele gesticulou uma vez para Enéas. — ...ruim... sua escolha... nahual Niente — disse o homem e foi embora.

Nahual. Isso queria dizer que seu salvador era o líder dos nahualli, os ténis-guerreiros dos ocidentais. “Niente” podia ser um nome, podia ser um título secundário; Enéas não sabia. Ele encarou o homem e notou que seu cinto continha dois dos estranhos apetrechos em forma de tubo de marfim que foram usados para matar o a’offizier ca’Matin. Enéas perguntou-se se seria o próximo; teria preferido a espada. Ele fechou os olhos e ofereceu outra rápida prece silenciosa para Cénzi.

— Você consegue andar, o’offizier?

Enéas abriu os olhos ao ouvir o sotaque carregado de Nessântico. O nahual Niente olhava fixamente para ele, que balançou a cabeça. — Com dificuldade. Meu tornozelo e a perna...

O homem resmungou e ajoelhou-se ao lado de Enéas. Ele tocou a perna do o’offizier sob o uniforme e sondou com as mãos. Enéas soltou um ganido involuntário quando o nahualli manipulou seu pé. Niente resmungou novamente e chamou alguém. Um jovem veio correndo com uma grande bolsa de couro e entregou para o feiticeiro. O homem vasculhou o interior e tirou uma peça comprida de linho branco. Ele enfaixou a perna de Enéas e bateu na mão do o’offizier quando ele tentou detê-lo. — Deite-se, se quiser viver — falou o nahualli.

Após enfaixar completamente a perna de Enéas, o nahualli ficou de pé. Fez um gesto e falou uma palavra na própria língua. Imediatamente, Enéas sentiu o pano se apertar na perna e gritou. Ele tentou arrancá-lo com as unhas, mas o pano não era mais feito de linho macio. A perna parecia presa por um torno de aço implacável, e um fogo lento ardeu dentro dela enquanto o o’offizier se debatia no chão e o nahual entoava um cântico na própria língua.

A agitação de Éneas não adiantou. O coração inflamou até ele gritar de dor...

... e o fogo abruptamente se apagou. Enéas atacou o pano novamente, que agora era apenas pano e nada mais. Ele desenfaixou a perna enquanto o nahualli assistia impassivelmente, esperou ver a perna negra, cheia de bolhas e esmagada. Mas os hematomas que manchavam a perna tinham sumido, e o inchaço em volta do tornozelo diminuiu.

— Agora, fique de pé — disse o nahualli.

Enéas levantou-se. Não havia mais dor, e a perna estava intacta e forte.

Cénzi, o que ele fez? Sinto muito... — Por que você fez isso? — disse o o’offizier com raiva.

O homem encarou Enéas da maneira como se encara uma criança retardada. — Para que você pudesse andar.

— Curar com o Ilmodo vai contra a Divolonté — disse Enéas com raiva. — Minha recuperação estava nas mãos de Cénzi, não nas suas. É Dele a escolha de me curar ou não. Vocês selvagens usam o Ilmodo de modo errado.

O nahualli torceu o nariz ao ouvir isso. — Eu usei um encantamento que poderia ter usado em um dos meus homens, o’offizier. Você está de pé, curado e, no entanto, está sendo ingrato. Toda sua gente é assim arrogante e estúpida?

— Cénzi... — Enéas começou a falar, mas o homem o interrompeu com um gesto.

— Seu Cénzi não está aqui. Aqui, Axat e Sakal reinam, e foi o X’in Ka e não o seu Ilmodo que eu usei. Agora, venha comigo.

— Por quê? Onde estamos indo?

— Para nenhum lugar que você conheça. Venha ou morra aqui, caso se sinta melhor assim.

— Você vai me matar de qualquer maneira. Eu vi o que vocês fazem com os capturados. — Enéas gesticulou para os apetrechos no cinto do homem. O nahualli tocou os objetos, os dedos alisaram o osso curvo.

— Acredite no que quiser — disse ele. — Venha comigo ou morra aqui. Não me importo com a sua escolha.

O nahualli começou a ir embora. De pé, Enéas pôde ver o acampamento dos ocidentais sendo desmanchado à sua volta em uma manhã escura, que ameaçava chover. Agora mesmo, muitas tropas dos tehuantinos iam embora marchando para o nordeste: os offiziers deles estavam montados, os homens andavam com longas lanças nos ombros. Enéas notou o grande círculo enegrecido, o resquício da grande fogueira ainda fumegante que ele tinha visto na noite anterior. Uma arcada inconfundível de costelas queimadas surgiu das brasas. Enéas estremeceu ao ver aquilo, pois sabia que o esqueleto devia ser de ca’Matin ou de outro colega soldado.

Ele viu o nahualli gesticular para um dos guerreiros por quem passou e apontar de volta para Enéas. Cénzi, o que devo fazer? O que o Senhor quer de mim?

Como se fosse a resposta, as nuvens abriram-se a noroeste, e ele viu um facho de luz do sol pintar os morros da cor de esmeralda ao longe, antes de sumir novamente.

— Espere — falou Enéas. — Eu vou com você.

 

Audric ca’Dakwi

— VOCÊ NÃO PODE CONTAR PARA NINGUÉM que eu converso com você, Audric — disse a mamatarh. Os olhos pintados do quadro cintilaram ao dar o aviso, e o rosto envernizado ficou sério. — Você entendeu, não é?

— Eu podia... contar para Sergei — sugeriu Audric, que estava diante do quadro com um candelabro na mão. Ele dispensou Seaton e Marlon pelo resto da noite, embora soubesse que os dois dormiam na câmara ao lado e viriam se fossem chamados. A respiração estava difícil; ele lutava por cada fôlego, as palavras saíam em espasmos ofegantes. Audric sentiu o calor do fogo na lareira em frente. — Ele... acreditaria em mim. Ele... entenderia. A senhora... confiava nele, não?

Mas o rosto no quadro balançou a cabeça, um movimento praticamente imperceptível à luz instável das velas. — Não — sussurrou ela. — Nem mesmo Sergei. Que eu converso com você, que dou conselhos, isso deve ser segredo nosso, Audric. Segredo nosso. E você tem que começar a se impor, Audric: como eu me impus, desde o início.

— Eu não tenho... 16 anos. Sergei é... o regente, e é... a palavra dele... que o Conselho dos Ca’... ouve... Sigourney e os demais... — O esforço de falar era um sacrifício, e Audric não conseguiu terminar. Ele fechou os olhos e ouviu a resposta de sua mamatarh.

— O regente e o Conselho têm que entender que você é o kraljiki, não Sergei — interrompeu Marguerite com rispidez. — A Guerra nos Hellins... não vai bem. Há perigo lá.

Audric concordou com a cabeça, com os olhos ainda fechados. — Sergei... sugeriu retirar... nossas tropas, ou talvez... — ele fez uma pausa porque foi acometido por outro acesso de tosse — ... até mesmo abandonar as cidades... em que nos estabelecemos... nos Hellins até... que os Domínios sejam... unificados novamente, quando pudermos... dar recursos a elas...

— Não! — A palavra foi quase um guincho, tão alto que Audric tapou os ouvidos e arregalou os olhos, surpreso ao ver que a boca no quadro não estava aberta em fúria e que Seaton e Marlon não entraram correndo no quarto, em pânico; porém, as mãos nos ouvidos não conseguiam deter a voz de Marguerite em sua cabeça. — Você sabe do que me chamavam no início do meu reinado, Audric? O seu mestre de lições lhe contou?

— Ele contou. Eles chamavam a senhora... de “Spada Terribile”... a Espada Terrível.

O rosto no quadro assentiu sob o brilho fraco das velas. — Eu era a Espada Terrível. Eu trouxe a paz aos Domínios primeiro pela espada do meu exército, antes de um dia eu virar a Généra a’Pace. Eles se esquecem disso, aqueles que se lembram de mim. Você tem que ser forte e firme da mesma maneira, Audric. Os Hellins: eles têm uma terra rica, que traria grande riqueza aos Domínios, se você tiver a coragem de pegá-la e mantê-la.

— Eu terei — falou Audric fervorosamente. Imagens de guerra passaram pela sua mente, de si mesmo no Trono do Sol com mil pessoas ajoelhadas diante dele, e nenhum regente ao lado.

— Ótimo — respondeu Marguerite. — Excelente. Ouça o que eu digo e vou lhe contar o que você tem que fazer para ser o maior dos kraljiki. Audric, o Grande; Audric, o Amado.

Ao ver o sorriso da mamatarh, ele finalmente concordou com a cabeça. — Eu serei tudo isso. — Audric respirou ofegante novamente e tossiu. — Eu serei.

— Será o que, kraljiki?

Audric deu meia-volta ao ouvir a pergunta e quase derrubou o candelabro com o movimento, que foi tão violento que duas das velas foram apagadas. O esforço provocou espasmos ofegantes, e o regente Sergei correu para pegar o candelabro das mãos do kraljiki e apoiar o menino com um braço em volta de sua cintura. No nariz lustroso e reluzente do regente, Audric vislumbrou o archigos Kenne à espreita, nas sombras perto da porta, mantida aberta para os dois por Marlon. Ca’Rudka ajudou Audric a desmoronar em uma das cadeiras estofadas em frente à lareira. Marguerite olhou para ele com uma expressão indecifrável. — Aqui, meu kraljiki, um pouco do xarope do curandeiro — falou ca’Rudka ao colocar uma taça nos lábios de Audric, que encarava o quadro. O menino balançou a cabeça e afastou a bebida.

Ela diz que os curandeiros não ajudarão, Audric quis falar, mas não falou, e a boca bem fechada de Marguerite curvou-se em um ligeiro sorriso. As pálpebras do kraljiki queriam se fechar, mas ele obrigou-as a ficarem abertas. — Não — disse o menino.

Ca’Rudka franziu a testa, mas pousou a taça e falou — Eu trouxe o archigos. Deixe que ele reze pelo senhor...

Audric ergueu o olhar para o quadro e viu a mamatarh concordar com a cabeça. Ele fez o mesmo, e o archigos Kenne entrou apressadamente no quarto. Enquanto o archigos se ocupava com o cântico e o gestual, Audric ignorou os dois homens. Ele só tinha olhos para o quadro e para o olhar sereno da mamatarh. Marguerite falou com o neto enquanto Kenne tocava em seu peito e o calor do Ilmodo amenizava a congestão nos pulmões.

— Nós podemos fazer isso juntos, Audric. Você é o neto que eu sempre quis ter em vida. Ouça o que eu digo, e em toda a história não haverá um kraljiki que poderá se igualar a você. Eu vou lhe ajudar. Ouça o que eu digo...

— Eu estou ouvindo — disse Audric para ela.

— Kraljiki? — falou o regente ca’Rudka, que acompanhou o olhar de Audric até o quadro. O kraljiki perguntou-se se o homem também tinha ouvido o sussurro, mas aí o nariz de prata do regente reluziu à luz das velas quando ele se virou de volta e refletiu a própria imagem de Audric. — Nenhum de nós disse coisa alguma.

Audric balançou a cabeça e falou — Realmente. E é por isso que eu ouço.

Ca’Rudka deu um sorriso hesitante. Kenne, em meio ao encantamento, deu de ombros. — Ah, uma piada — disse o regente. Ele deu uma risadinha sem graça. — Está se sentindo melhor, kraljiki?

— Estou, Sergei. Sim. Obrigado, archigos. Você pode ir. — O archigos não se mexeu, e Audric fechou a cara. — Eu disse, archigos, você pode ir.

Kenne arregalou os olhos e Audric viu o archigos olhar para Sergei, que deu de ombros. Kenne fez uma mesura e o sinal de Cénzi e saiu.

— Aquilo foi uma grosseria — disse Sergei para Audric depois que Marlon fechou as portas do quarto do kraljiki ao sair. — Depois dos esforços e preces do archigos...

— As preces do homem tinham acabado — falou Audric com uma agressividade que jamais havia usado com Sergei antes. Ele olhou para o quadro e viu a mamatarh acenar com a cabeça, como se estivesse satisfeita. A voz de Marguerite murmurou em sua cabeça. — Sergei não se importa com você, Audric. Ele apenas quer manter o poder que é seu. Não quer que você seja o que pode ser. Quer que você continue fraco, que sempre precise dele, para se manter como regente. — A força da mamatarh pareceu fluir por Audric. Ele descobriu que podia falar sem as pausas, sem tossir. O kraljiki falou tão bem e com tanta força quanto o próprio Sergei. — Preciso falar com você, regente, sobre os Hellins. Andei considerando a situação de lá desde nossa última conversa. Decidi mandar outra divisão da Garde Civile para complementar nossas tropas lá.

Audric ficou orgulhoso de como a voz soou: altiva, forte e intensa. Ele sorriu para Marguerite, e, sob a luz das velas, ela acenou com a cabeça para o neto.

 

Sergei ca’Rudka

— DECIDI... MANDAR outra... divisão da... Garde Civile... para complementar... nossas tropas... lá — falou Audric.

O menino mal conseguiu colocar as palavras para fora no meio das arfadas e da tosse. A raiva dentro dele pareceu tornar a agonia ainda pior do que o normal, como se as preces do archigos Kenne não tivessem feito nada.

Sergei obrigou-se a ficar impassível, a não revelar nada do que pensava. Deixe o menino ter seu acesso de raiva. Porém, as palavras deixaram o regente preocupado: não parecia Audric falando; ele escutava as palavras de outra pessoa. Quem andou falando com o menino? De quem era o conselho que foi sussurrado em seu ouvido para ele declamar? Um dos chevarittai, talvez, em busca de glória na guerra. Talvez a própria Sigourney, uma vez que o irmão era o comandante lá.

Audric olhava por cima do ombro de Sergei, que se voltou para o mórbido retrato da kraljica Marguerite sobre a lareira. — Eu pensei que tinha deixado clara minha opinião sobre a questão, kraljiki — falou o regente em um tom de voz cuidadosamente neutro, cuidadosamente sem emoção. — Não acho que isso seja prudente, não com o tamanho do exército que a Coalizão conseguiria arregimentar se eles quisessem. Esta guerra nos Hellins é como uma ferida que sangra; ela nos enfraquece e desvia a atenção de onde o foco deveria estar: no leste, não no oeste. Devíamos ver o que podemos fazer para restaurar os Domínios.

O olhar do menino desviou do retrato para Sergei e voltou. — Os Hellins nos dão riquezas e bens que não encontramos em nenhum outro lugar. Riquezas... e bens... (tosse)... que... não encontramos... em nenhum outro lugar.

— Realmente, kraljiki, mas nós poderíamos obter esses bens através do comércio com os orientais tão facilmente quanto pela guerra. Mais facilmente, na verdade. Assim que os Domínios forem reunificados, então haverá tempo para olhar para o outro lado do Strettosei, para os Hellins, mais uma vez. Perdemos muito terreno lá porque não pudemos dar a atenção que o território merece.

O rosto de Audric ficou vermelho, pelo esforço de falar ou pela raiva, ou por ambos. — Não foi isso que meu vatarh disse quando os Distúrbios começaram, regente. Você acha que por que eu era apenas uma criança na época eu não me lembraria? ... apenas uma... criança... na época... (arfada)... que não... me lembra... ria?

O rosto impassível do regente não revelou nada. — Quando os Distúrbios começaram, o kraljiki Justi acreditava que ele não tinha escolha a não ser responder. Seu vatarh acreditou no que os a’offiziers disseram para ele: que os ocidentais eram pouco mais do que selvagens, que em pouco tempo seriam repelidos para além do lago Malik. Porém, eu gostaria de lembrá-lo que eu não compartilhava deste ponto de vista. As notícias continuam piorando apesar dos melhores esforços do comandante ca’Sibelli. Nós julgamos mal os ocidentais, e é hora de salvar o que for possível de uma decisão ruim.

— Meu vatarh não tomou uma decisão ruim! — O menino guinchou as palavras e conseguiu falar todas em um fôlego só. Depois ele tossiu muito e intensamente, e Sergei esperou. — Eu quero que outra divisão seja enviada — insistiu Audric. — Esta é a minha vontade. Essa é a vontade do kraljiki.

— O senhor é o kraljiki — disse Sergei, que manteve o tom de voz baixo e reconfortante em contraste com os guinchos estridentes de Audric. — Mas eu fui nomeado regente pelo Conselho dos Ca’ após a morte de seu vatarh até que o senhor atinja a maioridade.

— Eu já sou quase maior de idade — respondeu Audric. O rosto estava tão pálido que Sergei pensou que o menino fosse desmaiar. — Daqui a menos de dois anos. Eu poderia pedir ao Conselho para removê-lo e ter permissão de governar plenamente. Eles já fizeram isso no passado. O mestre ci’Blaylock me disse: o kraljiki Carin dispensou seu regente aos 14 anos, a mesma idade que a minha.

Sergei ergueu a mão. Com delicadeza. Com um sorriso debaixo do nariz de prata. — Sim, isso foi feito, mas o senhor e eu não precisamos estar em desacordo, meu kraljiki.

— Então não me desobedeça, regente. Eu irei ao Conselho. Irei sim. Farei com que o removam. — O menino gesticulou freneticamente, o que provocou outro ataque de tosse.

— Audric... — respondeu Sergei pacientemente enquanto o jovem se deitava no travesseiro. Marlon, à espreita no canto dos fundos do quarto, encarava Sergei de olhos arregalados e balançava a cabeça. — Talvez eu tenha sido negligente por não lhe envolver plenamente, por não fazer com que tomasse parte de todas as reuniões e discussões. Isso pode mudar; isso será mudado. Eu lhe prometo: se quiser tomar parte de todas as discussões de estado, ler todos os relatórios, ouvir todos os conselheiros, realmente ver o que significa governar, então eu me adequarei a isso. Mas os Hellins... — Ele balançou a cabeça. — Já são quase sete anos, Audric. Sete anos e os ocidentais recuperaram a maior parte do que conquistamos por lá originalmente. Sete anos, e perdemos gardai demais, desperdiçamos solas de ouro e sangue vermelho em excesso na tentativa de conter a maré. No fim das contas, eu quero o que o senhor quer. Eu quero que os Domínios tenham as riquezas das Terras Ocidentais. Quero mesmo. Mas esta não é a hora. E não é a hora de discutirmos isso. Amanhã, quando se sentir melhor...

— Então saia! — berrou Audric para Sergei, tão alto que o atendente no corredor abriu um pouquinho a porta para espiar. O regente fez que não para o homem. — Saia e me deixe em paz. — Ele virou o rosto e tossiu no travesseiro.

— Como quiser, kraljiki. — Sergei fez uma mesura para o jovem. Ao se virar para ir embora, ele viu o retrato da kraljica mais uma vez. Ela pareceu dar um sorriso triste para o regente, como se compreendesse.

 

Allesandra ca’Vörl

A CERIMÔNIA NO TEMPLO DE BREZNO foi dolorosamente longa, assim como o discurso de boas-vindas de Fynn para o a’gyula da Magyaria Ocidental: Pauli, o marido de Allesandra. O rosto dela doía por ter de manter um sorriso durante as monótonas saudações de Fynn — escritas, sem dúvida, por um dos escribas do palácio, já que Fynn às vezes espiava intrigado o pergaminho diante de si, quando tropeçava em palavras desconhecidas. A coluna de Allesandra doía por causa dos bancos desconfortáveis e de espaldar reto do templo. Jan, sentado entre ela e seu vatarh, remexia-se sem parar, tanto que Pauli finalmente se inclinou na direção do jovem e sussurrou algo em seu ouvido. Depois disso, Jan parou de se remexer no banco, mas o mau humor era visível em seu rosto quando Allesandra e Pauli saíram do templo atrás de Fynn, do archigos Semini e de sua esposa megera, sendo seguidos pelos ca’ e co’ de Firenzcia como um obediente rebanho de ovelhas.

Depois veio a festa no Grande Palácio de Brezno. Agora eram os pés que doíam, e Allesandra pensou que as barbatanas do espartilho, que apertavam a tashta como a moda ditava, deixariam sulcos permanentes na sua cintura. O salão de baile era um forno na noite úmida e sufocante, mais como em pleno verão do que na primavera que o calendário insistia em marcar. O archigos havia postado e’ténis pelo salão para manter os ventiladores de teto girando com a energia do Ilmodo. O movimento das pás parecia intensificar o calor em vez de diminuí-lo e transformava o ar em uma colônia fétida de suor, pomadas e perfumes. A noite estava ruidosa com a música da orquestra no fim do salão, com o som de pés que dançavam na pista de madeira colocada sobre os ladrilhos, e com uma centena de conversas isoladas, tudo refletido de volta para eles pelo domo acima.

Allesandra desejava fervorosamente que estivesse em outro lugar, mas se os desconfortos incomodavam Pauli, ele não deixou transparecer. Pauli separou-se de Allesandra assim que o decoro permitiu e estava com um grupo de moças em volta de Fynn. Jan estava lá também, ao lado do vatarh, e Allesandra notou que ele recebia quase tanta atenção quanto o hïrzg, e certamente mais do que Pauli. Fynn divertia todo mundo com a história da caçada ao cervo, o braço inclinado para trás como se mirasse o arco enquanto ria, e deu um tapinha nas costas de Jan. — ... o garoto atira praticamente tão bem quanto eu — ela ouviu Fynn dizer, e o rosto de Jan ficou radiante e com um largo sorriso enquanto as moças aplaudiam e faziam os elogios apropriados.

Obviamente, seria Pauli quem certamente encontraria satisfação e alívio entre as coxas de uma delas na noite de hoje. Allesandra tinha certeza disso; o marido não se importava mais em esconder suas aventuras. Ela dizia para si mesma que não se importava.

— A’hïrzg, está se divertindo? — Ela virou-se e viu o archigos Semini ca’Cellibrecca parado atrás dela com duas bebidas geladas na mão. Fynn trouxera, sob grande despesa, carroças cheias de gelo glacial das montanhas em volta do lago Firenz. O homem ofereceu um copo para Allesandra e disse — Por favor, pegue. Francesca parece ter sumido e o gelo vai desaparecer em breve nesse calor.

Com gratidão, Allesandra pegou o copo, que suava. Tomou um gole da bebida gelada e saboreou a sensação fria quando o suco adoçado por mel desceu pela garganta. — Obrigada, archigos. Acho que você acabou de salvar a minha vida.

Ele deu um largo sorriso ao ouvir isso, a barba reluzia por causa do óleo. — A senhora se importaria de andar comigo, a’hïrzg? Eu suspeito que haja um pouco de brisa perto das janelas.

Ela olhou o grupo barulhento em volta de Fynn, o marido e o filho ali com ele. — Certamente — falou Allesandra para o archigos. Semini ofereceu o braço, e ela colocou a mão na dobra do antebraço enquanto andavam. Ele não falou nada até que os dois ficassem bem afastados do hïrzg e então se aproximou de Allesandra. — Seu marido gosta da atenção que recebe como a’gyula, mas é um tolo ao deixar a senhora desacompanhada. — A mão livre de Semini cobriu a de Allesandra em seu braço.

— Eu poderia dizer o mesmo sobre sua esposa, archigos.

Semini riu. Sua mão deu um tapinha na dela. — A esposa ideal é ao mesmo tempo uma aliada e uma amiga, mas este é um ideal raramente alcançado, não é? Uma pena. Eu me pergunto, às vezes, o que poderia ter acontecido se a falsa archigos não tivesse sequestrado a senhora. Talvez, a’hïrzg, nós pudéssemos ter acabado como... aliados. Ou algo mais.

Allesandra acenou com a cabeça para um grupo de esposas ca’ e co’ que passava. Ela viu os olhares especulativos notarem sua mão no braço do archigos. — A filha do archigos ca’Cellibrecca foi uma escolha melhor para você, archigos. Veja onde está agora.

Ela sentiu mais do que ouviu o muxoxo de desdém do archigos. — Uma escolha fria e calculista da parte do jovem Semini e que me deu um casamento com exatamente estas mesmas características. Mas existem outras alianças que podem ser forjadas fora do casamento, a’hïrzg, se a pessoa é cuidadosa. E interessada. — O archigos manteve a mão sobre a de Allesandra e apertou os dedos.

— Eu sempre fui extremamente cuidadosa a respeito de minhas alianças, archigos. Isto foi uma coisa que aprendi cedo.

Ele concordou com a cabeça. Os dois estavam perto da pista de dança agora, a música abafava suas vozes. — Soube que a senhora fará um voto de lealdade ao hïrzg Fynn no Besteigung amanhã?

— Sim. Você tem fontes próximas ao hïrzg.

Sob a barba grisalha, o homem sorriu. — Saber o que os poderosos sabem é uma tática de sobrevivência, a’hïrzg, como tenho certeza que compreende. — Por vários momentos, os dois andaram em silêncio pelo limite da pista. Casais flutuavam ao dançar uma gavota perto deles. — Também ouvi a notícia de Nessântico de que o jovem kraljiki não está bem — falou Semini. Allesandra não disse nada. — Os rumores que chegaram a mim dizem que o Conselho dos Ca’ em Nessântico pode considerar os gêmeos Sigourney ca’Ludovici ou Donatien ca’Sibelli como sucessores caso Audric morra. Eles são primos em segundo grau de Audric, creio eu. — Ele respirou fundo e sorriu. — Assim como a senhora.

Allesandra devolveu um olhar neutro para o homem. Pessoas passaram dançando por eles. — Assim como Fynn — respondeu ela finalmente.

— Sim, mas a senhora é a irmã mais velha. E tem a vantagem de ter vivido lá; a senhora conhece Nessântico, enquanto seu irmão, não. E talvez existam pessoas em Nessântico que saibam reconhecer força quando a veem e desejem uma presença forte no Trono do Sol. Alguém mais forte do que Sigourney ou Donatien. — Semini aproximou-se e abaixou a voz em um murmúrio rouco. — Por falar nisso, existem pessoas aqui que prefeririam que a senhora usasse a coroa que atualmente está na cabeça de Fynn.

— Você fala em traição novamente, archigos? — perguntou Allesandra, tão baixo quanto ele.

— Eu falo a verdade, a’hïrzg.

— E sobre estas pessoas aqui de que você fala, você estaria entre elas, archigos?

Ele apertou os dedos da mão de Allesandra. — Eu estaria. Talvez... talvez até mesmo seja possível unificar tanto a Coalizão quanto a Fé... sob os líderes certos.

O archigos certo seria você mesmo, é claro... Allesandra observou as pessoas dançarem na pista enquanto executavam os passos complicados e predeterminados. O que ele realmente sabe? O que realmente quer? Allesandra não sabia como responder a Semini. Não sabia se o archigos tinha conhecimento da mensagem que ela recebera de Nessântico ou se talvez ele recebera algo igual. Allesandra não sabia se Semini era um aliado em potencial ou um inimigo — e o archigos seria um inimigo terrível, como podiam confirmar os esqueletos dos hereges numetodos pendurados em exibição pública, perto do Templo de Brezno.

O gelo virou água na bebida de Allesandra. Ela entregou o copo para um criado que passava e sorriu para o archigos. — Meu vatarh acreditava que os Domínios seriam unificados novamente quando ele estivesse sentado no Trono do Sol como kraljiki. É o que eu acredito também, archigos: que um hïrzgai também pode ser o kralji. E eu... — Allesandra ergueu a mão que segurou o copo e viu as gotas frias e reluzentes de água nos dedos. — Da última vez que vi, eu não era hïrzgin.

— Não, a senhora não é, mas...

Ela interrompeu Semini antes que ele abrisse a boca novamente. — Não, eu não sou. Isso parece ser a vontade de Cénzi. Você não pretende frustrá-lo, não é, archigos? — Allesandra não deu chance para resposta. Ela retirou a mão do braço de Semini e fez o sinal de Cénzi para ele. — Obrigada pela bebida e pela conversa, archigos. Você me deu muita coisa para pensar. Se... se algo acontecer para, bem, mudar as coisas, sei que você e eu poderíamos ser excelentes aliados. Certamente você é um archigos bem mais competente do que aquele que a Fé de Nessântico nomeou. Kenne nunca me impressionou.

Allesandra notou o prazer no rosto de Semini quando disse aquilo, e ele concordou levemente com a cabeça. — Estou lisonjeado, a’hïrzg.

— Não, sou eu quem deveria estar lisonjeada. Agora... você deve encontrar Francesca, e eu preciso ser a esposa do meu marido e a a’hïrzg, e fingir não notar quando o a’gyula escapulir durante a noite.

 

Karl ca’Vliomani

VARINA ENTREGOU A KARL a bola de vidro enquanto Mika observava. Varina tocou a mão de Karl por um momento antes de soltá-lo e deu um sorriso pontuado por tristeza. O rosto dela parecia mais enrugado do que ele se lembrava, como se tivesse envelhecido de repente no último mês.

Eles estavam no salão de reuniões da Casa dos Numetodos, onde uma vez por semana os vários numetodos faziam relatórios sobre suas pesquisas. Havia cadeiras vazias dispostas impecavelmente em fileiras, na frente de um pequeno tablado onde eles estavam.

Karl não contou para Mika sobre sua visita ao embaixador firenzciano no outro dia; evidentemente, Varina também não, uma vez que Mika não comentou a respeito.

— É só uma bola, certo? — perguntou Mika enquanto Karl ergueu o globo na palma da mão. — Embora seja bem feita. — Ela era pesada e bem feita; Karl não viu bolhas de ar ou defeitos no vidro. A lente da esfera fez com que ele tivesse uma visão deturpada e distorcida do salão. — Você a considera incomum ou notável de alguma outra maneira?

Karl deu de ombros. — Não. É apenas o trabalho de um verdadeiro vidraceiro ou o trabalho de formatura de um aprendiz, mas tirando isso...

Mika sorriu. — Realmente. O que eu quero que você faça, Karl, é que diga a palavra “abra” em paeti e depois jogue a bola para mim.

Karl ergueu a bola de vidro novamente. — Oscail — falou e atirou o pequeno globo na direção de Mika. O que aconteceu a seguir o surpreendeu.

Quando a bola de vidro tocou a mão de Mika, surgiu um clarão branco-azulado que lançou momentaneamente agitadas sombras negras pelo salão dos numetodos e na parede dos fundos. Karl protegeu os olhos com atraso. Ele ouviu a risada ligeira de Varina e palmas de alegria. Karl piscou e tentou enxergar atrás das manchas de imagens persistentes que atormentavam a sua visão. — Por todos os moitidis... vocês dois andaram trabalhando mesmo, pelo que eu vejo.

— Eu, não — respondeu Mika. — Foi Varina, sozinha. — Ele devolveu o globo para Karl, que era simplesmente vidro novamente. — Se os ocidentais eram capazes de encantar objetos com o Scáth Cumhacht da maneira como você e Ana disseram que Mahri fazia, então nós sabíamos que era possível. E não apenas isso: Mahri deu para Ana um objeto encantado que ela podia controlar ao falar a palavra certa. Qualquer um podia usar a magia desde que soubesse a palavra de ativação.

Varina continuava sorrindo. Ela esfregava a crosta de uma ferida comprida no antebraço. — Nós sabíamos que era possível; o resto foi simplesmente uma questão de descobrir a fórmula para fazer.

— Varina finalmente conseguiu decifrar a sequência — acrescentou Mika. — Ela me fez jurar segredo; disse que queria surpreender você. O feitiço é complicado e consome mais tempo e mais energia do que você imaginaria. Comparado com nossos próprios feitiços, algo assim sai caro e exige muito mais do corpo do que qualquer um esperaria, mas... — Ele acenou com a cabeça, feliz. — Dá para ser reproduzido. Finalmente. Varina diz que pode nos ensinar, e qualquer um de nós pode fazer o mesmo.

Karl olhou para Varina, que concordou com a cabeça sem dizer nada e sustentou o olhar do embaixador quase como uma provocação. Ele jogou a bola para o ar e falou — É impressionante, Varina. De verdade. Mas um clarão de luz não chega a ser uma arma.

— Teoricamente, qualquer feitiço dentro do conhecimento arcano pode ser armazenado em qualquer objeto: ofensivo, defensivo, tanto faz — respondeu Varina. Havia empolgação em sua voz. — Teoricamente. Na prática, bem, ainda não. Eu usei o feitiço de luz porque é o primeiro e mais simples que ensinamos a um iniciado, então pareceu ser o melhor. — Ela balançou a cabeça. Havia mechas brancas no cabelo castanho de que Karl não se lembrava, mesmo há uma semana. Será que elas estavam ali há tanto tempo assim? — Olhe, é questão de unir o feitiço ao objeto e criar um gatilho para ativá-lo, de envolver o objeto com a energia do Scáth Cumhacht como se embrulha uma fruta-das-brumas com papel. Depois disso, é como se ele fosse uma extensão do feiticeiro, mas o objeto em si tem que ser de boa qualidade ou não sobreviverá ao esforço. Eu levei um tempo para entender isso. Mas... — Varina suspirou e espalmou as mãos. — Só colocar este simples feitiço dentro de um objeto foi incrivelmente cansativo, Karl. Você não pode imaginar como é cansativo até tentar por si mesmo. Eu levei três viradas da ampulheta para concluir o processo e depois tive que descansar um dia inteiro para me recuperar. Até mesmo agora, eu ainda sinto que minha energia está baixa e imagino o que mais o feitiço possa ter custado. — Ela mordeu o lábio inferior e prendeu fios de cabelo branco atrás das orelhas. — Você falou que a archigos Ana dizia que o velho Mahri, o Maluco, deu para ela um encantamento que podia literalmente parar o tempo?

Karl concordou com a cabeça. — Foi o que ela me contou; foi assim que ela tirou Allesandra de seu vatarh. E Mahri foi capaz de trocar de corpo comigo quando eu estive na Bastida. A magia dele...

— ... era extremamente acima da nossa, então — Varina terminou a sentença por Karl. — Eu sei. Os relatórios da guerra nos Hellins sugerem o mesmo. Os nahualli dos ocidentais podem fazer mais do que nós, mas... eu acabei de provar que o X’in Ka dos ocidentais não tem uma origem divina tanto quanto o Ilmodo, não importa o que eles aleguem ou acreditem. — Ela apontou para a bola de vidro. — Se eu consigo fazer isso, então aposto que também podemos aprender a fazer o mesmo com feitiços mais poderosos. É apenas questão de aprender a fórmula correta de unir o Scáth Cumhacht ao objeto físico. Pode ser feito. Nós podemos fazer.

Karl lembrou-se de Mahri, que fez amizade com ele e Ana quando os dois pensaram que estavam perdidos, e que se revelou não como aliado, mas como inimigo. O rosto arruinado e enrugado de Mahri, com apenas um olho, passou pela mente de Karl quando olhou para Varina. Ele ergueu a bola de vidro novamente. — Então qualquer um pode ter feito este feitiço... — Sua voz foi sumindo. A explosão... o grande clarão de luz terrível... o corpo destroçado de Ana... magia, sem ninguém ser visto ou ouvido enquanto o feitiço era conjurado... talvez você esteja errado; talvez você esteja olhando na direção errada... — Será que o que aconteceu com Ana poderia...? — Karl não conseguiu terminar a pergunta, que ficou entalada na garganta, pesada e maciça.

Mas tanto Varina quanto Mika concordaram com a cabeça como resposta.

— Sim — disse Mika. — Isso é o resto do que queríamos falar com você. Varina e eu já tivemos a mesma ideia. Não podemos descartar envolvimento ocidental na morte de Ana, e, francamente, o que aconteceu lá faz com que pareça provável, ao meu ver. Mas por que, Karl? Por que não assassinar o kraljiki ou o regente, que são diretamente responsáveis pela guerra? Por que matar Ana, dentre tantas possibilidades?

Porque seria vingança por Mahri. Vingança. Isso ele podia compreender. — Nesse momento, eu não sei — respondeu Karl evasivo. — Mas alguém aqui em Nessântico sabe, tenho certeza, e eu vou encontrar essa pessoa. — O embaixador respirou fundo. Ambos olhavam fixamente para ele. — Mas isso fica para depois. Agora, eu quero que vocês me ensinem este truque nahualli. Quero ver como funciona.

Varina pareceu que ia começar a dizer alguma coisa, mas fechou a boca. Mika olhou para ela, depois para Karl. — Acho que vou deixar isso com vocês dois. Alia queria que eu levasse um pouco de carneiro para casa, para o jantar, e o açougueiro vai fechar o açougue daqui a pouco. — Ele despediu-se rapidamente e deixou os dois.

Por um longo tempo após a porta ter sido fechada, nenhum deles falou. Quando falaram foi ao mesmo tempo.

— Eu sinto muito pelo outro dia...

— Eu andei pensando no que você disse...

Eles riram, um pouco sem jeito, diante da colisão de desculpas. — Você primeiro — disse Karl, mas Varina fez que não com a cabeça. — Tudo bem, eu começo então — falou ele. — Você disse que meu... carinho por Ana me cegou. Eu andei pensando a respeito disso e...

— Pare, Karl. Não diga nada. Eu estava furiosa e disse coisas que não tinha direito de falar. Eu... gostaria que você esquecesse o que eu disse.

— Mesmo que elas sejam verdade?

O rosto de Varina ficou vermelho. — Você amava Ana. Eu sei disso. Seja lá que relacionamento vocês dois tiveram... — Ela deu de ombros. — Não é da minha conta. — Varina deu um passo à frente e ficou diante de Karl, tão perto que ele foi capaz de ver as manchas de cor na íris e as linhas finas nos cantos. Ela abaixou as mãos e fechou os dedos de Karl em volta da bola de vidro que ele ainda segurava, depois segurou sua mão. — Eu posso mostrar para você como encantar isto. Você só tem que ser paciente porque...

— Varina — ele interrompeu; ela parou de falar e ergueu os olhos para Karl. — Você não devia se dedicar tanto a isso.

Varina franziu os lábios, como se quisesse dizer alguma coisa. Depois, apertou a mão de Karl e abaixou o olhar. — ... porque é difícil, e você tem que pensar de maneira diferente sobre o processo inteiro. Mas assim que fizer a mudança, tudo fará sentido — disse Varina. — Você tem que imaginar a bola como uma extensão de si mesmo...

 

Enéas co’Kinnear

PASSARAM-SE TRÊS DIAS desde sua captura. Nesse ínterim, o exército ocidental continuou marchando para nordeste, e Enéas seguiu com eles. O o’offizier permaneceu próximo a Niente — que Enéas descobriu ser realmente o nome do nahualli que o curou.

— Ninguém vai amarrá-lo — disse Niente no início da jornada. — Mas se você for descoberto perambulando sem mim, os guerreiros irão matá-lo imediatamente. A escolha é sua.

Eles estavam indo na direção de Munereo. Os dias eram consumidos pelo caminhar e nada mais. Enéas permaneceu perto do nahualli, mas também ficou de olho em uma oportunidade para escapar — este era seu dever como soldado. O que quer que Niente tenha feito com sua perna curou os ferimentos completamente; o tornozelo nunca pareceu tão forte. Se houvesse uma chance de escapulir, bem, não seria um machucado que o impediria.

Não seria fácil. Todos aqueles da classe dos nahualli andavam juntos no meio do exército, bem protegidos, cercados por todos os lados pelos soldados ocidentais tatuados e cheios de cicatrizes. Isso indicava o valor que os tehuantinos davam aos feiticeiros. Cada um dos nahualli carregava um cajado ou bengala, entalhados com figuras de animais e muito elegantes; a maioria dava sinais de muito uso. Uma vez, quando eles pararam para uma refeição no meio do dia, Éneas esticou a mão para tocar no cajado de Niente, curioso em relação à sensação. Niente tirou o cajado de seu alcance.

— Isto não é para você, oriental — falou ele baixinho, mas com um tom ríspido na voz. — Deixe-me dar um alerta: você toca o cajado de um nahualli por sua conta e risco. Não repita isso.

Niente conversou com os outros nahualli, mas sempre na língua dos tehuantinos; se algum deles, como Niente, também falava a língua de Enéas, jamais demonstrou tal habilidade. Na maior parte do tempo, os outros nahualli ignoravam a presença do o’offizier ao lado de Niente, os olhares passavam por Enéas como se ele fosse nada mais do que um cavalo ou uma tenda. Duas vezes ao dia, um guerreiro de classe inferior entregava uma tigela para Enéas com purê de raízes que parecia ser a comida básica do exército; ele comia faminto e com rapidez — nunca era o suficiente para satisfazer a fome gerada pelas longas marchas. Niente também deu um odre para Enéas, que ele enchia nos pequenos lagos e córregos abundantes da região montanhosa.

O exército cruzou os vales sinuosos como um rio maciço, os homens eram envolvidos pelos paredões íngremes e verdejantes.

Eram sempre os guerreiros de classe inferior que montavam as tendas dos nahualli — os próprios feiticeiros pareciam fazer pouco trabalho físico. Niente supervisionava a colocação de várias dezenas de barris em sua tenda pessoal toda noite, marcados com símbolos queimados na madeira. Havia quatro símbolos que Enéas conseguiu discernir. Niente não parecia muito preocupado com a maior parte dos barris, mas aqueles marcados com o que parecia ser um dragão com asas ele observava com atenção quando eram alocados. Niente fazia uma cara feia e repreendia sempre que um dos guerreiros pousava o barril com muita força. Um barril estava cheio com pedaços do que parecia ser (e tinha cheiro de) madeira queimada; em outro havia um pó branco; enquanto um terceiro continha reluzentes cristais amarelos. Enéas espiou com mais atenção o conteúdo dos barris marcados com dragões e viu que estavam cheios com uma areia espessa cinza-escura, que reluzia um pouco ao luar.

Ele lembrou-se da areia espalhada em círculos no chão. O trovão, o clarão, a dor...

Toda noite, os dois juntos na tenda, Niente sentava-se com as costas eretas e entoava um cântico por pelo menos algumas viradas da ampulheta, de olhos fechados, enquanto Enéas ficava deitado perto dele. Algumas vezes ele polvilhava um dos ingredientes dos barris no chão entre os dois enquanto entoava. Enéas sentia no ar o poder do Ilmodo, que arrepiava a nuca e pinicava a pele, e ele rezava para Cénzi enquanto Niente conjurava seus feitiços, para tentar compensar com suas preces o uso herege do Ilmodo. Por toda parte havia silêncio: nenhum dos outros nahualli entoava enquanto Niente recitava os cânticos, e Enéas perguntou-se por quê. Também se perguntou como — depois — ele parecia sentir um calor por dentro, como se o esplendor do sol preenchesse os próprios pulmões. Seja qual fosse o feitiço que Niente conjurava, Enéas parecia ser afetado por ele.

O o’offizier imaginou se Niente sentia o mesmo calor e energia, mas o nahualli sempre parecia mais exausto do que empolgado pelos esforços. O homem gemia ao dormir, como se estivesse sentindo dor, e quando acordava pela manhã havia novas rugas no rosto, como uma maçã velha.

Na terceira noite, após os cânticos, em vez de dormir, como geralmente fazia, Niente colocou uma pequena tigela de bronze perto da abertura da tenda, de maneira que fosse banhada pela claridade da fogueira. A tigela era decorada em volta da borda com um friso de pessoas e animais estilizados, muitos dos quais Enéas não reconheceu. Enquanto o o’offizier observava, Niente colocou água na tigela, depois separou uma pequena quantidade de pó fininho e avermelhado que tirou de uma bolsa de couro e pôs na mão. O nahualli polvilhou a superfície da água com o pó enquanto entoava um cântico. A água começou a brilhar com uma claridade azul-esverdeada e anormal, que fez o rosto de Niente parecer fantasmagórico e morto. O homem olhou no interior da tigela, em silêncio, enquanto a luz sinistra dançava e se fundia com o rosto. A curiosidade fez Enéas se arrastar mais adiante para ver melhor. Ele ergueu o corpo e olhou sobre o ombro de Niente.

Dentro da tigela, na água, havia a vista de uma cidade. Ele a reconheceu imediatamente: Nessântico. Enéas notou a Pontica a’Brezi Veste e a vista da Avi a’Parete, que levava aos pilares de mármore da entrada pública do Palácio do Kraljiki. Ele viu o Velho Templo, mas o novo domo magnífico de co’Brunelli dava a impressão de ter desmoronado completamente; não havia nada ali a não ser um buraco escuro onde o domo deveria estar. As pessoas pareciam andar pelas ruas, mas havia poucas, a maioria corria de cabeça baixa como se estivesse com medo de ser vista. As ruas estavam sujas e cheias de lixo, e o palácio exibia uma rachadura visível na parede do sul e a ala norte estava em ruínas. Do outro lado da rua, o que tinha sido uma residência deslumbrante agora era uma massa negra. Parecia que uma mortalha de fumaça pairava sobre a cidade. Enéas aproximou-se para ver melhor na água...

... que foi agitada pelos dedos de Niente, e a visão dissolveu-se, a luz apagou-se. Enéas viu apenas água; o fundo de bronze da tigela estava salpicado com grânulos de pó.

— O que foi isto? — perguntou ele para Niente ao voltar a se sentar. O homem deu de ombros.

— Heresia, para você. A magia do deus errado.

— Eu vi... pensei ter visto... Nessântico.

— Talvez tenha visto — respondeu Niente. — Axat concede as visões que Ela quiser.

— Visões do quê? — Ele lembrou-se da fumaça, da rachadura na parede do palácio, das pessoas que corriam assustadas...

Niente não respondeu a Enéas. Ele jogou a água fora da tenda e secou a tigela com a bainha da roupa. Guardou-a na bolsa ao lado do colchonete de algodão que servia de cama. — Como você se sente, Enéas?

— Eu me sinto bem.

— Está na hora de você voltar para seu povo.

— O quê? — Enéas balançou a cabeça, sem acreditar. — Você disse...

— Eu disse que os soldados matariam você se tentasse escapar. E matariam mesmo, mas... não haverá lua hoje à noite. Axat está com o rosto escondido, e vem chuva. Haverá um cavalo do lado de fora de nossa tenda quando a tempestade chegar. No momento em que você ouvir a chuva, vá até o cavalo. Cavalgue sem parar; ninguém irá persegui-lo até o amanhecer. Se tiver sorte, se Axat lhe sorrir, você chegará a Munereo alguns dias antes de nós.

— Você está me deixando ir? Permitiria que eu avisasse meu povo e dissesse para eles ficarem prontos para o seu exército?

Niente sorriu e falou — O exército dos tehuantinos não tem o que temer do seu povo. Não aqui em nosso próprio país. Vá. Axat não quer que você morra aqui. Você foi preparado para outro destino, um bem melhor. Vá até o seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

— Preparado? Por quem, sua Axat? Eu não acredito Nela. Ela não é minha deusa e não controla meu destino, e eu não sou seu menino de recados.

— Ah. — Niente deitou-se no colchonete e puxou um lençol sobre o corpo para se abrigar da noite fria. — Bem, então fique aqui se é o que deseja. A escolha é sua.

— Que mensagem é essa?

— Você saberá quando for a hora.

Niente não falou mais nada. Depois de um tempo, Enéas ouviu os roncos do homem e ficou ali, pensativo. Ainda podia sentir o formigamento residual do cântico de Niente, como se as pontas dos dedos tivessem adormecido. Sentiu fisgadas nos braços e pernas, quase dolorosas, mas revigorantes ao mesmo tempo. A sensação manteve Enéas acordado pelo que pareceu ser várias viradas da ampulheta: enquanto Niente dormia, e os sons do acampamento diminuíam aos poucos até que ele só ouviu homens dormindo à sua volta e o barulho suave da chuva, que começou a bater no pano da tenda, acompanhada por clarões de relâmpagos e o rugido ocasional do trovão.

Ali perto, um cavalo relinchava.

Enéas saiu do cobertor e rastejou até a abertura da tenda. Lá fora, a chuva passou a cair de forma constante e formou poças agitadas pelos respingos. A alguns passos de distância, havia um cavalo de cabeça baixa que arrancava tufos de grama molhada. A criatura estava selada e embridada, mas as rédeas estavam penduradas, como se o animal tivesse sido puxado de onde havia sido posto. O clarão de um relâmpago iluminou o acampamento e congelou momentaneamente os riscos da chuva. O trovão bramiu por perto. O cavalo bateu os cascos, nervoso com a luz e o som, e Enéas pensou que ele pudesse fugir.

Era dever do soldado fugir, se possível.

Está na hora de você voltar para seu povo. Vá ao seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

Enéas olhou em volta; era difícil enxergar na bruma da tempestade, mas parecia não haver alguém acordado. Os guardas do acampamento recolheram-se às tendas para se abrigar da tempestade. Ele reuniu coragem, ficou de pé do lado de fora da tenda. A chuva molhou seu cabelo e ensopou sua roupa quando ele caminhou até o cavalo, com a mão esticada enquanto murmurava suavemente para o animal, para encorajá-lo. O cavalo ergueu a cabeça, mas fora isso permaneceu imóvel e encarou Enéas. Ele pegou as rédeas e deu tapinhas no pescoço musculoso e molhado. — É chegado o momento — falou para o animal.

Poucos momentos depois, ele estava montado e foi embora a galope.

 

Jan ca’Vörl

QUANDO ELE ENTROU para tomar café da manhã com sua matarh, ela estava diante da janela do quarto com as persianas abertas, e Jan pensou ter visto o sol reluzir nos olhos de Allesandra como se, talvez, ela tivesse chorado recentemente. Se fosse o caso, ele fazia ideia do porquê. — O vatarh não deveria tratar a senhora desse jeito — disse Jan. — Especialmente com algo assim tão importante. Eu falei para ele como me sinto, também.

Allesandra virou-se para ele e pegou as mãos do filho. Os cantos dos lábios ergueram-se em um sorriso. — Não importa, Jan. Não mais. Não sou mais capaz de ser magoada por ele. — Jan sentiu o aperto dos dedos da matarh. — Além disso, ele me deu tudo o que eu realmente queria.

A a’hïrzg puxou Jan para perto e deu um beijo em sua testa. — Com fome? — perguntou ela. — Eu mandei a cozinha preparar rétes doces de queijo. Sei que você gosta deles. — Allesandra conduziu o filho até a mesa, cheia de sucos e leite, com ovos, bacon, fatias de pão e manteiga, e uma travessa de delicados strudels com um queijo branco e cremoso escorrendo. — Sente-se à minha frente para que possamos conversar. — Ela passou a travessa de rétes para Jan e sorriu quando ele pegou um.

— A senhora parece cansada, matarh.

— É? — Allesandra levou uma mão ao rosto. — Eu mandarei minha criada cuidar disso. Esse será um longo dia.

Jan deu uma mordida no strudel e saboreou a doçura do mel no queijo e o toque delicado de amêndoa da massa folhada. Ele sentiu que era observado pelo olhar da matarh. — Isso a incomoda? — perguntou o filho impulsivamente. — O onczio Fynn ser hïrzg, quero dizer.

— Já pensei muito a respeito disso. — A mão de Allesandra foi à bochecha novamente. — Confesso que não consegui dormir ontem à noite, pensando sobre esse assunto... — Ela hesitou e baixou o olhar para a toalha de mesa — ... entre outras coisas.

Jan ficou com medo de que isso fosse tudo que ela diria. — E...?

Allesandra sorriu. — Eu decidi que não quero ser hïrzgin. Cénzi tem outros planos para mim.

Jan observou o rosto da matarh à procura de uma mentira. Ele não conseguia se imaginar dizendo tal coisa se estivesse na posição dela, se seu direito de nascença tivesse sido roubado daquela maneira. No entanto, não viu nada na expressão que contradissesse o que Allesandra falou. — Que bom — disse Jan.

Um leve sorriso tocou os lábios de Allesandra. — Por que isso é bom?

— Porque eu gosto do onczio Fynn.

Como neve no verão, o sorriso desmanchou-se. — Jan, uma de suas características que eu adoro é que você está disposto a confiar nas pessoas que gosta. Eu não quero que você perca isso, mas precisa ter cuidado com Fynn.

— A senhora mesma não o conhece de verdade, matarh. A senhora disse isso.

— Eu disse. E não o conheço, mas você também não, não depois de passar alguns dias com ele. Fynn tem um mau temperamento. Ele pode ser generoso com aqueles que acha que são aliados, mas se suspeitar que a pessoa está contra ele...

— Acho que a senhora está exagerando as coisas — interrompeu Jan. — O onczio Fynn não tem sido nada além que gentil comigo, e ele não acha que a senhora esteja do seu lado. Seja justa, matarh.

— Eu sou. Mais do que você imagina. O que você diria se eu falasse que ele ameaçou você?

— Eu não acreditaria — respondeu Jan por reflexo, depois se deu conta de que estaria chamando sua matarh de mentirosa. — A não ser que a senhora mesma tenha ouvido da própria boca de Fynn. — Ele inclinou a cabeça para Allesandra. — A senhora ouviu, matarh?

Ela já estava balançando a cabeça e respondeu — Não, não ouvi. Ainda assim... prometa-me que você tomará mais cuidado com ele.

— Claro que tomarei — disse Jan e foi recompensado com a volta do sorriso da matarh.

— Ótimo. Agora me passe a travessa de rétes? Estou morrendo de vontade de prová-los...

 

Sergei ca’Rudka

A NOTÍCIA NÃO era boa.

O comunicado — o último relatório das contínuas batalhas nos Hellins — veio por envio expresso de Munereo, passou pelo Strettosei até a grande ilha de Karnmor, cruzou o Nostrosei, que ficava entre Karnmor e o continente, até a cidade de Fossano, depois seguiu por mensageiro pelo A’Sele até Villembouchure, e de lá até Nessântico. Com ventos favoráveis e mensageiros que não se importavam em exaurir os cavalos, a mensagem levou duas semanas para chegar. O número de baixas era suficiente para Sergei balançar a cabeça tristemente. Ele passou o papel para o archigos Kenne; o homem mais velho espiou como um míope, segurando o comunicado tão próximo ao rosto que Sergei não conseguiu ver sua expressão.

— Você deve notar, archigos, que agora nós não controlamos nada nos Hellins além da área imediatamente ao redor de Munereo, com um braço ao longo do mar que se estende ao norte, na direção de Tobarro — disse Sergei com impaciência, enquanto Kenne penava com a letrinha compacta do comandante ca’Sibelli. — Ter mandado o a’offizier ca’Matin e seu batalhão para enfrentar o exército ocidental foi um erro, na minha opinião, mas é um erro que já está feito e pago a esta altura, eu suspeito. Espero que ca’Matin ainda esteja vivo; ele é um dos poucos bons offiziers que temos lá. Eu acho que teria sido melhor se ca’Sibelli tivesse recuado para uma posição de defesa contra esta última ofensiva, em vez de tentar repelir os ocidentais, mas ca’Sibelli nunca gostou de defesa. Nós já perdemos a área do lago Malik. Suspeito que perderemos Munereo a seguir.

— Você mostrou isso para Audric? Falou para ele o que acabou de dizer para mim? — Os olhos de Kenne apareceram acima da borda do papel amarelo e grosso, depois sumiram novamente. Sergei ouviu o homem murmurar para si mesmo enquanto lia.

— Sim. Ele falou: “o comandante ca’Sibelli fez exatamente o que eu mandaria que fizesse. É como eu disse: precisamos de mais tropas”. — Sergei fez uma pausa e olhou em volta do gabinete do archigos. Não havia mais ninguém ali, mas o regente abaixou a voz mesmo assim; nunca se sabia quem poderia ouvir atrás das portas. — Nós discutimos; eu pensei que ele fosse morrer na minha frente, Audric estava tossindo e respirando muito mal. Ele ficou olhando por cima de mim para o quadro da kraljica Marguerite e dizia... — Ele hesitou novamente, sem saber quanto queria compartilhar com Kenne. — ... coisas perturbadoras. Audric insiste em convocar o Conselho dos Ca’ e exigir que receba autonomia como kraljiki. Ele quer arrancar meu título; não quer um regente em Nessântico.

O fato pareceu frio, dito sem rodeios. Sergei tinha visto o que Kenne não viu: a maneira como os gritos distorceram as feições de Audric, a vermelhidão que subiu pelo pescoço do menino e cobriu as bochechas, as gotas de saliva que voaram da boca, os olhos arregalados e perturbados.


— Eu sou o kraljiki! — berrou Audric para Sergei com os braços agitados. — Você vai fazer o que eu mandar, regente, ou mando jogá-lo na Bastida! — As últimas palavras foram gritos, cada um berrado a cada tomada de fôlego. A histeria de Audric fez com que os gardai do corredor, bem como seus camareiros, Marlon e Seaton, abrissem as portas do quarto para dar uma olhada. Sergei gesticulou para que fossem embora, e as portas foram fechadas novamente. Audric olhou por cima do regente, que se virou para trás. O quarto estava um forno, quente demais para o gosto de Sergei, as chamas da grande lareira iluminavam o retrato de Marguerite sobre o consolo. Audric encarava a mamatarh com lábios que se moviam sem emitir palavras.

— Este relatório, Audric, é prova conclusiva de que...

— Você irá se dirigir a mim com o devido respeito, regente, ou mandarei açoitá-lo na praça do palácio.

Sergei permitiu-se respirar fundo e conteve a resposta que ameaçava escapulir. — Kraljiki, esse relatório demonstra que os Hellins já podem estar perdidos. Ca’Matin é o melhor offizier que temos lá; francamente, eu confio mais na avaliação dele do que na opinião do comandante ca’Sibelli. Se ele não conseguiu deter os ocidentais...

— Então a fúria de Nessântico cairá de forma plena sobre eles — berrou Audric, que depois foi tomado por um acesso de tosse...


O resto da conversa não seguiu melhor.

— Pode não ser uma loucura genuína, Sergei. Talvez a doença dele ou uma febre... — começou Kenne.

— Não importa — interrompeu Sergei. — Doença ou simples loucura; não há diferença se não pode ser curada. Kenne, eu mesmo pretendo ir ao Conselho dos Ca’ e pedir que declarem Audric incapaz.

Kenne abaixou o papel ao ouvir isso. Sergei viu a tremedeira nos dedos do homem e ouviu o farfalhar do papel. O archigos franziu os lábios como se tivesse provado algo desagradável. — Alguns deles pensarão que você está tentando conquistar o poder, Sergei, que isso não é nada além de uma tentativa sua de se colocar no Trono do Sol. É o que Audric dirá para eles, suspeito. Certamente é o que eu diria para os ca’ no lugar dele. Eu posso ver Sigourney imaginando a mesma coisa.

— É isso que você pensa, Kenne? Com certeza você me conhece melhor que isso. — Sergei deu um muxoxo de desdém, balançou a cabeça e andou de um lado para o outro na frente do archigos. Eu não quero ser kraljiki. O que eu quero é bem pior do que você ou qualquer um dos ca’ imagina, e se soubessem, todos se recusariam a me ajudar...

— Não, Sergei. De maneira alguma — falou Kenne rápido. Rápido demais, na verdade. O homem não olhava para ele, o que indicava a Sergei que também havia dúvida na cabeça do archigos. Isso era ruim; se Kenne se perguntava sobre as intenções do regente, então o Conselho dos Ca’ não teria problema algum em imaginar o pior. — Isso tudo é apenas... tão preocupante — continuou o archigos. — Eu não sei o que pensar. Declarar um kraljiki incapaz... — Ele balançou a cabeça, os dedos tamborilaram sobre o relatório. — Ele ainda é um menino, afinal de contas. Um jovem. Jovens muitas vezes dizem coisas que talvez não devessem ou se empolgam mais do que deveriam, e quando o menino em questão não só é um ca’, mas também foi a’kralj e agora é kraljiki, bem...

— A questão não é juventude e privilégio, Kenne. Você não esteve lá. Não ouviu o que eu ouvi e não viu o que eu presenciei. Você viu indícios da situação nas últimas vezes que esteve com ele, mas isso... O que ouvi de Audric agora era pura loucura. E um kraljiki louco também afetará a Fé.


— Eu pegarei todos os ténis-guerreiros e mandarei para os Hellins — gritou o menino. — Todos eles. Todos aqueles que a Fé puder me dar...


— Sei que você acredita nisso, Sergei.

— Mas?

Mãos tão secas quanto uvas velhas ergueram-se da escrivaninha e repousaram de novo. O olhar do archigos pareceu alcançar o nariz de Sergei, apenas para ver o reflexo distorcido ali e voltar a cair. — Eu sei que você se importa apenas com Nessântico, Sergei. Sei que tem os interesses dos kralji e da fé concénziana em mente. — O regente encarou Kenne, em silêncio. À espera. — Mas — continuou o archigos finalmente —, talvez alguém com as, hum, “habilidades” de Ana ainda possa ser encontrado, e nós possamos trazer o menino de volta da beira da ruína. Sergei, nenhum kraljiki jamais foi deposto pelo Conselho dos Ca’. Nunca. Este é um passo que você não pode dar levianamente. Esse é um passo que temo que vá falhar e destruir você.

— Acredite em mim, eu conheço os riscos. — Sergei levantou-se da cadeira e pegou o relatório na escrivaninha de Kenne. — A guerra nos Hellins custa dinheiro e vidas, Kenne, e nos força a olhar para o lado errado. Quanto mais durar a guerra por lá, mais perigosa ela se torna para os Domínios. Audric está convencido de que a guerra nos Hellins será o triunfo de Nessântico. Não será. Será nossa queda.

— Eu sei que é isso em que você acredita.

Sergei não conseguiu evitar totalmente que a voz demonstrasse irritação diante das evasivas do velho. — É o que eu sei. O que tenho que saber de você, Kenne, é se terei seu apoio.

Um aceno de cabeça. — Eu quero apoiar você. Quero mesmo. Mas primeiro preciso rezar, Sergei. Você diz que acredita. Eu quero acreditar também e confio em Cénzi para me ajudar. Deixe-me rezar. Amanhã... nós nos falaremos, amanhã ou no draiordi no máximo...

Inútil. Isto é inútil... Sergei deu um sorriso falso e fez uma mesura e o sinal de Cénzi para o archigos. — Eu mesmo rezarei em seu nome, archigos, para que Cénzi fale com você em breve. — E é melhor que Ele fale. É melhor ou Nessântico poderá se ver esmagada entre as pedras do leste e do oeste.

Serguei pegou o comunicado da escrivaninha de Kenne. Ele foi até a lareira do gabinete do archigos e deixou o papel flutuar sobre as chamas. Viu o papel escurecer, enroscar-se, soltar fumaça e finalmente pegar fogo.

Ele imaginou a cidade fazendo a mesma coisa.

 

Nico Morel

NICO JAMAIS HAVIA SEGUIDO Talis antes. A matarh do menino trabalhava em uma taverna depois da esquina e do beco próximos à casa deles. Se Talis trabalhava, não era como os outros homens da vizinhança: em uma loja; como aprendiz de algum mestre; como um simples trabalhador, talvez nos engenhos onde gigantescas mós eram movidas pelos cânticos dos e’ténis, ou nas fundições ardentes do lado de fora das velhas muralhas da cidade, cujas fornalhas ardiam com o fogo do Ilmodo e dos cânticos de e’ténis de diferentes habilidades — que, em troca dos serviços, recolhiam uma porção dos lucros para a fé concénziana.

Nico ouvia a matarh ou outras pessoas no Velho Distrito reclamarem muito a respeito disso, que a Fé metia as mãos nos bolsos de cada grande indústria na cidade. A fofoca provocou pensamentos estranhos em Nico: ele imaginava mãos compridas em mangas verdes que saíam dos templos para arrancar moedas das bolsas da população. O menino perguntou-se por que os ténis precisavam fazer isso, pois sua matarh e todos os demais colocavam moedas nas cestas a cada cénzidi quando iam ao templo. Se Nico tivesse tantas moedas assim, ele poderia comprar um palácio na margem sul para viver com a matarh e Talis.

Talis...

Nico estava brincando de chute o sapo na rua com alguns dos outros meninos. Ele estava ganhando: já tinha chutado três vezes na poça o saco cheio de palha que era o sapo, mas seu amigo Jordis conseguira apenas uma vez, e os demais, nenhuma. Nico era bom em chute o sapo. Às vezes, quando jogava, ele sentia um frio estranho por dentro e quase era capaz de ver o sapo ir à poça, e quando chutava, o sapo espirrava bem dentro da água.

Nico retirou o sapo encharcado da poça pela quarta vez quando viu Talis sair da porta de casa e começar a subir a rua. Ele chutou o sapo para Jordis e os outros. — Volto já — disse o menino, e correu atrás de Talis.

Desde que viu Talis com a tigela de latão, ele andou vigiando atentamente seu vatarh sempre que podia. Nico viu e ouviu coisas estranhas quando Talis pensava que ele estava dormindo, até mesmo quando sua matarh estava dormindo também. Talis entoava e gesticulava igual a um téni, geralmente com a bengala diante de si. Quando ele fazia isso, Nico sentia os filamentos de frio no ar até que a bengala parecesse sugá-los para dentro.

Era muito estranho, mas as palavras — elas quase soavam como as palavras de sonho que Nico às vezes escutava, e ele queria saber mais.

A princípio, Nico tinha intenção de simplesmente alcançar Talis e perguntar aonde ele ia, mas quando o vatarh virou no primeiro cruzamento, com a bengala batendo nos paralelepípedos e andando em passos rápidos, como se estivesse com pressa para chegar a algum lugar, o menino decidiu ficar para trás e apenas observá-lo.

Talis andava tão depressa que Nico quase teve que correr para acompanhá-lo. Algumas vezes, quando ele virou para a esquerda ou direita no confuso emaranhado de ruas, o menino quase o perdeu, e quanto mais longe os dois iam, mais assustado Nico ficava — ele não sabia mais onde estava. Nem sabia qual seria o caminho de casa, ficou confuso pelas ruas sinuosas e tortuosas do Velho Distrito.

A luz do sol surgiu de repente à frente, e ele viu Talis fazer uma curva fechada à esquerda. Nico correu atrás do vatarh. O menino viu-se na confluência de um beco com o grande rio da Avi a’Parete, a enorme avenida que cercava o trecho interior da cidade. Ele foi atacado pelas cores, barulhos e movimento: as bashtas e tashtas de todos os tons e padrões imagináveis, as carruagens que passavam em meio às multidões (olha — aquela não tinha cavalos, apenas um téni como condutor, com um a’téni dentro), mil pessoas indo a algum lugar ao mesmo tempo: falando ou em silêncio, sérias ou rindo, juntas ou sozinhas. Os vendedores espalhados pelos muros anunciavam suas mercadorias; condutores gritavam alertas ou tocavam os sinos de aviso; uma dezena de conversas passou por Nico em um instante e foi substituída por outra dezena.

Os prédios aqui, ao longo da avenida mais famosa de Nessântico, pareciam tão grandiosos e altos quanto aqueles na margem sul, embora mais apinhados de gente e mais velhos. À esquerda, Nico viu píeres de uma ponte arqueada que levava à Ilha A’Kralji, onde o kraljiki e o regente viviam. No entanto, em meio à grandiosidade havia sinais de que nem todo mundo na cidade vivia tão bem. Mendigos sentavam-se encolhidos nas esquinas; a mais próxima de Nico, envolta em trapos imundos, parecia ter apenas um braço e o mesmo número de dentes na boca de gengivas vermelhas. Seus olhos eram brancos com cataratas, como a velha cega que morava do outro lado da rua de Nico.
O único braço, que chacoalhava uma caneca surrada de madeira com algumas d’folias de bronze no fundo, tinha uma mão com dedos de menos. A multidão que passava por ela ignorava a mendiga na maioria das vezes, como se as pessoas não a vissem.

Nico percebeu que não fazia ideia de para onde Talis havia ido na multidão. Ele olhou para a esquerda, depois para a direita, e o pânico subiu do estômago para a garganta. O menino correu na direção que achava que Talis tinha ido.

Uma mão agarrou seu ombro; Nico levou um susto e quase gritou.

— O que você está fazendo aqui, Nico? Por que está me seguindo? — Talis franziu a testa para ele, seus dedos agarraram o pano da camiseta de Nico.

O alívio conquistou o medo; Nico exclamou — Talis! Eu estava... você saiu e pensei em ver onde você estava indo e se eu podia ir junto, e aí eu já estava longe demais e fiquei com medo de que estivesse perdido.

A cara feia de Talis desmanchou-se aos poucos. — Você não sabe o caminho de casa?

Nico balançou a cabeça. — Por ali? — perguntou Nico hesitante ao apontar para um dos prédios atrás dele.

Talis bufou. — Só se você quiser tomar um banho no A’Sele. Eu devia simplesmente deixar você aqui — ele começou a falar, e o coração de Nico passou a bater mais forte, lágrimas surgiram em seus olhos, mas o homem continuou —, e Serafina me mataria se descobrisse. Eu já estou atrasado. Você terá que vir comigo, Nico.

Nico concordou enfaticamente com a cabeça. Ele abraçou Talis pela cintura quando o homem colocou a mão em sua cabeça e puxou-o para perto. — Sem me atormentar com perguntas, entendeu? Preciso encontrar uma pessoa.

— Quem você vai encontrar? — perguntou Nico, que engoliu em seco. — Desculpe, Talis — disse o menino, mas o homem já estava rindo.

— Você é um caso perdido, sabia? Vamos. Fique perto de mim, agora.

Com Nico correndo ao lado dele, Talis cruzou a Avi a’Parete, desviou-se de grupos de pessoas a passeio e parou aqui e ali para deixar uma carruagem passar, depois correu pelo caminho do próximo veículo. Quando os dois finalmente chegaram ao outro lado, Talis rapidamente entrou em uma pequena rua transversal, e a agitação, cores e glória da Avi a’Parete sumiram como se nunca tivessem estado lá. Eles viraram à esquerda, depois à direita, enquanto seguiam por uma viela estreita e tortuosa, e surgiram de repente — como se uma floresta feita de casas e prédios fosse contraída em um espaço diminuto — em uma área aberta.

Nico sentiu o cheiro do A’Sele antes de ver o rio: o fedor de peixe morto, dejetos humanos e água oleosa. Eles estavam em um mercado com dezenas de barraquinhas dispostas em fileiras ao longo da margem. À esquerda, Nico viu — do outro lado, desta vez — o grande arco da Pontica A’Kralji, e nas águas reluzentes do A’Sele, a Ilha A’Kralji com o Palácio do Kralji, o Velho Templo e a Residência do Regente. O menino olhou fixamente, depois se deu conta, com atraso, de que Talis já percorria os corredores do mercado, e andou rápido para alcançá-lo. Agora Nico descobriu que mal conseguia manter o olhar em Talis; ele não parava de ser distraído pelas mercadorias nas barraquinhas: grandes pilhas de cebolas, ervas penduradas para secar, peixes frescos e secos, facas brilhantes e pedras reluzentes, rolos de tecido, tamborins e alaúdes, montanhas de maçãs... — Isso aqui é melhor do que o mercado do Velho Distrito — falou ele em uma voz que ecoou seu deslumbramento.

— Isso não é nada — disse Talis. — Eu soube que na época da kraljica Marguerite dava para ouvir as bancadas gemerem com o peso das mercadorias que chegavam pelo A’Sele de todas as partes do mundo conhecido. Não dava para andar aqui por causa das multidões e dos vendedores. Qualquer coisa que se quisesse era possível comprar aqui, não importa o que fosse. — Talis parou. Eles estavam diante de uma barraca protegida do sol por um pano grosso e forrado. Na penumbra sob o toldo, uma grande forma moveu-se. Nico apertou a vista e protegeu os olhos com a mão. O dono da barraca era musculoso, tinha braços grossos que saíam das mangas soltas de uma bashta decorada com um desenho que lembrava talos de trigo. Ele abaixou o corpo, e Nico viu que o rosto era marcado por estranhas linhas brancas, como se a pele estivesse em carne viva. Entre as linhas, a pele intacta era quase da cor de cobre lustroso, como de uma pessoa das províncias do sul.

— Quem é o garoto? — perguntou o homem para Talis. A voz tinha um sotaque carregado que Nico não reconheceu até que Talis respondeu; aí ele notou que era uma versão mais forte e evidente do próprio sotaque do vatarh.

— Meu filho. Nico. — Talis deu um tapinha no ombro do menino com a bengala. — Não se preocupe com ele.

— A matarh do garoto faz você brincar de babá agora, Talis? Mahri ficaria tão orgulhoso.

— Cale a boca, Uly.

O homem riu como se tivesse achado graça no diálogo. Ele falou por um instante em uma língua complemente diferente, e Nico ouviu Talis responder no mesmo idioma. Talis entrou debaixo do toldo com o sujeito. — Fique aqui — falou ele para o menino. — Você pode olhar o que Uly tem para vender, mas não nos incomode.

Nico ouviu os dois homens conversarem na estranha língua deles enquanto mexia à toa nas mercadorias sobre as bancadas de Uly. Ouviu o nome “Mahri” mais algumas vezes. Finalmente, Uly derramou vários punhados de um pó preto e granulado em um saco de couro e entregou para Talis, que amarrou no próprio cinto. Os dois falaram por mais um momento, depois Talis pegou Nico pela mão e conduziu o menino para fora da barraca, na direção da Avi a’Parete. As perguntas saíam espontaneamente de Nico — ele não conseguia mais segurá-las.

— Você e Uly são do mesmo país?

— Sim, originalmente, embora nós dois estejamos longe de lá há muito tempo.

— Você é de Namarro?

— Não. — Talis não disse mais nada, e Nico permaneceu em silêncio enquanto eles cruzavam a avenida e entravam nas ruelas populosas do Velho Distrito novamente.

— Quem é Mahri, Talis?

— Ninguém hoje em dia. Ele está morto.

— Quem era ele, então? — insistiu Nico.

— Ninguém importante.

— Uly disse que Mahri ficaria orgulhoso de você. E eu ouvi Uly mencionar Mahri outra vez também.

— Você vai continuar a me amolar, não vai?

Nico ergueu o olhar para Talis, que não pareceu muito irritado, então ele concordou com a cabeça. — Você conheceu Mahri? Ele era seu vatarh?

Talis riu, embora Nico não soubesse o que tinha dito de tão engraçado, e balançou a cabeça. — Não. Mahri não era meu vatarh, e eu jamais o conheci. Apenas sabia a respeito dele.

— Por quê?

— Porque diziam que Mahri era capaz de fazer coisas que ninguém mais conseguia. Eu pensei ter dito sem perguntas.

Nico ignorou a última frase. — Que coisas?

Talis soltou um suspiro com tom de irritação. — Coisas que nem os ténis conseguem fazer com o Ilmodo deles.

— Ah. — Nico ficou calado ao ouvir aquilo. Todo mundo sussurrava que os ténis conseguiam fazer praticamente tudo com o Ilmodo, e havia rumores de que a archigos Ana também era capaz de fazer tudo que os numetodos faziam. Mas Nico sabia que Talis não acreditava em Cénzi e nem ia ao templo. Então talvez Mahri fosse um numetodo? E os ocidentais também não usavam magia? Ou talvez houvesse vários tipos de magia pelo mundo.

— Você quer ser igual a Mahri? — perguntou Nico.

Ele viu Talis levantar um canto da boca. — Isso depende do que você quer dizer, Nico. Eu não quero estar morto. — O homem riu, mas Nico torceu o nariz em uma careta de irritação.

— Não foi isso que eu quis dizer.

Talis abaixou a mão e desgrenhou o cabelo do menino, mas Nico deu um passo para trás. — Eu sei que não é o que você quis dizer — falou Talis. — E não acho que eu jamais queira ser como Mahri. Agora, será que nós podemos tentar chegar em casa antes que Serafina perceba que você saiu e vire a vizinhança inteira de cabeça para baixo à sua procura?

Talis parou de falar, pegou a mão de Nico e apertou o passo. A bolsa de couro macio e seu pó escuro balançaram no cinto. Nico espiou de rabo de olho enquanto os dois andavam.

Ele continuaria a ficar de olho em Talis. Talvez pudesse aprender a fazer magia também. Afinal de contas, os numetodos diziam que a maioria das pessoas podia fazer magia caso se esforçasse bastante. Nico era esforçado: ele sempre vencia no chute o sapo porque se esforçava bastante. Quando a pessoa fazia isso, era capaz de sentir a energia fria.

Ele ficaria de olho em Talis. Aprenderia a fazer o que Talis fazia.

 

Varina ci’Pallo

SE ELA FOSSE FORÇADA a seguir a carreira de espiã, Varina teria sido capturada e executada no primeiro dia.

Ela encostou o corpo na lateral de um boticário no limite do centro do Velho Distrito, olhou fixamente para a multidão reunida sob o sol intenso e procurou entre as pessoas por um rosto familiar, um que ela tinha perdido no labirinto do Velho Distrito. Varina ofegava um pouco pelo esforço de tentar alcançar o homem depois que ele fez uma curva brusca — ela chegou à esquina e viu que o sujeito não estava ali. Ele desapareceu.

— O que você pensa que está fazendo?

A pergunta, que surgiu atrás dela, assustou-a. Varina deu meia-volta com as mãos erguidas, pronta para falar uma palavra e lançar um rápido feitiço de repulsão, mas uma mão pegou seu braço quando ela se virou e a impediu de conjurar o feitiço, e ela olhou para o rosto que andou procurando.

— Karl...

Ele soltou a mão de Varina e deu um passo para trás. Ela não soube dizer se Karl estava irritado ou não. — Você estava me seguindo. — O olhar, como um mar revolto, sustentou o de Varina.

— Sim — admitiu ela.

— Por quê?

— Porque estou preocupada com você.

Ele riu como se tivesse achado graça. Isso deixou Varina mais irritada do que a expressão dele. — Você ou Mika? — vociferou ele. — Ou talvez Sergei?

Varina sustentou o olhar de Karl com ar de desafio e queixo empinado. Afastou o cabelo do rosto. — Todos nós. Todo mundo que conhece e gosta de você está preocupado, Karl, apesar de parecer que você não nota. Segui-lo foi minha ideia, porém. Não foi de Mika, nem de Sergei. Portanto, você pode gritar comigo se quiser, mas não com eles. Os dois não sabem.

— Eu não sou uma criança que precisa ser vigiada.

— Perdão. Não deixarei de contar isso para Sergei e para o embaixador co’Görin. Ambos ficarão contentes ao saber que você amadureceu.

Karl torceu o nariz novamente. — Aquilo foi um erro. Eu não o repetirei.

— Karl, você se convenceu de que foram os firenzcianos e estava pronto para ser juiz e executor em relação a eles. Agora está igualmente convencido de que é uma trama dos ocidentais e está perseguindo o fantasma de Mahri. Eu estou preocupada com você, sim. Mahri está morto; você não o encontrará. E estou ainda mais preocupada com o que você fará se encontrar algum ocidental, alguém que pode ser completamente inocente. Não sei dizer de outra forma que não sendo direta: faça o que Sergei lhe disse, deixe que eles tomem conta da investigação. Você não os está ajudando, nem a si mesmo.

— E o que eu devo fazer, Varina? — perguntou Karl. Ele contorceu o rosto, a pele abaixo dos olhos estava escura e empapuçada. Karl não aparava a barba há dias.

— Você disse que estava interessado no que eu poderia mostrar sobre o encantamento de objetos. Deixe-me ensinar para você. Vamos trabalhar nisso juntos. Eu certamente poderia contar com sua ajuda e seu conhecimento. Isso poderia tirar sua mente... — ela olhou ao redor — ... desta situação.

— Você não consegue entender. — Karl rangeu os dentes. — Apenas me deixe em paz. — O olhar de desprezo de Karl foi como um tapa na cara de Varina.

— Você já foi bastante magoado, Karl. Eu não quero vê-lo piorar as coisas para si mesmo.

— Eu não preciso de sua piedade, Varina, e não quero nem preciso de sua ajuda — disparou Karl. As palavras machucaram Varina. — O que eu preciso fazer para deixar isso claro para você?

— Você acabou de deixar. Deixou bem claro mesmo. — Dito isso, ela gesticulou para o espaço aberto e ensolarado do centro do Velho Distrito. — Vá em frente. Eu não seguirei mais você.

Com isso, sem arriscar uma olhadela para trás, Varina começou a ir embora para o sul, na direção da Casa dos Numetodos. Ela não olhou para trás. Varina disse para si mesma que não queria ver se Karl a observava ou não.

 

Allesandra ca’Vörl

BESTEIGUNG. O CERIMONIAL de coroação do novo hïrzg.

O dia nasceu brilhante e cooperativo, com o céu de um azul exuberante onde navios de nuvens brancas iam embora para o oeste. O calor cedeu, foi afugentado pela chuva purificadora da noite anterior. Cénzi abençoou o dia, e os ténis estavam radiantes, como se o lindo dia tivesse sido causado por suas preces.

Talvez tivesse sido mesmo.

Allesandra também rezou para Cénzi. Rezou para que o dia fosse como ela esperava, que não tivesse interpretado errado os sinais. E embora tenha rezado, Allesandra também fez questão de levar uma adaga embainhada no antebraço, debaixo das franjas e rendas da manga da tashta. Ela aprendeu há muito tempo com seu vatarh que jamais deveria estar sem uma arma.

O dia seria longo para Fynn — e para aqueles, como Allesandra, que eram obrigados a acompanhá-lo. Primeiro veio a cerimônia no Templo de Brezno na Primeira Chamada, onde o archigos deu ao novo hïrzg a Benção de Cénzi. Depois houve as exigidas visitas de estado: à tumba do hïrzg Kelwin, primeiro hïrzg de Firenzcia; ao templo perto do Palácio do Hïrzg, que continha um frasco de sangue de Misco, o fundador de Firenzcia; ao grande pedregulho rachado perto da praça principal de Brezno, onde diziam que os moitidis — a pedido de Cénzi — mandaram um furioso raio à terra para fulminar o exército de Il Trebbio, que invadira Firenzcia em 183 durante a Guerra das Três Gerações. Em cada local, aconteciam as cerimônias e os discursos obrigatórios, e os ca’ e co’ ouviam com atenção, gratos por não haver chuva torrencial, frio de rachar ou calor úmido para suportar além da frases imbecilizantes já esperadas.

Então veio a procissão final à nova estátua de Falwin I, erigida por Jan, o vatarh de Allesandra, após ele decretar a separação de Firenzcia dos Domínios — foi Falwin que liderou a revolta tragicamente malsucedida contra o kraljiki Henri VI em 418, e foi ali que Fynn erigiu o palanque onde, finalmente, a Coroa e o Anel de Firenzcia seriam oficialmente declarados como seus.

Quando o archigos ca’Cellibrecca passou por Allesandra na carruagem conduzida por um téni a caminho de seu lugar na fila de dignatários, ele inclinou-se para fora da janela e mandou o condutor parar o veículo. O e’téni interrompeu o cântico e as rodas desaceleraram. O archigos acenou para Allesandra sobre o símbolo do globo partido de Cénzi, pintado em ouro e lápis-lazúli. — Com licença um instante — disse ela para Jan e Pauli. Jan deu de ombros para a matarh; Pauli, envolvido em uma conversa com uma jovem bonita da família ca’Belgradin, não deu resposta alguma. Allesandra foi até a carruagem do archigos e fez o sinal de Cénzi para Semini. Francesca estava sentada ao lado do marido, nas sombras. — Cénzi sorriu para Fynn.

— É verdade — respondeu Semini. Ele diminuiu o tom de voz, o bastante para Francesca não ouvi-lo, praticamente inaudível com o tumulto dos músicos que começavam a marcha da procissão. — No entanto, a’hïrzg, eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque.

— Archigos?

Ele olhou para o fim da fila, onde aguardava a carruagem de Fynn, puxada por quatro cavalos brancos, um deles sem cavaleiro. — É realmente um lindo dia — falou Semini, mais alto agora. — Um bom dia para toda Firenzcia, creio eu. Condutor, eles nos esperam.

O e’téni recomeçou o cântico; as rodas rangeram ao começarem a girar novamente. Allesandra afastou-se da carruagem no momento em que Semini acenou com a cabeça para ela e recostou-se no assento estofado ao lado de Francesca, que lançou um olhar azedo para a a’hïrzg quando eles passaram. Allesandra viu o veículo entrar na fila logo atrás da carruagem do hïrzg.

Ela passou o dia nervosa, imaginando se ca’Cellibrecca realmente tinha a intenção de levar a cabo o que havia insinuado — ele não faria nada por conta própria, obviamente, mas trabalharia através de uma camada de intermediários; se algo fosse acontecer, o archigos também gostaria que acontecesse em público, onde poderiam ver que ele não estava envolvido, e onde houvesse maior impacto. Era exatamente o que ela mesma teria feito.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”

Allesandra sentiu um arrepio de medo sobreposto pela empolgação. Ela queria voltar correndo para o archigos e sussurrar três palavras para ele: “a Pedra Branca?” Se Semini concordasse com a cabeça, então o que Allesandra planejou seria realmente uma trama perigosa, dadas as lendas sobre o assassino. Diziam que a Pedra Branca mataria qualquer um que tentasse interferir na execução de um contrato. A Pedra Branca, diziam os mesmos rumores, era um mestre no uso de todas as armas; não havia ninguém que pudesse cruzar espadas com ele. Porém, a Pedra Branca sempre atacava suas vítimas isoladamente, não no meio de multidões. Não poderia ser ele... pelo menos Allesandra torcia para que não fosse.

Seja qual fosse o caso, o assassinato ocorreria em breve, então. E não importava a maneira como isso aconteceria, ela seria a pessoa que mais lucraria, se tomasse cuidado. Allesandra voltou a se juntar à família. — O que o archigos queria, matarh? — perguntou Jan. Pauli continuou conversando com a ca’Belgradin.

— Queria falar do tempo e, de acordo com Francesca, creditar-se por isso — disse Allesandra. Jan riu. — Sim, eu sei, a mulher não é nada além de previsível. Vamos pegar nossa carruagem, querido. A procissão está começando a andar. Pauli, odeio interromper sua tentativa de impressionar a jovem vajica, mas temos nosso dever...

Com uma careta de irritação, Pauli interrompeu a conversa e seguiu na direção de Allesandra, que seguia Jan até a carruagem aberta logo à frente do archigos. Ela viu que estavam sendo observados por Semini e Francesca, e acenou com a cabeça para ele. — Você não precisava ser tão estridente, minha querida — falou Pauli.

— E você não precisava ser tão óbvio — respondeu Allesandra. — Mas essa não é uma conversa que deveríamos ter em público, Pauli.

— Essa não é uma conversa que deveríamos ter de forma alguma, no que me diz respeito. — Pauli entrou na carruagem. Ele ajeitou o corpo desconfortavelmente no couro elegante do assento e bateu nas almofadas com os dedos. O som foi tão agudo e alto quanto se ele tivesse batido em madeira, e a almofada mal afundou. — Firenzcia tem um talento para fazer algo parecer atraente quando na verdade é extraordinariamente desconfortável — comentou Pauli. — Mas eu sei que você já tem intimidade com essa característica, minha querida.

— Vatarh! — falou Jan com rispidez, e Pauli, estranhamente, virou-se para olhar para fora da janela da carruagem. Allesandra sentiu o rosto ficar quente, mas não disse nada. Eles chegariam ao palanque em uma marca da ampulheta, e o dia seria o que seria. De qualquer maneira, Pauli acabaria sendo tão irritante quanto uma mosca, e ela enxotaria o marido com a mesma facilidade quando o momento certo chegasse. Com alívio.

A carruagem deu um solavanco e começou a andar, e por cerca de meia virada da ampulheta eles passaram pela principal avenida de Brezno, com as laterais apinhadas de moradores da capital e das cidades vizinhas. Todos eles vibravam e gritavam, empurravam e acotovelavam os utilinos e gardai posicionados ali no esforço de ver a elite de Firenzcia, os grandes visitantes de outros países da Coalizão Firenzciana e o novo hïrzg.

A praça ao redor da estátua de Falwin estava lotada por uma massa compacta, as carruagens da realeza percorreram um caminho aberto pelos gardai. Ao lado do palanque, eles foram escoltados pela subida por uma larga escada temporária até os lugares à sombra da estátua de Falwin. O antigo hïrzg erguia braços de bronze sobre eles, com a enorme espada em riste. Allesandra podia sentir o som da multidão, os gritos e aplausos aumentaram quando Fynn apareceu na plataforma, com as mãos estendidas como se fosse abraçar todo mundo. Ele regozijou-se com a adulação da multidão, destacado pela luz intensa do sol. Allesandra sentiu uma pontada de inveja ao ver o irmão.

A a’hïrzg estava logo à esquerda de Fynn com Jan próximo a ela, a seguir Pauli (que já se virava de costas para falar com a moça ca’Belgradin novamente); Semini estava à direita do hïrzg com a coroa de archigos na cabeça e o robe cerimonial dourado e esmeralda. Allesandra olhou de relance para ca’Cellibrecca, parado ao lado da azeda Francesca, que parecia ser a única que não estava completamente impressionada com os eventos. Semini acenou com a cabeça sutilmente.

Quando? Quem? Como?

Fynn começou a falar, a voz foi amplificada pelos esforços de dois o’ténis que entoavam um cântico baixinho de ambos os lados do hïrzg. Ela retumbou sobre as massas, a voz possante de um semideus que gritava dos céus. — Firenzcia, estou diante de vocês como seu criado e agradeço humildemente pela dádiva de sua confiança.

Um rugido respondeu ao hïrzg, que ergueu os braços novamente. Porém, a atenção de Allesandra foi desviada. A a’hïrzg vasculhou a linha de frente da multidão, vasculhou as pessoas com ela na plataforma. Havia gardai no parapeito do palanque de ambos os lados de Fynn, que olhavam fixamente para fora e para baixo — certamente eles veriam algo preocupante ali antes que estivesse visível para ela.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”. Um ataque mágico então? Uma bola de fogo como aquelas dos ténis-guerreiros? Semini tinha sido um téni-guerreiro, afinal. Mas o archigos certamente não usaria o Ilmodo ou arriscaria que outra pessoa usasse quando tal coisa atrairia suspeita para os ténis e, portanto, para ele.

— Como seu hïrzg, eu prometo que continuarei com o desejo de meu vatarh de tornar Firenzcia a primeira entre todas as nações...

Allesandra deu uma olhadela para trás. Os ca’ e co’ e dignatários visitantes estavam dispostos atrás dela, e, ao fundo, os criados aguardavam. Não havia nada anormal ali. Allesandra começou a se virar novamente quando um movimento chamou sua atenção.

— ... um sonho que deseja ver Brezno como o centro do mundo...

Um dos criados vinha à frente com uma bandeja e uma jarra de água. Ele andava lentamente pelas fileiras, murmurava desculpas ao passar cuidadosamente pelas pessoas. Andava na direção de Fynn. A atenção do criado jamais pareceu deixar o irmão de Allesandra, que se assustou com alguma coisa na intensidade do olhar do homem. Semini, na ação mais indicativa de todas, sussurrou algo para Francesca e deslizou para longe de Fynn, na direção do outro lado da plataforma.

Existem aqueles que usam magia e são inimigos de Firenzcia, que matariam o novo hïrzg de bom grado e não levantariam suspeitas sobre o archigos, de maneira alguma. Allesandra sentiu um arrepio de medo; ela não estava mais certa de seu plano. Tinha esperado que o ataque fosse físico: uma faca, uma espada, uma flecha. O vatarh não teria hesitado, não se pensasse que ainda havia uma chance de sucesso. E você é a filha dele, a mais parecida com ele...

— Jan — disse ela ao se inclinar para o filho. — Aquele homem, o criado atrás de nós, que está avançando com a bandeja; não, não olhe diretamente para ele, mas você o vê?

Jan moveu a cabeça rapidamente para a esquerda, depois voltou. — Sim.

— Ele é um numetodo. Um assassino.

Jan pestanejou. — O quê?

— Acredite em mim — sussurrou Allesandra furiosamente. No palanque, Fynn ainda declamava. “Um novo dia para Firenzcia, um novo alvorecer...” — Quando ele pousar a bandeja, tudo que ele precisa fazer é falar uma palavra e gesticular com as mãos; não podemos deixar que isso aconteça. Vou confrontá-lo para atrasá-lo; você vem pelo lado. Ande! — Ela empurrou o filho. Com uma olhadela, Jan virou-se e murmurou desculpas enquanto escapuliu para os fundos, através das fileiras dos ca’ e co’. Pauli olhou para eles, curioso, e depois voltou sua atenção para a jovem ca’Belgradin. Allesandra entrou cautelosamente atrás de Fynn e virou-se para encarar o criado.

Havia apenas poucas pessoas entre eles. O criado com a bandeja parou ao ver que ela virou-se para encará-lo, e seu rosto ficou tenso. Por um momento, Allesandra pensou que estivesse enganada, que o homem não era nada mais do que fingia ser. Mas os próximos instantes jamais seriam esquecidos por ela.

... o criado jogou a bandeja para o lado (os ca’ e co’ perto do homem reagiram tarde demais quando a bandeja, a jarra, a caneca e a água caíram em cima deles). O sujeito ergueu as mãos como se fosse rezar...

... Allesandra atirou-se em cima do criado, apenas para ser impedida pelas pessoas entre eles, que contiveram seu avanço...

... um fogo surgiu entre as mãos do assassino quando ele bradou uma única palavra que soava como a língua dos ténis. Allesandra esperou morrer naquele momento, consumida pelo fogo mágico que também mataria seu irmão...

... mas Jan esbarrou no numetodo na hora em que ele abriu as mãos, derrubando o criado. (Em volta dos dois, bocas eram escancaradas em meio aos gritos, a maioria dos ca’ e co’ ainda não tinha se dado conta do que acontecia e perguntava-se por que tinha sido empurrada por este jovem mal-educado ou por que aquele criado trapalhão arruinara sua roupa elegante. Atrás dela, Allesandra ouviu Fynn gaguejar e ficar calado. Ela podia imaginá-lo se virando devagar para ver a comoção às suas costas.) O fogo mágico fez um arco para os lados e para cima, em vez de ir na direção de Fynn e Allesandra. Os ca’ e co’ gritaram quando foram tocados pelo fogo, que irrompeu entre eles e virou uma bola de fogo que explodiu na altura dos olhos da estátua de Falwin. Uma luz vermelha pulsou e morreu, mais intensa que o sol, e agora a multidão gritava também.

— Jan! — berrou Allesandra, em pânico. Ela avançou para chegar até o filho, que parecia incólume e brigava com o numetodo, embora o homem parecesse curiosamente letárgico nas mãos de Jan, como se atordoado pela reviravolta. Ao redor dos dois, havia caos. Allesandra ouviu Fynn gritar.

Ela sacou a adaga da manga, ajoelhou-se rapidamente, cravou a arma debaixo do queixo do homem e puxou para o lado com violência. O sangue jorrou como um chafariz, espesso e grosso ao escorrer pela mão e pelo braço de Allesandra. — Matarh! — disse Jan, e ela ouviu o horror na voz do filho quando o sangue também espirrou sobre ele. Mãos agarraram os dois; os gardai chegaram com espadas em punho e empurraram os ca’ e co’ para o lado. Fynn berrava ordens.

— Quem fez isso? — Allesandra ouviu o irmão gritar às suas costas. Ela virou-se para Fynn com a parte da frente da roupa arruinada pelo sangue.

— Meu filho salvou sua vida e a minha, meu hïrzg, meu irmão. E eu garanti que este assassino jamais ataque você novamente.

A sombra fria da estátua de Falwin tocou Allesandra. Ela viu o archigos ca’Cellibrecca atrás de Fynn, e a confusão e a dúvida lutavam com o horror na cara barbuda de Semini. Allesandra achou que havia quase uma decepção no jeito como Fynn olhava para o corpo. Pauli chegou à frente e parou estupefato ao lado de Fynn quando Allesandra deixou a adaga cair dos dedos. A arma fez um barulho alto sobre as tábuas do palanque.

— Eu preciso me limpar dessa imundície — disse Allesandra calmamente. — Fynn, fale com seu povo. Acalme as pessoas. Tranquilize-as. Isso é o que o hïrzg precisa fazer.

Ele torceu o nariz para a irmã: Fynn sempre fazia cara feia quando alguém ousava dar uma ordem para ele. Mas o hïrzg virou-se para a multidão horrorizada e preocupada e começou a falar.

 

 

A Pedra Branca

ELA ASSISTIU À TENTATIVA de assassinato no meio da multidão, a salvo e sem ser notada. Que trapalhada horrível, pensou a Pedra Branca, enquanto as pessoas ficavam boquiabertas, gritavam e berravam à sua volta. Uma trapalhada estúpida ainda por cima.

Uma faca era uma arma bem melhor do que magia. Furtividade era muito melhor do que um ataque brutal. Deve-se estar presente para ver os olhos da vítima quando se ataca. Deve-se sentir o calor no sangue escorrendo pelas mãos.

Ela aprendeu as habilidades com faca na tenra idade, nas ruas populosas de An Uaimth. O corpo ainda tinha as cicatrizes daquelas lições, e a Pedra Branca pensou mais de uma vez que morreria por causa delas. Seus professores foram a escória da sociedade, gente corrompida e sombria, violenta e perturbada demais para ser tolerada pela sociedade educada. Eram perigosos, e ela viu-se abusada, usada e machucada por eles mais de uma vez. Porém, os professores tinham as habilidades físicas que a Pedra Branca queria ter, adquiridas com sangue, dor e fúria. Ela aprendeu bem essas lições e tirou de cada um deles o que foi possível.

A Pedra Branca jamais deixaria alguém se aproveitar dela. Jamais seria fraca. Jamais se deixaria ficar vulnerável.

Ela teve que matar alguns de seus “professores” quando ficaram muito perigosos ou tentaram se aproximar demais, quando começaram a bisbilhotar ou adivinhar seus segredos. Ela deixou seu cartão de visitas com cada um deles, um seixo branco sobre o olho esquerdo. A Pedra Branca... Ela começou a ouvir o nome sussurrado nas ruas. O assassino sempre deixa uma pedra branca no olho esquerdo...

As pessoas sempre presumiam que era “ele, o assassino”; isso também era uma proteção. Ela podia andar por qualquer lugar e nunca ser suspeitada.

E nunca se soube que eram sempre duas pedras; que ela tirava uma do olho direito da vítima para manter consigo. Para manter as vítimas consigo.

Aquela pedra ficava na pequena bolsinha de couro pendurada em seu pescoço, aninhada entre os seios, debaixo da roupa. Aquela estava sempre com o assassino.

Ela tocou a bolsinha enquanto o povo avançava na direção do palanque, quando a a’hïrzg levantou-se coberta pelo sangue do assassino e o novo hïrzg ergueu as mãos para a multidão e gritou para que as pessoas ficassem calmas.

A Pedra Branca sorriu diante disso.

A morte... a morte era sempre calma.


??? TENDÊNCIAS ???

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Nico Morel

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— É COM IMENSO PRAZER e gratidão que eu lhe concedo a Estrela dos Chevarittai. Você pode ser jovem, chevaritt Jan ca’Vörl, mas não conheço ninguém mais merecedor do título.

O aplauso fluiu entre as pessoas que assistiam na antecâmara no salão de baile do Palácio de Brezno. Jan deu um sorriso radiante quando Fynn — que usava a coroa dourada de hïrzg no cabelo e o anel com sinete no dedo — prendeu a estrela dourada na faixa vermelha de ombro de sua bashta, depois entregou um presente que pertencera ao vatarh de Allesandra e homônimo de Jan: uma espada de aço escuro firenzciano, endurecida pelo fogo e pela água fria, e afiada como uma navalha. Allesandra viu Jan pegar o punho incrustado da arma e enfiar a espada na bainha. Fynn amarrou-a ao cinto de Jan, depois abraçou o sobrinho enquanto os aplausos aumentavam. Parada próximo aos dois, Allesandra ouviu as palavras que Fynn sussurrou no ouvido de Jan.

— Aquele foi realmente um ato de bravura, sobrinho, embora eu não corresse perigo real. Eu certamente teria saído do caminho do feitiço daquele idiota.

Para Allesandra, o verdadeiro idiota era Fynn. A bravata já era ruim, e ele ignorou o papel que Allesandra teve em salvar sua vida. Foi como se ela não tivesse estado ali de forma alguma, como se Jan tivesse notado o assassino por conta própria.

Allesandra disse para si mesma que não se importava, que isso apenas correspondia às baixas expectativas que tinha de seu irmão, mas o pensamento não a convenceu. A porta para o salão de bailes abriu um momento depois, e Fynn gesticulou. — Venham, vamos todos aproveitar essa celebração — falou o hïrzg para os ca’ e co’ e os chevarittai reunidos. Fynn passou o braço pelos ombros de Jan, e juntos os dois entraram no salão quando os músicos começaram a tocar e uma dezena de e’ténis entoou para acender todas as lâmpadas do aposento ao mesmo tempo. Pauli ofereceu o braço à Allesandra; ela aceitou, por dever e aparência, e o casal seguiu. Atrás deles, entraram o archigos Semini e Francesca.

Allesandra sentiu o olhar de Semini em suas costas.

Em seguida à tentativa de assassinato, houve um expurgo a qualquer um em Brezno que fosse suspeito de ser numetodo. Isso, certamente, também era esperado. Houve outro expurgo, um pouco menos brutal, dentro do corpo de funcionários do novo hïrzg — o que confirmou o que Fynn dissera para Allesandra sobre como ele trataria qualquer um que se opusesse a ele. Cada criado, todo mundo abaixo do status de co’ empregado pelo palácio, foi interrogado pelo comandante da Garde Hïrzg. Uma meia dúzia de funcionários, suspeitos como simpatizantes dos numetodos, foram levados para a Bastida para serem interrogados com mais afinco. O mestre do palácio, que contratara o pretenso assassino, foi considerado culpado por negligência. Seu cargo foi tomado, a família reduzida a ce’, e o próprio mestre perdeu as mãos como castigo. A família do assassino foi presa; ninguém mais os viu desde que entraram na Bastida. Um numetodo que disseram ter ajudado o assassino foi chibatado e esquartejado na Praça de Brezno. Ele foi mantido vivo cuidadosamente pelo carrasco pelo máximo de tempo possível, e seus gritos ecoaram entre os prédios enquanto a multidão assistia e gritava insultos e caçoadas para o homem. O corpo do assassino, infelizmente morto durante o ataque, foi pendurado e exposto publicamente em uma jaula de ferro que balançava em uma corrente na espada de Falwin. Dobraram o número de gardai em volta do palácio, com soldados da Garde Firenzcia, trazidos para reforçá-los. Rumores voavam pela cidade tão rapidamente e tão numerosos quanto pardais.

Dois ca’ foram mortos no ataque pelo feitiço errante; seus funerais foram caprichados e atraíram um bom público. Mais seis espectadores no palanque foram queimados e feridos no ataque, quatro gravemente; dizia-se que tinham sido muito bem compensados pelos cofres do hïrzg para manter as famílias caladas e satisfeitas.

Allesandra ainda podia sentir a tensão no ar, mesmo durante esta celebração. Os criados mantinham a cabeça baixa por prudência, e se alguém notou os gardai que vigiavam as festividades perfilados pelas paredes ou o impressionante número de ténis presentes, ninguém comentou. Era melhor sorrir e permanecer calado.

Pauli dançou com Allesandra uma vez — o mínimo de exigência conjugal. Assim que a dança acabou, ele pediu licença. Ela sabia que, dali em diante, só veria Pauli de relance do outro lado do salão, e que em pouco tempo descobriria que o marido sumiu de vez e que somente retornaria em algum momento cedinho de manhã para seu próprio quarto separado, na ala de visitantes do palácio. Jan também dançou com Allesandra, mas as atenções do filho eram exigidas por Fynn e pela multidão de bajuladores em volta do hïrzg. As moças, em especial, pareciam considerar a presença de Jan bastante agradável. Allesandra decidiu que teria que prestar muita atenção ao filho pelo resto da estadia em Brezno quando viu uma ca’ jovem e solteira pegar o braço de Jan e levá-lo para a pista de dança.

— A senhora me surpreendeu, a’hïrzg. — A voz de Semini surgiu atrás dela. — Eu não sabia que tinha um amor tão grande por seu irmão a ponto de se colocar entre ele e um assassino, mesmo que o hïrzg pareça ter convenientemente se esquecido de que a irmã fez isso.

Allesandra olhou em volta para garantir que não havia ninguém que pudesse ouvir, depois se virou para o archigos e inclinou o corpo para sussurrar. — E eu fiquei surpresa que o archigos contratasse um numetodo.

Seu sorriso talvez tenha tremido levemente, seus olhos talvez tivessem se apertado. — Eu jamais faria isso, a’hïrzg.

— Não há necessidade para falsa modéstia, Semini. Eu achei a ideia brilhante quando percebi a ironia.

— Eu não sei do que a senhora está falando, a’hïrzg — respondeu ele com intransigência.

— Ah, mas sabe, sim. E agora você está em dívida comigo, archigos. Afinal de contas, o assassino não foi capaz de responder a quaisquer perguntas embaraçosas depois, não é? Isso fui eu que fiz por você, archigos, embora meu irmão tenha ficado terrivelmente desapontado por não haver alguém para torturar depois. Venha, você quer saber por que eu fiz aquilo, não quer? Vamos tomar um pouco de ar, archigos, onde possamos ser vistos, mas não ouvidos.

Allesandra conduziu Semini para a entrada aberta de uma sacada, que estava vazia. Ela ficou diretamente voltada para as portas, onde qualquer um que olhasse pudesse vê-los. A música passou por eles e flutuou noite afora; Allesandra e Semini podiam ver as pessoas dançando, entre elas o hïrzg e Jan. Ela virou-se para olhar os jardins, iluminados por centenas de lâmpadas mágicas; alguns casais passeavam por lá. — Isso quase me lembra Nessântico e a Avi... — A a’hïrzg voltou-se do parapeito. — Quase. Eu percebo que sei muito pouco a respeito de sua vida pessoal, archigos. Você algum dia já foi a Nessântico?

Sergei concordou com a cabeça. Ele observava Allesandra como um cão desconfiado observaria outro. — Eu fui ordenado aqui em Brezno por Orlandi ca’Cellibrecca, meu vatarh por casamento, mas como um jovem o’téni eu viajei com ele para Nessântico várias vezes quando Orlandi era o a’téni de Brezno.

— Então sem dúvida você entende por que Nessântico sempre foi o centro dos Domínios. Há uma grandiosidade e uma história lá que ninguém consegue sentir em qualquer outro lugar. Dá para entender por que, quando os Domínios forem reunificados, Nessântico será o centro do mundo conhecido novamente. Tenho certeza disso. — Allesandra tocou o braço dele e sentiu o archigos puxá-lo de volta. — Eu quero lhe agradecer, Semini. Você me deu a oportunidade perfeita para demonstrar a Fynn como eu era leal a ele, apesar da maneira como meu vatarh me dispensou como herdeira; apesar da paranoia e das suspeitas de Fynn a meu respeito; apesar de todas as discussões e brigas que tivemos. Meu irmão jamais suspeitará novamente que eu ou Jan conspiraríamos contra ele.

Mesmo na penumbra da sacada, iluminada apenas por lâmpadas mágicas postas em ambas as pontas do parapeito, ela pôde ver a cor do rosto de Semini escurecer. O archigos cerrou os punhos ao lado do corpo e afastou o olhar de Allesandra. Ele não disse nada.

— O kraljiki Audric não viverá muito tempo, pelo que me dizem — continuou ela. — Eu descobri que realmente não quero ser a hïrzgin, Semini, mas quando chegar o dia em que os Domínios estiverem unificados, digamos, sob uma kraljica, eles precisarão de um hïrzg forte para ser sua espada, o papel que Firenzcia sempre cumpriu. Agora, meu filho dará um grande hïrzg um dia, não acha? Um líder maravilhoso.

Semini arregalou os olhos um pouco. — Você quer...

— Sim — respondeu Allesandra antes que ele pudesse terminar a pergunta.

— Você assumiu um risco incrível, Allesandra.

— Sim, admito que você me surpreendeu bastante com sua audácia. Eu quase decidi apenas deixar que acontecesse. Porém, grandes ambições exigem grandes riscos, como você obviamente entende. E você me deve pelo risco que corri, Semini, porque depois eu garanti que a tentativa de assassinato não pudesse conduzir facilmente até você. Eu destruí a prova que podia falar.

— Eu não tive nada a ver com...

Ela dispensou o protesto fraco com a mão. — Ora, vamos. Apenas a lua pode nos ouvir aqui, e ambos sabemos a verdade. Ainda há provas contra você, caso eu seja forçada a revelá-las. Ambos sabemos que se eu relatasse para Fynn algumas das conversas que tivemos ou dissesse para ele sobre a missiva que você recebeu do regente de Nessântico — diante disso, Semini arregalou ainda mais os olhos, e Allesandra soube que o palpite estava certo —, bem, nós sabemos que os interrogadores na Bastida conseguem extrair uma confissão plena de qualquer um. Fynn daria ordens para que se fizesse um interrogatório assim, mesmo com o archigos, caso eu insistisse. Afinal de contas, eu sou sua leal irmã, que se colocou entre ele e aquele numetodo desprezível. E se você tentasse dizer para Fynn que eu estava envolvida também, ora, minhas ações e as de Jan tornariam a acusação uma mentira, não é?

— O que você quer? — perguntou Semini com grosseria. O archigos deu um passo para trás, como se a presença dela fosse infecciosa. Aquilo agradou Allesandra; significava que toda aquela dissimulação tinha acabado. Os belos olhos escuros do archigos brilharam com os reflexos das lâmpadas mágicas abaixo deles, a postura de Semini era a de um urso acuado, forte e pronto para se defender até a morte. Ela descobriu que gostava disso.

— Na verdade, eu não quero nada além do que você mesmo queira. Nós ainda estamos do mesmo lado, embora eu sinta que você tem dúvidas quanto a isso. Eu gosto de você, Semini, gosto mesmo. Gostaria que se tornasse o Único Archigos. E será, se fizer o que eu mandar. Você cometeu dois erros, Semini. Um foi pensar que Fynn só seria útil para nós morto quando, na verdade, nós queremos ele vivo. Por enquanto.

— E o segundo?

Ela inclinou a cabeça para o lado e observou Semini. — Você pensou que fosse a pessoa que deveria tomar as decisões por nós. Não espero que cometa esse erro novamente. Na época em que fui refém em Nessântico, a archigos Ana muitas vezes dizia que o archigos sempre serve a dois mestres: Cénzi, em nome da Fé, e a pessoa no Trono do Sol, em nome dos Domínios.

Allesandra tocou o braço dele novamente. Desta vez Semini não recuou, e ela deu o braço ao archigos. — Vamos dançar juntos, archigos, uma vez que nenhum dos nossos respectivos cônjuges parece se importar. Vejamos quão bem nos movemos juntos.

Allesandra insistiu que Semini saísse da sacada e entrasse no barulho e na luz do salão de baile.

 

Enéas co’Kinnear

— CÉNZI SEM DÚVIDA OLHA pelo senhor, o’offizier co’Kinnear, embora as notícias que traz sejam muito perturbadoras. — Donatien ca’Sibelli, comandante das forças dos Domínios nos Hellins e irmão gêmeo de Sigourney ca’Ludovici do Conselho dos Ca’, andava de um lado para o outro atrás da mesa enquanto Enéas permanecia em posição de sentido diante do superior. A sala era um reflexo do homem: limpa e escassa, sem nada que distraísse os olhos. O tampo da mesa era polido, com uma única pilha de papel em cima, alinhada perfeitamente com a borda do móvel. Havia um pote de nanquim e uma pena do outro lado, com um areeiro que formava um ângulo reto perfeito acima deles. A cesta de lixo estava vazia. Havia uma única cadeira de madeira simples diante da mesa. Em um canto, o estandarte azul e dourado de Nessântico pendia frouxo em um poste.

Ca’Sibelli, pelo menos em seu gabinete, não permitia que nada se intrometesse em seu dever como comandante. Não havia como duvidar da lealdade ou bravura do homem — ele lutara muito bem contra uma força adversária muito superior na Batalha dos Brejos e fora condecorado e promovido pelo kraljiki Justi, sua irmã servia ao Estado da maneira dela, mas Enéas sempre suspeitou que o cérebro do homem tinha tão pouca mobília quanto seu gabinete.

— Sente-se, o’offizier — disse ca’Sibelli, que apontou para a cadeira e sentou-se na própria. Ele tirou a folha de cima dos relatórios e colocou diante de si enquanto Enéas se sentava. O indicador do comandante percorreu o texto enquanto ca’Sibelli vasculhava o documento. — O a’offizier ca’Matin fará muita falta. Deve ter sido horrível vê-lo ser sacrificado aos caprichos dos falsos deuses que aqueles selvagens idolatram, e o senhor é extremamente afortunado por ter evitado o mesmo destino, o’offizier.

O próprio Enéas tinha pensado nisso, e os offiziers que o interrogaram desde seu retorno muitas vezes disseram a mesma coisa, alguns com uma insinuação de acusação na voz. Ele passou três dias cavalgando pelo ermo território ao redor do lago Malik e manteve o cavalo na direção nordeste. No quarto dia, fraco e faminto, com a montaria praticamente exausta, Enéas vislumbrou cavaleiros em um morro. Eles também o viram e vieram galopando em sua direção. Enéas esperou pelos homens, ciente de que não conseguiria fugir dos cavaleiros, fossem amigos ou inimigos. Cénzi sorriu para ele novamente: o grupo era uma pequena patrulha de reconhecimento dos Domínios, e não soldados ocidentais. Eles o alimentaram, ouviram espantados sua história, e o trouxeram de volta para seu posto avançado.

Nos dias seguintes, conforme notícias foram mandadas para Munereo e uma ordem enviada de volta para Enéas retornar para lá, ele soube que somente um terço do exército liderado pelo a’offizier ca’Matin conseguiu se arrastar de volta depois da retirada caótica. Da própria unidade, Enéas era o único sobrevivente. O choque da notícia fez Enéas se ajoelhar e rezar para Cénzi pelas almas dos homens que ele conhecera e comandara. Muitos morreram a esta altura. Homens demais. Ele ficou atordoado e confuso pela perda.

Neste momento, Enéas simplesmente concordou com a cabeça diante do comentário do comandante e observou o homem continuar a ler e murmurar para si mesmo.

— Os nahualli estavam com o exército então. Nossa informação estava errada.

— Sim, senhor. Eu lutei contra eles várias vezes e nunca tinha visto feitiços como aqueles: o fogo explodiu do chão embaixo de nós, aqueles círculos de areia escura... — Enéas engoliu em seco ao se lembrar. — Um daqueles feitiços foi disparado perto de mim, e eu não me lembro de nada depois daquilo até... depois de a batalha já estar encerrada. Eles pensaram que eu estava morto.

— Cénzi colocou Sua mão sobre o senhor e o salvou — comentou ca’Sibelli, e Enéas concordou com a cabeça novamente. Ele acreditava nisso. Com o passar dos dias, cada vez mais tinha certeza, desde que saíra do acampamento tehuantino. Cénzi abençoou-o. Cénzi salvou-o por um motivo especial: Enéas sabia disso. Podia sentir. À noite, ele parecia ouvir a voz de Cénzi dizendo o que queria que Enéas fizesse.

Ele obedeceria como qualquer bom téni faria.

— Cénzi realmente esteve comigo, comandante. — Enéas sentia isso com fervor. Que outra resposta haveria? Ele esperava morrer e, no entanto, Cénzi fez contato com o pagão Niente e tocou o coração do homem. Era a única explicação. E apesar da fome e da sede, apesar da exaustão que sentiu ao fugir dos ocidentais, de certa maneira Enéas jamais se sentiu assim tão revigorado, tão cheio de vida e vivo. A própria alma ardia dentro dele. Às vezes, Enéas era capaz de sentir a energia formigar na ponta dos dedos. — É por isso, comandante, que fiz o pedido de retornar a Nessântico. Eu acho que esta é a tarefa pela qual Cénzi me poupou.

Havia um destino para Enéas cumprir. Foi por isso que ele escapou dos ocidentais; foi Cénzi que trabalhou de dentro do nahual Niente. Certamente não foi o ato do falso deus deles, Axat.

Ca’Sibelli franziu um pouco a testa diante do último comentário de Enéas. Ele mexeu na papelada novamente. — Eu preparei um relatório para enviar a Nessântico — continuou ca’Sibelli — e uma recomendação para uma condecoração para o senhor, o’offizier co’Kinnear. Porém, ainda assim, sua experiência e liderança farão falta aqui, especialmente com a perda do a’offizier ca’Matin.

— É muita gentileza de sua parte, comandante — respondeu Enéas. Não era de seu feitio reclamar de ordens, mas Cénzi era uma autoridade superior. — Mas relatórios são secos, e as pessoas em Nessântico, especialmente o regente e o kraljiki, precisam saber como nossas circunstâncias são desesperadoras. Eu acho... acredito que eu seria a pessoa certa para levar a mensagem. Posso falar diretamente com as pessoas em Nessântico sobre a situação aqui. Elas poderão ouvir da minha boca o que aconteceu. Posso convencê-las; Cénzi me diz que eu posso.

Vá ao seu líder, fale com ele e dê uma mensagem por nós... Ele pensou, por um momento, ter ouvido aquela sentença em uma voz alta e grave em sua cabeça. Ficou assustado demais para falar imediatamente. — Comandante — continuou Enéas —, eu entendo que meu lugar é aqui com as tropas, especialmente com os ocidentais ameaçando avançar contra a própria Munereo. Eu retornarei assim que for possível, mas posso entregar seu relatório com muito mais impacto. Prometo isso ao senhor. Eu sugeriria que o senhor mesmo fosse, mas seu conhecimento e liderança são fundamentais para nossa vitória contra os ocidentais.

Ca’Sibelli abanou a mão. O movimento fez mexer os papéis do topo da pilha na mesa, que ele parou para alinhar novamente. O comandante suspirou. — Eu creio que um offizier a mais ou a menos não fará diferença; ou melhor, acredito no senhor quando diz que pode fazer mais diferença ao falar com o kraljiki e o Conselho dos Ca’ do que empunhando uma espada aqui. Talvez o senhor esteja correto sobre a vontade de Cénzi. Tudo bem, o’offizier co’Kinnear: o senhor partirá amanhã de manhã na alvorada no Nuvem Tempestuosa. O e’offizier co’Montgomeri está com meu relatório para o senhor entregar; pode pegá-lo ao ir embora. Espero o senhor de volta aqui quando o Nuvem Tempestuosa retornar.

Ca’Sibelli levantou-se, e Enéas ficou de pé às pressas para prestar continência. — O senhor já sabe que tinha sido recomendado para o título de chevaritt pelo a’offizier ca’Matin — disse o comandante ao devolver a continência. — Eu aprovei aquela recomendação; ela também estará no Nuvem Tempestuosa para o kraljiki assinar. Eu suspeito que o futuro lhe reserva grandes coisas, o’offizier. Grandes coisas.

Enéas concordou com a cabeça. Ele também suspeitava disso. Cénzi cuidaria disso.

 

Audric ca’Dakwi

AS TROMPAS DO TEMPLO soaram a Primeira Chamada, as notas dissonantes e tristes apagaram os últimos vestígios de sono.

Audric permitiu que Seaton e Marlon o ajudassem a sair da cama. Mesmo com a assistência, o kraljiki ficou sem fôlego ao ficar de pé, com a roupa de dormir. Os camareiros ajudaram Audric, as mãos dos dois tiraram a camisola do kraljiki, depois começaram a vesti-lo para a audiência matinal. Enquanto cambaleava de leve nas mãos dos camareiros e ofegava, Audric olhou o quadro de Marguerite. Ela deu um sorriso cruel para o neto.

— Você é fraco fisicamente porque é fraco politicamente — disse a kraljica. — Cénzi lhe mandou a doença como um aviso. Você está tão envolvido por grilhões de ferro que não consegue enxergar, Audric: são correntes pesadas, que confinam e oprimem, e é este fardo que deixa você doente. Foi o regente que colocou as correntes, Audric. Ele rouba seu poder; rouba sua saúde. Quando você se soltar dos grilhões do regente, quando for o kraljiki na prática, assim como no título, sua doença também lhe deixará.

— Eu sei, mamatarh — falou Audric. Era um esforço apenas erguer a cabeça. Os cantos do quarto estavam escuros, como se ainda fossem encobertos pela noite; ele só conseguia enxergar o quadro. — Eu estou ansioso... por esse dia. — Por um momento, Marlon e Seaton pararam as atenções, assustados com a resposta.

— Em breve — murmurou Marguerite. — O que quer que você faça tem que ser em breve. O regente tem a intenção de enfraquecê-lo até que morra, Audric. Ele o envenena com suas palavras, com conselhos para ter cautela, com o poder que roubou de você. O regente quer tudo para si e está matando você para obtê-lo. Você tem que agir.

— É o que farei hoje, mamatarh.

— Kraljiki? — perguntou Seaton.

Audric olhou com raiva para o camareiro e disparou — Não interrompa quando estou conversando com seus superiores. — As palavras eram interrompidas por arfadas. — Repita isso e você será dispensado do meu serviço, além de ser chibatado pela insolência. Entendeu?

Ele viu Seaton olhar de relance para Marlon e depois fazer uma rápida mesura para Audric. — Minhas desculpas, kraljiki. Eu... eu errei.

Audric torceu o nariz. Marguerite sorriu para o neto enquanto concordava com a cabeça, no quadro. — Andem depressa, vocês dois — falou o menino para os camareiros. — Hoje vai ser um dia cheio.

Meia virada da ampulheta depois, Audric estava vestido e tomava café da manhã na sacada do quarto, que dava vista para os jardins oficiais do palácio. Ele ouviu a batida na porta externa e a conversa do criado no corredor com Marlon. — Kraljiki — disse o camareiro alguns momentos depois, enquanto Audric tomava um gole de chá de menta e saboreava o aroma da erva. — Seus convidados esperam o senhor na antecâmara.

— Excelente. — Ele pousou a xícara e dispensou Marlon e Seaton com um gesto quando os dois correram para atendê-lo. — Deixem-me. Eu estou bem. — Ao passar pelo quadro de Marguerite, Audric acenou com a cabeça para ela, depois foi para a porta da câmara de recepção. Marlon moveu-se para abrir a porta para ele, e Audric ergueu a mão, à espera de recuperar o fôlego, à espera de conseguir respirar sem ofegar. O kraljiki finalmente aquiesceu, e Marlon abriu a porta.

Audric viu todos se levantarem rapidamente e fazerem mesuras quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi e Odil ca’Mazzak — todos integrantes do Conselho dos Ca’, os três mais influentes entre os sete. Sigourney era a pedra fundamental, Audric sabia: ela tinha o sobrenome ca’Ludovici, como a kraljica Marguerite. Magra e ativa, com um rosto animado, comprido e delicado, Sigourney aproximava-se da quarta década de vida e tinha o cabelo pintado de preto como carvão com raízes brancas; com o irmão gêmeo no comando das forças nos Hellins, ela contava com a voz dos militares também. Odil, um saudável sexagenário, era o que estava há mais tempo sentado no Conselho dos Ca’ dentre todos eles. Seu corpo tinha a aparência magra e murcha de carne defumada, e ele arrastava os pés com cuidado ao andar apoiado por uma bengala, mas a mente permanecia afiada. Com quase 30 anos, Aleron era um dos mais jovens integrantes, mas era carismático, charmoso e usava de sua influência muito bem, a ponto de ainda ser considerado bonito — e fez um ótimo casamento com alguém da antiga família ca’Gerodi.

— Por favor, sentem-se — mandou Audric, que tomou o próprio assento perto da lareira, do lado oposto ao lugar onde o quadro da mamatarh estava pendurado. O kraljiki podia imaginá-la com a parte detrás da cabeça voltada para eles enquanto escutava. — Eu pedi que os senhores viessem aqui hoje porque valorizo seus conselhos e gostaria de ouvir suas opiniões. — Ele fez uma pausa, tanto para respirar quanto para dar efeito. — Não perderei seu tempo. Eu gostaria de remover o regente ca’Rudka de seu posto e que os plenos poderes do governo sejam passados para mim.

Audric viu Odil recostar-se visivelmente na cadeira e Sigourney e Aleron trocar olhares cuidadosamente dissimulados. — Kraljiki — Aleron começou a falar, depois parou para passar a língua pelos lábios grossos. — O que o senhor pede... bem, o senhor está a apenas dois anos de chegar à maioridade legal. Eu sei que parece um longo tempo para alguém da sua idade, mas dois anos...

— Eu sei muito bem disso, conselheiro ca’Gerodi — disse Audric com desdém. A voz foi interrompida por tosses ocasionais e pausas para respirar. — O senhor estava lá quando o mestre ci’Blaylock testou meus conhecimentos sobre a linhagem dos kralji. Eu conheço a minha história, talvez melhor do que qualquer um dos senhores. Eu poderia citar o kraljiki Carin...

— Sim, kraljiki. — foi Odil que falou. — Existe um precedente real em Carin, mas Carin...

— “Mas Carin?” — Audric repetiu quando o homem parou. Odil respirou fundo ao se sentar na ponta da cadeira.

— O kraljiki Carin era precoce em quase todos os aspectos — continuou Odil. Ele abaixou o olhar para os dedos, entrelaçados no colo, e falou mais para eles do que para Audric. — Com o perdão do kraljiki, a história de Nessântico é meu passatempo, e eu diria que houve circunstâncias atenuantes na extraordinária ascensão de Carin. Aos 12 anos, ele assumiu o comando da Garde Civile contra as forças de Namarro quando seu vatarh foi morto, e Carin demonstrou habilidades extraordinárias naquela batalha. Todas as histórias dizem que ele era capaz de se lembrar de tudo que ouvia. Ele também tinha o Dom de Cénzi e podia usar o Ilmodo quase tão bem quanto um téni-guerreiro. E a saúde de Carin — dito isso, Odil finalmente olhou diretamente para Audric — era excelente.

— E foi o próprio regente de Carin que foi ao Conselho dos Ca’ com o pedido de que o kraljiki recebesse plenos poderes mais cedo — acrescentou Sigourney rapidamente enquanto Audric sentia o calor do sangue nas bochechas. — Talvez se o regente ca’Rudka viesse até nós com uma recomendação dessas...

— Ca’Rudka é o problema! — berrou Audric. Com calma... Ele ouviu a voz da mamatarh na cabeça. Olhe para os rostos dos conselheiros, Audric. Você os assusta com seu poder e tem que ter cuidado. Use a cabeça. Manipule-os. Você quer que eles escutem, que cumpram suas ordens. Você tem que soar como um adulto, não como uma criança petulante. Tem que parecer sensato. Fazer com que acreditem que é do interesse deles fazer o que você pede. Diga para eles. Diga todas as coisas sobre as quais conversamos...

Audric concordou com a cabeça. Ele tossiu e respirou fundo. Limpou a boca com a manga da bashta e ergueu a outra mão para os conselheiros. — Eu peço desculpas, conselheiros — falou Audric finalmente. — Por favor, entendam que minha... hum, veemência é causada apenas por minha grande preocupação com Nessântico e com os Domínios, e sei que todos os senhores se preocupam comigo. — Ele olhou de relance para Sigourney. — Conselheira ca’Ludovici, o regente ca’Rudka nunca virá até os senhores. Jamais. A verdade é que ele tem intenção de permanecer no poder, não importa qual seja a minha idade.

— Esta é uma acusação preocupante, kraljiki, com certeza — respondeu Sigourney. — O senhor tem alguma prova disso?

— Assim como o kraljiki Carin — disse Audric, acenando para Odil —, eu me lembro do que é dito na minha presença. O regente insinuou tal coisa para mim, e eu ouvi ca’Rudka sussurrar com o archigos Kenne quando eles pensavam que eu estava dormindo ou doente demais para prestar atenção. Provas? Não tenho nada além do que ouvi, mas eu ouvi. Há fatos curiosos também. O regente ca’Rudka, afinal, era o comandante da Garde Civile na época do meu vatarh e também foi o líder da Garde Kralji antes disso. Os homens escolhidos a dedo pelo regente ainda cuidam da segurança de Nessântico: o comandante co’Falla, da Garde Kralji, e o comandante co’Ulcai, da Garde Civile. E, ainda assim, de alguma forma, não só eles não conseguiram impedir o assassinato de nossa amada archigos, Ana, como ambos alegam que sequer sabiam de alguma trama contra ela.

— O que o senhor quer dizer, kraljiki? — perguntou Aleron. — Está dizendo que o regente ca’Rudka...? — Ele parou. Um gordo dedo indicador cofiou o cavanhaque.

— Todos os senhores conhecem os rumores a respeito da archigos Ana, que ela às vezes usava o Ilmodo para curar, apesar de a Divolonté ser contra tais práticas — falou Audric. — Eu sei que essas práticas são verdadeiras porque a archigos Ana me ajudou muitas vezes, desta mesma maneira. Sim, conselheira ca’Ludovici, eu vejo que a senhora concorda. Sei que todos suspeitavam disso. Com a archigos Ana morta, ora, alguém também poderia acreditar que eu também morreria em breve... e que o Conselho dos Ca’, em agradecimento pelo longo serviço, e dado que a linhagem direta da kraljica Marguerite atualmente não importava mais, poderia simplesmente nomear o atual regente como kraljiki em título, assim como na prática. Se ca’Rudka esperasse mais tempo para agir, ora, há o perigo de eu me casar e ter filhos que pudessem reivindicar o título.

Audric percebeu que eles refletiam sobre as acusações, especialmente sua prima ca’Ludovici. Ele tentou conter a tosse e se apressou em dizer o resto. Sim, você tem a atenção dos conselheiros agora, o kraljiki ouviu sua mamatarh dizer com uma voz contente.

— Essa situação chegou a um ponto crítico por causa das más notícias que continuam a vir dos Hellins. — Audric apressou-se para continuar. — Conselheira ca’Ludovici, seu irmão está lutando bravamente com os míseros recursos que demos a ele. O comandante ca’Sibelli é um ótimo guerreiro, mas, ainda assim, estamos sendo humilhados pelos ocidentais; nós, Nessântico, os Domínios, a maior potência do mundo. Essas pessoas são pouco mais do que selvagens, e, no entanto, elas roubam de nós a terra que o sangue de nossos soldados santificou. Eu disse ao regente que não tolerarei isso. Disse que quero mandar tropas adicionais e ténis-guerreiros para os Hellins a fim de ajudar seu irmão a acabar com esta rebelião. Deixem-me perguntar para cada um dos presentes: o regente ca’Rudka falou a respeito disso com algum dos senhores? — Ele viu as cabeças dos conselheiros balançarem em silêncio. — Eu imaginei que não. O regente está satisfeito em perder os Hellins; ele me disse isso. Está satisfeito em desperdiçar o grande sacrifício de nossos gardai. Fosse eu o kraljiki neste momento, ordenaria a imediata prisão de ca’Rudka. Eu o colocaria na Bastida e faria com que assinasse sua confissão, assim como ele fez outros confessarem ao longo de décadas. Porém, se os senhores não fizerem isso, então sugiro que simplesmente perguntem ao regente. Não sobre a morte da archigos ou suas intenções a meu respeito, mas sobre os Hellins. Perguntem a ca’Rudka a respeito de nossa situação lá e qual seria a melhor linha de ação que ele considera. Perguntem por que o regente não sabia nada sobre o plano contra a archigos Ana. Ouçam cuidadosamente as respostas. E quando os senhores perceberem que eu falo a verdade a respeito dessa situação, entenderão que também falo a verdade sobre o resto.

Audric ficou de pé. Sentiu o corpo tremer com o esforço, a exaustão ameaçava tomar conta dele. O kraljiki pareceu enxergar os três conselheiros como se estivessem atrás de um vidro fumê e não queria outra coisa a não ser cair na cama sob o olhar vigilante de Marguerite. Ele tinha que encerrar essa reunião. Rapidamente. — Por enquanto, encerramos por aqui. Falem com ca’Rudka. Depois, pensem no que eu falei para os senhores.

Audric fez uma mesura para os conselheiros e — com o passo mais lento e majestoso que conseguiu ter forças para dar — cruzou a sala até a porta do quarto, que Marlon abriu para ele.

O kraljiki conseguiu esperar até a porta ser fechada para cair nos braços de Seaton.

 

Sergei ca’Rudka

— REGENTE CA’RUDKA! UM momento!

Sergei virou-se na entrada da Bastida a’Drago. Acima dele, cimentado nas pedras do sombrio baluarte, o crânio de um dragão escancarava as enormes mandíbulas com dentes afiados que reluziam. A cabeça do dragão, descoberta durante a construção do que era para ser um castelo de defesa, deu à Bastida seu nome: Fortaleza do Dragão. Agora ela espiava os prisioneiros que entravam na masmorra e parecia rir quando eram devorados pela Bastida.

Ou talvez a cabeça risse de todos eles: os numetodos alegavam que não era um crânio de dragão em hipótese alguma, mas sim de algum animal antigo e extinto que virou pedra. Para Sergei, esta era uma teoria enrolada demais para se acreditar, mas os numetodos também alegavam que as conchas de pedra encontradas no alto dos morros em volta de Nessântico estavam lá porque, em algum passado distante inimaginável, as montanhas foram o leito de um mar.

O passado não importava para Sergei. Apenas o presente, e o que ele podia tocar, sentir e compreender.

Uma carruagem parou na Avi a’Parete. Da janela do veículo, Sigourney ca’Ludovici gesticulou na direção de Sergei. O regente fez uma mesura e andou até a carruagem. — Bom dia, conselheira. A senhora saiu cedo. A Primeira Chamada aconteceu há menos de uma virada da ampulheta.

Os olhos de Sigourney eram de um surpreendente cinza-claro em contraste com o cabelo tingido de preto. Ele notou as linhas finas debaixo do rosto maquiado. — O Conselho dos Ca’ teve uma reunião com o embaixador co’Görin da Coalizão na manhã de hoje, como seu gabinete foi informado.

— Ah, sim. — Sergei empinou o queixo. — Eu vi a declaração que o conselheiro ca’Mazzak escreveu. Ele fez um belo trabalho ao ficar no meio termo entre congratular o novo hïrzg e ameaçá-lo, eu aprovei a declaração. Acho que o conselheiro ca’Mazzak daria um belo embaixador em Brezno, se ele estivesse disposto. E acho que o embaixador co’Görin ficaria convenientemente irritado com a indicação.

Em outra ocasião, Sigourney teria rido do comentário, mas ela parecia distraída. Os lábios estavam parcialmente abertos, como se esperasse para dizer outra coisa, e o olhar continuava a se afastar do rosto de Sergei para a fachada da Bastida. Não era por causa do nariz de metal; Sergei estava acostumado com essa reação da parte de estranhos, com seus olhares ou capturados pela réplica de prata colada no rosto ou tão incomodados pelo nariz que deslizavam do rosto como esquis no gelo do inverno. Mas Sigourney conhecia o regente há décadas. Eles nunca foram amigos, mas também não eram inimigos; na política de Nessântico, isso era suficiente. Algo está errado. Ela não está à vontade. — O que a senhora realmente queria me perguntar, conselheira? — A pergunta atraiu o rosto dela de volta para Sergei.

— O senhor me conhece muito bem, regente.

Ele podia conhecer Sigourney, mas ela não o conhecia. Ninguém realmente o conhecia; Sergei jamais deixara alguém se aproximar tanto do seu âmago desprotegido, e estava velho demais para começar agora. A conselheira ficaria chocada se soubesse o que ele fez na manhã de hoje, nas entranhas da Bastida. — Eu tenho prática em ler as pessoas — disse o regente com um aceno de cabeça para o dragão no baluarte da Bastida. — O problema está nos olhos e nos minúsculos músculos do rosto que ninguém realmente consegue controlar. — Ele deu uma batidinha proposital no nariz falso. — A dilatação das narinas, por exemplo. A senhora está incomodada com alguma coisa.

— Todos nós lemos o último relatório do meu irmão nos Hellins. É a situação por lá que me incomoda.

Sergei colocou o pé no degrau da carruagem e inclinou-se na direção dela. As molas da suspensão do veículo gemeram e cederam sob seu peso. — Isso também me incomoda, conselheira.

— O que o senhor faria a respeito?

— Quando alguém sangra muito, o conselho é atar a ferida. Eu digo isso sem críticas ao seu irmão. O comandante ca’Sibelli está fazendo o possível com os recursos de que podemos abrir mão para ele, mas lutar contra um inimigo obstinado em seu território natal é difícil sob a melhor das circunstâncias, e praticamente impossível a essa distância.

— O senhor está sugerindo que nós atemos a ferida, regente, como o senhor disse tão elegantemente, ou que nós fujamos em desonra do que está causando o dano? — Ela arqueou as sobrancelhas ao fazer a pergunta, e Sergei hesitou. Ele sabia que Audric havia se encontrado com Sigourney, Odil e Aleron, esse tipo de fofoca era impossível de abafar no palácio, e lembrava-se bem demais das discussões sobre a questão que tivera com Audric. O regente ainda não tivera a chance de tocar no assunto com qualquer um do Conselho dos Ca’; agora parecia que Audric fizera isso por ele, e Sergei duvidava que tivesse sido favoravelmente representado pela opinião do kraljiki.

— Se há desonra em recuar depende — respondeu ele com cautela — da pessoa acreditar que a próxima ferida possa ser fatal.

— É nisso que o senhor acredita, regente? — insistiu Sigourney. — Que a guerra nos Hellins está perdida?

Antigamente, ele poderia ter sido evasivo, por não saber qual seria a opinião mais segura de revelar. Ao ficar mais velho, ao ganhar mais poder, Sergei tornou-se menos propenso a ser sutil. — Eu acredito que haja um perigo de a guerra estar perdida, sim. Eu dei minha opinião ao jovem kraljiki, e essa será minha declaração ao Conselho dos Ca’ no meu próximo relatório. Portanto, a senhora tem uma prévia. — Ele sorriu, o que exigiu esforço. — Da maneira que a senhora fala, conselheira, suspeito que o Conselho já esteja ciente da minha opinião. Seu pressentimento é impressionante. — Não houve um sorriso em resposta; o rosto de Sigourney estava impassível nas sombras da carruagem. — Deixe-me contar o resto. O maior perigo, como eu também disse para o kraljiki, é que, ao olharmos para o oeste, nós ignoramos o leste e a Coalizão. Imagino que Audric não tenha mencionado isso para a senhora.

Sigourney permaneceu na sombra, sua reação foi encoberta. — O senhor não aconselha mandar mais tropas para os Hellins? Aconselha que abandonemos o que conquistamos lá?

Sergei olhou para o dragão, que parecia espiá-lo, cheio de dentes. — Por que eu tenho a impressão de que a senhora já sabe as minhas respostas para essas perguntas, conselheira?

— Ainda assim eu gostaria de ouvi-las. De seus lábios.

— Então: não e sim — disse ele secamente. — Se mandarmos mais tropas, mandaremos mais gardai para morrer do outro lado do Strettosei, quando estou convencido de que precisaremos deles aqui, e talvez antes do que gostaríamos. Quanto aos Hellins: minha experiência diz que outro comandante não se sairá melhor do que seu estimado irmão. Seu predecessor, o comandante ca’Helfier, no fundo é o responsável pela terrível situação por lá; foram suas trapalhadas e mau julgamento que causaram o envolvimento do exército tehuantino no conflito, e isso virou o jogo. — Sergei ficou satisfeito ao vê-la recuar ao ouvir isso e desviar o olhar, como se a vista da Pontica à frente da carruagem de repente fosse bem mais interessante. — Nossas dificuldades são a distância, a comunicação e um vasto exército que luta em seu território natal. — Ele deu um tapinha na janela aberta da carruagem. — E um inimigo que agora está mais forte do que a maioria de nós quer acreditar. Quando tomamos os Hellins, os tehuantinos permaneceram nas próprias terras depois das montanhas, mas as ações de ca’Helfier fizeram os nativos da região convocar seus primos para ajudar. Nós podemos chamar os ocidentais de selvagens e infiéis que idolatram apenas os moitidis e dizer que eles são falsos deuses, mas isso não altera o fato de que os ténis-guerreiros dos tehuantinos, através de seja lá a que divindades eles apelam, são pelo menos tão eficientes quanto os nossos. Talvez até mais.

— Algumas pessoas podem dizer que o senhor mesmo passa perigosamente perto da heresia com esta declaração, regente — disse ca’Ludovici ao fazer o sinal de Cénzi.

— Eu considero que meu dever, como regente, é encarar a verdade, não importa qual seja, e dizê-la. — Isto era uma mentira, é claro, mas soava bem; na opinião de Sergei, seu dever como regente era cuidar para que a Nessântico que fosse passada ao próximo kralji estivesse em uma posição mais forte do que a que originalmente encontraria; não importava como isso o implicava se ele fizesse ou dissesse, que fosse legal ou ilegal. — Essa sempre foi minha função em Nessântico. Eu sirvo à própria Nessântico, não a ninguém dentro dela. É por isso que a kraljica Marguerite me nomeou como comandante da Garde Kralji, e por isso que seu primo, o kraljiki Justi, me nomeou primeiro como comandante da Garde Civile e depois como regente, mesmo que nós discordássemos muitas vezes. — Sua boca tremeu diante das memórias das discussões que teve com o grande tolo Justi. Que os retalhadores de almas o façam em pedaços eternamente pelo que ele fez com os Domínios.

— Eu também sirvo à Nessântico em primeiro lugar — falou Sigourney. — Nisso, nós somos parecidos, regente. Eu só quero o que é melhor para ela e para os Domínios. Fora isso... — Ela deu de ombros nas sombras.

— Então nós concordamos, conselheira — respondeu Sergei. — Nessântico precisa de verdade e de olhos abertos, não de arrogância cega. Certamente o Conselho dos Ca’ reconhece isso, não é?

— A verdade é mais maleável do que o senhor parece pensar, regente. Como diz o ditado? “O vinagre de um ca’ pode ser o vinho de um ce’”. Muito daquilo que é chamado de verdade é apenas opinião, na prática.

— Esse pode ser realmente o caso, conselheira, mas o que incomoda as pessoas é também o que elas dizem quando querem ignorar uma verdade — respondeu Sergei, que foi recompensado por um beicinho de irritação e o brilho de lábios umedecidos no rosto mal iluminado. — Mas nós podemos falar a respeito disso depois, com todo o Conselho presente, se a senhora quiser. Deve haver um novo relatório vindo dos Hellins em breve, e talvez este nos diga o que é verdade e o que é apenas opinião.

Ele mais ouviu do que viu Sigourney fungar, e uma mão branca foi erguida no interior escuro para bater no teto da carruagem. — Falaremos mais a respeito desse assunto, regente — falou a conselheira para Sergei em um tom frio e distante, e se dirigiu ao condutor sentado no banco. — Vamos.

Ele observou a conselheira partir enquanto as rodas com aro de ferro da carruagem faziam barulho sobre os paralelepípedos da Avi. O som era tão frio e hostil quando a atitude de Sigourney. Sergei voltou-se novamente para a Bastida e ergueu os olhos para o crânio do dragão acima dos portões. Sua boca feroz sorria.

— Sim — disse ele para o crânio. — A verdade é que um dia todos nós ficaremos iguais a você. Mas não ainda para mim. Não ainda. Eu não me importo com o que Audric tenha dito ao Conselho. Não ainda.

 

Jan ca’Vörl

JAN ENCONTROU SUA MATARH parada na sacada de seus aposentos no Palácio de Brezno. Ela olhava para baixo, para a agitação na praça principal. O Templo do Archigos agigantava-se no horizonte diretamente em frente a eles, quase a 800 metros de distância, e praticamente cada metro daquela distância estava coberto por gente. A praça estava iluminada por lâmpadas mágicas com luzes amarelas, verdes e douradas que dançavam nos globos dos postes, e as feiras e lojas em volta do enorme espaço aberto estavam apinhadas de clientes. A música dos artistas de rua chegava fraca até os dois e flutuava acima do zumbido de mil conversas.

— É uma cena que merece ser pintada, não é? — perguntou Jan para ela, e o jovem emendou antes que Allesandra pudesse responder — Qual é o problema, matarh? A senhora se isolou desde a festa. É o vatarh?

Ela virou-se ao ouvir isso. O olhar deslizou do rosto do filho para a estrela de chevaritt que ele usava, e Jan achou que o sorriso forçoso da matarh vacilou momentaneamente. — Foram semanas muito corridas — falou Allesandra. Sua mão espanou fios soltos imaginários dos ombros do filho. — Só isso.

— Eu acho que o comportamento do vatarh tem sido péssimo desde que ele chegou aqui. Eu juro que às vezes penso que seria capaz de matar o homem, mas tenho certeza de que a senhora já se sentiu bem mais tentada que eu. — Jan riu para abrandar as palavras, mas Allesandra não o acompanhou. Ela deu meia-volta e olhou novamente para a praça lá embaixo.

— Você é um chevaritt. Algum dia você irá à guerra, e algum dia realmente terá que matar alguém ou ser morto. Será forçado a tomar essa decisão, e ela será irrevogável. Eu sei...

— A senhora sabe? — Jan franziu a testa. — Matarh, quando foi que a senhora...

Ela interrompeu o filho antes que ele pudesse terminar a pergunta meio debochada. — Eu tinha 11 anos, quase 12. Eu matei o feiticeiro ocidental Mahri, ou ajudei Ana a matá-lo.

— Mahri? O homem responsável pela morte da kraljica Marguerite? — Isso é uma piada, ele queria acrescentar, mas foi detido pela expressão da matarh.

— Eu esfaqueei Mahri com a faca que o vatarh me deu, ataquei quando ele tentou matar Ana. Eu nunca contei para ninguém depois, e Ana também não. Ela sempre tomou cuidado para me proteger. — Allesandra olhava para as próprias mãos no parapeito. Jan perguntou-se se ela esperava ver sangue ali. Não tinha certeza do que dizer ou como responder. Ele imaginou a matarh com a faca na mão.

— Isso deve ter sido difícil.

Allesandra balançou a cabeça. — Não. Foi fácil. Esta é a parte estranha. Eu nem pensei a respeito, apenas o ataquei. Foi só depois... — Ela respirou fundo. — Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Que poderia ser melhor para todos os envolvidos se esse fosse o caso?

— Ora, que assunto mórbido.

— Alguém matou Ana porque acreditava que o mundo seria melhor se ela estivesse fora do caminho. Ou talvez os assassinos mataram Ana por que alguém em quem eles acreditavam mandou que fizessem isso, e eles apenas seguiram ordens. Ou talvez apenas porque pensaram que o assassinato poderia mudar as coisas. Às vezes, este é todo o motivo que alguém precisa; a pessoa não pensa em quem possa gostar da vítima ou quais seriam as repercussões. A pessoa mata porque... bem, eu acho que às vezes não se sabe por quê.

— A senhora está me deixando preocupado, matarh.

Ela riu ao ouvir isso, embora Jan pensasse que ainda havia uma tristeza no som. — Não fique preocupado, eu só estou com um humor estranho.

— Todo mundo pensa assim, às vezes. — Jan deu de ombros. — Aposto que todas as crianças desejaram, em algum momento, que o vatarh e a matarh estivessem mortos; especialmente após elas terem feito algo estúpido e terem sido flagradas e castigadas. Ora, teve uma ocasião em que eu roubei a faca do seu... — Ele parou e arregalou os olhos. — Foi a mesma faca? A senhora disse que o vavatarh lhe deu.

Outra risada. — Foi sim. Eu me lembro disso; descobri você usando a faca para cortar umas maçãs na cozinha e arranquei da sua mão, depois bati muito em você, mas você se recusou a chorar, ou se desculpar, então bati com mais força.

— Eu chorei sim. Depois. E tenho que admitir que fiquei tão furioso que pensei em... — Jan deu de ombros novamente. — Bem, a senhora sabe. Mas o pensamento não durou muito tempo... não depois que a senhora levou torta ao meu quarto e prometeu que me daria a faca um dia. — Ele sorriu para a matarh. — Ainda estou esperando.

— Fique aí. — Allesandra saiu do parapeito e passou pelo filho. Jan ouviu a matarh remexendo coisas no quarto dela, depois ela retornou para a noite fria. — Aqui — falou Allesandra com uma faca na mão, guardada em uma bainha de couro gasta, com o punho de osso preto, aço ainda reluzente e minúsculos rubis em volta do pomo. — Esta foi originalmente a faca do hïrzg Karin, e ele deu para seu filho, seu vavatarh Jan, que me deu. Agora é sua.

Ele empurrou a arma de volta para Allesandra. — Matarh, eu não posso... — Mas ela estendeu a faca novamente.

— Não, pegue — insistiu Allesandra, e ele pegou. Jan tirou a faca metade da bainha. O escuro aço firenzciano refletiu seu rosto. — Dado quem somos, Jan, nós dois temos que tomar decisões realmente difíceis, com as quais não estamos totalmente à vontade, mas as tomaremos porque parecem ser as melhores para aqueles que gostamos. Apenas lembre-se que às vezes decisões são finais. E fatais.

Dito isso, Allesandra puxou Jan para si e abaixou a cabeça do filho para beijá-lo no rosto. Quando ela falou, pareceu com a matarh que ele se lembrava. — Agora, não vá se cortar com isso, promete?

Jan sorriu para Allesandra e disse — Prometo.

 

Allesandra ca’Vörl

AUDRIC NÃO SERÁ KRALJIKI por muito tempo. É o que a maioria das pessoas acredita. Em breve chegará a hora em que um novo kralji será nomeado. Eu me lembro de você, Allesandra. Lembro-me de sua inteligência e força, e me lembro de que a archigos Ana amava você como se fosse a própria filha, e rumores chegaram até mim de que você não está contente que os Domínios permaneçam divididos.

Pelas minhas conversas com Fynn, não tenho esperanças de que ele queira fazer parte dos Domínios reunificados a não ser que ele esteja no Trono do Sol. Ele tem a força do seu vatarh, mas não a inteligência. Infelizmente, todos os bons atributos do finado hïrzg Jan passaram para você.

Quando o Trono do Sol estiver vazio, eu apoiarei sua reivindicação, a’hïrzg. E existem outros aqui que fariam a mesma coisa. Eu apoiaria você abertamente, se me der um sinal de que concorda comigo...


As palavras estavam gravadas em sua mente, tão nítidas quanto as letras escritas por tinta de fogo no pergaminho. As chamas destruíram o papel quase tão rápido quanto ela leu a mensagem e deixaram para trás cinzas e uma fumaça desagradável. A promessa de Sergei. Allesandra pensava nela quase todo dia desde a chegada da mensagem e agora sabia que o archigos recebera uma missiva similar. Ela era capaz de imaginar o que o regente prometera para Semini.

Ca’Rudka queria os Domínios unificados e a Fé unida. Bem, ela também. Criar Domínios ainda mais fortes do que os da kraljica Marguerite foi o sonho de seu vatarh e — porque era o sonho do hïrzg Jan e Allesandra o amava tão desesperadamente quando era criança — de Allesandra também. Ele traiu o sonho e dividiu o império, mas o sonho permanecia vivo nela.

Era o que Allesandra queria mais do que qualquer outra coisa. Mais do que a sua própria segurança.

... se houvesse um sinal...

O archigos Semini encarou a missiva como a óbvia insinuação que era e agiu afobadamente, antes que as peças estivessem nos lugares corretos. Agora, em parte graças à impaciência e falta de jeito do archigos, elas estavam no lugar.

Um sinal. Allesandra daria aquele sinal para ca’Rudka, embora isso corroesse sua consciência. Embora ela pudesse vir a se odiar depois.

Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Era a pergunta que Allesandra fez para Jan, mas era a mesma que ela se fazia sem parar.


— Infelizmente, eu menti para você, Elzbet — falou Allesandra para a mulher do outro lado da mesa manchada e suja. — Não estou interessada em você como criada. — A mulher deu de ombros e começou a se levantar. Allesandra gesticulou para que voltasse a se sentar. — Fiquei sabendo — disse a a’hïrzg — que você consegue me colocar em contato com um certo homem. — Allesandra pousou um seixo na mesa: uma pedra lisa mais ou menos do tamanho de uma sola, de cor muito clara.

Mesmo ao dizer as palavras, Allesandra duvidava de sua veracidade. A jovem sentada diante da a’hïrzg tinha uma aparência comum. Parecia estar na terceira década, embora fosse difícil dizer; uma vida dura fazia com que ela parecesse mais velha do que a idade real. O cabelo evidentemente não sabia o que era uma escova: comprido e com toques de vermelho intenso no tom castanho, o cabelo tinha mechas soltas que apontavam para todos os lados e estava muito repuxado em uma trança malcuidada, feita em um estilo que Allesandra não via desde que era nova. A franja estava desgrenhada e formava uma floresta que quase escondia os olhos. Allesandra nem conseguia ver a cor dos olhos de tão escondidos que estavam, embora parecessem claros.

A mulher apenas deu de ombros ao olhar para o seixo e falou — Pode ser. — As palavras tinham um sotaque tão leve que Allesandra não conseguiu identificar, e a voz era rouca. — Aquele de quem a senhora fala é difícil de contatar. Mesmo para mim.

Se o sujeito conhece você tão bem assim, menina, eu não fico impressionada com o gosto dele... — Qual é o seu nome completo, Elzbet?

A mulher encarou Allesandra sem piscar os olhos através do emaranhado de mechas castanhas. — Peço desculpas, a’hïrzg, mas a senhora não vai precisar do meu nome. Afinal, a senhora não está me contratando, pelo menos não para outra coisa além de encontrar este homem.

Allesandra levou dias para chegar até esse ponto e não tinha certeza de nada. Houve investigações discretas sobre pessoas que teriam um motivo para matar as três vítimas mais recentes da Pedra Branca, investigações feitas por agentes particulares que, por sua vez, não sabiam quem representavam, apenas que era alguém rico e influente. Nomes e descrições foram dados e, lentamente, aos poucos, tudo levou a esta jovem. Allesandra armou um encontro com ela, em uma taverna no limite de um dos distritos mais pobres de Brezno, sob o pretexto de entrevistá-la para um cargo no corpo de funcionários do palácio. Através das persianas fechadas da taverna, a a’hïrzg enxergou os uniformes dos gardai que a acompanhavam, à espera de Allesandra ao lado da carruagem. — Como eu posso saber se você pode fazer o que diz ser capaz?

— A senhora não tem como saber — respondeu a mulher. Foi tudo o que ela disse. A jovem esperou e manteve os olhos ocultos em Allesandra, sem piscar, como se desafiasse a a’hïrzg a desviar o olhar. O atrevimento e a falta de respeito quase fizeram Allesandra se levantar da cadeira e sair da taverna, mas ela precisava deste contato e foi preciso tempo demais para chegar até aqui.

— Então como procedemos? — perguntou Allesandra.

— Dê-me três dias para ver se eu consigo contatar a pessoa que a senhora procura. — A mulher deu um peteleco na pedra que Allesandra colocou sobre a mesa. — Se eu achar que seus gardai ou agentes estão me vigiando, ou se ele, em especial, os vir, nada vai acontecer. Na noite do terceiro dia, que seria o draiordi, a senhora fará isso... — A jovem debruçou-se sobre a mesa, depois sussurrou instruções no ouvido de Allesandra e voltou a se recostar. — A senhora entendeu, a’hïrzg? Pode fazer isso?

— É muito dinheiro.

— Ninguém barganha com ele — disse a mulher. — Se o que a senhora quer executar fosse uma tarefa fácil, a senhora mesmo faria. E a a’hïrzg pode arcar com o preço que ele cobra.

— Se eu fizer isso, como saberei que ele vai cumprir com sua parte do acordo?

Nenhuma resposta. A mulher simplesmente ficou sentada com as mãos sobre a mesa como se estivesse pronta para empurrar a cadeira.

Allesandra finalmente acenou com a cabeça e disse — Encontre-o, Elzbet. — Ela tirou uma meia sola do bolso da capa e colocou a moeda na mesa entre as duas, perto da pedra. — Pela inconveniência.

A mulher abaixou o olhar para a moeda e contorceu os lábios. A cadeira foi arrastada pelas tábuas do piso. — Draiordi, à noite — falou ela para Allesandra. — Esteja lá como eu falei. Lembre-se do que eu disse sobre eu ser seguida.

Dito isso, Elzbet deu meia-volta e saiu rapidamente da taverna, com os passos largos de uma pessoa que estava acostumada a andar por longas distâncias. A luz irrompeu na penumbra quando ela empurrou a porta com uma força surpreendente. Através das persianas, Allesandra viu os gardai subitamente alertas no momento em que a mulher saiu da taverna.

A moeda continuou na mesa. Allesandra pegou a pedra, mas deixou a moeda, se dirigiu para a porta e fez um sinal negativo com a cabeça para os gardai, um dos quais já abria a porta, preocupado, enquanto os outros observavam Elzbet. — Eu estou bem — disse a a’hïrzg para eles. A mulher já estava no meio da rua e andava rápido sem olhar para trás. O garda que abriu a porta inclinou a cabeça na direção de Elzbet e ergueu as sobrancelhas, intrigado. — Devo...?

— Não. Não vou contratá-la; ela era uma péssima escolha. Deixe-a ir...

 

Karl ca’Vliomani

KARL OBSERVOU O HOMEM com cuidado, ficando perto dele na padaria, onde poderia escutá-lo.

O sujeito parecia diferente dos demais que ele observou. Nas últimas semanas, Karl andou à espreita pelo Velho Distrito, vestido em roupas sujas e esfarrapadas, e observou a multidão que passava por ele. Karl assombrou locais públicos, escondeu-se nas sombras de praças escondidas no labirinto de ruas minúsculas enquanto evitava os utilinos aqui e ali que faziam suas rondas e que podiam reconhecê-lo. Ele olhou os rostos à procura de peles com tom de cobre, por maçãs do rosto pronunciadas e por rostos ligeiramente achatados, como ele se lembrava das próprias incursões às Terras Ocidentais há décadas. Karl encontrou meia dúzia de pessoas, tanto homens quanto mulheres, que seguiu por um tempo ou ouviu às escondidas, que tocou com o Scáth Cumhacht para ver se elas responderiam.

Não houve nada. Nada.

Mas agora...

— Estes croissants passaram o dia inteiro aqui e já estão meio velhos — falou o homem. Karl escutou sua voz perfeitamente de onde estava, na porta aberta da padaria, enquanto olhava para o outro lado da rua como se esperasse por alguém. Ele ouviu a bengala do sujeito bater no piso de madeira. — Eles não valem mais do que uma d’folia a dúzia. — As palavras não significavam nada, mas aquele sotaque... Karl lembrava-se bem: da época de sua juventude, do sotaque de Mahri, que era tão estranho e inconfundível em Nessântico quanto o seu próprio.

Karl olhou o interior da loja a tempo de ver a cara feia do padeiro. — Eles continuam tão fresquinhos e macios quanto estavam hoje de manhã, vajiki. E valem uma se’folia, pelo menos. Ora, eu posso vendê-los para qualquer um por este valor; a farinha que usei foi abençoada pelos u’ténis do Velho Templo.

O homem deu de ombros e abanou a mão. — Eu não vejo ninguém mais aqui, e você? Talvez queira esperar o dia inteiro até que os croissants fiquem tão duros quanto paralelepípedos, enquanto eu posso dar duas d’folias por eles agora. Duas d’folias contra pão jogado fora; parece mais do que justo para mim.

Karl ouviu enquanto os dois negociavam e chegaram ao acordo de quatro d’folias pelos croissants. O padeiro embrulhou os pãezinhos em papel e resmungou o tempo todo sobre o preço da farinha, o tempo gasto assando e o aumento geral dos custos de tudo na cidade recentemente, até que a presa de Karl saiu da padaria. O homem passou perto dele — o cheiro dos croissants fez o próprio estômago de Karl roncar — e seguiu pela alameda estreita na direção leste. Karl deixou o sujeito dar vários passos de vantagem antes de segui-lo. O homem virou à esquerda em um beco transversal; na hora em que Karl chegou ao cruzamento, o sujeito já estava no meio do beco. No fim da tarde, as casas lançavam sombras púrpuras na viela e pareciam se inclinar na direção umas das outras para conversar em sussurros sobre os paralelepípedos. Não havia mais ninguém visível no beco. Os feitiços que Karl havia conjurado naquela manhã ardiam dentro dele, à espera do lançamento. Ele começou a chamar o homem, fazer com que se virasse...

... mas uma criança, um menino de 10 ou 11 anos talvez, surgiu de um cruzamento um pouco mais adiante no beco. — Talis! Aí está você! A matarh estava se perguntando se você viria para o jantar.

— Croissants! — disse o sujeito para o garoto ao erguer os pãezinhos embrulhados. — Eu praticamente os roubei do velho Carvel. Só quatro d’folias... — O homem, o tal Talis, passou o braço pelo ombro do menino. — Vamos então, não podemos deixar Serafina esperando.

Juntos, os dois começaram a descer a rua. Karl hesitou. Você não pode fazer nada com o menino ali ao lado dele. Não é o que Ana iria querer de você.

Os feitiços ainda chiavam e borbulhavam dentro da mente, ansiosos para serem lançados. Ele escolheu um, o mais brando. Karl ergueu o punho e sussurrou uma palavra em paeti, a língua de sua terra, e sentiu a energia ser disparada e lançada para longe. O feitiço fora projetado para não fazer nada; ele apenas espalhava o poder do Scáth Cumhacht por uma área — o suficiente para que alguém acostumado a usar aquele poder o sentisse e reagisse.

A reação foi mais rápida do que Karl esperava. Talis deu meia-volta assim que ele lançou o feitiço. O menino virou-se um momento depois; provavelmente, pensou Karl, porque o homem parou. Não houve tempo para ele se esconder. Talis, com um olhar que jamais se desviou de Karl, deu o pacote de croissants para o menino e um empurrãozinho para que fosse embora. — Nico, vá para casa. Eu sigo você em alguns minutos.

— Mas, Talis...

— Vá — respondeu Talis, em tom mais ríspido desta vez. — Ande ou seu traseiro vai se arrepender assim que eu chegar lá. Vá!

Diante disso, o garoto engoliu em seco e correu. Ele virou a esquina e desapareceu. O homem olhou na penumbra, depois recuou a cabeça e acenou com ela. — Eu devo lhe agradecer, embaixador, por poupar o menino — falou Talis. Uma mão estava enfiada no bolso lateral da bashta, a outra permanecia na bengala; se ele estava prestes a lançar um feitiço, não demonstrava sinais. Ainda assim, Karl ficou tenso, com a mão erguida, e os feitiços restantes que preparou tremendo dentro dele, esperava que tivesse acertado na preparação.

— Você me conhece?

Ele concordou com a cabeça. — O seu rosto é muito conhecido nesta cidade, embaixador. Algumas roupas pobres e sujeira no rosto não o disfarçam bem. Eu realmente espero que o senhor não pense que poderia passar despercebido no Velho Distrito.

— Você sentiu meu feitiço. Isso significa que você é um dos ténis ocidentais, como Mahri.

— Talvez eu simplesmente tenha me virado porque ouvi o senhor falar uma palavra, embaixador. Feitiço? Eu já vi os ténis-luminosos acenderem as lâmpadas da cidade; já vi os ténis girarem as rodas de suas carruagens e limparem a sujeira da água. Já vi algumas pessoas dessa cidade com seus pequenos e triviais feitiços de luz ensinados pelos numetodos, o que eu tenho certeza que a fé concénziana considera preocupante. Mas não vi feitiço algum há instantes.

— Você tem o sotaque.

— Então o senhor tem um bom ouvido, embaixador; a maioria pensa que sou de Namarro — respondeu o homem. — Eu sou um ocidental, sim; como Mahri, não. Houve pouquíssimos como ele. — Talis parecia calmo e confiante, e isso, juntamente com a admissão fácil, deixou Karl preocupado. Ele começou a se perguntar se havia cometido um erro grave. O homem está muito confiante, muito seguro de si. Não está com medo algum de você. Você deveria apenas ter observado, deveria apenas ter seguido o sujeito. — Então por que o embaixador dos numetodos anda por aí, pelo Velho Distrito, enquanto lança feitiços invisíveis para encontrar ocidentais, se me permite perguntar?

— Nós estamos em guerra com os ocidentais.

— “Nós?”. Então os numetodos são tão aceitos assim pelos Domínios? Eu também sei ouvir sotaques e posso lhe dizer que existem aqueles da Ilha de Paeti cujas afinidades estão mais alinhadas com os ocidentais do que com o povo de Nessântico. Afinal, Paeti foi conquistada pelos Domínios da mesma forma que os Hellins, e seu povo lutou contra aquela invasão da mesma forma que o nosso faz agora. Talvez nós devêssemos ser aliados, embaixador, não adversários.

Karl rangeu os dentes ao fechar a cara. — Isso depende, ocidental, do que você está fazendo aqui e do que fez.

— Eu não a matei, se essa é a sua acusação.

Karl quase lançou um feitiço diante disso. Eu não a matei... Então o sujeito sabia exatamente do que Karl estava atrás, e a resposta era uma mentira. Só podia ser uma mentira. O homem diria qualquer coisa para salvar a própria vida. Um ocidental e um téni... A mão erguida de Karl tremeu; a palavra de ativação em paeti já estava nos lábios. Ele era capaz de sentir seu gosto, tão doce quanto a vingança. — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Diante disto, a fúria estourou dentro de Karl, que não conseguiu mais contê-la. Ele deu um soco no ar e falou a palavra — Saighneán! —, e com o gesto e a palavra, um raio branco-azulado estalou e pulou de Karl na direção do ocidental insolente.

Mas o homem moveu-se na mesma hora e levantou a mão com a bengala. Um brilho irrompeu de maneira impossível do objeto, uma claridade que cegou Karl no momento em que filamentos de um brilho incômodo deslizaram pelo ar como se fossem dedos que arranhavam um enorme globo invisível. Os dedos etéreos agarraram seu raio e o apertaram, um pequeno sol pareceu pairar no ar entre os dois enquanto um trovão retumbava. Ele ouviu risadas. Assustado agora, Karl falou outra palavra: um feitiço de proteção contra o ataque que tinha certeza de que viria a seguir.

Mas a proteção se dissipou sem uso, e através da agitada cortina de imagens persistentes, ele viu que o beco minúsculo estava vazio. Talis sumiu. Karl soltou um grito de frustração (enquanto cabeças começavam a espiar com curiosidade das janelas fechadas, conforme chamados e berros de alarme irrompiam das casas mais próximas a ele, e filamentos de fumaça saíam das fachadas queimadas de ambos os lados da rua) e correu para o cruzamento por onde o menino fora embora.

Nem o menino, nem o ocidental estavam visíveis. Karl socou a parede mais próxima e praguejou.

 

Nico Morel

NICO DEU APENAS DOIS PASSOS ao virar a esquina e parou. Ele ouviu Talis discutir com o estranho e voltou de mansinho até eles, apoiando as costas contra a casa da esquina e prestando atenção.

— Eu não a matei, se esta é a sua acusação — falou Talis para o homem, e Nico perguntou-se sobre quem ele falava.

Evidentemente o sujeito estava igualmente perplexo, porque respondeu — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Guerra? Nico não teve tempo para ficar curioso porque o mundo explodiu. Ele nunca teve muita certeza do que aconteceu nos próximos momentos ou como poderia um dia descrever para alguém. Embora fosse dia, houve um clarão de luz que pareceu tão intenso nas sombras da viela quanto uma trovoada pulsando na escuridão da noite. O menino teve certeza de que Talis estava morto, só que ouviu sua risada no momento em que se afastou da casa a fim de correr para ajudar seu vatarh com os croissants ainda na mão, esquecidos.

Então Nico foi agarrado pelo ombro por Talis. — Por todos os moitidis, Nico... — O vatarh correu e puxou o menino com ele pelo beco, entrou em uma viela estreita entre duas casas e saiu em um beco entre os fundos dos prédios. Talis deu voltas até Nico ficar sem fôlego e confuso e então finalmente parou, ofegante.

Ele colocou as mãos nos joelhos e olhou feio para Nico, com a respiração acelerada. — Droga, Nico, eu mandei que fosse embora. Quando chegarmos em casa...

Nico segurou o choro diante do tom severo de Talis e disse — Eu queria escutar. Pensei... pensei que haveria magia.

Talis inclinou a cabeça ligeiramente, embora os olhos muito escuros ainda brilhassem com raiva. — Por que você pensou isso?

— Porque eu senti a magia em toda parte, como na hora em que sinto frio de repente e fico arrepiado. — Nico esfregou o antebraço ao mostrá-lo para Talis.

— Você sentiu a magia? — indagou o vatarh, e agora a voz não parecia tão chateada. Nico concordou com a cabeça enfaticamente. Talis ficou de pé e olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se o homem havia seguido os dois.

— Ele era mesmo o embaixador ca’Vliomani, o numetodo? — perguntou Nico. — A matarh diz que o viu uma vez, perto do Templo do Archigos na margem sul. Ela disse que os numetodos não deviam ser permitidos aqui. Disse que o archigos devia ser mais duro com eles.

Talis torceu o nariz e respondeu — Talvez sua matarh esteja mais certa do que ela pensa. — Ele suspirou e de repente deu um abraço em Nico. — Venha, temos que correr para casa agora, enquanto ainda há tempo.


Nico jantou sozinho no quarto, enquanto Talis e sua matarh conversavam na sala. Ele beliscou os croissants e tomou a sopa de batata-baroa que a matarh tinha feito enquanto ouvia as vozes abafadas. Na maior parte do tempo, o menino não conseguiu distinguir as palavras, mas quando os dois falavam alto, ele era capaz de entendê-los. — ... eu disse para você que eu esperava por isso. Os sinais... só que não tão cedo...

— ... quer que a gente vá embora agora? Hoje à noite? Você enlouqueceu, Talis?

— ... se vocês ficarem, correrão perigo... vá para a sua irmã...

— ... então foi você? Você mentiu para mim...

Nico ergueu a cabeça ao ouvir isso e imaginou se sua matarh falava da mulher que o embaixador acusou Talis de ter matado.

Houve mais murmúrios, depois a matarh bufou de raiva ao escancarar a porta e olhou feio para Nico sem parecer ter visto o menino. Ela começou a reunir panelas e utensílios e enfiá-los ruidosamente em sacolas de pano que usava quando ia ao mercado, enquanto murmurava consigo mesma. Talis, na passagem entre os aposentos, observou Serafina por um momento e gesticulou para Nico, que o seguiu até o quarto e viu o homem fechar a porta assim que entrou.

— A matarh está realmente furiosa — disse Nico ao se sentar na cama.

Talis concordou com tristeza. — Está mesmo, e por um bom motivo. Nico, vocês dois têm que sair da cidade. Hoje à noite. Vocês ficarão com sua tantzia em Ville Paisli, que não é longe de Nessântico.

— Você vai com a gente?

Talis balançou a cabeça. — Não. Nico, depois do que aconteceu, a Garde Kralji estará à minha procura; o embaixador é amigo do regente, e ele mandará os gardai atrás de mim. O embaixador provavelmente sabe meu nome e talvez o seu, sabe como nós somos e onde moramos. Temos algumas viradas da ampulheta antes que ele consiga alertar alguém, mas tenho certeza de que o Velho Distrito não será seguro para vocês dois em breve. Então você terá que ajudar sua matarh a pegar o que for possível e ir embora.

— Mas a Garde Kralji... — falou Nico agitado. — Você fez algo de errado, Talis?

— De errado? Não. Eu explicarei tudo para você quando eu puder, Nico, mas agora você terá que confiar em mim. Você confia em mim, filho?

Nico concordou com a cabeça, incerto. Ele não tinha certeza de nada no momento.

— Ótimo — disse Talis. — Eu vou sair agora e arrumar uma carroça para levar vocês dois para fora da cidade. Lembra-se do homem com quem falei no mercado? Uly? Ele pode me ajudar a fazer estes preparativos. Quando eu voltar, você e sua matarh precisam estar prontos para ir embora, então cuide para pegar tudo que é seu que você queira e ajude sua matarh a juntar as coisas dela.

Nico sentiu um gosto desagradável na boca, e a comida ardeu no estômago. Da cozinha, ele ouviu a matarh ainda empacotando coisas. — Mas, se você ficar, não vão te encontrar?

— Eu tenho maneiras de me esconder se estiver sozinho, Nico, e tenho coisas que preciso fazer que só serei capaz aqui. E também... — Talis fez uma pausa e despenteou a cabeça do menino. Nico fez uma careta e passou os dedos pelo cabelo para arrumá-lo novamente. — O que aconteceu mais cedo também tem que ser segredo, Nico, como todo o resto. Se você contar às pessoas o que viu, bem, irá colocar sua matarh em risco, e você não quer isso, quer?

— Foi magia, não foi?

Talis concordou com a cabeça. — Sim, foi. E, Nico, eu acho que você... — Ele parou e sacudiu a cabeça.

— O que, Talis?

— Nada, Nico. Nada. — Talis enfiou o braço debaixo da cama enquanto falava. Ele puxou a bolsa de couro que continha a estranha tigela de metal e colocou suas roupas e outros pertences dentro. — Agora, por que você não começa a juntar suas coisas? Coloque todas em um só lugar, e você e sua matarh podem decidir o que levar e o que deixar aqui. Vamos, agora.

Talis já olhava para o outro lado enquanto abria o baú ao pé da cama para tirar uma camisola de linho. Nico observou o homem. — Você é um téni?

Talis endireitou-se, já tinha posto metade da camisola na bolsa. — Não — disse ele. A maneira como Talis falou, sem olhar diretamente para Nico e estendendo a sílaba, revelou para o menino que era mentira ou o tipo de resposta evasiva que Nico às vezes usava quando a matarh perguntava se ele fizera algo que não deveria ter feito. — Agora vamos, menino. Rápido!

Nico sentiu um arrepio. Ele saiu e perguntou-se se algum dia veria esta casa novamente.

 

Enéas co’Kinnear

ENÉAS ESTAVA NA POPA do Nuvem Tempestuosa e olhava para as nuvens revoltas que pareciam perseguir o navio. O horizonte tinha um tom sinistro de preto sob as nuvens carregadas, a noite se aproximava pontuada por clarões intermitentes de raios. Ele viu a chuva torrencial difusa caindo sobre o oceano sob as nuvens e ouviu o resmungo do trovão ao longe. O Strettosei assumiu um tom fosco de verde acinzentado manchado pelas cristas brancas formadas pelo vento; as velas do navio de dois mastros inflavam e estalavam ao serem preenchidas pelas rajadas de vento forte e impulsionavam o navio pelas ondas, que ficavam maiores. A proa se ergueu e varou os morros agitados de água; o borrifo frenético molhava o cabelo dos marinheiros e deixou ensopada a bashta militar que Enéas usava. Ele sentiu o gosto de água salgada na boca. O ar parecia ter esfriado drasticamente nos últimos instantes quando os primeiros motores da tempestade aproximaram-se do navio. O mergulho e o balanço do convés sob os pés era tão preocupante que Enéas viu-se agarrado à amurada.

Ele sentia a tempestade. A energia parecia ressoar dentro de Enéas, e as pontas dos dedos formigavam a cada raio que caía, como se o tocassem ao longe.

A tempestade nos segue do oeste, como as hordas dos ocidentais, e estala com o poder dos nahualli. Persegue-nos enquanto fugimos e vem atrás de nós em nossos próprios lares... Enéas sentiu um arrepio ao ver a aproximação da tempestade e ao imaginar que podia ver as formas de guerreiros ocidentais nas nuvens ou que elas eram a fumaça das piras de sacrifício. Ele se perguntou o que teria acontecido nos Hellins desde sua partida. Imaginou e ficou preocupado com o augúrio da tempestade.

— É melhor o senhor descer para seu cabine, o’offizier. Eu farei o que puder, mas Cénzi sabe que não há como acalmar o mar com essa tempestade aí. — A téni dos ventos designada para o navio estava ao lado Enéas, ela tinha subido sem ser ouvida por causa do barulho das velas, do lamento estridente do vento através das cordas e dos chamados urgentes dos offiziers do navio para os marinheiros no convés. A téni encarava a tempestade da mesma forma que Enéas encararia uma força inimiga avançando contra ele; ela avaliava e ponderava que estratégias funcionaram melhor contra o temporal. A tarefa dos ténis dos ventos era inflar as velas quando os ventos naturais do Strettosei não cooperassem. Eles também lutavam para acalmar as tempestades que agitavam as águas profundas entre os Domínios e os Hellins, mas esta era uma tarefa mais difícil, Enéas sabia: os moitidis do céu eram poderosos e desdenhosos do Ilmodo e das tentativas dos ténis dos ventos de acalmar sua fúria.

— É das ruins? — perguntou Enéas.

O convés se elevou quando o navio passou pela próxima onda, depois caiu abruptamente quando o Nuvem Tempestuosa desceu correndo um vale de onda. Enéas passou um braço pela amurada quando a água fluiu pelo convés; a téni dos ventos só trocou o pé de apoio com facilidade e naturalidade. — Já vi piores — respondeu ela, mas aos ouvidos de Enéas isso soou mais como bravata do que confiança. — Mas nunca se sabe na verdade o que há por trás das nuvens carregadas até que se chegue lá. Deixe-me fazer um teste. — Ela ergueu as mãos e fez o gestual de um feitiço, entoou um cântico na língua do Ilmodo com os olhos fechados ao enfrentar a tempestade.

A téni abaixou as mãos, abriu os olhos e encarou Enéas. — O’offizier, o senhor também é um téni?

Ele balançou a cabeça, intrigado. — Não, eu tive um pouco de treinamento, mas...

— Ahh... — Ela fez uma pausa e franziu os olhos. — Talvez seja isso.

— O quê?

— Há um instante, quando eu me abri para a tempestade, pensei ter sentido... — Ela balançou a cabeça, e gotículas voaram do cabelo escurecido pela água. Os primeiros pingos de chuva fria caíram no convés como pedras. — Não importa. Neste momento, eu tenho que ver o que posso fazer com essa tempestade. Por favor, é melhor o senhor descer, o’offizier...

O navio balançou de novo e, com ele, lá se foi o estômago de Enéas. Um raio estalou perto, e o o’offizier quase pôde sentir a queda do relâmpago na própria pele quando os pelos nos braços se eriçaram. Ele fez o sinal de Cénzi para a téni dos ventos. — Que Cénzi esteja com você para que acalme a tempestade — disse Enéas para a mulher, que devolveu o gesto.

— Eu precisarei Dele — falou a téni dos ventos, que encarou a tempestade novamente. Agora as mãos moviam-se em um novo gestual, e o cântico era mais longo e complexo. Enéas pensou ser capaz de sentir o poder se acumular em volta da mulher; ele recuou pelo convés inclinado e escorregadio e segurou-se onde era possível até quase cair na escada estreita que levava para os apertados compartimentos dos passageiros. Lá, o o’offizier deitou-se na maca que balançava e ouviu a tempestade cair sobre eles enquanto a téni dos ventos tentava afastar a pior parte da ventania furiosa da embarcação frágil que era o navio. Enéas também rezou, com as mãos nodosas entrelaçadas à testa, e pediu a Cénzi pela segurança do navio e pelo retorno seguro a Nessântico.

Você estará seguro... Ele pensou ter ouvido as palavras, mas contra a tempestade e a vastidão do Strettosei, elas eram pequenas e insignificantes. As palavras podiam ter sido o sussurro de um mosquito.

A tempestade foi enviada para levá-lo mais rápido ao seu lar... O pensamento surgiu de repente, naquela voz baixa que ele ouvia algumas vezes desde a fuga dos tehuantinos. A Voz de Cénzi. Enéas riu com isso, e de repente não temeu a tempestade, embora o navio balançasse e o vento berrasse de maneira estridente. O medo foi embora, e o o’offizier sentiu uma certeza de que eles estariam seguros.

Enéas agradeceu a Cénzi por lhe dar esta paz.

 

Allesandra ca’Vörl

SERÁ QUE EU REALMENTE QUERO fazer isto? Allesandra sentiu um arrepio diante desse pensamento. Era, talvez, tarde demais para mudar de ideia.

Sozinha, na escuridão de um beco estreito em Brezno, em um draiordi à noite, ela esperava onde tinha sido mandado. Um homem aproximou-se, suas botas com tachas nas solas estalavam alto nos paralelepípedos, e Allesandra empertigou-se, subitamente alerta. Com todos os sentidos sob pressão, ela apertou a mão próxima à faca escondida debaixo da manga da tashta, embora soubesse que, se a Pedra Branca fosse como os rumores diziam, arma alguma a protegeria se o assassino decidisse matá-la. O homem chegou perto, com os olhos voltados para as sombras sob o capuz da tashta de Allesandra, e a avaliou.

— Ah — falou o sujeito. — Acho que você é atraente o suficiente. Que tal um programa comigo, mocinha? — perguntou ele ao se aproximar, enquanto deixava um rastro de cheiro de cerveja.

Ele acha que eu sou uma puta. Este não é ele. Mas, para ter certeza, ela abriu a mão e mostrou o seixo liso e branco acinzentado. O homem não reagiu. — Eu tenho um se’siqil que pode ser seu se você for boazinha comigo — falou o sujeito, e Allesandra fechou os dedos em volta da pedra.

— Vá embora — disse ela — ou eu chamo o utilino.

O homem fez uma cara feia, soluçou, depois passou por ela. Ele cuspiu no chão perto dos pés de Allesandra.

— Você acha que seria fácil assim? — Ao som da voz, Allesandra começou a dar meia-volta, mas uma mão enluvada pegou seu ombro e deteve a a’hïrzg. — Não — falou a voz. — Continue aí e olhe para o outro lado da rua. Eu sou a Pedra Branca. — A voz era rouca, embora com um tom mais agudo do que Allesandra tinha imaginado. Em sua mente, ela imaginava uma voz grossa e sinistra, e não essa, genérica.

— Como eu sei que é você? — perguntou ela.

— Você não tem como saber. Não agora. Você não saberá até ver a pedra no olho esquerdo do homem que quer morto. É um homem, não é? — Ela ouviu uma risadinha baixa. — Para uma mulher, é sempre um homem... ou por causa de um.

— Eu quero ver você — disse Allesandra. — Quero saber com quem falo, quem eu contrato.

— As únicas pessoas que veem a Pedra Branca são aquelas que eu mato. Vire-se e você será uma delas. Eu sei quem você é, e isso basta. Fui bem claro, a’hïrzg ca’Vörl? — Involuntariamente, Allesandra sentiu um arrepio diante da ameaça, e a voz riu novamente. — Ótimo. Eu não gosto de serviço desnecessário e não remunerado. Agora... você trouxe meu pagamento, conforme Elzbet lhe disse?

Ela concordou com a cabeça.

— Ótimo. Você vai pôr a bolsa aos seus pés e colocará a pedra que trouxe em cima dela. É uma pedra clara, tão branca quanto conseguiu achar? Você a reconheceria outra vez?

Allesandra concordou com a cabeça novamente. A a’hïrzg resistiu à tentação de olhar para trás e soltou do cinto da tashta a bolsinha pesada com solas de ouro, abaixou-se e colocou a bolsa nos paralelepípedos da rua, ao lado dos pés. Ela colocou o seixo em cima do couro macio e levantou-se.

— Em quanto tempo? — perguntou Allesandra. — Em quanto tempo você vai fazer?

— No momento que me convier e em um local à minha escolha — respondeu a Pedra Branca. — Mas dentro de uma lua, não mais do que isso. Quem você quer que eu mate? Qual é o nome dele?

— Você pode não querer o dinheiro quando eu lhe disser.

A Pedra Branca deu uma risada debochada. — Você não precisaria de mim se aquele que quer que morra não fosse alguém bem protegido, do alto escalão. Talvez, dada a sua história, seja alguém de Nessântico?

— Não.

— Não? — Havia, pensou Allesandra, decepção na voz. — Então quem, a’hïrzg? Quem você quer que morra tanto assim a ponto de me encontrar?

Ela hesitou, sem querer dizer em voz alta. Allesandra parou de prender o fôlego e suspirou. — Meu irmão. O hïrzg Fynn.

Não houve resposta. Allesandra ouviu um barulho ao longe na rua, à direita, e virou a cabeça involuntariamente para aquela direção. Não havia nada lá; sob o luar, a rua estava vazia a não ser por um utilino que acabara de virar a esquina no outro quarteirão, assobiando e balançando a lanterna. Ele acenou para Allesandra, que devolveu o gesto. — Você me ouviu? — sussurrou ela para a Pedra Branca.

Não houve resposta. Allesandra abaixou o olhar: a bolsa e a pedra sumiram. Ela virou-se. Havia uma porta fechada atrás dela, que levava ao interior de um dos prédios.

Allesandra decidiu que não seria bom para ela abrir aquela porta.

 

A Pedra Branca

— MEU IRMÃO. O hïrzg Fynn.

A Pedra Branca achava que não se surpreenderia mais a esta altura, mas isso...

Ela estava em Firenzcia há mais ou menos três anos agora, o período mais longo que passou em um lugar há algum tempo, mas o trabalho era bom lá. A Pedra Branca sabia um pouco da história de Allesandra e Fynn ca’Vörl; tinha ouvido os rumores, mas nenhum deles falava de um ressentimento tão grande na a’hïrzg. E ela mesma testemunhara Allesandra salvar o irmão de um ataque.

A Pedra Branca viu-se confusa. Ela não gostava de incertezas.

Mas... isso não lhe dizia respeito. As solas de ouro na bolsinha eram bem reais, ela tinha ouvido Allesandra claramente, e o seixo branco da mulher estava na bolsinha ao lado da pedra do olho direito, o seixo que continha as almas de todos aqueles que a Pedra Branca matou.

Os dedos apalparam o seixo branco sobre o couro fino e macio da bolsinha. O toque reconfortou a Pedra Branca, e ela pensou que podia ouvir o chamado fraco de suas vítimas.

— Eu quase matei você primeiro... Você era tão desajeitada naquela época...

— Quantos mais? Nós ficamos mais fortes cada vez que você adiciona outro...

— Em breve você nos ouvirá sempre...

Ela tirou a mão da pedra e as vozes pararam. Nem sempre elas faziam isso. Às vezes, em especial recentemente, ela ouvia mesmo quando não tocava na pedra.

Matar um hïrzg... Seria um desafio. Seria um teste. Ela teria que planejar com cautela; teria que observá-lo e conhecê-lo. Ela teria que se tornar o hïrzg.

Os dedos retornaram à pedra. — Você matou gente sem status, você matou ce’ e ci’, e eles foram fáceis demais. Você matou co’ e ca’ e sabe que eles são bem mais difíceis porque dinheiro traz isolamento e poder atrai proteção. Mas nunca isso. Nunca um governante.

— Você está com medo...

— ... Você duvida de si mesma...

— Não! — disse a Pedra Branca com raiva. — Eu sou capaz de fazer isso. Eu farei. Vocês verão. Verão quando o hïrzg estiver aí com vocês. Verão.

— Eles reconhecerão você. A a’hïrzg reconhecerá você...

— Não, não reconhecerá. Pessoas como ela sequer enxergam pessoas sem status, como eu era para a a’hïrzg. Minha voz será diferente, meu cabelo e, mais importante, minha atitude. Ela não me reconhecerá. Não.

Dito isso, ela tirou da cama a bolsinha de moedas de ouro e colocou no baú com os outros pagamentos. Do baú, ela retirou um espelho surrado de bronze e olhou o reflexo na superfície polida. Tocou no cabelo, viu os olhos atormentados, quase sem cor. Era o momento de ela se tornar outra pessoa. Alguém mais rico, mais influente.

Alguém que pudesse chegar perto do hïrzg...


CONTINUA

??? PRESSÁGIOS ???

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Enéas co’Kinnear

Jan ca’Vörl

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Enéas co’Kinnear

AGORA ELE QUERIA ter se preocupado em aprender mais da língua ocidental.

Enéas conhecia algumas das palavras, o suficiente para se virar nos bazares ruidosos, cheirosos e lotados de Munereo. Lá, entre a multidão que tagarelava e se acotovelava, podia-se encontrar perfumes doces das planícies de Horn Ocidental; iguarias doces, escuras e saborosas das florestas do Grande Rio do Sul; cestas com pinturas elaboradas dos povos da Grande Espinha; belas peças de lã das ovelhas dos morros do nordeste de Paeti, tingidas com tons intensos de verde e laranja, com estampas elaboradas, bordadas em padrões geométricos; frutas e ervas exóticas que os vendedores diziam vir de todas as partes dos grandes lagos internos do continente ocidental. Nos mercados oficiais, Enéas encontrava produtos inferiores com preços duas ou três vezes mais altos do que pagaria nos mercados abertos, vendidos por ocidentais que sabiam a língua de Nessântico.

Mas era nos bazares, escondidos no labirinto de ruas estreitas da cidade onde os habitantes nativos ainda moravam, que os verdadeiros tesouros eram encontrados, e lá ninguém falava a língua de Nessântico, mesmo que soubesse.

Munereo... era um sonho. Outra vida, como a época em que ele viveu na própria Nessântico. Comparados à dura realidade, aqueles tempos pareciam ter acontecido com outra pessoa, inteiramente em outra vida.

Enéas sabia que as pessoas de puro sangue nativo eram chamadas de tehuantinos. Neste momento, era com os tehuantinos que eles lutavam. Os tehuantinos fluíram para os Hellins vindos das montanhas a oeste, após o comandante Petrus ca’Helfier ter sido assassinado por ter estuprado ou se apaixonado por — dependia de quem contava — uma mulher tehuantina. Ca’Helfier fora assassinado por um ocidental. Então, o novo comandante — Donatien ca’Sibelli — retaliou, houve tumultos, baderna e agitação crescentes, e o conflito finalmente se expandiu em uma guerra aberta, com cada vez mais tehuantinos vindo dos Hellins.

Agora Enéas seria uma nova baixa naquela guerra. Se esta for a Sua vontade, Cénzi, então irei até o Senhor com prazer...

Ele gemeu ao levar um chute nas costelas de um pé em sandálias levando o fôlego e as memórias embora. Alguém rosnou alguma coisa rápida e praticamente ininteligível na língua dos tehuantinos para Enéas. — ...pé... — ouviu ele. — ...momento... — Enéas fez um esforço para abrir os olhos, que estavam apertados contra o sol implacável, para ver a carranca do ocidental: a pele da cor de chá; as bochechas tatuadas com faixas azuis e pretas da classe guerreira; os dentes brancos; a armadura de bambu no corpo, e, na mão, uma espada curva ocidental que o homem usava para gesticular e que fazia um som audível quando a lâmina cortava o ar.

Enéas tentou mexer as mãos e descobriu que estavam firmemente amarradas atrás das costas. Ele lutou para se levantar, mas a perna e o tornozelo feridos recusaram-se a cooperar. — Não — falou Enéas na língua ocidental. O o’offizier tentou fazer com que a recusa soasse menos rebelde e procurou na mente confusa pelo cansaço as palavras que poderia usar. — Eu... machucado. Não posso... pé. — Enéas torceu para que o ocidental entendesse a sintaxe e o sotaque capengas.

O ocidental suspirou com irritação. O homem ergueu a espada, e Enéas soube que estava prestes a morrer. Eu vou ao Senhor, Cénzi. Ele esperou pelo golpe e ergueu os olhos para ver o golpe mortal, para que o ocidental soubesse que não tinha medo.

— Não. — Enéas ouviu a palavra; outra voz. Uma mão deteve o braço do ocidental assim que começou a descer. Outro tehuantino entrou no campo de visão de Enéas. Não havia marcas de classe no rosto deste homem, as mãos não tinham calos e pareciam ser macias, e ele usava uma roupa simples e folgada que não era diferente das bashtas e tashtas da terra natal do o’offizier. À exceção do chapéu decorado com plumas que o homem usava sobre o cabelo escuro e oleoso, ele poderia se passar simplesmente por um estrangeiro qualquer em Nessântico. — Não, Zolin — repetiu o sujeito para o guerreiro, depois liberou uma enxurrada de palavras velozes demais para Enéas compreender.
O guerreiro grunhiu e embainhou a arma. Ele gesticulou uma vez para Enéas. — ...ruim... sua escolha... nahual Niente — disse o homem e foi embora.

Nahual. Isso queria dizer que seu salvador era o líder dos nahualli, os ténis-guerreiros dos ocidentais. “Niente” podia ser um nome, podia ser um título secundário; Enéas não sabia. Ele encarou o homem e notou que seu cinto continha dois dos estranhos apetrechos em forma de tubo de marfim que foram usados para matar o a’offizier ca’Matin. Enéas perguntou-se se seria o próximo; teria preferido a espada. Ele fechou os olhos e ofereceu outra rápida prece silenciosa para Cénzi.

— Você consegue andar, o’offizier?

Enéas abriu os olhos ao ouvir o sotaque carregado de Nessântico. O nahual Niente olhava fixamente para ele, que balançou a cabeça. — Com dificuldade. Meu tornozelo e a perna...

O homem resmungou e ajoelhou-se ao lado de Enéas. Ele tocou a perna do o’offizier sob o uniforme e sondou com as mãos. Enéas soltou um ganido involuntário quando o nahualli manipulou seu pé. Niente resmungou novamente e chamou alguém. Um jovem veio correndo com uma grande bolsa de couro e entregou para o feiticeiro. O homem vasculhou o interior e tirou uma peça comprida de linho branco. Ele enfaixou a perna de Enéas e bateu na mão do o’offizier quando ele tentou detê-lo. — Deite-se, se quiser viver — falou o nahualli.

Após enfaixar completamente a perna de Enéas, o nahualli ficou de pé. Fez um gesto e falou uma palavra na própria língua. Imediatamente, Enéas sentiu o pano se apertar na perna e gritou. Ele tentou arrancá-lo com as unhas, mas o pano não era mais feito de linho macio. A perna parecia presa por um torno de aço implacável, e um fogo lento ardeu dentro dela enquanto o o’offizier se debatia no chão e o nahual entoava um cântico na própria língua.

A agitação de Éneas não adiantou. O coração inflamou até ele gritar de dor...

... e o fogo abruptamente se apagou. Enéas atacou o pano novamente, que agora era apenas pano e nada mais. Ele desenfaixou a perna enquanto o nahualli assistia impassivelmente, esperou ver a perna negra, cheia de bolhas e esmagada. Mas os hematomas que manchavam a perna tinham sumido, e o inchaço em volta do tornozelo diminuiu.

— Agora, fique de pé — disse o nahualli.

Enéas levantou-se. Não havia mais dor, e a perna estava intacta e forte.

Cénzi, o que ele fez? Sinto muito... — Por que você fez isso? — disse o o’offizier com raiva.

O homem encarou Enéas da maneira como se encara uma criança retardada. — Para que você pudesse andar.

— Curar com o Ilmodo vai contra a Divolonté — disse Enéas com raiva. — Minha recuperação estava nas mãos de Cénzi, não nas suas. É Dele a escolha de me curar ou não. Vocês selvagens usam o Ilmodo de modo errado.

O nahualli torceu o nariz ao ouvir isso. — Eu usei um encantamento que poderia ter usado em um dos meus homens, o’offizier. Você está de pé, curado e, no entanto, está sendo ingrato. Toda sua gente é assim arrogante e estúpida?

— Cénzi... — Enéas começou a falar, mas o homem o interrompeu com um gesto.

— Seu Cénzi não está aqui. Aqui, Axat e Sakal reinam, e foi o X’in Ka e não o seu Ilmodo que eu usei. Agora, venha comigo.

— Por quê? Onde estamos indo?

— Para nenhum lugar que você conheça. Venha ou morra aqui, caso se sinta melhor assim.

— Você vai me matar de qualquer maneira. Eu vi o que vocês fazem com os capturados. — Enéas gesticulou para os apetrechos no cinto do homem. O nahualli tocou os objetos, os dedos alisaram o osso curvo.

— Acredite no que quiser — disse ele. — Venha comigo ou morra aqui. Não me importo com a sua escolha.

O nahualli começou a ir embora. De pé, Enéas pôde ver o acampamento dos ocidentais sendo desmanchado à sua volta em uma manhã escura, que ameaçava chover. Agora mesmo, muitas tropas dos tehuantinos iam embora marchando para o nordeste: os offiziers deles estavam montados, os homens andavam com longas lanças nos ombros. Enéas notou o grande círculo enegrecido, o resquício da grande fogueira ainda fumegante que ele tinha visto na noite anterior. Uma arcada inconfundível de costelas queimadas surgiu das brasas. Enéas estremeceu ao ver aquilo, pois sabia que o esqueleto devia ser de ca’Matin ou de outro colega soldado.

Ele viu o nahualli gesticular para um dos guerreiros por quem passou e apontar de volta para Enéas. Cénzi, o que devo fazer? O que o Senhor quer de mim?

Como se fosse a resposta, as nuvens abriram-se a noroeste, e ele viu um facho de luz do sol pintar os morros da cor de esmeralda ao longe, antes de sumir novamente.

— Espere — falou Enéas. — Eu vou com você.

 

Audric ca’Dakwi

— VOCÊ NÃO PODE CONTAR PARA NINGUÉM que eu converso com você, Audric — disse a mamatarh. Os olhos pintados do quadro cintilaram ao dar o aviso, e o rosto envernizado ficou sério. — Você entendeu, não é?

— Eu podia... contar para Sergei — sugeriu Audric, que estava diante do quadro com um candelabro na mão. Ele dispensou Seaton e Marlon pelo resto da noite, embora soubesse que os dois dormiam na câmara ao lado e viriam se fossem chamados. A respiração estava difícil; ele lutava por cada fôlego, as palavras saíam em espasmos ofegantes. Audric sentiu o calor do fogo na lareira em frente. — Ele... acreditaria em mim. Ele... entenderia. A senhora... confiava nele, não?

Mas o rosto no quadro balançou a cabeça, um movimento praticamente imperceptível à luz instável das velas. — Não — sussurrou ela. — Nem mesmo Sergei. Que eu converso com você, que dou conselhos, isso deve ser segredo nosso, Audric. Segredo nosso. E você tem que começar a se impor, Audric: como eu me impus, desde o início.

— Eu não tenho... 16 anos. Sergei é... o regente, e é... a palavra dele... que o Conselho dos Ca’... ouve... Sigourney e os demais... — O esforço de falar era um sacrifício, e Audric não conseguiu terminar. Ele fechou os olhos e ouviu a resposta de sua mamatarh.

— O regente e o Conselho têm que entender que você é o kraljiki, não Sergei — interrompeu Marguerite com rispidez. — A Guerra nos Hellins... não vai bem. Há perigo lá.

Audric concordou com a cabeça, com os olhos ainda fechados. — Sergei... sugeriu retirar... nossas tropas, ou talvez... — ele fez uma pausa porque foi acometido por outro acesso de tosse — ... até mesmo abandonar as cidades... em que nos estabelecemos... nos Hellins até... que os Domínios sejam... unificados novamente, quando pudermos... dar recursos a elas...

— Não! — A palavra foi quase um guincho, tão alto que Audric tapou os ouvidos e arregalou os olhos, surpreso ao ver que a boca no quadro não estava aberta em fúria e que Seaton e Marlon não entraram correndo no quarto, em pânico; porém, as mãos nos ouvidos não conseguiam deter a voz de Marguerite em sua cabeça. — Você sabe do que me chamavam no início do meu reinado, Audric? O seu mestre de lições lhe contou?

— Ele contou. Eles chamavam a senhora... de “Spada Terribile”... a Espada Terrível.

O rosto no quadro assentiu sob o brilho fraco das velas. — Eu era a Espada Terrível. Eu trouxe a paz aos Domínios primeiro pela espada do meu exército, antes de um dia eu virar a Généra a’Pace. Eles se esquecem disso, aqueles que se lembram de mim. Você tem que ser forte e firme da mesma maneira, Audric. Os Hellins: eles têm uma terra rica, que traria grande riqueza aos Domínios, se você tiver a coragem de pegá-la e mantê-la.

— Eu terei — falou Audric fervorosamente. Imagens de guerra passaram pela sua mente, de si mesmo no Trono do Sol com mil pessoas ajoelhadas diante dele, e nenhum regente ao lado.

— Ótimo — respondeu Marguerite. — Excelente. Ouça o que eu digo e vou lhe contar o que você tem que fazer para ser o maior dos kraljiki. Audric, o Grande; Audric, o Amado.

Ao ver o sorriso da mamatarh, ele finalmente concordou com a cabeça. — Eu serei tudo isso. — Audric respirou ofegante novamente e tossiu. — Eu serei.

— Será o que, kraljiki?

Audric deu meia-volta ao ouvir a pergunta e quase derrubou o candelabro com o movimento, que foi tão violento que duas das velas foram apagadas. O esforço provocou espasmos ofegantes, e o regente Sergei correu para pegar o candelabro das mãos do kraljiki e apoiar o menino com um braço em volta de sua cintura. No nariz lustroso e reluzente do regente, Audric vislumbrou o archigos Kenne à espreita, nas sombras perto da porta, mantida aberta para os dois por Marlon. Ca’Rudka ajudou Audric a desmoronar em uma das cadeiras estofadas em frente à lareira. Marguerite olhou para ele com uma expressão indecifrável. — Aqui, meu kraljiki, um pouco do xarope do curandeiro — falou ca’Rudka ao colocar uma taça nos lábios de Audric, que encarava o quadro. O menino balançou a cabeça e afastou a bebida.

Ela diz que os curandeiros não ajudarão, Audric quis falar, mas não falou, e a boca bem fechada de Marguerite curvou-se em um ligeiro sorriso. As pálpebras do kraljiki queriam se fechar, mas ele obrigou-as a ficarem abertas. — Não — disse o menino.

Ca’Rudka franziu a testa, mas pousou a taça e falou — Eu trouxe o archigos. Deixe que ele reze pelo senhor...

Audric ergueu o olhar para o quadro e viu a mamatarh concordar com a cabeça. Ele fez o mesmo, e o archigos Kenne entrou apressadamente no quarto. Enquanto o archigos se ocupava com o cântico e o gestual, Audric ignorou os dois homens. Ele só tinha olhos para o quadro e para o olhar sereno da mamatarh. Marguerite falou com o neto enquanto Kenne tocava em seu peito e o calor do Ilmodo amenizava a congestão nos pulmões.

— Nós podemos fazer isso juntos, Audric. Você é o neto que eu sempre quis ter em vida. Ouça o que eu digo, e em toda a história não haverá um kraljiki que poderá se igualar a você. Eu vou lhe ajudar. Ouça o que eu digo...

— Eu estou ouvindo — disse Audric para ela.

— Kraljiki? — falou o regente ca’Rudka, que acompanhou o olhar de Audric até o quadro. O kraljiki perguntou-se se o homem também tinha ouvido o sussurro, mas aí o nariz de prata do regente reluziu à luz das velas quando ele se virou de volta e refletiu a própria imagem de Audric. — Nenhum de nós disse coisa alguma.

Audric balançou a cabeça e falou — Realmente. E é por isso que eu ouço.

Ca’Rudka deu um sorriso hesitante. Kenne, em meio ao encantamento, deu de ombros. — Ah, uma piada — disse o regente. Ele deu uma risadinha sem graça. — Está se sentindo melhor, kraljiki?

— Estou, Sergei. Sim. Obrigado, archigos. Você pode ir. — O archigos não se mexeu, e Audric fechou a cara. — Eu disse, archigos, você pode ir.

Kenne arregalou os olhos e Audric viu o archigos olhar para Sergei, que deu de ombros. Kenne fez uma mesura e o sinal de Cénzi e saiu.

— Aquilo foi uma grosseria — disse Sergei para Audric depois que Marlon fechou as portas do quarto do kraljiki ao sair. — Depois dos esforços e preces do archigos...

— As preces do homem tinham acabado — falou Audric com uma agressividade que jamais havia usado com Sergei antes. Ele olhou para o quadro e viu a mamatarh acenar com a cabeça, como se estivesse satisfeita. A voz de Marguerite murmurou em sua cabeça. — Sergei não se importa com você, Audric. Ele apenas quer manter o poder que é seu. Não quer que você seja o que pode ser. Quer que você continue fraco, que sempre precise dele, para se manter como regente. — A força da mamatarh pareceu fluir por Audric. Ele descobriu que podia falar sem as pausas, sem tossir. O kraljiki falou tão bem e com tanta força quanto o próprio Sergei. — Preciso falar com você, regente, sobre os Hellins. Andei considerando a situação de lá desde nossa última conversa. Decidi mandar outra divisão da Garde Civile para complementar nossas tropas lá.

Audric ficou orgulhoso de como a voz soou: altiva, forte e intensa. Ele sorriu para Marguerite, e, sob a luz das velas, ela acenou com a cabeça para o neto.

 

Sergei ca’Rudka

— DECIDI... MANDAR outra... divisão da... Garde Civile... para complementar... nossas tropas... lá — falou Audric.

O menino mal conseguiu colocar as palavras para fora no meio das arfadas e da tosse. A raiva dentro dele pareceu tornar a agonia ainda pior do que o normal, como se as preces do archigos Kenne não tivessem feito nada.

Sergei obrigou-se a ficar impassível, a não revelar nada do que pensava. Deixe o menino ter seu acesso de raiva. Porém, as palavras deixaram o regente preocupado: não parecia Audric falando; ele escutava as palavras de outra pessoa. Quem andou falando com o menino? De quem era o conselho que foi sussurrado em seu ouvido para ele declamar? Um dos chevarittai, talvez, em busca de glória na guerra. Talvez a própria Sigourney, uma vez que o irmão era o comandante lá.

Audric olhava por cima do ombro de Sergei, que se voltou para o mórbido retrato da kraljica Marguerite sobre a lareira. — Eu pensei que tinha deixado clara minha opinião sobre a questão, kraljiki — falou o regente em um tom de voz cuidadosamente neutro, cuidadosamente sem emoção. — Não acho que isso seja prudente, não com o tamanho do exército que a Coalizão conseguiria arregimentar se eles quisessem. Esta guerra nos Hellins é como uma ferida que sangra; ela nos enfraquece e desvia a atenção de onde o foco deveria estar: no leste, não no oeste. Devíamos ver o que podemos fazer para restaurar os Domínios.

O olhar do menino desviou do retrato para Sergei e voltou. — Os Hellins nos dão riquezas e bens que não encontramos em nenhum outro lugar. Riquezas... e bens... (tosse)... que... não encontramos... em nenhum outro lugar.

— Realmente, kraljiki, mas nós poderíamos obter esses bens através do comércio com os orientais tão facilmente quanto pela guerra. Mais facilmente, na verdade. Assim que os Domínios forem reunificados, então haverá tempo para olhar para o outro lado do Strettosei, para os Hellins, mais uma vez. Perdemos muito terreno lá porque não pudemos dar a atenção que o território merece.

O rosto de Audric ficou vermelho, pelo esforço de falar ou pela raiva, ou por ambos. — Não foi isso que meu vatarh disse quando os Distúrbios começaram, regente. Você acha que por que eu era apenas uma criança na época eu não me lembraria? ... apenas uma... criança... na época... (arfada)... que não... me lembra... ria?

O rosto impassível do regente não revelou nada. — Quando os Distúrbios começaram, o kraljiki Justi acreditava que ele não tinha escolha a não ser responder. Seu vatarh acreditou no que os a’offiziers disseram para ele: que os ocidentais eram pouco mais do que selvagens, que em pouco tempo seriam repelidos para além do lago Malik. Porém, eu gostaria de lembrá-lo que eu não compartilhava deste ponto de vista. As notícias continuam piorando apesar dos melhores esforços do comandante ca’Sibelli. Nós julgamos mal os ocidentais, e é hora de salvar o que for possível de uma decisão ruim.

— Meu vatarh não tomou uma decisão ruim! — O menino guinchou as palavras e conseguiu falar todas em um fôlego só. Depois ele tossiu muito e intensamente, e Sergei esperou. — Eu quero que outra divisão seja enviada — insistiu Audric. — Esta é a minha vontade. Essa é a vontade do kraljiki.

— O senhor é o kraljiki — disse Sergei, que manteve o tom de voz baixo e reconfortante em contraste com os guinchos estridentes de Audric. — Mas eu fui nomeado regente pelo Conselho dos Ca’ após a morte de seu vatarh até que o senhor atinja a maioridade.

— Eu já sou quase maior de idade — respondeu Audric. O rosto estava tão pálido que Sergei pensou que o menino fosse desmaiar. — Daqui a menos de dois anos. Eu poderia pedir ao Conselho para removê-lo e ter permissão de governar plenamente. Eles já fizeram isso no passado. O mestre ci’Blaylock me disse: o kraljiki Carin dispensou seu regente aos 14 anos, a mesma idade que a minha.

Sergei ergueu a mão. Com delicadeza. Com um sorriso debaixo do nariz de prata. — Sim, isso foi feito, mas o senhor e eu não precisamos estar em desacordo, meu kraljiki.

— Então não me desobedeça, regente. Eu irei ao Conselho. Irei sim. Farei com que o removam. — O menino gesticulou freneticamente, o que provocou outro ataque de tosse.

— Audric... — respondeu Sergei pacientemente enquanto o jovem se deitava no travesseiro. Marlon, à espreita no canto dos fundos do quarto, encarava Sergei de olhos arregalados e balançava a cabeça. — Talvez eu tenha sido negligente por não lhe envolver plenamente, por não fazer com que tomasse parte de todas as reuniões e discussões. Isso pode mudar; isso será mudado. Eu lhe prometo: se quiser tomar parte de todas as discussões de estado, ler todos os relatórios, ouvir todos os conselheiros, realmente ver o que significa governar, então eu me adequarei a isso. Mas os Hellins... — Ele balançou a cabeça. — Já são quase sete anos, Audric. Sete anos e os ocidentais recuperaram a maior parte do que conquistamos por lá originalmente. Sete anos, e perdemos gardai demais, desperdiçamos solas de ouro e sangue vermelho em excesso na tentativa de conter a maré. No fim das contas, eu quero o que o senhor quer. Eu quero que os Domínios tenham as riquezas das Terras Ocidentais. Quero mesmo. Mas esta não é a hora. E não é a hora de discutirmos isso. Amanhã, quando se sentir melhor...

— Então saia! — berrou Audric para Sergei, tão alto que o atendente no corredor abriu um pouquinho a porta para espiar. O regente fez que não para o homem. — Saia e me deixe em paz. — Ele virou o rosto e tossiu no travesseiro.

— Como quiser, kraljiki. — Sergei fez uma mesura para o jovem. Ao se virar para ir embora, ele viu o retrato da kraljica mais uma vez. Ela pareceu dar um sorriso triste para o regente, como se compreendesse.

 

Allesandra ca’Vörl

A CERIMÔNIA NO TEMPLO DE BREZNO foi dolorosamente longa, assim como o discurso de boas-vindas de Fynn para o a’gyula da Magyaria Ocidental: Pauli, o marido de Allesandra. O rosto dela doía por ter de manter um sorriso durante as monótonas saudações de Fynn — escritas, sem dúvida, por um dos escribas do palácio, já que Fynn às vezes espiava intrigado o pergaminho diante de si, quando tropeçava em palavras desconhecidas. A coluna de Allesandra doía por causa dos bancos desconfortáveis e de espaldar reto do templo. Jan, sentado entre ela e seu vatarh, remexia-se sem parar, tanto que Pauli finalmente se inclinou na direção do jovem e sussurrou algo em seu ouvido. Depois disso, Jan parou de se remexer no banco, mas o mau humor era visível em seu rosto quando Allesandra e Pauli saíram do templo atrás de Fynn, do archigos Semini e de sua esposa megera, sendo seguidos pelos ca’ e co’ de Firenzcia como um obediente rebanho de ovelhas.

Depois veio a festa no Grande Palácio de Brezno. Agora eram os pés que doíam, e Allesandra pensou que as barbatanas do espartilho, que apertavam a tashta como a moda ditava, deixariam sulcos permanentes na sua cintura. O salão de baile era um forno na noite úmida e sufocante, mais como em pleno verão do que na primavera que o calendário insistia em marcar. O archigos havia postado e’ténis pelo salão para manter os ventiladores de teto girando com a energia do Ilmodo. O movimento das pás parecia intensificar o calor em vez de diminuí-lo e transformava o ar em uma colônia fétida de suor, pomadas e perfumes. A noite estava ruidosa com a música da orquestra no fim do salão, com o som de pés que dançavam na pista de madeira colocada sobre os ladrilhos, e com uma centena de conversas isoladas, tudo refletido de volta para eles pelo domo acima.

Allesandra desejava fervorosamente que estivesse em outro lugar, mas se os desconfortos incomodavam Pauli, ele não deixou transparecer. Pauli separou-se de Allesandra assim que o decoro permitiu e estava com um grupo de moças em volta de Fynn. Jan estava lá também, ao lado do vatarh, e Allesandra notou que ele recebia quase tanta atenção quanto o hïrzg, e certamente mais do que Pauli. Fynn divertia todo mundo com a história da caçada ao cervo, o braço inclinado para trás como se mirasse o arco enquanto ria, e deu um tapinha nas costas de Jan. — ... o garoto atira praticamente tão bem quanto eu — ela ouviu Fynn dizer, e o rosto de Jan ficou radiante e com um largo sorriso enquanto as moças aplaudiam e faziam os elogios apropriados.

Obviamente, seria Pauli quem certamente encontraria satisfação e alívio entre as coxas de uma delas na noite de hoje. Allesandra tinha certeza disso; o marido não se importava mais em esconder suas aventuras. Ela dizia para si mesma que não se importava.

— A’hïrzg, está se divertindo? — Ela virou-se e viu o archigos Semini ca’Cellibrecca parado atrás dela com duas bebidas geladas na mão. Fynn trouxera, sob grande despesa, carroças cheias de gelo glacial das montanhas em volta do lago Firenz. O homem ofereceu um copo para Allesandra e disse — Por favor, pegue. Francesca parece ter sumido e o gelo vai desaparecer em breve nesse calor.

Com gratidão, Allesandra pegou o copo, que suava. Tomou um gole da bebida gelada e saboreou a sensação fria quando o suco adoçado por mel desceu pela garganta. — Obrigada, archigos. Acho que você acabou de salvar a minha vida.

Ele deu um largo sorriso ao ouvir isso, a barba reluzia por causa do óleo. — A senhora se importaria de andar comigo, a’hïrzg? Eu suspeito que haja um pouco de brisa perto das janelas.

Ela olhou o grupo barulhento em volta de Fynn, o marido e o filho ali com ele. — Certamente — falou Allesandra para o archigos. Semini ofereceu o braço, e ela colocou a mão na dobra do antebraço enquanto andavam. Ele não falou nada até que os dois ficassem bem afastados do hïrzg e então se aproximou de Allesandra. — Seu marido gosta da atenção que recebe como a’gyula, mas é um tolo ao deixar a senhora desacompanhada. — A mão livre de Semini cobriu a de Allesandra em seu braço.

— Eu poderia dizer o mesmo sobre sua esposa, archigos.

Semini riu. Sua mão deu um tapinha na dela. — A esposa ideal é ao mesmo tempo uma aliada e uma amiga, mas este é um ideal raramente alcançado, não é? Uma pena. Eu me pergunto, às vezes, o que poderia ter acontecido se a falsa archigos não tivesse sequestrado a senhora. Talvez, a’hïrzg, nós pudéssemos ter acabado como... aliados. Ou algo mais.

Allesandra acenou com a cabeça para um grupo de esposas ca’ e co’ que passava. Ela viu os olhares especulativos notarem sua mão no braço do archigos. — A filha do archigos ca’Cellibrecca foi uma escolha melhor para você, archigos. Veja onde está agora.

Ela sentiu mais do que ouviu o muxoxo de desdém do archigos. — Uma escolha fria e calculista da parte do jovem Semini e que me deu um casamento com exatamente estas mesmas características. Mas existem outras alianças que podem ser forjadas fora do casamento, a’hïrzg, se a pessoa é cuidadosa. E interessada. — O archigos manteve a mão sobre a de Allesandra e apertou os dedos.

— Eu sempre fui extremamente cuidadosa a respeito de minhas alianças, archigos. Isto foi uma coisa que aprendi cedo.

Ele concordou com a cabeça. Os dois estavam perto da pista de dança agora, a música abafava suas vozes. — Soube que a senhora fará um voto de lealdade ao hïrzg Fynn no Besteigung amanhã?

— Sim. Você tem fontes próximas ao hïrzg.

Sob a barba grisalha, o homem sorriu. — Saber o que os poderosos sabem é uma tática de sobrevivência, a’hïrzg, como tenho certeza que compreende. — Por vários momentos, os dois andaram em silêncio pelo limite da pista. Casais flutuavam ao dançar uma gavota perto deles. — Também ouvi a notícia de Nessântico de que o jovem kraljiki não está bem — falou Semini. Allesandra não disse nada. — Os rumores que chegaram a mim dizem que o Conselho dos Ca’ em Nessântico pode considerar os gêmeos Sigourney ca’Ludovici ou Donatien ca’Sibelli como sucessores caso Audric morra. Eles são primos em segundo grau de Audric, creio eu. — Ele respirou fundo e sorriu. — Assim como a senhora.

Allesandra devolveu um olhar neutro para o homem. Pessoas passaram dançando por eles. — Assim como Fynn — respondeu ela finalmente.

— Sim, mas a senhora é a irmã mais velha. E tem a vantagem de ter vivido lá; a senhora conhece Nessântico, enquanto seu irmão, não. E talvez existam pessoas em Nessântico que saibam reconhecer força quando a veem e desejem uma presença forte no Trono do Sol. Alguém mais forte do que Sigourney ou Donatien. — Semini aproximou-se e abaixou a voz em um murmúrio rouco. — Por falar nisso, existem pessoas aqui que prefeririam que a senhora usasse a coroa que atualmente está na cabeça de Fynn.

— Você fala em traição novamente, archigos? — perguntou Allesandra, tão baixo quanto ele.

— Eu falo a verdade, a’hïrzg.

— E sobre estas pessoas aqui de que você fala, você estaria entre elas, archigos?

Ele apertou os dedos da mão de Allesandra. — Eu estaria. Talvez... talvez até mesmo seja possível unificar tanto a Coalizão quanto a Fé... sob os líderes certos.

O archigos certo seria você mesmo, é claro... Allesandra observou as pessoas dançarem na pista enquanto executavam os passos complicados e predeterminados. O que ele realmente sabe? O que realmente quer? Allesandra não sabia como responder a Semini. Não sabia se o archigos tinha conhecimento da mensagem que ela recebera de Nessântico ou se talvez ele recebera algo igual. Allesandra não sabia se Semini era um aliado em potencial ou um inimigo — e o archigos seria um inimigo terrível, como podiam confirmar os esqueletos dos hereges numetodos pendurados em exibição pública, perto do Templo de Brezno.

O gelo virou água na bebida de Allesandra. Ela entregou o copo para um criado que passava e sorriu para o archigos. — Meu vatarh acreditava que os Domínios seriam unificados novamente quando ele estivesse sentado no Trono do Sol como kraljiki. É o que eu acredito também, archigos: que um hïrzgai também pode ser o kralji. E eu... — Allesandra ergueu a mão que segurou o copo e viu as gotas frias e reluzentes de água nos dedos. — Da última vez que vi, eu não era hïrzgin.

— Não, a senhora não é, mas...

Ela interrompeu Semini antes que ele abrisse a boca novamente. — Não, eu não sou. Isso parece ser a vontade de Cénzi. Você não pretende frustrá-lo, não é, archigos? — Allesandra não deu chance para resposta. Ela retirou a mão do braço de Semini e fez o sinal de Cénzi para ele. — Obrigada pela bebida e pela conversa, archigos. Você me deu muita coisa para pensar. Se... se algo acontecer para, bem, mudar as coisas, sei que você e eu poderíamos ser excelentes aliados. Certamente você é um archigos bem mais competente do que aquele que a Fé de Nessântico nomeou. Kenne nunca me impressionou.

Allesandra notou o prazer no rosto de Semini quando disse aquilo, e ele concordou levemente com a cabeça. — Estou lisonjeado, a’hïrzg.

— Não, sou eu quem deveria estar lisonjeada. Agora... você deve encontrar Francesca, e eu preciso ser a esposa do meu marido e a a’hïrzg, e fingir não notar quando o a’gyula escapulir durante a noite.

 

Karl ca’Vliomani

VARINA ENTREGOU A KARL a bola de vidro enquanto Mika observava. Varina tocou a mão de Karl por um momento antes de soltá-lo e deu um sorriso pontuado por tristeza. O rosto dela parecia mais enrugado do que ele se lembrava, como se tivesse envelhecido de repente no último mês.

Eles estavam no salão de reuniões da Casa dos Numetodos, onde uma vez por semana os vários numetodos faziam relatórios sobre suas pesquisas. Havia cadeiras vazias dispostas impecavelmente em fileiras, na frente de um pequeno tablado onde eles estavam.

Karl não contou para Mika sobre sua visita ao embaixador firenzciano no outro dia; evidentemente, Varina também não, uma vez que Mika não comentou a respeito.

— É só uma bola, certo? — perguntou Mika enquanto Karl ergueu o globo na palma da mão. — Embora seja bem feita. — Ela era pesada e bem feita; Karl não viu bolhas de ar ou defeitos no vidro. A lente da esfera fez com que ele tivesse uma visão deturpada e distorcida do salão. — Você a considera incomum ou notável de alguma outra maneira?

Karl deu de ombros. — Não. É apenas o trabalho de um verdadeiro vidraceiro ou o trabalho de formatura de um aprendiz, mas tirando isso...

Mika sorriu. — Realmente. O que eu quero que você faça, Karl, é que diga a palavra “abra” em paeti e depois jogue a bola para mim.

Karl ergueu a bola de vidro novamente. — Oscail — falou e atirou o pequeno globo na direção de Mika. O que aconteceu a seguir o surpreendeu.

Quando a bola de vidro tocou a mão de Mika, surgiu um clarão branco-azulado que lançou momentaneamente agitadas sombras negras pelo salão dos numetodos e na parede dos fundos. Karl protegeu os olhos com atraso. Ele ouviu a risada ligeira de Varina e palmas de alegria. Karl piscou e tentou enxergar atrás das manchas de imagens persistentes que atormentavam a sua visão. — Por todos os moitidis... vocês dois andaram trabalhando mesmo, pelo que eu vejo.

— Eu, não — respondeu Mika. — Foi Varina, sozinha. — Ele devolveu o globo para Karl, que era simplesmente vidro novamente. — Se os ocidentais eram capazes de encantar objetos com o Scáth Cumhacht da maneira como você e Ana disseram que Mahri fazia, então nós sabíamos que era possível. E não apenas isso: Mahri deu para Ana um objeto encantado que ela podia controlar ao falar a palavra certa. Qualquer um podia usar a magia desde que soubesse a palavra de ativação.

Varina continuava sorrindo. Ela esfregava a crosta de uma ferida comprida no antebraço. — Nós sabíamos que era possível; o resto foi simplesmente uma questão de descobrir a fórmula para fazer.

— Varina finalmente conseguiu decifrar a sequência — acrescentou Mika. — Ela me fez jurar segredo; disse que queria surpreender você. O feitiço é complicado e consome mais tempo e mais energia do que você imaginaria. Comparado com nossos próprios feitiços, algo assim sai caro e exige muito mais do corpo do que qualquer um esperaria, mas... — Ele acenou com a cabeça, feliz. — Dá para ser reproduzido. Finalmente. Varina diz que pode nos ensinar, e qualquer um de nós pode fazer o mesmo.

Karl olhou para Varina, que concordou com a cabeça sem dizer nada e sustentou o olhar do embaixador quase como uma provocação. Ele jogou a bola para o ar e falou — É impressionante, Varina. De verdade. Mas um clarão de luz não chega a ser uma arma.

— Teoricamente, qualquer feitiço dentro do conhecimento arcano pode ser armazenado em qualquer objeto: ofensivo, defensivo, tanto faz — respondeu Varina. Havia empolgação em sua voz. — Teoricamente. Na prática, bem, ainda não. Eu usei o feitiço de luz porque é o primeiro e mais simples que ensinamos a um iniciado, então pareceu ser o melhor. — Ela balançou a cabeça. Havia mechas brancas no cabelo castanho de que Karl não se lembrava, mesmo há uma semana. Será que elas estavam ali há tanto tempo assim? — Olhe, é questão de unir o feitiço ao objeto e criar um gatilho para ativá-lo, de envolver o objeto com a energia do Scáth Cumhacht como se embrulha uma fruta-das-brumas com papel. Depois disso, é como se ele fosse uma extensão do feiticeiro, mas o objeto em si tem que ser de boa qualidade ou não sobreviverá ao esforço. Eu levei um tempo para entender isso. Mas... — Varina suspirou e espalmou as mãos. — Só colocar este simples feitiço dentro de um objeto foi incrivelmente cansativo, Karl. Você não pode imaginar como é cansativo até tentar por si mesmo. Eu levei três viradas da ampulheta para concluir o processo e depois tive que descansar um dia inteiro para me recuperar. Até mesmo agora, eu ainda sinto que minha energia está baixa e imagino o que mais o feitiço possa ter custado. — Ela mordeu o lábio inferior e prendeu fios de cabelo branco atrás das orelhas. — Você falou que a archigos Ana dizia que o velho Mahri, o Maluco, deu para ela um encantamento que podia literalmente parar o tempo?

Karl concordou com a cabeça. — Foi o que ela me contou; foi assim que ela tirou Allesandra de seu vatarh. E Mahri foi capaz de trocar de corpo comigo quando eu estive na Bastida. A magia dele...

— ... era extremamente acima da nossa, então — Varina terminou a sentença por Karl. — Eu sei. Os relatórios da guerra nos Hellins sugerem o mesmo. Os nahualli dos ocidentais podem fazer mais do que nós, mas... eu acabei de provar que o X’in Ka dos ocidentais não tem uma origem divina tanto quanto o Ilmodo, não importa o que eles aleguem ou acreditem. — Ela apontou para a bola de vidro. — Se eu consigo fazer isso, então aposto que também podemos aprender a fazer o mesmo com feitiços mais poderosos. É apenas questão de aprender a fórmula correta de unir o Scáth Cumhacht ao objeto físico. Pode ser feito. Nós podemos fazer.

Karl lembrou-se de Mahri, que fez amizade com ele e Ana quando os dois pensaram que estavam perdidos, e que se revelou não como aliado, mas como inimigo. O rosto arruinado e enrugado de Mahri, com apenas um olho, passou pela mente de Karl quando olhou para Varina. Ele ergueu a bola de vidro novamente. — Então qualquer um pode ter feito este feitiço... — Sua voz foi sumindo. A explosão... o grande clarão de luz terrível... o corpo destroçado de Ana... magia, sem ninguém ser visto ou ouvido enquanto o feitiço era conjurado... talvez você esteja errado; talvez você esteja olhando na direção errada... — Será que o que aconteceu com Ana poderia...? — Karl não conseguiu terminar a pergunta, que ficou entalada na garganta, pesada e maciça.

Mas tanto Varina quanto Mika concordaram com a cabeça como resposta.

— Sim — disse Mika. — Isso é o resto do que queríamos falar com você. Varina e eu já tivemos a mesma ideia. Não podemos descartar envolvimento ocidental na morte de Ana, e, francamente, o que aconteceu lá faz com que pareça provável, ao meu ver. Mas por que, Karl? Por que não assassinar o kraljiki ou o regente, que são diretamente responsáveis pela guerra? Por que matar Ana, dentre tantas possibilidades?

Porque seria vingança por Mahri. Vingança. Isso ele podia compreender. — Nesse momento, eu não sei — respondeu Karl evasivo. — Mas alguém aqui em Nessântico sabe, tenho certeza, e eu vou encontrar essa pessoa. — O embaixador respirou fundo. Ambos olhavam fixamente para ele. — Mas isso fica para depois. Agora, eu quero que vocês me ensinem este truque nahualli. Quero ver como funciona.

Varina pareceu que ia começar a dizer alguma coisa, mas fechou a boca. Mika olhou para ela, depois para Karl. — Acho que vou deixar isso com vocês dois. Alia queria que eu levasse um pouco de carneiro para casa, para o jantar, e o açougueiro vai fechar o açougue daqui a pouco. — Ele despediu-se rapidamente e deixou os dois.

Por um longo tempo após a porta ter sido fechada, nenhum deles falou. Quando falaram foi ao mesmo tempo.

— Eu sinto muito pelo outro dia...

— Eu andei pensando no que você disse...

Eles riram, um pouco sem jeito, diante da colisão de desculpas. — Você primeiro — disse Karl, mas Varina fez que não com a cabeça. — Tudo bem, eu começo então — falou ele. — Você disse que meu... carinho por Ana me cegou. Eu andei pensando a respeito disso e...

— Pare, Karl. Não diga nada. Eu estava furiosa e disse coisas que não tinha direito de falar. Eu... gostaria que você esquecesse o que eu disse.

— Mesmo que elas sejam verdade?

O rosto de Varina ficou vermelho. — Você amava Ana. Eu sei disso. Seja lá que relacionamento vocês dois tiveram... — Ela deu de ombros. — Não é da minha conta. — Varina deu um passo à frente e ficou diante de Karl, tão perto que ele foi capaz de ver as manchas de cor na íris e as linhas finas nos cantos. Ela abaixou as mãos e fechou os dedos de Karl em volta da bola de vidro que ele ainda segurava, depois segurou sua mão. — Eu posso mostrar para você como encantar isto. Você só tem que ser paciente porque...

— Varina — ele interrompeu; ela parou de falar e ergueu os olhos para Karl. — Você não devia se dedicar tanto a isso.

Varina franziu os lábios, como se quisesse dizer alguma coisa. Depois, apertou a mão de Karl e abaixou o olhar. — ... porque é difícil, e você tem que pensar de maneira diferente sobre o processo inteiro. Mas assim que fizer a mudança, tudo fará sentido — disse Varina. — Você tem que imaginar a bola como uma extensão de si mesmo...

 

Enéas co’Kinnear

PASSARAM-SE TRÊS DIAS desde sua captura. Nesse ínterim, o exército ocidental continuou marchando para nordeste, e Enéas seguiu com eles. O o’offizier permaneceu próximo a Niente — que Enéas descobriu ser realmente o nome do nahualli que o curou.

— Ninguém vai amarrá-lo — disse Niente no início da jornada. — Mas se você for descoberto perambulando sem mim, os guerreiros irão matá-lo imediatamente. A escolha é sua.

Eles estavam indo na direção de Munereo. Os dias eram consumidos pelo caminhar e nada mais. Enéas permaneceu perto do nahualli, mas também ficou de olho em uma oportunidade para escapar — este era seu dever como soldado. O que quer que Niente tenha feito com sua perna curou os ferimentos completamente; o tornozelo nunca pareceu tão forte. Se houvesse uma chance de escapulir, bem, não seria um machucado que o impediria.

Não seria fácil. Todos aqueles da classe dos nahualli andavam juntos no meio do exército, bem protegidos, cercados por todos os lados pelos soldados ocidentais tatuados e cheios de cicatrizes. Isso indicava o valor que os tehuantinos davam aos feiticeiros. Cada um dos nahualli carregava um cajado ou bengala, entalhados com figuras de animais e muito elegantes; a maioria dava sinais de muito uso. Uma vez, quando eles pararam para uma refeição no meio do dia, Éneas esticou a mão para tocar no cajado de Niente, curioso em relação à sensação. Niente tirou o cajado de seu alcance.

— Isto não é para você, oriental — falou ele baixinho, mas com um tom ríspido na voz. — Deixe-me dar um alerta: você toca o cajado de um nahualli por sua conta e risco. Não repita isso.

Niente conversou com os outros nahualli, mas sempre na língua dos tehuantinos; se algum deles, como Niente, também falava a língua de Enéas, jamais demonstrou tal habilidade. Na maior parte do tempo, os outros nahualli ignoravam a presença do o’offizier ao lado de Niente, os olhares passavam por Enéas como se ele fosse nada mais do que um cavalo ou uma tenda. Duas vezes ao dia, um guerreiro de classe inferior entregava uma tigela para Enéas com purê de raízes que parecia ser a comida básica do exército; ele comia faminto e com rapidez — nunca era o suficiente para satisfazer a fome gerada pelas longas marchas. Niente também deu um odre para Enéas, que ele enchia nos pequenos lagos e córregos abundantes da região montanhosa.

O exército cruzou os vales sinuosos como um rio maciço, os homens eram envolvidos pelos paredões íngremes e verdejantes.

Eram sempre os guerreiros de classe inferior que montavam as tendas dos nahualli — os próprios feiticeiros pareciam fazer pouco trabalho físico. Niente supervisionava a colocação de várias dezenas de barris em sua tenda pessoal toda noite, marcados com símbolos queimados na madeira. Havia quatro símbolos que Enéas conseguiu discernir. Niente não parecia muito preocupado com a maior parte dos barris, mas aqueles marcados com o que parecia ser um dragão com asas ele observava com atenção quando eram alocados. Niente fazia uma cara feia e repreendia sempre que um dos guerreiros pousava o barril com muita força. Um barril estava cheio com pedaços do que parecia ser (e tinha cheiro de) madeira queimada; em outro havia um pó branco; enquanto um terceiro continha reluzentes cristais amarelos. Enéas espiou com mais atenção o conteúdo dos barris marcados com dragões e viu que estavam cheios com uma areia espessa cinza-escura, que reluzia um pouco ao luar.

Ele lembrou-se da areia espalhada em círculos no chão. O trovão, o clarão, a dor...

Toda noite, os dois juntos na tenda, Niente sentava-se com as costas eretas e entoava um cântico por pelo menos algumas viradas da ampulheta, de olhos fechados, enquanto Enéas ficava deitado perto dele. Algumas vezes ele polvilhava um dos ingredientes dos barris no chão entre os dois enquanto entoava. Enéas sentia no ar o poder do Ilmodo, que arrepiava a nuca e pinicava a pele, e ele rezava para Cénzi enquanto Niente conjurava seus feitiços, para tentar compensar com suas preces o uso herege do Ilmodo. Por toda parte havia silêncio: nenhum dos outros nahualli entoava enquanto Niente recitava os cânticos, e Enéas perguntou-se por quê. Também se perguntou como — depois — ele parecia sentir um calor por dentro, como se o esplendor do sol preenchesse os próprios pulmões. Seja qual fosse o feitiço que Niente conjurava, Enéas parecia ser afetado por ele.

O o’offizier imaginou se Niente sentia o mesmo calor e energia, mas o nahualli sempre parecia mais exausto do que empolgado pelos esforços. O homem gemia ao dormir, como se estivesse sentindo dor, e quando acordava pela manhã havia novas rugas no rosto, como uma maçã velha.

Na terceira noite, após os cânticos, em vez de dormir, como geralmente fazia, Niente colocou uma pequena tigela de bronze perto da abertura da tenda, de maneira que fosse banhada pela claridade da fogueira. A tigela era decorada em volta da borda com um friso de pessoas e animais estilizados, muitos dos quais Enéas não reconheceu. Enquanto o o’offizier observava, Niente colocou água na tigela, depois separou uma pequena quantidade de pó fininho e avermelhado que tirou de uma bolsa de couro e pôs na mão. O nahualli polvilhou a superfície da água com o pó enquanto entoava um cântico. A água começou a brilhar com uma claridade azul-esverdeada e anormal, que fez o rosto de Niente parecer fantasmagórico e morto. O homem olhou no interior da tigela, em silêncio, enquanto a luz sinistra dançava e se fundia com o rosto. A curiosidade fez Enéas se arrastar mais adiante para ver melhor. Ele ergueu o corpo e olhou sobre o ombro de Niente.

Dentro da tigela, na água, havia a vista de uma cidade. Ele a reconheceu imediatamente: Nessântico. Enéas notou a Pontica a’Brezi Veste e a vista da Avi a’Parete, que levava aos pilares de mármore da entrada pública do Palácio do Kraljiki. Ele viu o Velho Templo, mas o novo domo magnífico de co’Brunelli dava a impressão de ter desmoronado completamente; não havia nada ali a não ser um buraco escuro onde o domo deveria estar. As pessoas pareciam andar pelas ruas, mas havia poucas, a maioria corria de cabeça baixa como se estivesse com medo de ser vista. As ruas estavam sujas e cheias de lixo, e o palácio exibia uma rachadura visível na parede do sul e a ala norte estava em ruínas. Do outro lado da rua, o que tinha sido uma residência deslumbrante agora era uma massa negra. Parecia que uma mortalha de fumaça pairava sobre a cidade. Enéas aproximou-se para ver melhor na água...

... que foi agitada pelos dedos de Niente, e a visão dissolveu-se, a luz apagou-se. Enéas viu apenas água; o fundo de bronze da tigela estava salpicado com grânulos de pó.

— O que foi isto? — perguntou ele para Niente ao voltar a se sentar. O homem deu de ombros.

— Heresia, para você. A magia do deus errado.

— Eu vi... pensei ter visto... Nessântico.

— Talvez tenha visto — respondeu Niente. — Axat concede as visões que Ela quiser.

— Visões do quê? — Ele lembrou-se da fumaça, da rachadura na parede do palácio, das pessoas que corriam assustadas...

Niente não respondeu a Enéas. Ele jogou a água fora da tenda e secou a tigela com a bainha da roupa. Guardou-a na bolsa ao lado do colchonete de algodão que servia de cama. — Como você se sente, Enéas?

— Eu me sinto bem.

— Está na hora de você voltar para seu povo.

— O quê? — Enéas balançou a cabeça, sem acreditar. — Você disse...

— Eu disse que os soldados matariam você se tentasse escapar. E matariam mesmo, mas... não haverá lua hoje à noite. Axat está com o rosto escondido, e vem chuva. Haverá um cavalo do lado de fora de nossa tenda quando a tempestade chegar. No momento em que você ouvir a chuva, vá até o cavalo. Cavalgue sem parar; ninguém irá persegui-lo até o amanhecer. Se tiver sorte, se Axat lhe sorrir, você chegará a Munereo alguns dias antes de nós.

— Você está me deixando ir? Permitiria que eu avisasse meu povo e dissesse para eles ficarem prontos para o seu exército?

Niente sorriu e falou — O exército dos tehuantinos não tem o que temer do seu povo. Não aqui em nosso próprio país. Vá. Axat não quer que você morra aqui. Você foi preparado para outro destino, um bem melhor. Vá até o seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

— Preparado? Por quem, sua Axat? Eu não acredito Nela. Ela não é minha deusa e não controla meu destino, e eu não sou seu menino de recados.

— Ah. — Niente deitou-se no colchonete e puxou um lençol sobre o corpo para se abrigar da noite fria. — Bem, então fique aqui se é o que deseja. A escolha é sua.

— Que mensagem é essa?

— Você saberá quando for a hora.

Niente não falou mais nada. Depois de um tempo, Enéas ouviu os roncos do homem e ficou ali, pensativo. Ainda podia sentir o formigamento residual do cântico de Niente, como se as pontas dos dedos tivessem adormecido. Sentiu fisgadas nos braços e pernas, quase dolorosas, mas revigorantes ao mesmo tempo. A sensação manteve Enéas acordado pelo que pareceu ser várias viradas da ampulheta: enquanto Niente dormia, e os sons do acampamento diminuíam aos poucos até que ele só ouviu homens dormindo à sua volta e o barulho suave da chuva, que começou a bater no pano da tenda, acompanhada por clarões de relâmpagos e o rugido ocasional do trovão.

Ali perto, um cavalo relinchava.

Enéas saiu do cobertor e rastejou até a abertura da tenda. Lá fora, a chuva passou a cair de forma constante e formou poças agitadas pelos respingos. A alguns passos de distância, havia um cavalo de cabeça baixa que arrancava tufos de grama molhada. A criatura estava selada e embridada, mas as rédeas estavam penduradas, como se o animal tivesse sido puxado de onde havia sido posto. O clarão de um relâmpago iluminou o acampamento e congelou momentaneamente os riscos da chuva. O trovão bramiu por perto. O cavalo bateu os cascos, nervoso com a luz e o som, e Enéas pensou que ele pudesse fugir.

Era dever do soldado fugir, se possível.

Está na hora de você voltar para seu povo. Vá ao seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

Enéas olhou em volta; era difícil enxergar na bruma da tempestade, mas parecia não haver alguém acordado. Os guardas do acampamento recolheram-se às tendas para se abrigar da tempestade. Ele reuniu coragem, ficou de pé do lado de fora da tenda. A chuva molhou seu cabelo e ensopou sua roupa quando ele caminhou até o cavalo, com a mão esticada enquanto murmurava suavemente para o animal, para encorajá-lo. O cavalo ergueu a cabeça, mas fora isso permaneceu imóvel e encarou Enéas. Ele pegou as rédeas e deu tapinhas no pescoço musculoso e molhado. — É chegado o momento — falou para o animal.

Poucos momentos depois, ele estava montado e foi embora a galope.

 

Jan ca’Vörl

QUANDO ELE ENTROU para tomar café da manhã com sua matarh, ela estava diante da janela do quarto com as persianas abertas, e Jan pensou ter visto o sol reluzir nos olhos de Allesandra como se, talvez, ela tivesse chorado recentemente. Se fosse o caso, ele fazia ideia do porquê. — O vatarh não deveria tratar a senhora desse jeito — disse Jan. — Especialmente com algo assim tão importante. Eu falei para ele como me sinto, também.

Allesandra virou-se para ele e pegou as mãos do filho. Os cantos dos lábios ergueram-se em um sorriso. — Não importa, Jan. Não mais. Não sou mais capaz de ser magoada por ele. — Jan sentiu o aperto dos dedos da matarh. — Além disso, ele me deu tudo o que eu realmente queria.

A a’hïrzg puxou Jan para perto e deu um beijo em sua testa. — Com fome? — perguntou ela. — Eu mandei a cozinha preparar rétes doces de queijo. Sei que você gosta deles. — Allesandra conduziu o filho até a mesa, cheia de sucos e leite, com ovos, bacon, fatias de pão e manteiga, e uma travessa de delicados strudels com um queijo branco e cremoso escorrendo. — Sente-se à minha frente para que possamos conversar. — Ela passou a travessa de rétes para Jan e sorriu quando ele pegou um.

— A senhora parece cansada, matarh.

— É? — Allesandra levou uma mão ao rosto. — Eu mandarei minha criada cuidar disso. Esse será um longo dia.

Jan deu uma mordida no strudel e saboreou a doçura do mel no queijo e o toque delicado de amêndoa da massa folhada. Ele sentiu que era observado pelo olhar da matarh. — Isso a incomoda? — perguntou o filho impulsivamente. — O onczio Fynn ser hïrzg, quero dizer.

— Já pensei muito a respeito disso. — A mão de Allesandra foi à bochecha novamente. — Confesso que não consegui dormir ontem à noite, pensando sobre esse assunto... — Ela hesitou e baixou o olhar para a toalha de mesa — ... entre outras coisas.

Jan ficou com medo de que isso fosse tudo que ela diria. — E...?

Allesandra sorriu. — Eu decidi que não quero ser hïrzgin. Cénzi tem outros planos para mim.

Jan observou o rosto da matarh à procura de uma mentira. Ele não conseguia se imaginar dizendo tal coisa se estivesse na posição dela, se seu direito de nascença tivesse sido roubado daquela maneira. No entanto, não viu nada na expressão que contradissesse o que Allesandra falou. — Que bom — disse Jan.

Um leve sorriso tocou os lábios de Allesandra. — Por que isso é bom?

— Porque eu gosto do onczio Fynn.

Como neve no verão, o sorriso desmanchou-se. — Jan, uma de suas características que eu adoro é que você está disposto a confiar nas pessoas que gosta. Eu não quero que você perca isso, mas precisa ter cuidado com Fynn.

— A senhora mesma não o conhece de verdade, matarh. A senhora disse isso.

— Eu disse. E não o conheço, mas você também não, não depois de passar alguns dias com ele. Fynn tem um mau temperamento. Ele pode ser generoso com aqueles que acha que são aliados, mas se suspeitar que a pessoa está contra ele...

— Acho que a senhora está exagerando as coisas — interrompeu Jan. — O onczio Fynn não tem sido nada além que gentil comigo, e ele não acha que a senhora esteja do seu lado. Seja justa, matarh.

— Eu sou. Mais do que você imagina. O que você diria se eu falasse que ele ameaçou você?

— Eu não acreditaria — respondeu Jan por reflexo, depois se deu conta de que estaria chamando sua matarh de mentirosa. — A não ser que a senhora mesma tenha ouvido da própria boca de Fynn. — Ele inclinou a cabeça para Allesandra. — A senhora ouviu, matarh?

Ela já estava balançando a cabeça e respondeu — Não, não ouvi. Ainda assim... prometa-me que você tomará mais cuidado com ele.

— Claro que tomarei — disse Jan e foi recompensado com a volta do sorriso da matarh.

— Ótimo. Agora me passe a travessa de rétes? Estou morrendo de vontade de prová-los...

 

Sergei ca’Rudka

A NOTÍCIA NÃO era boa.

O comunicado — o último relatório das contínuas batalhas nos Hellins — veio por envio expresso de Munereo, passou pelo Strettosei até a grande ilha de Karnmor, cruzou o Nostrosei, que ficava entre Karnmor e o continente, até a cidade de Fossano, depois seguiu por mensageiro pelo A’Sele até Villembouchure, e de lá até Nessântico. Com ventos favoráveis e mensageiros que não se importavam em exaurir os cavalos, a mensagem levou duas semanas para chegar. O número de baixas era suficiente para Sergei balançar a cabeça tristemente. Ele passou o papel para o archigos Kenne; o homem mais velho espiou como um míope, segurando o comunicado tão próximo ao rosto que Sergei não conseguiu ver sua expressão.

— Você deve notar, archigos, que agora nós não controlamos nada nos Hellins além da área imediatamente ao redor de Munereo, com um braço ao longo do mar que se estende ao norte, na direção de Tobarro — disse Sergei com impaciência, enquanto Kenne penava com a letrinha compacta do comandante ca’Sibelli. — Ter mandado o a’offizier ca’Matin e seu batalhão para enfrentar o exército ocidental foi um erro, na minha opinião, mas é um erro que já está feito e pago a esta altura, eu suspeito. Espero que ca’Matin ainda esteja vivo; ele é um dos poucos bons offiziers que temos lá. Eu acho que teria sido melhor se ca’Sibelli tivesse recuado para uma posição de defesa contra esta última ofensiva, em vez de tentar repelir os ocidentais, mas ca’Sibelli nunca gostou de defesa. Nós já perdemos a área do lago Malik. Suspeito que perderemos Munereo a seguir.

— Você mostrou isso para Audric? Falou para ele o que acabou de dizer para mim? — Os olhos de Kenne apareceram acima da borda do papel amarelo e grosso, depois sumiram novamente. Sergei ouviu o homem murmurar para si mesmo enquanto lia.

— Sim. Ele falou: “o comandante ca’Sibelli fez exatamente o que eu mandaria que fizesse. É como eu disse: precisamos de mais tropas”. — Sergei fez uma pausa e olhou em volta do gabinete do archigos. Não havia mais ninguém ali, mas o regente abaixou a voz mesmo assim; nunca se sabia quem poderia ouvir atrás das portas. — Nós discutimos; eu pensei que ele fosse morrer na minha frente, Audric estava tossindo e respirando muito mal. Ele ficou olhando por cima de mim para o quadro da kraljica Marguerite e dizia... — Ele hesitou novamente, sem saber quanto queria compartilhar com Kenne. — ... coisas perturbadoras. Audric insiste em convocar o Conselho dos Ca’ e exigir que receba autonomia como kraljiki. Ele quer arrancar meu título; não quer um regente em Nessântico.

O fato pareceu frio, dito sem rodeios. Sergei tinha visto o que Kenne não viu: a maneira como os gritos distorceram as feições de Audric, a vermelhidão que subiu pelo pescoço do menino e cobriu as bochechas, as gotas de saliva que voaram da boca, os olhos arregalados e perturbados.


— Eu sou o kraljiki! — berrou Audric para Sergei com os braços agitados. — Você vai fazer o que eu mandar, regente, ou mando jogá-lo na Bastida! — As últimas palavras foram gritos, cada um berrado a cada tomada de fôlego. A histeria de Audric fez com que os gardai do corredor, bem como seus camareiros, Marlon e Seaton, abrissem as portas do quarto para dar uma olhada. Sergei gesticulou para que fossem embora, e as portas foram fechadas novamente. Audric olhou por cima do regente, que se virou para trás. O quarto estava um forno, quente demais para o gosto de Sergei, as chamas da grande lareira iluminavam o retrato de Marguerite sobre o consolo. Audric encarava a mamatarh com lábios que se moviam sem emitir palavras.

— Este relatório, Audric, é prova conclusiva de que...

— Você irá se dirigir a mim com o devido respeito, regente, ou mandarei açoitá-lo na praça do palácio.

Sergei permitiu-se respirar fundo e conteve a resposta que ameaçava escapulir. — Kraljiki, esse relatório demonstra que os Hellins já podem estar perdidos. Ca’Matin é o melhor offizier que temos lá; francamente, eu confio mais na avaliação dele do que na opinião do comandante ca’Sibelli. Se ele não conseguiu deter os ocidentais...

— Então a fúria de Nessântico cairá de forma plena sobre eles — berrou Audric, que depois foi tomado por um acesso de tosse...


O resto da conversa não seguiu melhor.

— Pode não ser uma loucura genuína, Sergei. Talvez a doença dele ou uma febre... — começou Kenne.

— Não importa — interrompeu Sergei. — Doença ou simples loucura; não há diferença se não pode ser curada. Kenne, eu mesmo pretendo ir ao Conselho dos Ca’ e pedir que declarem Audric incapaz.

Kenne abaixou o papel ao ouvir isso. Sergei viu a tremedeira nos dedos do homem e ouviu o farfalhar do papel. O archigos franziu os lábios como se tivesse provado algo desagradável. — Alguns deles pensarão que você está tentando conquistar o poder, Sergei, que isso não é nada além de uma tentativa sua de se colocar no Trono do Sol. É o que Audric dirá para eles, suspeito. Certamente é o que eu diria para os ca’ no lugar dele. Eu posso ver Sigourney imaginando a mesma coisa.

— É isso que você pensa, Kenne? Com certeza você me conhece melhor que isso. — Sergei deu um muxoxo de desdém, balançou a cabeça e andou de um lado para o outro na frente do archigos. Eu não quero ser kraljiki. O que eu quero é bem pior do que você ou qualquer um dos ca’ imagina, e se soubessem, todos se recusariam a me ajudar...

— Não, Sergei. De maneira alguma — falou Kenne rápido. Rápido demais, na verdade. O homem não olhava para ele, o que indicava a Sergei que também havia dúvida na cabeça do archigos. Isso era ruim; se Kenne se perguntava sobre as intenções do regente, então o Conselho dos Ca’ não teria problema algum em imaginar o pior. — Isso tudo é apenas... tão preocupante — continuou o archigos. — Eu não sei o que pensar. Declarar um kraljiki incapaz... — Ele balançou a cabeça, os dedos tamborilaram sobre o relatório. — Ele ainda é um menino, afinal de contas. Um jovem. Jovens muitas vezes dizem coisas que talvez não devessem ou se empolgam mais do que deveriam, e quando o menino em questão não só é um ca’, mas também foi a’kralj e agora é kraljiki, bem...

— A questão não é juventude e privilégio, Kenne. Você não esteve lá. Não ouviu o que eu ouvi e não viu o que eu presenciei. Você viu indícios da situação nas últimas vezes que esteve com ele, mas isso... O que ouvi de Audric agora era pura loucura. E um kraljiki louco também afetará a Fé.


— Eu pegarei todos os ténis-guerreiros e mandarei para os Hellins — gritou o menino. — Todos eles. Todos aqueles que a Fé puder me dar...


— Sei que você acredita nisso, Sergei.

— Mas?

Mãos tão secas quanto uvas velhas ergueram-se da escrivaninha e repousaram de novo. O olhar do archigos pareceu alcançar o nariz de Sergei, apenas para ver o reflexo distorcido ali e voltar a cair. — Eu sei que você se importa apenas com Nessântico, Sergei. Sei que tem os interesses dos kralji e da fé concénziana em mente. — O regente encarou Kenne, em silêncio. À espera. — Mas — continuou o archigos finalmente —, talvez alguém com as, hum, “habilidades” de Ana ainda possa ser encontrado, e nós possamos trazer o menino de volta da beira da ruína. Sergei, nenhum kraljiki jamais foi deposto pelo Conselho dos Ca’. Nunca. Este é um passo que você não pode dar levianamente. Esse é um passo que temo que vá falhar e destruir você.

— Acredite em mim, eu conheço os riscos. — Sergei levantou-se da cadeira e pegou o relatório na escrivaninha de Kenne. — A guerra nos Hellins custa dinheiro e vidas, Kenne, e nos força a olhar para o lado errado. Quanto mais durar a guerra por lá, mais perigosa ela se torna para os Domínios. Audric está convencido de que a guerra nos Hellins será o triunfo de Nessântico. Não será. Será nossa queda.

— Eu sei que é isso em que você acredita.

Sergei não conseguiu evitar totalmente que a voz demonstrasse irritação diante das evasivas do velho. — É o que eu sei. O que tenho que saber de você, Kenne, é se terei seu apoio.

Um aceno de cabeça. — Eu quero apoiar você. Quero mesmo. Mas primeiro preciso rezar, Sergei. Você diz que acredita. Eu quero acreditar também e confio em Cénzi para me ajudar. Deixe-me rezar. Amanhã... nós nos falaremos, amanhã ou no draiordi no máximo...

Inútil. Isto é inútil... Sergei deu um sorriso falso e fez uma mesura e o sinal de Cénzi para o archigos. — Eu mesmo rezarei em seu nome, archigos, para que Cénzi fale com você em breve. — E é melhor que Ele fale. É melhor ou Nessântico poderá se ver esmagada entre as pedras do leste e do oeste.

Serguei pegou o comunicado da escrivaninha de Kenne. Ele foi até a lareira do gabinete do archigos e deixou o papel flutuar sobre as chamas. Viu o papel escurecer, enroscar-se, soltar fumaça e finalmente pegar fogo.

Ele imaginou a cidade fazendo a mesma coisa.

 

Nico Morel

NICO JAMAIS HAVIA SEGUIDO Talis antes. A matarh do menino trabalhava em uma taverna depois da esquina e do beco próximos à casa deles. Se Talis trabalhava, não era como os outros homens da vizinhança: em uma loja; como aprendiz de algum mestre; como um simples trabalhador, talvez nos engenhos onde gigantescas mós eram movidas pelos cânticos dos e’ténis, ou nas fundições ardentes do lado de fora das velhas muralhas da cidade, cujas fornalhas ardiam com o fogo do Ilmodo e dos cânticos de e’ténis de diferentes habilidades — que, em troca dos serviços, recolhiam uma porção dos lucros para a fé concénziana.

Nico ouvia a matarh ou outras pessoas no Velho Distrito reclamarem muito a respeito disso, que a Fé metia as mãos nos bolsos de cada grande indústria na cidade. A fofoca provocou pensamentos estranhos em Nico: ele imaginava mãos compridas em mangas verdes que saíam dos templos para arrancar moedas das bolsas da população. O menino perguntou-se por que os ténis precisavam fazer isso, pois sua matarh e todos os demais colocavam moedas nas cestas a cada cénzidi quando iam ao templo. Se Nico tivesse tantas moedas assim, ele poderia comprar um palácio na margem sul para viver com a matarh e Talis.

Talis...

Nico estava brincando de chute o sapo na rua com alguns dos outros meninos. Ele estava ganhando: já tinha chutado três vezes na poça o saco cheio de palha que era o sapo, mas seu amigo Jordis conseguira apenas uma vez, e os demais, nenhuma. Nico era bom em chute o sapo. Às vezes, quando jogava, ele sentia um frio estranho por dentro e quase era capaz de ver o sapo ir à poça, e quando chutava, o sapo espirrava bem dentro da água.

Nico retirou o sapo encharcado da poça pela quarta vez quando viu Talis sair da porta de casa e começar a subir a rua. Ele chutou o sapo para Jordis e os outros. — Volto já — disse o menino, e correu atrás de Talis.

Desde que viu Talis com a tigela de latão, ele andou vigiando atentamente seu vatarh sempre que podia. Nico viu e ouviu coisas estranhas quando Talis pensava que ele estava dormindo, até mesmo quando sua matarh estava dormindo também. Talis entoava e gesticulava igual a um téni, geralmente com a bengala diante de si. Quando ele fazia isso, Nico sentia os filamentos de frio no ar até que a bengala parecesse sugá-los para dentro.

Era muito estranho, mas as palavras — elas quase soavam como as palavras de sonho que Nico às vezes escutava, e ele queria saber mais.

A princípio, Nico tinha intenção de simplesmente alcançar Talis e perguntar aonde ele ia, mas quando o vatarh virou no primeiro cruzamento, com a bengala batendo nos paralelepípedos e andando em passos rápidos, como se estivesse com pressa para chegar a algum lugar, o menino decidiu ficar para trás e apenas observá-lo.

Talis andava tão depressa que Nico quase teve que correr para acompanhá-lo. Algumas vezes, quando ele virou para a esquerda ou direita no confuso emaranhado de ruas, o menino quase o perdeu, e quanto mais longe os dois iam, mais assustado Nico ficava — ele não sabia mais onde estava. Nem sabia qual seria o caminho de casa, ficou confuso pelas ruas sinuosas e tortuosas do Velho Distrito.

A luz do sol surgiu de repente à frente, e ele viu Talis fazer uma curva fechada à esquerda. Nico correu atrás do vatarh. O menino viu-se na confluência de um beco com o grande rio da Avi a’Parete, a enorme avenida que cercava o trecho interior da cidade. Ele foi atacado pelas cores, barulhos e movimento: as bashtas e tashtas de todos os tons e padrões imagináveis, as carruagens que passavam em meio às multidões (olha — aquela não tinha cavalos, apenas um téni como condutor, com um a’téni dentro), mil pessoas indo a algum lugar ao mesmo tempo: falando ou em silêncio, sérias ou rindo, juntas ou sozinhas. Os vendedores espalhados pelos muros anunciavam suas mercadorias; condutores gritavam alertas ou tocavam os sinos de aviso; uma dezena de conversas passou por Nico em um instante e foi substituída por outra dezena.

Os prédios aqui, ao longo da avenida mais famosa de Nessântico, pareciam tão grandiosos e altos quanto aqueles na margem sul, embora mais apinhados de gente e mais velhos. À esquerda, Nico viu píeres de uma ponte arqueada que levava à Ilha A’Kralji, onde o kraljiki e o regente viviam. No entanto, em meio à grandiosidade havia sinais de que nem todo mundo na cidade vivia tão bem. Mendigos sentavam-se encolhidos nas esquinas; a mais próxima de Nico, envolta em trapos imundos, parecia ter apenas um braço e o mesmo número de dentes na boca de gengivas vermelhas. Seus olhos eram brancos com cataratas, como a velha cega que morava do outro lado da rua de Nico.
O único braço, que chacoalhava uma caneca surrada de madeira com algumas d’folias de bronze no fundo, tinha uma mão com dedos de menos. A multidão que passava por ela ignorava a mendiga na maioria das vezes, como se as pessoas não a vissem.

Nico percebeu que não fazia ideia de para onde Talis havia ido na multidão. Ele olhou para a esquerda, depois para a direita, e o pânico subiu do estômago para a garganta. O menino correu na direção que achava que Talis tinha ido.

Uma mão agarrou seu ombro; Nico levou um susto e quase gritou.

— O que você está fazendo aqui, Nico? Por que está me seguindo? — Talis franziu a testa para ele, seus dedos agarraram o pano da camiseta de Nico.

O alívio conquistou o medo; Nico exclamou — Talis! Eu estava... você saiu e pensei em ver onde você estava indo e se eu podia ir junto, e aí eu já estava longe demais e fiquei com medo de que estivesse perdido.

A cara feia de Talis desmanchou-se aos poucos. — Você não sabe o caminho de casa?

Nico balançou a cabeça. — Por ali? — perguntou Nico hesitante ao apontar para um dos prédios atrás dele.

Talis bufou. — Só se você quiser tomar um banho no A’Sele. Eu devia simplesmente deixar você aqui — ele começou a falar, e o coração de Nico passou a bater mais forte, lágrimas surgiram em seus olhos, mas o homem continuou —, e Serafina me mataria se descobrisse. Eu já estou atrasado. Você terá que vir comigo, Nico.

Nico concordou enfaticamente com a cabeça. Ele abraçou Talis pela cintura quando o homem colocou a mão em sua cabeça e puxou-o para perto. — Sem me atormentar com perguntas, entendeu? Preciso encontrar uma pessoa.

— Quem você vai encontrar? — perguntou Nico, que engoliu em seco. — Desculpe, Talis — disse o menino, mas o homem já estava rindo.

— Você é um caso perdido, sabia? Vamos. Fique perto de mim, agora.

Com Nico correndo ao lado dele, Talis cruzou a Avi a’Parete, desviou-se de grupos de pessoas a passeio e parou aqui e ali para deixar uma carruagem passar, depois correu pelo caminho do próximo veículo. Quando os dois finalmente chegaram ao outro lado, Talis rapidamente entrou em uma pequena rua transversal, e a agitação, cores e glória da Avi a’Parete sumiram como se nunca tivessem estado lá. Eles viraram à esquerda, depois à direita, enquanto seguiam por uma viela estreita e tortuosa, e surgiram de repente — como se uma floresta feita de casas e prédios fosse contraída em um espaço diminuto — em uma área aberta.

Nico sentiu o cheiro do A’Sele antes de ver o rio: o fedor de peixe morto, dejetos humanos e água oleosa. Eles estavam em um mercado com dezenas de barraquinhas dispostas em fileiras ao longo da margem. À esquerda, Nico viu — do outro lado, desta vez — o grande arco da Pontica A’Kralji, e nas águas reluzentes do A’Sele, a Ilha A’Kralji com o Palácio do Kralji, o Velho Templo e a Residência do Regente. O menino olhou fixamente, depois se deu conta, com atraso, de que Talis já percorria os corredores do mercado, e andou rápido para alcançá-lo. Agora Nico descobriu que mal conseguia manter o olhar em Talis; ele não parava de ser distraído pelas mercadorias nas barraquinhas: grandes pilhas de cebolas, ervas penduradas para secar, peixes frescos e secos, facas brilhantes e pedras reluzentes, rolos de tecido, tamborins e alaúdes, montanhas de maçãs... — Isso aqui é melhor do que o mercado do Velho Distrito — falou ele em uma voz que ecoou seu deslumbramento.

— Isso não é nada — disse Talis. — Eu soube que na época da kraljica Marguerite dava para ouvir as bancadas gemerem com o peso das mercadorias que chegavam pelo A’Sele de todas as partes do mundo conhecido. Não dava para andar aqui por causa das multidões e dos vendedores. Qualquer coisa que se quisesse era possível comprar aqui, não importa o que fosse. — Talis parou. Eles estavam diante de uma barraca protegida do sol por um pano grosso e forrado. Na penumbra sob o toldo, uma grande forma moveu-se. Nico apertou a vista e protegeu os olhos com a mão. O dono da barraca era musculoso, tinha braços grossos que saíam das mangas soltas de uma bashta decorada com um desenho que lembrava talos de trigo. Ele abaixou o corpo, e Nico viu que o rosto era marcado por estranhas linhas brancas, como se a pele estivesse em carne viva. Entre as linhas, a pele intacta era quase da cor de cobre lustroso, como de uma pessoa das províncias do sul.

— Quem é o garoto? — perguntou o homem para Talis. A voz tinha um sotaque carregado que Nico não reconheceu até que Talis respondeu; aí ele notou que era uma versão mais forte e evidente do próprio sotaque do vatarh.

— Meu filho. Nico. — Talis deu um tapinha no ombro do menino com a bengala. — Não se preocupe com ele.

— A matarh do garoto faz você brincar de babá agora, Talis? Mahri ficaria tão orgulhoso.

— Cale a boca, Uly.

O homem riu como se tivesse achado graça no diálogo. Ele falou por um instante em uma língua complemente diferente, e Nico ouviu Talis responder no mesmo idioma. Talis entrou debaixo do toldo com o sujeito. — Fique aqui — falou ele para o menino. — Você pode olhar o que Uly tem para vender, mas não nos incomode.

Nico ouviu os dois homens conversarem na estranha língua deles enquanto mexia à toa nas mercadorias sobre as bancadas de Uly. Ouviu o nome “Mahri” mais algumas vezes. Finalmente, Uly derramou vários punhados de um pó preto e granulado em um saco de couro e entregou para Talis, que amarrou no próprio cinto. Os dois falaram por mais um momento, depois Talis pegou Nico pela mão e conduziu o menino para fora da barraca, na direção da Avi a’Parete. As perguntas saíam espontaneamente de Nico — ele não conseguia mais segurá-las.

— Você e Uly são do mesmo país?

— Sim, originalmente, embora nós dois estejamos longe de lá há muito tempo.

— Você é de Namarro?

— Não. — Talis não disse mais nada, e Nico permaneceu em silêncio enquanto eles cruzavam a avenida e entravam nas ruelas populosas do Velho Distrito novamente.

— Quem é Mahri, Talis?

— Ninguém hoje em dia. Ele está morto.

— Quem era ele, então? — insistiu Nico.

— Ninguém importante.

— Uly disse que Mahri ficaria orgulhoso de você. E eu ouvi Uly mencionar Mahri outra vez também.

— Você vai continuar a me amolar, não vai?

Nico ergueu o olhar para Talis, que não pareceu muito irritado, então ele concordou com a cabeça. — Você conheceu Mahri? Ele era seu vatarh?

Talis riu, embora Nico não soubesse o que tinha dito de tão engraçado, e balançou a cabeça. — Não. Mahri não era meu vatarh, e eu jamais o conheci. Apenas sabia a respeito dele.

— Por quê?

— Porque diziam que Mahri era capaz de fazer coisas que ninguém mais conseguia. Eu pensei ter dito sem perguntas.

Nico ignorou a última frase. — Que coisas?

Talis soltou um suspiro com tom de irritação. — Coisas que nem os ténis conseguem fazer com o Ilmodo deles.

— Ah. — Nico ficou calado ao ouvir aquilo. Todo mundo sussurrava que os ténis conseguiam fazer praticamente tudo com o Ilmodo, e havia rumores de que a archigos Ana também era capaz de fazer tudo que os numetodos faziam. Mas Nico sabia que Talis não acreditava em Cénzi e nem ia ao templo. Então talvez Mahri fosse um numetodo? E os ocidentais também não usavam magia? Ou talvez houvesse vários tipos de magia pelo mundo.

— Você quer ser igual a Mahri? — perguntou Nico.

Ele viu Talis levantar um canto da boca. — Isso depende do que você quer dizer, Nico. Eu não quero estar morto. — O homem riu, mas Nico torceu o nariz em uma careta de irritação.

— Não foi isso que eu quis dizer.

Talis abaixou a mão e desgrenhou o cabelo do menino, mas Nico deu um passo para trás. — Eu sei que não é o que você quis dizer — falou Talis. — E não acho que eu jamais queira ser como Mahri. Agora, será que nós podemos tentar chegar em casa antes que Serafina perceba que você saiu e vire a vizinhança inteira de cabeça para baixo à sua procura?

Talis parou de falar, pegou a mão de Nico e apertou o passo. A bolsa de couro macio e seu pó escuro balançaram no cinto. Nico espiou de rabo de olho enquanto os dois andavam.

Ele continuaria a ficar de olho em Talis. Talvez pudesse aprender a fazer magia também. Afinal de contas, os numetodos diziam que a maioria das pessoas podia fazer magia caso se esforçasse bastante. Nico era esforçado: ele sempre vencia no chute o sapo porque se esforçava bastante. Quando a pessoa fazia isso, era capaz de sentir a energia fria.

Ele ficaria de olho em Talis. Aprenderia a fazer o que Talis fazia.

 

Varina ci’Pallo

SE ELA FOSSE FORÇADA a seguir a carreira de espiã, Varina teria sido capturada e executada no primeiro dia.

Ela encostou o corpo na lateral de um boticário no limite do centro do Velho Distrito, olhou fixamente para a multidão reunida sob o sol intenso e procurou entre as pessoas por um rosto familiar, um que ela tinha perdido no labirinto do Velho Distrito. Varina ofegava um pouco pelo esforço de tentar alcançar o homem depois que ele fez uma curva brusca — ela chegou à esquina e viu que o sujeito não estava ali. Ele desapareceu.

— O que você pensa que está fazendo?

A pergunta, que surgiu atrás dela, assustou-a. Varina deu meia-volta com as mãos erguidas, pronta para falar uma palavra e lançar um rápido feitiço de repulsão, mas uma mão pegou seu braço quando ela se virou e a impediu de conjurar o feitiço, e ela olhou para o rosto que andou procurando.

— Karl...

Ele soltou a mão de Varina e deu um passo para trás. Ela não soube dizer se Karl estava irritado ou não. — Você estava me seguindo. — O olhar, como um mar revolto, sustentou o de Varina.

— Sim — admitiu ela.

— Por quê?

— Porque estou preocupada com você.

Ele riu como se tivesse achado graça. Isso deixou Varina mais irritada do que a expressão dele. — Você ou Mika? — vociferou ele. — Ou talvez Sergei?

Varina sustentou o olhar de Karl com ar de desafio e queixo empinado. Afastou o cabelo do rosto. — Todos nós. Todo mundo que conhece e gosta de você está preocupado, Karl, apesar de parecer que você não nota. Segui-lo foi minha ideia, porém. Não foi de Mika, nem de Sergei. Portanto, você pode gritar comigo se quiser, mas não com eles. Os dois não sabem.

— Eu não sou uma criança que precisa ser vigiada.

— Perdão. Não deixarei de contar isso para Sergei e para o embaixador co’Görin. Ambos ficarão contentes ao saber que você amadureceu.

Karl torceu o nariz novamente. — Aquilo foi um erro. Eu não o repetirei.

— Karl, você se convenceu de que foram os firenzcianos e estava pronto para ser juiz e executor em relação a eles. Agora está igualmente convencido de que é uma trama dos ocidentais e está perseguindo o fantasma de Mahri. Eu estou preocupada com você, sim. Mahri está morto; você não o encontrará. E estou ainda mais preocupada com o que você fará se encontrar algum ocidental, alguém que pode ser completamente inocente. Não sei dizer de outra forma que não sendo direta: faça o que Sergei lhe disse, deixe que eles tomem conta da investigação. Você não os está ajudando, nem a si mesmo.

— E o que eu devo fazer, Varina? — perguntou Karl. Ele contorceu o rosto, a pele abaixo dos olhos estava escura e empapuçada. Karl não aparava a barba há dias.

— Você disse que estava interessado no que eu poderia mostrar sobre o encantamento de objetos. Deixe-me ensinar para você. Vamos trabalhar nisso juntos. Eu certamente poderia contar com sua ajuda e seu conhecimento. Isso poderia tirar sua mente... — ela olhou ao redor — ... desta situação.

— Você não consegue entender. — Karl rangeu os dentes. — Apenas me deixe em paz. — O olhar de desprezo de Karl foi como um tapa na cara de Varina.

— Você já foi bastante magoado, Karl. Eu não quero vê-lo piorar as coisas para si mesmo.

— Eu não preciso de sua piedade, Varina, e não quero nem preciso de sua ajuda — disparou Karl. As palavras machucaram Varina. — O que eu preciso fazer para deixar isso claro para você?

— Você acabou de deixar. Deixou bem claro mesmo. — Dito isso, ela gesticulou para o espaço aberto e ensolarado do centro do Velho Distrito. — Vá em frente. Eu não seguirei mais você.

Com isso, sem arriscar uma olhadela para trás, Varina começou a ir embora para o sul, na direção da Casa dos Numetodos. Ela não olhou para trás. Varina disse para si mesma que não queria ver se Karl a observava ou não.

 

Allesandra ca’Vörl

BESTEIGUNG. O CERIMONIAL de coroação do novo hïrzg.

O dia nasceu brilhante e cooperativo, com o céu de um azul exuberante onde navios de nuvens brancas iam embora para o oeste. O calor cedeu, foi afugentado pela chuva purificadora da noite anterior. Cénzi abençoou o dia, e os ténis estavam radiantes, como se o lindo dia tivesse sido causado por suas preces.

Talvez tivesse sido mesmo.

Allesandra também rezou para Cénzi. Rezou para que o dia fosse como ela esperava, que não tivesse interpretado errado os sinais. E embora tenha rezado, Allesandra também fez questão de levar uma adaga embainhada no antebraço, debaixo das franjas e rendas da manga da tashta. Ela aprendeu há muito tempo com seu vatarh que jamais deveria estar sem uma arma.

O dia seria longo para Fynn — e para aqueles, como Allesandra, que eram obrigados a acompanhá-lo. Primeiro veio a cerimônia no Templo de Brezno na Primeira Chamada, onde o archigos deu ao novo hïrzg a Benção de Cénzi. Depois houve as exigidas visitas de estado: à tumba do hïrzg Kelwin, primeiro hïrzg de Firenzcia; ao templo perto do Palácio do Hïrzg, que continha um frasco de sangue de Misco, o fundador de Firenzcia; ao grande pedregulho rachado perto da praça principal de Brezno, onde diziam que os moitidis — a pedido de Cénzi — mandaram um furioso raio à terra para fulminar o exército de Il Trebbio, que invadira Firenzcia em 183 durante a Guerra das Três Gerações. Em cada local, aconteciam as cerimônias e os discursos obrigatórios, e os ca’ e co’ ouviam com atenção, gratos por não haver chuva torrencial, frio de rachar ou calor úmido para suportar além da frases imbecilizantes já esperadas.

Então veio a procissão final à nova estátua de Falwin I, erigida por Jan, o vatarh de Allesandra, após ele decretar a separação de Firenzcia dos Domínios — foi Falwin que liderou a revolta tragicamente malsucedida contra o kraljiki Henri VI em 418, e foi ali que Fynn erigiu o palanque onde, finalmente, a Coroa e o Anel de Firenzcia seriam oficialmente declarados como seus.

Quando o archigos ca’Cellibrecca passou por Allesandra na carruagem conduzida por um téni a caminho de seu lugar na fila de dignatários, ele inclinou-se para fora da janela e mandou o condutor parar o veículo. O e’téni interrompeu o cântico e as rodas desaceleraram. O archigos acenou para Allesandra sobre o símbolo do globo partido de Cénzi, pintado em ouro e lápis-lazúli. — Com licença um instante — disse ela para Jan e Pauli. Jan deu de ombros para a matarh; Pauli, envolvido em uma conversa com uma jovem bonita da família ca’Belgradin, não deu resposta alguma. Allesandra foi até a carruagem do archigos e fez o sinal de Cénzi para Semini. Francesca estava sentada ao lado do marido, nas sombras. — Cénzi sorriu para Fynn.

— É verdade — respondeu Semini. Ele diminuiu o tom de voz, o bastante para Francesca não ouvi-lo, praticamente inaudível com o tumulto dos músicos que começavam a marcha da procissão. — No entanto, a’hïrzg, eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque.

— Archigos?

Ele olhou para o fim da fila, onde aguardava a carruagem de Fynn, puxada por quatro cavalos brancos, um deles sem cavaleiro. — É realmente um lindo dia — falou Semini, mais alto agora. — Um bom dia para toda Firenzcia, creio eu. Condutor, eles nos esperam.

O e’téni recomeçou o cântico; as rodas rangeram ao começarem a girar novamente. Allesandra afastou-se da carruagem no momento em que Semini acenou com a cabeça para ela e recostou-se no assento estofado ao lado de Francesca, que lançou um olhar azedo para a a’hïrzg quando eles passaram. Allesandra viu o veículo entrar na fila logo atrás da carruagem do hïrzg.

Ela passou o dia nervosa, imaginando se ca’Cellibrecca realmente tinha a intenção de levar a cabo o que havia insinuado — ele não faria nada por conta própria, obviamente, mas trabalharia através de uma camada de intermediários; se algo fosse acontecer, o archigos também gostaria que acontecesse em público, onde poderiam ver que ele não estava envolvido, e onde houvesse maior impacto. Era exatamente o que ela mesma teria feito.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”

Allesandra sentiu um arrepio de medo sobreposto pela empolgação. Ela queria voltar correndo para o archigos e sussurrar três palavras para ele: “a Pedra Branca?” Se Semini concordasse com a cabeça, então o que Allesandra planejou seria realmente uma trama perigosa, dadas as lendas sobre o assassino. Diziam que a Pedra Branca mataria qualquer um que tentasse interferir na execução de um contrato. A Pedra Branca, diziam os mesmos rumores, era um mestre no uso de todas as armas; não havia ninguém que pudesse cruzar espadas com ele. Porém, a Pedra Branca sempre atacava suas vítimas isoladamente, não no meio de multidões. Não poderia ser ele... pelo menos Allesandra torcia para que não fosse.

Seja qual fosse o caso, o assassinato ocorreria em breve, então. E não importava a maneira como isso aconteceria, ela seria a pessoa que mais lucraria, se tomasse cuidado. Allesandra voltou a se juntar à família. — O que o archigos queria, matarh? — perguntou Jan. Pauli continuou conversando com a ca’Belgradin.

— Queria falar do tempo e, de acordo com Francesca, creditar-se por isso — disse Allesandra. Jan riu. — Sim, eu sei, a mulher não é nada além de previsível. Vamos pegar nossa carruagem, querido. A procissão está começando a andar. Pauli, odeio interromper sua tentativa de impressionar a jovem vajica, mas temos nosso dever...

Com uma careta de irritação, Pauli interrompeu a conversa e seguiu na direção de Allesandra, que seguia Jan até a carruagem aberta logo à frente do archigos. Ela viu que estavam sendo observados por Semini e Francesca, e acenou com a cabeça para ele. — Você não precisava ser tão estridente, minha querida — falou Pauli.

— E você não precisava ser tão óbvio — respondeu Allesandra. — Mas essa não é uma conversa que deveríamos ter em público, Pauli.

— Essa não é uma conversa que deveríamos ter de forma alguma, no que me diz respeito. — Pauli entrou na carruagem. Ele ajeitou o corpo desconfortavelmente no couro elegante do assento e bateu nas almofadas com os dedos. O som foi tão agudo e alto quanto se ele tivesse batido em madeira, e a almofada mal afundou. — Firenzcia tem um talento para fazer algo parecer atraente quando na verdade é extraordinariamente desconfortável — comentou Pauli. — Mas eu sei que você já tem intimidade com essa característica, minha querida.

— Vatarh! — falou Jan com rispidez, e Pauli, estranhamente, virou-se para olhar para fora da janela da carruagem. Allesandra sentiu o rosto ficar quente, mas não disse nada. Eles chegariam ao palanque em uma marca da ampulheta, e o dia seria o que seria. De qualquer maneira, Pauli acabaria sendo tão irritante quanto uma mosca, e ela enxotaria o marido com a mesma facilidade quando o momento certo chegasse. Com alívio.

A carruagem deu um solavanco e começou a andar, e por cerca de meia virada da ampulheta eles passaram pela principal avenida de Brezno, com as laterais apinhadas de moradores da capital e das cidades vizinhas. Todos eles vibravam e gritavam, empurravam e acotovelavam os utilinos e gardai posicionados ali no esforço de ver a elite de Firenzcia, os grandes visitantes de outros países da Coalizão Firenzciana e o novo hïrzg.

A praça ao redor da estátua de Falwin estava lotada por uma massa compacta, as carruagens da realeza percorreram um caminho aberto pelos gardai. Ao lado do palanque, eles foram escoltados pela subida por uma larga escada temporária até os lugares à sombra da estátua de Falwin. O antigo hïrzg erguia braços de bronze sobre eles, com a enorme espada em riste. Allesandra podia sentir o som da multidão, os gritos e aplausos aumentaram quando Fynn apareceu na plataforma, com as mãos estendidas como se fosse abraçar todo mundo. Ele regozijou-se com a adulação da multidão, destacado pela luz intensa do sol. Allesandra sentiu uma pontada de inveja ao ver o irmão.

A a’hïrzg estava logo à esquerda de Fynn com Jan próximo a ela, a seguir Pauli (que já se virava de costas para falar com a moça ca’Belgradin novamente); Semini estava à direita do hïrzg com a coroa de archigos na cabeça e o robe cerimonial dourado e esmeralda. Allesandra olhou de relance para ca’Cellibrecca, parado ao lado da azeda Francesca, que parecia ser a única que não estava completamente impressionada com os eventos. Semini acenou com a cabeça sutilmente.

Quando? Quem? Como?

Fynn começou a falar, a voz foi amplificada pelos esforços de dois o’ténis que entoavam um cântico baixinho de ambos os lados do hïrzg. Ela retumbou sobre as massas, a voz possante de um semideus que gritava dos céus. — Firenzcia, estou diante de vocês como seu criado e agradeço humildemente pela dádiva de sua confiança.

Um rugido respondeu ao hïrzg, que ergueu os braços novamente. Porém, a atenção de Allesandra foi desviada. A a’hïrzg vasculhou a linha de frente da multidão, vasculhou as pessoas com ela na plataforma. Havia gardai no parapeito do palanque de ambos os lados de Fynn, que olhavam fixamente para fora e para baixo — certamente eles veriam algo preocupante ali antes que estivesse visível para ela.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”. Um ataque mágico então? Uma bola de fogo como aquelas dos ténis-guerreiros? Semini tinha sido um téni-guerreiro, afinal. Mas o archigos certamente não usaria o Ilmodo ou arriscaria que outra pessoa usasse quando tal coisa atrairia suspeita para os ténis e, portanto, para ele.

— Como seu hïrzg, eu prometo que continuarei com o desejo de meu vatarh de tornar Firenzcia a primeira entre todas as nações...

Allesandra deu uma olhadela para trás. Os ca’ e co’ e dignatários visitantes estavam dispostos atrás dela, e, ao fundo, os criados aguardavam. Não havia nada anormal ali. Allesandra começou a se virar novamente quando um movimento chamou sua atenção.

— ... um sonho que deseja ver Brezno como o centro do mundo...

Um dos criados vinha à frente com uma bandeja e uma jarra de água. Ele andava lentamente pelas fileiras, murmurava desculpas ao passar cuidadosamente pelas pessoas. Andava na direção de Fynn. A atenção do criado jamais pareceu deixar o irmão de Allesandra, que se assustou com alguma coisa na intensidade do olhar do homem. Semini, na ação mais indicativa de todas, sussurrou algo para Francesca e deslizou para longe de Fynn, na direção do outro lado da plataforma.

Existem aqueles que usam magia e são inimigos de Firenzcia, que matariam o novo hïrzg de bom grado e não levantariam suspeitas sobre o archigos, de maneira alguma. Allesandra sentiu um arrepio de medo; ela não estava mais certa de seu plano. Tinha esperado que o ataque fosse físico: uma faca, uma espada, uma flecha. O vatarh não teria hesitado, não se pensasse que ainda havia uma chance de sucesso. E você é a filha dele, a mais parecida com ele...

— Jan — disse ela ao se inclinar para o filho. — Aquele homem, o criado atrás de nós, que está avançando com a bandeja; não, não olhe diretamente para ele, mas você o vê?

Jan moveu a cabeça rapidamente para a esquerda, depois voltou. — Sim.

— Ele é um numetodo. Um assassino.

Jan pestanejou. — O quê?

— Acredite em mim — sussurrou Allesandra furiosamente. No palanque, Fynn ainda declamava. “Um novo dia para Firenzcia, um novo alvorecer...” — Quando ele pousar a bandeja, tudo que ele precisa fazer é falar uma palavra e gesticular com as mãos; não podemos deixar que isso aconteça. Vou confrontá-lo para atrasá-lo; você vem pelo lado. Ande! — Ela empurrou o filho. Com uma olhadela, Jan virou-se e murmurou desculpas enquanto escapuliu para os fundos, através das fileiras dos ca’ e co’. Pauli olhou para eles, curioso, e depois voltou sua atenção para a jovem ca’Belgradin. Allesandra entrou cautelosamente atrás de Fynn e virou-se para encarar o criado.

Havia apenas poucas pessoas entre eles. O criado com a bandeja parou ao ver que ela virou-se para encará-lo, e seu rosto ficou tenso. Por um momento, Allesandra pensou que estivesse enganada, que o homem não era nada mais do que fingia ser. Mas os próximos instantes jamais seriam esquecidos por ela.

... o criado jogou a bandeja para o lado (os ca’ e co’ perto do homem reagiram tarde demais quando a bandeja, a jarra, a caneca e a água caíram em cima deles). O sujeito ergueu as mãos como se fosse rezar...

... Allesandra atirou-se em cima do criado, apenas para ser impedida pelas pessoas entre eles, que contiveram seu avanço...

... um fogo surgiu entre as mãos do assassino quando ele bradou uma única palavra que soava como a língua dos ténis. Allesandra esperou morrer naquele momento, consumida pelo fogo mágico que também mataria seu irmão...

... mas Jan esbarrou no numetodo na hora em que ele abriu as mãos, derrubando o criado. (Em volta dos dois, bocas eram escancaradas em meio aos gritos, a maioria dos ca’ e co’ ainda não tinha se dado conta do que acontecia e perguntava-se por que tinha sido empurrada por este jovem mal-educado ou por que aquele criado trapalhão arruinara sua roupa elegante. Atrás dela, Allesandra ouviu Fynn gaguejar e ficar calado. Ela podia imaginá-lo se virando devagar para ver a comoção às suas costas.) O fogo mágico fez um arco para os lados e para cima, em vez de ir na direção de Fynn e Allesandra. Os ca’ e co’ gritaram quando foram tocados pelo fogo, que irrompeu entre eles e virou uma bola de fogo que explodiu na altura dos olhos da estátua de Falwin. Uma luz vermelha pulsou e morreu, mais intensa que o sol, e agora a multidão gritava também.

— Jan! — berrou Allesandra, em pânico. Ela avançou para chegar até o filho, que parecia incólume e brigava com o numetodo, embora o homem parecesse curiosamente letárgico nas mãos de Jan, como se atordoado pela reviravolta. Ao redor dos dois, havia caos. Allesandra ouviu Fynn gritar.

Ela sacou a adaga da manga, ajoelhou-se rapidamente, cravou a arma debaixo do queixo do homem e puxou para o lado com violência. O sangue jorrou como um chafariz, espesso e grosso ao escorrer pela mão e pelo braço de Allesandra. — Matarh! — disse Jan, e ela ouviu o horror na voz do filho quando o sangue também espirrou sobre ele. Mãos agarraram os dois; os gardai chegaram com espadas em punho e empurraram os ca’ e co’ para o lado. Fynn berrava ordens.

— Quem fez isso? — Allesandra ouviu o irmão gritar às suas costas. Ela virou-se para Fynn com a parte da frente da roupa arruinada pelo sangue.

— Meu filho salvou sua vida e a minha, meu hïrzg, meu irmão. E eu garanti que este assassino jamais ataque você novamente.

A sombra fria da estátua de Falwin tocou Allesandra. Ela viu o archigos ca’Cellibrecca atrás de Fynn, e a confusão e a dúvida lutavam com o horror na cara barbuda de Semini. Allesandra achou que havia quase uma decepção no jeito como Fynn olhava para o corpo. Pauli chegou à frente e parou estupefato ao lado de Fynn quando Allesandra deixou a adaga cair dos dedos. A arma fez um barulho alto sobre as tábuas do palanque.

— Eu preciso me limpar dessa imundície — disse Allesandra calmamente. — Fynn, fale com seu povo. Acalme as pessoas. Tranquilize-as. Isso é o que o hïrzg precisa fazer.

Ele torceu o nariz para a irmã: Fynn sempre fazia cara feia quando alguém ousava dar uma ordem para ele. Mas o hïrzg virou-se para a multidão horrorizada e preocupada e começou a falar.

 

 

A Pedra Branca

ELA ASSISTIU À TENTATIVA de assassinato no meio da multidão, a salvo e sem ser notada. Que trapalhada horrível, pensou a Pedra Branca, enquanto as pessoas ficavam boquiabertas, gritavam e berravam à sua volta. Uma trapalhada estúpida ainda por cima.

Uma faca era uma arma bem melhor do que magia. Furtividade era muito melhor do que um ataque brutal. Deve-se estar presente para ver os olhos da vítima quando se ataca. Deve-se sentir o calor no sangue escorrendo pelas mãos.

Ela aprendeu as habilidades com faca na tenra idade, nas ruas populosas de An Uaimth. O corpo ainda tinha as cicatrizes daquelas lições, e a Pedra Branca pensou mais de uma vez que morreria por causa delas. Seus professores foram a escória da sociedade, gente corrompida e sombria, violenta e perturbada demais para ser tolerada pela sociedade educada. Eram perigosos, e ela viu-se abusada, usada e machucada por eles mais de uma vez. Porém, os professores tinham as habilidades físicas que a Pedra Branca queria ter, adquiridas com sangue, dor e fúria. Ela aprendeu bem essas lições e tirou de cada um deles o que foi possível.

A Pedra Branca jamais deixaria alguém se aproveitar dela. Jamais seria fraca. Jamais se deixaria ficar vulnerável.

Ela teve que matar alguns de seus “professores” quando ficaram muito perigosos ou tentaram se aproximar demais, quando começaram a bisbilhotar ou adivinhar seus segredos. Ela deixou seu cartão de visitas com cada um deles, um seixo branco sobre o olho esquerdo. A Pedra Branca... Ela começou a ouvir o nome sussurrado nas ruas. O assassino sempre deixa uma pedra branca no olho esquerdo...

As pessoas sempre presumiam que era “ele, o assassino”; isso também era uma proteção. Ela podia andar por qualquer lugar e nunca ser suspeitada.

E nunca se soube que eram sempre duas pedras; que ela tirava uma do olho direito da vítima para manter consigo. Para manter as vítimas consigo.

Aquela pedra ficava na pequena bolsinha de couro pendurada em seu pescoço, aninhada entre os seios, debaixo da roupa. Aquela estava sempre com o assassino.

Ela tocou a bolsinha enquanto o povo avançava na direção do palanque, quando a a’hïrzg levantou-se coberta pelo sangue do assassino e o novo hïrzg ergueu as mãos para a multidão e gritou para que as pessoas ficassem calmas.

A Pedra Branca sorriu diante disso.

A morte... a morte era sempre calma.


??? TENDÊNCIAS ???

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Nico Morel

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— É COM IMENSO PRAZER e gratidão que eu lhe concedo a Estrela dos Chevarittai. Você pode ser jovem, chevaritt Jan ca’Vörl, mas não conheço ninguém mais merecedor do título.

O aplauso fluiu entre as pessoas que assistiam na antecâmara no salão de baile do Palácio de Brezno. Jan deu um sorriso radiante quando Fynn — que usava a coroa dourada de hïrzg no cabelo e o anel com sinete no dedo — prendeu a estrela dourada na faixa vermelha de ombro de sua bashta, depois entregou um presente que pertencera ao vatarh de Allesandra e homônimo de Jan: uma espada de aço escuro firenzciano, endurecida pelo fogo e pela água fria, e afiada como uma navalha. Allesandra viu Jan pegar o punho incrustado da arma e enfiar a espada na bainha. Fynn amarrou-a ao cinto de Jan, depois abraçou o sobrinho enquanto os aplausos aumentavam. Parada próximo aos dois, Allesandra ouviu as palavras que Fynn sussurrou no ouvido de Jan.

— Aquele foi realmente um ato de bravura, sobrinho, embora eu não corresse perigo real. Eu certamente teria saído do caminho do feitiço daquele idiota.

Para Allesandra, o verdadeiro idiota era Fynn. A bravata já era ruim, e ele ignorou o papel que Allesandra teve em salvar sua vida. Foi como se ela não tivesse estado ali de forma alguma, como se Jan tivesse notado o assassino por conta própria.

Allesandra disse para si mesma que não se importava, que isso apenas correspondia às baixas expectativas que tinha de seu irmão, mas o pensamento não a convenceu. A porta para o salão de bailes abriu um momento depois, e Fynn gesticulou. — Venham, vamos todos aproveitar essa celebração — falou o hïrzg para os ca’ e co’ e os chevarittai reunidos. Fynn passou o braço pelos ombros de Jan, e juntos os dois entraram no salão quando os músicos começaram a tocar e uma dezena de e’ténis entoou para acender todas as lâmpadas do aposento ao mesmo tempo. Pauli ofereceu o braço à Allesandra; ela aceitou, por dever e aparência, e o casal seguiu. Atrás deles, entraram o archigos Semini e Francesca.

Allesandra sentiu o olhar de Semini em suas costas.

Em seguida à tentativa de assassinato, houve um expurgo a qualquer um em Brezno que fosse suspeito de ser numetodo. Isso, certamente, também era esperado. Houve outro expurgo, um pouco menos brutal, dentro do corpo de funcionários do novo hïrzg — o que confirmou o que Fynn dissera para Allesandra sobre como ele trataria qualquer um que se opusesse a ele. Cada criado, todo mundo abaixo do status de co’ empregado pelo palácio, foi interrogado pelo comandante da Garde Hïrzg. Uma meia dúzia de funcionários, suspeitos como simpatizantes dos numetodos, foram levados para a Bastida para serem interrogados com mais afinco. O mestre do palácio, que contratara o pretenso assassino, foi considerado culpado por negligência. Seu cargo foi tomado, a família reduzida a ce’, e o próprio mestre perdeu as mãos como castigo. A família do assassino foi presa; ninguém mais os viu desde que entraram na Bastida. Um numetodo que disseram ter ajudado o assassino foi chibatado e esquartejado na Praça de Brezno. Ele foi mantido vivo cuidadosamente pelo carrasco pelo máximo de tempo possível, e seus gritos ecoaram entre os prédios enquanto a multidão assistia e gritava insultos e caçoadas para o homem. O corpo do assassino, infelizmente morto durante o ataque, foi pendurado e exposto publicamente em uma jaula de ferro que balançava em uma corrente na espada de Falwin. Dobraram o número de gardai em volta do palácio, com soldados da Garde Firenzcia, trazidos para reforçá-los. Rumores voavam pela cidade tão rapidamente e tão numerosos quanto pardais.

Dois ca’ foram mortos no ataque pelo feitiço errante; seus funerais foram caprichados e atraíram um bom público. Mais seis espectadores no palanque foram queimados e feridos no ataque, quatro gravemente; dizia-se que tinham sido muito bem compensados pelos cofres do hïrzg para manter as famílias caladas e satisfeitas.

Allesandra ainda podia sentir a tensão no ar, mesmo durante esta celebração. Os criados mantinham a cabeça baixa por prudência, e se alguém notou os gardai que vigiavam as festividades perfilados pelas paredes ou o impressionante número de ténis presentes, ninguém comentou. Era melhor sorrir e permanecer calado.

Pauli dançou com Allesandra uma vez — o mínimo de exigência conjugal. Assim que a dança acabou, ele pediu licença. Ela sabia que, dali em diante, só veria Pauli de relance do outro lado do salão, e que em pouco tempo descobriria que o marido sumiu de vez e que somente retornaria em algum momento cedinho de manhã para seu próprio quarto separado, na ala de visitantes do palácio. Jan também dançou com Allesandra, mas as atenções do filho eram exigidas por Fynn e pela multidão de bajuladores em volta do hïrzg. As moças, em especial, pareciam considerar a presença de Jan bastante agradável. Allesandra decidiu que teria que prestar muita atenção ao filho pelo resto da estadia em Brezno quando viu uma ca’ jovem e solteira pegar o braço de Jan e levá-lo para a pista de dança.

— A senhora me surpreendeu, a’hïrzg. — A voz de Semini surgiu atrás dela. — Eu não sabia que tinha um amor tão grande por seu irmão a ponto de se colocar entre ele e um assassino, mesmo que o hïrzg pareça ter convenientemente se esquecido de que a irmã fez isso.

Allesandra olhou em volta para garantir que não havia ninguém que pudesse ouvir, depois se virou para o archigos e inclinou o corpo para sussurrar. — E eu fiquei surpresa que o archigos contratasse um numetodo.

Seu sorriso talvez tenha tremido levemente, seus olhos talvez tivessem se apertado. — Eu jamais faria isso, a’hïrzg.

— Não há necessidade para falsa modéstia, Semini. Eu achei a ideia brilhante quando percebi a ironia.

— Eu não sei do que a senhora está falando, a’hïrzg — respondeu ele com intransigência.

— Ah, mas sabe, sim. E agora você está em dívida comigo, archigos. Afinal de contas, o assassino não foi capaz de responder a quaisquer perguntas embaraçosas depois, não é? Isso fui eu que fiz por você, archigos, embora meu irmão tenha ficado terrivelmente desapontado por não haver alguém para torturar depois. Venha, você quer saber por que eu fiz aquilo, não quer? Vamos tomar um pouco de ar, archigos, onde possamos ser vistos, mas não ouvidos.

Allesandra conduziu Semini para a entrada aberta de uma sacada, que estava vazia. Ela ficou diretamente voltada para as portas, onde qualquer um que olhasse pudesse vê-los. A música passou por eles e flutuou noite afora; Allesandra e Semini podiam ver as pessoas dançando, entre elas o hïrzg e Jan. Ela virou-se para olhar os jardins, iluminados por centenas de lâmpadas mágicas; alguns casais passeavam por lá. — Isso quase me lembra Nessântico e a Avi... — A a’hïrzg voltou-se do parapeito. — Quase. Eu percebo que sei muito pouco a respeito de sua vida pessoal, archigos. Você algum dia já foi a Nessântico?

Sergei concordou com a cabeça. Ele observava Allesandra como um cão desconfiado observaria outro. — Eu fui ordenado aqui em Brezno por Orlandi ca’Cellibrecca, meu vatarh por casamento, mas como um jovem o’téni eu viajei com ele para Nessântico várias vezes quando Orlandi era o a’téni de Brezno.

— Então sem dúvida você entende por que Nessântico sempre foi o centro dos Domínios. Há uma grandiosidade e uma história lá que ninguém consegue sentir em qualquer outro lugar. Dá para entender por que, quando os Domínios forem reunificados, Nessântico será o centro do mundo conhecido novamente. Tenho certeza disso. — Allesandra tocou o braço dele e sentiu o archigos puxá-lo de volta. — Eu quero lhe agradecer, Semini. Você me deu a oportunidade perfeita para demonstrar a Fynn como eu era leal a ele, apesar da maneira como meu vatarh me dispensou como herdeira; apesar da paranoia e das suspeitas de Fynn a meu respeito; apesar de todas as discussões e brigas que tivemos. Meu irmão jamais suspeitará novamente que eu ou Jan conspiraríamos contra ele.

Mesmo na penumbra da sacada, iluminada apenas por lâmpadas mágicas postas em ambas as pontas do parapeito, ela pôde ver a cor do rosto de Semini escurecer. O archigos cerrou os punhos ao lado do corpo e afastou o olhar de Allesandra. Ele não disse nada.

— O kraljiki Audric não viverá muito tempo, pelo que me dizem — continuou ela. — Eu descobri que realmente não quero ser a hïrzgin, Semini, mas quando chegar o dia em que os Domínios estiverem unificados, digamos, sob uma kraljica, eles precisarão de um hïrzg forte para ser sua espada, o papel que Firenzcia sempre cumpriu. Agora, meu filho dará um grande hïrzg um dia, não acha? Um líder maravilhoso.

Semini arregalou os olhos um pouco. — Você quer...

— Sim — respondeu Allesandra antes que ele pudesse terminar a pergunta.

— Você assumiu um risco incrível, Allesandra.

— Sim, admito que você me surpreendeu bastante com sua audácia. Eu quase decidi apenas deixar que acontecesse. Porém, grandes ambições exigem grandes riscos, como você obviamente entende. E você me deve pelo risco que corri, Semini, porque depois eu garanti que a tentativa de assassinato não pudesse conduzir facilmente até você. Eu destruí a prova que podia falar.

— Eu não tive nada a ver com...

Ela dispensou o protesto fraco com a mão. — Ora, vamos. Apenas a lua pode nos ouvir aqui, e ambos sabemos a verdade. Ainda há provas contra você, caso eu seja forçada a revelá-las. Ambos sabemos que se eu relatasse para Fynn algumas das conversas que tivemos ou dissesse para ele sobre a missiva que você recebeu do regente de Nessântico — diante disso, Semini arregalou ainda mais os olhos, e Allesandra soube que o palpite estava certo —, bem, nós sabemos que os interrogadores na Bastida conseguem extrair uma confissão plena de qualquer um. Fynn daria ordens para que se fizesse um interrogatório assim, mesmo com o archigos, caso eu insistisse. Afinal de contas, eu sou sua leal irmã, que se colocou entre ele e aquele numetodo desprezível. E se você tentasse dizer para Fynn que eu estava envolvida também, ora, minhas ações e as de Jan tornariam a acusação uma mentira, não é?

— O que você quer? — perguntou Semini com grosseria. O archigos deu um passo para trás, como se a presença dela fosse infecciosa. Aquilo agradou Allesandra; significava que toda aquela dissimulação tinha acabado. Os belos olhos escuros do archigos brilharam com os reflexos das lâmpadas mágicas abaixo deles, a postura de Semini era a de um urso acuado, forte e pronto para se defender até a morte. Ela descobriu que gostava disso.

— Na verdade, eu não quero nada além do que você mesmo queira. Nós ainda estamos do mesmo lado, embora eu sinta que você tem dúvidas quanto a isso. Eu gosto de você, Semini, gosto mesmo. Gostaria que se tornasse o Único Archigos. E será, se fizer o que eu mandar. Você cometeu dois erros, Semini. Um foi pensar que Fynn só seria útil para nós morto quando, na verdade, nós queremos ele vivo. Por enquanto.

— E o segundo?

Ela inclinou a cabeça para o lado e observou Semini. — Você pensou que fosse a pessoa que deveria tomar as decisões por nós. Não espero que cometa esse erro novamente. Na época em que fui refém em Nessântico, a archigos Ana muitas vezes dizia que o archigos sempre serve a dois mestres: Cénzi, em nome da Fé, e a pessoa no Trono do Sol, em nome dos Domínios.

Allesandra tocou o braço dele novamente. Desta vez Semini não recuou, e ela deu o braço ao archigos. — Vamos dançar juntos, archigos, uma vez que nenhum dos nossos respectivos cônjuges parece se importar. Vejamos quão bem nos movemos juntos.

Allesandra insistiu que Semini saísse da sacada e entrasse no barulho e na luz do salão de baile.

 

Enéas co’Kinnear

— CÉNZI SEM DÚVIDA OLHA pelo senhor, o’offizier co’Kinnear, embora as notícias que traz sejam muito perturbadoras. — Donatien ca’Sibelli, comandante das forças dos Domínios nos Hellins e irmão gêmeo de Sigourney ca’Ludovici do Conselho dos Ca’, andava de um lado para o outro atrás da mesa enquanto Enéas permanecia em posição de sentido diante do superior. A sala era um reflexo do homem: limpa e escassa, sem nada que distraísse os olhos. O tampo da mesa era polido, com uma única pilha de papel em cima, alinhada perfeitamente com a borda do móvel. Havia um pote de nanquim e uma pena do outro lado, com um areeiro que formava um ângulo reto perfeito acima deles. A cesta de lixo estava vazia. Havia uma única cadeira de madeira simples diante da mesa. Em um canto, o estandarte azul e dourado de Nessântico pendia frouxo em um poste.

Ca’Sibelli, pelo menos em seu gabinete, não permitia que nada se intrometesse em seu dever como comandante. Não havia como duvidar da lealdade ou bravura do homem — ele lutara muito bem contra uma força adversária muito superior na Batalha dos Brejos e fora condecorado e promovido pelo kraljiki Justi, sua irmã servia ao Estado da maneira dela, mas Enéas sempre suspeitou que o cérebro do homem tinha tão pouca mobília quanto seu gabinete.

— Sente-se, o’offizier — disse ca’Sibelli, que apontou para a cadeira e sentou-se na própria. Ele tirou a folha de cima dos relatórios e colocou diante de si enquanto Enéas se sentava. O indicador do comandante percorreu o texto enquanto ca’Sibelli vasculhava o documento. — O a’offizier ca’Matin fará muita falta. Deve ter sido horrível vê-lo ser sacrificado aos caprichos dos falsos deuses que aqueles selvagens idolatram, e o senhor é extremamente afortunado por ter evitado o mesmo destino, o’offizier.

O próprio Enéas tinha pensado nisso, e os offiziers que o interrogaram desde seu retorno muitas vezes disseram a mesma coisa, alguns com uma insinuação de acusação na voz. Ele passou três dias cavalgando pelo ermo território ao redor do lago Malik e manteve o cavalo na direção nordeste. No quarto dia, fraco e faminto, com a montaria praticamente exausta, Enéas vislumbrou cavaleiros em um morro. Eles também o viram e vieram galopando em sua direção. Enéas esperou pelos homens, ciente de que não conseguiria fugir dos cavaleiros, fossem amigos ou inimigos. Cénzi sorriu para ele novamente: o grupo era uma pequena patrulha de reconhecimento dos Domínios, e não soldados ocidentais. Eles o alimentaram, ouviram espantados sua história, e o trouxeram de volta para seu posto avançado.

Nos dias seguintes, conforme notícias foram mandadas para Munereo e uma ordem enviada de volta para Enéas retornar para lá, ele soube que somente um terço do exército liderado pelo a’offizier ca’Matin conseguiu se arrastar de volta depois da retirada caótica. Da própria unidade, Enéas era o único sobrevivente. O choque da notícia fez Enéas se ajoelhar e rezar para Cénzi pelas almas dos homens que ele conhecera e comandara. Muitos morreram a esta altura. Homens demais. Ele ficou atordoado e confuso pela perda.

Neste momento, Enéas simplesmente concordou com a cabeça diante do comentário do comandante e observou o homem continuar a ler e murmurar para si mesmo.

— Os nahualli estavam com o exército então. Nossa informação estava errada.

— Sim, senhor. Eu lutei contra eles várias vezes e nunca tinha visto feitiços como aqueles: o fogo explodiu do chão embaixo de nós, aqueles círculos de areia escura... — Enéas engoliu em seco ao se lembrar. — Um daqueles feitiços foi disparado perto de mim, e eu não me lembro de nada depois daquilo até... depois de a batalha já estar encerrada. Eles pensaram que eu estava morto.

— Cénzi colocou Sua mão sobre o senhor e o salvou — comentou ca’Sibelli, e Enéas concordou com a cabeça novamente. Ele acreditava nisso. Com o passar dos dias, cada vez mais tinha certeza, desde que saíra do acampamento tehuantino. Cénzi abençoou-o. Cénzi salvou-o por um motivo especial: Enéas sabia disso. Podia sentir. À noite, ele parecia ouvir a voz de Cénzi dizendo o que queria que Enéas fizesse.

Ele obedeceria como qualquer bom téni faria.

— Cénzi realmente esteve comigo, comandante. — Enéas sentia isso com fervor. Que outra resposta haveria? Ele esperava morrer e, no entanto, Cénzi fez contato com o pagão Niente e tocou o coração do homem. Era a única explicação. E apesar da fome e da sede, apesar da exaustão que sentiu ao fugir dos ocidentais, de certa maneira Enéas jamais se sentiu assim tão revigorado, tão cheio de vida e vivo. A própria alma ardia dentro dele. Às vezes, Enéas era capaz de sentir a energia formigar na ponta dos dedos. — É por isso, comandante, que fiz o pedido de retornar a Nessântico. Eu acho que esta é a tarefa pela qual Cénzi me poupou.

Havia um destino para Enéas cumprir. Foi por isso que ele escapou dos ocidentais; foi Cénzi que trabalhou de dentro do nahual Niente. Certamente não foi o ato do falso deus deles, Axat.

Ca’Sibelli franziu um pouco a testa diante do último comentário de Enéas. Ele mexeu na papelada novamente. — Eu preparei um relatório para enviar a Nessântico — continuou ca’Sibelli — e uma recomendação para uma condecoração para o senhor, o’offizier co’Kinnear. Porém, ainda assim, sua experiência e liderança farão falta aqui, especialmente com a perda do a’offizier ca’Matin.

— É muita gentileza de sua parte, comandante — respondeu Enéas. Não era de seu feitio reclamar de ordens, mas Cénzi era uma autoridade superior. — Mas relatórios são secos, e as pessoas em Nessântico, especialmente o regente e o kraljiki, precisam saber como nossas circunstâncias são desesperadoras. Eu acho... acredito que eu seria a pessoa certa para levar a mensagem. Posso falar diretamente com as pessoas em Nessântico sobre a situação aqui. Elas poderão ouvir da minha boca o que aconteceu. Posso convencê-las; Cénzi me diz que eu posso.

Vá ao seu líder, fale com ele e dê uma mensagem por nós... Ele pensou, por um momento, ter ouvido aquela sentença em uma voz alta e grave em sua cabeça. Ficou assustado demais para falar imediatamente. — Comandante — continuou Enéas —, eu entendo que meu lugar é aqui com as tropas, especialmente com os ocidentais ameaçando avançar contra a própria Munereo. Eu retornarei assim que for possível, mas posso entregar seu relatório com muito mais impacto. Prometo isso ao senhor. Eu sugeriria que o senhor mesmo fosse, mas seu conhecimento e liderança são fundamentais para nossa vitória contra os ocidentais.

Ca’Sibelli abanou a mão. O movimento fez mexer os papéis do topo da pilha na mesa, que ele parou para alinhar novamente. O comandante suspirou. — Eu creio que um offizier a mais ou a menos não fará diferença; ou melhor, acredito no senhor quando diz que pode fazer mais diferença ao falar com o kraljiki e o Conselho dos Ca’ do que empunhando uma espada aqui. Talvez o senhor esteja correto sobre a vontade de Cénzi. Tudo bem, o’offizier co’Kinnear: o senhor partirá amanhã de manhã na alvorada no Nuvem Tempestuosa. O e’offizier co’Montgomeri está com meu relatório para o senhor entregar; pode pegá-lo ao ir embora. Espero o senhor de volta aqui quando o Nuvem Tempestuosa retornar.

Ca’Sibelli levantou-se, e Enéas ficou de pé às pressas para prestar continência. — O senhor já sabe que tinha sido recomendado para o título de chevaritt pelo a’offizier ca’Matin — disse o comandante ao devolver a continência. — Eu aprovei aquela recomendação; ela também estará no Nuvem Tempestuosa para o kraljiki assinar. Eu suspeito que o futuro lhe reserva grandes coisas, o’offizier. Grandes coisas.

Enéas concordou com a cabeça. Ele também suspeitava disso. Cénzi cuidaria disso.

 

Audric ca’Dakwi

AS TROMPAS DO TEMPLO soaram a Primeira Chamada, as notas dissonantes e tristes apagaram os últimos vestígios de sono.

Audric permitiu que Seaton e Marlon o ajudassem a sair da cama. Mesmo com a assistência, o kraljiki ficou sem fôlego ao ficar de pé, com a roupa de dormir. Os camareiros ajudaram Audric, as mãos dos dois tiraram a camisola do kraljiki, depois começaram a vesti-lo para a audiência matinal. Enquanto cambaleava de leve nas mãos dos camareiros e ofegava, Audric olhou o quadro de Marguerite. Ela deu um sorriso cruel para o neto.

— Você é fraco fisicamente porque é fraco politicamente — disse a kraljica. — Cénzi lhe mandou a doença como um aviso. Você está tão envolvido por grilhões de ferro que não consegue enxergar, Audric: são correntes pesadas, que confinam e oprimem, e é este fardo que deixa você doente. Foi o regente que colocou as correntes, Audric. Ele rouba seu poder; rouba sua saúde. Quando você se soltar dos grilhões do regente, quando for o kraljiki na prática, assim como no título, sua doença também lhe deixará.

— Eu sei, mamatarh — falou Audric. Era um esforço apenas erguer a cabeça. Os cantos do quarto estavam escuros, como se ainda fossem encobertos pela noite; ele só conseguia enxergar o quadro. — Eu estou ansioso... por esse dia. — Por um momento, Marlon e Seaton pararam as atenções, assustados com a resposta.

— Em breve — murmurou Marguerite. — O que quer que você faça tem que ser em breve. O regente tem a intenção de enfraquecê-lo até que morra, Audric. Ele o envenena com suas palavras, com conselhos para ter cautela, com o poder que roubou de você. O regente quer tudo para si e está matando você para obtê-lo. Você tem que agir.

— É o que farei hoje, mamatarh.

— Kraljiki? — perguntou Seaton.

Audric olhou com raiva para o camareiro e disparou — Não interrompa quando estou conversando com seus superiores. — As palavras eram interrompidas por arfadas. — Repita isso e você será dispensado do meu serviço, além de ser chibatado pela insolência. Entendeu?

Ele viu Seaton olhar de relance para Marlon e depois fazer uma rápida mesura para Audric. — Minhas desculpas, kraljiki. Eu... eu errei.

Audric torceu o nariz. Marguerite sorriu para o neto enquanto concordava com a cabeça, no quadro. — Andem depressa, vocês dois — falou o menino para os camareiros. — Hoje vai ser um dia cheio.

Meia virada da ampulheta depois, Audric estava vestido e tomava café da manhã na sacada do quarto, que dava vista para os jardins oficiais do palácio. Ele ouviu a batida na porta externa e a conversa do criado no corredor com Marlon. — Kraljiki — disse o camareiro alguns momentos depois, enquanto Audric tomava um gole de chá de menta e saboreava o aroma da erva. — Seus convidados esperam o senhor na antecâmara.

— Excelente. — Ele pousou a xícara e dispensou Marlon e Seaton com um gesto quando os dois correram para atendê-lo. — Deixem-me. Eu estou bem. — Ao passar pelo quadro de Marguerite, Audric acenou com a cabeça para ela, depois foi para a porta da câmara de recepção. Marlon moveu-se para abrir a porta para ele, e Audric ergueu a mão, à espera de recuperar o fôlego, à espera de conseguir respirar sem ofegar. O kraljiki finalmente aquiesceu, e Marlon abriu a porta.

Audric viu todos se levantarem rapidamente e fazerem mesuras quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi e Odil ca’Mazzak — todos integrantes do Conselho dos Ca’, os três mais influentes entre os sete. Sigourney era a pedra fundamental, Audric sabia: ela tinha o sobrenome ca’Ludovici, como a kraljica Marguerite. Magra e ativa, com um rosto animado, comprido e delicado, Sigourney aproximava-se da quarta década de vida e tinha o cabelo pintado de preto como carvão com raízes brancas; com o irmão gêmeo no comando das forças nos Hellins, ela contava com a voz dos militares também. Odil, um saudável sexagenário, era o que estava há mais tempo sentado no Conselho dos Ca’ dentre todos eles. Seu corpo tinha a aparência magra e murcha de carne defumada, e ele arrastava os pés com cuidado ao andar apoiado por uma bengala, mas a mente permanecia afiada. Com quase 30 anos, Aleron era um dos mais jovens integrantes, mas era carismático, charmoso e usava de sua influência muito bem, a ponto de ainda ser considerado bonito — e fez um ótimo casamento com alguém da antiga família ca’Gerodi.

— Por favor, sentem-se — mandou Audric, que tomou o próprio assento perto da lareira, do lado oposto ao lugar onde o quadro da mamatarh estava pendurado. O kraljiki podia imaginá-la com a parte detrás da cabeça voltada para eles enquanto escutava. — Eu pedi que os senhores viessem aqui hoje porque valorizo seus conselhos e gostaria de ouvir suas opiniões. — Ele fez uma pausa, tanto para respirar quanto para dar efeito. — Não perderei seu tempo. Eu gostaria de remover o regente ca’Rudka de seu posto e que os plenos poderes do governo sejam passados para mim.

Audric viu Odil recostar-se visivelmente na cadeira e Sigourney e Aleron trocar olhares cuidadosamente dissimulados. — Kraljiki — Aleron começou a falar, depois parou para passar a língua pelos lábios grossos. — O que o senhor pede... bem, o senhor está a apenas dois anos de chegar à maioridade legal. Eu sei que parece um longo tempo para alguém da sua idade, mas dois anos...

— Eu sei muito bem disso, conselheiro ca’Gerodi — disse Audric com desdém. A voz foi interrompida por tosses ocasionais e pausas para respirar. — O senhor estava lá quando o mestre ci’Blaylock testou meus conhecimentos sobre a linhagem dos kralji. Eu conheço a minha história, talvez melhor do que qualquer um dos senhores. Eu poderia citar o kraljiki Carin...

— Sim, kraljiki. — foi Odil que falou. — Existe um precedente real em Carin, mas Carin...

— “Mas Carin?” — Audric repetiu quando o homem parou. Odil respirou fundo ao se sentar na ponta da cadeira.

— O kraljiki Carin era precoce em quase todos os aspectos — continuou Odil. Ele abaixou o olhar para os dedos, entrelaçados no colo, e falou mais para eles do que para Audric. — Com o perdão do kraljiki, a história de Nessântico é meu passatempo, e eu diria que houve circunstâncias atenuantes na extraordinária ascensão de Carin. Aos 12 anos, ele assumiu o comando da Garde Civile contra as forças de Namarro quando seu vatarh foi morto, e Carin demonstrou habilidades extraordinárias naquela batalha. Todas as histórias dizem que ele era capaz de se lembrar de tudo que ouvia. Ele também tinha o Dom de Cénzi e podia usar o Ilmodo quase tão bem quanto um téni-guerreiro. E a saúde de Carin — dito isso, Odil finalmente olhou diretamente para Audric — era excelente.

— E foi o próprio regente de Carin que foi ao Conselho dos Ca’ com o pedido de que o kraljiki recebesse plenos poderes mais cedo — acrescentou Sigourney rapidamente enquanto Audric sentia o calor do sangue nas bochechas. — Talvez se o regente ca’Rudka viesse até nós com uma recomendação dessas...

— Ca’Rudka é o problema! — berrou Audric. Com calma... Ele ouviu a voz da mamatarh na cabeça. Olhe para os rostos dos conselheiros, Audric. Você os assusta com seu poder e tem que ter cuidado. Use a cabeça. Manipule-os. Você quer que eles escutem, que cumpram suas ordens. Você tem que soar como um adulto, não como uma criança petulante. Tem que parecer sensato. Fazer com que acreditem que é do interesse deles fazer o que você pede. Diga para eles. Diga todas as coisas sobre as quais conversamos...

Audric concordou com a cabeça. Ele tossiu e respirou fundo. Limpou a boca com a manga da bashta e ergueu a outra mão para os conselheiros. — Eu peço desculpas, conselheiros — falou Audric finalmente. — Por favor, entendam que minha... hum, veemência é causada apenas por minha grande preocupação com Nessântico e com os Domínios, e sei que todos os senhores se preocupam comigo. — Ele olhou de relance para Sigourney. — Conselheira ca’Ludovici, o regente ca’Rudka nunca virá até os senhores. Jamais. A verdade é que ele tem intenção de permanecer no poder, não importa qual seja a minha idade.

— Esta é uma acusação preocupante, kraljiki, com certeza — respondeu Sigourney. — O senhor tem alguma prova disso?

— Assim como o kraljiki Carin — disse Audric, acenando para Odil —, eu me lembro do que é dito na minha presença. O regente insinuou tal coisa para mim, e eu ouvi ca’Rudka sussurrar com o archigos Kenne quando eles pensavam que eu estava dormindo ou doente demais para prestar atenção. Provas? Não tenho nada além do que ouvi, mas eu ouvi. Há fatos curiosos também. O regente ca’Rudka, afinal, era o comandante da Garde Civile na época do meu vatarh e também foi o líder da Garde Kralji antes disso. Os homens escolhidos a dedo pelo regente ainda cuidam da segurança de Nessântico: o comandante co’Falla, da Garde Kralji, e o comandante co’Ulcai, da Garde Civile. E, ainda assim, de alguma forma, não só eles não conseguiram impedir o assassinato de nossa amada archigos, Ana, como ambos alegam que sequer sabiam de alguma trama contra ela.

— O que o senhor quer dizer, kraljiki? — perguntou Aleron. — Está dizendo que o regente ca’Rudka...? — Ele parou. Um gordo dedo indicador cofiou o cavanhaque.

— Todos os senhores conhecem os rumores a respeito da archigos Ana, que ela às vezes usava o Ilmodo para curar, apesar de a Divolonté ser contra tais práticas — falou Audric. — Eu sei que essas práticas são verdadeiras porque a archigos Ana me ajudou muitas vezes, desta mesma maneira. Sim, conselheira ca’Ludovici, eu vejo que a senhora concorda. Sei que todos suspeitavam disso. Com a archigos Ana morta, ora, alguém também poderia acreditar que eu também morreria em breve... e que o Conselho dos Ca’, em agradecimento pelo longo serviço, e dado que a linhagem direta da kraljica Marguerite atualmente não importava mais, poderia simplesmente nomear o atual regente como kraljiki em título, assim como na prática. Se ca’Rudka esperasse mais tempo para agir, ora, há o perigo de eu me casar e ter filhos que pudessem reivindicar o título.

Audric percebeu que eles refletiam sobre as acusações, especialmente sua prima ca’Ludovici. Ele tentou conter a tosse e se apressou em dizer o resto. Sim, você tem a atenção dos conselheiros agora, o kraljiki ouviu sua mamatarh dizer com uma voz contente.

— Essa situação chegou a um ponto crítico por causa das más notícias que continuam a vir dos Hellins. — Audric apressou-se para continuar. — Conselheira ca’Ludovici, seu irmão está lutando bravamente com os míseros recursos que demos a ele. O comandante ca’Sibelli é um ótimo guerreiro, mas, ainda assim, estamos sendo humilhados pelos ocidentais; nós, Nessântico, os Domínios, a maior potência do mundo. Essas pessoas são pouco mais do que selvagens, e, no entanto, elas roubam de nós a terra que o sangue de nossos soldados santificou. Eu disse ao regente que não tolerarei isso. Disse que quero mandar tropas adicionais e ténis-guerreiros para os Hellins a fim de ajudar seu irmão a acabar com esta rebelião. Deixem-me perguntar para cada um dos presentes: o regente ca’Rudka falou a respeito disso com algum dos senhores? — Ele viu as cabeças dos conselheiros balançarem em silêncio. — Eu imaginei que não. O regente está satisfeito em perder os Hellins; ele me disse isso. Está satisfeito em desperdiçar o grande sacrifício de nossos gardai. Fosse eu o kraljiki neste momento, ordenaria a imediata prisão de ca’Rudka. Eu o colocaria na Bastida e faria com que assinasse sua confissão, assim como ele fez outros confessarem ao longo de décadas. Porém, se os senhores não fizerem isso, então sugiro que simplesmente perguntem ao regente. Não sobre a morte da archigos ou suas intenções a meu respeito, mas sobre os Hellins. Perguntem a ca’Rudka a respeito de nossa situação lá e qual seria a melhor linha de ação que ele considera. Perguntem por que o regente não sabia nada sobre o plano contra a archigos Ana. Ouçam cuidadosamente as respostas. E quando os senhores perceberem que eu falo a verdade a respeito dessa situação, entenderão que também falo a verdade sobre o resto.

Audric ficou de pé. Sentiu o corpo tremer com o esforço, a exaustão ameaçava tomar conta dele. O kraljiki pareceu enxergar os três conselheiros como se estivessem atrás de um vidro fumê e não queria outra coisa a não ser cair na cama sob o olhar vigilante de Marguerite. Ele tinha que encerrar essa reunião. Rapidamente. — Por enquanto, encerramos por aqui. Falem com ca’Rudka. Depois, pensem no que eu falei para os senhores.

Audric fez uma mesura para os conselheiros e — com o passo mais lento e majestoso que conseguiu ter forças para dar — cruzou a sala até a porta do quarto, que Marlon abriu para ele.

O kraljiki conseguiu esperar até a porta ser fechada para cair nos braços de Seaton.

 

Sergei ca’Rudka

— REGENTE CA’RUDKA! UM momento!

Sergei virou-se na entrada da Bastida a’Drago. Acima dele, cimentado nas pedras do sombrio baluarte, o crânio de um dragão escancarava as enormes mandíbulas com dentes afiados que reluziam. A cabeça do dragão, descoberta durante a construção do que era para ser um castelo de defesa, deu à Bastida seu nome: Fortaleza do Dragão. Agora ela espiava os prisioneiros que entravam na masmorra e parecia rir quando eram devorados pela Bastida.

Ou talvez a cabeça risse de todos eles: os numetodos alegavam que não era um crânio de dragão em hipótese alguma, mas sim de algum animal antigo e extinto que virou pedra. Para Sergei, esta era uma teoria enrolada demais para se acreditar, mas os numetodos também alegavam que as conchas de pedra encontradas no alto dos morros em volta de Nessântico estavam lá porque, em algum passado distante inimaginável, as montanhas foram o leito de um mar.

O passado não importava para Sergei. Apenas o presente, e o que ele podia tocar, sentir e compreender.

Uma carruagem parou na Avi a’Parete. Da janela do veículo, Sigourney ca’Ludovici gesticulou na direção de Sergei. O regente fez uma mesura e andou até a carruagem. — Bom dia, conselheira. A senhora saiu cedo. A Primeira Chamada aconteceu há menos de uma virada da ampulheta.

Os olhos de Sigourney eram de um surpreendente cinza-claro em contraste com o cabelo tingido de preto. Ele notou as linhas finas debaixo do rosto maquiado. — O Conselho dos Ca’ teve uma reunião com o embaixador co’Görin da Coalizão na manhã de hoje, como seu gabinete foi informado.

— Ah, sim. — Sergei empinou o queixo. — Eu vi a declaração que o conselheiro ca’Mazzak escreveu. Ele fez um belo trabalho ao ficar no meio termo entre congratular o novo hïrzg e ameaçá-lo, eu aprovei a declaração. Acho que o conselheiro ca’Mazzak daria um belo embaixador em Brezno, se ele estivesse disposto. E acho que o embaixador co’Görin ficaria convenientemente irritado com a indicação.

Em outra ocasião, Sigourney teria rido do comentário, mas ela parecia distraída. Os lábios estavam parcialmente abertos, como se esperasse para dizer outra coisa, e o olhar continuava a se afastar do rosto de Sergei para a fachada da Bastida. Não era por causa do nariz de metal; Sergei estava acostumado com essa reação da parte de estranhos, com seus olhares ou capturados pela réplica de prata colada no rosto ou tão incomodados pelo nariz que deslizavam do rosto como esquis no gelo do inverno. Mas Sigourney conhecia o regente há décadas. Eles nunca foram amigos, mas também não eram inimigos; na política de Nessântico, isso era suficiente. Algo está errado. Ela não está à vontade. — O que a senhora realmente queria me perguntar, conselheira? — A pergunta atraiu o rosto dela de volta para Sergei.

— O senhor me conhece muito bem, regente.

Ele podia conhecer Sigourney, mas ela não o conhecia. Ninguém realmente o conhecia; Sergei jamais deixara alguém se aproximar tanto do seu âmago desprotegido, e estava velho demais para começar agora. A conselheira ficaria chocada se soubesse o que ele fez na manhã de hoje, nas entranhas da Bastida. — Eu tenho prática em ler as pessoas — disse o regente com um aceno de cabeça para o dragão no baluarte da Bastida. — O problema está nos olhos e nos minúsculos músculos do rosto que ninguém realmente consegue controlar. — Ele deu uma batidinha proposital no nariz falso. — A dilatação das narinas, por exemplo. A senhora está incomodada com alguma coisa.

— Todos nós lemos o último relatório do meu irmão nos Hellins. É a situação por lá que me incomoda.

Sergei colocou o pé no degrau da carruagem e inclinou-se na direção dela. As molas da suspensão do veículo gemeram e cederam sob seu peso. — Isso também me incomoda, conselheira.

— O que o senhor faria a respeito?

— Quando alguém sangra muito, o conselho é atar a ferida. Eu digo isso sem críticas ao seu irmão. O comandante ca’Sibelli está fazendo o possível com os recursos de que podemos abrir mão para ele, mas lutar contra um inimigo obstinado em seu território natal é difícil sob a melhor das circunstâncias, e praticamente impossível a essa distância.

— O senhor está sugerindo que nós atemos a ferida, regente, como o senhor disse tão elegantemente, ou que nós fujamos em desonra do que está causando o dano? — Ela arqueou as sobrancelhas ao fazer a pergunta, e Sergei hesitou. Ele sabia que Audric havia se encontrado com Sigourney, Odil e Aleron, esse tipo de fofoca era impossível de abafar no palácio, e lembrava-se bem demais das discussões sobre a questão que tivera com Audric. O regente ainda não tivera a chance de tocar no assunto com qualquer um do Conselho dos Ca’; agora parecia que Audric fizera isso por ele, e Sergei duvidava que tivesse sido favoravelmente representado pela opinião do kraljiki.

— Se há desonra em recuar depende — respondeu ele com cautela — da pessoa acreditar que a próxima ferida possa ser fatal.

— É nisso que o senhor acredita, regente? — insistiu Sigourney. — Que a guerra nos Hellins está perdida?

Antigamente, ele poderia ter sido evasivo, por não saber qual seria a opinião mais segura de revelar. Ao ficar mais velho, ao ganhar mais poder, Sergei tornou-se menos propenso a ser sutil. — Eu acredito que haja um perigo de a guerra estar perdida, sim. Eu dei minha opinião ao jovem kraljiki, e essa será minha declaração ao Conselho dos Ca’ no meu próximo relatório. Portanto, a senhora tem uma prévia. — Ele sorriu, o que exigiu esforço. — Da maneira que a senhora fala, conselheira, suspeito que o Conselho já esteja ciente da minha opinião. Seu pressentimento é impressionante. — Não houve um sorriso em resposta; o rosto de Sigourney estava impassível nas sombras da carruagem. — Deixe-me contar o resto. O maior perigo, como eu também disse para o kraljiki, é que, ao olharmos para o oeste, nós ignoramos o leste e a Coalizão. Imagino que Audric não tenha mencionado isso para a senhora.

Sigourney permaneceu na sombra, sua reação foi encoberta. — O senhor não aconselha mandar mais tropas para os Hellins? Aconselha que abandonemos o que conquistamos lá?

Sergei olhou para o dragão, que parecia espiá-lo, cheio de dentes. — Por que eu tenho a impressão de que a senhora já sabe as minhas respostas para essas perguntas, conselheira?

— Ainda assim eu gostaria de ouvi-las. De seus lábios.

— Então: não e sim — disse ele secamente. — Se mandarmos mais tropas, mandaremos mais gardai para morrer do outro lado do Strettosei, quando estou convencido de que precisaremos deles aqui, e talvez antes do que gostaríamos. Quanto aos Hellins: minha experiência diz que outro comandante não se sairá melhor do que seu estimado irmão. Seu predecessor, o comandante ca’Helfier, no fundo é o responsável pela terrível situação por lá; foram suas trapalhadas e mau julgamento que causaram o envolvimento do exército tehuantino no conflito, e isso virou o jogo. — Sergei ficou satisfeito ao vê-la recuar ao ouvir isso e desviar o olhar, como se a vista da Pontica à frente da carruagem de repente fosse bem mais interessante. — Nossas dificuldades são a distância, a comunicação e um vasto exército que luta em seu território natal. — Ele deu um tapinha na janela aberta da carruagem. — E um inimigo que agora está mais forte do que a maioria de nós quer acreditar. Quando tomamos os Hellins, os tehuantinos permaneceram nas próprias terras depois das montanhas, mas as ações de ca’Helfier fizeram os nativos da região convocar seus primos para ajudar. Nós podemos chamar os ocidentais de selvagens e infiéis que idolatram apenas os moitidis e dizer que eles são falsos deuses, mas isso não altera o fato de que os ténis-guerreiros dos tehuantinos, através de seja lá a que divindades eles apelam, são pelo menos tão eficientes quanto os nossos. Talvez até mais.

— Algumas pessoas podem dizer que o senhor mesmo passa perigosamente perto da heresia com esta declaração, regente — disse ca’Ludovici ao fazer o sinal de Cénzi.

— Eu considero que meu dever, como regente, é encarar a verdade, não importa qual seja, e dizê-la. — Isto era uma mentira, é claro, mas soava bem; na opinião de Sergei, seu dever como regente era cuidar para que a Nessântico que fosse passada ao próximo kralji estivesse em uma posição mais forte do que a que originalmente encontraria; não importava como isso o implicava se ele fizesse ou dissesse, que fosse legal ou ilegal. — Essa sempre foi minha função em Nessântico. Eu sirvo à própria Nessântico, não a ninguém dentro dela. É por isso que a kraljica Marguerite me nomeou como comandante da Garde Kralji, e por isso que seu primo, o kraljiki Justi, me nomeou primeiro como comandante da Garde Civile e depois como regente, mesmo que nós discordássemos muitas vezes. — Sua boca tremeu diante das memórias das discussões que teve com o grande tolo Justi. Que os retalhadores de almas o façam em pedaços eternamente pelo que ele fez com os Domínios.

— Eu também sirvo à Nessântico em primeiro lugar — falou Sigourney. — Nisso, nós somos parecidos, regente. Eu só quero o que é melhor para ela e para os Domínios. Fora isso... — Ela deu de ombros nas sombras.

— Então nós concordamos, conselheira — respondeu Sergei. — Nessântico precisa de verdade e de olhos abertos, não de arrogância cega. Certamente o Conselho dos Ca’ reconhece isso, não é?

— A verdade é mais maleável do que o senhor parece pensar, regente. Como diz o ditado? “O vinagre de um ca’ pode ser o vinho de um ce’”. Muito daquilo que é chamado de verdade é apenas opinião, na prática.

— Esse pode ser realmente o caso, conselheira, mas o que incomoda as pessoas é também o que elas dizem quando querem ignorar uma verdade — respondeu Sergei, que foi recompensado por um beicinho de irritação e o brilho de lábios umedecidos no rosto mal iluminado. — Mas nós podemos falar a respeito disso depois, com todo o Conselho presente, se a senhora quiser. Deve haver um novo relatório vindo dos Hellins em breve, e talvez este nos diga o que é verdade e o que é apenas opinião.

Ele mais ouviu do que viu Sigourney fungar, e uma mão branca foi erguida no interior escuro para bater no teto da carruagem. — Falaremos mais a respeito desse assunto, regente — falou a conselheira para Sergei em um tom frio e distante, e se dirigiu ao condutor sentado no banco. — Vamos.

Ele observou a conselheira partir enquanto as rodas com aro de ferro da carruagem faziam barulho sobre os paralelepípedos da Avi. O som era tão frio e hostil quando a atitude de Sigourney. Sergei voltou-se novamente para a Bastida e ergueu os olhos para o crânio do dragão acima dos portões. Sua boca feroz sorria.

— Sim — disse ele para o crânio. — A verdade é que um dia todos nós ficaremos iguais a você. Mas não ainda para mim. Não ainda. Eu não me importo com o que Audric tenha dito ao Conselho. Não ainda.

 

Jan ca’Vörl

JAN ENCONTROU SUA MATARH parada na sacada de seus aposentos no Palácio de Brezno. Ela olhava para baixo, para a agitação na praça principal. O Templo do Archigos agigantava-se no horizonte diretamente em frente a eles, quase a 800 metros de distância, e praticamente cada metro daquela distância estava coberto por gente. A praça estava iluminada por lâmpadas mágicas com luzes amarelas, verdes e douradas que dançavam nos globos dos postes, e as feiras e lojas em volta do enorme espaço aberto estavam apinhadas de clientes. A música dos artistas de rua chegava fraca até os dois e flutuava acima do zumbido de mil conversas.

— É uma cena que merece ser pintada, não é? — perguntou Jan para ela, e o jovem emendou antes que Allesandra pudesse responder — Qual é o problema, matarh? A senhora se isolou desde a festa. É o vatarh?

Ela virou-se ao ouvir isso. O olhar deslizou do rosto do filho para a estrela de chevaritt que ele usava, e Jan achou que o sorriso forçoso da matarh vacilou momentaneamente. — Foram semanas muito corridas — falou Allesandra. Sua mão espanou fios soltos imaginários dos ombros do filho. — Só isso.

— Eu acho que o comportamento do vatarh tem sido péssimo desde que ele chegou aqui. Eu juro que às vezes penso que seria capaz de matar o homem, mas tenho certeza de que a senhora já se sentiu bem mais tentada que eu. — Jan riu para abrandar as palavras, mas Allesandra não o acompanhou. Ela deu meia-volta e olhou novamente para a praça lá embaixo.

— Você é um chevaritt. Algum dia você irá à guerra, e algum dia realmente terá que matar alguém ou ser morto. Será forçado a tomar essa decisão, e ela será irrevogável. Eu sei...

— A senhora sabe? — Jan franziu a testa. — Matarh, quando foi que a senhora...

Ela interrompeu o filho antes que ele pudesse terminar a pergunta meio debochada. — Eu tinha 11 anos, quase 12. Eu matei o feiticeiro ocidental Mahri, ou ajudei Ana a matá-lo.

— Mahri? O homem responsável pela morte da kraljica Marguerite? — Isso é uma piada, ele queria acrescentar, mas foi detido pela expressão da matarh.

— Eu esfaqueei Mahri com a faca que o vatarh me deu, ataquei quando ele tentou matar Ana. Eu nunca contei para ninguém depois, e Ana também não. Ela sempre tomou cuidado para me proteger. — Allesandra olhava para as próprias mãos no parapeito. Jan perguntou-se se ela esperava ver sangue ali. Não tinha certeza do que dizer ou como responder. Ele imaginou a matarh com a faca na mão.

— Isso deve ter sido difícil.

Allesandra balançou a cabeça. — Não. Foi fácil. Esta é a parte estranha. Eu nem pensei a respeito, apenas o ataquei. Foi só depois... — Ela respirou fundo. — Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Que poderia ser melhor para todos os envolvidos se esse fosse o caso?

— Ora, que assunto mórbido.

— Alguém matou Ana porque acreditava que o mundo seria melhor se ela estivesse fora do caminho. Ou talvez os assassinos mataram Ana por que alguém em quem eles acreditavam mandou que fizessem isso, e eles apenas seguiram ordens. Ou talvez apenas porque pensaram que o assassinato poderia mudar as coisas. Às vezes, este é todo o motivo que alguém precisa; a pessoa não pensa em quem possa gostar da vítima ou quais seriam as repercussões. A pessoa mata porque... bem, eu acho que às vezes não se sabe por quê.

— A senhora está me deixando preocupado, matarh.

Ela riu ao ouvir isso, embora Jan pensasse que ainda havia uma tristeza no som. — Não fique preocupado, eu só estou com um humor estranho.

— Todo mundo pensa assim, às vezes. — Jan deu de ombros. — Aposto que todas as crianças desejaram, em algum momento, que o vatarh e a matarh estivessem mortos; especialmente após elas terem feito algo estúpido e terem sido flagradas e castigadas. Ora, teve uma ocasião em que eu roubei a faca do seu... — Ele parou e arregalou os olhos. — Foi a mesma faca? A senhora disse que o vavatarh lhe deu.

Outra risada. — Foi sim. Eu me lembro disso; descobri você usando a faca para cortar umas maçãs na cozinha e arranquei da sua mão, depois bati muito em você, mas você se recusou a chorar, ou se desculpar, então bati com mais força.

— Eu chorei sim. Depois. E tenho que admitir que fiquei tão furioso que pensei em... — Jan deu de ombros novamente. — Bem, a senhora sabe. Mas o pensamento não durou muito tempo... não depois que a senhora levou torta ao meu quarto e prometeu que me daria a faca um dia. — Ele sorriu para a matarh. — Ainda estou esperando.

— Fique aí. — Allesandra saiu do parapeito e passou pelo filho. Jan ouviu a matarh remexendo coisas no quarto dela, depois ela retornou para a noite fria. — Aqui — falou Allesandra com uma faca na mão, guardada em uma bainha de couro gasta, com o punho de osso preto, aço ainda reluzente e minúsculos rubis em volta do pomo. — Esta foi originalmente a faca do hïrzg Karin, e ele deu para seu filho, seu vavatarh Jan, que me deu. Agora é sua.

Ele empurrou a arma de volta para Allesandra. — Matarh, eu não posso... — Mas ela estendeu a faca novamente.

— Não, pegue — insistiu Allesandra, e ele pegou. Jan tirou a faca metade da bainha. O escuro aço firenzciano refletiu seu rosto. — Dado quem somos, Jan, nós dois temos que tomar decisões realmente difíceis, com as quais não estamos totalmente à vontade, mas as tomaremos porque parecem ser as melhores para aqueles que gostamos. Apenas lembre-se que às vezes decisões são finais. E fatais.

Dito isso, Allesandra puxou Jan para si e abaixou a cabeça do filho para beijá-lo no rosto. Quando ela falou, pareceu com a matarh que ele se lembrava. — Agora, não vá se cortar com isso, promete?

Jan sorriu para Allesandra e disse — Prometo.

 

Allesandra ca’Vörl

AUDRIC NÃO SERÁ KRALJIKI por muito tempo. É o que a maioria das pessoas acredita. Em breve chegará a hora em que um novo kralji será nomeado. Eu me lembro de você, Allesandra. Lembro-me de sua inteligência e força, e me lembro de que a archigos Ana amava você como se fosse a própria filha, e rumores chegaram até mim de que você não está contente que os Domínios permaneçam divididos.

Pelas minhas conversas com Fynn, não tenho esperanças de que ele queira fazer parte dos Domínios reunificados a não ser que ele esteja no Trono do Sol. Ele tem a força do seu vatarh, mas não a inteligência. Infelizmente, todos os bons atributos do finado hïrzg Jan passaram para você.

Quando o Trono do Sol estiver vazio, eu apoiarei sua reivindicação, a’hïrzg. E existem outros aqui que fariam a mesma coisa. Eu apoiaria você abertamente, se me der um sinal de que concorda comigo...


As palavras estavam gravadas em sua mente, tão nítidas quanto as letras escritas por tinta de fogo no pergaminho. As chamas destruíram o papel quase tão rápido quanto ela leu a mensagem e deixaram para trás cinzas e uma fumaça desagradável. A promessa de Sergei. Allesandra pensava nela quase todo dia desde a chegada da mensagem e agora sabia que o archigos recebera uma missiva similar. Ela era capaz de imaginar o que o regente prometera para Semini.

Ca’Rudka queria os Domínios unificados e a Fé unida. Bem, ela também. Criar Domínios ainda mais fortes do que os da kraljica Marguerite foi o sonho de seu vatarh e — porque era o sonho do hïrzg Jan e Allesandra o amava tão desesperadamente quando era criança — de Allesandra também. Ele traiu o sonho e dividiu o império, mas o sonho permanecia vivo nela.

Era o que Allesandra queria mais do que qualquer outra coisa. Mais do que a sua própria segurança.

... se houvesse um sinal...

O archigos Semini encarou a missiva como a óbvia insinuação que era e agiu afobadamente, antes que as peças estivessem nos lugares corretos. Agora, em parte graças à impaciência e falta de jeito do archigos, elas estavam no lugar.

Um sinal. Allesandra daria aquele sinal para ca’Rudka, embora isso corroesse sua consciência. Embora ela pudesse vir a se odiar depois.

Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Era a pergunta que Allesandra fez para Jan, mas era a mesma que ela se fazia sem parar.


— Infelizmente, eu menti para você, Elzbet — falou Allesandra para a mulher do outro lado da mesa manchada e suja. — Não estou interessada em você como criada. — A mulher deu de ombros e começou a se levantar. Allesandra gesticulou para que voltasse a se sentar. — Fiquei sabendo — disse a a’hïrzg — que você consegue me colocar em contato com um certo homem. — Allesandra pousou um seixo na mesa: uma pedra lisa mais ou menos do tamanho de uma sola, de cor muito clara.

Mesmo ao dizer as palavras, Allesandra duvidava de sua veracidade. A jovem sentada diante da a’hïrzg tinha uma aparência comum. Parecia estar na terceira década, embora fosse difícil dizer; uma vida dura fazia com que ela parecesse mais velha do que a idade real. O cabelo evidentemente não sabia o que era uma escova: comprido e com toques de vermelho intenso no tom castanho, o cabelo tinha mechas soltas que apontavam para todos os lados e estava muito repuxado em uma trança malcuidada, feita em um estilo que Allesandra não via desde que era nova. A franja estava desgrenhada e formava uma floresta que quase escondia os olhos. Allesandra nem conseguia ver a cor dos olhos de tão escondidos que estavam, embora parecessem claros.

A mulher apenas deu de ombros ao olhar para o seixo e falou — Pode ser. — As palavras tinham um sotaque tão leve que Allesandra não conseguiu identificar, e a voz era rouca. — Aquele de quem a senhora fala é difícil de contatar. Mesmo para mim.

Se o sujeito conhece você tão bem assim, menina, eu não fico impressionada com o gosto dele... — Qual é o seu nome completo, Elzbet?

A mulher encarou Allesandra sem piscar os olhos através do emaranhado de mechas castanhas. — Peço desculpas, a’hïrzg, mas a senhora não vai precisar do meu nome. Afinal, a senhora não está me contratando, pelo menos não para outra coisa além de encontrar este homem.

Allesandra levou dias para chegar até esse ponto e não tinha certeza de nada. Houve investigações discretas sobre pessoas que teriam um motivo para matar as três vítimas mais recentes da Pedra Branca, investigações feitas por agentes particulares que, por sua vez, não sabiam quem representavam, apenas que era alguém rico e influente. Nomes e descrições foram dados e, lentamente, aos poucos, tudo levou a esta jovem. Allesandra armou um encontro com ela, em uma taverna no limite de um dos distritos mais pobres de Brezno, sob o pretexto de entrevistá-la para um cargo no corpo de funcionários do palácio. Através das persianas fechadas da taverna, a a’hïrzg enxergou os uniformes dos gardai que a acompanhavam, à espera de Allesandra ao lado da carruagem. — Como eu posso saber se você pode fazer o que diz ser capaz?

— A senhora não tem como saber — respondeu a mulher. Foi tudo o que ela disse. A jovem esperou e manteve os olhos ocultos em Allesandra, sem piscar, como se desafiasse a a’hïrzg a desviar o olhar. O atrevimento e a falta de respeito quase fizeram Allesandra se levantar da cadeira e sair da taverna, mas ela precisava deste contato e foi preciso tempo demais para chegar até aqui.

— Então como procedemos? — perguntou Allesandra.

— Dê-me três dias para ver se eu consigo contatar a pessoa que a senhora procura. — A mulher deu um peteleco na pedra que Allesandra colocou sobre a mesa. — Se eu achar que seus gardai ou agentes estão me vigiando, ou se ele, em especial, os vir, nada vai acontecer. Na noite do terceiro dia, que seria o draiordi, a senhora fará isso... — A jovem debruçou-se sobre a mesa, depois sussurrou instruções no ouvido de Allesandra e voltou a se recostar. — A senhora entendeu, a’hïrzg? Pode fazer isso?

— É muito dinheiro.

— Ninguém barganha com ele — disse a mulher. — Se o que a senhora quer executar fosse uma tarefa fácil, a senhora mesmo faria. E a a’hïrzg pode arcar com o preço que ele cobra.

— Se eu fizer isso, como saberei que ele vai cumprir com sua parte do acordo?

Nenhuma resposta. A mulher simplesmente ficou sentada com as mãos sobre a mesa como se estivesse pronta para empurrar a cadeira.

Allesandra finalmente acenou com a cabeça e disse — Encontre-o, Elzbet. — Ela tirou uma meia sola do bolso da capa e colocou a moeda na mesa entre as duas, perto da pedra. — Pela inconveniência.

A mulher abaixou o olhar para a moeda e contorceu os lábios. A cadeira foi arrastada pelas tábuas do piso. — Draiordi, à noite — falou ela para Allesandra. — Esteja lá como eu falei. Lembre-se do que eu disse sobre eu ser seguida.

Dito isso, Elzbet deu meia-volta e saiu rapidamente da taverna, com os passos largos de uma pessoa que estava acostumada a andar por longas distâncias. A luz irrompeu na penumbra quando ela empurrou a porta com uma força surpreendente. Através das persianas, Allesandra viu os gardai subitamente alertas no momento em que a mulher saiu da taverna.

A moeda continuou na mesa. Allesandra pegou a pedra, mas deixou a moeda, se dirigiu para a porta e fez um sinal negativo com a cabeça para os gardai, um dos quais já abria a porta, preocupado, enquanto os outros observavam Elzbet. — Eu estou bem — disse a a’hïrzg para eles. A mulher já estava no meio da rua e andava rápido sem olhar para trás. O garda que abriu a porta inclinou a cabeça na direção de Elzbet e ergueu as sobrancelhas, intrigado. — Devo...?

— Não. Não vou contratá-la; ela era uma péssima escolha. Deixe-a ir...

 

Karl ca’Vliomani

KARL OBSERVOU O HOMEM com cuidado, ficando perto dele na padaria, onde poderia escutá-lo.

O sujeito parecia diferente dos demais que ele observou. Nas últimas semanas, Karl andou à espreita pelo Velho Distrito, vestido em roupas sujas e esfarrapadas, e observou a multidão que passava por ele. Karl assombrou locais públicos, escondeu-se nas sombras de praças escondidas no labirinto de ruas minúsculas enquanto evitava os utilinos aqui e ali que faziam suas rondas e que podiam reconhecê-lo. Ele olhou os rostos à procura de peles com tom de cobre, por maçãs do rosto pronunciadas e por rostos ligeiramente achatados, como ele se lembrava das próprias incursões às Terras Ocidentais há décadas. Karl encontrou meia dúzia de pessoas, tanto homens quanto mulheres, que seguiu por um tempo ou ouviu às escondidas, que tocou com o Scáth Cumhacht para ver se elas responderiam.

Não houve nada. Nada.

Mas agora...

— Estes croissants passaram o dia inteiro aqui e já estão meio velhos — falou o homem. Karl escutou sua voz perfeitamente de onde estava, na porta aberta da padaria, enquanto olhava para o outro lado da rua como se esperasse por alguém. Ele ouviu a bengala do sujeito bater no piso de madeira. — Eles não valem mais do que uma d’folia a dúzia. — As palavras não significavam nada, mas aquele sotaque... Karl lembrava-se bem: da época de sua juventude, do sotaque de Mahri, que era tão estranho e inconfundível em Nessântico quanto o seu próprio.

Karl olhou o interior da loja a tempo de ver a cara feia do padeiro. — Eles continuam tão fresquinhos e macios quanto estavam hoje de manhã, vajiki. E valem uma se’folia, pelo menos. Ora, eu posso vendê-los para qualquer um por este valor; a farinha que usei foi abençoada pelos u’ténis do Velho Templo.

O homem deu de ombros e abanou a mão. — Eu não vejo ninguém mais aqui, e você? Talvez queira esperar o dia inteiro até que os croissants fiquem tão duros quanto paralelepípedos, enquanto eu posso dar duas d’folias por eles agora. Duas d’folias contra pão jogado fora; parece mais do que justo para mim.

Karl ouviu enquanto os dois negociavam e chegaram ao acordo de quatro d’folias pelos croissants. O padeiro embrulhou os pãezinhos em papel e resmungou o tempo todo sobre o preço da farinha, o tempo gasto assando e o aumento geral dos custos de tudo na cidade recentemente, até que a presa de Karl saiu da padaria. O homem passou perto dele — o cheiro dos croissants fez o próprio estômago de Karl roncar — e seguiu pela alameda estreita na direção leste. Karl deixou o sujeito dar vários passos de vantagem antes de segui-lo. O homem virou à esquerda em um beco transversal; na hora em que Karl chegou ao cruzamento, o sujeito já estava no meio do beco. No fim da tarde, as casas lançavam sombras púrpuras na viela e pareciam se inclinar na direção umas das outras para conversar em sussurros sobre os paralelepípedos. Não havia mais ninguém visível no beco. Os feitiços que Karl havia conjurado naquela manhã ardiam dentro dele, à espera do lançamento. Ele começou a chamar o homem, fazer com que se virasse...

... mas uma criança, um menino de 10 ou 11 anos talvez, surgiu de um cruzamento um pouco mais adiante no beco. — Talis! Aí está você! A matarh estava se perguntando se você viria para o jantar.

— Croissants! — disse o sujeito para o garoto ao erguer os pãezinhos embrulhados. — Eu praticamente os roubei do velho Carvel. Só quatro d’folias... — O homem, o tal Talis, passou o braço pelo ombro do menino. — Vamos então, não podemos deixar Serafina esperando.

Juntos, os dois começaram a descer a rua. Karl hesitou. Você não pode fazer nada com o menino ali ao lado dele. Não é o que Ana iria querer de você.

Os feitiços ainda chiavam e borbulhavam dentro da mente, ansiosos para serem lançados. Ele escolheu um, o mais brando. Karl ergueu o punho e sussurrou uma palavra em paeti, a língua de sua terra, e sentiu a energia ser disparada e lançada para longe. O feitiço fora projetado para não fazer nada; ele apenas espalhava o poder do Scáth Cumhacht por uma área — o suficiente para que alguém acostumado a usar aquele poder o sentisse e reagisse.

A reação foi mais rápida do que Karl esperava. Talis deu meia-volta assim que ele lançou o feitiço. O menino virou-se um momento depois; provavelmente, pensou Karl, porque o homem parou. Não houve tempo para ele se esconder. Talis, com um olhar que jamais se desviou de Karl, deu o pacote de croissants para o menino e um empurrãozinho para que fosse embora. — Nico, vá para casa. Eu sigo você em alguns minutos.

— Mas, Talis...

— Vá — respondeu Talis, em tom mais ríspido desta vez. — Ande ou seu traseiro vai se arrepender assim que eu chegar lá. Vá!

Diante disso, o garoto engoliu em seco e correu. Ele virou a esquina e desapareceu. O homem olhou na penumbra, depois recuou a cabeça e acenou com ela. — Eu devo lhe agradecer, embaixador, por poupar o menino — falou Talis. Uma mão estava enfiada no bolso lateral da bashta, a outra permanecia na bengala; se ele estava prestes a lançar um feitiço, não demonstrava sinais. Ainda assim, Karl ficou tenso, com a mão erguida, e os feitiços restantes que preparou tremendo dentro dele, esperava que tivesse acertado na preparação.

— Você me conhece?

Ele concordou com a cabeça. — O seu rosto é muito conhecido nesta cidade, embaixador. Algumas roupas pobres e sujeira no rosto não o disfarçam bem. Eu realmente espero que o senhor não pense que poderia passar despercebido no Velho Distrito.

— Você sentiu meu feitiço. Isso significa que você é um dos ténis ocidentais, como Mahri.

— Talvez eu simplesmente tenha me virado porque ouvi o senhor falar uma palavra, embaixador. Feitiço? Eu já vi os ténis-luminosos acenderem as lâmpadas da cidade; já vi os ténis girarem as rodas de suas carruagens e limparem a sujeira da água. Já vi algumas pessoas dessa cidade com seus pequenos e triviais feitiços de luz ensinados pelos numetodos, o que eu tenho certeza que a fé concénziana considera preocupante. Mas não vi feitiço algum há instantes.

— Você tem o sotaque.

— Então o senhor tem um bom ouvido, embaixador; a maioria pensa que sou de Namarro — respondeu o homem. — Eu sou um ocidental, sim; como Mahri, não. Houve pouquíssimos como ele. — Talis parecia calmo e confiante, e isso, juntamente com a admissão fácil, deixou Karl preocupado. Ele começou a se perguntar se havia cometido um erro grave. O homem está muito confiante, muito seguro de si. Não está com medo algum de você. Você deveria apenas ter observado, deveria apenas ter seguido o sujeito. — Então por que o embaixador dos numetodos anda por aí, pelo Velho Distrito, enquanto lança feitiços invisíveis para encontrar ocidentais, se me permite perguntar?

— Nós estamos em guerra com os ocidentais.

— “Nós?”. Então os numetodos são tão aceitos assim pelos Domínios? Eu também sei ouvir sotaques e posso lhe dizer que existem aqueles da Ilha de Paeti cujas afinidades estão mais alinhadas com os ocidentais do que com o povo de Nessântico. Afinal, Paeti foi conquistada pelos Domínios da mesma forma que os Hellins, e seu povo lutou contra aquela invasão da mesma forma que o nosso faz agora. Talvez nós devêssemos ser aliados, embaixador, não adversários.

Karl rangeu os dentes ao fechar a cara. — Isso depende, ocidental, do que você está fazendo aqui e do que fez.

— Eu não a matei, se essa é a sua acusação.

Karl quase lançou um feitiço diante disso. Eu não a matei... Então o sujeito sabia exatamente do que Karl estava atrás, e a resposta era uma mentira. Só podia ser uma mentira. O homem diria qualquer coisa para salvar a própria vida. Um ocidental e um téni... A mão erguida de Karl tremeu; a palavra de ativação em paeti já estava nos lábios. Ele era capaz de sentir seu gosto, tão doce quanto a vingança. — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Diante disto, a fúria estourou dentro de Karl, que não conseguiu mais contê-la. Ele deu um soco no ar e falou a palavra — Saighneán! —, e com o gesto e a palavra, um raio branco-azulado estalou e pulou de Karl na direção do ocidental insolente.

Mas o homem moveu-se na mesma hora e levantou a mão com a bengala. Um brilho irrompeu de maneira impossível do objeto, uma claridade que cegou Karl no momento em que filamentos de um brilho incômodo deslizaram pelo ar como se fossem dedos que arranhavam um enorme globo invisível. Os dedos etéreos agarraram seu raio e o apertaram, um pequeno sol pareceu pairar no ar entre os dois enquanto um trovão retumbava. Ele ouviu risadas. Assustado agora, Karl falou outra palavra: um feitiço de proteção contra o ataque que tinha certeza de que viria a seguir.

Mas a proteção se dissipou sem uso, e através da agitada cortina de imagens persistentes, ele viu que o beco minúsculo estava vazio. Talis sumiu. Karl soltou um grito de frustração (enquanto cabeças começavam a espiar com curiosidade das janelas fechadas, conforme chamados e berros de alarme irrompiam das casas mais próximas a ele, e filamentos de fumaça saíam das fachadas queimadas de ambos os lados da rua) e correu para o cruzamento por onde o menino fora embora.

Nem o menino, nem o ocidental estavam visíveis. Karl socou a parede mais próxima e praguejou.

 

Nico Morel

NICO DEU APENAS DOIS PASSOS ao virar a esquina e parou. Ele ouviu Talis discutir com o estranho e voltou de mansinho até eles, apoiando as costas contra a casa da esquina e prestando atenção.

— Eu não a matei, se esta é a sua acusação — falou Talis para o homem, e Nico perguntou-se sobre quem ele falava.

Evidentemente o sujeito estava igualmente perplexo, porque respondeu — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Guerra? Nico não teve tempo para ficar curioso porque o mundo explodiu. Ele nunca teve muita certeza do que aconteceu nos próximos momentos ou como poderia um dia descrever para alguém. Embora fosse dia, houve um clarão de luz que pareceu tão intenso nas sombras da viela quanto uma trovoada pulsando na escuridão da noite. O menino teve certeza de que Talis estava morto, só que ouviu sua risada no momento em que se afastou da casa a fim de correr para ajudar seu vatarh com os croissants ainda na mão, esquecidos.

Então Nico foi agarrado pelo ombro por Talis. — Por todos os moitidis, Nico... — O vatarh correu e puxou o menino com ele pelo beco, entrou em uma viela estreita entre duas casas e saiu em um beco entre os fundos dos prédios. Talis deu voltas até Nico ficar sem fôlego e confuso e então finalmente parou, ofegante.

Ele colocou as mãos nos joelhos e olhou feio para Nico, com a respiração acelerada. — Droga, Nico, eu mandei que fosse embora. Quando chegarmos em casa...

Nico segurou o choro diante do tom severo de Talis e disse — Eu queria escutar. Pensei... pensei que haveria magia.

Talis inclinou a cabeça ligeiramente, embora os olhos muito escuros ainda brilhassem com raiva. — Por que você pensou isso?

— Porque eu senti a magia em toda parte, como na hora em que sinto frio de repente e fico arrepiado. — Nico esfregou o antebraço ao mostrá-lo para Talis.

— Você sentiu a magia? — indagou o vatarh, e agora a voz não parecia tão chateada. Nico concordou com a cabeça enfaticamente. Talis ficou de pé e olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se o homem havia seguido os dois.

— Ele era mesmo o embaixador ca’Vliomani, o numetodo? — perguntou Nico. — A matarh diz que o viu uma vez, perto do Templo do Archigos na margem sul. Ela disse que os numetodos não deviam ser permitidos aqui. Disse que o archigos devia ser mais duro com eles.

Talis torceu o nariz e respondeu — Talvez sua matarh esteja mais certa do que ela pensa. — Ele suspirou e de repente deu um abraço em Nico. — Venha, temos que correr para casa agora, enquanto ainda há tempo.


Nico jantou sozinho no quarto, enquanto Talis e sua matarh conversavam na sala. Ele beliscou os croissants e tomou a sopa de batata-baroa que a matarh tinha feito enquanto ouvia as vozes abafadas. Na maior parte do tempo, o menino não conseguiu distinguir as palavras, mas quando os dois falavam alto, ele era capaz de entendê-los. — ... eu disse para você que eu esperava por isso. Os sinais... só que não tão cedo...

— ... quer que a gente vá embora agora? Hoje à noite? Você enlouqueceu, Talis?

— ... se vocês ficarem, correrão perigo... vá para a sua irmã...

— ... então foi você? Você mentiu para mim...

Nico ergueu a cabeça ao ouvir isso e imaginou se sua matarh falava da mulher que o embaixador acusou Talis de ter matado.

Houve mais murmúrios, depois a matarh bufou de raiva ao escancarar a porta e olhou feio para Nico sem parecer ter visto o menino. Ela começou a reunir panelas e utensílios e enfiá-los ruidosamente em sacolas de pano que usava quando ia ao mercado, enquanto murmurava consigo mesma. Talis, na passagem entre os aposentos, observou Serafina por um momento e gesticulou para Nico, que o seguiu até o quarto e viu o homem fechar a porta assim que entrou.

— A matarh está realmente furiosa — disse Nico ao se sentar na cama.

Talis concordou com tristeza. — Está mesmo, e por um bom motivo. Nico, vocês dois têm que sair da cidade. Hoje à noite. Vocês ficarão com sua tantzia em Ville Paisli, que não é longe de Nessântico.

— Você vai com a gente?

Talis balançou a cabeça. — Não. Nico, depois do que aconteceu, a Garde Kralji estará à minha procura; o embaixador é amigo do regente, e ele mandará os gardai atrás de mim. O embaixador provavelmente sabe meu nome e talvez o seu, sabe como nós somos e onde moramos. Temos algumas viradas da ampulheta antes que ele consiga alertar alguém, mas tenho certeza de que o Velho Distrito não será seguro para vocês dois em breve. Então você terá que ajudar sua matarh a pegar o que for possível e ir embora.

— Mas a Garde Kralji... — falou Nico agitado. — Você fez algo de errado, Talis?

— De errado? Não. Eu explicarei tudo para você quando eu puder, Nico, mas agora você terá que confiar em mim. Você confia em mim, filho?

Nico concordou com a cabeça, incerto. Ele não tinha certeza de nada no momento.

— Ótimo — disse Talis. — Eu vou sair agora e arrumar uma carroça para levar vocês dois para fora da cidade. Lembra-se do homem com quem falei no mercado? Uly? Ele pode me ajudar a fazer estes preparativos. Quando eu voltar, você e sua matarh precisam estar prontos para ir embora, então cuide para pegar tudo que é seu que você queira e ajude sua matarh a juntar as coisas dela.

Nico sentiu um gosto desagradável na boca, e a comida ardeu no estômago. Da cozinha, ele ouviu a matarh ainda empacotando coisas. — Mas, se você ficar, não vão te encontrar?

— Eu tenho maneiras de me esconder se estiver sozinho, Nico, e tenho coisas que preciso fazer que só serei capaz aqui. E também... — Talis fez uma pausa e despenteou a cabeça do menino. Nico fez uma careta e passou os dedos pelo cabelo para arrumá-lo novamente. — O que aconteceu mais cedo também tem que ser segredo, Nico, como todo o resto. Se você contar às pessoas o que viu, bem, irá colocar sua matarh em risco, e você não quer isso, quer?

— Foi magia, não foi?

Talis concordou com a cabeça. — Sim, foi. E, Nico, eu acho que você... — Ele parou e sacudiu a cabeça.

— O que, Talis?

— Nada, Nico. Nada. — Talis enfiou o braço debaixo da cama enquanto falava. Ele puxou a bolsa de couro que continha a estranha tigela de metal e colocou suas roupas e outros pertences dentro. — Agora, por que você não começa a juntar suas coisas? Coloque todas em um só lugar, e você e sua matarh podem decidir o que levar e o que deixar aqui. Vamos, agora.

Talis já olhava para o outro lado enquanto abria o baú ao pé da cama para tirar uma camisola de linho. Nico observou o homem. — Você é um téni?

Talis endireitou-se, já tinha posto metade da camisola na bolsa. — Não — disse ele. A maneira como Talis falou, sem olhar diretamente para Nico e estendendo a sílaba, revelou para o menino que era mentira ou o tipo de resposta evasiva que Nico às vezes usava quando a matarh perguntava se ele fizera algo que não deveria ter feito. — Agora vamos, menino. Rápido!

Nico sentiu um arrepio. Ele saiu e perguntou-se se algum dia veria esta casa novamente.

 

Enéas co’Kinnear

ENÉAS ESTAVA NA POPA do Nuvem Tempestuosa e olhava para as nuvens revoltas que pareciam perseguir o navio. O horizonte tinha um tom sinistro de preto sob as nuvens carregadas, a noite se aproximava pontuada por clarões intermitentes de raios. Ele viu a chuva torrencial difusa caindo sobre o oceano sob as nuvens e ouviu o resmungo do trovão ao longe. O Strettosei assumiu um tom fosco de verde acinzentado manchado pelas cristas brancas formadas pelo vento; as velas do navio de dois mastros inflavam e estalavam ao serem preenchidas pelas rajadas de vento forte e impulsionavam o navio pelas ondas, que ficavam maiores. A proa se ergueu e varou os morros agitados de água; o borrifo frenético molhava o cabelo dos marinheiros e deixou ensopada a bashta militar que Enéas usava. Ele sentiu o gosto de água salgada na boca. O ar parecia ter esfriado drasticamente nos últimos instantes quando os primeiros motores da tempestade aproximaram-se do navio. O mergulho e o balanço do convés sob os pés era tão preocupante que Enéas viu-se agarrado à amurada.

Ele sentia a tempestade. A energia parecia ressoar dentro de Enéas, e as pontas dos dedos formigavam a cada raio que caía, como se o tocassem ao longe.

A tempestade nos segue do oeste, como as hordas dos ocidentais, e estala com o poder dos nahualli. Persegue-nos enquanto fugimos e vem atrás de nós em nossos próprios lares... Enéas sentiu um arrepio ao ver a aproximação da tempestade e ao imaginar que podia ver as formas de guerreiros ocidentais nas nuvens ou que elas eram a fumaça das piras de sacrifício. Ele se perguntou o que teria acontecido nos Hellins desde sua partida. Imaginou e ficou preocupado com o augúrio da tempestade.

— É melhor o senhor descer para seu cabine, o’offizier. Eu farei o que puder, mas Cénzi sabe que não há como acalmar o mar com essa tempestade aí. — A téni dos ventos designada para o navio estava ao lado Enéas, ela tinha subido sem ser ouvida por causa do barulho das velas, do lamento estridente do vento através das cordas e dos chamados urgentes dos offiziers do navio para os marinheiros no convés. A téni encarava a tempestade da mesma forma que Enéas encararia uma força inimiga avançando contra ele; ela avaliava e ponderava que estratégias funcionaram melhor contra o temporal. A tarefa dos ténis dos ventos era inflar as velas quando os ventos naturais do Strettosei não cooperassem. Eles também lutavam para acalmar as tempestades que agitavam as águas profundas entre os Domínios e os Hellins, mas esta era uma tarefa mais difícil, Enéas sabia: os moitidis do céu eram poderosos e desdenhosos do Ilmodo e das tentativas dos ténis dos ventos de acalmar sua fúria.

— É das ruins? — perguntou Enéas.

O convés se elevou quando o navio passou pela próxima onda, depois caiu abruptamente quando o Nuvem Tempestuosa desceu correndo um vale de onda. Enéas passou um braço pela amurada quando a água fluiu pelo convés; a téni dos ventos só trocou o pé de apoio com facilidade e naturalidade. — Já vi piores — respondeu ela, mas aos ouvidos de Enéas isso soou mais como bravata do que confiança. — Mas nunca se sabe na verdade o que há por trás das nuvens carregadas até que se chegue lá. Deixe-me fazer um teste. — Ela ergueu as mãos e fez o gestual de um feitiço, entoou um cântico na língua do Ilmodo com os olhos fechados ao enfrentar a tempestade.

A téni abaixou as mãos, abriu os olhos e encarou Enéas. — O’offizier, o senhor também é um téni?

Ele balançou a cabeça, intrigado. — Não, eu tive um pouco de treinamento, mas...

— Ahh... — Ela fez uma pausa e franziu os olhos. — Talvez seja isso.

— O quê?

— Há um instante, quando eu me abri para a tempestade, pensei ter sentido... — Ela balançou a cabeça, e gotículas voaram do cabelo escurecido pela água. Os primeiros pingos de chuva fria caíram no convés como pedras. — Não importa. Neste momento, eu tenho que ver o que posso fazer com essa tempestade. Por favor, é melhor o senhor descer, o’offizier...

O navio balançou de novo e, com ele, lá se foi o estômago de Enéas. Um raio estalou perto, e o o’offizier quase pôde sentir a queda do relâmpago na própria pele quando os pelos nos braços se eriçaram. Ele fez o sinal de Cénzi para a téni dos ventos. — Que Cénzi esteja com você para que acalme a tempestade — disse Enéas para a mulher, que devolveu o gesto.

— Eu precisarei Dele — falou a téni dos ventos, que encarou a tempestade novamente. Agora as mãos moviam-se em um novo gestual, e o cântico era mais longo e complexo. Enéas pensou ser capaz de sentir o poder se acumular em volta da mulher; ele recuou pelo convés inclinado e escorregadio e segurou-se onde era possível até quase cair na escada estreita que levava para os apertados compartimentos dos passageiros. Lá, o o’offizier deitou-se na maca que balançava e ouviu a tempestade cair sobre eles enquanto a téni dos ventos tentava afastar a pior parte da ventania furiosa da embarcação frágil que era o navio. Enéas também rezou, com as mãos nodosas entrelaçadas à testa, e pediu a Cénzi pela segurança do navio e pelo retorno seguro a Nessântico.

Você estará seguro... Ele pensou ter ouvido as palavras, mas contra a tempestade e a vastidão do Strettosei, elas eram pequenas e insignificantes. As palavras podiam ter sido o sussurro de um mosquito.

A tempestade foi enviada para levá-lo mais rápido ao seu lar... O pensamento surgiu de repente, naquela voz baixa que ele ouvia algumas vezes desde a fuga dos tehuantinos. A Voz de Cénzi. Enéas riu com isso, e de repente não temeu a tempestade, embora o navio balançasse e o vento berrasse de maneira estridente. O medo foi embora, e o o’offizier sentiu uma certeza de que eles estariam seguros.

Enéas agradeceu a Cénzi por lhe dar esta paz.

 

Allesandra ca’Vörl

SERÁ QUE EU REALMENTE QUERO fazer isto? Allesandra sentiu um arrepio diante desse pensamento. Era, talvez, tarde demais para mudar de ideia.

Sozinha, na escuridão de um beco estreito em Brezno, em um draiordi à noite, ela esperava onde tinha sido mandado. Um homem aproximou-se, suas botas com tachas nas solas estalavam alto nos paralelepípedos, e Allesandra empertigou-se, subitamente alerta. Com todos os sentidos sob pressão, ela apertou a mão próxima à faca escondida debaixo da manga da tashta, embora soubesse que, se a Pedra Branca fosse como os rumores diziam, arma alguma a protegeria se o assassino decidisse matá-la. O homem chegou perto, com os olhos voltados para as sombras sob o capuz da tashta de Allesandra, e a avaliou.

— Ah — falou o sujeito. — Acho que você é atraente o suficiente. Que tal um programa comigo, mocinha? — perguntou ele ao se aproximar, enquanto deixava um rastro de cheiro de cerveja.

Ele acha que eu sou uma puta. Este não é ele. Mas, para ter certeza, ela abriu a mão e mostrou o seixo liso e branco acinzentado. O homem não reagiu. — Eu tenho um se’siqil que pode ser seu se você for boazinha comigo — falou o sujeito, e Allesandra fechou os dedos em volta da pedra.

— Vá embora — disse ela — ou eu chamo o utilino.

O homem fez uma cara feia, soluçou, depois passou por ela. Ele cuspiu no chão perto dos pés de Allesandra.

— Você acha que seria fácil assim? — Ao som da voz, Allesandra começou a dar meia-volta, mas uma mão enluvada pegou seu ombro e deteve a a’hïrzg. — Não — falou a voz. — Continue aí e olhe para o outro lado da rua. Eu sou a Pedra Branca. — A voz era rouca, embora com um tom mais agudo do que Allesandra tinha imaginado. Em sua mente, ela imaginava uma voz grossa e sinistra, e não essa, genérica.

— Como eu sei que é você? — perguntou ela.

— Você não tem como saber. Não agora. Você não saberá até ver a pedra no olho esquerdo do homem que quer morto. É um homem, não é? — Ela ouviu uma risadinha baixa. — Para uma mulher, é sempre um homem... ou por causa de um.

— Eu quero ver você — disse Allesandra. — Quero saber com quem falo, quem eu contrato.

— As únicas pessoas que veem a Pedra Branca são aquelas que eu mato. Vire-se e você será uma delas. Eu sei quem você é, e isso basta. Fui bem claro, a’hïrzg ca’Vörl? — Involuntariamente, Allesandra sentiu um arrepio diante da ameaça, e a voz riu novamente. — Ótimo. Eu não gosto de serviço desnecessário e não remunerado. Agora... você trouxe meu pagamento, conforme Elzbet lhe disse?

Ela concordou com a cabeça.

— Ótimo. Você vai pôr a bolsa aos seus pés e colocará a pedra que trouxe em cima dela. É uma pedra clara, tão branca quanto conseguiu achar? Você a reconheceria outra vez?

Allesandra concordou com a cabeça novamente. A a’hïrzg resistiu à tentação de olhar para trás e soltou do cinto da tashta a bolsinha pesada com solas de ouro, abaixou-se e colocou a bolsa nos paralelepípedos da rua, ao lado dos pés. Ela colocou o seixo em cima do couro macio e levantou-se.

— Em quanto tempo? — perguntou Allesandra. — Em quanto tempo você vai fazer?

— No momento que me convier e em um local à minha escolha — respondeu a Pedra Branca. — Mas dentro de uma lua, não mais do que isso. Quem você quer que eu mate? Qual é o nome dele?

— Você pode não querer o dinheiro quando eu lhe disser.

A Pedra Branca deu uma risada debochada. — Você não precisaria de mim se aquele que quer que morra não fosse alguém bem protegido, do alto escalão. Talvez, dada a sua história, seja alguém de Nessântico?

— Não.

— Não? — Havia, pensou Allesandra, decepção na voz. — Então quem, a’hïrzg? Quem você quer que morra tanto assim a ponto de me encontrar?

Ela hesitou, sem querer dizer em voz alta. Allesandra parou de prender o fôlego e suspirou. — Meu irmão. O hïrzg Fynn.

Não houve resposta. Allesandra ouviu um barulho ao longe na rua, à direita, e virou a cabeça involuntariamente para aquela direção. Não havia nada lá; sob o luar, a rua estava vazia a não ser por um utilino que acabara de virar a esquina no outro quarteirão, assobiando e balançando a lanterna. Ele acenou para Allesandra, que devolveu o gesto. — Você me ouviu? — sussurrou ela para a Pedra Branca.

Não houve resposta. Allesandra abaixou o olhar: a bolsa e a pedra sumiram. Ela virou-se. Havia uma porta fechada atrás dela, que levava ao interior de um dos prédios.

Allesandra decidiu que não seria bom para ela abrir aquela porta.

 

A Pedra Branca

— MEU IRMÃO. O hïrzg Fynn.

A Pedra Branca achava que não se surpreenderia mais a esta altura, mas isso...

Ela estava em Firenzcia há mais ou menos três anos agora, o período mais longo que passou em um lugar há algum tempo, mas o trabalho era bom lá. A Pedra Branca sabia um pouco da história de Allesandra e Fynn ca’Vörl; tinha ouvido os rumores, mas nenhum deles falava de um ressentimento tão grande na a’hïrzg. E ela mesma testemunhara Allesandra salvar o irmão de um ataque.

A Pedra Branca viu-se confusa. Ela não gostava de incertezas.

Mas... isso não lhe dizia respeito. As solas de ouro na bolsinha eram bem reais, ela tinha ouvido Allesandra claramente, e o seixo branco da mulher estava na bolsinha ao lado da pedra do olho direito, o seixo que continha as almas de todos aqueles que a Pedra Branca matou.

Os dedos apalparam o seixo branco sobre o couro fino e macio da bolsinha. O toque reconfortou a Pedra Branca, e ela pensou que podia ouvir o chamado fraco de suas vítimas.

— Eu quase matei você primeiro... Você era tão desajeitada naquela época...

— Quantos mais? Nós ficamos mais fortes cada vez que você adiciona outro...

— Em breve você nos ouvirá sempre...

Ela tirou a mão da pedra e as vozes pararam. Nem sempre elas faziam isso. Às vezes, em especial recentemente, ela ouvia mesmo quando não tocava na pedra.

Matar um hïrzg... Seria um desafio. Seria um teste. Ela teria que planejar com cautela; teria que observá-lo e conhecê-lo. Ela teria que se tornar o hïrzg.

Os dedos retornaram à pedra. — Você matou gente sem status, você matou ce’ e ci’, e eles foram fáceis demais. Você matou co’ e ca’ e sabe que eles são bem mais difíceis porque dinheiro traz isolamento e poder atrai proteção. Mas nunca isso. Nunca um governante.

— Você está com medo...

— ... Você duvida de si mesma...

— Não! — disse a Pedra Branca com raiva. — Eu sou capaz de fazer isso. Eu farei. Vocês verão. Verão quando o hïrzg estiver aí com vocês. Verão.

— Eles reconhecerão você. A a’hïrzg reconhecerá você...

— Não, não reconhecerá. Pessoas como ela sequer enxergam pessoas sem status, como eu era para a a’hïrzg. Minha voz será diferente, meu cabelo e, mais importante, minha atitude. Ela não me reconhecerá. Não.

Dito isso, ela tirou da cama a bolsinha de moedas de ouro e colocou no baú com os outros pagamentos. Do baú, ela retirou um espelho surrado de bronze e olhou o reflexo na superfície polida. Tocou no cabelo, viu os olhos atormentados, quase sem cor. Era o momento de ela se tornar outra pessoa. Alguém mais rico, mais influente.

Alguém que pudesse chegar perto do hïrzg...


CONTINUA

??? PRESSÁGIOS ???

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Enéas co’Kinnear

Jan ca’Vörl

Sergei ca’Rudka

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Enéas co’Kinnear

AGORA ELE QUERIA ter se preocupado em aprender mais da língua ocidental.

Enéas conhecia algumas das palavras, o suficiente para se virar nos bazares ruidosos, cheirosos e lotados de Munereo. Lá, entre a multidão que tagarelava e se acotovelava, podia-se encontrar perfumes doces das planícies de Horn Ocidental; iguarias doces, escuras e saborosas das florestas do Grande Rio do Sul; cestas com pinturas elaboradas dos povos da Grande Espinha; belas peças de lã das ovelhas dos morros do nordeste de Paeti, tingidas com tons intensos de verde e laranja, com estampas elaboradas, bordadas em padrões geométricos; frutas e ervas exóticas que os vendedores diziam vir de todas as partes dos grandes lagos internos do continente ocidental. Nos mercados oficiais, Enéas encontrava produtos inferiores com preços duas ou três vezes mais altos do que pagaria nos mercados abertos, vendidos por ocidentais que sabiam a língua de Nessântico.

Mas era nos bazares, escondidos no labirinto de ruas estreitas da cidade onde os habitantes nativos ainda moravam, que os verdadeiros tesouros eram encontrados, e lá ninguém falava a língua de Nessântico, mesmo que soubesse.

Munereo... era um sonho. Outra vida, como a época em que ele viveu na própria Nessântico. Comparados à dura realidade, aqueles tempos pareciam ter acontecido com outra pessoa, inteiramente em outra vida.

Enéas sabia que as pessoas de puro sangue nativo eram chamadas de tehuantinos. Neste momento, era com os tehuantinos que eles lutavam. Os tehuantinos fluíram para os Hellins vindos das montanhas a oeste, após o comandante Petrus ca’Helfier ter sido assassinado por ter estuprado ou se apaixonado por — dependia de quem contava — uma mulher tehuantina. Ca’Helfier fora assassinado por um ocidental. Então, o novo comandante — Donatien ca’Sibelli — retaliou, houve tumultos, baderna e agitação crescentes, e o conflito finalmente se expandiu em uma guerra aberta, com cada vez mais tehuantinos vindo dos Hellins.

Agora Enéas seria uma nova baixa naquela guerra. Se esta for a Sua vontade, Cénzi, então irei até o Senhor com prazer...

Ele gemeu ao levar um chute nas costelas de um pé em sandálias levando o fôlego e as memórias embora. Alguém rosnou alguma coisa rápida e praticamente ininteligível na língua dos tehuantinos para Enéas. — ...pé... — ouviu ele. — ...momento... — Enéas fez um esforço para abrir os olhos, que estavam apertados contra o sol implacável, para ver a carranca do ocidental: a pele da cor de chá; as bochechas tatuadas com faixas azuis e pretas da classe guerreira; os dentes brancos; a armadura de bambu no corpo, e, na mão, uma espada curva ocidental que o homem usava para gesticular e que fazia um som audível quando a lâmina cortava o ar.

Enéas tentou mexer as mãos e descobriu que estavam firmemente amarradas atrás das costas. Ele lutou para se levantar, mas a perna e o tornozelo feridos recusaram-se a cooperar. — Não — falou Enéas na língua ocidental. O o’offizier tentou fazer com que a recusa soasse menos rebelde e procurou na mente confusa pelo cansaço as palavras que poderia usar. — Eu... machucado. Não posso... pé. — Enéas torceu para que o ocidental entendesse a sintaxe e o sotaque capengas.

O ocidental suspirou com irritação. O homem ergueu a espada, e Enéas soube que estava prestes a morrer. Eu vou ao Senhor, Cénzi. Ele esperou pelo golpe e ergueu os olhos para ver o golpe mortal, para que o ocidental soubesse que não tinha medo.

— Não. — Enéas ouviu a palavra; outra voz. Uma mão deteve o braço do ocidental assim que começou a descer. Outro tehuantino entrou no campo de visão de Enéas. Não havia marcas de classe no rosto deste homem, as mãos não tinham calos e pareciam ser macias, e ele usava uma roupa simples e folgada que não era diferente das bashtas e tashtas da terra natal do o’offizier. À exceção do chapéu decorado com plumas que o homem usava sobre o cabelo escuro e oleoso, ele poderia se passar simplesmente por um estrangeiro qualquer em Nessântico. — Não, Zolin — repetiu o sujeito para o guerreiro, depois liberou uma enxurrada de palavras velozes demais para Enéas compreender.
O guerreiro grunhiu e embainhou a arma. Ele gesticulou uma vez para Enéas. — ...ruim... sua escolha... nahual Niente — disse o homem e foi embora.

Nahual. Isso queria dizer que seu salvador era o líder dos nahualli, os ténis-guerreiros dos ocidentais. “Niente” podia ser um nome, podia ser um título secundário; Enéas não sabia. Ele encarou o homem e notou que seu cinto continha dois dos estranhos apetrechos em forma de tubo de marfim que foram usados para matar o a’offizier ca’Matin. Enéas perguntou-se se seria o próximo; teria preferido a espada. Ele fechou os olhos e ofereceu outra rápida prece silenciosa para Cénzi.

— Você consegue andar, o’offizier?

Enéas abriu os olhos ao ouvir o sotaque carregado de Nessântico. O nahual Niente olhava fixamente para ele, que balançou a cabeça. — Com dificuldade. Meu tornozelo e a perna...

O homem resmungou e ajoelhou-se ao lado de Enéas. Ele tocou a perna do o’offizier sob o uniforme e sondou com as mãos. Enéas soltou um ganido involuntário quando o nahualli manipulou seu pé. Niente resmungou novamente e chamou alguém. Um jovem veio correndo com uma grande bolsa de couro e entregou para o feiticeiro. O homem vasculhou o interior e tirou uma peça comprida de linho branco. Ele enfaixou a perna de Enéas e bateu na mão do o’offizier quando ele tentou detê-lo. — Deite-se, se quiser viver — falou o nahualli.

Após enfaixar completamente a perna de Enéas, o nahualli ficou de pé. Fez um gesto e falou uma palavra na própria língua. Imediatamente, Enéas sentiu o pano se apertar na perna e gritou. Ele tentou arrancá-lo com as unhas, mas o pano não era mais feito de linho macio. A perna parecia presa por um torno de aço implacável, e um fogo lento ardeu dentro dela enquanto o o’offizier se debatia no chão e o nahual entoava um cântico na própria língua.

A agitação de Éneas não adiantou. O coração inflamou até ele gritar de dor...

... e o fogo abruptamente se apagou. Enéas atacou o pano novamente, que agora era apenas pano e nada mais. Ele desenfaixou a perna enquanto o nahualli assistia impassivelmente, esperou ver a perna negra, cheia de bolhas e esmagada. Mas os hematomas que manchavam a perna tinham sumido, e o inchaço em volta do tornozelo diminuiu.

— Agora, fique de pé — disse o nahualli.

Enéas levantou-se. Não havia mais dor, e a perna estava intacta e forte.

Cénzi, o que ele fez? Sinto muito... — Por que você fez isso? — disse o o’offizier com raiva.

O homem encarou Enéas da maneira como se encara uma criança retardada. — Para que você pudesse andar.

— Curar com o Ilmodo vai contra a Divolonté — disse Enéas com raiva. — Minha recuperação estava nas mãos de Cénzi, não nas suas. É Dele a escolha de me curar ou não. Vocês selvagens usam o Ilmodo de modo errado.

O nahualli torceu o nariz ao ouvir isso. — Eu usei um encantamento que poderia ter usado em um dos meus homens, o’offizier. Você está de pé, curado e, no entanto, está sendo ingrato. Toda sua gente é assim arrogante e estúpida?

— Cénzi... — Enéas começou a falar, mas o homem o interrompeu com um gesto.

— Seu Cénzi não está aqui. Aqui, Axat e Sakal reinam, e foi o X’in Ka e não o seu Ilmodo que eu usei. Agora, venha comigo.

— Por quê? Onde estamos indo?

— Para nenhum lugar que você conheça. Venha ou morra aqui, caso se sinta melhor assim.

— Você vai me matar de qualquer maneira. Eu vi o que vocês fazem com os capturados. — Enéas gesticulou para os apetrechos no cinto do homem. O nahualli tocou os objetos, os dedos alisaram o osso curvo.

— Acredite no que quiser — disse ele. — Venha comigo ou morra aqui. Não me importo com a sua escolha.

O nahualli começou a ir embora. De pé, Enéas pôde ver o acampamento dos ocidentais sendo desmanchado à sua volta em uma manhã escura, que ameaçava chover. Agora mesmo, muitas tropas dos tehuantinos iam embora marchando para o nordeste: os offiziers deles estavam montados, os homens andavam com longas lanças nos ombros. Enéas notou o grande círculo enegrecido, o resquício da grande fogueira ainda fumegante que ele tinha visto na noite anterior. Uma arcada inconfundível de costelas queimadas surgiu das brasas. Enéas estremeceu ao ver aquilo, pois sabia que o esqueleto devia ser de ca’Matin ou de outro colega soldado.

Ele viu o nahualli gesticular para um dos guerreiros por quem passou e apontar de volta para Enéas. Cénzi, o que devo fazer? O que o Senhor quer de mim?

Como se fosse a resposta, as nuvens abriram-se a noroeste, e ele viu um facho de luz do sol pintar os morros da cor de esmeralda ao longe, antes de sumir novamente.

— Espere — falou Enéas. — Eu vou com você.

 

Audric ca’Dakwi

— VOCÊ NÃO PODE CONTAR PARA NINGUÉM que eu converso com você, Audric — disse a mamatarh. Os olhos pintados do quadro cintilaram ao dar o aviso, e o rosto envernizado ficou sério. — Você entendeu, não é?

— Eu podia... contar para Sergei — sugeriu Audric, que estava diante do quadro com um candelabro na mão. Ele dispensou Seaton e Marlon pelo resto da noite, embora soubesse que os dois dormiam na câmara ao lado e viriam se fossem chamados. A respiração estava difícil; ele lutava por cada fôlego, as palavras saíam em espasmos ofegantes. Audric sentiu o calor do fogo na lareira em frente. — Ele... acreditaria em mim. Ele... entenderia. A senhora... confiava nele, não?

Mas o rosto no quadro balançou a cabeça, um movimento praticamente imperceptível à luz instável das velas. — Não — sussurrou ela. — Nem mesmo Sergei. Que eu converso com você, que dou conselhos, isso deve ser segredo nosso, Audric. Segredo nosso. E você tem que começar a se impor, Audric: como eu me impus, desde o início.

— Eu não tenho... 16 anos. Sergei é... o regente, e é... a palavra dele... que o Conselho dos Ca’... ouve... Sigourney e os demais... — O esforço de falar era um sacrifício, e Audric não conseguiu terminar. Ele fechou os olhos e ouviu a resposta de sua mamatarh.

— O regente e o Conselho têm que entender que você é o kraljiki, não Sergei — interrompeu Marguerite com rispidez. — A Guerra nos Hellins... não vai bem. Há perigo lá.

Audric concordou com a cabeça, com os olhos ainda fechados. — Sergei... sugeriu retirar... nossas tropas, ou talvez... — ele fez uma pausa porque foi acometido por outro acesso de tosse — ... até mesmo abandonar as cidades... em que nos estabelecemos... nos Hellins até... que os Domínios sejam... unificados novamente, quando pudermos... dar recursos a elas...

— Não! — A palavra foi quase um guincho, tão alto que Audric tapou os ouvidos e arregalou os olhos, surpreso ao ver que a boca no quadro não estava aberta em fúria e que Seaton e Marlon não entraram correndo no quarto, em pânico; porém, as mãos nos ouvidos não conseguiam deter a voz de Marguerite em sua cabeça. — Você sabe do que me chamavam no início do meu reinado, Audric? O seu mestre de lições lhe contou?

— Ele contou. Eles chamavam a senhora... de “Spada Terribile”... a Espada Terrível.

O rosto no quadro assentiu sob o brilho fraco das velas. — Eu era a Espada Terrível. Eu trouxe a paz aos Domínios primeiro pela espada do meu exército, antes de um dia eu virar a Généra a’Pace. Eles se esquecem disso, aqueles que se lembram de mim. Você tem que ser forte e firme da mesma maneira, Audric. Os Hellins: eles têm uma terra rica, que traria grande riqueza aos Domínios, se você tiver a coragem de pegá-la e mantê-la.

— Eu terei — falou Audric fervorosamente. Imagens de guerra passaram pela sua mente, de si mesmo no Trono do Sol com mil pessoas ajoelhadas diante dele, e nenhum regente ao lado.

— Ótimo — respondeu Marguerite. — Excelente. Ouça o que eu digo e vou lhe contar o que você tem que fazer para ser o maior dos kraljiki. Audric, o Grande; Audric, o Amado.

Ao ver o sorriso da mamatarh, ele finalmente concordou com a cabeça. — Eu serei tudo isso. — Audric respirou ofegante novamente e tossiu. — Eu serei.

— Será o que, kraljiki?

Audric deu meia-volta ao ouvir a pergunta e quase derrubou o candelabro com o movimento, que foi tão violento que duas das velas foram apagadas. O esforço provocou espasmos ofegantes, e o regente Sergei correu para pegar o candelabro das mãos do kraljiki e apoiar o menino com um braço em volta de sua cintura. No nariz lustroso e reluzente do regente, Audric vislumbrou o archigos Kenne à espreita, nas sombras perto da porta, mantida aberta para os dois por Marlon. Ca’Rudka ajudou Audric a desmoronar em uma das cadeiras estofadas em frente à lareira. Marguerite olhou para ele com uma expressão indecifrável. — Aqui, meu kraljiki, um pouco do xarope do curandeiro — falou ca’Rudka ao colocar uma taça nos lábios de Audric, que encarava o quadro. O menino balançou a cabeça e afastou a bebida.

Ela diz que os curandeiros não ajudarão, Audric quis falar, mas não falou, e a boca bem fechada de Marguerite curvou-se em um ligeiro sorriso. As pálpebras do kraljiki queriam se fechar, mas ele obrigou-as a ficarem abertas. — Não — disse o menino.

Ca’Rudka franziu a testa, mas pousou a taça e falou — Eu trouxe o archigos. Deixe que ele reze pelo senhor...

Audric ergueu o olhar para o quadro e viu a mamatarh concordar com a cabeça. Ele fez o mesmo, e o archigos Kenne entrou apressadamente no quarto. Enquanto o archigos se ocupava com o cântico e o gestual, Audric ignorou os dois homens. Ele só tinha olhos para o quadro e para o olhar sereno da mamatarh. Marguerite falou com o neto enquanto Kenne tocava em seu peito e o calor do Ilmodo amenizava a congestão nos pulmões.

— Nós podemos fazer isso juntos, Audric. Você é o neto que eu sempre quis ter em vida. Ouça o que eu digo, e em toda a história não haverá um kraljiki que poderá se igualar a você. Eu vou lhe ajudar. Ouça o que eu digo...

— Eu estou ouvindo — disse Audric para ela.

— Kraljiki? — falou o regente ca’Rudka, que acompanhou o olhar de Audric até o quadro. O kraljiki perguntou-se se o homem também tinha ouvido o sussurro, mas aí o nariz de prata do regente reluziu à luz das velas quando ele se virou de volta e refletiu a própria imagem de Audric. — Nenhum de nós disse coisa alguma.

Audric balançou a cabeça e falou — Realmente. E é por isso que eu ouço.

Ca’Rudka deu um sorriso hesitante. Kenne, em meio ao encantamento, deu de ombros. — Ah, uma piada — disse o regente. Ele deu uma risadinha sem graça. — Está se sentindo melhor, kraljiki?

— Estou, Sergei. Sim. Obrigado, archigos. Você pode ir. — O archigos não se mexeu, e Audric fechou a cara. — Eu disse, archigos, você pode ir.

Kenne arregalou os olhos e Audric viu o archigos olhar para Sergei, que deu de ombros. Kenne fez uma mesura e o sinal de Cénzi e saiu.

— Aquilo foi uma grosseria — disse Sergei para Audric depois que Marlon fechou as portas do quarto do kraljiki ao sair. — Depois dos esforços e preces do archigos...

— As preces do homem tinham acabado — falou Audric com uma agressividade que jamais havia usado com Sergei antes. Ele olhou para o quadro e viu a mamatarh acenar com a cabeça, como se estivesse satisfeita. A voz de Marguerite murmurou em sua cabeça. — Sergei não se importa com você, Audric. Ele apenas quer manter o poder que é seu. Não quer que você seja o que pode ser. Quer que você continue fraco, que sempre precise dele, para se manter como regente. — A força da mamatarh pareceu fluir por Audric. Ele descobriu que podia falar sem as pausas, sem tossir. O kraljiki falou tão bem e com tanta força quanto o próprio Sergei. — Preciso falar com você, regente, sobre os Hellins. Andei considerando a situação de lá desde nossa última conversa. Decidi mandar outra divisão da Garde Civile para complementar nossas tropas lá.

Audric ficou orgulhoso de como a voz soou: altiva, forte e intensa. Ele sorriu para Marguerite, e, sob a luz das velas, ela acenou com a cabeça para o neto.

 

Sergei ca’Rudka

— DECIDI... MANDAR outra... divisão da... Garde Civile... para complementar... nossas tropas... lá — falou Audric.

O menino mal conseguiu colocar as palavras para fora no meio das arfadas e da tosse. A raiva dentro dele pareceu tornar a agonia ainda pior do que o normal, como se as preces do archigos Kenne não tivessem feito nada.

Sergei obrigou-se a ficar impassível, a não revelar nada do que pensava. Deixe o menino ter seu acesso de raiva. Porém, as palavras deixaram o regente preocupado: não parecia Audric falando; ele escutava as palavras de outra pessoa. Quem andou falando com o menino? De quem era o conselho que foi sussurrado em seu ouvido para ele declamar? Um dos chevarittai, talvez, em busca de glória na guerra. Talvez a própria Sigourney, uma vez que o irmão era o comandante lá.

Audric olhava por cima do ombro de Sergei, que se voltou para o mórbido retrato da kraljica Marguerite sobre a lareira. — Eu pensei que tinha deixado clara minha opinião sobre a questão, kraljiki — falou o regente em um tom de voz cuidadosamente neutro, cuidadosamente sem emoção. — Não acho que isso seja prudente, não com o tamanho do exército que a Coalizão conseguiria arregimentar se eles quisessem. Esta guerra nos Hellins é como uma ferida que sangra; ela nos enfraquece e desvia a atenção de onde o foco deveria estar: no leste, não no oeste. Devíamos ver o que podemos fazer para restaurar os Domínios.

O olhar do menino desviou do retrato para Sergei e voltou. — Os Hellins nos dão riquezas e bens que não encontramos em nenhum outro lugar. Riquezas... e bens... (tosse)... que... não encontramos... em nenhum outro lugar.

— Realmente, kraljiki, mas nós poderíamos obter esses bens através do comércio com os orientais tão facilmente quanto pela guerra. Mais facilmente, na verdade. Assim que os Domínios forem reunificados, então haverá tempo para olhar para o outro lado do Strettosei, para os Hellins, mais uma vez. Perdemos muito terreno lá porque não pudemos dar a atenção que o território merece.

O rosto de Audric ficou vermelho, pelo esforço de falar ou pela raiva, ou por ambos. — Não foi isso que meu vatarh disse quando os Distúrbios começaram, regente. Você acha que por que eu era apenas uma criança na época eu não me lembraria? ... apenas uma... criança... na época... (arfada)... que não... me lembra... ria?

O rosto impassível do regente não revelou nada. — Quando os Distúrbios começaram, o kraljiki Justi acreditava que ele não tinha escolha a não ser responder. Seu vatarh acreditou no que os a’offiziers disseram para ele: que os ocidentais eram pouco mais do que selvagens, que em pouco tempo seriam repelidos para além do lago Malik. Porém, eu gostaria de lembrá-lo que eu não compartilhava deste ponto de vista. As notícias continuam piorando apesar dos melhores esforços do comandante ca’Sibelli. Nós julgamos mal os ocidentais, e é hora de salvar o que for possível de uma decisão ruim.

— Meu vatarh não tomou uma decisão ruim! — O menino guinchou as palavras e conseguiu falar todas em um fôlego só. Depois ele tossiu muito e intensamente, e Sergei esperou. — Eu quero que outra divisão seja enviada — insistiu Audric. — Esta é a minha vontade. Essa é a vontade do kraljiki.

— O senhor é o kraljiki — disse Sergei, que manteve o tom de voz baixo e reconfortante em contraste com os guinchos estridentes de Audric. — Mas eu fui nomeado regente pelo Conselho dos Ca’ após a morte de seu vatarh até que o senhor atinja a maioridade.

— Eu já sou quase maior de idade — respondeu Audric. O rosto estava tão pálido que Sergei pensou que o menino fosse desmaiar. — Daqui a menos de dois anos. Eu poderia pedir ao Conselho para removê-lo e ter permissão de governar plenamente. Eles já fizeram isso no passado. O mestre ci’Blaylock me disse: o kraljiki Carin dispensou seu regente aos 14 anos, a mesma idade que a minha.

Sergei ergueu a mão. Com delicadeza. Com um sorriso debaixo do nariz de prata. — Sim, isso foi feito, mas o senhor e eu não precisamos estar em desacordo, meu kraljiki.

— Então não me desobedeça, regente. Eu irei ao Conselho. Irei sim. Farei com que o removam. — O menino gesticulou freneticamente, o que provocou outro ataque de tosse.

— Audric... — respondeu Sergei pacientemente enquanto o jovem se deitava no travesseiro. Marlon, à espreita no canto dos fundos do quarto, encarava Sergei de olhos arregalados e balançava a cabeça. — Talvez eu tenha sido negligente por não lhe envolver plenamente, por não fazer com que tomasse parte de todas as reuniões e discussões. Isso pode mudar; isso será mudado. Eu lhe prometo: se quiser tomar parte de todas as discussões de estado, ler todos os relatórios, ouvir todos os conselheiros, realmente ver o que significa governar, então eu me adequarei a isso. Mas os Hellins... — Ele balançou a cabeça. — Já são quase sete anos, Audric. Sete anos e os ocidentais recuperaram a maior parte do que conquistamos por lá originalmente. Sete anos, e perdemos gardai demais, desperdiçamos solas de ouro e sangue vermelho em excesso na tentativa de conter a maré. No fim das contas, eu quero o que o senhor quer. Eu quero que os Domínios tenham as riquezas das Terras Ocidentais. Quero mesmo. Mas esta não é a hora. E não é a hora de discutirmos isso. Amanhã, quando se sentir melhor...

— Então saia! — berrou Audric para Sergei, tão alto que o atendente no corredor abriu um pouquinho a porta para espiar. O regente fez que não para o homem. — Saia e me deixe em paz. — Ele virou o rosto e tossiu no travesseiro.

— Como quiser, kraljiki. — Sergei fez uma mesura para o jovem. Ao se virar para ir embora, ele viu o retrato da kraljica mais uma vez. Ela pareceu dar um sorriso triste para o regente, como se compreendesse.

 

Allesandra ca’Vörl

A CERIMÔNIA NO TEMPLO DE BREZNO foi dolorosamente longa, assim como o discurso de boas-vindas de Fynn para o a’gyula da Magyaria Ocidental: Pauli, o marido de Allesandra. O rosto dela doía por ter de manter um sorriso durante as monótonas saudações de Fynn — escritas, sem dúvida, por um dos escribas do palácio, já que Fynn às vezes espiava intrigado o pergaminho diante de si, quando tropeçava em palavras desconhecidas. A coluna de Allesandra doía por causa dos bancos desconfortáveis e de espaldar reto do templo. Jan, sentado entre ela e seu vatarh, remexia-se sem parar, tanto que Pauli finalmente se inclinou na direção do jovem e sussurrou algo em seu ouvido. Depois disso, Jan parou de se remexer no banco, mas o mau humor era visível em seu rosto quando Allesandra e Pauli saíram do templo atrás de Fynn, do archigos Semini e de sua esposa megera, sendo seguidos pelos ca’ e co’ de Firenzcia como um obediente rebanho de ovelhas.

Depois veio a festa no Grande Palácio de Brezno. Agora eram os pés que doíam, e Allesandra pensou que as barbatanas do espartilho, que apertavam a tashta como a moda ditava, deixariam sulcos permanentes na sua cintura. O salão de baile era um forno na noite úmida e sufocante, mais como em pleno verão do que na primavera que o calendário insistia em marcar. O archigos havia postado e’ténis pelo salão para manter os ventiladores de teto girando com a energia do Ilmodo. O movimento das pás parecia intensificar o calor em vez de diminuí-lo e transformava o ar em uma colônia fétida de suor, pomadas e perfumes. A noite estava ruidosa com a música da orquestra no fim do salão, com o som de pés que dançavam na pista de madeira colocada sobre os ladrilhos, e com uma centena de conversas isoladas, tudo refletido de volta para eles pelo domo acima.

Allesandra desejava fervorosamente que estivesse em outro lugar, mas se os desconfortos incomodavam Pauli, ele não deixou transparecer. Pauli separou-se de Allesandra assim que o decoro permitiu e estava com um grupo de moças em volta de Fynn. Jan estava lá também, ao lado do vatarh, e Allesandra notou que ele recebia quase tanta atenção quanto o hïrzg, e certamente mais do que Pauli. Fynn divertia todo mundo com a história da caçada ao cervo, o braço inclinado para trás como se mirasse o arco enquanto ria, e deu um tapinha nas costas de Jan. — ... o garoto atira praticamente tão bem quanto eu — ela ouviu Fynn dizer, e o rosto de Jan ficou radiante e com um largo sorriso enquanto as moças aplaudiam e faziam os elogios apropriados.

Obviamente, seria Pauli quem certamente encontraria satisfação e alívio entre as coxas de uma delas na noite de hoje. Allesandra tinha certeza disso; o marido não se importava mais em esconder suas aventuras. Ela dizia para si mesma que não se importava.

— A’hïrzg, está se divertindo? — Ela virou-se e viu o archigos Semini ca’Cellibrecca parado atrás dela com duas bebidas geladas na mão. Fynn trouxera, sob grande despesa, carroças cheias de gelo glacial das montanhas em volta do lago Firenz. O homem ofereceu um copo para Allesandra e disse — Por favor, pegue. Francesca parece ter sumido e o gelo vai desaparecer em breve nesse calor.

Com gratidão, Allesandra pegou o copo, que suava. Tomou um gole da bebida gelada e saboreou a sensação fria quando o suco adoçado por mel desceu pela garganta. — Obrigada, archigos. Acho que você acabou de salvar a minha vida.

Ele deu um largo sorriso ao ouvir isso, a barba reluzia por causa do óleo. — A senhora se importaria de andar comigo, a’hïrzg? Eu suspeito que haja um pouco de brisa perto das janelas.

Ela olhou o grupo barulhento em volta de Fynn, o marido e o filho ali com ele. — Certamente — falou Allesandra para o archigos. Semini ofereceu o braço, e ela colocou a mão na dobra do antebraço enquanto andavam. Ele não falou nada até que os dois ficassem bem afastados do hïrzg e então se aproximou de Allesandra. — Seu marido gosta da atenção que recebe como a’gyula, mas é um tolo ao deixar a senhora desacompanhada. — A mão livre de Semini cobriu a de Allesandra em seu braço.

— Eu poderia dizer o mesmo sobre sua esposa, archigos.

Semini riu. Sua mão deu um tapinha na dela. — A esposa ideal é ao mesmo tempo uma aliada e uma amiga, mas este é um ideal raramente alcançado, não é? Uma pena. Eu me pergunto, às vezes, o que poderia ter acontecido se a falsa archigos não tivesse sequestrado a senhora. Talvez, a’hïrzg, nós pudéssemos ter acabado como... aliados. Ou algo mais.

Allesandra acenou com a cabeça para um grupo de esposas ca’ e co’ que passava. Ela viu os olhares especulativos notarem sua mão no braço do archigos. — A filha do archigos ca’Cellibrecca foi uma escolha melhor para você, archigos. Veja onde está agora.

Ela sentiu mais do que ouviu o muxoxo de desdém do archigos. — Uma escolha fria e calculista da parte do jovem Semini e que me deu um casamento com exatamente estas mesmas características. Mas existem outras alianças que podem ser forjadas fora do casamento, a’hïrzg, se a pessoa é cuidadosa. E interessada. — O archigos manteve a mão sobre a de Allesandra e apertou os dedos.

— Eu sempre fui extremamente cuidadosa a respeito de minhas alianças, archigos. Isto foi uma coisa que aprendi cedo.

Ele concordou com a cabeça. Os dois estavam perto da pista de dança agora, a música abafava suas vozes. — Soube que a senhora fará um voto de lealdade ao hïrzg Fynn no Besteigung amanhã?

— Sim. Você tem fontes próximas ao hïrzg.

Sob a barba grisalha, o homem sorriu. — Saber o que os poderosos sabem é uma tática de sobrevivência, a’hïrzg, como tenho certeza que compreende. — Por vários momentos, os dois andaram em silêncio pelo limite da pista. Casais flutuavam ao dançar uma gavota perto deles. — Também ouvi a notícia de Nessântico de que o jovem kraljiki não está bem — falou Semini. Allesandra não disse nada. — Os rumores que chegaram a mim dizem que o Conselho dos Ca’ em Nessântico pode considerar os gêmeos Sigourney ca’Ludovici ou Donatien ca’Sibelli como sucessores caso Audric morra. Eles são primos em segundo grau de Audric, creio eu. — Ele respirou fundo e sorriu. — Assim como a senhora.

Allesandra devolveu um olhar neutro para o homem. Pessoas passaram dançando por eles. — Assim como Fynn — respondeu ela finalmente.

— Sim, mas a senhora é a irmã mais velha. E tem a vantagem de ter vivido lá; a senhora conhece Nessântico, enquanto seu irmão, não. E talvez existam pessoas em Nessântico que saibam reconhecer força quando a veem e desejem uma presença forte no Trono do Sol. Alguém mais forte do que Sigourney ou Donatien. — Semini aproximou-se e abaixou a voz em um murmúrio rouco. — Por falar nisso, existem pessoas aqui que prefeririam que a senhora usasse a coroa que atualmente está na cabeça de Fynn.

— Você fala em traição novamente, archigos? — perguntou Allesandra, tão baixo quanto ele.

— Eu falo a verdade, a’hïrzg.

— E sobre estas pessoas aqui de que você fala, você estaria entre elas, archigos?

Ele apertou os dedos da mão de Allesandra. — Eu estaria. Talvez... talvez até mesmo seja possível unificar tanto a Coalizão quanto a Fé... sob os líderes certos.

O archigos certo seria você mesmo, é claro... Allesandra observou as pessoas dançarem na pista enquanto executavam os passos complicados e predeterminados. O que ele realmente sabe? O que realmente quer? Allesandra não sabia como responder a Semini. Não sabia se o archigos tinha conhecimento da mensagem que ela recebera de Nessântico ou se talvez ele recebera algo igual. Allesandra não sabia se Semini era um aliado em potencial ou um inimigo — e o archigos seria um inimigo terrível, como podiam confirmar os esqueletos dos hereges numetodos pendurados em exibição pública, perto do Templo de Brezno.

O gelo virou água na bebida de Allesandra. Ela entregou o copo para um criado que passava e sorriu para o archigos. — Meu vatarh acreditava que os Domínios seriam unificados novamente quando ele estivesse sentado no Trono do Sol como kraljiki. É o que eu acredito também, archigos: que um hïrzgai também pode ser o kralji. E eu... — Allesandra ergueu a mão que segurou o copo e viu as gotas frias e reluzentes de água nos dedos. — Da última vez que vi, eu não era hïrzgin.

— Não, a senhora não é, mas...

Ela interrompeu Semini antes que ele abrisse a boca novamente. — Não, eu não sou. Isso parece ser a vontade de Cénzi. Você não pretende frustrá-lo, não é, archigos? — Allesandra não deu chance para resposta. Ela retirou a mão do braço de Semini e fez o sinal de Cénzi para ele. — Obrigada pela bebida e pela conversa, archigos. Você me deu muita coisa para pensar. Se... se algo acontecer para, bem, mudar as coisas, sei que você e eu poderíamos ser excelentes aliados. Certamente você é um archigos bem mais competente do que aquele que a Fé de Nessântico nomeou. Kenne nunca me impressionou.

Allesandra notou o prazer no rosto de Semini quando disse aquilo, e ele concordou levemente com a cabeça. — Estou lisonjeado, a’hïrzg.

— Não, sou eu quem deveria estar lisonjeada. Agora... você deve encontrar Francesca, e eu preciso ser a esposa do meu marido e a a’hïrzg, e fingir não notar quando o a’gyula escapulir durante a noite.

 

Karl ca’Vliomani

VARINA ENTREGOU A KARL a bola de vidro enquanto Mika observava. Varina tocou a mão de Karl por um momento antes de soltá-lo e deu um sorriso pontuado por tristeza. O rosto dela parecia mais enrugado do que ele se lembrava, como se tivesse envelhecido de repente no último mês.

Eles estavam no salão de reuniões da Casa dos Numetodos, onde uma vez por semana os vários numetodos faziam relatórios sobre suas pesquisas. Havia cadeiras vazias dispostas impecavelmente em fileiras, na frente de um pequeno tablado onde eles estavam.

Karl não contou para Mika sobre sua visita ao embaixador firenzciano no outro dia; evidentemente, Varina também não, uma vez que Mika não comentou a respeito.

— É só uma bola, certo? — perguntou Mika enquanto Karl ergueu o globo na palma da mão. — Embora seja bem feita. — Ela era pesada e bem feita; Karl não viu bolhas de ar ou defeitos no vidro. A lente da esfera fez com que ele tivesse uma visão deturpada e distorcida do salão. — Você a considera incomum ou notável de alguma outra maneira?

Karl deu de ombros. — Não. É apenas o trabalho de um verdadeiro vidraceiro ou o trabalho de formatura de um aprendiz, mas tirando isso...

Mika sorriu. — Realmente. O que eu quero que você faça, Karl, é que diga a palavra “abra” em paeti e depois jogue a bola para mim.

Karl ergueu a bola de vidro novamente. — Oscail — falou e atirou o pequeno globo na direção de Mika. O que aconteceu a seguir o surpreendeu.

Quando a bola de vidro tocou a mão de Mika, surgiu um clarão branco-azulado que lançou momentaneamente agitadas sombras negras pelo salão dos numetodos e na parede dos fundos. Karl protegeu os olhos com atraso. Ele ouviu a risada ligeira de Varina e palmas de alegria. Karl piscou e tentou enxergar atrás das manchas de imagens persistentes que atormentavam a sua visão. — Por todos os moitidis... vocês dois andaram trabalhando mesmo, pelo que eu vejo.

— Eu, não — respondeu Mika. — Foi Varina, sozinha. — Ele devolveu o globo para Karl, que era simplesmente vidro novamente. — Se os ocidentais eram capazes de encantar objetos com o Scáth Cumhacht da maneira como você e Ana disseram que Mahri fazia, então nós sabíamos que era possível. E não apenas isso: Mahri deu para Ana um objeto encantado que ela podia controlar ao falar a palavra certa. Qualquer um podia usar a magia desde que soubesse a palavra de ativação.

Varina continuava sorrindo. Ela esfregava a crosta de uma ferida comprida no antebraço. — Nós sabíamos que era possível; o resto foi simplesmente uma questão de descobrir a fórmula para fazer.

— Varina finalmente conseguiu decifrar a sequência — acrescentou Mika. — Ela me fez jurar segredo; disse que queria surpreender você. O feitiço é complicado e consome mais tempo e mais energia do que você imaginaria. Comparado com nossos próprios feitiços, algo assim sai caro e exige muito mais do corpo do que qualquer um esperaria, mas... — Ele acenou com a cabeça, feliz. — Dá para ser reproduzido. Finalmente. Varina diz que pode nos ensinar, e qualquer um de nós pode fazer o mesmo.

Karl olhou para Varina, que concordou com a cabeça sem dizer nada e sustentou o olhar do embaixador quase como uma provocação. Ele jogou a bola para o ar e falou — É impressionante, Varina. De verdade. Mas um clarão de luz não chega a ser uma arma.

— Teoricamente, qualquer feitiço dentro do conhecimento arcano pode ser armazenado em qualquer objeto: ofensivo, defensivo, tanto faz — respondeu Varina. Havia empolgação em sua voz. — Teoricamente. Na prática, bem, ainda não. Eu usei o feitiço de luz porque é o primeiro e mais simples que ensinamos a um iniciado, então pareceu ser o melhor. — Ela balançou a cabeça. Havia mechas brancas no cabelo castanho de que Karl não se lembrava, mesmo há uma semana. Será que elas estavam ali há tanto tempo assim? — Olhe, é questão de unir o feitiço ao objeto e criar um gatilho para ativá-lo, de envolver o objeto com a energia do Scáth Cumhacht como se embrulha uma fruta-das-brumas com papel. Depois disso, é como se ele fosse uma extensão do feiticeiro, mas o objeto em si tem que ser de boa qualidade ou não sobreviverá ao esforço. Eu levei um tempo para entender isso. Mas... — Varina suspirou e espalmou as mãos. — Só colocar este simples feitiço dentro de um objeto foi incrivelmente cansativo, Karl. Você não pode imaginar como é cansativo até tentar por si mesmo. Eu levei três viradas da ampulheta para concluir o processo e depois tive que descansar um dia inteiro para me recuperar. Até mesmo agora, eu ainda sinto que minha energia está baixa e imagino o que mais o feitiço possa ter custado. — Ela mordeu o lábio inferior e prendeu fios de cabelo branco atrás das orelhas. — Você falou que a archigos Ana dizia que o velho Mahri, o Maluco, deu para ela um encantamento que podia literalmente parar o tempo?

Karl concordou com a cabeça. — Foi o que ela me contou; foi assim que ela tirou Allesandra de seu vatarh. E Mahri foi capaz de trocar de corpo comigo quando eu estive na Bastida. A magia dele...

— ... era extremamente acima da nossa, então — Varina terminou a sentença por Karl. — Eu sei. Os relatórios da guerra nos Hellins sugerem o mesmo. Os nahualli dos ocidentais podem fazer mais do que nós, mas... eu acabei de provar que o X’in Ka dos ocidentais não tem uma origem divina tanto quanto o Ilmodo, não importa o que eles aleguem ou acreditem. — Ela apontou para a bola de vidro. — Se eu consigo fazer isso, então aposto que também podemos aprender a fazer o mesmo com feitiços mais poderosos. É apenas questão de aprender a fórmula correta de unir o Scáth Cumhacht ao objeto físico. Pode ser feito. Nós podemos fazer.

Karl lembrou-se de Mahri, que fez amizade com ele e Ana quando os dois pensaram que estavam perdidos, e que se revelou não como aliado, mas como inimigo. O rosto arruinado e enrugado de Mahri, com apenas um olho, passou pela mente de Karl quando olhou para Varina. Ele ergueu a bola de vidro novamente. — Então qualquer um pode ter feito este feitiço... — Sua voz foi sumindo. A explosão... o grande clarão de luz terrível... o corpo destroçado de Ana... magia, sem ninguém ser visto ou ouvido enquanto o feitiço era conjurado... talvez você esteja errado; talvez você esteja olhando na direção errada... — Será que o que aconteceu com Ana poderia...? — Karl não conseguiu terminar a pergunta, que ficou entalada na garganta, pesada e maciça.

Mas tanto Varina quanto Mika concordaram com a cabeça como resposta.

— Sim — disse Mika. — Isso é o resto do que queríamos falar com você. Varina e eu já tivemos a mesma ideia. Não podemos descartar envolvimento ocidental na morte de Ana, e, francamente, o que aconteceu lá faz com que pareça provável, ao meu ver. Mas por que, Karl? Por que não assassinar o kraljiki ou o regente, que são diretamente responsáveis pela guerra? Por que matar Ana, dentre tantas possibilidades?

Porque seria vingança por Mahri. Vingança. Isso ele podia compreender. — Nesse momento, eu não sei — respondeu Karl evasivo. — Mas alguém aqui em Nessântico sabe, tenho certeza, e eu vou encontrar essa pessoa. — O embaixador respirou fundo. Ambos olhavam fixamente para ele. — Mas isso fica para depois. Agora, eu quero que vocês me ensinem este truque nahualli. Quero ver como funciona.

Varina pareceu que ia começar a dizer alguma coisa, mas fechou a boca. Mika olhou para ela, depois para Karl. — Acho que vou deixar isso com vocês dois. Alia queria que eu levasse um pouco de carneiro para casa, para o jantar, e o açougueiro vai fechar o açougue daqui a pouco. — Ele despediu-se rapidamente e deixou os dois.

Por um longo tempo após a porta ter sido fechada, nenhum deles falou. Quando falaram foi ao mesmo tempo.

— Eu sinto muito pelo outro dia...

— Eu andei pensando no que você disse...

Eles riram, um pouco sem jeito, diante da colisão de desculpas. — Você primeiro — disse Karl, mas Varina fez que não com a cabeça. — Tudo bem, eu começo então — falou ele. — Você disse que meu... carinho por Ana me cegou. Eu andei pensando a respeito disso e...

— Pare, Karl. Não diga nada. Eu estava furiosa e disse coisas que não tinha direito de falar. Eu... gostaria que você esquecesse o que eu disse.

— Mesmo que elas sejam verdade?

O rosto de Varina ficou vermelho. — Você amava Ana. Eu sei disso. Seja lá que relacionamento vocês dois tiveram... — Ela deu de ombros. — Não é da minha conta. — Varina deu um passo à frente e ficou diante de Karl, tão perto que ele foi capaz de ver as manchas de cor na íris e as linhas finas nos cantos. Ela abaixou as mãos e fechou os dedos de Karl em volta da bola de vidro que ele ainda segurava, depois segurou sua mão. — Eu posso mostrar para você como encantar isto. Você só tem que ser paciente porque...

— Varina — ele interrompeu; ela parou de falar e ergueu os olhos para Karl. — Você não devia se dedicar tanto a isso.

Varina franziu os lábios, como se quisesse dizer alguma coisa. Depois, apertou a mão de Karl e abaixou o olhar. — ... porque é difícil, e você tem que pensar de maneira diferente sobre o processo inteiro. Mas assim que fizer a mudança, tudo fará sentido — disse Varina. — Você tem que imaginar a bola como uma extensão de si mesmo...

 

Enéas co’Kinnear

PASSARAM-SE TRÊS DIAS desde sua captura. Nesse ínterim, o exército ocidental continuou marchando para nordeste, e Enéas seguiu com eles. O o’offizier permaneceu próximo a Niente — que Enéas descobriu ser realmente o nome do nahualli que o curou.

— Ninguém vai amarrá-lo — disse Niente no início da jornada. — Mas se você for descoberto perambulando sem mim, os guerreiros irão matá-lo imediatamente. A escolha é sua.

Eles estavam indo na direção de Munereo. Os dias eram consumidos pelo caminhar e nada mais. Enéas permaneceu perto do nahualli, mas também ficou de olho em uma oportunidade para escapar — este era seu dever como soldado. O que quer que Niente tenha feito com sua perna curou os ferimentos completamente; o tornozelo nunca pareceu tão forte. Se houvesse uma chance de escapulir, bem, não seria um machucado que o impediria.

Não seria fácil. Todos aqueles da classe dos nahualli andavam juntos no meio do exército, bem protegidos, cercados por todos os lados pelos soldados ocidentais tatuados e cheios de cicatrizes. Isso indicava o valor que os tehuantinos davam aos feiticeiros. Cada um dos nahualli carregava um cajado ou bengala, entalhados com figuras de animais e muito elegantes; a maioria dava sinais de muito uso. Uma vez, quando eles pararam para uma refeição no meio do dia, Éneas esticou a mão para tocar no cajado de Niente, curioso em relação à sensação. Niente tirou o cajado de seu alcance.

— Isto não é para você, oriental — falou ele baixinho, mas com um tom ríspido na voz. — Deixe-me dar um alerta: você toca o cajado de um nahualli por sua conta e risco. Não repita isso.

Niente conversou com os outros nahualli, mas sempre na língua dos tehuantinos; se algum deles, como Niente, também falava a língua de Enéas, jamais demonstrou tal habilidade. Na maior parte do tempo, os outros nahualli ignoravam a presença do o’offizier ao lado de Niente, os olhares passavam por Enéas como se ele fosse nada mais do que um cavalo ou uma tenda. Duas vezes ao dia, um guerreiro de classe inferior entregava uma tigela para Enéas com purê de raízes que parecia ser a comida básica do exército; ele comia faminto e com rapidez — nunca era o suficiente para satisfazer a fome gerada pelas longas marchas. Niente também deu um odre para Enéas, que ele enchia nos pequenos lagos e córregos abundantes da região montanhosa.

O exército cruzou os vales sinuosos como um rio maciço, os homens eram envolvidos pelos paredões íngremes e verdejantes.

Eram sempre os guerreiros de classe inferior que montavam as tendas dos nahualli — os próprios feiticeiros pareciam fazer pouco trabalho físico. Niente supervisionava a colocação de várias dezenas de barris em sua tenda pessoal toda noite, marcados com símbolos queimados na madeira. Havia quatro símbolos que Enéas conseguiu discernir. Niente não parecia muito preocupado com a maior parte dos barris, mas aqueles marcados com o que parecia ser um dragão com asas ele observava com atenção quando eram alocados. Niente fazia uma cara feia e repreendia sempre que um dos guerreiros pousava o barril com muita força. Um barril estava cheio com pedaços do que parecia ser (e tinha cheiro de) madeira queimada; em outro havia um pó branco; enquanto um terceiro continha reluzentes cristais amarelos. Enéas espiou com mais atenção o conteúdo dos barris marcados com dragões e viu que estavam cheios com uma areia espessa cinza-escura, que reluzia um pouco ao luar.

Ele lembrou-se da areia espalhada em círculos no chão. O trovão, o clarão, a dor...

Toda noite, os dois juntos na tenda, Niente sentava-se com as costas eretas e entoava um cântico por pelo menos algumas viradas da ampulheta, de olhos fechados, enquanto Enéas ficava deitado perto dele. Algumas vezes ele polvilhava um dos ingredientes dos barris no chão entre os dois enquanto entoava. Enéas sentia no ar o poder do Ilmodo, que arrepiava a nuca e pinicava a pele, e ele rezava para Cénzi enquanto Niente conjurava seus feitiços, para tentar compensar com suas preces o uso herege do Ilmodo. Por toda parte havia silêncio: nenhum dos outros nahualli entoava enquanto Niente recitava os cânticos, e Enéas perguntou-se por quê. Também se perguntou como — depois — ele parecia sentir um calor por dentro, como se o esplendor do sol preenchesse os próprios pulmões. Seja qual fosse o feitiço que Niente conjurava, Enéas parecia ser afetado por ele.

O o’offizier imaginou se Niente sentia o mesmo calor e energia, mas o nahualli sempre parecia mais exausto do que empolgado pelos esforços. O homem gemia ao dormir, como se estivesse sentindo dor, e quando acordava pela manhã havia novas rugas no rosto, como uma maçã velha.

Na terceira noite, após os cânticos, em vez de dormir, como geralmente fazia, Niente colocou uma pequena tigela de bronze perto da abertura da tenda, de maneira que fosse banhada pela claridade da fogueira. A tigela era decorada em volta da borda com um friso de pessoas e animais estilizados, muitos dos quais Enéas não reconheceu. Enquanto o o’offizier observava, Niente colocou água na tigela, depois separou uma pequena quantidade de pó fininho e avermelhado que tirou de uma bolsa de couro e pôs na mão. O nahualli polvilhou a superfície da água com o pó enquanto entoava um cântico. A água começou a brilhar com uma claridade azul-esverdeada e anormal, que fez o rosto de Niente parecer fantasmagórico e morto. O homem olhou no interior da tigela, em silêncio, enquanto a luz sinistra dançava e se fundia com o rosto. A curiosidade fez Enéas se arrastar mais adiante para ver melhor. Ele ergueu o corpo e olhou sobre o ombro de Niente.

Dentro da tigela, na água, havia a vista de uma cidade. Ele a reconheceu imediatamente: Nessântico. Enéas notou a Pontica a’Brezi Veste e a vista da Avi a’Parete, que levava aos pilares de mármore da entrada pública do Palácio do Kraljiki. Ele viu o Velho Templo, mas o novo domo magnífico de co’Brunelli dava a impressão de ter desmoronado completamente; não havia nada ali a não ser um buraco escuro onde o domo deveria estar. As pessoas pareciam andar pelas ruas, mas havia poucas, a maioria corria de cabeça baixa como se estivesse com medo de ser vista. As ruas estavam sujas e cheias de lixo, e o palácio exibia uma rachadura visível na parede do sul e a ala norte estava em ruínas. Do outro lado da rua, o que tinha sido uma residência deslumbrante agora era uma massa negra. Parecia que uma mortalha de fumaça pairava sobre a cidade. Enéas aproximou-se para ver melhor na água...

... que foi agitada pelos dedos de Niente, e a visão dissolveu-se, a luz apagou-se. Enéas viu apenas água; o fundo de bronze da tigela estava salpicado com grânulos de pó.

— O que foi isto? — perguntou ele para Niente ao voltar a se sentar. O homem deu de ombros.

— Heresia, para você. A magia do deus errado.

— Eu vi... pensei ter visto... Nessântico.

— Talvez tenha visto — respondeu Niente. — Axat concede as visões que Ela quiser.

— Visões do quê? — Ele lembrou-se da fumaça, da rachadura na parede do palácio, das pessoas que corriam assustadas...

Niente não respondeu a Enéas. Ele jogou a água fora da tenda e secou a tigela com a bainha da roupa. Guardou-a na bolsa ao lado do colchonete de algodão que servia de cama. — Como você se sente, Enéas?

— Eu me sinto bem.

— Está na hora de você voltar para seu povo.

— O quê? — Enéas balançou a cabeça, sem acreditar. — Você disse...

— Eu disse que os soldados matariam você se tentasse escapar. E matariam mesmo, mas... não haverá lua hoje à noite. Axat está com o rosto escondido, e vem chuva. Haverá um cavalo do lado de fora de nossa tenda quando a tempestade chegar. No momento em que você ouvir a chuva, vá até o cavalo. Cavalgue sem parar; ninguém irá persegui-lo até o amanhecer. Se tiver sorte, se Axat lhe sorrir, você chegará a Munereo alguns dias antes de nós.

— Você está me deixando ir? Permitiria que eu avisasse meu povo e dissesse para eles ficarem prontos para o seu exército?

Niente sorriu e falou — O exército dos tehuantinos não tem o que temer do seu povo. Não aqui em nosso próprio país. Vá. Axat não quer que você morra aqui. Você foi preparado para outro destino, um bem melhor. Vá até o seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

— Preparado? Por quem, sua Axat? Eu não acredito Nela. Ela não é minha deusa e não controla meu destino, e eu não sou seu menino de recados.

— Ah. — Niente deitou-se no colchonete e puxou um lençol sobre o corpo para se abrigar da noite fria. — Bem, então fique aqui se é o que deseja. A escolha é sua.

— Que mensagem é essa?

— Você saberá quando for a hora.

Niente não falou mais nada. Depois de um tempo, Enéas ouviu os roncos do homem e ficou ali, pensativo. Ainda podia sentir o formigamento residual do cântico de Niente, como se as pontas dos dedos tivessem adormecido. Sentiu fisgadas nos braços e pernas, quase dolorosas, mas revigorantes ao mesmo tempo. A sensação manteve Enéas acordado pelo que pareceu ser várias viradas da ampulheta: enquanto Niente dormia, e os sons do acampamento diminuíam aos poucos até que ele só ouviu homens dormindo à sua volta e o barulho suave da chuva, que começou a bater no pano da tenda, acompanhada por clarões de relâmpagos e o rugido ocasional do trovão.

Ali perto, um cavalo relinchava.

Enéas saiu do cobertor e rastejou até a abertura da tenda. Lá fora, a chuva passou a cair de forma constante e formou poças agitadas pelos respingos. A alguns passos de distância, havia um cavalo de cabeça baixa que arrancava tufos de grama molhada. A criatura estava selada e embridada, mas as rédeas estavam penduradas, como se o animal tivesse sido puxado de onde havia sido posto. O clarão de um relâmpago iluminou o acampamento e congelou momentaneamente os riscos da chuva. O trovão bramiu por perto. O cavalo bateu os cascos, nervoso com a luz e o som, e Enéas pensou que ele pudesse fugir.

Era dever do soldado fugir, se possível.

Está na hora de você voltar para seu povo. Vá ao seu líder, fale com ele e leve uma mensagem por nós.

Enéas olhou em volta; era difícil enxergar na bruma da tempestade, mas parecia não haver alguém acordado. Os guardas do acampamento recolheram-se às tendas para se abrigar da tempestade. Ele reuniu coragem, ficou de pé do lado de fora da tenda. A chuva molhou seu cabelo e ensopou sua roupa quando ele caminhou até o cavalo, com a mão esticada enquanto murmurava suavemente para o animal, para encorajá-lo. O cavalo ergueu a cabeça, mas fora isso permaneceu imóvel e encarou Enéas. Ele pegou as rédeas e deu tapinhas no pescoço musculoso e molhado. — É chegado o momento — falou para o animal.

Poucos momentos depois, ele estava montado e foi embora a galope.

 

Jan ca’Vörl

QUANDO ELE ENTROU para tomar café da manhã com sua matarh, ela estava diante da janela do quarto com as persianas abertas, e Jan pensou ter visto o sol reluzir nos olhos de Allesandra como se, talvez, ela tivesse chorado recentemente. Se fosse o caso, ele fazia ideia do porquê. — O vatarh não deveria tratar a senhora desse jeito — disse Jan. — Especialmente com algo assim tão importante. Eu falei para ele como me sinto, também.

Allesandra virou-se para ele e pegou as mãos do filho. Os cantos dos lábios ergueram-se em um sorriso. — Não importa, Jan. Não mais. Não sou mais capaz de ser magoada por ele. — Jan sentiu o aperto dos dedos da matarh. — Além disso, ele me deu tudo o que eu realmente queria.

A a’hïrzg puxou Jan para perto e deu um beijo em sua testa. — Com fome? — perguntou ela. — Eu mandei a cozinha preparar rétes doces de queijo. Sei que você gosta deles. — Allesandra conduziu o filho até a mesa, cheia de sucos e leite, com ovos, bacon, fatias de pão e manteiga, e uma travessa de delicados strudels com um queijo branco e cremoso escorrendo. — Sente-se à minha frente para que possamos conversar. — Ela passou a travessa de rétes para Jan e sorriu quando ele pegou um.

— A senhora parece cansada, matarh.

— É? — Allesandra levou uma mão ao rosto. — Eu mandarei minha criada cuidar disso. Esse será um longo dia.

Jan deu uma mordida no strudel e saboreou a doçura do mel no queijo e o toque delicado de amêndoa da massa folhada. Ele sentiu que era observado pelo olhar da matarh. — Isso a incomoda? — perguntou o filho impulsivamente. — O onczio Fynn ser hïrzg, quero dizer.

— Já pensei muito a respeito disso. — A mão de Allesandra foi à bochecha novamente. — Confesso que não consegui dormir ontem à noite, pensando sobre esse assunto... — Ela hesitou e baixou o olhar para a toalha de mesa — ... entre outras coisas.

Jan ficou com medo de que isso fosse tudo que ela diria. — E...?

Allesandra sorriu. — Eu decidi que não quero ser hïrzgin. Cénzi tem outros planos para mim.

Jan observou o rosto da matarh à procura de uma mentira. Ele não conseguia se imaginar dizendo tal coisa se estivesse na posição dela, se seu direito de nascença tivesse sido roubado daquela maneira. No entanto, não viu nada na expressão que contradissesse o que Allesandra falou. — Que bom — disse Jan.

Um leve sorriso tocou os lábios de Allesandra. — Por que isso é bom?

— Porque eu gosto do onczio Fynn.

Como neve no verão, o sorriso desmanchou-se. — Jan, uma de suas características que eu adoro é que você está disposto a confiar nas pessoas que gosta. Eu não quero que você perca isso, mas precisa ter cuidado com Fynn.

— A senhora mesma não o conhece de verdade, matarh. A senhora disse isso.

— Eu disse. E não o conheço, mas você também não, não depois de passar alguns dias com ele. Fynn tem um mau temperamento. Ele pode ser generoso com aqueles que acha que são aliados, mas se suspeitar que a pessoa está contra ele...

— Acho que a senhora está exagerando as coisas — interrompeu Jan. — O onczio Fynn não tem sido nada além que gentil comigo, e ele não acha que a senhora esteja do seu lado. Seja justa, matarh.

— Eu sou. Mais do que você imagina. O que você diria se eu falasse que ele ameaçou você?

— Eu não acreditaria — respondeu Jan por reflexo, depois se deu conta de que estaria chamando sua matarh de mentirosa. — A não ser que a senhora mesma tenha ouvido da própria boca de Fynn. — Ele inclinou a cabeça para Allesandra. — A senhora ouviu, matarh?

Ela já estava balançando a cabeça e respondeu — Não, não ouvi. Ainda assim... prometa-me que você tomará mais cuidado com ele.

— Claro que tomarei — disse Jan e foi recompensado com a volta do sorriso da matarh.

— Ótimo. Agora me passe a travessa de rétes? Estou morrendo de vontade de prová-los...

 

Sergei ca’Rudka

A NOTÍCIA NÃO era boa.

O comunicado — o último relatório das contínuas batalhas nos Hellins — veio por envio expresso de Munereo, passou pelo Strettosei até a grande ilha de Karnmor, cruzou o Nostrosei, que ficava entre Karnmor e o continente, até a cidade de Fossano, depois seguiu por mensageiro pelo A’Sele até Villembouchure, e de lá até Nessântico. Com ventos favoráveis e mensageiros que não se importavam em exaurir os cavalos, a mensagem levou duas semanas para chegar. O número de baixas era suficiente para Sergei balançar a cabeça tristemente. Ele passou o papel para o archigos Kenne; o homem mais velho espiou como um míope, segurando o comunicado tão próximo ao rosto que Sergei não conseguiu ver sua expressão.

— Você deve notar, archigos, que agora nós não controlamos nada nos Hellins além da área imediatamente ao redor de Munereo, com um braço ao longo do mar que se estende ao norte, na direção de Tobarro — disse Sergei com impaciência, enquanto Kenne penava com a letrinha compacta do comandante ca’Sibelli. — Ter mandado o a’offizier ca’Matin e seu batalhão para enfrentar o exército ocidental foi um erro, na minha opinião, mas é um erro que já está feito e pago a esta altura, eu suspeito. Espero que ca’Matin ainda esteja vivo; ele é um dos poucos bons offiziers que temos lá. Eu acho que teria sido melhor se ca’Sibelli tivesse recuado para uma posição de defesa contra esta última ofensiva, em vez de tentar repelir os ocidentais, mas ca’Sibelli nunca gostou de defesa. Nós já perdemos a área do lago Malik. Suspeito que perderemos Munereo a seguir.

— Você mostrou isso para Audric? Falou para ele o que acabou de dizer para mim? — Os olhos de Kenne apareceram acima da borda do papel amarelo e grosso, depois sumiram novamente. Sergei ouviu o homem murmurar para si mesmo enquanto lia.

— Sim. Ele falou: “o comandante ca’Sibelli fez exatamente o que eu mandaria que fizesse. É como eu disse: precisamos de mais tropas”. — Sergei fez uma pausa e olhou em volta do gabinete do archigos. Não havia mais ninguém ali, mas o regente abaixou a voz mesmo assim; nunca se sabia quem poderia ouvir atrás das portas. — Nós discutimos; eu pensei que ele fosse morrer na minha frente, Audric estava tossindo e respirando muito mal. Ele ficou olhando por cima de mim para o quadro da kraljica Marguerite e dizia... — Ele hesitou novamente, sem saber quanto queria compartilhar com Kenne. — ... coisas perturbadoras. Audric insiste em convocar o Conselho dos Ca’ e exigir que receba autonomia como kraljiki. Ele quer arrancar meu título; não quer um regente em Nessântico.

O fato pareceu frio, dito sem rodeios. Sergei tinha visto o que Kenne não viu: a maneira como os gritos distorceram as feições de Audric, a vermelhidão que subiu pelo pescoço do menino e cobriu as bochechas, as gotas de saliva que voaram da boca, os olhos arregalados e perturbados.


— Eu sou o kraljiki! — berrou Audric para Sergei com os braços agitados. — Você vai fazer o que eu mandar, regente, ou mando jogá-lo na Bastida! — As últimas palavras foram gritos, cada um berrado a cada tomada de fôlego. A histeria de Audric fez com que os gardai do corredor, bem como seus camareiros, Marlon e Seaton, abrissem as portas do quarto para dar uma olhada. Sergei gesticulou para que fossem embora, e as portas foram fechadas novamente. Audric olhou por cima do regente, que se virou para trás. O quarto estava um forno, quente demais para o gosto de Sergei, as chamas da grande lareira iluminavam o retrato de Marguerite sobre o consolo. Audric encarava a mamatarh com lábios que se moviam sem emitir palavras.

— Este relatório, Audric, é prova conclusiva de que...

— Você irá se dirigir a mim com o devido respeito, regente, ou mandarei açoitá-lo na praça do palácio.

Sergei permitiu-se respirar fundo e conteve a resposta que ameaçava escapulir. — Kraljiki, esse relatório demonstra que os Hellins já podem estar perdidos. Ca’Matin é o melhor offizier que temos lá; francamente, eu confio mais na avaliação dele do que na opinião do comandante ca’Sibelli. Se ele não conseguiu deter os ocidentais...

— Então a fúria de Nessântico cairá de forma plena sobre eles — berrou Audric, que depois foi tomado por um acesso de tosse...


O resto da conversa não seguiu melhor.

— Pode não ser uma loucura genuína, Sergei. Talvez a doença dele ou uma febre... — começou Kenne.

— Não importa — interrompeu Sergei. — Doença ou simples loucura; não há diferença se não pode ser curada. Kenne, eu mesmo pretendo ir ao Conselho dos Ca’ e pedir que declarem Audric incapaz.

Kenne abaixou o papel ao ouvir isso. Sergei viu a tremedeira nos dedos do homem e ouviu o farfalhar do papel. O archigos franziu os lábios como se tivesse provado algo desagradável. — Alguns deles pensarão que você está tentando conquistar o poder, Sergei, que isso não é nada além de uma tentativa sua de se colocar no Trono do Sol. É o que Audric dirá para eles, suspeito. Certamente é o que eu diria para os ca’ no lugar dele. Eu posso ver Sigourney imaginando a mesma coisa.

— É isso que você pensa, Kenne? Com certeza você me conhece melhor que isso. — Sergei deu um muxoxo de desdém, balançou a cabeça e andou de um lado para o outro na frente do archigos. Eu não quero ser kraljiki. O que eu quero é bem pior do que você ou qualquer um dos ca’ imagina, e se soubessem, todos se recusariam a me ajudar...

— Não, Sergei. De maneira alguma — falou Kenne rápido. Rápido demais, na verdade. O homem não olhava para ele, o que indicava a Sergei que também havia dúvida na cabeça do archigos. Isso era ruim; se Kenne se perguntava sobre as intenções do regente, então o Conselho dos Ca’ não teria problema algum em imaginar o pior. — Isso tudo é apenas... tão preocupante — continuou o archigos. — Eu não sei o que pensar. Declarar um kraljiki incapaz... — Ele balançou a cabeça, os dedos tamborilaram sobre o relatório. — Ele ainda é um menino, afinal de contas. Um jovem. Jovens muitas vezes dizem coisas que talvez não devessem ou se empolgam mais do que deveriam, e quando o menino em questão não só é um ca’, mas também foi a’kralj e agora é kraljiki, bem...

— A questão não é juventude e privilégio, Kenne. Você não esteve lá. Não ouviu o que eu ouvi e não viu o que eu presenciei. Você viu indícios da situação nas últimas vezes que esteve com ele, mas isso... O que ouvi de Audric agora era pura loucura. E um kraljiki louco também afetará a Fé.


— Eu pegarei todos os ténis-guerreiros e mandarei para os Hellins — gritou o menino. — Todos eles. Todos aqueles que a Fé puder me dar...


— Sei que você acredita nisso, Sergei.

— Mas?

Mãos tão secas quanto uvas velhas ergueram-se da escrivaninha e repousaram de novo. O olhar do archigos pareceu alcançar o nariz de Sergei, apenas para ver o reflexo distorcido ali e voltar a cair. — Eu sei que você se importa apenas com Nessântico, Sergei. Sei que tem os interesses dos kralji e da fé concénziana em mente. — O regente encarou Kenne, em silêncio. À espera. — Mas — continuou o archigos finalmente —, talvez alguém com as, hum, “habilidades” de Ana ainda possa ser encontrado, e nós possamos trazer o menino de volta da beira da ruína. Sergei, nenhum kraljiki jamais foi deposto pelo Conselho dos Ca’. Nunca. Este é um passo que você não pode dar levianamente. Esse é um passo que temo que vá falhar e destruir você.

— Acredite em mim, eu conheço os riscos. — Sergei levantou-se da cadeira e pegou o relatório na escrivaninha de Kenne. — A guerra nos Hellins custa dinheiro e vidas, Kenne, e nos força a olhar para o lado errado. Quanto mais durar a guerra por lá, mais perigosa ela se torna para os Domínios. Audric está convencido de que a guerra nos Hellins será o triunfo de Nessântico. Não será. Será nossa queda.

— Eu sei que é isso em que você acredita.

Sergei não conseguiu evitar totalmente que a voz demonstrasse irritação diante das evasivas do velho. — É o que eu sei. O que tenho que saber de você, Kenne, é se terei seu apoio.

Um aceno de cabeça. — Eu quero apoiar você. Quero mesmo. Mas primeiro preciso rezar, Sergei. Você diz que acredita. Eu quero acreditar também e confio em Cénzi para me ajudar. Deixe-me rezar. Amanhã... nós nos falaremos, amanhã ou no draiordi no máximo...

Inútil. Isto é inútil... Sergei deu um sorriso falso e fez uma mesura e o sinal de Cénzi para o archigos. — Eu mesmo rezarei em seu nome, archigos, para que Cénzi fale com você em breve. — E é melhor que Ele fale. É melhor ou Nessântico poderá se ver esmagada entre as pedras do leste e do oeste.

Serguei pegou o comunicado da escrivaninha de Kenne. Ele foi até a lareira do gabinete do archigos e deixou o papel flutuar sobre as chamas. Viu o papel escurecer, enroscar-se, soltar fumaça e finalmente pegar fogo.

Ele imaginou a cidade fazendo a mesma coisa.

 

Nico Morel

NICO JAMAIS HAVIA SEGUIDO Talis antes. A matarh do menino trabalhava em uma taverna depois da esquina e do beco próximos à casa deles. Se Talis trabalhava, não era como os outros homens da vizinhança: em uma loja; como aprendiz de algum mestre; como um simples trabalhador, talvez nos engenhos onde gigantescas mós eram movidas pelos cânticos dos e’ténis, ou nas fundições ardentes do lado de fora das velhas muralhas da cidade, cujas fornalhas ardiam com o fogo do Ilmodo e dos cânticos de e’ténis de diferentes habilidades — que, em troca dos serviços, recolhiam uma porção dos lucros para a fé concénziana.

Nico ouvia a matarh ou outras pessoas no Velho Distrito reclamarem muito a respeito disso, que a Fé metia as mãos nos bolsos de cada grande indústria na cidade. A fofoca provocou pensamentos estranhos em Nico: ele imaginava mãos compridas em mangas verdes que saíam dos templos para arrancar moedas das bolsas da população. O menino perguntou-se por que os ténis precisavam fazer isso, pois sua matarh e todos os demais colocavam moedas nas cestas a cada cénzidi quando iam ao templo. Se Nico tivesse tantas moedas assim, ele poderia comprar um palácio na margem sul para viver com a matarh e Talis.

Talis...

Nico estava brincando de chute o sapo na rua com alguns dos outros meninos. Ele estava ganhando: já tinha chutado três vezes na poça o saco cheio de palha que era o sapo, mas seu amigo Jordis conseguira apenas uma vez, e os demais, nenhuma. Nico era bom em chute o sapo. Às vezes, quando jogava, ele sentia um frio estranho por dentro e quase era capaz de ver o sapo ir à poça, e quando chutava, o sapo espirrava bem dentro da água.

Nico retirou o sapo encharcado da poça pela quarta vez quando viu Talis sair da porta de casa e começar a subir a rua. Ele chutou o sapo para Jordis e os outros. — Volto já — disse o menino, e correu atrás de Talis.

Desde que viu Talis com a tigela de latão, ele andou vigiando atentamente seu vatarh sempre que podia. Nico viu e ouviu coisas estranhas quando Talis pensava que ele estava dormindo, até mesmo quando sua matarh estava dormindo também. Talis entoava e gesticulava igual a um téni, geralmente com a bengala diante de si. Quando ele fazia isso, Nico sentia os filamentos de frio no ar até que a bengala parecesse sugá-los para dentro.

Era muito estranho, mas as palavras — elas quase soavam como as palavras de sonho que Nico às vezes escutava, e ele queria saber mais.

A princípio, Nico tinha intenção de simplesmente alcançar Talis e perguntar aonde ele ia, mas quando o vatarh virou no primeiro cruzamento, com a bengala batendo nos paralelepípedos e andando em passos rápidos, como se estivesse com pressa para chegar a algum lugar, o menino decidiu ficar para trás e apenas observá-lo.

Talis andava tão depressa que Nico quase teve que correr para acompanhá-lo. Algumas vezes, quando ele virou para a esquerda ou direita no confuso emaranhado de ruas, o menino quase o perdeu, e quanto mais longe os dois iam, mais assustado Nico ficava — ele não sabia mais onde estava. Nem sabia qual seria o caminho de casa, ficou confuso pelas ruas sinuosas e tortuosas do Velho Distrito.

A luz do sol surgiu de repente à frente, e ele viu Talis fazer uma curva fechada à esquerda. Nico correu atrás do vatarh. O menino viu-se na confluência de um beco com o grande rio da Avi a’Parete, a enorme avenida que cercava o trecho interior da cidade. Ele foi atacado pelas cores, barulhos e movimento: as bashtas e tashtas de todos os tons e padrões imagináveis, as carruagens que passavam em meio às multidões (olha — aquela não tinha cavalos, apenas um téni como condutor, com um a’téni dentro), mil pessoas indo a algum lugar ao mesmo tempo: falando ou em silêncio, sérias ou rindo, juntas ou sozinhas. Os vendedores espalhados pelos muros anunciavam suas mercadorias; condutores gritavam alertas ou tocavam os sinos de aviso; uma dezena de conversas passou por Nico em um instante e foi substituída por outra dezena.

Os prédios aqui, ao longo da avenida mais famosa de Nessântico, pareciam tão grandiosos e altos quanto aqueles na margem sul, embora mais apinhados de gente e mais velhos. À esquerda, Nico viu píeres de uma ponte arqueada que levava à Ilha A’Kralji, onde o kraljiki e o regente viviam. No entanto, em meio à grandiosidade havia sinais de que nem todo mundo na cidade vivia tão bem. Mendigos sentavam-se encolhidos nas esquinas; a mais próxima de Nico, envolta em trapos imundos, parecia ter apenas um braço e o mesmo número de dentes na boca de gengivas vermelhas. Seus olhos eram brancos com cataratas, como a velha cega que morava do outro lado da rua de Nico.
O único braço, que chacoalhava uma caneca surrada de madeira com algumas d’folias de bronze no fundo, tinha uma mão com dedos de menos. A multidão que passava por ela ignorava a mendiga na maioria das vezes, como se as pessoas não a vissem.

Nico percebeu que não fazia ideia de para onde Talis havia ido na multidão. Ele olhou para a esquerda, depois para a direita, e o pânico subiu do estômago para a garganta. O menino correu na direção que achava que Talis tinha ido.

Uma mão agarrou seu ombro; Nico levou um susto e quase gritou.

— O que você está fazendo aqui, Nico? Por que está me seguindo? — Talis franziu a testa para ele, seus dedos agarraram o pano da camiseta de Nico.

O alívio conquistou o medo; Nico exclamou — Talis! Eu estava... você saiu e pensei em ver onde você estava indo e se eu podia ir junto, e aí eu já estava longe demais e fiquei com medo de que estivesse perdido.

A cara feia de Talis desmanchou-se aos poucos. — Você não sabe o caminho de casa?

Nico balançou a cabeça. — Por ali? — perguntou Nico hesitante ao apontar para um dos prédios atrás dele.

Talis bufou. — Só se você quiser tomar um banho no A’Sele. Eu devia simplesmente deixar você aqui — ele começou a falar, e o coração de Nico passou a bater mais forte, lágrimas surgiram em seus olhos, mas o homem continuou —, e Serafina me mataria se descobrisse. Eu já estou atrasado. Você terá que vir comigo, Nico.

Nico concordou enfaticamente com a cabeça. Ele abraçou Talis pela cintura quando o homem colocou a mão em sua cabeça e puxou-o para perto. — Sem me atormentar com perguntas, entendeu? Preciso encontrar uma pessoa.

— Quem você vai encontrar? — perguntou Nico, que engoliu em seco. — Desculpe, Talis — disse o menino, mas o homem já estava rindo.

— Você é um caso perdido, sabia? Vamos. Fique perto de mim, agora.

Com Nico correndo ao lado dele, Talis cruzou a Avi a’Parete, desviou-se de grupos de pessoas a passeio e parou aqui e ali para deixar uma carruagem passar, depois correu pelo caminho do próximo veículo. Quando os dois finalmente chegaram ao outro lado, Talis rapidamente entrou em uma pequena rua transversal, e a agitação, cores e glória da Avi a’Parete sumiram como se nunca tivessem estado lá. Eles viraram à esquerda, depois à direita, enquanto seguiam por uma viela estreita e tortuosa, e surgiram de repente — como se uma floresta feita de casas e prédios fosse contraída em um espaço diminuto — em uma área aberta.

Nico sentiu o cheiro do A’Sele antes de ver o rio: o fedor de peixe morto, dejetos humanos e água oleosa. Eles estavam em um mercado com dezenas de barraquinhas dispostas em fileiras ao longo da margem. À esquerda, Nico viu — do outro lado, desta vez — o grande arco da Pontica A’Kralji, e nas águas reluzentes do A’Sele, a Ilha A’Kralji com o Palácio do Kralji, o Velho Templo e a Residência do Regente. O menino olhou fixamente, depois se deu conta, com atraso, de que Talis já percorria os corredores do mercado, e andou rápido para alcançá-lo. Agora Nico descobriu que mal conseguia manter o olhar em Talis; ele não parava de ser distraído pelas mercadorias nas barraquinhas: grandes pilhas de cebolas, ervas penduradas para secar, peixes frescos e secos, facas brilhantes e pedras reluzentes, rolos de tecido, tamborins e alaúdes, montanhas de maçãs... — Isso aqui é melhor do que o mercado do Velho Distrito — falou ele em uma voz que ecoou seu deslumbramento.

— Isso não é nada — disse Talis. — Eu soube que na época da kraljica Marguerite dava para ouvir as bancadas gemerem com o peso das mercadorias que chegavam pelo A’Sele de todas as partes do mundo conhecido. Não dava para andar aqui por causa das multidões e dos vendedores. Qualquer coisa que se quisesse era possível comprar aqui, não importa o que fosse. — Talis parou. Eles estavam diante de uma barraca protegida do sol por um pano grosso e forrado. Na penumbra sob o toldo, uma grande forma moveu-se. Nico apertou a vista e protegeu os olhos com a mão. O dono da barraca era musculoso, tinha braços grossos que saíam das mangas soltas de uma bashta decorada com um desenho que lembrava talos de trigo. Ele abaixou o corpo, e Nico viu que o rosto era marcado por estranhas linhas brancas, como se a pele estivesse em carne viva. Entre as linhas, a pele intacta era quase da cor de cobre lustroso, como de uma pessoa das províncias do sul.

— Quem é o garoto? — perguntou o homem para Talis. A voz tinha um sotaque carregado que Nico não reconheceu até que Talis respondeu; aí ele notou que era uma versão mais forte e evidente do próprio sotaque do vatarh.

— Meu filho. Nico. — Talis deu um tapinha no ombro do menino com a bengala. — Não se preocupe com ele.

— A matarh do garoto faz você brincar de babá agora, Talis? Mahri ficaria tão orgulhoso.

— Cale a boca, Uly.

O homem riu como se tivesse achado graça no diálogo. Ele falou por um instante em uma língua complemente diferente, e Nico ouviu Talis responder no mesmo idioma. Talis entrou debaixo do toldo com o sujeito. — Fique aqui — falou ele para o menino. — Você pode olhar o que Uly tem para vender, mas não nos incomode.

Nico ouviu os dois homens conversarem na estranha língua deles enquanto mexia à toa nas mercadorias sobre as bancadas de Uly. Ouviu o nome “Mahri” mais algumas vezes. Finalmente, Uly derramou vários punhados de um pó preto e granulado em um saco de couro e entregou para Talis, que amarrou no próprio cinto. Os dois falaram por mais um momento, depois Talis pegou Nico pela mão e conduziu o menino para fora da barraca, na direção da Avi a’Parete. As perguntas saíam espontaneamente de Nico — ele não conseguia mais segurá-las.

— Você e Uly são do mesmo país?

— Sim, originalmente, embora nós dois estejamos longe de lá há muito tempo.

— Você é de Namarro?

— Não. — Talis não disse mais nada, e Nico permaneceu em silêncio enquanto eles cruzavam a avenida e entravam nas ruelas populosas do Velho Distrito novamente.

— Quem é Mahri, Talis?

— Ninguém hoje em dia. Ele está morto.

— Quem era ele, então? — insistiu Nico.

— Ninguém importante.

— Uly disse que Mahri ficaria orgulhoso de você. E eu ouvi Uly mencionar Mahri outra vez também.

— Você vai continuar a me amolar, não vai?

Nico ergueu o olhar para Talis, que não pareceu muito irritado, então ele concordou com a cabeça. — Você conheceu Mahri? Ele era seu vatarh?

Talis riu, embora Nico não soubesse o que tinha dito de tão engraçado, e balançou a cabeça. — Não. Mahri não era meu vatarh, e eu jamais o conheci. Apenas sabia a respeito dele.

— Por quê?

— Porque diziam que Mahri era capaz de fazer coisas que ninguém mais conseguia. Eu pensei ter dito sem perguntas.

Nico ignorou a última frase. — Que coisas?

Talis soltou um suspiro com tom de irritação. — Coisas que nem os ténis conseguem fazer com o Ilmodo deles.

— Ah. — Nico ficou calado ao ouvir aquilo. Todo mundo sussurrava que os ténis conseguiam fazer praticamente tudo com o Ilmodo, e havia rumores de que a archigos Ana também era capaz de fazer tudo que os numetodos faziam. Mas Nico sabia que Talis não acreditava em Cénzi e nem ia ao templo. Então talvez Mahri fosse um numetodo? E os ocidentais também não usavam magia? Ou talvez houvesse vários tipos de magia pelo mundo.

— Você quer ser igual a Mahri? — perguntou Nico.

Ele viu Talis levantar um canto da boca. — Isso depende do que você quer dizer, Nico. Eu não quero estar morto. — O homem riu, mas Nico torceu o nariz em uma careta de irritação.

— Não foi isso que eu quis dizer.

Talis abaixou a mão e desgrenhou o cabelo do menino, mas Nico deu um passo para trás. — Eu sei que não é o que você quis dizer — falou Talis. — E não acho que eu jamais queira ser como Mahri. Agora, será que nós podemos tentar chegar em casa antes que Serafina perceba que você saiu e vire a vizinhança inteira de cabeça para baixo à sua procura?

Talis parou de falar, pegou a mão de Nico e apertou o passo. A bolsa de couro macio e seu pó escuro balançaram no cinto. Nico espiou de rabo de olho enquanto os dois andavam.

Ele continuaria a ficar de olho em Talis. Talvez pudesse aprender a fazer magia também. Afinal de contas, os numetodos diziam que a maioria das pessoas podia fazer magia caso se esforçasse bastante. Nico era esforçado: ele sempre vencia no chute o sapo porque se esforçava bastante. Quando a pessoa fazia isso, era capaz de sentir a energia fria.

Ele ficaria de olho em Talis. Aprenderia a fazer o que Talis fazia.

 

Varina ci’Pallo

SE ELA FOSSE FORÇADA a seguir a carreira de espiã, Varina teria sido capturada e executada no primeiro dia.

Ela encostou o corpo na lateral de um boticário no limite do centro do Velho Distrito, olhou fixamente para a multidão reunida sob o sol intenso e procurou entre as pessoas por um rosto familiar, um que ela tinha perdido no labirinto do Velho Distrito. Varina ofegava um pouco pelo esforço de tentar alcançar o homem depois que ele fez uma curva brusca — ela chegou à esquina e viu que o sujeito não estava ali. Ele desapareceu.

— O que você pensa que está fazendo?

A pergunta, que surgiu atrás dela, assustou-a. Varina deu meia-volta com as mãos erguidas, pronta para falar uma palavra e lançar um rápido feitiço de repulsão, mas uma mão pegou seu braço quando ela se virou e a impediu de conjurar o feitiço, e ela olhou para o rosto que andou procurando.

— Karl...

Ele soltou a mão de Varina e deu um passo para trás. Ela não soube dizer se Karl estava irritado ou não. — Você estava me seguindo. — O olhar, como um mar revolto, sustentou o de Varina.

— Sim — admitiu ela.

— Por quê?

— Porque estou preocupada com você.

Ele riu como se tivesse achado graça. Isso deixou Varina mais irritada do que a expressão dele. — Você ou Mika? — vociferou ele. — Ou talvez Sergei?

Varina sustentou o olhar de Karl com ar de desafio e queixo empinado. Afastou o cabelo do rosto. — Todos nós. Todo mundo que conhece e gosta de você está preocupado, Karl, apesar de parecer que você não nota. Segui-lo foi minha ideia, porém. Não foi de Mika, nem de Sergei. Portanto, você pode gritar comigo se quiser, mas não com eles. Os dois não sabem.

— Eu não sou uma criança que precisa ser vigiada.

— Perdão. Não deixarei de contar isso para Sergei e para o embaixador co’Görin. Ambos ficarão contentes ao saber que você amadureceu.

Karl torceu o nariz novamente. — Aquilo foi um erro. Eu não o repetirei.

— Karl, você se convenceu de que foram os firenzcianos e estava pronto para ser juiz e executor em relação a eles. Agora está igualmente convencido de que é uma trama dos ocidentais e está perseguindo o fantasma de Mahri. Eu estou preocupada com você, sim. Mahri está morto; você não o encontrará. E estou ainda mais preocupada com o que você fará se encontrar algum ocidental, alguém que pode ser completamente inocente. Não sei dizer de outra forma que não sendo direta: faça o que Sergei lhe disse, deixe que eles tomem conta da investigação. Você não os está ajudando, nem a si mesmo.

— E o que eu devo fazer, Varina? — perguntou Karl. Ele contorceu o rosto, a pele abaixo dos olhos estava escura e empapuçada. Karl não aparava a barba há dias.

— Você disse que estava interessado no que eu poderia mostrar sobre o encantamento de objetos. Deixe-me ensinar para você. Vamos trabalhar nisso juntos. Eu certamente poderia contar com sua ajuda e seu conhecimento. Isso poderia tirar sua mente... — ela olhou ao redor — ... desta situação.

— Você não consegue entender. — Karl rangeu os dentes. — Apenas me deixe em paz. — O olhar de desprezo de Karl foi como um tapa na cara de Varina.

— Você já foi bastante magoado, Karl. Eu não quero vê-lo piorar as coisas para si mesmo.

— Eu não preciso de sua piedade, Varina, e não quero nem preciso de sua ajuda — disparou Karl. As palavras machucaram Varina. — O que eu preciso fazer para deixar isso claro para você?

— Você acabou de deixar. Deixou bem claro mesmo. — Dito isso, ela gesticulou para o espaço aberto e ensolarado do centro do Velho Distrito. — Vá em frente. Eu não seguirei mais você.

Com isso, sem arriscar uma olhadela para trás, Varina começou a ir embora para o sul, na direção da Casa dos Numetodos. Ela não olhou para trás. Varina disse para si mesma que não queria ver se Karl a observava ou não.

 

Allesandra ca’Vörl

BESTEIGUNG. O CERIMONIAL de coroação do novo hïrzg.

O dia nasceu brilhante e cooperativo, com o céu de um azul exuberante onde navios de nuvens brancas iam embora para o oeste. O calor cedeu, foi afugentado pela chuva purificadora da noite anterior. Cénzi abençoou o dia, e os ténis estavam radiantes, como se o lindo dia tivesse sido causado por suas preces.

Talvez tivesse sido mesmo.

Allesandra também rezou para Cénzi. Rezou para que o dia fosse como ela esperava, que não tivesse interpretado errado os sinais. E embora tenha rezado, Allesandra também fez questão de levar uma adaga embainhada no antebraço, debaixo das franjas e rendas da manga da tashta. Ela aprendeu há muito tempo com seu vatarh que jamais deveria estar sem uma arma.

O dia seria longo para Fynn — e para aqueles, como Allesandra, que eram obrigados a acompanhá-lo. Primeiro veio a cerimônia no Templo de Brezno na Primeira Chamada, onde o archigos deu ao novo hïrzg a Benção de Cénzi. Depois houve as exigidas visitas de estado: à tumba do hïrzg Kelwin, primeiro hïrzg de Firenzcia; ao templo perto do Palácio do Hïrzg, que continha um frasco de sangue de Misco, o fundador de Firenzcia; ao grande pedregulho rachado perto da praça principal de Brezno, onde diziam que os moitidis — a pedido de Cénzi — mandaram um furioso raio à terra para fulminar o exército de Il Trebbio, que invadira Firenzcia em 183 durante a Guerra das Três Gerações. Em cada local, aconteciam as cerimônias e os discursos obrigatórios, e os ca’ e co’ ouviam com atenção, gratos por não haver chuva torrencial, frio de rachar ou calor úmido para suportar além da frases imbecilizantes já esperadas.

Então veio a procissão final à nova estátua de Falwin I, erigida por Jan, o vatarh de Allesandra, após ele decretar a separação de Firenzcia dos Domínios — foi Falwin que liderou a revolta tragicamente malsucedida contra o kraljiki Henri VI em 418, e foi ali que Fynn erigiu o palanque onde, finalmente, a Coroa e o Anel de Firenzcia seriam oficialmente declarados como seus.

Quando o archigos ca’Cellibrecca passou por Allesandra na carruagem conduzida por um téni a caminho de seu lugar na fila de dignatários, ele inclinou-se para fora da janela e mandou o condutor parar o veículo. O e’téni interrompeu o cântico e as rodas desaceleraram. O archigos acenou para Allesandra sobre o símbolo do globo partido de Cénzi, pintado em ouro e lápis-lazúli. — Com licença um instante — disse ela para Jan e Pauli. Jan deu de ombros para a matarh; Pauli, envolvido em uma conversa com uma jovem bonita da família ca’Belgradin, não deu resposta alguma. Allesandra foi até a carruagem do archigos e fez o sinal de Cénzi para Semini. Francesca estava sentada ao lado do marido, nas sombras. — Cénzi sorriu para Fynn.

— É verdade — respondeu Semini. Ele diminuiu o tom de voz, o bastante para Francesca não ouvi-lo, praticamente inaudível com o tumulto dos músicos que começavam a marcha da procissão. — No entanto, a’hïrzg, eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque.

— Archigos?

Ele olhou para o fim da fila, onde aguardava a carruagem de Fynn, puxada por quatro cavalos brancos, um deles sem cavaleiro. — É realmente um lindo dia — falou Semini, mais alto agora. — Um bom dia para toda Firenzcia, creio eu. Condutor, eles nos esperam.

O e’téni recomeçou o cântico; as rodas rangeram ao começarem a girar novamente. Allesandra afastou-se da carruagem no momento em que Semini acenou com a cabeça para ela e recostou-se no assento estofado ao lado de Francesca, que lançou um olhar azedo para a a’hïrzg quando eles passaram. Allesandra viu o veículo entrar na fila logo atrás da carruagem do hïrzg.

Ela passou o dia nervosa, imaginando se ca’Cellibrecca realmente tinha a intenção de levar a cabo o que havia insinuado — ele não faria nada por conta própria, obviamente, mas trabalharia através de uma camada de intermediários; se algo fosse acontecer, o archigos também gostaria que acontecesse em público, onde poderiam ver que ele não estava envolvido, e onde houvesse maior impacto. Era exatamente o que ela mesma teria feito.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”

Allesandra sentiu um arrepio de medo sobreposto pela empolgação. Ela queria voltar correndo para o archigos e sussurrar três palavras para ele: “a Pedra Branca?” Se Semini concordasse com a cabeça, então o que Allesandra planejou seria realmente uma trama perigosa, dadas as lendas sobre o assassino. Diziam que a Pedra Branca mataria qualquer um que tentasse interferir na execução de um contrato. A Pedra Branca, diziam os mesmos rumores, era um mestre no uso de todas as armas; não havia ninguém que pudesse cruzar espadas com ele. Porém, a Pedra Branca sempre atacava suas vítimas isoladamente, não no meio de multidões. Não poderia ser ele... pelo menos Allesandra torcia para que não fosse.

Seja qual fosse o caso, o assassinato ocorreria em breve, então. E não importava a maneira como isso aconteceria, ela seria a pessoa que mais lucraria, se tomasse cuidado. Allesandra voltou a se juntar à família. — O que o archigos queria, matarh? — perguntou Jan. Pauli continuou conversando com a ca’Belgradin.

— Queria falar do tempo e, de acordo com Francesca, creditar-se por isso — disse Allesandra. Jan riu. — Sim, eu sei, a mulher não é nada além de previsível. Vamos pegar nossa carruagem, querido. A procissão está começando a andar. Pauli, odeio interromper sua tentativa de impressionar a jovem vajica, mas temos nosso dever...

Com uma careta de irritação, Pauli interrompeu a conversa e seguiu na direção de Allesandra, que seguia Jan até a carruagem aberta logo à frente do archigos. Ela viu que estavam sendo observados por Semini e Francesca, e acenou com a cabeça para ele. — Você não precisava ser tão estridente, minha querida — falou Pauli.

— E você não precisava ser tão óbvio — respondeu Allesandra. — Mas essa não é uma conversa que deveríamos ter em público, Pauli.

— Essa não é uma conversa que deveríamos ter de forma alguma, no que me diz respeito. — Pauli entrou na carruagem. Ele ajeitou o corpo desconfortavelmente no couro elegante do assento e bateu nas almofadas com os dedos. O som foi tão agudo e alto quanto se ele tivesse batido em madeira, e a almofada mal afundou. — Firenzcia tem um talento para fazer algo parecer atraente quando na verdade é extraordinariamente desconfortável — comentou Pauli. — Mas eu sei que você já tem intimidade com essa característica, minha querida.

— Vatarh! — falou Jan com rispidez, e Pauli, estranhamente, virou-se para olhar para fora da janela da carruagem. Allesandra sentiu o rosto ficar quente, mas não disse nada. Eles chegariam ao palanque em uma marca da ampulheta, e o dia seria o que seria. De qualquer maneira, Pauli acabaria sendo tão irritante quanto uma mosca, e ela enxotaria o marido com a mesma facilidade quando o momento certo chegasse. Com alívio.

A carruagem deu um solavanco e começou a andar, e por cerca de meia virada da ampulheta eles passaram pela principal avenida de Brezno, com as laterais apinhadas de moradores da capital e das cidades vizinhas. Todos eles vibravam e gritavam, empurravam e acotovelavam os utilinos e gardai posicionados ali no esforço de ver a elite de Firenzcia, os grandes visitantes de outros países da Coalizão Firenzciana e o novo hïrzg.

A praça ao redor da estátua de Falwin estava lotada por uma massa compacta, as carruagens da realeza percorreram um caminho aberto pelos gardai. Ao lado do palanque, eles foram escoltados pela subida por uma larga escada temporária até os lugares à sombra da estátua de Falwin. O antigo hïrzg erguia braços de bronze sobre eles, com a enorme espada em riste. Allesandra podia sentir o som da multidão, os gritos e aplausos aumentaram quando Fynn apareceu na plataforma, com as mãos estendidas como se fosse abraçar todo mundo. Ele regozijou-se com a adulação da multidão, destacado pela luz intensa do sol. Allesandra sentiu uma pontada de inveja ao ver o irmão.

A a’hïrzg estava logo à esquerda de Fynn com Jan próximo a ela, a seguir Pauli (que já se virava de costas para falar com a moça ca’Belgradin novamente); Semini estava à direita do hïrzg com a coroa de archigos na cabeça e o robe cerimonial dourado e esmeralda. Allesandra olhou de relance para ca’Cellibrecca, parado ao lado da azeda Francesca, que parecia ser a única que não estava completamente impressionada com os eventos. Semini acenou com a cabeça sutilmente.

Quando? Quem? Como?

Fynn começou a falar, a voz foi amplificada pelos esforços de dois o’ténis que entoavam um cântico baixinho de ambos os lados do hïrzg. Ela retumbou sobre as massas, a voz possante de um semideus que gritava dos céus. — Firenzcia, estou diante de vocês como seu criado e agradeço humildemente pela dádiva de sua confiança.

Um rugido respondeu ao hïrzg, que ergueu os braços novamente. Porém, a atenção de Allesandra foi desviada. A a’hïrzg vasculhou a linha de frente da multidão, vasculhou as pessoas com ela na plataforma. Havia gardai no parapeito do palanque de ambos os lados de Fynn, que olhavam fixamente para fora e para baixo — certamente eles veriam algo preocupante ali antes que estivesse visível para ela.

“Eu não ficaria tão perto do novo hïrzg no palanque...”. Um ataque mágico então? Uma bola de fogo como aquelas dos ténis-guerreiros? Semini tinha sido um téni-guerreiro, afinal. Mas o archigos certamente não usaria o Ilmodo ou arriscaria que outra pessoa usasse quando tal coisa atrairia suspeita para os ténis e, portanto, para ele.

— Como seu hïrzg, eu prometo que continuarei com o desejo de meu vatarh de tornar Firenzcia a primeira entre todas as nações...

Allesandra deu uma olhadela para trás. Os ca’ e co’ e dignatários visitantes estavam dispostos atrás dela, e, ao fundo, os criados aguardavam. Não havia nada anormal ali. Allesandra começou a se virar novamente quando um movimento chamou sua atenção.

— ... um sonho que deseja ver Brezno como o centro do mundo...

Um dos criados vinha à frente com uma bandeja e uma jarra de água. Ele andava lentamente pelas fileiras, murmurava desculpas ao passar cuidadosamente pelas pessoas. Andava na direção de Fynn. A atenção do criado jamais pareceu deixar o irmão de Allesandra, que se assustou com alguma coisa na intensidade do olhar do homem. Semini, na ação mais indicativa de todas, sussurrou algo para Francesca e deslizou para longe de Fynn, na direção do outro lado da plataforma.

Existem aqueles que usam magia e são inimigos de Firenzcia, que matariam o novo hïrzg de bom grado e não levantariam suspeitas sobre o archigos, de maneira alguma. Allesandra sentiu um arrepio de medo; ela não estava mais certa de seu plano. Tinha esperado que o ataque fosse físico: uma faca, uma espada, uma flecha. O vatarh não teria hesitado, não se pensasse que ainda havia uma chance de sucesso. E você é a filha dele, a mais parecida com ele...

— Jan — disse ela ao se inclinar para o filho. — Aquele homem, o criado atrás de nós, que está avançando com a bandeja; não, não olhe diretamente para ele, mas você o vê?

Jan moveu a cabeça rapidamente para a esquerda, depois voltou. — Sim.

— Ele é um numetodo. Um assassino.

Jan pestanejou. — O quê?

— Acredite em mim — sussurrou Allesandra furiosamente. No palanque, Fynn ainda declamava. “Um novo dia para Firenzcia, um novo alvorecer...” — Quando ele pousar a bandeja, tudo que ele precisa fazer é falar uma palavra e gesticular com as mãos; não podemos deixar que isso aconteça. Vou confrontá-lo para atrasá-lo; você vem pelo lado. Ande! — Ela empurrou o filho. Com uma olhadela, Jan virou-se e murmurou desculpas enquanto escapuliu para os fundos, através das fileiras dos ca’ e co’. Pauli olhou para eles, curioso, e depois voltou sua atenção para a jovem ca’Belgradin. Allesandra entrou cautelosamente atrás de Fynn e virou-se para encarar o criado.

Havia apenas poucas pessoas entre eles. O criado com a bandeja parou ao ver que ela virou-se para encará-lo, e seu rosto ficou tenso. Por um momento, Allesandra pensou que estivesse enganada, que o homem não era nada mais do que fingia ser. Mas os próximos instantes jamais seriam esquecidos por ela.

... o criado jogou a bandeja para o lado (os ca’ e co’ perto do homem reagiram tarde demais quando a bandeja, a jarra, a caneca e a água caíram em cima deles). O sujeito ergueu as mãos como se fosse rezar...

... Allesandra atirou-se em cima do criado, apenas para ser impedida pelas pessoas entre eles, que contiveram seu avanço...

... um fogo surgiu entre as mãos do assassino quando ele bradou uma única palavra que soava como a língua dos ténis. Allesandra esperou morrer naquele momento, consumida pelo fogo mágico que também mataria seu irmão...

... mas Jan esbarrou no numetodo na hora em que ele abriu as mãos, derrubando o criado. (Em volta dos dois, bocas eram escancaradas em meio aos gritos, a maioria dos ca’ e co’ ainda não tinha se dado conta do que acontecia e perguntava-se por que tinha sido empurrada por este jovem mal-educado ou por que aquele criado trapalhão arruinara sua roupa elegante. Atrás dela, Allesandra ouviu Fynn gaguejar e ficar calado. Ela podia imaginá-lo se virando devagar para ver a comoção às suas costas.) O fogo mágico fez um arco para os lados e para cima, em vez de ir na direção de Fynn e Allesandra. Os ca’ e co’ gritaram quando foram tocados pelo fogo, que irrompeu entre eles e virou uma bola de fogo que explodiu na altura dos olhos da estátua de Falwin. Uma luz vermelha pulsou e morreu, mais intensa que o sol, e agora a multidão gritava também.

— Jan! — berrou Allesandra, em pânico. Ela avançou para chegar até o filho, que parecia incólume e brigava com o numetodo, embora o homem parecesse curiosamente letárgico nas mãos de Jan, como se atordoado pela reviravolta. Ao redor dos dois, havia caos. Allesandra ouviu Fynn gritar.

Ela sacou a adaga da manga, ajoelhou-se rapidamente, cravou a arma debaixo do queixo do homem e puxou para o lado com violência. O sangue jorrou como um chafariz, espesso e grosso ao escorrer pela mão e pelo braço de Allesandra. — Matarh! — disse Jan, e ela ouviu o horror na voz do filho quando o sangue também espirrou sobre ele. Mãos agarraram os dois; os gardai chegaram com espadas em punho e empurraram os ca’ e co’ para o lado. Fynn berrava ordens.

— Quem fez isso? — Allesandra ouviu o irmão gritar às suas costas. Ela virou-se para Fynn com a parte da frente da roupa arruinada pelo sangue.

— Meu filho salvou sua vida e a minha, meu hïrzg, meu irmão. E eu garanti que este assassino jamais ataque você novamente.

A sombra fria da estátua de Falwin tocou Allesandra. Ela viu o archigos ca’Cellibrecca atrás de Fynn, e a confusão e a dúvida lutavam com o horror na cara barbuda de Semini. Allesandra achou que havia quase uma decepção no jeito como Fynn olhava para o corpo. Pauli chegou à frente e parou estupefato ao lado de Fynn quando Allesandra deixou a adaga cair dos dedos. A arma fez um barulho alto sobre as tábuas do palanque.

— Eu preciso me limpar dessa imundície — disse Allesandra calmamente. — Fynn, fale com seu povo. Acalme as pessoas. Tranquilize-as. Isso é o que o hïrzg precisa fazer.

Ele torceu o nariz para a irmã: Fynn sempre fazia cara feia quando alguém ousava dar uma ordem para ele. Mas o hïrzg virou-se para a multidão horrorizada e preocupada e começou a falar.

 

 

A Pedra Branca

ELA ASSISTIU À TENTATIVA de assassinato no meio da multidão, a salvo e sem ser notada. Que trapalhada horrível, pensou a Pedra Branca, enquanto as pessoas ficavam boquiabertas, gritavam e berravam à sua volta. Uma trapalhada estúpida ainda por cima.

Uma faca era uma arma bem melhor do que magia. Furtividade era muito melhor do que um ataque brutal. Deve-se estar presente para ver os olhos da vítima quando se ataca. Deve-se sentir o calor no sangue escorrendo pelas mãos.

Ela aprendeu as habilidades com faca na tenra idade, nas ruas populosas de An Uaimth. O corpo ainda tinha as cicatrizes daquelas lições, e a Pedra Branca pensou mais de uma vez que morreria por causa delas. Seus professores foram a escória da sociedade, gente corrompida e sombria, violenta e perturbada demais para ser tolerada pela sociedade educada. Eram perigosos, e ela viu-se abusada, usada e machucada por eles mais de uma vez. Porém, os professores tinham as habilidades físicas que a Pedra Branca queria ter, adquiridas com sangue, dor e fúria. Ela aprendeu bem essas lições e tirou de cada um deles o que foi possível.

A Pedra Branca jamais deixaria alguém se aproveitar dela. Jamais seria fraca. Jamais se deixaria ficar vulnerável.

Ela teve que matar alguns de seus “professores” quando ficaram muito perigosos ou tentaram se aproximar demais, quando começaram a bisbilhotar ou adivinhar seus segredos. Ela deixou seu cartão de visitas com cada um deles, um seixo branco sobre o olho esquerdo. A Pedra Branca... Ela começou a ouvir o nome sussurrado nas ruas. O assassino sempre deixa uma pedra branca no olho esquerdo...

As pessoas sempre presumiam que era “ele, o assassino”; isso também era uma proteção. Ela podia andar por qualquer lugar e nunca ser suspeitada.

E nunca se soube que eram sempre duas pedras; que ela tirava uma do olho direito da vítima para manter consigo. Para manter as vítimas consigo.

Aquela pedra ficava na pequena bolsinha de couro pendurada em seu pescoço, aninhada entre os seios, debaixo da roupa. Aquela estava sempre com o assassino.

Ela tocou a bolsinha enquanto o povo avançava na direção do palanque, quando a a’hïrzg levantou-se coberta pelo sangue do assassino e o novo hïrzg ergueu as mãos para a multidão e gritou para que as pessoas ficassem calmas.

A Pedra Branca sorriu diante disso.

A morte... a morte era sempre calma.


??? TENDÊNCIAS ???

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Sergei ca’Rudka

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Karl ca’Vliomani

Nico Morel

Enéas co’Kinnear

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— É COM IMENSO PRAZER e gratidão que eu lhe concedo a Estrela dos Chevarittai. Você pode ser jovem, chevaritt Jan ca’Vörl, mas não conheço ninguém mais merecedor do título.

O aplauso fluiu entre as pessoas que assistiam na antecâmara no salão de baile do Palácio de Brezno. Jan deu um sorriso radiante quando Fynn — que usava a coroa dourada de hïrzg no cabelo e o anel com sinete no dedo — prendeu a estrela dourada na faixa vermelha de ombro de sua bashta, depois entregou um presente que pertencera ao vatarh de Allesandra e homônimo de Jan: uma espada de aço escuro firenzciano, endurecida pelo fogo e pela água fria, e afiada como uma navalha. Allesandra viu Jan pegar o punho incrustado da arma e enfiar a espada na bainha. Fynn amarrou-a ao cinto de Jan, depois abraçou o sobrinho enquanto os aplausos aumentavam. Parada próximo aos dois, Allesandra ouviu as palavras que Fynn sussurrou no ouvido de Jan.

— Aquele foi realmente um ato de bravura, sobrinho, embora eu não corresse perigo real. Eu certamente teria saído do caminho do feitiço daquele idiota.

Para Allesandra, o verdadeiro idiota era Fynn. A bravata já era ruim, e ele ignorou o papel que Allesandra teve em salvar sua vida. Foi como se ela não tivesse estado ali de forma alguma, como se Jan tivesse notado o assassino por conta própria.

Allesandra disse para si mesma que não se importava, que isso apenas correspondia às baixas expectativas que tinha de seu irmão, mas o pensamento não a convenceu. A porta para o salão de bailes abriu um momento depois, e Fynn gesticulou. — Venham, vamos todos aproveitar essa celebração — falou o hïrzg para os ca’ e co’ e os chevarittai reunidos. Fynn passou o braço pelos ombros de Jan, e juntos os dois entraram no salão quando os músicos começaram a tocar e uma dezena de e’ténis entoou para acender todas as lâmpadas do aposento ao mesmo tempo. Pauli ofereceu o braço à Allesandra; ela aceitou, por dever e aparência, e o casal seguiu. Atrás deles, entraram o archigos Semini e Francesca.

Allesandra sentiu o olhar de Semini em suas costas.

Em seguida à tentativa de assassinato, houve um expurgo a qualquer um em Brezno que fosse suspeito de ser numetodo. Isso, certamente, também era esperado. Houve outro expurgo, um pouco menos brutal, dentro do corpo de funcionários do novo hïrzg — o que confirmou o que Fynn dissera para Allesandra sobre como ele trataria qualquer um que se opusesse a ele. Cada criado, todo mundo abaixo do status de co’ empregado pelo palácio, foi interrogado pelo comandante da Garde Hïrzg. Uma meia dúzia de funcionários, suspeitos como simpatizantes dos numetodos, foram levados para a Bastida para serem interrogados com mais afinco. O mestre do palácio, que contratara o pretenso assassino, foi considerado culpado por negligência. Seu cargo foi tomado, a família reduzida a ce’, e o próprio mestre perdeu as mãos como castigo. A família do assassino foi presa; ninguém mais os viu desde que entraram na Bastida. Um numetodo que disseram ter ajudado o assassino foi chibatado e esquartejado na Praça de Brezno. Ele foi mantido vivo cuidadosamente pelo carrasco pelo máximo de tempo possível, e seus gritos ecoaram entre os prédios enquanto a multidão assistia e gritava insultos e caçoadas para o homem. O corpo do assassino, infelizmente morto durante o ataque, foi pendurado e exposto publicamente em uma jaula de ferro que balançava em uma corrente na espada de Falwin. Dobraram o número de gardai em volta do palácio, com soldados da Garde Firenzcia, trazidos para reforçá-los. Rumores voavam pela cidade tão rapidamente e tão numerosos quanto pardais.

Dois ca’ foram mortos no ataque pelo feitiço errante; seus funerais foram caprichados e atraíram um bom público. Mais seis espectadores no palanque foram queimados e feridos no ataque, quatro gravemente; dizia-se que tinham sido muito bem compensados pelos cofres do hïrzg para manter as famílias caladas e satisfeitas.

Allesandra ainda podia sentir a tensão no ar, mesmo durante esta celebração. Os criados mantinham a cabeça baixa por prudência, e se alguém notou os gardai que vigiavam as festividades perfilados pelas paredes ou o impressionante número de ténis presentes, ninguém comentou. Era melhor sorrir e permanecer calado.

Pauli dançou com Allesandra uma vez — o mínimo de exigência conjugal. Assim que a dança acabou, ele pediu licença. Ela sabia que, dali em diante, só veria Pauli de relance do outro lado do salão, e que em pouco tempo descobriria que o marido sumiu de vez e que somente retornaria em algum momento cedinho de manhã para seu próprio quarto separado, na ala de visitantes do palácio. Jan também dançou com Allesandra, mas as atenções do filho eram exigidas por Fynn e pela multidão de bajuladores em volta do hïrzg. As moças, em especial, pareciam considerar a presença de Jan bastante agradável. Allesandra decidiu que teria que prestar muita atenção ao filho pelo resto da estadia em Brezno quando viu uma ca’ jovem e solteira pegar o braço de Jan e levá-lo para a pista de dança.

— A senhora me surpreendeu, a’hïrzg. — A voz de Semini surgiu atrás dela. — Eu não sabia que tinha um amor tão grande por seu irmão a ponto de se colocar entre ele e um assassino, mesmo que o hïrzg pareça ter convenientemente se esquecido de que a irmã fez isso.

Allesandra olhou em volta para garantir que não havia ninguém que pudesse ouvir, depois se virou para o archigos e inclinou o corpo para sussurrar. — E eu fiquei surpresa que o archigos contratasse um numetodo.

Seu sorriso talvez tenha tremido levemente, seus olhos talvez tivessem se apertado. — Eu jamais faria isso, a’hïrzg.

— Não há necessidade para falsa modéstia, Semini. Eu achei a ideia brilhante quando percebi a ironia.

— Eu não sei do que a senhora está falando, a’hïrzg — respondeu ele com intransigência.

— Ah, mas sabe, sim. E agora você está em dívida comigo, archigos. Afinal de contas, o assassino não foi capaz de responder a quaisquer perguntas embaraçosas depois, não é? Isso fui eu que fiz por você, archigos, embora meu irmão tenha ficado terrivelmente desapontado por não haver alguém para torturar depois. Venha, você quer saber por que eu fiz aquilo, não quer? Vamos tomar um pouco de ar, archigos, onde possamos ser vistos, mas não ouvidos.

Allesandra conduziu Semini para a entrada aberta de uma sacada, que estava vazia. Ela ficou diretamente voltada para as portas, onde qualquer um que olhasse pudesse vê-los. A música passou por eles e flutuou noite afora; Allesandra e Semini podiam ver as pessoas dançando, entre elas o hïrzg e Jan. Ela virou-se para olhar os jardins, iluminados por centenas de lâmpadas mágicas; alguns casais passeavam por lá. — Isso quase me lembra Nessântico e a Avi... — A a’hïrzg voltou-se do parapeito. — Quase. Eu percebo que sei muito pouco a respeito de sua vida pessoal, archigos. Você algum dia já foi a Nessântico?

Sergei concordou com a cabeça. Ele observava Allesandra como um cão desconfiado observaria outro. — Eu fui ordenado aqui em Brezno por Orlandi ca’Cellibrecca, meu vatarh por casamento, mas como um jovem o’téni eu viajei com ele para Nessântico várias vezes quando Orlandi era o a’téni de Brezno.

— Então sem dúvida você entende por que Nessântico sempre foi o centro dos Domínios. Há uma grandiosidade e uma história lá que ninguém consegue sentir em qualquer outro lugar. Dá para entender por que, quando os Domínios forem reunificados, Nessântico será o centro do mundo conhecido novamente. Tenho certeza disso. — Allesandra tocou o braço dele e sentiu o archigos puxá-lo de volta. — Eu quero lhe agradecer, Semini. Você me deu a oportunidade perfeita para demonstrar a Fynn como eu era leal a ele, apesar da maneira como meu vatarh me dispensou como herdeira; apesar da paranoia e das suspeitas de Fynn a meu respeito; apesar de todas as discussões e brigas que tivemos. Meu irmão jamais suspeitará novamente que eu ou Jan conspiraríamos contra ele.

Mesmo na penumbra da sacada, iluminada apenas por lâmpadas mágicas postas em ambas as pontas do parapeito, ela pôde ver a cor do rosto de Semini escurecer. O archigos cerrou os punhos ao lado do corpo e afastou o olhar de Allesandra. Ele não disse nada.

— O kraljiki Audric não viverá muito tempo, pelo que me dizem — continuou ela. — Eu descobri que realmente não quero ser a hïrzgin, Semini, mas quando chegar o dia em que os Domínios estiverem unificados, digamos, sob uma kraljica, eles precisarão de um hïrzg forte para ser sua espada, o papel que Firenzcia sempre cumpriu. Agora, meu filho dará um grande hïrzg um dia, não acha? Um líder maravilhoso.

Semini arregalou os olhos um pouco. — Você quer...

— Sim — respondeu Allesandra antes que ele pudesse terminar a pergunta.

— Você assumiu um risco incrível, Allesandra.

— Sim, admito que você me surpreendeu bastante com sua audácia. Eu quase decidi apenas deixar que acontecesse. Porém, grandes ambições exigem grandes riscos, como você obviamente entende. E você me deve pelo risco que corri, Semini, porque depois eu garanti que a tentativa de assassinato não pudesse conduzir facilmente até você. Eu destruí a prova que podia falar.

— Eu não tive nada a ver com...

Ela dispensou o protesto fraco com a mão. — Ora, vamos. Apenas a lua pode nos ouvir aqui, e ambos sabemos a verdade. Ainda há provas contra você, caso eu seja forçada a revelá-las. Ambos sabemos que se eu relatasse para Fynn algumas das conversas que tivemos ou dissesse para ele sobre a missiva que você recebeu do regente de Nessântico — diante disso, Semini arregalou ainda mais os olhos, e Allesandra soube que o palpite estava certo —, bem, nós sabemos que os interrogadores na Bastida conseguem extrair uma confissão plena de qualquer um. Fynn daria ordens para que se fizesse um interrogatório assim, mesmo com o archigos, caso eu insistisse. Afinal de contas, eu sou sua leal irmã, que se colocou entre ele e aquele numetodo desprezível. E se você tentasse dizer para Fynn que eu estava envolvida também, ora, minhas ações e as de Jan tornariam a acusação uma mentira, não é?

— O que você quer? — perguntou Semini com grosseria. O archigos deu um passo para trás, como se a presença dela fosse infecciosa. Aquilo agradou Allesandra; significava que toda aquela dissimulação tinha acabado. Os belos olhos escuros do archigos brilharam com os reflexos das lâmpadas mágicas abaixo deles, a postura de Semini era a de um urso acuado, forte e pronto para se defender até a morte. Ela descobriu que gostava disso.

— Na verdade, eu não quero nada além do que você mesmo queira. Nós ainda estamos do mesmo lado, embora eu sinta que você tem dúvidas quanto a isso. Eu gosto de você, Semini, gosto mesmo. Gostaria que se tornasse o Único Archigos. E será, se fizer o que eu mandar. Você cometeu dois erros, Semini. Um foi pensar que Fynn só seria útil para nós morto quando, na verdade, nós queremos ele vivo. Por enquanto.

— E o segundo?

Ela inclinou a cabeça para o lado e observou Semini. — Você pensou que fosse a pessoa que deveria tomar as decisões por nós. Não espero que cometa esse erro novamente. Na época em que fui refém em Nessântico, a archigos Ana muitas vezes dizia que o archigos sempre serve a dois mestres: Cénzi, em nome da Fé, e a pessoa no Trono do Sol, em nome dos Domínios.

Allesandra tocou o braço dele novamente. Desta vez Semini não recuou, e ela deu o braço ao archigos. — Vamos dançar juntos, archigos, uma vez que nenhum dos nossos respectivos cônjuges parece se importar. Vejamos quão bem nos movemos juntos.

Allesandra insistiu que Semini saísse da sacada e entrasse no barulho e na luz do salão de baile.

 

Enéas co’Kinnear

— CÉNZI SEM DÚVIDA OLHA pelo senhor, o’offizier co’Kinnear, embora as notícias que traz sejam muito perturbadoras. — Donatien ca’Sibelli, comandante das forças dos Domínios nos Hellins e irmão gêmeo de Sigourney ca’Ludovici do Conselho dos Ca’, andava de um lado para o outro atrás da mesa enquanto Enéas permanecia em posição de sentido diante do superior. A sala era um reflexo do homem: limpa e escassa, sem nada que distraísse os olhos. O tampo da mesa era polido, com uma única pilha de papel em cima, alinhada perfeitamente com a borda do móvel. Havia um pote de nanquim e uma pena do outro lado, com um areeiro que formava um ângulo reto perfeito acima deles. A cesta de lixo estava vazia. Havia uma única cadeira de madeira simples diante da mesa. Em um canto, o estandarte azul e dourado de Nessântico pendia frouxo em um poste.

Ca’Sibelli, pelo menos em seu gabinete, não permitia que nada se intrometesse em seu dever como comandante. Não havia como duvidar da lealdade ou bravura do homem — ele lutara muito bem contra uma força adversária muito superior na Batalha dos Brejos e fora condecorado e promovido pelo kraljiki Justi, sua irmã servia ao Estado da maneira dela, mas Enéas sempre suspeitou que o cérebro do homem tinha tão pouca mobília quanto seu gabinete.

— Sente-se, o’offizier — disse ca’Sibelli, que apontou para a cadeira e sentou-se na própria. Ele tirou a folha de cima dos relatórios e colocou diante de si enquanto Enéas se sentava. O indicador do comandante percorreu o texto enquanto ca’Sibelli vasculhava o documento. — O a’offizier ca’Matin fará muita falta. Deve ter sido horrível vê-lo ser sacrificado aos caprichos dos falsos deuses que aqueles selvagens idolatram, e o senhor é extremamente afortunado por ter evitado o mesmo destino, o’offizier.

O próprio Enéas tinha pensado nisso, e os offiziers que o interrogaram desde seu retorno muitas vezes disseram a mesma coisa, alguns com uma insinuação de acusação na voz. Ele passou três dias cavalgando pelo ermo território ao redor do lago Malik e manteve o cavalo na direção nordeste. No quarto dia, fraco e faminto, com a montaria praticamente exausta, Enéas vislumbrou cavaleiros em um morro. Eles também o viram e vieram galopando em sua direção. Enéas esperou pelos homens, ciente de que não conseguiria fugir dos cavaleiros, fossem amigos ou inimigos. Cénzi sorriu para ele novamente: o grupo era uma pequena patrulha de reconhecimento dos Domínios, e não soldados ocidentais. Eles o alimentaram, ouviram espantados sua história, e o trouxeram de volta para seu posto avançado.

Nos dias seguintes, conforme notícias foram mandadas para Munereo e uma ordem enviada de volta para Enéas retornar para lá, ele soube que somente um terço do exército liderado pelo a’offizier ca’Matin conseguiu se arrastar de volta depois da retirada caótica. Da própria unidade, Enéas era o único sobrevivente. O choque da notícia fez Enéas se ajoelhar e rezar para Cénzi pelas almas dos homens que ele conhecera e comandara. Muitos morreram a esta altura. Homens demais. Ele ficou atordoado e confuso pela perda.

Neste momento, Enéas simplesmente concordou com a cabeça diante do comentário do comandante e observou o homem continuar a ler e murmurar para si mesmo.

— Os nahualli estavam com o exército então. Nossa informação estava errada.

— Sim, senhor. Eu lutei contra eles várias vezes e nunca tinha visto feitiços como aqueles: o fogo explodiu do chão embaixo de nós, aqueles círculos de areia escura... — Enéas engoliu em seco ao se lembrar. — Um daqueles feitiços foi disparado perto de mim, e eu não me lembro de nada depois daquilo até... depois de a batalha já estar encerrada. Eles pensaram que eu estava morto.

— Cénzi colocou Sua mão sobre o senhor e o salvou — comentou ca’Sibelli, e Enéas concordou com a cabeça novamente. Ele acreditava nisso. Com o passar dos dias, cada vez mais tinha certeza, desde que saíra do acampamento tehuantino. Cénzi abençoou-o. Cénzi salvou-o por um motivo especial: Enéas sabia disso. Podia sentir. À noite, ele parecia ouvir a voz de Cénzi dizendo o que queria que Enéas fizesse.

Ele obedeceria como qualquer bom téni faria.

— Cénzi realmente esteve comigo, comandante. — Enéas sentia isso com fervor. Que outra resposta haveria? Ele esperava morrer e, no entanto, Cénzi fez contato com o pagão Niente e tocou o coração do homem. Era a única explicação. E apesar da fome e da sede, apesar da exaustão que sentiu ao fugir dos ocidentais, de certa maneira Enéas jamais se sentiu assim tão revigorado, tão cheio de vida e vivo. A própria alma ardia dentro dele. Às vezes, Enéas era capaz de sentir a energia formigar na ponta dos dedos. — É por isso, comandante, que fiz o pedido de retornar a Nessântico. Eu acho que esta é a tarefa pela qual Cénzi me poupou.

Havia um destino para Enéas cumprir. Foi por isso que ele escapou dos ocidentais; foi Cénzi que trabalhou de dentro do nahual Niente. Certamente não foi o ato do falso deus deles, Axat.

Ca’Sibelli franziu um pouco a testa diante do último comentário de Enéas. Ele mexeu na papelada novamente. — Eu preparei um relatório para enviar a Nessântico — continuou ca’Sibelli — e uma recomendação para uma condecoração para o senhor, o’offizier co’Kinnear. Porém, ainda assim, sua experiência e liderança farão falta aqui, especialmente com a perda do a’offizier ca’Matin.

— É muita gentileza de sua parte, comandante — respondeu Enéas. Não era de seu feitio reclamar de ordens, mas Cénzi era uma autoridade superior. — Mas relatórios são secos, e as pessoas em Nessântico, especialmente o regente e o kraljiki, precisam saber como nossas circunstâncias são desesperadoras. Eu acho... acredito que eu seria a pessoa certa para levar a mensagem. Posso falar diretamente com as pessoas em Nessântico sobre a situação aqui. Elas poderão ouvir da minha boca o que aconteceu. Posso convencê-las; Cénzi me diz que eu posso.

Vá ao seu líder, fale com ele e dê uma mensagem por nós... Ele pensou, por um momento, ter ouvido aquela sentença em uma voz alta e grave em sua cabeça. Ficou assustado demais para falar imediatamente. — Comandante — continuou Enéas —, eu entendo que meu lugar é aqui com as tropas, especialmente com os ocidentais ameaçando avançar contra a própria Munereo. Eu retornarei assim que for possível, mas posso entregar seu relatório com muito mais impacto. Prometo isso ao senhor. Eu sugeriria que o senhor mesmo fosse, mas seu conhecimento e liderança são fundamentais para nossa vitória contra os ocidentais.

Ca’Sibelli abanou a mão. O movimento fez mexer os papéis do topo da pilha na mesa, que ele parou para alinhar novamente. O comandante suspirou. — Eu creio que um offizier a mais ou a menos não fará diferença; ou melhor, acredito no senhor quando diz que pode fazer mais diferença ao falar com o kraljiki e o Conselho dos Ca’ do que empunhando uma espada aqui. Talvez o senhor esteja correto sobre a vontade de Cénzi. Tudo bem, o’offizier co’Kinnear: o senhor partirá amanhã de manhã na alvorada no Nuvem Tempestuosa. O e’offizier co’Montgomeri está com meu relatório para o senhor entregar; pode pegá-lo ao ir embora. Espero o senhor de volta aqui quando o Nuvem Tempestuosa retornar.

Ca’Sibelli levantou-se, e Enéas ficou de pé às pressas para prestar continência. — O senhor já sabe que tinha sido recomendado para o título de chevaritt pelo a’offizier ca’Matin — disse o comandante ao devolver a continência. — Eu aprovei aquela recomendação; ela também estará no Nuvem Tempestuosa para o kraljiki assinar. Eu suspeito que o futuro lhe reserva grandes coisas, o’offizier. Grandes coisas.

Enéas concordou com a cabeça. Ele também suspeitava disso. Cénzi cuidaria disso.

 

Audric ca’Dakwi

AS TROMPAS DO TEMPLO soaram a Primeira Chamada, as notas dissonantes e tristes apagaram os últimos vestígios de sono.

Audric permitiu que Seaton e Marlon o ajudassem a sair da cama. Mesmo com a assistência, o kraljiki ficou sem fôlego ao ficar de pé, com a roupa de dormir. Os camareiros ajudaram Audric, as mãos dos dois tiraram a camisola do kraljiki, depois começaram a vesti-lo para a audiência matinal. Enquanto cambaleava de leve nas mãos dos camareiros e ofegava, Audric olhou o quadro de Marguerite. Ela deu um sorriso cruel para o neto.

— Você é fraco fisicamente porque é fraco politicamente — disse a kraljica. — Cénzi lhe mandou a doença como um aviso. Você está tão envolvido por grilhões de ferro que não consegue enxergar, Audric: são correntes pesadas, que confinam e oprimem, e é este fardo que deixa você doente. Foi o regente que colocou as correntes, Audric. Ele rouba seu poder; rouba sua saúde. Quando você se soltar dos grilhões do regente, quando for o kraljiki na prática, assim como no título, sua doença também lhe deixará.

— Eu sei, mamatarh — falou Audric. Era um esforço apenas erguer a cabeça. Os cantos do quarto estavam escuros, como se ainda fossem encobertos pela noite; ele só conseguia enxergar o quadro. — Eu estou ansioso... por esse dia. — Por um momento, Marlon e Seaton pararam as atenções, assustados com a resposta.

— Em breve — murmurou Marguerite. — O que quer que você faça tem que ser em breve. O regente tem a intenção de enfraquecê-lo até que morra, Audric. Ele o envenena com suas palavras, com conselhos para ter cautela, com o poder que roubou de você. O regente quer tudo para si e está matando você para obtê-lo. Você tem que agir.

— É o que farei hoje, mamatarh.

— Kraljiki? — perguntou Seaton.

Audric olhou com raiva para o camareiro e disparou — Não interrompa quando estou conversando com seus superiores. — As palavras eram interrompidas por arfadas. — Repita isso e você será dispensado do meu serviço, além de ser chibatado pela insolência. Entendeu?

Ele viu Seaton olhar de relance para Marlon e depois fazer uma rápida mesura para Audric. — Minhas desculpas, kraljiki. Eu... eu errei.

Audric torceu o nariz. Marguerite sorriu para o neto enquanto concordava com a cabeça, no quadro. — Andem depressa, vocês dois — falou o menino para os camareiros. — Hoje vai ser um dia cheio.

Meia virada da ampulheta depois, Audric estava vestido e tomava café da manhã na sacada do quarto, que dava vista para os jardins oficiais do palácio. Ele ouviu a batida na porta externa e a conversa do criado no corredor com Marlon. — Kraljiki — disse o camareiro alguns momentos depois, enquanto Audric tomava um gole de chá de menta e saboreava o aroma da erva. — Seus convidados esperam o senhor na antecâmara.

— Excelente. — Ele pousou a xícara e dispensou Marlon e Seaton com um gesto quando os dois correram para atendê-lo. — Deixem-me. Eu estou bem. — Ao passar pelo quadro de Marguerite, Audric acenou com a cabeça para ela, depois foi para a porta da câmara de recepção. Marlon moveu-se para abrir a porta para ele, e Audric ergueu a mão, à espera de recuperar o fôlego, à espera de conseguir respirar sem ofegar. O kraljiki finalmente aquiesceu, e Marlon abriu a porta.

Audric viu todos se levantarem rapidamente e fazerem mesuras quando ele entrou: Sigourney ca’Ludovici, Aleron ca’Gerodi e Odil ca’Mazzak — todos integrantes do Conselho dos Ca’, os três mais influentes entre os sete. Sigourney era a pedra fundamental, Audric sabia: ela tinha o sobrenome ca’Ludovici, como a kraljica Marguerite. Magra e ativa, com um rosto animado, comprido e delicado, Sigourney aproximava-se da quarta década de vida e tinha o cabelo pintado de preto como carvão com raízes brancas; com o irmão gêmeo no comando das forças nos Hellins, ela contava com a voz dos militares também. Odil, um saudável sexagenário, era o que estava há mais tempo sentado no Conselho dos Ca’ dentre todos eles. Seu corpo tinha a aparência magra e murcha de carne defumada, e ele arrastava os pés com cuidado ao andar apoiado por uma bengala, mas a mente permanecia afiada. Com quase 30 anos, Aleron era um dos mais jovens integrantes, mas era carismático, charmoso e usava de sua influência muito bem, a ponto de ainda ser considerado bonito — e fez um ótimo casamento com alguém da antiga família ca’Gerodi.

— Por favor, sentem-se — mandou Audric, que tomou o próprio assento perto da lareira, do lado oposto ao lugar onde o quadro da mamatarh estava pendurado. O kraljiki podia imaginá-la com a parte detrás da cabeça voltada para eles enquanto escutava. — Eu pedi que os senhores viessem aqui hoje porque valorizo seus conselhos e gostaria de ouvir suas opiniões. — Ele fez uma pausa, tanto para respirar quanto para dar efeito. — Não perderei seu tempo. Eu gostaria de remover o regente ca’Rudka de seu posto e que os plenos poderes do governo sejam passados para mim.

Audric viu Odil recostar-se visivelmente na cadeira e Sigourney e Aleron trocar olhares cuidadosamente dissimulados. — Kraljiki — Aleron começou a falar, depois parou para passar a língua pelos lábios grossos. — O que o senhor pede... bem, o senhor está a apenas dois anos de chegar à maioridade legal. Eu sei que parece um longo tempo para alguém da sua idade, mas dois anos...

— Eu sei muito bem disso, conselheiro ca’Gerodi — disse Audric com desdém. A voz foi interrompida por tosses ocasionais e pausas para respirar. — O senhor estava lá quando o mestre ci’Blaylock testou meus conhecimentos sobre a linhagem dos kralji. Eu conheço a minha história, talvez melhor do que qualquer um dos senhores. Eu poderia citar o kraljiki Carin...

— Sim, kraljiki. — foi Odil que falou. — Existe um precedente real em Carin, mas Carin...

— “Mas Carin?” — Audric repetiu quando o homem parou. Odil respirou fundo ao se sentar na ponta da cadeira.

— O kraljiki Carin era precoce em quase todos os aspectos — continuou Odil. Ele abaixou o olhar para os dedos, entrelaçados no colo, e falou mais para eles do que para Audric. — Com o perdão do kraljiki, a história de Nessântico é meu passatempo, e eu diria que houve circunstâncias atenuantes na extraordinária ascensão de Carin. Aos 12 anos, ele assumiu o comando da Garde Civile contra as forças de Namarro quando seu vatarh foi morto, e Carin demonstrou habilidades extraordinárias naquela batalha. Todas as histórias dizem que ele era capaz de se lembrar de tudo que ouvia. Ele também tinha o Dom de Cénzi e podia usar o Ilmodo quase tão bem quanto um téni-guerreiro. E a saúde de Carin — dito isso, Odil finalmente olhou diretamente para Audric — era excelente.

— E foi o próprio regente de Carin que foi ao Conselho dos Ca’ com o pedido de que o kraljiki recebesse plenos poderes mais cedo — acrescentou Sigourney rapidamente enquanto Audric sentia o calor do sangue nas bochechas. — Talvez se o regente ca’Rudka viesse até nós com uma recomendação dessas...

— Ca’Rudka é o problema! — berrou Audric. Com calma... Ele ouviu a voz da mamatarh na cabeça. Olhe para os rostos dos conselheiros, Audric. Você os assusta com seu poder e tem que ter cuidado. Use a cabeça. Manipule-os. Você quer que eles escutem, que cumpram suas ordens. Você tem que soar como um adulto, não como uma criança petulante. Tem que parecer sensato. Fazer com que acreditem que é do interesse deles fazer o que você pede. Diga para eles. Diga todas as coisas sobre as quais conversamos...

Audric concordou com a cabeça. Ele tossiu e respirou fundo. Limpou a boca com a manga da bashta e ergueu a outra mão para os conselheiros. — Eu peço desculpas, conselheiros — falou Audric finalmente. — Por favor, entendam que minha... hum, veemência é causada apenas por minha grande preocupação com Nessântico e com os Domínios, e sei que todos os senhores se preocupam comigo. — Ele olhou de relance para Sigourney. — Conselheira ca’Ludovici, o regente ca’Rudka nunca virá até os senhores. Jamais. A verdade é que ele tem intenção de permanecer no poder, não importa qual seja a minha idade.

— Esta é uma acusação preocupante, kraljiki, com certeza — respondeu Sigourney. — O senhor tem alguma prova disso?

— Assim como o kraljiki Carin — disse Audric, acenando para Odil —, eu me lembro do que é dito na minha presença. O regente insinuou tal coisa para mim, e eu ouvi ca’Rudka sussurrar com o archigos Kenne quando eles pensavam que eu estava dormindo ou doente demais para prestar atenção. Provas? Não tenho nada além do que ouvi, mas eu ouvi. Há fatos curiosos também. O regente ca’Rudka, afinal, era o comandante da Garde Civile na época do meu vatarh e também foi o líder da Garde Kralji antes disso. Os homens escolhidos a dedo pelo regente ainda cuidam da segurança de Nessântico: o comandante co’Falla, da Garde Kralji, e o comandante co’Ulcai, da Garde Civile. E, ainda assim, de alguma forma, não só eles não conseguiram impedir o assassinato de nossa amada archigos, Ana, como ambos alegam que sequer sabiam de alguma trama contra ela.

— O que o senhor quer dizer, kraljiki? — perguntou Aleron. — Está dizendo que o regente ca’Rudka...? — Ele parou. Um gordo dedo indicador cofiou o cavanhaque.

— Todos os senhores conhecem os rumores a respeito da archigos Ana, que ela às vezes usava o Ilmodo para curar, apesar de a Divolonté ser contra tais práticas — falou Audric. — Eu sei que essas práticas são verdadeiras porque a archigos Ana me ajudou muitas vezes, desta mesma maneira. Sim, conselheira ca’Ludovici, eu vejo que a senhora concorda. Sei que todos suspeitavam disso. Com a archigos Ana morta, ora, alguém também poderia acreditar que eu também morreria em breve... e que o Conselho dos Ca’, em agradecimento pelo longo serviço, e dado que a linhagem direta da kraljica Marguerite atualmente não importava mais, poderia simplesmente nomear o atual regente como kraljiki em título, assim como na prática. Se ca’Rudka esperasse mais tempo para agir, ora, há o perigo de eu me casar e ter filhos que pudessem reivindicar o título.

Audric percebeu que eles refletiam sobre as acusações, especialmente sua prima ca’Ludovici. Ele tentou conter a tosse e se apressou em dizer o resto. Sim, você tem a atenção dos conselheiros agora, o kraljiki ouviu sua mamatarh dizer com uma voz contente.

— Essa situação chegou a um ponto crítico por causa das más notícias que continuam a vir dos Hellins. — Audric apressou-se para continuar. — Conselheira ca’Ludovici, seu irmão está lutando bravamente com os míseros recursos que demos a ele. O comandante ca’Sibelli é um ótimo guerreiro, mas, ainda assim, estamos sendo humilhados pelos ocidentais; nós, Nessântico, os Domínios, a maior potência do mundo. Essas pessoas são pouco mais do que selvagens, e, no entanto, elas roubam de nós a terra que o sangue de nossos soldados santificou. Eu disse ao regente que não tolerarei isso. Disse que quero mandar tropas adicionais e ténis-guerreiros para os Hellins a fim de ajudar seu irmão a acabar com esta rebelião. Deixem-me perguntar para cada um dos presentes: o regente ca’Rudka falou a respeito disso com algum dos senhores? — Ele viu as cabeças dos conselheiros balançarem em silêncio. — Eu imaginei que não. O regente está satisfeito em perder os Hellins; ele me disse isso. Está satisfeito em desperdiçar o grande sacrifício de nossos gardai. Fosse eu o kraljiki neste momento, ordenaria a imediata prisão de ca’Rudka. Eu o colocaria na Bastida e faria com que assinasse sua confissão, assim como ele fez outros confessarem ao longo de décadas. Porém, se os senhores não fizerem isso, então sugiro que simplesmente perguntem ao regente. Não sobre a morte da archigos ou suas intenções a meu respeito, mas sobre os Hellins. Perguntem a ca’Rudka a respeito de nossa situação lá e qual seria a melhor linha de ação que ele considera. Perguntem por que o regente não sabia nada sobre o plano contra a archigos Ana. Ouçam cuidadosamente as respostas. E quando os senhores perceberem que eu falo a verdade a respeito dessa situação, entenderão que também falo a verdade sobre o resto.

Audric ficou de pé. Sentiu o corpo tremer com o esforço, a exaustão ameaçava tomar conta dele. O kraljiki pareceu enxergar os três conselheiros como se estivessem atrás de um vidro fumê e não queria outra coisa a não ser cair na cama sob o olhar vigilante de Marguerite. Ele tinha que encerrar essa reunião. Rapidamente. — Por enquanto, encerramos por aqui. Falem com ca’Rudka. Depois, pensem no que eu falei para os senhores.

Audric fez uma mesura para os conselheiros e — com o passo mais lento e majestoso que conseguiu ter forças para dar — cruzou a sala até a porta do quarto, que Marlon abriu para ele.

O kraljiki conseguiu esperar até a porta ser fechada para cair nos braços de Seaton.

 

Sergei ca’Rudka

— REGENTE CA’RUDKA! UM momento!

Sergei virou-se na entrada da Bastida a’Drago. Acima dele, cimentado nas pedras do sombrio baluarte, o crânio de um dragão escancarava as enormes mandíbulas com dentes afiados que reluziam. A cabeça do dragão, descoberta durante a construção do que era para ser um castelo de defesa, deu à Bastida seu nome: Fortaleza do Dragão. Agora ela espiava os prisioneiros que entravam na masmorra e parecia rir quando eram devorados pela Bastida.

Ou talvez a cabeça risse de todos eles: os numetodos alegavam que não era um crânio de dragão em hipótese alguma, mas sim de algum animal antigo e extinto que virou pedra. Para Sergei, esta era uma teoria enrolada demais para se acreditar, mas os numetodos também alegavam que as conchas de pedra encontradas no alto dos morros em volta de Nessântico estavam lá porque, em algum passado distante inimaginável, as montanhas foram o leito de um mar.

O passado não importava para Sergei. Apenas o presente, e o que ele podia tocar, sentir e compreender.

Uma carruagem parou na Avi a’Parete. Da janela do veículo, Sigourney ca’Ludovici gesticulou na direção de Sergei. O regente fez uma mesura e andou até a carruagem. — Bom dia, conselheira. A senhora saiu cedo. A Primeira Chamada aconteceu há menos de uma virada da ampulheta.

Os olhos de Sigourney eram de um surpreendente cinza-claro em contraste com o cabelo tingido de preto. Ele notou as linhas finas debaixo do rosto maquiado. — O Conselho dos Ca’ teve uma reunião com o embaixador co’Görin da Coalizão na manhã de hoje, como seu gabinete foi informado.

— Ah, sim. — Sergei empinou o queixo. — Eu vi a declaração que o conselheiro ca’Mazzak escreveu. Ele fez um belo trabalho ao ficar no meio termo entre congratular o novo hïrzg e ameaçá-lo, eu aprovei a declaração. Acho que o conselheiro ca’Mazzak daria um belo embaixador em Brezno, se ele estivesse disposto. E acho que o embaixador co’Görin ficaria convenientemente irritado com a indicação.

Em outra ocasião, Sigourney teria rido do comentário, mas ela parecia distraída. Os lábios estavam parcialmente abertos, como se esperasse para dizer outra coisa, e o olhar continuava a se afastar do rosto de Sergei para a fachada da Bastida. Não era por causa do nariz de metal; Sergei estava acostumado com essa reação da parte de estranhos, com seus olhares ou capturados pela réplica de prata colada no rosto ou tão incomodados pelo nariz que deslizavam do rosto como esquis no gelo do inverno. Mas Sigourney conhecia o regente há décadas. Eles nunca foram amigos, mas também não eram inimigos; na política de Nessântico, isso era suficiente. Algo está errado. Ela não está à vontade. — O que a senhora realmente queria me perguntar, conselheira? — A pergunta atraiu o rosto dela de volta para Sergei.

— O senhor me conhece muito bem, regente.

Ele podia conhecer Sigourney, mas ela não o conhecia. Ninguém realmente o conhecia; Sergei jamais deixara alguém se aproximar tanto do seu âmago desprotegido, e estava velho demais para começar agora. A conselheira ficaria chocada se soubesse o que ele fez na manhã de hoje, nas entranhas da Bastida. — Eu tenho prática em ler as pessoas — disse o regente com um aceno de cabeça para o dragão no baluarte da Bastida. — O problema está nos olhos e nos minúsculos músculos do rosto que ninguém realmente consegue controlar. — Ele deu uma batidinha proposital no nariz falso. — A dilatação das narinas, por exemplo. A senhora está incomodada com alguma coisa.

— Todos nós lemos o último relatório do meu irmão nos Hellins. É a situação por lá que me incomoda.

Sergei colocou o pé no degrau da carruagem e inclinou-se na direção dela. As molas da suspensão do veículo gemeram e cederam sob seu peso. — Isso também me incomoda, conselheira.

— O que o senhor faria a respeito?

— Quando alguém sangra muito, o conselho é atar a ferida. Eu digo isso sem críticas ao seu irmão. O comandante ca’Sibelli está fazendo o possível com os recursos de que podemos abrir mão para ele, mas lutar contra um inimigo obstinado em seu território natal é difícil sob a melhor das circunstâncias, e praticamente impossível a essa distância.

— O senhor está sugerindo que nós atemos a ferida, regente, como o senhor disse tão elegantemente, ou que nós fujamos em desonra do que está causando o dano? — Ela arqueou as sobrancelhas ao fazer a pergunta, e Sergei hesitou. Ele sabia que Audric havia se encontrado com Sigourney, Odil e Aleron, esse tipo de fofoca era impossível de abafar no palácio, e lembrava-se bem demais das discussões sobre a questão que tivera com Audric. O regente ainda não tivera a chance de tocar no assunto com qualquer um do Conselho dos Ca’; agora parecia que Audric fizera isso por ele, e Sergei duvidava que tivesse sido favoravelmente representado pela opinião do kraljiki.

— Se há desonra em recuar depende — respondeu ele com cautela — da pessoa acreditar que a próxima ferida possa ser fatal.

— É nisso que o senhor acredita, regente? — insistiu Sigourney. — Que a guerra nos Hellins está perdida?

Antigamente, ele poderia ter sido evasivo, por não saber qual seria a opinião mais segura de revelar. Ao ficar mais velho, ao ganhar mais poder, Sergei tornou-se menos propenso a ser sutil. — Eu acredito que haja um perigo de a guerra estar perdida, sim. Eu dei minha opinião ao jovem kraljiki, e essa será minha declaração ao Conselho dos Ca’ no meu próximo relatório. Portanto, a senhora tem uma prévia. — Ele sorriu, o que exigiu esforço. — Da maneira que a senhora fala, conselheira, suspeito que o Conselho já esteja ciente da minha opinião. Seu pressentimento é impressionante. — Não houve um sorriso em resposta; o rosto de Sigourney estava impassível nas sombras da carruagem. — Deixe-me contar o resto. O maior perigo, como eu também disse para o kraljiki, é que, ao olharmos para o oeste, nós ignoramos o leste e a Coalizão. Imagino que Audric não tenha mencionado isso para a senhora.

Sigourney permaneceu na sombra, sua reação foi encoberta. — O senhor não aconselha mandar mais tropas para os Hellins? Aconselha que abandonemos o que conquistamos lá?

Sergei olhou para o dragão, que parecia espiá-lo, cheio de dentes. — Por que eu tenho a impressão de que a senhora já sabe as minhas respostas para essas perguntas, conselheira?

— Ainda assim eu gostaria de ouvi-las. De seus lábios.

— Então: não e sim — disse ele secamente. — Se mandarmos mais tropas, mandaremos mais gardai para morrer do outro lado do Strettosei, quando estou convencido de que precisaremos deles aqui, e talvez antes do que gostaríamos. Quanto aos Hellins: minha experiência diz que outro comandante não se sairá melhor do que seu estimado irmão. Seu predecessor, o comandante ca’Helfier, no fundo é o responsável pela terrível situação por lá; foram suas trapalhadas e mau julgamento que causaram o envolvimento do exército tehuantino no conflito, e isso virou o jogo. — Sergei ficou satisfeito ao vê-la recuar ao ouvir isso e desviar o olhar, como se a vista da Pontica à frente da carruagem de repente fosse bem mais interessante. — Nossas dificuldades são a distância, a comunicação e um vasto exército que luta em seu território natal. — Ele deu um tapinha na janela aberta da carruagem. — E um inimigo que agora está mais forte do que a maioria de nós quer acreditar. Quando tomamos os Hellins, os tehuantinos permaneceram nas próprias terras depois das montanhas, mas as ações de ca’Helfier fizeram os nativos da região convocar seus primos para ajudar. Nós podemos chamar os ocidentais de selvagens e infiéis que idolatram apenas os moitidis e dizer que eles são falsos deuses, mas isso não altera o fato de que os ténis-guerreiros dos tehuantinos, através de seja lá a que divindades eles apelam, são pelo menos tão eficientes quanto os nossos. Talvez até mais.

— Algumas pessoas podem dizer que o senhor mesmo passa perigosamente perto da heresia com esta declaração, regente — disse ca’Ludovici ao fazer o sinal de Cénzi.

— Eu considero que meu dever, como regente, é encarar a verdade, não importa qual seja, e dizê-la. — Isto era uma mentira, é claro, mas soava bem; na opinião de Sergei, seu dever como regente era cuidar para que a Nessântico que fosse passada ao próximo kralji estivesse em uma posição mais forte do que a que originalmente encontraria; não importava como isso o implicava se ele fizesse ou dissesse, que fosse legal ou ilegal. — Essa sempre foi minha função em Nessântico. Eu sirvo à própria Nessântico, não a ninguém dentro dela. É por isso que a kraljica Marguerite me nomeou como comandante da Garde Kralji, e por isso que seu primo, o kraljiki Justi, me nomeou primeiro como comandante da Garde Civile e depois como regente, mesmo que nós discordássemos muitas vezes. — Sua boca tremeu diante das memórias das discussões que teve com o grande tolo Justi. Que os retalhadores de almas o façam em pedaços eternamente pelo que ele fez com os Domínios.

— Eu também sirvo à Nessântico em primeiro lugar — falou Sigourney. — Nisso, nós somos parecidos, regente. Eu só quero o que é melhor para ela e para os Domínios. Fora isso... — Ela deu de ombros nas sombras.

— Então nós concordamos, conselheira — respondeu Sergei. — Nessântico precisa de verdade e de olhos abertos, não de arrogância cega. Certamente o Conselho dos Ca’ reconhece isso, não é?

— A verdade é mais maleável do que o senhor parece pensar, regente. Como diz o ditado? “O vinagre de um ca’ pode ser o vinho de um ce’”. Muito daquilo que é chamado de verdade é apenas opinião, na prática.

— Esse pode ser realmente o caso, conselheira, mas o que incomoda as pessoas é também o que elas dizem quando querem ignorar uma verdade — respondeu Sergei, que foi recompensado por um beicinho de irritação e o brilho de lábios umedecidos no rosto mal iluminado. — Mas nós podemos falar a respeito disso depois, com todo o Conselho presente, se a senhora quiser. Deve haver um novo relatório vindo dos Hellins em breve, e talvez este nos diga o que é verdade e o que é apenas opinião.

Ele mais ouviu do que viu Sigourney fungar, e uma mão branca foi erguida no interior escuro para bater no teto da carruagem. — Falaremos mais a respeito desse assunto, regente — falou a conselheira para Sergei em um tom frio e distante, e se dirigiu ao condutor sentado no banco. — Vamos.

Ele observou a conselheira partir enquanto as rodas com aro de ferro da carruagem faziam barulho sobre os paralelepípedos da Avi. O som era tão frio e hostil quando a atitude de Sigourney. Sergei voltou-se novamente para a Bastida e ergueu os olhos para o crânio do dragão acima dos portões. Sua boca feroz sorria.

— Sim — disse ele para o crânio. — A verdade é que um dia todos nós ficaremos iguais a você. Mas não ainda para mim. Não ainda. Eu não me importo com o que Audric tenha dito ao Conselho. Não ainda.

 

Jan ca’Vörl

JAN ENCONTROU SUA MATARH parada na sacada de seus aposentos no Palácio de Brezno. Ela olhava para baixo, para a agitação na praça principal. O Templo do Archigos agigantava-se no horizonte diretamente em frente a eles, quase a 800 metros de distância, e praticamente cada metro daquela distância estava coberto por gente. A praça estava iluminada por lâmpadas mágicas com luzes amarelas, verdes e douradas que dançavam nos globos dos postes, e as feiras e lojas em volta do enorme espaço aberto estavam apinhadas de clientes. A música dos artistas de rua chegava fraca até os dois e flutuava acima do zumbido de mil conversas.

— É uma cena que merece ser pintada, não é? — perguntou Jan para ela, e o jovem emendou antes que Allesandra pudesse responder — Qual é o problema, matarh? A senhora se isolou desde a festa. É o vatarh?

Ela virou-se ao ouvir isso. O olhar deslizou do rosto do filho para a estrela de chevaritt que ele usava, e Jan achou que o sorriso forçoso da matarh vacilou momentaneamente. — Foram semanas muito corridas — falou Allesandra. Sua mão espanou fios soltos imaginários dos ombros do filho. — Só isso.

— Eu acho que o comportamento do vatarh tem sido péssimo desde que ele chegou aqui. Eu juro que às vezes penso que seria capaz de matar o homem, mas tenho certeza de que a senhora já se sentiu bem mais tentada que eu. — Jan riu para abrandar as palavras, mas Allesandra não o acompanhou. Ela deu meia-volta e olhou novamente para a praça lá embaixo.

— Você é um chevaritt. Algum dia você irá à guerra, e algum dia realmente terá que matar alguém ou ser morto. Será forçado a tomar essa decisão, e ela será irrevogável. Eu sei...

— A senhora sabe? — Jan franziu a testa. — Matarh, quando foi que a senhora...

Ela interrompeu o filho antes que ele pudesse terminar a pergunta meio debochada. — Eu tinha 11 anos, quase 12. Eu matei o feiticeiro ocidental Mahri, ou ajudei Ana a matá-lo.

— Mahri? O homem responsável pela morte da kraljica Marguerite? — Isso é uma piada, ele queria acrescentar, mas foi detido pela expressão da matarh.

— Eu esfaqueei Mahri com a faca que o vatarh me deu, ataquei quando ele tentou matar Ana. Eu nunca contei para ninguém depois, e Ana também não. Ela sempre tomou cuidado para me proteger. — Allesandra olhava para as próprias mãos no parapeito. Jan perguntou-se se ela esperava ver sangue ali. Não tinha certeza do que dizer ou como responder. Ele imaginou a matarh com a faca na mão.

— Isso deve ter sido difícil.

Allesandra balançou a cabeça. — Não. Foi fácil. Esta é a parte estranha. Eu nem pensei a respeito, apenas o ataquei. Foi só depois... — Ela respirou fundo. — Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Que poderia ser melhor para todos os envolvidos se esse fosse o caso?

— Ora, que assunto mórbido.

— Alguém matou Ana porque acreditava que o mundo seria melhor se ela estivesse fora do caminho. Ou talvez os assassinos mataram Ana por que alguém em quem eles acreditavam mandou que fizessem isso, e eles apenas seguiram ordens. Ou talvez apenas porque pensaram que o assassinato poderia mudar as coisas. Às vezes, este é todo o motivo que alguém precisa; a pessoa não pensa em quem possa gostar da vítima ou quais seriam as repercussões. A pessoa mata porque... bem, eu acho que às vezes não se sabe por quê.

— A senhora está me deixando preocupado, matarh.

Ela riu ao ouvir isso, embora Jan pensasse que ainda havia uma tristeza no som. — Não fique preocupado, eu só estou com um humor estranho.

— Todo mundo pensa assim, às vezes. — Jan deu de ombros. — Aposto que todas as crianças desejaram, em algum momento, que o vatarh e a matarh estivessem mortos; especialmente após elas terem feito algo estúpido e terem sido flagradas e castigadas. Ora, teve uma ocasião em que eu roubei a faca do seu... — Ele parou e arregalou os olhos. — Foi a mesma faca? A senhora disse que o vavatarh lhe deu.

Outra risada. — Foi sim. Eu me lembro disso; descobri você usando a faca para cortar umas maçãs na cozinha e arranquei da sua mão, depois bati muito em você, mas você se recusou a chorar, ou se desculpar, então bati com mais força.

— Eu chorei sim. Depois. E tenho que admitir que fiquei tão furioso que pensei em... — Jan deu de ombros novamente. — Bem, a senhora sabe. Mas o pensamento não durou muito tempo... não depois que a senhora levou torta ao meu quarto e prometeu que me daria a faca um dia. — Ele sorriu para a matarh. — Ainda estou esperando.

— Fique aí. — Allesandra saiu do parapeito e passou pelo filho. Jan ouviu a matarh remexendo coisas no quarto dela, depois ela retornou para a noite fria. — Aqui — falou Allesandra com uma faca na mão, guardada em uma bainha de couro gasta, com o punho de osso preto, aço ainda reluzente e minúsculos rubis em volta do pomo. — Esta foi originalmente a faca do hïrzg Karin, e ele deu para seu filho, seu vavatarh Jan, que me deu. Agora é sua.

Ele empurrou a arma de volta para Allesandra. — Matarh, eu não posso... — Mas ela estendeu a faca novamente.

— Não, pegue — insistiu Allesandra, e ele pegou. Jan tirou a faca metade da bainha. O escuro aço firenzciano refletiu seu rosto. — Dado quem somos, Jan, nós dois temos que tomar decisões realmente difíceis, com as quais não estamos totalmente à vontade, mas as tomaremos porque parecem ser as melhores para aqueles que gostamos. Apenas lembre-se que às vezes decisões são finais. E fatais.

Dito isso, Allesandra puxou Jan para si e abaixou a cabeça do filho para beijá-lo no rosto. Quando ela falou, pareceu com a matarh que ele se lembrava. — Agora, não vá se cortar com isso, promete?

Jan sorriu para Allesandra e disse — Prometo.

 

Allesandra ca’Vörl

AUDRIC NÃO SERÁ KRALJIKI por muito tempo. É o que a maioria das pessoas acredita. Em breve chegará a hora em que um novo kralji será nomeado. Eu me lembro de você, Allesandra. Lembro-me de sua inteligência e força, e me lembro de que a archigos Ana amava você como se fosse a própria filha, e rumores chegaram até mim de que você não está contente que os Domínios permaneçam divididos.

Pelas minhas conversas com Fynn, não tenho esperanças de que ele queira fazer parte dos Domínios reunificados a não ser que ele esteja no Trono do Sol. Ele tem a força do seu vatarh, mas não a inteligência. Infelizmente, todos os bons atributos do finado hïrzg Jan passaram para você.

Quando o Trono do Sol estiver vazio, eu apoiarei sua reivindicação, a’hïrzg. E existem outros aqui que fariam a mesma coisa. Eu apoiaria você abertamente, se me der um sinal de que concorda comigo...


As palavras estavam gravadas em sua mente, tão nítidas quanto as letras escritas por tinta de fogo no pergaminho. As chamas destruíram o papel quase tão rápido quanto ela leu a mensagem e deixaram para trás cinzas e uma fumaça desagradável. A promessa de Sergei. Allesandra pensava nela quase todo dia desde a chegada da mensagem e agora sabia que o archigos recebera uma missiva similar. Ela era capaz de imaginar o que o regente prometera para Semini.

Ca’Rudka queria os Domínios unificados e a Fé unida. Bem, ela também. Criar Domínios ainda mais fortes do que os da kraljica Marguerite foi o sonho de seu vatarh e — porque era o sonho do hïrzg Jan e Allesandra o amava tão desesperadamente quando era criança — de Allesandra também. Ele traiu o sonho e dividiu o império, mas o sonho permanecia vivo nela.

Era o que Allesandra queria mais do que qualquer outra coisa. Mais do que a sua própria segurança.

... se houvesse um sinal...

O archigos Semini encarou a missiva como a óbvia insinuação que era e agiu afobadamente, antes que as peças estivessem nos lugares corretos. Agora, em parte graças à impaciência e falta de jeito do archigos, elas estavam no lugar.

Um sinal. Allesandra daria aquele sinal para ca’Rudka, embora isso corroesse sua consciência. Embora ela pudesse vir a se odiar depois.

Já pensou como seria se uma pessoa que você conhece estivesse morta? Era a pergunta que Allesandra fez para Jan, mas era a mesma que ela se fazia sem parar.


— Infelizmente, eu menti para você, Elzbet — falou Allesandra para a mulher do outro lado da mesa manchada e suja. — Não estou interessada em você como criada. — A mulher deu de ombros e começou a se levantar. Allesandra gesticulou para que voltasse a se sentar. — Fiquei sabendo — disse a a’hïrzg — que você consegue me colocar em contato com um certo homem. — Allesandra pousou um seixo na mesa: uma pedra lisa mais ou menos do tamanho de uma sola, de cor muito clara.

Mesmo ao dizer as palavras, Allesandra duvidava de sua veracidade. A jovem sentada diante da a’hïrzg tinha uma aparência comum. Parecia estar na terceira década, embora fosse difícil dizer; uma vida dura fazia com que ela parecesse mais velha do que a idade real. O cabelo evidentemente não sabia o que era uma escova: comprido e com toques de vermelho intenso no tom castanho, o cabelo tinha mechas soltas que apontavam para todos os lados e estava muito repuxado em uma trança malcuidada, feita em um estilo que Allesandra não via desde que era nova. A franja estava desgrenhada e formava uma floresta que quase escondia os olhos. Allesandra nem conseguia ver a cor dos olhos de tão escondidos que estavam, embora parecessem claros.

A mulher apenas deu de ombros ao olhar para o seixo e falou — Pode ser. — As palavras tinham um sotaque tão leve que Allesandra não conseguiu identificar, e a voz era rouca. — Aquele de quem a senhora fala é difícil de contatar. Mesmo para mim.

Se o sujeito conhece você tão bem assim, menina, eu não fico impressionada com o gosto dele... — Qual é o seu nome completo, Elzbet?

A mulher encarou Allesandra sem piscar os olhos através do emaranhado de mechas castanhas. — Peço desculpas, a’hïrzg, mas a senhora não vai precisar do meu nome. Afinal, a senhora não está me contratando, pelo menos não para outra coisa além de encontrar este homem.

Allesandra levou dias para chegar até esse ponto e não tinha certeza de nada. Houve investigações discretas sobre pessoas que teriam um motivo para matar as três vítimas mais recentes da Pedra Branca, investigações feitas por agentes particulares que, por sua vez, não sabiam quem representavam, apenas que era alguém rico e influente. Nomes e descrições foram dados e, lentamente, aos poucos, tudo levou a esta jovem. Allesandra armou um encontro com ela, em uma taverna no limite de um dos distritos mais pobres de Brezno, sob o pretexto de entrevistá-la para um cargo no corpo de funcionários do palácio. Através das persianas fechadas da taverna, a a’hïrzg enxergou os uniformes dos gardai que a acompanhavam, à espera de Allesandra ao lado da carruagem. — Como eu posso saber se você pode fazer o que diz ser capaz?

— A senhora não tem como saber — respondeu a mulher. Foi tudo o que ela disse. A jovem esperou e manteve os olhos ocultos em Allesandra, sem piscar, como se desafiasse a a’hïrzg a desviar o olhar. O atrevimento e a falta de respeito quase fizeram Allesandra se levantar da cadeira e sair da taverna, mas ela precisava deste contato e foi preciso tempo demais para chegar até aqui.

— Então como procedemos? — perguntou Allesandra.

— Dê-me três dias para ver se eu consigo contatar a pessoa que a senhora procura. — A mulher deu um peteleco na pedra que Allesandra colocou sobre a mesa. — Se eu achar que seus gardai ou agentes estão me vigiando, ou se ele, em especial, os vir, nada vai acontecer. Na noite do terceiro dia, que seria o draiordi, a senhora fará isso... — A jovem debruçou-se sobre a mesa, depois sussurrou instruções no ouvido de Allesandra e voltou a se recostar. — A senhora entendeu, a’hïrzg? Pode fazer isso?

— É muito dinheiro.

— Ninguém barganha com ele — disse a mulher. — Se o que a senhora quer executar fosse uma tarefa fácil, a senhora mesmo faria. E a a’hïrzg pode arcar com o preço que ele cobra.

— Se eu fizer isso, como saberei que ele vai cumprir com sua parte do acordo?

Nenhuma resposta. A mulher simplesmente ficou sentada com as mãos sobre a mesa como se estivesse pronta para empurrar a cadeira.

Allesandra finalmente acenou com a cabeça e disse — Encontre-o, Elzbet. — Ela tirou uma meia sola do bolso da capa e colocou a moeda na mesa entre as duas, perto da pedra. — Pela inconveniência.

A mulher abaixou o olhar para a moeda e contorceu os lábios. A cadeira foi arrastada pelas tábuas do piso. — Draiordi, à noite — falou ela para Allesandra. — Esteja lá como eu falei. Lembre-se do que eu disse sobre eu ser seguida.

Dito isso, Elzbet deu meia-volta e saiu rapidamente da taverna, com os passos largos de uma pessoa que estava acostumada a andar por longas distâncias. A luz irrompeu na penumbra quando ela empurrou a porta com uma força surpreendente. Através das persianas, Allesandra viu os gardai subitamente alertas no momento em que a mulher saiu da taverna.

A moeda continuou na mesa. Allesandra pegou a pedra, mas deixou a moeda, se dirigiu para a porta e fez um sinal negativo com a cabeça para os gardai, um dos quais já abria a porta, preocupado, enquanto os outros observavam Elzbet. — Eu estou bem — disse a a’hïrzg para eles. A mulher já estava no meio da rua e andava rápido sem olhar para trás. O garda que abriu a porta inclinou a cabeça na direção de Elzbet e ergueu as sobrancelhas, intrigado. — Devo...?

— Não. Não vou contratá-la; ela era uma péssima escolha. Deixe-a ir...

 

Karl ca’Vliomani

KARL OBSERVOU O HOMEM com cuidado, ficando perto dele na padaria, onde poderia escutá-lo.

O sujeito parecia diferente dos demais que ele observou. Nas últimas semanas, Karl andou à espreita pelo Velho Distrito, vestido em roupas sujas e esfarrapadas, e observou a multidão que passava por ele. Karl assombrou locais públicos, escondeu-se nas sombras de praças escondidas no labirinto de ruas minúsculas enquanto evitava os utilinos aqui e ali que faziam suas rondas e que podiam reconhecê-lo. Ele olhou os rostos à procura de peles com tom de cobre, por maçãs do rosto pronunciadas e por rostos ligeiramente achatados, como ele se lembrava das próprias incursões às Terras Ocidentais há décadas. Karl encontrou meia dúzia de pessoas, tanto homens quanto mulheres, que seguiu por um tempo ou ouviu às escondidas, que tocou com o Scáth Cumhacht para ver se elas responderiam.

Não houve nada. Nada.

Mas agora...

— Estes croissants passaram o dia inteiro aqui e já estão meio velhos — falou o homem. Karl escutou sua voz perfeitamente de onde estava, na porta aberta da padaria, enquanto olhava para o outro lado da rua como se esperasse por alguém. Ele ouviu a bengala do sujeito bater no piso de madeira. — Eles não valem mais do que uma d’folia a dúzia. — As palavras não significavam nada, mas aquele sotaque... Karl lembrava-se bem: da época de sua juventude, do sotaque de Mahri, que era tão estranho e inconfundível em Nessântico quanto o seu próprio.

Karl olhou o interior da loja a tempo de ver a cara feia do padeiro. — Eles continuam tão fresquinhos e macios quanto estavam hoje de manhã, vajiki. E valem uma se’folia, pelo menos. Ora, eu posso vendê-los para qualquer um por este valor; a farinha que usei foi abençoada pelos u’ténis do Velho Templo.

O homem deu de ombros e abanou a mão. — Eu não vejo ninguém mais aqui, e você? Talvez queira esperar o dia inteiro até que os croissants fiquem tão duros quanto paralelepípedos, enquanto eu posso dar duas d’folias por eles agora. Duas d’folias contra pão jogado fora; parece mais do que justo para mim.

Karl ouviu enquanto os dois negociavam e chegaram ao acordo de quatro d’folias pelos croissants. O padeiro embrulhou os pãezinhos em papel e resmungou o tempo todo sobre o preço da farinha, o tempo gasto assando e o aumento geral dos custos de tudo na cidade recentemente, até que a presa de Karl saiu da padaria. O homem passou perto dele — o cheiro dos croissants fez o próprio estômago de Karl roncar — e seguiu pela alameda estreita na direção leste. Karl deixou o sujeito dar vários passos de vantagem antes de segui-lo. O homem virou à esquerda em um beco transversal; na hora em que Karl chegou ao cruzamento, o sujeito já estava no meio do beco. No fim da tarde, as casas lançavam sombras púrpuras na viela e pareciam se inclinar na direção umas das outras para conversar em sussurros sobre os paralelepípedos. Não havia mais ninguém visível no beco. Os feitiços que Karl havia conjurado naquela manhã ardiam dentro dele, à espera do lançamento. Ele começou a chamar o homem, fazer com que se virasse...

... mas uma criança, um menino de 10 ou 11 anos talvez, surgiu de um cruzamento um pouco mais adiante no beco. — Talis! Aí está você! A matarh estava se perguntando se você viria para o jantar.

— Croissants! — disse o sujeito para o garoto ao erguer os pãezinhos embrulhados. — Eu praticamente os roubei do velho Carvel. Só quatro d’folias... — O homem, o tal Talis, passou o braço pelo ombro do menino. — Vamos então, não podemos deixar Serafina esperando.

Juntos, os dois começaram a descer a rua. Karl hesitou. Você não pode fazer nada com o menino ali ao lado dele. Não é o que Ana iria querer de você.

Os feitiços ainda chiavam e borbulhavam dentro da mente, ansiosos para serem lançados. Ele escolheu um, o mais brando. Karl ergueu o punho e sussurrou uma palavra em paeti, a língua de sua terra, e sentiu a energia ser disparada e lançada para longe. O feitiço fora projetado para não fazer nada; ele apenas espalhava o poder do Scáth Cumhacht por uma área — o suficiente para que alguém acostumado a usar aquele poder o sentisse e reagisse.

A reação foi mais rápida do que Karl esperava. Talis deu meia-volta assim que ele lançou o feitiço. O menino virou-se um momento depois; provavelmente, pensou Karl, porque o homem parou. Não houve tempo para ele se esconder. Talis, com um olhar que jamais se desviou de Karl, deu o pacote de croissants para o menino e um empurrãozinho para que fosse embora. — Nico, vá para casa. Eu sigo você em alguns minutos.

— Mas, Talis...

— Vá — respondeu Talis, em tom mais ríspido desta vez. — Ande ou seu traseiro vai se arrepender assim que eu chegar lá. Vá!

Diante disso, o garoto engoliu em seco e correu. Ele virou a esquina e desapareceu. O homem olhou na penumbra, depois recuou a cabeça e acenou com ela. — Eu devo lhe agradecer, embaixador, por poupar o menino — falou Talis. Uma mão estava enfiada no bolso lateral da bashta, a outra permanecia na bengala; se ele estava prestes a lançar um feitiço, não demonstrava sinais. Ainda assim, Karl ficou tenso, com a mão erguida, e os feitiços restantes que preparou tremendo dentro dele, esperava que tivesse acertado na preparação.

— Você me conhece?

Ele concordou com a cabeça. — O seu rosto é muito conhecido nesta cidade, embaixador. Algumas roupas pobres e sujeira no rosto não o disfarçam bem. Eu realmente espero que o senhor não pense que poderia passar despercebido no Velho Distrito.

— Você sentiu meu feitiço. Isso significa que você é um dos ténis ocidentais, como Mahri.

— Talvez eu simplesmente tenha me virado porque ouvi o senhor falar uma palavra, embaixador. Feitiço? Eu já vi os ténis-luminosos acenderem as lâmpadas da cidade; já vi os ténis girarem as rodas de suas carruagens e limparem a sujeira da água. Já vi algumas pessoas dessa cidade com seus pequenos e triviais feitiços de luz ensinados pelos numetodos, o que eu tenho certeza que a fé concénziana considera preocupante. Mas não vi feitiço algum há instantes.

— Você tem o sotaque.

— Então o senhor tem um bom ouvido, embaixador; a maioria pensa que sou de Namarro — respondeu o homem. — Eu sou um ocidental, sim; como Mahri, não. Houve pouquíssimos como ele. — Talis parecia calmo e confiante, e isso, juntamente com a admissão fácil, deixou Karl preocupado. Ele começou a se perguntar se havia cometido um erro grave. O homem está muito confiante, muito seguro de si. Não está com medo algum de você. Você deveria apenas ter observado, deveria apenas ter seguido o sujeito. — Então por que o embaixador dos numetodos anda por aí, pelo Velho Distrito, enquanto lança feitiços invisíveis para encontrar ocidentais, se me permite perguntar?

— Nós estamos em guerra com os ocidentais.

— “Nós?”. Então os numetodos são tão aceitos assim pelos Domínios? Eu também sei ouvir sotaques e posso lhe dizer que existem aqueles da Ilha de Paeti cujas afinidades estão mais alinhadas com os ocidentais do que com o povo de Nessântico. Afinal, Paeti foi conquistada pelos Domínios da mesma forma que os Hellins, e seu povo lutou contra aquela invasão da mesma forma que o nosso faz agora. Talvez nós devêssemos ser aliados, embaixador, não adversários.

Karl rangeu os dentes ao fechar a cara. — Isso depende, ocidental, do que você está fazendo aqui e do que fez.

— Eu não a matei, se essa é a sua acusação.

Karl quase lançou um feitiço diante disso. Eu não a matei... Então o sujeito sabia exatamente do que Karl estava atrás, e a resposta era uma mentira. Só podia ser uma mentira. O homem diria qualquer coisa para salvar a própria vida. Um ocidental e um téni... A mão erguida de Karl tremeu; a palavra de ativação em paeti já estava nos lábios. Ele era capaz de sentir seu gosto, tão doce quanto a vingança. — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Diante disto, a fúria estourou dentro de Karl, que não conseguiu mais contê-la. Ele deu um soco no ar e falou a palavra — Saighneán! —, e com o gesto e a palavra, um raio branco-azulado estalou e pulou de Karl na direção do ocidental insolente.

Mas o homem moveu-se na mesma hora e levantou a mão com a bengala. Um brilho irrompeu de maneira impossível do objeto, uma claridade que cegou Karl no momento em que filamentos de um brilho incômodo deslizaram pelo ar como se fossem dedos que arranhavam um enorme globo invisível. Os dedos etéreos agarraram seu raio e o apertaram, um pequeno sol pareceu pairar no ar entre os dois enquanto um trovão retumbava. Ele ouviu risadas. Assustado agora, Karl falou outra palavra: um feitiço de proteção contra o ataque que tinha certeza de que viria a seguir.

Mas a proteção se dissipou sem uso, e através da agitada cortina de imagens persistentes, ele viu que o beco minúsculo estava vazio. Talis sumiu. Karl soltou um grito de frustração (enquanto cabeças começavam a espiar com curiosidade das janelas fechadas, conforme chamados e berros de alarme irrompiam das casas mais próximas a ele, e filamentos de fumaça saíam das fachadas queimadas de ambos os lados da rua) e correu para o cruzamento por onde o menino fora embora.

Nem o menino, nem o ocidental estavam visíveis. Karl socou a parede mais próxima e praguejou.

 

Nico Morel

NICO DEU APENAS DOIS PASSOS ao virar a esquina e parou. Ele ouviu Talis discutir com o estranho e voltou de mansinho até eles, apoiando as costas contra a casa da esquina e prestando atenção.

— Eu não a matei, se esta é a sua acusação — falou Talis para o homem, e Nico perguntou-se sobre quem ele falava.

Evidentemente o sujeito estava igualmente perplexo, porque respondeu — Eu não falei de assassinato algum.

— Nem eu — disse Talis. — Por outro lado, não considero assassinato matar seu inimigo em tempo de guerra.

Guerra? Nico não teve tempo para ficar curioso porque o mundo explodiu. Ele nunca teve muita certeza do que aconteceu nos próximos momentos ou como poderia um dia descrever para alguém. Embora fosse dia, houve um clarão de luz que pareceu tão intenso nas sombras da viela quanto uma trovoada pulsando na escuridão da noite. O menino teve certeza de que Talis estava morto, só que ouviu sua risada no momento em que se afastou da casa a fim de correr para ajudar seu vatarh com os croissants ainda na mão, esquecidos.

Então Nico foi agarrado pelo ombro por Talis. — Por todos os moitidis, Nico... — O vatarh correu e puxou o menino com ele pelo beco, entrou em uma viela estreita entre duas casas e saiu em um beco entre os fundos dos prédios. Talis deu voltas até Nico ficar sem fôlego e confuso e então finalmente parou, ofegante.

Ele colocou as mãos nos joelhos e olhou feio para Nico, com a respiração acelerada. — Droga, Nico, eu mandei que fosse embora. Quando chegarmos em casa...

Nico segurou o choro diante do tom severo de Talis e disse — Eu queria escutar. Pensei... pensei que haveria magia.

Talis inclinou a cabeça ligeiramente, embora os olhos muito escuros ainda brilhassem com raiva. — Por que você pensou isso?

— Porque eu senti a magia em toda parte, como na hora em que sinto frio de repente e fico arrepiado. — Nico esfregou o antebraço ao mostrá-lo para Talis.

— Você sentiu a magia? — indagou o vatarh, e agora a voz não parecia tão chateada. Nico concordou com a cabeça enfaticamente. Talis ficou de pé e olhou de um lado para o outro, como se tentasse ver se o homem havia seguido os dois.

— Ele era mesmo o embaixador ca’Vliomani, o numetodo? — perguntou Nico. — A matarh diz que o viu uma vez, perto do Templo do Archigos na margem sul. Ela disse que os numetodos não deviam ser permitidos aqui. Disse que o archigos devia ser mais duro com eles.

Talis torceu o nariz e respondeu — Talvez sua matarh esteja mais certa do que ela pensa. — Ele suspirou e de repente deu um abraço em Nico. — Venha, temos que correr para casa agora, enquanto ainda há tempo.


Nico jantou sozinho no quarto, enquanto Talis e sua matarh conversavam na sala. Ele beliscou os croissants e tomou a sopa de batata-baroa que a matarh tinha feito enquanto ouvia as vozes abafadas. Na maior parte do tempo, o menino não conseguiu distinguir as palavras, mas quando os dois falavam alto, ele era capaz de entendê-los. — ... eu disse para você que eu esperava por isso. Os sinais... só que não tão cedo...

— ... quer que a gente vá embora agora? Hoje à noite? Você enlouqueceu, Talis?

— ... se vocês ficarem, correrão perigo... vá para a sua irmã...

— ... então foi você? Você mentiu para mim...

Nico ergueu a cabeça ao ouvir isso e imaginou se sua matarh falava da mulher que o embaixador acusou Talis de ter matado.

Houve mais murmúrios, depois a matarh bufou de raiva ao escancarar a porta e olhou feio para Nico sem parecer ter visto o menino. Ela começou a reunir panelas e utensílios e enfiá-los ruidosamente em sacolas de pano que usava quando ia ao mercado, enquanto murmurava consigo mesma. Talis, na passagem entre os aposentos, observou Serafina por um momento e gesticulou para Nico, que o seguiu até o quarto e viu o homem fechar a porta assim que entrou.

— A matarh está realmente furiosa — disse Nico ao se sentar na cama.

Talis concordou com tristeza. — Está mesmo, e por um bom motivo. Nico, vocês dois têm que sair da cidade. Hoje à noite. Vocês ficarão com sua tantzia em Ville Paisli, que não é longe de Nessântico.

— Você vai com a gente?

Talis balançou a cabeça. — Não. Nico, depois do que aconteceu, a Garde Kralji estará à minha procura; o embaixador é amigo do regente, e ele mandará os gardai atrás de mim. O embaixador provavelmente sabe meu nome e talvez o seu, sabe como nós somos e onde moramos. Temos algumas viradas da ampulheta antes que ele consiga alertar alguém, mas tenho certeza de que o Velho Distrito não será seguro para vocês dois em breve. Então você terá que ajudar sua matarh a pegar o que for possível e ir embora.

— Mas a Garde Kralji... — falou Nico agitado. — Você fez algo de errado, Talis?

— De errado? Não. Eu explicarei tudo para você quando eu puder, Nico, mas agora você terá que confiar em mim. Você confia em mim, filho?

Nico concordou com a cabeça, incerto. Ele não tinha certeza de nada no momento.

— Ótimo — disse Talis. — Eu vou sair agora e arrumar uma carroça para levar vocês dois para fora da cidade. Lembra-se do homem com quem falei no mercado? Uly? Ele pode me ajudar a fazer estes preparativos. Quando eu voltar, você e sua matarh precisam estar prontos para ir embora, então cuide para pegar tudo que é seu que você queira e ajude sua matarh a juntar as coisas dela.

Nico sentiu um gosto desagradável na boca, e a comida ardeu no estômago. Da cozinha, ele ouviu a matarh ainda empacotando coisas. — Mas, se você ficar, não vão te encontrar?

— Eu tenho maneiras de me esconder se estiver sozinho, Nico, e tenho coisas que preciso fazer que só serei capaz aqui. E também... — Talis fez uma pausa e despenteou a cabeça do menino. Nico fez uma careta e passou os dedos pelo cabelo para arrumá-lo novamente. — O que aconteceu mais cedo também tem que ser segredo, Nico, como todo o resto. Se você contar às pessoas o que viu, bem, irá colocar sua matarh em risco, e você não quer isso, quer?

— Foi magia, não foi?

Talis concordou com a cabeça. — Sim, foi. E, Nico, eu acho que você... — Ele parou e sacudiu a cabeça.

— O que, Talis?

— Nada, Nico. Nada. — Talis enfiou o braço debaixo da cama enquanto falava. Ele puxou a bolsa de couro que continha a estranha tigela de metal e colocou suas roupas e outros pertences dentro. — Agora, por que você não começa a juntar suas coisas? Coloque todas em um só lugar, e você e sua matarh podem decidir o que levar e o que deixar aqui. Vamos, agora.

Talis já olhava para o outro lado enquanto abria o baú ao pé da cama para tirar uma camisola de linho. Nico observou o homem. — Você é um téni?

Talis endireitou-se, já tinha posto metade da camisola na bolsa. — Não — disse ele. A maneira como Talis falou, sem olhar diretamente para Nico e estendendo a sílaba, revelou para o menino que era mentira ou o tipo de resposta evasiva que Nico às vezes usava quando a matarh perguntava se ele fizera algo que não deveria ter feito. — Agora vamos, menino. Rápido!

Nico sentiu um arrepio. Ele saiu e perguntou-se se algum dia veria esta casa novamente.

 

Enéas co’Kinnear

ENÉAS ESTAVA NA POPA do Nuvem Tempestuosa e olhava para as nuvens revoltas que pareciam perseguir o navio. O horizonte tinha um tom sinistro de preto sob as nuvens carregadas, a noite se aproximava pontuada por clarões intermitentes de raios. Ele viu a chuva torrencial difusa caindo sobre o oceano sob as nuvens e ouviu o resmungo do trovão ao longe. O Strettosei assumiu um tom fosco de verde acinzentado manchado pelas cristas brancas formadas pelo vento; as velas do navio de dois mastros inflavam e estalavam ao serem preenchidas pelas rajadas de vento forte e impulsionavam o navio pelas ondas, que ficavam maiores. A proa se ergueu e varou os morros agitados de água; o borrifo frenético molhava o cabelo dos marinheiros e deixou ensopada a bashta militar que Enéas usava. Ele sentiu o gosto de água salgada na boca. O ar parecia ter esfriado drasticamente nos últimos instantes quando os primeiros motores da tempestade aproximaram-se do navio. O mergulho e o balanço do convés sob os pés era tão preocupante que Enéas viu-se agarrado à amurada.

Ele sentia a tempestade. A energia parecia ressoar dentro de Enéas, e as pontas dos dedos formigavam a cada raio que caía, como se o tocassem ao longe.

A tempestade nos segue do oeste, como as hordas dos ocidentais, e estala com o poder dos nahualli. Persegue-nos enquanto fugimos e vem atrás de nós em nossos próprios lares... Enéas sentiu um arrepio ao ver a aproximação da tempestade e ao imaginar que podia ver as formas de guerreiros ocidentais nas nuvens ou que elas eram a fumaça das piras de sacrifício. Ele se perguntou o que teria acontecido nos Hellins desde sua partida. Imaginou e ficou preocupado com o augúrio da tempestade.

— É melhor o senhor descer para seu cabine, o’offizier. Eu farei o que puder, mas Cénzi sabe que não há como acalmar o mar com essa tempestade aí. — A téni dos ventos designada para o navio estava ao lado Enéas, ela tinha subido sem ser ouvida por causa do barulho das velas, do lamento estridente do vento através das cordas e dos chamados urgentes dos offiziers do navio para os marinheiros no convés. A téni encarava a tempestade da mesma forma que Enéas encararia uma força inimiga avançando contra ele; ela avaliava e ponderava que estratégias funcionaram melhor contra o temporal. A tarefa dos ténis dos ventos era inflar as velas quando os ventos naturais do Strettosei não cooperassem. Eles também lutavam para acalmar as tempestades que agitavam as águas profundas entre os Domínios e os Hellins, mas esta era uma tarefa mais difícil, Enéas sabia: os moitidis do céu eram poderosos e desdenhosos do Ilmodo e das tentativas dos ténis dos ventos de acalmar sua fúria.

— É das ruins? — perguntou Enéas.

O convés se elevou quando o navio passou pela próxima onda, depois caiu abruptamente quando o Nuvem Tempestuosa desceu correndo um vale de onda. Enéas passou um braço pela amurada quando a água fluiu pelo convés; a téni dos ventos só trocou o pé de apoio com facilidade e naturalidade. — Já vi piores — respondeu ela, mas aos ouvidos de Enéas isso soou mais como bravata do que confiança. — Mas nunca se sabe na verdade o que há por trás das nuvens carregadas até que se chegue lá. Deixe-me fazer um teste. — Ela ergueu as mãos e fez o gestual de um feitiço, entoou um cântico na língua do Ilmodo com os olhos fechados ao enfrentar a tempestade.

A téni abaixou as mãos, abriu os olhos e encarou Enéas. — O’offizier, o senhor também é um téni?

Ele balançou a cabeça, intrigado. — Não, eu tive um pouco de treinamento, mas...

— Ahh... — Ela fez uma pausa e franziu os olhos. — Talvez seja isso.

— O quê?

— Há um instante, quando eu me abri para a tempestade, pensei ter sentido... — Ela balançou a cabeça, e gotículas voaram do cabelo escurecido pela água. Os primeiros pingos de chuva fria caíram no convés como pedras. — Não importa. Neste momento, eu tenho que ver o que posso fazer com essa tempestade. Por favor, é melhor o senhor descer, o’offizier...

O navio balançou de novo e, com ele, lá se foi o estômago de Enéas. Um raio estalou perto, e o o’offizier quase pôde sentir a queda do relâmpago na própria pele quando os pelos nos braços se eriçaram. Ele fez o sinal de Cénzi para a téni dos ventos. — Que Cénzi esteja com você para que acalme a tempestade — disse Enéas para a mulher, que devolveu o gesto.

— Eu precisarei Dele — falou a téni dos ventos, que encarou a tempestade novamente. Agora as mãos moviam-se em um novo gestual, e o cântico era mais longo e complexo. Enéas pensou ser capaz de sentir o poder se acumular em volta da mulher; ele recuou pelo convés inclinado e escorregadio e segurou-se onde era possível até quase cair na escada estreita que levava para os apertados compartimentos dos passageiros. Lá, o o’offizier deitou-se na maca que balançava e ouviu a tempestade cair sobre eles enquanto a téni dos ventos tentava afastar a pior parte da ventania furiosa da embarcação frágil que era o navio. Enéas também rezou, com as mãos nodosas entrelaçadas à testa, e pediu a Cénzi pela segurança do navio e pelo retorno seguro a Nessântico.

Você estará seguro... Ele pensou ter ouvido as palavras, mas contra a tempestade e a vastidão do Strettosei, elas eram pequenas e insignificantes. As palavras podiam ter sido o sussurro de um mosquito.

A tempestade foi enviada para levá-lo mais rápido ao seu lar... O pensamento surgiu de repente, naquela voz baixa que ele ouvia algumas vezes desde a fuga dos tehuantinos. A Voz de Cénzi. Enéas riu com isso, e de repente não temeu a tempestade, embora o navio balançasse e o vento berrasse de maneira estridente. O medo foi embora, e o o’offizier sentiu uma certeza de que eles estariam seguros.

Enéas agradeceu a Cénzi por lhe dar esta paz.

 

Allesandra ca’Vörl

SERÁ QUE EU REALMENTE QUERO fazer isto? Allesandra sentiu um arrepio diante desse pensamento. Era, talvez, tarde demais para mudar de ideia.

Sozinha, na escuridão de um beco estreito em Brezno, em um draiordi à noite, ela esperava onde tinha sido mandado. Um homem aproximou-se, suas botas com tachas nas solas estalavam alto nos paralelepípedos, e Allesandra empertigou-se, subitamente alerta. Com todos os sentidos sob pressão, ela apertou a mão próxima à faca escondida debaixo da manga da tashta, embora soubesse que, se a Pedra Branca fosse como os rumores diziam, arma alguma a protegeria se o assassino decidisse matá-la. O homem chegou perto, com os olhos voltados para as sombras sob o capuz da tashta de Allesandra, e a avaliou.

— Ah — falou o sujeito. — Acho que você é atraente o suficiente. Que tal um programa comigo, mocinha? — perguntou ele ao se aproximar, enquanto deixava um rastro de cheiro de cerveja.

Ele acha que eu sou uma puta. Este não é ele. Mas, para ter certeza, ela abriu a mão e mostrou o seixo liso e branco acinzentado. O homem não reagiu. — Eu tenho um se’siqil que pode ser seu se você for boazinha comigo — falou o sujeito, e Allesandra fechou os dedos em volta da pedra.

— Vá embora — disse ela — ou eu chamo o utilino.

O homem fez uma cara feia, soluçou, depois passou por ela. Ele cuspiu no chão perto dos pés de Allesandra.

— Você acha que seria fácil assim? — Ao som da voz, Allesandra começou a dar meia-volta, mas uma mão enluvada pegou seu ombro e deteve a a’hïrzg. — Não — falou a voz. — Continue aí e olhe para o outro lado da rua. Eu sou a Pedra Branca. — A voz era rouca, embora com um tom mais agudo do que Allesandra tinha imaginado. Em sua mente, ela imaginava uma voz grossa e sinistra, e não essa, genérica.

— Como eu sei que é você? — perguntou ela.

— Você não tem como saber. Não agora. Você não saberá até ver a pedra no olho esquerdo do homem que quer morto. É um homem, não é? — Ela ouviu uma risadinha baixa. — Para uma mulher, é sempre um homem... ou por causa de um.

— Eu quero ver você — disse Allesandra. — Quero saber com quem falo, quem eu contrato.

— As únicas pessoas que veem a Pedra Branca são aquelas que eu mato. Vire-se e você será uma delas. Eu sei quem você é, e isso basta. Fui bem claro, a’hïrzg ca’Vörl? — Involuntariamente, Allesandra sentiu um arrepio diante da ameaça, e a voz riu novamente. — Ótimo. Eu não gosto de serviço desnecessário e não remunerado. Agora... você trouxe meu pagamento, conforme Elzbet lhe disse?

Ela concordou com a cabeça.

— Ótimo. Você vai pôr a bolsa aos seus pés e colocará a pedra que trouxe em cima dela. É uma pedra clara, tão branca quanto conseguiu achar? Você a reconheceria outra vez?

Allesandra concordou com a cabeça novamente. A a’hïrzg resistiu à tentação de olhar para trás e soltou do cinto da tashta a bolsinha pesada com solas de ouro, abaixou-se e colocou a bolsa nos paralelepípedos da rua, ao lado dos pés. Ela colocou o seixo em cima do couro macio e levantou-se.

— Em quanto tempo? — perguntou Allesandra. — Em quanto tempo você vai fazer?

— No momento que me convier e em um local à minha escolha — respondeu a Pedra Branca. — Mas dentro de uma lua, não mais do que isso. Quem você quer que eu mate? Qual é o nome dele?

— Você pode não querer o dinheiro quando eu lhe disser.

A Pedra Branca deu uma risada debochada. — Você não precisaria de mim se aquele que quer que morra não fosse alguém bem protegido, do alto escalão. Talvez, dada a sua história, seja alguém de Nessântico?

— Não.

— Não? — Havia, pensou Allesandra, decepção na voz. — Então quem, a’hïrzg? Quem você quer que morra tanto assim a ponto de me encontrar?

Ela hesitou, sem querer dizer em voz alta. Allesandra parou de prender o fôlego e suspirou. — Meu irmão. O hïrzg Fynn.

Não houve resposta. Allesandra ouviu um barulho ao longe na rua, à direita, e virou a cabeça involuntariamente para aquela direção. Não havia nada lá; sob o luar, a rua estava vazia a não ser por um utilino que acabara de virar a esquina no outro quarteirão, assobiando e balançando a lanterna. Ele acenou para Allesandra, que devolveu o gesto. — Você me ouviu? — sussurrou ela para a Pedra Branca.

Não houve resposta. Allesandra abaixou o olhar: a bolsa e a pedra sumiram. Ela virou-se. Havia uma porta fechada atrás dela, que levava ao interior de um dos prédios.

Allesandra decidiu que não seria bom para ela abrir aquela porta.

 

A Pedra Branca

— MEU IRMÃO. O hïrzg Fynn.

A Pedra Branca achava que não se surpreenderia mais a esta altura, mas isso...

Ela estava em Firenzcia há mais ou menos três anos agora, o período mais longo que passou em um lugar há algum tempo, mas o trabalho era bom lá. A Pedra Branca sabia um pouco da história de Allesandra e Fynn ca’Vörl; tinha ouvido os rumores, mas nenhum deles falava de um ressentimento tão grande na a’hïrzg. E ela mesma testemunhara Allesandra salvar o irmão de um ataque.

A Pedra Branca viu-se confusa. Ela não gostava de incertezas.

Mas... isso não lhe dizia respeito. As solas de ouro na bolsinha eram bem reais, ela tinha ouvido Allesandra claramente, e o seixo branco da mulher estava na bolsinha ao lado da pedra do olho direito, o seixo que continha as almas de todos aqueles que a Pedra Branca matou.

Os dedos apalparam o seixo branco sobre o couro fino e macio da bolsinha. O toque reconfortou a Pedra Branca, e ela pensou que podia ouvir o chamado fraco de suas vítimas.

— Eu quase matei você primeiro... Você era tão desajeitada naquela época...

— Quantos mais? Nós ficamos mais fortes cada vez que você adiciona outro...

— Em breve você nos ouvirá sempre...

Ela tirou a mão da pedra e as vozes pararam. Nem sempre elas faziam isso. Às vezes, em especial recentemente, ela ouvia mesmo quando não tocava na pedra.

Matar um hïrzg... Seria um desafio. Seria um teste. Ela teria que planejar com cautela; teria que observá-lo e conhecê-lo. Ela teria que se tornar o hïrzg.

Os dedos retornaram à pedra. — Você matou gente sem status, você matou ce’ e ci’, e eles foram fáceis demais. Você matou co’ e ca’ e sabe que eles são bem mais difíceis porque dinheiro traz isolamento e poder atrai proteção. Mas nunca isso. Nunca um governante.

— Você está com medo...

— ... Você duvida de si mesma...

— Não! — disse a Pedra Branca com raiva. — Eu sou capaz de fazer isso. Eu farei. Vocês verão. Verão quando o hïrzg estiver aí com vocês. Verão.

— Eles reconhecerão você. A a’hïrzg reconhecerá você...

— Não, não reconhecerá. Pessoas como ela sequer enxergam pessoas sem status, como eu era para a a’hïrzg. Minha voz será diferente, meu cabelo e, mais importante, minha atitude. Ela não me reconhecerá. Não.

Dito isso, ela tirou da cama a bolsinha de moedas de ouro e colocou no baú com os outros pagamentos. Do baú, ela retirou um espelho surrado de bronze e olhou o reflexo na superfície polida. Tocou no cabelo, viu os olhos atormentados, quase sem cor. Era o momento de ela se tornar outra pessoa. Alguém mais rico, mais influente.

Alguém que pudesse chegar perto do hïrzg...

 

 


CONTINUA