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A MAGIA DO ANOITECER
A MAGIA DO ANOITECER

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Niente

ELE NUNCA ESTEVE NO MAR antes e não tinha certeza se estava gostando totalmente da experiência.

Niente encontrava-se no castelo de popa do galeão capturado dos Domínios, antigamente chamado de Marguerite e agora rebatizado como Yaoyotl — que significava “guerra” em sua própria língua. O Yaoyotl navegava no meio da frota tehuantina; de sua posição, Niente podia observar as longas ondas azuis decoradas com as velas brancas de mais de uma centena de navios. Atrás deles, perdida no horizonte há dias, estava a costa oriental de sua terra e a fumaça desagradável de Munereo, queimada e saqueada, que agora era a cova da Garde Civile dos Domínios, a não ser para os poucos que recuaram para o último pequeno ponto de resistência dos orientais no continente, a cidade de Tobarro. O exército tehuantino tinha tomado Munereo, recuperado toda a terra ao sul e a oeste de suas muralhas e capturado os navios da frota dos Domínios no porto, ao menos aqueles que escaparam do fogo mágico da frota tehuantina ou que não foram postos a pique pelas próprias tripulações e mandados para o fundo do mar quando a derrota era óbvia. A maior parte dos navios que acompanhavam o Yaoyotl era de embarcações chamadas de acalli: navios de dois mastros e velas latinas com que os tehuantinos cruzavam o Mar Ocidental entre as grandes cidades que os invasores orientais nunca viram. Os acalli não conseguiam levar o número de tripulantes ou soldados que os galeões de velas quadradas de Nessântico eram capazes, nem eram tão rápidos, mas eram mais manobráveis, especialmente nas águas rasas da costa ou quando o vento estava contra eles.

Os ventos do Strettosei, no entanto, sopravam constantemente de oeste para leste nesta latitude, e o vento da passagem da frota assobiava pelos cabos tesos que seguravam as velas enquanto as proas dos navios rasgavam longas linhas brancas pelas ondas, que desciam, subiam e desciam novamente, implacáveis e eternas.

Era um movimento que, após vários dias, ainda embrulhava e fazia arder o estômago de Niente. Os braços e as pernas, contorcidos e arruinados pelos esforços do feitiço que colocara no oriental Enéas, doíam quando ele tentava se manter equilibrado no balanço do navio. Dois dos nahualli subalternos estavam no castelo com ele e o observavam enquanto Niente usava a tigela para realizar um feitiço premonitório; ele não ousaria demonstrar a fraqueza no estômago ou no corpo, ou então a notícia chegaria aos outros nahualli, e com o tempo alcançaria o ouvido do tecuhtli Zolin, que também estava no Yaoyotl. O destino de todo nahual esperava por Niente, o destino que talvez tivesse chegado até mesmo a Mahri, ou talvez a Talis também: como um nahualli, cada uso do X’in Ka tinha seu preço, e quanto maior o feitiço, mais caro o preço que os deuses cobravam.

Com o tempo, o preço seria a morte.

O balanço do navio sacudia a água na tigela premonitória e turvava as visões do futuro: aquilo incomodava Niente mais do que a náusea. Ele espiou dentro da água, que espirrava até a borda da tigela de latão. Os olhos não queriam entrar em foco; o esquerdo, turvo desde o encantamento de Enéas, tinha piorado desde o ataque a Munereo. Niente piscou, mas as cenas na tigela recusaram-se a ficar nítidas. Ele resmungou, fechou a cara e jogou fora a água sobre a amurada da popa, enojado. Os outros nahualli ergueram as sobrancelhas, mas não disseram nada. — Eu preciso falar com o tecuhtli — disse Niente. — Levem a tigela para o meu alojamento e limpem-na.

Eles abaixaram a cabeça obedientemente enquanto Niente passava pelos dois, arrastando os pés.

O nahual discutira com o tecuhtli Zolin que a estratégia era idiota, embora não tivesse ousado usar esta palavra. Ele queria desesperadamente voltar para casa, para trás das Montanhas Afiadas, para as grandes cidades em volta do lago. Para Xaria, sua esposa; para os filhos. Para a familiaridade de casa.

Niente não estava sozinho. O guerreiro supremo Citlali tomara a mesma posição, assim como vários dos guerreiros subalternos. — Por que devemos navegar até a terra dos orientais? Tomemos a última cidade que eles mantêm aqui e joguemos seus corpos na grande água. Voltemos para nossas casas e famílias, e se os orientais retornarem para incomodar nossos primos novamente, nós os afugentaremos mais uma vez.

Mas Zolin foi inflexível e declarou — Sakal exige mais de nós. É hora de mostrarmos a estes orientais que podemos machucá-los assim como eles nos machucam. Se alguém é atacado por um lobo, espantá-lo apenas poupa o lobo para um novo ataque, talvez quando ele estiver mais forte ou a pessoa estiver mais fraca. Matar o lobo é a única maneira de estar realmente a salvo.

— Isso não é um lobo — insistiu Niente. — É um monstro de várias cabeças, com um pequeno rosto que nós vimos, e estamos indo para sua toca. Pode ser que ele nos devore completamente.

Zolin resmungou ao ouvir isso. — Fugir do lobo porque se está com medo é a pior estratégia de todas. Isso só oferece ao lobo as costas desprotegidas.

No fim das contas, Zolin convenceu os guerreiros supremos, e Niente não teve escolha a não ser informar os nahualli que a tarefa deles ainda não havia acabado. Ele quase ficou surpreso ao ver que nenhum dos nahualli resolveu desafiá-lo pelo posto de nahual, como consequência.

Os alojamentos do antigo capitão ficavam embaixo do castelo de popa, e era ali que o tecuhtli Zolin tinha se instalado. A mobília oriental fora jogada ao mar e substituída pelas linhas geométricas mais familiares e os desenhos do estilo tehuantino. O aposento estava animado por tons vermelhos e marrons, as cores do sangue e da terra. O cheiro de incenso fez Niente franzir o nariz ao entrar, os criados do tecuhtli prostraram-se nos tapetes jogados sobre as tábuas de madeira.

O tecuhtli Zolin estava reclinado em uma cadeira entalhada em um único bloco de pedra verde, amaciada por travesseiros e cobertores. O rosto e o torso, como os de todos os soldados, eram tatuados com redemoinhos de traços e linhas curvas: um registro do talento em combate e da patente. A cabeça estava raspada, como sempre, e agora era decorada pela tatuagem vermelha da águia de asas abertas. Os guerreiros supremos Citlali e Mazatl estavam falando com ele em voz baixa, mas interromperam a conversa quando Niente entrou. Os rostos tatuados e carrancudos se voltaram para o nahual.

— Ah, nahual Niente — falou o tecuhtli Zolin, gesticulando. Niente cruzou o aposento até o trono e ficou de joelhos. — Levante-se, levante-se. Diga-me, o que os deuses falaram?

Niente balançou a cabeça ao ficar de pé. Ele sentiu o olhar avaliador dos guerreiros supremos. — Sinto muito, tecuhtli, mas o balanço do navio... perturba as águas. Eu vi uma batalha e uma cidade em chamas à beira de um mar, seu estandarte tremulava sobre ela, mas de resto... eu não vi nada do oriental que mandei para seu kraljiki. Não vi nada da grande cidade deles.

— Ah, mas o estandarte e a cidade em chamas... isto só pode indicar vitória. Quanto ao seu oriental... — Zolin fungou e cuspiu no chão — ... essa era a estratégia do velho Necalli, e nem mesmo o grande Mahri teria sido capaz de fazer com que funcionasse.

Niente ficou vermelho com a indireta e irritado com o menosprezo que Zolin demonstrou por Mahri, cuja habilidade com o X’in Ka era lendária. Mahri evidentemente havia falhado, sim, mas isso só podia ter acontecido porque alguma força dos orientais tinha sido ainda mais forte. Niente abaixou a cabeça, mais para esconder o rosto do que por submissão. — Deve ser como o senhor diz, tecuhtli.

Zolin riu ao ouvir isso. — Ora, vamos, Niente, não seja tão modesto. Ora, você é um vidente e um nahualli de um nível que não vemos desde Mahri. Melhor até, pois Mahri não conseguiu impedir que os orientais invadissem nossas terras e as de nossos primos. Necalli era um tolo que desperdiçava recursos valiosos. Ele desperdiçou você também; todo aquele esforço que você concentrou naquele oriental. Mas agora... — Zolin abriu um largo sorriso. — Eu fiz os orientais recuarem para uma cidade sem importância na terra de nossos primos, com a ajuda de seus conselhos e habilidades, e agora temos a oportunidade de pilhar os orientais como eles um dia pilharam nossos primos do Mar Oriental. — O tecuhtli abanou a mão. — Eu mesmo arrancarei a cabeça dessa serpente oriental e tomarei providências para que nunca cresça outra. — Ele abaixou a mão e deu um sorriso cruel, mas a expressão dos dois guerreiros supremos era séria e impassível.

Niente perguntou-se qual dos dois poderia um dia desafiar Zolin, caso esta expedição falhasse, como ele temia que aconteceria.

O nahual compartilhava da atitude azeda de Citlali e Mazatl. Zolin não era diferente de muitas pessoas fora do círculo dos nahualli. Todas elas pensavam que seu dom era uma coisa simples: bastava olhar na água e deixar a deusa-lua Axat girar o futuro diante dos seus olhos. As pessoas não entendiam que as visões de Axat eram confusas e às vezes opacas, que o que nadava na água sagrada eram apenas possibilidades, e que essas possibilidades podiam ser alteradas, mudadas e até mesmo evitadas pelas habilidades de outras pessoas. Mahri — cujas habilidades, diziam, superaram a de qualquer nahualli — descobrira como Axat podia ser volúvel: a morte de Mahri foi um das primeiras visões que Niente viu em uma tigela premonitória; foi aquela visão que demonstrou para os mentores de Niente como ele tinha sido abençoado por Axat e Sakal. Talis, que fora mandado pelo tecuhtli Necalli para Nessântico, confirmou a visão de Niente: Mahri tinha falhado e tinha sido morto.

Aqueles sem o dom pensavam que devia ser maravilhoso ter o poder de Axat e Sakal, da lua e do sol. Não viam como usar o dom roubava força e vitalidade; como desfigurava e distorcia quem usava o poder. Agora mesmo, Niente podia olhar no espelho de bronze do alojamento e ver as rugas fundas no rosto, rugas que ninguém de sua idade já deveria ter. Notou a boca murcha, que o olho esquerdo chorava constantemente e agora estava esbranquiçado por uma nuvem mágica, que o cabelo ficava mais ralo e com mechas grisalhas. Ele sentia uma dor constante nas juntas que um dia viraria facas cruéis de agonia. Niente jamais conheceu Mahri, mas tinha vislumbrado o rosto do homem na tigela premonitória, e temia que um dia ele também visse as pessoas desviarem o olhar em vez de encará-lo e que ouviria os gritos de crianças assustadas quando passasse.

E Niente sabia que o tecuhtli Zolin podia estar satisfeito com ele agora, mas que o prazer do tecuhtli era frágil e podia desaparecer tão rápido quanto a bruma na luz do sol. Uma batalha perdida... Era tudo o que bastava, e tecuhtli Zolin procuraria por um novo nahual para estar ao lado dele.

— Eu rezo para Axat para que o senhor mate a serpente oriental — disse Niente para Zolin. — Mas eu...

Ele parou ao ouvir um chamado vindo do convés. — Terra... — gritou alguém. — A costa oriental...

Zolin sorriu ainda mais e falou — Ótimo. É chegado o momento de ver uma cidade queimar e nossos estandartes tremularem sobre a terra deles. — Ele ficou de pé e espantou os criados que correram para ajudar. — Venham, vamos ver esta terra juntos, com nossos próprios olhos, antes de tomá-la.

 

Karl ca’Vliomani

— BEM? — PERGUNTOU KARL PARA VARINA quando ela voltou para o quarto. Varina tirou a capa dos ombros e desmoronou em uma cadeira.

— Ela é a matarh de Nico, com certeza — respondeu Varina. — Eu contei que soube que o filho dela tinha fugido, e que quando nós estivemos em Nessântico, eu vi um menino na rua Crescente. A mulher arregalou os olhos quando ouviu isso e me disse que aquela era a rua onde ela morou até o mês passado. Quando descrevi o menino e a casa, a mulher começou a soluçar. Fiz o possível para evitar que ela voltasse correndo para Nessântico hoje à noite.

— E Talis?

— Talis é o vatarh do menino, e ela é apaixonada por ele, Karl. Isso também era óbvio; na verdade, eu suspeito que a mulher esteja grávida de Talis novamente, pelo jeito que segura o corpo quando fala sobre ele. Seu encontro com Talis o assustou tanto que ele despachou a esposa e Nico para fora da cidade; acho que Talis pensou que você mandaria a Garde Kralji atrás dele. Ela está esperando que Talis venha e que Nico retorne também. — Varina recostou a cabeça, fechou os olhos e suspirou. — Ela não trairá Talis para recuperar Nico, Karl. Honestamente, eu nem abordei essa possibilidade com a mulher. Na verdade, eu tenho certeza de que ela está no quarto agora fazendo as malas e se aprontando para ir embora amanhã para Nessântico, na esperança de encontrar Nico lá. A mulher está agitada e sofrendo desde que o menino foi embora. — Ela abriu os olhos novamente e encarou Karl. — É o que eu faria, no lugar dela. Sinto muito... Eu sei que você queria que eu fizesse, mas... não consegui levar adiante. Não consegui manter o filho da mulher como refém em troca de ela entregar Talis para nós, não quando não sabemos onde Nico está, na verdade. Sinto muito. Eu sei que você suspeita que Talis seja o assassino de Ana, e você tem bons motivos para ter essas suspeitas, mas isso...

Outro suspiro. Varina espalmou as mãos. — Eu não consegui fazer.

Não havia arrependimento na voz ou no olhar de Varina. E Karl descobriu que não conseguia ficar com raiva dela — o embaixador sabia como teria sido a situação com os próprios filhos. Karl podia ter sido um vatarh ruim e ausente para eles, mas se tivesse chegado a esse ponto, ele teria feito o que fosse necessário pelos filhos.

Ao menos era o que ele dizia para si mesmo. Ele se perguntou se era verdade. E se Kaitlin tivesse mandado chamá-lo enquanto Karl estava em Nessântico, enquanto Ana estava viva? E se ela tivesse chamado Karl de volta, pelo bem dos filhos? Será que ele teria ido? Ou teria dado alguma desculpa, teria descoberto alguma razão irresistível para permanecer aqui com Ana.

— Karl? — perguntou Varina. — Você está irritado comigo?

Ele balançou a cabeça e disse — Não se preocupe. Eu compreendo. — Os dedos roçaram os pelos da barba. Ele se sentia velho na noite de hoje. Os ossos estavam frios, e o fogo da lareira não ajudava a aquecê-los. — Eu voltarei com a mulher — falou Karl finalmente, quando o silêncio ameaçou durar tempo demais. — Talvez Talis venha atrás dela. Talvez a mulher saiba onde Talis está escondido.

— Se voltar, a Garde Kralji irá encontrar você, e o kraljiki mandará que seja torturado e executado. Seu corpo balançará em uma das jaulas da Pontica Kralji, com corvos arrancando a carne dos seus ossos.

Karl sentiu um arrepio e envolveu o próprio corpo com braços, que pareciam cansados e fracos. — Você pode ter razão. Mas do que eu estou correndo atrás, Varina? O que eu realmente ganhei por sair de Nessântico? Como encontrarei quem matou Ana em outro lugar? — Ele balançou a cabeça. — Não, eu preciso voltar. Esse não é o método numetodo? Para aprender, é preciso examinar; para compreender, é preciso experimentar. É necessário ter fatos. Ter encontrado a matarh de Nico... — Ele sentiu um arrepio novamente. — É quase como se o fantasma de Ana tivesse me conduzido aqui.

— Você não acredita em fantasmas nem deuses, Karl. Só acredita no que consegue ver, tocar e examinar. Não é este o método numetodo?

Ele deu um leve sorriso ao ouvir isso e falou — Não, eu não acredito em fantasmas, mas é estranho como um pensamento assim é confortante, não é? Quase faz entender o apelo que a religião tem para as pessoas. — Karl respirou fundo. — Ainda assim, eu voltarei.

— Então eu voltarei com você — disse Varina. — Assim como você, não há nada que eu esteja correndo atrás. E você precisará de ajuda.

— Você não precisa fazer isso. O kraljiki fará com você o mesmo que faria comigo... ou pior. Não há motivo para você voltar, afinal... — A voz de Karl foi sumindo.

Varina não respondeu, mas Karl notou o jeito dos lábios, a postura do corpo, viu a maneira com que ela olhava com raiva para ele, e subitamente Karl soube, e a revelação foi dolorosa. — Ah — falou o embaixador. Ele se perguntou como podia ter sido tão cego. Ficou de pé e andou até onde Varina estava sentada. Ele começou a colocar a mão no ombro dela, mas Varina franziu os olhos e ele recolheu a mão. — Varina...

Ela sustentou o olhar de Karl, os olhos castanhos de Varina vasculharam os dele. — Você amava Ana, embora ela nunca tenha correspondido exatamente com o mesmo amor. Ana estava muito envolvida com o que enxergava como a única tarefa da vida dela — falou Varina, baixinho. Ela acenou com a cabeça. Os lábios tremeram, como se quisesse sorrir, depois voltou a fechar a cara. — Bem, eu entendo essa situação, Karl. Entendo muito bem.

— Eu não sei o que dizer.

Varina sorriu então, a expressão tinha o toque de uma emoção escondida que Karl não conseguiu decifrar. — Então você não deve dizer nada. Eu não disse nada que exija uma resposta, a não ser que voltarei com você, não importa o que diga.

Varina sustentou o olhar de Karl sem piscar, até ele concordar com a cabeça. — Tudo bem — falou Karl. Ela concordou com a cabeça, mas não falou nada. O silêncio durou muito tempo e ficou cada vez mais incômodo, os dois olhavam fixamente para o pequeno fogo na lareira. Os pensamentos rolavam na cabeça de Karl: todas as vezes que ele e Varina estavam juntos, os comentários que ela fazia, os olhares, os toques ocasionais, a maneira como ela sempre se desviava de perguntas sobre interesses românticos que pudesse ter, a forma como Varina se atirou no trabalho dos numetodos.

Ele deveria ter sabido. Deveria ter percebido. Mas o silêncio já havia tornado mais difíceis as perguntas que Karl deveria ter feito. Ele pigarreou. — Se... se você voltar comigo para Nessântico, então talvez precise começar a me mostrar mais sobre esse modo ocidental de fazer magia.

Abrigar-se no trabalho para evitar intimidade: era o que Ana sempre fazia, afinal de contas.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA ACHOU A HISTÓRIA DE SERGEI fascinante, embora conhecesse bem o homem a ponto de saber que havia detalhes que ele escondia. Allesandra não se importou com isso; ela teria feito o mesmo no lugar dele. Ela fez o mesmo, durante os longos anos que ficou presa em Nessântico. Allesandra gostava da archigos Ana, que a tratou de maneira correta e respeitosa, e era fascinada por Sergei, primeiro pela reputação e pelo nariz de prata, depois — quando passou a conhecê-lo — pela inteligência e personalidade sombria e intrigante.

— Ca’Rudka é um homem interessante e habilidoso, e eu não estaria onde estou agora se não fosse por ele — disse a archigos Ana certa vez para ela, quando se passaram alguns anos de exílio e Allesandra virava uma jovem moça. — Mas você não pode confiar inteiramente nele. Ah, ca’Rudka honra a palavra, mas ele dá esta palavra com cuidado e a contragosto. E manterá a palavra ao pé da letra, mas talvez não fiel ao espírito. Sua verdadeira lealdade é a Nessântico, não a qualquer pessoa dentro dela. Eu não acho que ele ame alguém, não acho que jamais tenha amado. Seus verdadeiros amores são a cidade e os próprios Domínios. E alguns de seus gostos, o que ele tem prazer em fazer... — Ana fez uma careta ao dizer isso. — Eu espero que sejam apenas histórias terríveis, que não sejam verdadeiras.

Allesandra lembrou-se dessa conversa enquanto observava Sergei, agora vestido na moda e cores atuais de Firenzcia. Ele veio a convite de Allesandra para almoçar nos aposentos da a’hïrzg no Palácio de Brezno, e se ficou ofendido com a cuidadosa revista corporal antes que fosse permitido entrar, ou se notou os dois gardai armados que o observavam atentamente de seus postos no cômodo, Sergei não disse nada. Ele sorriu para Allesandra como teria feito para qualquer ca’ em Nessântico e elogiou a apresentação e o gosto da refeição enquanto os criados entravam e saíam, recostou-se na cadeira segurando uma xícara de chá como se estivesse relaxado e à vontade. Sergei contou como foi aprisionado na Bastida e como escapou. Allesandra observou o rosto do homem, as mãos — nenhum deles revelava emoção alguma; ele poderia estar contando uma história que aconteceu com algum parente distante, alguma certa vez.

— Então o embaixador numetodo ajudou você? — Allesandra também se lembrava de Karl ca’Vliomani, que era tão obviamente apaixonado pela archigos Ana, embora ela parecesse tratá-lo apenas como um bom amigo. Allesandra não se importava muito com ele ou com os numetodos, que desdenhavam e debochavam de sua própria crença, que não acreditavam em nenhum deus. Os numetodos acreditavam que o mundo sempre existiu, que era velho de uma maneira impossível, que os processos naturais podiam explicar tudo dentro do mundo; o absurdo e a arrogância da filosofia deles incomodavam Allesandra. — Isso não vai deixar o archigos Semini satisfeito... nem o archigos Kenne, imagino.

— Foi um ato de amizade e nada mais.

— Uma vez, a archigos Ana me disse que todo ato reflete a fé da pessoa que o comete — falou Allesandra. — Você é um numetodo agora, Sergei?

Ele balançou a cabeça. — Não. Eu acredito tão piamente em Cénzi quanto sempre acreditei.

A a’hïrzg perguntou-se se a declaração era uma mera falsidade engenhosa, mas deixou para lá. — Será que o kraljiki Audric pode realmente governar os Domínios? Será que o archigos Kenne pode unir os a’ténis como Ana fazia?

— Só o tempo pode lhe dar essa resposta, a’hïrzg.

— Então me conceda uma especulação.

Sergei deu de ombros. — O archigos Kenne é... fraco. Não apenas fisicamente, mas também quando se trata de confrontar. Ele é um homem bom, moral e fiel, mas é um seguidor, não um líder. É louvável que ele conheça e reconheça este defeito. O Colégio A’téni o elegeu como archigos por causa disso: eles não queriam outro líder forte como Ana. Quanto ao kraljiki Audric... bem, ele é só um menino e tem péssima saúde. Tenho certeza de que a senhora tem seus próprios agentes, que passam relatórios, mas suspeito que eles não contaram toda a história.

Sergei inclinou-se para a frente e pousou a xícara de chá e o pires silenciosamente sobre a mesa. Allesandra viu o próprio reflexo distorcido no nariz dele. — Audric enlouqueceu — falou Sergei, baixinho, e bateu com o indicador na testa. — O quanto ele enlouqueceu, eu não sei. Eu mesmo notei antes de Audric me mandar para a Bastida, e depois meus amigos na corte e na Fé me mandaram notícias. O kraljiki conversa com o quadro de sua mamatarh Marguerite; ele coloca a pintura ao seu lado direito na corte como se ela fosse sua conselheira.

— Sério? — Allesandra gesticulou, e um dos criados correu para encher as xícaras novamente. Ela viu o líquido dourado soltar fumaça em sua xícara. — E ninguém diz nada?

— Os kralji às vezes agem de modo esquisito e às vezes punem aqueles que apontam sua esquisitice. Isso aconteceu muitas vezes na longa história de Nessântico; nós dois podemos citar nomes, tenho certeza. E se o problema não parece afetar os Domínios diretamente... — ele deu de ombros — ... então é melhor não comentar nada... e tomar cuidado. Tenho certeza de que é o que Sigourney ca’Ludovici está fazendo: ela quer o trono e espera a oportunidade para tomá-lo. A maior parte do Conselho dos Ca’ apoiaria Sigourney; o Trono do Sol será dela se Audric morrer ou tiver que ser... removido. Qualquer uma dessas duas é uma possibilidade bem provável nos próximos meses, eu suspeito.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela ergueu a xícara, soprou a superfície aromática e tomou um gole com cuidado. Nenhum dos dois falou alguma coisa por vários instantes. — Por que você veio para cá, regente? — perguntou a a’hïrzg, finalmente. — Eu sei o que você disse para meu filho e para o archigos, mas eu acho que tem mais alguma coisa.

Sergei olhou para trás, para os gardai, e não disse nada. — Eles são homens de minha confiança — falou Allesandra. — Meus gardai escolhidos a dedo, estão comigo desde que voltei para Firenzcia. Eu confio totalmente neles. Tenho certeza de que você teve homens sob seu comando em cuja integridade você confiava dessa maneira.

— Pela minha experiência, quase todo mundo tem um defeito que pode ser explorado. Eu aprendi que, quanto menos ouvidos escutam alguma coisa, mais chances há de que as declarações não sejam repetidas.

Allesandra esperou enquanto tomava o chá; Sergei esfregou o nariz e turvou o reflexo da a’hïrzg.

— Como queira — disse ele, finalmente. — Nessântico e os Domínios têm sido a minha vida, a’hïrzg. Esta é uma lealdade a qual não posso e nem irei abrir mão. Meu desejo mais sincero é ver os Domínios restaurados ao que eram na época em que a kraljica Marguerite estava no trono. Eu gostaria de ver a senhora em Nessântico, como a kraljica Allesandra. A senhora pode ser a kraljica que Nessântico precisa agora.

Embora estivesse esperando estas palavras, Allesandra ainda se viu um pouco nervosa. Viu só, vatarh? Viu só? Esse é o legado que o senhor queria, e essa é a promessa que o senhor abriu mão quando me abandonou por Fynn. A emoção de sua resposta interior surpreendeu Allesandra; ela sentiu o calor subir do peito para o rosto. Fez um esforço para não demonstrar nada disso para ca’Rudka. — Sonhar não custa nada — disse a a’hïrzg. — Nós podemos sonhar à vontade. Poder realizar o sonho é uma coisa completamente diferente.

— No entanto, se duas pessoas tiverem o mesmo sonho, e ele coincidir com o de outras pessoas, e se estas pessoas forem poderosas o suficiente... — Sergei sorriu e fechou os dedos sobre a toalha de mesa de renda, como se estivesse rezando. — Este seria o seu sonho também, a’hïrzg? A senhora consegue ver um ca’Vörl no Trono do Sol? Eu sei que seu vatarh tinha essa visão.

Ele sabe. — Vamos deixar este assunto de lado por um momento, regente. Há outras questões envolvidas caso perseguíssemos esse objetivo... e não estou dizendo que estamos. E quanto à fé concénziana? Quem seria o archigos nestes Domínios restaurados que você imagina: Semini ou Kenne?

— Apesar do que eu disse sobre os defeitos dele, eu gosto do archigos Kenne. Ele é meu amigo, sua fé é verdadeira, e, como eu disse, ele é um bom homem.

— Ele pode ser tudo isso, mas Kenne não é um amigo de Firenzcia e, como Ana, ele passaria a mão na cabeça dos hereges. E Semini é meu amigo.

Sergei fez um som contemplativo no fundo da garganta. — Há rumores, a’hïrzg, de que ele talvez seja mais do que isso.

Allesandra ficou vermelha ao ouvir isso. O garda atrás do regente levou a mão ao cabo da espada, mas ela fez que não com a cabeça para o homem. — Você fala abertamente demais sobre rumores e mentiras, regente. Você não pode mais me tratar como uma menina ou uma refém da realeza. Você está em minha terra, e é a sua vida que está em jogo, não a minha. Se essa é a maneira como falava com Audric, então não é de admirar que ele não quisesse mais que você fosse regente.

Sergei abaixou a cabeça, mas não havia desculpas no olhar implacável. — Minhas desculpas, a’hïrzg. Minha estada na Bastida acabou, infelizmente, com minha diplomacia e paciência. Mas esses rumores e mentiras me preocupam de verdade, se formos trabalhar juntos.

— O archigos já tem uma esposa. É tudo o que precisa ser dito, e toda a resposta que você receberá. Quanto ao archigos Kenne... — Allesandra também se lembrava de Kenne ca’Fionta: um homem gentil, quieto, que sempre foi um eficiente subcomandante, mas que nunca questionava o que lhe era pedido ou dizia o que pensava. A a’hïrzg não conseguia imaginá-lo como archigos. Ana também podia ser gentil e carinhosa, mas havia ossos duros e aço sob o veludo, e ninguém gostaria de ser inimigo dela. Allesandra não tinha certeza do que havia sob o exterior de ca’Fionta, mas suspeitava que a avaliação de Sergei era correta.

Mas Semini... Semini podia ser tão inflexível e forte quanto Ana. — Se você quiser a ajuda de Firenzcia — continuou ela —, se quiser a ajuda de nossos ténis-guerreiros, então será o archigos Semini, e não o archigos Kenne, quem reunirá a fé concénziana. Kenne não precisa ser morto; se puder ser convencido a renunciar ao título pelo bem da Fé, talvez até mesmo para se tornar o a’téni de uma das cidades. Eu desconfio que um amigo poderia convencer outro amigo da sensatez desse rumo. Eu espero, pelo bem de Kenne.

Allesandra recostou-se na cadeira. Sergei, pela primeira vez, tinha uma expressão de incerteza no rosto, e ela ficou surpresa com a intensidade da alegria que esta reação lhe proporcionou. A a’hïrzg perguntou-se se era assim que uma kraljica ou hïrzgin geralmente se sentiam, se era uma das dádivas do poder. Uma dádiva ou talvez uma armadilha para aqueles que cediam ao domínio daquela sensação. — Eu sei o que eu trago para você, regente. Eu trago meu nome e minha genealogia. Trago o inigualável exército de Firenzcia, através do meu filho. Trago os temíveis ténis-guerreiros da verdadeira fé concénziana através do archigos Semini. Trago Miscoli, Sesemora e as Magyarias, que obedecem a Firenzcia. Eu trago tudo isso à mesa. O que você traz para nós, regente?

Sergei não respondeu imediatamente. O indicador direito roçou a borda da xícara diante dele, e o regente pareceu observar o desenho das folhas no fundo. — Eu trago conhecimento. Eu conheço a Garde Kralji e a Garde Civile e as forças e fraquezas de seus comandantes. Conheço Nessântico; conheço todos os seus caminhos e segredos. Há aqueles na Garde Civile e na Garde Kralji que responderão se eu chamá-los. Há aqueles entre os ca’ e co’ que farão a mesma coisa. Há chevarittai que virão a mim se eu convocá-los. Pode ser, a’hïrzg, que eu consiga lhe entregar o Trono do Sol com o mínimo de vidas perdidas possível.

— Ora, se é capaz de fazer tudo isso, por que você não é o próprio kraljiki em vez de um refugiado? — perguntou Allesandra, mas ela não deu tempo para Sergei responder. — Se é capaz de fazer tudo isso, o que você quer em troca?

— Nada — respondeu Sergei, e Allesandra ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Dê-me a recompensa que a senhora achar condizente. Eu faço isso apenas por Nessântico, por que sempre empenhei a vida. Uma vez, eu protegi Nessântico da agressão de Firenzcia; agora, eu entregarei Nessântico a Firenzcia livremente. A kraljica Marguerite acreditava no casamento como uma forma de conciliar forças opostas, e eu acredito na mesma coisa, porque o casamento de Nessântico com Firenzcia é tudo que ela precisa agora para sobreviver.

Belas palavras, Allesandra queria dizer, com desdém. A a’hïrzg não tinha certeza se acreditava realmente no homem, mas Cénzi tinha trazido o regente até ela, de maneira totalmente inesperada, um presente irrecusável. — Você é uma jovem inteligente, talentosa e atraente — disse a archigos Ana para ela quando chegou a Nessântico a notícia de que seu vatarh nomeara o menino Fynn como a’hïrzg e se recusara a pagar o resgate exigido pelo kraljiki Justi para sua libertação. Aconteceu em menos de um ano dentro do período de sua prisão cheia de confortos e luxos, e Allesandra chorou de perplexidade e medo. Ana, a inimiga, abraçou e confortou Allesandra, fez carinho em seu cabelo e acalmou a menina novamente. — Eu sei que Cénzi tem um plano para você. Eu sinto isso, Allesandra. Há um grande papel para você cumprir ainda na vida...

Allesandra cumpriria esse papel. Ela teria aquilo que um dia seu vatarh lhe prometeu: o colar reluzente de Nessântico. Aquele era o motivo pelo qual Sergei ca’Rudka tinha aparecido neste momento.

— Veremos, regente ca’Rudka — foi tudo que Allesandra disse para ele agora. — No fim, será como Cénzi quiser...

 

Niente

NIENTE ESTAVA NA ENCOSTA de Karnor com o tecuhtli Zolin e seus guerreiros supremos, com a cidade estendida embaixo, e ele viu a cena que tinha vislumbrado na tigela.

As janelas do templo logo abaixo de Niente estavam quebradas, pareciam olhos arrancados no crânio de um prédio em ruínas. A fuligem escurecia as pedras em volta, uma fumaça imunda ainda subia entre elas. O meio domo de ouro estava quebrado, a alvenaria dourada, desmoronada. Chamas disparavam para o alto em uma dezena de pontos da cidade, mais intensas do que o sol do poente.

O ataque ocorreu facilmente e com rapidez. Assim que eles viram as encostas da grande ilha de Karnmor dos orientais, Niente reuniu os nahualli que podiam controlar o vento e o céu, e eles conjuraram uma muralha de bruma espessa para esconder a frota tehuantina enquanto ela se aproximava. A neblina envolveu os tehuantinos em um ar branco acinzentado e abafou os barulhos dos preparativos. Quando a bruma mágica acabou e foi soprada pelo vento, o Yaoyotl — com a bandeira da águia dos tehuantinos — já estava na boca do porto de Karnor, com os navios coirmãos espalhados em duas grandes alas de ambos os lado. O porto de Karnor era extenso e fundo, aninhado em penhascos de braços rochosos com a cidade empoleirada bem ao longe, a quilômetros de distância.

Um punhado de navios da marinha dos Domínios estava ancorado ali, e eles foram manobrados para encarar o ataque enquanto as embarcações pesqueiras e de lazer fugiam para um lugar seguro. Niente teve que admirar a bravura dos capitães dos Domínios: diante de uma força imensamente superior, eles não fugiram, mas se voltaram para confrontá-la diretamente, com suas bandeiras azuis e douradas tremulando no topo dos mastros. Ainda assim, foi um massacre. O vento do mar veio atrás da frota tehuantina, e os navios dos Domínios tiveram que avançar lentamente contra o vento. Os ténis-guerreiros a bordo dos galeões dos Domínios tiveram pouco tempo para preparar os feitiços — talvez mais poderosos que aqueles dos nahualli, mas lentos de serem criados, e Niente tinha passado o dia exigindo de seus nahualli. Os cajados mágicos estavam cheios, as areias negras já preparadas. Os feitiços dos nahualli foram capazes de desviar a maior parte do fogo disparado pelos ténis-guerreiros para longe dos navios tehuantinos, embora a embarcação ao lado do Yaoyotl tivesse levado um tiro em cheio que se espalhou como uma monstruosa onda de fogo e destruição pelos conveses e fez dezenas de homens pularem aos gritos nas vagas frias. O disparo fez o navio pegar fogo e encalhar, de maneira que as embarcações atrás tiveram que se virar de repente para evitá-lo.

O tecuhtli Zolin estava no convés e berrava ordens do castelo de popa; os navios tehuantinos responderam com enormes dardos com cápsulas de areia negra na ponta lançados dos conveses: as catapultas dispararam os projéteis faiscantes na direção dos defensores de Karnmor; as cápsulas, encantadas com feitiços de fogo, explodiram com o impacto, o que estilhaçou tábuas e arrancou braços e pernas ensanguentados de marinheiros azarados. Os navios de Nessântico fracassaram, as velas estavam em chamas ou penderam quando perderam o vento sob o ataque. O tecuhtli Zolin gritou ordens e um segundo bombardeiro de projéteis de fogo varreu os inimigos.

Eles deixaram os defensores na retaguarda como nada mais do que carcaças consumidas pelo fogo até a linha-d’água, e a frota tehuantina avançou para o porto interno da cidade. Os soldados de Karnor estavam reunidos ali sob o comando de uns poucos chevarittai a cavalo, mas o tecuhtli Zolin berrou ordens mais uma vez, e as catapultas dispararam seus terríveis mensageiros em meio aos inimigos, as explosões fizeram tremer os morros íngremes onde Karnor foi construída e atearam fogo entre os prédios. Os soldados e os nahualli deram gritos de vitória quando se aproximaram do porto, o som dos homens batendo os cajados mágicos e as espadas nos escudos era aterrorizante. Niente gritou ao lado deles, a própria garganta estava rouca por causa dos berros e da fumaça da batalha. Ele viu moradores fugirem pelas ruas em turbas desorganizadas que subiam e se afastavam do repentino conflito da batalha no porto, enquanto pranchas eram descidas e expeliam soldados tehuantinos. Eles avançaram aos gritos, os rostos tatuados estavam furiosos e alegres ao mesmo tempo. O tecuhtli Zolin liderava os homens, a escada curva reluzia à luz do sol e a voz desafiava o inimigo à espera. Niente e seus nahualli correram atrás dos soldados, seus cajados mágicos emitiam um brilho branco ao disparar raios nas fileiras dos soldados. O próprio cajado de Niente se esgotou rapidamente, ele pegou o conjunto de garras de águia que estava amarrado nas costas, girou o tubo de marfim para ativar o feitiço de fogo por contato e jogou os artefatos sobre as primeiras fileiras de soldados para que explodissem no meio dos inimigos. Em um momento, um soldado ferido de Nessântico levantou-se do chão quando Niente passou por cima dele. Por sorte, o homem estava fraco por conta dos ferimentos, e o nahual conseguiu se desviar da estocada vacilante da espada. Ele sacou a faca do cinto e passou o gume afiado na garganta exposta do sujeito antes que o soldado pudesse se recuperar. O sangue quente jorrou sobre a mão de Niente, e o homem soltou um grito gorgolejante ao desmoronar pela última vez. Uma facada forte na lateral do pescoço do soldado acabou com ele, e Niente levantou-se para descobrir que a batalha estava praticamente encerrada, os defensores recuando para o interior da cidade e sendo perseguidos pelos tehuantinos.

No momento em que o sol se pôs — vermelho e melancólico em meio à fumaça da cidade em chamas —, Karnor era dos tehuantinos, ou o que tinha sobrado da cidade. Embaixo dele, Niente ouviu gritos e gemidos fracos enquanto os tehuantinos saqueavam a cidade e matavam quem encontrassem por lá. Mais embaixo ainda, no porto, os porões dos navios tehuantinos estavam sendo preenchidos com a riqueza da cidade.

Niente estava com o tecuhtli Zolin e os guerreiros supremos tehuantinos Citlali e Mazatl. Ali perto, vigiados por guerreiros tatuados, o comandante e três offiziers superiores dos defensores estavam ajoelhados, amarrados e amordaçados. Os prisioneiros encaravam a fogueira armada pelos nahualli sob orientação de Niente e olhavam para o altar plano de pedra do Templo de Karnmor, que Niente tinha ordenado que fosse arrastado até o cume do monte Karnmor.

Quatro garras de águia, com os chifres cheios de areia negra, foram colocadas no centro do altar de pedra. Os prisioneiros olhavam fixamente, sobretudo para elas.

— Esses orientais — comentou o tecuhtli Zolin — são péssimos guerreiros. Eles correram como crianças assustadas. — Ele olhou novamente para os prisioneiros com uma expressão de desdém. O tecuhtli usava sua armadura de couro e bambu, com um talho aqui e ali de uma lâmina inimiga, e os tubos roliços chacoalhavam baixinho enquanto ele se mexia. A armadura estava respingada e manchada de sangue, embora pouco parecesse ser de Zolin. O sol tinha se posto completamente agora, e a lua surgiu a leste...

Zolin olhou na direção da lua. — Axat sequer aceita a oferta desses incompetentes.

Niente lembrou-se das batalhas em volta do lago Malik e balançou a cabeça. — Tecuhtli, eles foram pegos de surpresa e não estavam preparados para nós. Isso não acontecerá novamente. Os rumores do que aconteceu aqui chegarão ao kraljiki e aos comandantes do exército oriental. Talvez... — Ele hesitou, não queria dizer as próximas palavras. — Talvez seja melhor pegarmos o que conseguimos aqui e voltarmos para casa.

O tecuhtli Zolin deu uma gargalhada debochada. — Voltar? Agora? Quando estamos aqui, na fumaça da vitória, exatamente como você previu? Nahual Niente, você me desaponta. Eu vim aqui desafiar esse kraljiki que manda seu povo roubar a terra de nossos primos, mas sequer lidera o próprio exército. Citlali, Mazatl, o que vocês me dizem?

Mazatl já estava de cara amarrada, a luz da fogueira banhava o rosto marcado. Assim como Zolin, ele ainda usava a armadura surrada e ensanguentada. — Eu digo que estou contente por estar em terra firme, mesmo aqui. Voltar para o mar? — O supremo guerreiro cuspiu nas pedras aos pés. — Eu vim para lutar, não velejar. Eu digo para darmos a Axat o que Ela ganhou aqui e depois seguirmos em frente. — Citlali concordou com um murmúrio, mas parecia estar menos convicto.

Os nahualli e guerreiros reunidos perto do fogo já haviam começado o cântico baixo e assustador da prece à Axat. O luar brilhou forte sobre o altar de pedra e reluziu nas pontas grossas de vidro das garras de águia. Niente acenou com a cabeça para Zolin.

Dois nahualli agarraram um dos prisioneiros e arrastaram o homem para frente. O offizier choramingava de medo e invocava Cénzi. Os nahualli colocaram o homem sobre o altar de pedra, de joelhos. Ele ergueu os olhos para Niente, aterrorizado. — Vá bravamente para sua morte — disse o nahual para o oriental em sua própria língua ao pegar uma garra de águia. Ele girou a ponta do chifre, e o fatídico clique soou alto quando o feitiço foi ativado. — Reze para o seu deus. A morte será rápida. Eu lhe prometo ao menos isso. — Niente acenou novamente com a cabeça, e os nahualli seguraram firmemente os braços do homem, que fechou os olhos e moveu os lábios em uma prece silenciosa.

O nahual abriu a própria mente para Axat e para o brilho da lua, depois pressionou a boca ossuda da arma no estômago do homem. O som do disparo da garra de águia ecoou pela cidade.

 

Allesandra ca’Vörl

JAN QUASE PARECIA ASSUSTADO, os olhos tão arregalados que era possível ver o branco em volta da íris. — Matarh... levar o exército contra os Domínios... eu não sei.

— Eu compreendo o perigo — falou Allesandra. — Sim, é um grande passo para ser dado assim tão cedo no seu período como hïrzg, e entendo como deve estar se sentindo. Você precisaria confiar na capacidade do starkkapitän ca’Damont; mesmo assim, isso seria um teste maior do que tudo o que você já fez na vida. Mas, Jan, eu sei que é algo que você é capaz de fazer. Levar o exército à guerra é algo que você terá que fazer eventualmente, como quase todo hïrzg de Firenzcia já fez. Até mesmo seu vatarh lhe diria isso. Fynn tinha 18 anos, era apenas dois anos mais velho do que você, quando levou o exército à guerra pela primeira vez. — Ela acenou a cabeça para Semini, que estava sentado em silêncio na própria cadeira. Os três estavam nos aposentos de Allesandra. Os criados foram dispensados após servirem o jantar, cujas sobras ainda decoravam a mesa entre eles. — Semini sabe — disse Allesandra. — Ele comandava os ténis-guerreiros quando seu vavatarh Jan quase tomou Nessântico.

— E ele teria conseguido se aquela archigos herege desprezível não tivesse usado sua magia dos numetodos contra nós — resmungou Semini. O archigos pareceu um urso mais do que nunca, curvado na cadeira. Ele bateu de leve no prato, mas teve o cuidado de desviar o olhar de Allesandra.

A a’hïrzg ainda se lembrava do choque daquela noite: ela estava na tenda, sentada no colo do seu vatarh. — Você é meu passarinho — dizia Jan — e eu amo... — Então a voz foi interrompida e, impossivelmente, ela estava do lado de fora, longe do acampamento, esparramada no chão molhado de chuva, à noite, enquanto a archigos Ana e um homem estranho qualquer lutavam um contra o outro com uma magia do Ilmodo que Allesandra pensava ser impossível. Sim, ela lembrava-se muito bem daquilo e sabia que sua captura foi a razão do fracasso de seu vatarh, e que Jan culpava Allesandra por isso.

— Ah, os Domínios ainda têm que responder por muita coisa — continuou o archigos, que olhava apenas para Jan. Ele bateu de leve na toalha de mesa com o punho. — Eu aguardo ansiosamente para cobrar o pagamento. Hïrzg Jan, estou pronto para ser seu braço direito, com todos os ténis-guerreiros da fé concénziana comigo.

Jan ainda parecia inseguro, e Allesandra esticou o braço para afagar a mão do filho. — Jan, no fim esta deve ser uma decisão sua, não minha. Eu não sou o hïrzg, você é.

— A senhora não quis isto quando podia tê-la — disse Jan ao tocar na coroa dourada de hïrzg na cabeça. — E, no entanto, agora a senhora quer... — Ele parou abruptamente. Pestanejou. — Ah. — Franziu os olhos.

Allesandra ficou preocupada com a expressão no rosto do filho. — Pense no que podemos conseguir juntos, Jan — falou ela, às pressas —, com a mesma família no Trono do Sol e no trono de Firenzcia. Nós podemos unificar os Domínios e criar um império maior e mais pacífico do que o de Marguerite.

Jan não disse nada. Ele olhou de Semini para Allesandra, depois ficou de pé e andou rapidamente até a porta. — Jan? — chamou Allesandra, e o hïrzg parou ali. Ele falou sem se virar para a matarh.

— Eu começo a entender um pouco o que o vatarh falou sobre a senhora antes de ir embora, matarh. Ele me disse que a senhora usava as pessoas para seus próprios objetivos; disse que este era exatamente o mesmo jeito do seu próprio vatarh, e que isso não era assim tão surpreendente. Ele disse que esse comportamento foi que tornou o vavatarh um hïrzg competente, mas um amigo perigoso. Eu me pergunto se um dia poderei ser um hïrzg assim tão bom. Eu me pergunto se um dia terei vontade de ser. — Jan bateu na porta, que foi aberta pelos criados do corredor.

Allesandra ficou de pé e afastou-se da mesa; começou a ir atrás dele enquanto os pratos batiam e as taças tremiam. — Jan, fique. Por favor. Fale comigo.

Jan balançou a cabeça e saiu sem dizer outra palavra, a porta foi fechada.

Allesandra ficou parada no centro da sala de jantar e não conseguiu conter o soluço. Eu nunca tive a intenção de magoá-lo. Eu não quero magoá-lo. Ao mesmo tempo, a a’hïrzg considerou a declaração do filho: será que ela cometeu um erro ao colocá-lo no trono do hïrzg? Será que enxergava Jan com os olhos de uma matarh e não com os olhos da verdade? Allesandra sentiu as mãos de Semini em seus ombros e percebeu que ele havia se levantado para ficar atrás dela. — Não se preocupe, Allesandra. — As palavras do archigos eram um rugido baixo no ouvido. — Deixe o menino sozinho por um tempo e lembre-se que, em muitos aspectos, ele ainda é um menino. Jan sabe que você está certa, mas neste momento ele acha que você lhe deu a coroa de hïrzg como um prêmio de consolação.

— Não foi assim, de verdade. — As lágrimas ameaçaram cair, e Allesandra fungou e piscou para contê-las. — Eu amo Jan, Semini. Amo mesmo. Ele não faz noção do quanto. Eu fico magoada de vê-lo com raiva de mim. Não era o que eu pretendia.

— Eu sei — sussurrou o archigos. — Eu falarei com ele. Posso convencê-lo de que você está certa.

Ela meneou a cabeça enquanto olhava fixamente para a porta. — Eu preciso ir atrás dele.

— Se fizer isso, vocês dois apenas acabarão tendo uma discussão ainda pior. Vocês dois são muito parecidos. Dê um tempo para Jan se acalmar e pensar sobre a situação, e ele perceberá que exagerou na reação. Pode até ser que se desculpe. Dê um tempo. Deixe que ele fique com raiva agora.

As mãos de Semini massagearam os ombros de Allesandra. Ela sentiu os lábios do archigos roçarem o cabelo na nuca e deixou a cabeça pender para frente em resposta. — Ele é meu filho. Eu fico magoada quando ele está magoado.

— Se você conseguir o que quer, então essa é uma situação que poderá vir a ter que aceitar. Os kralji de Nessântico e os hïrzgai de Firenzcia sempre tiveram suas diferenças e seus interesses separados. Se não quiser um conflito entre você dois, é melhor abandonar essa ideia.

Allesandra ficou tensa sob as mãos que a massageavam, e Semini riu. — Pronto, viu só. Jan não é o único que se irrita quando alguém lhe diz o que fazer. — Ele continuou a trabalhar os músculos dos ombros da a’hïrzg. — Eu estou com você, meu amor, mas também tenho ambição. Eu quero ser o archigos da fé concénziana unificada e quero me sentar no Trono de Cénzi no Templo do Archigos e ser a sua Mão da Verdade. E quero ser mais do que isso, Allesandra. Quero ser o archigos ca’Vörl.

Ela virou-se para Semini e encontrou o rosto dele perto do seu. Allesandra beijou os lábios do archigos sem paixão. — Semini...

— Você disse para Jan pensar no que vocês dois poderiam conseguir juntos como a mesma família nos dois tronos. Eu lhe peço que considere o que poderia ser feito se a mesma família não só controlasse os tronos políticos, mas também o da fé concénziana.

— O que você sugere não é possível — falou Allesandra. — Tem o Pauli. E Francesca. Sim, eu adoro os momentos secretos que passamos juntos e gostaria que fosse de outra forma, mas não é. Semini, o que pareceria se o archigos dissolvesse o próprio casamento e o matrimônio da a’hïrzg em nome do próprio interesse? O que diriam os ca’ e co’, mesmo que em segredo? Que mal isso faria à Fé e ao Trono do Sol?

— Eu sei. — Semini rosnou e deu um passo para trás. — Eu sei. Mas meu casamento com Francesca foi político desde o início; nunca houve amor entre nós, nem muita intimidade realmente, depois dos primeiros anos e os abortos. Orlandi insistiu que eu tinha que casar com sua filha, e ele era o archigos, e seu vatarh pensou que seria bom também, e você era... — Semini fez uma pausa. — Sei que sou muito mais velho do que Pauli, Allesandra, mas eu pensei...

— A nossa diferença de idade não significa nada. — Allesandra esticou a mão para tocar no rosto do archigos, a barba grisalha sob os dedos era surpreendente. — Semini... Eu gosto mesmo de você. Eu adoro o que nós temos, mas isso tem que bastar. O que você sugere... seria um erro terrível.

— Seria? Eu não acredito nisso, Allesandra. Se você soubesse o quanto eu lutei com essa ideia, se soubesse como rezei para Cénzi... — Semini balançou a cabeça sob os dedos dela e disse — Não seria um erro. Como poderia ser, se existem sentimentos verdadeiros entre nós? Você pode me dizer que esses sentimentos são unilaterais e que nosso caso é simplesmente uma questão de conveniência para você? É assim, Allesandra? Diga-me. Diga-me a verdade.

Allesandra encarou Semini, que ainda tinha o rosto nas mãos dela, e sussurrou — Unilaterais? Não.

Ele soltou um longo suspiro de alívio, praticamente uma palavra ou soluço, e depois beijou Allesandra, que devolveu o beijo. Ela abandonou a si mesma e as preocupações sobre Jan e o que poderia acontecer na paixão que a envolveu.

 

Jan ca’Vörl

JAN DEIXOU O SUOR PINGAR enquanto estocava e defendia com a espada contra um oponente invisível. Às vezes era Semini, às vezes era sua matarh, às vezes era o fantasma de Fynn ou do vavatarh. Jan colocou toda a raiva para fora no treino. Golpeou, girou o corpo e estocou até todos os fantasmas estarem mortos e os músculos arderem.

Finalmente, Jan embainhou a espada e parou com as mãos nos joelhos, ofegante. Ele ouviu um aplauso baixo e irônico atrás de si e se virou. Gotas de suor voaram do cabelo molhado. O hïrzg viu Sergei ca’Rudka parado à porta da sala de treino, com dois gardai atrás dele. — Como...? — Jan começou a perguntar quando ca’Rudka sorriu.

— Eu perguntei ao assistente Roderigo onde o senhor estaria. Não deixaram que eu viesse sem meus amigos, de qualquer forma — acrescentou Sergei ao gesticular para os gardai solenes e carrancudos que o acompanhavam. Ele entrou na sala comprida e apertada, com paredes de bronze lustroso, uma estreita fileira de bancos ao longo do outro lado e espadas de madeira para treino expostas em suportes em um canto. — O senhor teve um bom professor de armas, embora isso valha menos do que imagina.

Jan pegou uma toalha de um cabide perto das espadas e secou o suor da testa. — O que você quer dizer, regente?

— O senhor pode ter todas as habilidades técnicas, e o senhor possui, de fato, mas elas valem pouco ao se enfrentar um oponente de verdade, que queira lhe matar.

O jeito com que ca’Rudka fez o comentário, em um tom superior e professoral, reacendeu a raiva de Jan. Todos agiam de maneira superior a ele. Todos lhe diziam o que fazer, como se ele fosse estúpido para entender qualquer coisa sozinho. Jan torceu o nariz e jogou a toalha no canto. — Mostre-me — falou ele para Sergei. — Prove.

— Hïrzg... — alertou um dos gardai, mas Jan olhou com ódio para o homem.

— Cale-se — disse Jan. — Eu sei o que estou fazendo. — Ele indicou o suporte de espadas de madeira com a cabeça. — Mostre-me, regente. É fácil dizer banalidades.

Sergei fez uma mesura, como se cumprimentasse um parceiro de dança. Ele deu uma olhadela para os gardai e foi até o suporte. Jan observou o regente: o homem tinha a postura de um velho e fez uma careta ao se abaixar para puxar uma das espadas de treino e examiná-la. — Certa vez, o grande espadachim co’Musa disse que a experiência é geralmente melhor do que a habilidade crua — falou Sergei. — Há uma história que, em um duelo, co’Musa matou seu oponente apenas com uma espada de madeira. Assim como o senhor, o adversário estava armado com aço.

Ambos os gardai avançaram, meteram as mãos nas próprias armas e colocaram-se entre o hïrzg e ca’Rudka, mas Jan fez um gesto para que se afastassem e disse — Você não é co’Musa.

— Não sou — respondeu ca’Rudka. Ele deu um leve golpe no ar com a lâmina de madeira. Foi uma estocada desajeitada, e Jan notou como ca’Rudka pegava no cabo com a mão um pouco virada embaixo; seu antigo professor, lá em Malacki, teria corrigido o homem imediatamente, se tivesse visto aquilo. “Com a mão desse jeito, o senhor não tem alcance”, teria dito ele. Mas Sergei já havia assumido uma postura, com a espada abaixada e as pernas juntas demais. — Quando o senhor estiver pronto, hïrzg Jan — falou ca’Rudka.

— Comece — disse Jan.

Dito isso, Sergei começou a erguer a espada: devagar, quase desajeitado; o movimento de um amador. Jan torceu o nariz e afastou desdenhosamente a arma do homem com sua própria. Mas a esperada resistência de lâmina contra lâmina não ocorreu: ca’Rudka abrira a mão. Jan ouviu a espada de madeira bater nos ladrilhos do piso, viu quando ela escorregou até acertar a parede revestida de bronze. O golpe de Jan arrancou a arma do regente, sim, mas sem a resistência, o ataque se lançou mais para a esquerda do que deveria, e o hïrzg viu um movimento de roupa escura e sentiu as mãos de ca’Rudka baterem de leve nos dois lados do pescoço antes que pudesse reagir. O homem estava diretamente à sua frente, com o nariz de metal tão próximo que o rosto do hïrzg preencheu a superfície refletora. Ca’Rudka agarrou a gola da tashta de Jan com as duas mãos, deu um passo e imprensou o hïrzg contra a parede. A espada de Jan era inútil em sua mão: o regente estava próximo demais.

— Viu só, hïrzg Jan — ca’Rudka quase sussurrou —, alguém que queira matar o senhor não se preocupará com regras e educação, apenas resultados. — O hálito era quente e cheirava à menta. — Eu poderia ter esmagado sua traqueia com aquele primeiro golpe ou poderia ter uma faca na outra mão. De um jeito ou de outro, o senhor já estaria nos últimos suspiros.

Sergei afastou-se e soltou Jan quando foi agarrado por trás pelos gardai, com violência. Um deles socou ca’Rudka com a manopla, e o velho regente desmoronou sobre um joelho, ofegante. — Mas o senhor é um espadachim melhor do que eu, hïrzg. — Ele terminou de dizer, no chão. — Eu admito livremente. — O garda preparou o punho para dar outro soco, mas Jan ergueu a mão.

— Não! — disparou o hïrzg. — Vão embora! Vocês dois!

Os gardai olharam para ele, assustados. Os dois começaram a protestar, mas Jan gesticulou novamente para a porta. Depois que se curvaram e saíram, Jan foi até ca’Rudka e ajudou o homem a se levantar. — Você é realmente um espadachim tão ruim assim, regente?

Ca’Rudka conseguiu sorrir ao colocar a mão na lateral do corpo, inclinado para frente enquanto tentava recuperar o fôlego, e respondeu — Não, mas fiz o senhor pensar que eu era. — Ele respirou fundo pela boca e gemeu. — Por Cénzi, essa doeu. Acredito que minha lição tenha ficado bem clara?

— Que as pessoas podem mentir e me enganar para conseguir o que querem? — Jan deu uma risada amarga. — Você não é o único que está tentando me ensinar essa lição.

— Ah. — Ca’Rudka pareceu considerar a informação. Ele não disse nada e esperou.

— Minha matarh e o archigos parecem achar que agora é o momento de atacar Nessântico.

Ca’Rudka deu de ombros, depois fez outra careta. — O senhor quer admitir isso para um espião em potencial que está entre vocês, hïrzg? Ora, eu poderia mandar uma mensagem para o kraljiki.

— Você não mandará.

Sergei ficou com o rosto impassível ao ouvir isso. Ele piscou sobre o nariz de prata. — O senhor já considerou que sua matarh e o archigos podem estar certos?

— Você concorda com eles?

— Honestamente, eu preferia que não houvesse guerra de maneira alguma, que nós resolvêssemos as diferenças de outra forma. Mas se eu fosse a sua matarh... — Ele deu de ombros. — Talvez pensasse a mesma coisa.

— Então você acha que eu devo dar ouvidos a eles?

— Eu acho que o senhor é o hïrzg, e, portanto, deve tomar a própria decisão. Mas também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.

Jan desviou o olhar do homem. Ele podia se ver nos espelhos de bronze da sala, a imagem era ligeiramente distorcida nas ondas do metal fino. Jan ainda segurava a espada. Ele foi até a parede onde a arma de ca’Rudka tinha ido parar. Abaixou-se e pegou a espada de treino, depois jogou para o homem.

— Mostre-me outra coisa — disse o hïrzg. — Mostre-me como a experiência é capaz de vencer a habilidade crua.

Ca’Rudka sorriu. Ele pegou a espada, e dessa vez seus movimentos foram ágeis e graciosos. — Tudo bem. Fique em posição...

 

Nico Morel

APÓS PASSAR VÁRIOS DIAS com a mulher, Nico decidiu que ela era muito esquisita, mas também fascinante. A mulher era boa com ele. Ela alimentava bem o menino, conversava com ele — longas conversas em que Nico se viu contando tudo sobre sua matarh e Talis, que ele e a matarh fugiram de Nessântico, que ele odiava seu onczio e os primos, como fugiu do vilarejo e foi ajudado pelo regente e Varina...

A mulher passeava com Nico durante o dia pela velha vizinhança, e ele torcia para que visse Talis ou sua matarh.

Mas não viu. — O nome de seu vatarh é Talis Posti? — perguntou a mulher na primeira noite, e o menino contou sua história. — Tem certeza disso? E ele está aqui na cidade? — Nico concordou com a cabeça, e ela não falou mais nada.

A mulher disse que seu nome era Elle, mas às vezes parecia não notar quando Nico a chamava pelo nome. Às vezes, no meio de uma conversa, ela respondia a um comentário inaudível ou se dirigia ao vento como se falasse com ele. Em público, Elle dava a impressão de se encolher e parecer velha e frágil, mas na privacidade dos aposentos, a mulher era completamente outra pessoa: mais jovem, forte, atlética e cheia de vida. Ela mantinha armas no quarto: uma espada encostada em um canto perto da porta e outra ao lado da cama, e havia várias facas com gumes cruelmente afiados — a mulher quase sempre tinha duas ou mais com ela. Nico observava Elle afiar as armas à noite com uma pedra de amolar. Observava o rosto e a concentração apaixonada enquanto afiava os gumes, que provocavam arrepios em Nico.

Elle tinha uma bolsinha de couro no pescoço que não tirava nunca. Estava sempre debaixo da roupa, e à noite ela a pegava firme com a mão, como se tivesse medo de que alguém a roubasse. Nico imaginava se a mulher também não tirava a bolsinha quando tomava seu banho diário na banheira de cobre da sala de estar. O banho em si era estranho, pois o menino jamais tinha visto alguém tomar banho mais do que uma vez por semana, nem mais que uma vez por mês. Sua matarh sempre dizia que tomar banho demais deixava a pessoa doente. Talvez, pensou Nico, fosse isso que havia de errado com Elle.

De vez em quando, a mulher mandava que ele ficasse no apartamento alugado e saía sozinha — geralmente à noite. Ela ficava ausente por várias viradas da ampulheta, e geralmente Nico dormia enquanto esperava que ela voltasse. O que quer que Elle fazia naquelas noites, ela nunca contava para ele.

A noite de hoje tinha sido uma dessas. — Nico... — O menino sentiu a mão dela sacudindo seu corpo e pestanejou ao olhar para o rosto da mulher, iluminado pelas velas contra a escuridão do quarto. — Levante-se.

— Por que, Elle? — resmungou Nico com sono. Estava gostoso e quentinho debaixo das cobertas. Ela não respondeu; já tinha ido na direção da porta do quarto.

— Eu quero que você venha comigo — falou ela. De má vontade, Nico empurrou as cobertas para o lado e saiu do colchão de palha. — Sapatos — disse Elle quando ele começou a ir em sua direção descalço. Nico calçou as botas gastas, e a mulher abriu a porta. — Fique comigo. — Ela deu a ordem ao pegar sua mão, e os dois saíram noite afora.

Nico sabia que Nessântico nunca dormia, não completamente. Não importava a hora do dia ou da noite, havia pessoas pelas ruas do Velho Distrito. Mas à noite os cidadãos eram mais perigosos do que de dia, como sua matarh lhe dissera. — Você vai entender melhor quando crescer — falara ela, mais de uma vez. — A noite é uma máscara que a cidade coloca quando quer fazer coisas que não deveria. O que as pessoas fazem à noite... bem, às vezes elas precisam da escuridão para esconder. — Nico vislumbrou um pouco disso recentemente, sozinho no Velho Distrito, antes de ser encontrado por Elle. Testemunhou a fala pastosa e o passo vacilante dos frequentadores de tavernas; viu os encontros acompanhados por gemidos nos becos escuros; vislumbrou ataques rápidos e violentos; testemunhou as trocas furtivas de moedas tilintantes por embrulhos. Nico ficou próximo de Elle enquanto andavam pelas ruas, que estavam animadas por aqueles que usavam a máscara da noite.

Ela andava rapidamente, tão rápido que o menino teve que correr um pouco para acompanhá-la. Os dois cruzaram uma esquina do centro do Velho Distrito e entraram no emaranhado de vielas que iam para sudoeste, na direção do rio, e os prédios de cada lado ficaram cada vez mais velhos, próximos e menores, como se quisessem permanecer juntinhos à noite para se esquentar. Nico ficou rapidamente perdido. Não havia luzes mágicas aqui, apenas algumas lâmpadas ocasionais colocadas nas janelas de tavernas e bordéis. Duas vezes os dois passaram por um utilino, e Elle encolheu o corpo, fez com que parecesse menor e mais velha, e o cumprimentou com uma voz rouca que não parecia de forma alguma com a própria.

Finalmente, Elle puxou o menino para a escuridão de um beco e ajoelhou-se ao lado dele. — Escute, Nico. Preciso que você fique muito, muito quietinho agora. Tem que tomar cuidado ao andar para que ninguém escute seus passos, e não pode falar. Não importa o que você veja ou aconteça. Entendeu? — Na luz fraca do luar, ele enxergou o branco dos olhos, e o olhar de Elle sério e solene.

Nico concordou com a cabeça. Ela pegou a mão do menino e apertou uma vez, com delicadeza. — Muito bem, vamos.

Os dois prosseguiram mais adiante pelo beco até uma portinha meio empenada nas dobradiças enferrujadas. Elle meteu a mão debaixo do manto; quando a mão surgiu novamente, os dedos tinham um bocado de uma substância escura que ela passou nas dobradiças. A mulher empurrou a porta, que abriu relutantemente, porém em silêncio. Elle entrou e fez um gesto para Nico segui-la.

O cheiro no interior provocou ânsia de vômito no menino: havia algo morto e apodrecendo por perto, e pelo menos uma vez ele ficou contente por estar escuro demais para ser capaz de enxergar direito, embora sentisse medo de tropeçar no que estivesse morto ali. Elle pegou Nico pela mão novamente, e ele seguiu de perto a mulher até uma escada que mal conseguiu ver. Os dois subiram e chegaram a uma porta; o menino viu Elle inclinar-se ao seu lado e mexer por alguns momentos com uns pedaços de arame dentro da fechadura. Houve um clique baixinho, e Elle empurrou a porta devagar. Nico viu-se andando rápido atrás dela por um corredor estreito e escuro até parar diante de uma porta. — Quando eu abrir estar porta — sussurrou a mulher com voz rouca —, eu preciso que você fique aqui no corredor. Não se mova, não importa o que aconteça. Não diga nada. Apenas escute. Escute. Entendeu?

Nico concordou com a cabeça, calado. Elle novamente se agachou ao lado da porta com os arames; outra vez houve um clique. Ela abriu e entrou de mansinho, deixou a porta aberta. O menino não conseguiu ver nada lá dentro, embora tivesse apertado os olhos com força. Alguém no cômodo respirava alto, como se estivesse dormindo. A própria respiração de Nico parecia terrivelmente alta, e se Elle estivesse fazendo algum barulho ao andar pelo aposento, ele não foi capaz de escutar. O menino segurou o batente assustado e com vontade de desobedecer Elle e chamá-la, mas o medo sufocou a garganta.

Houve um barulhinho, um grunhido de susto, e depois a voz de Elle. — Isso mesmo. — Nico ouviu alguém falar baixinho, parecia um pouco com Elle, mas o tom de voz era grave e baixo. — Isso é uma faca no seu pescoço, e se gritar, ou sequer mexer as mãos, você morre. Faça o que eu disser e talvez você viva. Se entendeu, balance a cabeça. — Houve outra pausa, e então: — Ótimo. Eu sei quem e o que você é. Andei de olho em você. Agora, eu quero saber outra coisa. Conhece um menino chamado Nico Morel? Responda: sim ou não. E baixinho.

Nico arfou ao ouvir o próprio nome. Ele escutou a pessoa meio que sussurrar uma resposta: — Sim.

Com aquela única palavra, o menino reconheceu a voz: Talis. Ele quase pulou dentro do quarto, mas se lembrou do aviso de Elle e permaneceu agachado ao lado da porta.

— Ótimo. Você ainda continuará vivo — sussurrou a mulher para Talis. — Ah! Não se mexa; lembre-se do que eu disse. Eu odiaria que você se cortasse acidentalmente. Você dividiu a cama com a matarh do menino?

— Sim.

— Você a ama? Responda de verdade agora.

Houve uma hesitação, e Nico ficou nervoso. Depois: — Amo.

— E o garoto? Você se importa com ele?

A resposta foi mais rápida e enfática. — Sim. O garoto é... — A voz foi sumindo até um longo silêncio.

— O garoto é o quê?

— Meu filho. E sim, eu me importo com ele. Foi por isso que mandei Nico e Serafina embora, para que ficassem a salvo.

— Mas ele voltou aqui, para esta cidade. Você descobriu que Nico retornou após o numetodo pegá-lo. Sabia que o embaixador ca’Vliomani queria falar com você, mas não respondeu. Você abandonou o menino para salvar a própria pele. — Nico percebeu que Elle falava mais por causa dele mesmo, para que ouvisse a resposta de Talis.

O menino ouviu o farfalhar de pano e palha quando, apesar do aviso de Elle, Talis se mexeu. — Opa! Não. Isso não é verdade. Opa! Calma! Você está certa, eu sei que Nico estava aqui e não respondi ao embaixador, mas não pelas razões que disse, e sim porque...

— Por quê?

— Eu percebi as consequências de tentar fazer isso. Percebi que, se fosse até o numetodo, coisas piores teriam acontecido: para Nico, para mim, para todos nós. Se eu pudesse ter recuperado Nico com segurança, eu teria feito isso. Eu sabia que o embaixador trataria bem o menino. Sabia que Nico não seria maltratado se eu permanecesse escondido; mas se eu fosse atrás dele, se tentasse resgatá-lo, eu não sabia o que aconteceria. Nico poderia se machucar ou coisa pior. Poderia ter havido consequências terríveis.

— Você sabe disso por causa de magia. Magia ocidental. — Nico quase foi capaz de ver Talis fazer que sim com a cabeça. Era difícil ficar parado em silêncio e escutar. O menino queria ir até Talis, até Elle, mas também queria escutar o que ele diria. — E você viu este momento em seus feitiços? Você me viu? — perguntou Elle na voz estranha e rouca.

— Não. Eu continuei a ver Nico na tigela premonitória, como se ele estivesse próximo, mas havia algo ao redor, algo que o protegia.

— Então você me viu sim. Eu protejo Nico. E continuarei a proteger.

— Onde está ele? — perguntou Talis. — Leve-me até Nico!

— Por quê? Por que eu deveria fazer isso?

— Porque... — Nico ouviu Talis engolir em seco. — ... Porque Nico deve ficar com pessoas que conhece. Eu posso levá-lo de volta à matarh dele.

— Você faria isso?

— Sim.

— Então eu torço, pelo seu bem, que você cumpra promessas.

Após a resposta de Elle, ninguém disse nada, embora Nico tenha pensado que ouviu movimentos rápidos e furtivos. Ele espiou na escuridão até que manchas de cores nadaram diante de seus olhos, enquanto tentava ver. Ouviu Talis se remexer, ouviu o homem falar uma palavra em outra língua, e Nico sentiu um arrepio, como se fosse tocado por uma brisa fria e invisível. De repente, houve uma luz intensa, que parecia emanar do próprio Talis. Ele estava sentado na cama, com os cobertores reunidos em volta da cintura e dois pequenos filetes de sangue que escorriam do pescoço para o peito, e a luz vinha de um pequeno foco que brilhava na palma da mão, virada para cima. Elle não estava mais no quarto, embora as cortinas tremulassem em frente a uma janela aberta, perto da cama. Talis viu Nico no corredor e ficou boquiaberto. — Nico!

Nico correu para ele, chorando.

 

Audric ca’Dakwi

O PAPEL FARFALHOU na mão de Audric enquanto ele o segurava de forma que sua mamatarh Marguerite também lesse. Ouviu a kraljica respirar fundo, irritada. — Confirmamos que o selo nesta mensagem é genuinamente de Francesca ca’Cellibrecca — dizia Sigourney enquanto ele lia a missiva. — E também recebemos uma confirmação independente de que o antigo regente ca’Rudka... perdão, Rudka... realmente está em Brezno e teve uma reunião com o hïrzg, a a’hïrzg e o archigos. Quanto ao caso amoroso que ela alega haver entre o archigos e a a’hïrzg Allesandra... bem, quanto a isso só podemos especular.

O papel tremeu na mão de Audric. A mamatarh encarava o neto com um olhar furioso. — A senhora acredita nisso? — Ele perguntou para Marguerite, mas foi Sigourney quem respondeu.

— Não temos motivo para não acreditar.

— Bem, eu tenho uma razão: o mestre ci’Blaylock martelou muito bem essa história na minha cabeça. O vatarh de Francesca ca’Cellibrecca traiu o meu vatarh e todos os Domínios em Passe a’Fiume. — Seu dedo bateu no pergaminho. — Agora ela quer se aliar a nós? Quer uma recompensa?

— Se ela estiver certa, kraljiki, acho que devemos agradecê-la pelo aviso. Francesca pode nos ajudar, sendo tão íntima dos círculos de poder de Brezno.

— A senhora realmente acha que haverá guerra? — perguntou Audric, que odiou o jeito que soou: como uma criança preocupada.

— Você não é uma criança. Não é mais. Agora você deve ser o kraljiki — disse Marguerite para o neto, e ele concordou com a cabeça.

Audric falou com a voz mais grave e séria possível. — O novo hïrzg é um tolo se pensa que pode fazer isso. Nós iremos esmagá-lo. Mandaremos o hïrzg de volta para Firenzcia, sangrando e derrotado.

— Estas são bravas palavras, kraljiki Audric — disse Sigourney ao concordar com a cabeça, embora Audric tenha achado que ela não parecesse convencida, pela expressão no rosto. — Tenho certeza de que o senhor está certo, mas também devemos torcer para que a situação não chegue a esse ponto. — A conselheira inclinou a cabeça na direção do quadro, no cavalete ao lado dele. — Com a ajuda da vajica ca’Cellibrecca, talvez possamos impor diplomacia a Firenzcia. Sua mamatarh sabia disso; ela não usava força a não ser que fosse necessário.

— Não diga para mim o que ela faria — disparou Audric. Ele tossiu com a ferocidade das palavras e teve que apertar o lenço contra os lábios até o espasmo passar. Quando terminou, o kraljiki continuou, com menos volume na voz e a garganta dolorida pelo acesso. — Eu conheço melhor a minha mamatarh. Sou eu quem a compreende. É comigo que ela fala. Não com a senhora.

Sigourney ergueu as mãos e arregalou os olhos pela explosão de Audric. — Eu não quis sugerir outra coisa, kraljiki. É apenas que... — A conselheira falou mais baixo e inclinou-se na direção de Audric, como se temesse que alguém pudesse escutar, embora só houvesse os três na sala. — Precisamos tomar cuidado aqui. É possível que isso não seja nada ou que sejam as suspeitas de uma esposa que acha que perdeu a confiança do marido, especialmente se os rumores que envolvem o archigos ca’Cellibrecca e Allesandra forem verdade. Temos que levar em consideração os motivos da vajica ca’Cellibrecca.

— Sergei Rudka está em Brezno — disparou Audric. — Eu quero Rudka aqui. Quero Rudka na Bastida novamente, e dessa vez vou garantir que ele vivencie todos os prazeres das celas subterrâneas.

— Sim, sim — dizia Sigourney, mas Audric mal ouviu a conselheira, que tagarelava como se tentasse acalmar uma criança à beira de um ataque. Ela continuava falando, mas o kraljiki não ouvia nada. Sigourney começou a lembrá-lo de Sergei, a agir como se ela estivesse no Trono do Sol, e não ele. Talvez Audric tivesse que jogá-la na Bastida também. Agora que ele foi reconhecido como kraljiki, talvez jogasse todo o Conselho dos Ca’ lá dentro. Deixe que eles se reúnam e tramem nas pedras da torre principal e vejam se gostam disso. Sergei provou que era um traidor e pagaria por isso; Audric jurou que veria o sofrimento do homem em pessoa, talvez até ajudasse o torturador. Assistiria a Sergei se contorcer de sofrimento na mesa, e depois adoraria ver os corvos arrancando a carne de seus ossos enquanto o corpo balançaria na jaula na Pontica Kralji.

— Sim, você terá tudo isso — falou Marguerite. A boca contorceu-se em um sorriso momentâneo. — Você é o kraljiki agora, e eles não podem lhe negar nada. Você fincará a bandeira dos Domínios na própria cova do hïrzg. Da sua espada escorregará o sangue daqueles que tentarem impedi-lo.

— Sim — disse Audric para a mamatarh. — Eu prometo.

— O quê? — perguntou Sigourney. Ela parecia assustada ao ser interrompida. — O que o senhor promete, kraljiki?

Audric queria tossir, podia sentir a vontade na garganta e nos pulmões, mas se conteve. — Eu prometo que aqueles que tentarem me impedirem serão destruídos. É isso o que prometo. — Ele encarou os olhos da conselheira fixamente. Audric esperava ver medo ali, queria ver, mas não foi o que percebeu no rosto de Sigourney. Havia apenas uma avaliação silenciosa, e talvez pena. Isso deixou o kraljiki irritado, e a emoção provocou espasmos de tosse novamente. Ele sentiu dificuldade para respirar, sentiu a borda da visão escurecer, e pensou que fosse desmaiar completamente.

Enquanto tossia seco no lenço, praticamente com o corpo dobrado, Audric de repente sentiu a mão de Sigourney afagar seu cabelo.

— Eu sei como essa doença deve incomodar, kraljiki. Audric. Eu sei. — Sigourney puxou Audric, que resistiu por um momento.

— Você tem que ser forte. Não pode deixar que vejam sua fraqueza, ou eles a explorarão.

Mas Audric descobriu que queria esse toque de matarh e se permitiu ser aninhado por Sigourney, como se ela abraçasse um dos próprios filhos. O calor da conselheira era um alívio, e Audric ouviu um soluço que percebeu com um susto que era dele. Sigourney ouviu também, evidentemente. — Shh... tudo bem. Estamos só nós dois aqui. Só nós dois. Se precisa chorar, eu compreendo. Compreendo sim... Eu chamarei o archigos e mandarei que ele traga aquela téni de volta aqui.

Os dedos da conselheira afastaram o cabelo da testa do kraljiki. — Seja forte... — Mas era difícil ser forte o tempo todo, e ele nunca teve o carinho de matarh, e seu vatarh sempre esteve cercado por chevarittai, pelos ca’ e co’ e pelos criados. Enquanto Sigourney o abraçava, Audric abriu os olhos e viu o retrato de Marguerite. Ela olhava o neto com seriedade, frieza e reprovação. A kraljica balançou a cabeça lentamente. — Meu verdadeiro herdeiro não faria isso. Isso é fraqueza. Meu verdadeiro herdeiro saberia como deve agir. — A reprovação ardeu dentro de Audric.

Ele afastou-se de Sigourney, com tanta força que a mulher cambaleou para trás e quase caiu.

— Não! — berrou Audric. — Não. Faremos como eu quero quanto a esta questão. Mandaremos uma exigência ao hïrzg: ele tem que devolver Sergei para nós, ou eu irei pegá-lo. A senhora me escutou? Eu mesmo irei lá, à frente da Garde Civile, e arrancarei Rudka das mãos deles. — A força de Marguerite preencheu o neto neste momento, e ele ficou de pé, sem tossir. — Mande o comandante vir até mim, para que ele comece a reunir as tropas. Quero que a senhora escreva as exigências; mandaremos por mensagem rápida hoje. Daremos um mês para eles devolverem Sergei. Não mais do que isso.

— Kraljiki, o senhor está agindo rápido demais. Precisamos estudar mais essa situação, esperar...

— Esperar? — A palavra foi dita por ele e pela mamatarh ao mesmo tempo. — Não podemos esperar, vajica. E aqueles que se opuserem a mim ou se recusarem a ir comigo, eu considerarei nada mais do que traidores. Espero ver um rascunho da exigência à Terceira Chamada. Fui claro?

A conselheira encarou o kraljiki.

— Ah, finalmente você vê medo nos traços do rosto dela. Você agiu bem, Audric.

— Claríssimo, kraljiki — respondeu Sigourney. — Claríssimo.

 

Varina ci’Pallo

— ISSO MESMO... Com o cântico, pense nas fibras da madeira sendo abertas como se você afastasse uma cortina.

Varina falou baixinho para encorajar Karl, enquanto ele entoava as palavras mágicas e olhava fixamente para a bengala na mão direita, enquanto a esquerda executava o gestual necessário. Ela viu a fibra da madeira tremer e se separar, com uma flexibilidade estranha e desconcertante. Viu o esforço que Karl usou para criar o feitiço; ele ofegava e suava intensamente, como se tivesse corrido o circuito inteiro da Avi a’Parete.

— Agora, essa parte é mais complicada: mantenha a madeira separada enquanto coloca dentro o feitiço que você já preparou — disse Varina. Ele não olhou de volta para ela; Varina sabia que Karl não ousaria desviar o olhar do cajado: ou a madeira se juntaria outra vez e a bengala se estilhaçaria completamente. Ainda havia farpas nos dedos de Karl das últimas tentativas. — Vá em frente — continuou ela. — Você deve ser capaz de sentir o feitiço de luz que preparou. Eu sempre sinto como se fosse uma pequenina bola de energia na cabeça, pronta para estourar. Imagine a bola saindo de sua mente e entrando no espaço que você acabou de criar na bengala. Imagine a bola se aninhando ali. Com cuidado. Ótimo. Ótimo. E... solte tudo!

Karl encerrou o cântico e deixou a mão cair ao lado do corpo. A fenda na madeira fechou-se novamente, fazendo um som como duas tábuas batendo juntas, e a bengala estava inteira e intacta em sua mão, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Karl desmoronou na cadeira onde estava sentado. Ele secou a testa com a manga da bashta enquanto Varina ria, batendo as palmas uma vez. Karl ficou sentado ali pelo que pareceu ser várias marcas da ampulheta, enquanto tentava recuperar o fôlego.

— Você conseguiu dessa vez — falou Varina.

— Tomara que sim.

— Quer testar para ter certeza? Basta segurar a bengala e falar a palavra de ativação.

— Depois de todo aquele transtorno? — disse Karl. — Acho que simplesmente vou acreditar em você, por enquanto. — Ele suspirou, deixou a cabeça pender e fechou os olhos. — Por Cénzi, isso foi difícil. Não admira que Mahri tivesse aquela aparência.

Varina riu novamente ao ouvir isso, mas ouviu uma certa amargura involuntária no som. Ela tocou o próprio rosto e acompanhou o traçado das rugas que não eram visíveis há um ano. Enterrou a preocupação nas palavras: — É uma questão de encontrar a palavra e os gestos corretos para mover a energia, só que você deve conter o feitiço e segurar o objeto a ser enfeitiçado ao mesmo tempo; isso é o que torna difícil. Pelo que sabemos dos ocidentais, eles atribuem o poder a um de seus deuses, assim como os ténis fazem aqui, mas é apenas uma questão do cântico certo, dos movimentos corretos. Questão de ciência, não de fé. A vantagem é que, assim que a tarefa é cumprida, é o objeto que contém o feitiço, não o feiticeiro, e desde que, antes de mais nada, o objeto seja de qualidade e não se quebre depois, é concebível que ele consiga conter o feitiço indefinidamente, desconfio eu. Ainda assim... — Os dedos passaram novamente sobre as rugas do rosto e pentearam o cabelo grisalho e seco para trás. — É um jeito caro demais de fazer as coisas, se quer saber.

— Eu entendo — falou Karl. — Eu me sinto completamente exaurido.

Karl não entendia. Não poderia entender. Não ainda. Varina sorriu novamente. Esticou o braço como se fosse dar um tapinha em sua mão, mas recuou no último instante. Isto fazia parte da dança incômoda que os dois faziam há dias agora.

Eles tinham voltado a Nessântico há dez dias. Os dois retornaram à cidade com Serafina, que voltou a morar na antiga casa. A mulher convidou Varina e Karl para ficar com ela, uma oferta que eles aceitaram — os antigos locais frequentados pelos numetodos sem dúvida estavam sendo vigiados pela Garde Kralji, e os dois não viram absolutamente nenhum numetodo no Velho Distrito. Eles vasculharam a vizinhança com Serafina, perguntaram sobre Nico, mas ninguém se lembrava de ter visto o menino, certamente não depois do dia em que Varina e Karl ajudaram o regente a escapar da Bastida. Se Nico realmente retornou a Nessântico, como Varina sabia, ele parecia ter desaparecido de alguma forma; se Talis ainda estava na cidade, ele também permanecia escondido.

E quanto a Varina... após a incômoda conversa em Ville Paisli, ela não parecia saber exatamente como agir perto de Karl. Ter admitido que queria mais do que sua amizade. . . Por que ela disse aquilo para ele? Karl olhava Varina de um jeito esquisito agora, como se lembrasse de todas as conversas que tiveram ao longo dos anos e reinterpretasse os diálogos, como se encarasse as conversas à luz dessa revelação e ficasse pensando.

Por que você contou para ele? Por que admitiu?

Ela afastou a mão da mão de Karl. Ele começou a esticar o braço na direção dela. — Varina...

— Voltei! — O chamado soou assim que a porta da sala foi aberta e Serafina entrou. Ela carregava uma sacola de pano com uma bisnaga de pão protuberante. Varina viu que a mulher olhou esquisito para os dois antes de andar até a mesa e pousar a sacola ali. Serafina tirou a bisnaga de pão, depois meia rodela de queijo e um saco de papel com amoras-do-brejo. Sem falar nada, Karl e Varina observaram Serafina, que suspirou e balançou a cabeça.

— O que está acontecendo? — perguntou ela.

— Eu não sei do que você está falando — falou Varina. Ela perguntou-se se Serafina tinha visto os dois trabalhando no feitiço, mas a mulher balançava a cabeça com um sorriso irônico.

— Vocês dois — disse Serafina enquanto olhava de Varina para Karl. — É óbvio que não são casados, não importa o que tenham dito para minha irmã, lá em Ville Paisli. Mas também é óbvio que existe algo entre vocês, e que nenhum dos dois sabe o que fazer a respeito disso. Eu entendo: foi assim comigo e Talis, a princípio. Eu fui muito magoada por um antigo amor que não se importava comigo, apenas com ele mesmo, e pensei que seria assim com todo mundo. Mas Talis... é um bom homem. Ele se importava comigo, e quando Nico nasceu, ele foi um bom vatarh também. Mas aquele maldito numetodo... — Ela mordeu o lábio inferior, enquanto Varina olhava para Karl, erguendo uma sobrancelha.

— O numetodo? — perguntou Karl.

— Talis disse que o embaixador tentou matá-lo; é por isso que ele mandou a mim e a Nico embora, porque pensava que os numetodos viriam atrás dele, e, uma vez que o embaixador era amigo do regente ca’Rudka, que a Garde Kralji viria atrás dele também. Eu acho que isso é algo que ele não tem mais com que se preocupar... — acrescentou Serafina com um sorriso irônico. — O kraljiki parece gostar do regente e do embaixador ainda menos do que Talis.

— Talis não entrou em contato com você? — insistiu Karl.

Serafina negou com a cabeça. — Ele entrará em contato quando achar que é seguro. Talis saberá que estou aqui em breve, se já não souber. Talvez tenha encontrado Nico também. — Ela suspirou, e Varina viu a mulher pestanejar para conter as lágrimas. — De qualquer forma, eu estava dizendo que vejo vocês dois darem voltas um ao redor do outro como se estivessem passeando pela Avi a’Parete e... bem, eu fiquei contente por finalmente admitir que estava apaixonada por Talis. Foi a melhor coisa que fiz em muito tempo. É isso.

Serafina sorriu e deu tapinhas na mão de Varina, que ainda estava em seu ombro. — Eu irei ao açougueiro para ver o que ele tem. Depois vou procurar por Nico em volta do Parque do Templo; ele sempre gostou de ir lá.

— Eu irei com você — falou Varina, mas Serafina balançou a cabeça.

— Não. Eu gostaria de ficar um pouco sozinha. Voltarei para casa antes da Terceira Chamada, e podemos preparar o jantar então.

Serafina sorriu para os dois novamente, pegou a sacola de pano e saiu dos aposentos outra vez. Eles ouviram o barulho da fechadura quando a mulher saiu; Varina sentiu o olhar de Karl e perguntou — O que faremos se encontrarmos Talis, Karl? Ou se ela encontrar Nico? Serafina ama Talis, e Nico nos reconheceria. O que faremos então?

— Eu não sei. Eu não sei de mais nada.

Varina balançou ao ouvir isso, e o silêncio entre eles, aos poucos, cresceu. Ela sentiu seu peso, o silêncio envolveu os dois como as correntes sujas de uma cela da Bastida. Varina ocupou-se ao colocar o pão e o queixo em uma cesta de vime.

— Varina — disse Karl finalmente, e ela parou. — Serafina está certa. É que... — Os dedos bateram na bengala. — Ainda dói sempre que penso em Ana. Ela...

— Eu sei. Eu vi... — Varina começou a falar, depois abaixou o olhar para a mesa. — Algumas vezes, na rua, eu vi as grandes horizontales que você contratava para... — Ela ergueu o olhar novamente. — Para mim, todas pareciam com ela: o mesmo tom de pele; a mesma compleição física.

Karl abaixou o olhar, culpado. — Varina...

— Não. — Ela interrompeu. — Eu entendia. Entendia mesmo. Mas ainda assim doía, porque você não me enxergava, quando era... — Varina fechou a boca e apertou os lábios. Ela não diria o resto. Não diria.

Karl ergueu as mãos e deixou que caíssem de volta na mesa. — Serafina está certa. Por causa da minha obsessão, eu deixei de ver o que estava bem na frente do meu nariz. Fui estúpido. Pior, fui cruel, e isso é algo que nunca quis ser. Não com você, Varina. Jamais com você. Você sempre foi alguém que eu admirava e em quem confiava. E agora... eu não sei se...

— Eu também não sei — disse ela. Vamos, Varina ouviu uma voz interna. Vamos. Diga. — Karl, nós dois podemos continuar a imaginar ou...

Ela deixou a palavra no ar, tão intensa na mente de Karl como fogo mágico.

Ele estendeu a mão para Varina.

Ela pegou.

 

Enéas co’Kinnear

O SEGUNDO CÉNZIDI. O dia em que ele deveria se encontrar com o kraljiki.

Este é o seu momento. Hoje, eu o tomarei em Meus braços, e você ficará eternamente feliz e em paz. Hoje...

— Obrigado, Cénzi — sussurrou Enéas agradecido. — Obrigado. Eu sou Seu criado, Seu instrumento.

Ele pegou o nitro em pó, o carvão e o enxofre; misturou todos cuidadosamente com urina velha, como Cénzi instruiu, até criar a areia negra dos ocidentais. Enfiou bolos da areia negra em uma bolsa de couro a tiracolo, que depois colocou sobre o uniforme. Ensaiou na mente o feitiço de fogo dado por Cénzi até saber os gestos e o cântico e ser capaz de executar o encantamento simples em poucos instantes. Sim, isso demonstraria ao kralji o que os ocidentais podiam fazer. Faria Nessântico se dar conta de como essa guerra ficou importante e perigosa.

Então, finalmente, Enéas arrumou o quarto, para que o local parecesse organizado quando viessem investigá-lo depois.

Ao caminhar para sua audiência no palácio do kraljiki, ele permitiu-se apreciar os locais interessantes de Nessântico, absorveu tudo que a cidade que tanto amava tinha para oferecer. Enéas passeou pela margem norte da Ilha A’Kralji ao sair do apartamento, olhou com carinho para as torres com portões da Pontica Mordei e viu uma barcaça cheia de caixotes passar sob a travessia de pedra trabalhada. O A’Sele reluzia à luz do sol, com ondinhas que brilhavam e dançavam. Casais estavam sentados de braços dados na grama da margem, perdidos na presença uns dos outros. Um quarteto de e’ténis passou correndo por Enéas a caminho de alguma tarefa, os robes verdes tremulavam em volta dos tornozelos, um leve rastro de incenso ficou para trás. Ele ouviu a voz eterna e caótica da cidade, o som de milhares de vozes que falavam ao mesmo tempo.

Enéas passou pelo Velho Templo e ergueu o olhar para o domo inacreditável que o artesão co’Brunelli construía, o maior do mundo — se não entrasse em colapso sob o terrível peso da alvenaria. Ele fechou a cara uma vez, ao ver um artista de rua que equilibrava bolas acesas pelo próprio malabarista através de um feitiço — aquilo era serviço de numetodo, não foi feito pelas preces de um téni, e incomodava Enéas ver tal coisa feita publicamente, sem que qualquer espectador ficasse incomodado com a cena.

A archigos Ana permitiu que as pessoas perdessem a noção da verdade e da fé. Ela passava a mão na cabeça dos numetodos e permitia que sua heresia se espalhasse — e é por isso que os Domínios e a Fé estão partidos em dois e quebrados. Eu mandei os ocidentais como um sinal e um aviso. Hoje, você levará a eles o Meu alerta final.

A voz falou em tom baixo e sinistro na cabeça de Enéas. Ele fez o sinal de Cénzi com uma cara feia para o malabarista e para o público em volta antes de ir embora.

O Palácio do Kraljiki era branco e dourado contra um céu que parecia pintado. Enéas esteve uma vez anteriormente no palácio, como um e’offizier ajudante de ordens que acompanhava seu a’offizier em uma reunião do Conselho dos Ca’, mas essa seria a primeira vez que ele estaria realmente diante do Trono do Sol. Enéas deu sua Lettre a’Approche ao garda nos portões laterais, que a verificou, passou um dedo pelo selo em alto relevo e prestou continência a ele. — O senhor é aguardado, o’offizier co’Kinnear — disse o homem, gesticulando. Um criado jovem veio correndo, com o uniforme dourado e azul da equipe do kraljiki. Enéas seguiu o garoto pelos jardins podados e esculpidos com topiarias e arranjos de flores, com vários cortesãos ca’ e co’ passeando pelos caminhos de seixos brancos. Ele foi conduzido pelo guia por uma porta lateral para o interior do palácio em si, depois por um corredor de mármore rosa-claro, com um piso lustradíssimo e lâmpadas mágicas, dispostas poucos passos umas das outras, que não estavam acesas, pois havia luz suficiente que entrava pelas janelas nas duas pontas do corredor. — Espere aqui, o’offizier — disse o menino ao parar diante de uma porta com dois gardai em posição de sentido. — A recepção pública está praticamente encerrada. Verei se o kraljiki está pronto para receber o senhor. — Os gardai abriram a porta e o criado entrou. Enéas vislumbrou um grupo de suplicantes e ouviu o burburinho baixo de conversas sussurradas; ao longe, alguém falava mais alto: a voz de um menino, rouca e interrompida por tosses. Ele pensou ter visto o Trono do Sol, reluzente em contraste com a meia penumbra das janelas fechadas do resto do salão. A porta foi fechada novamente antes que Enéas pudesse ver mais.

— Como está a guerra, o’offizier? — perguntou um garda da porta. — Todo mundo está esperando um navio expresso dos Hellins, mas ele não chega.

— Ele não chegará — disse Enéas.

Os dois gardai entreolharam-se. — O’offizier?

— Ele não chegará — repetiu Enéas. — Cénzi já me disse isso.

Os gardai entreolharam-se novamente. Enéas viu uma rápida revirada de olhos. — Ah, Cénzi disse para o senhor. Entendi.

— O senhor não fala com Cénzi, e’offizier? — perguntou Éneas para o homem. — Então tenho pena do senhor.

A porta foi aberta novamente e interrompeu qualquer réplica que o garda viesse a dar. Não surgiu o garoto, mas sim um homem mais velho, com a insígnia do kraljiki no uniforme. — Sou Marlon — disse ele. — O kraljiki está pronto para o senhor. Siga-me.

Os gardai mantiveram a porta aberta para Enéas passar. O salão ainda estava lotado, com grupos de ca’ e co’ e por quem teve a sorte de ter o nome incluído na lista de suplicantes do segundo cénzidi. Eles viram Enéas entrar atrás de Marlon, com um misto de curiosidade e rancor quando ficou claro que o o’offizier estava sendo levado diretamente para o Trono do Sol.

As janelas do salão estavam parcialmente fechadas, de maneira que o aposento estava escuro e abafado. No fundo do salão, o Trono do Sol reluzia com seu brilho amarelo solar e destacava a silhueta de um rapaz. Enéas sabia que o kraljiki Audric era jovem, mas mesmo assim se assustou com sua aparência. Ele parecia pequeno para a idade, com peitoral largo, porém magro, e tinha um rosto encovado e olheiras. A testa suava, mas o menino parecia mais febril do que encalorado.

Havia um integrante do Conselho dos Ca’ à esquerda do kraljiki: uma mulher mais velha, com cabelo obviamente tingido de preto, que olhava fixamente para Enéas, com o olhar predatório de um falcão, embora ele não a reconhecesse. Um retrato da kraljica Marguerite estava à direita de Audric. O impacto da pintura era impressionante: Enéas nunca tinha visto algo tão realista e sólido — tinha mais presença do que a mulher do outro lado do trono. Enéas pensou que estava sendo observado pela kraljica ao se aproximar, e a sensação não foi agradável. Isso fez com que ele quisesse abraçar a bolsa que carregava; fez com que quisesse dar meia volta e fugir.

Você não pode. Eu não permitirei. Cénzi rugiu em sua mente, e Enéas balançou a cabeça como um cachorro tentando se livrar de pulgas.

O kraljiki pigarreou quando o o’offizier se aproximou, um som líquido. Ele tossiu uma vez, e Enéas ouviu o barulho de catarro nos pulmões do menino. Audric estava com a boca semiaberta e segurava um lenço de renda com manchas de sangue na mão direita. — O’offizier co’Kinnear — falou o kraljiki quando Enéas se aproximou do tablado e se curvou. — O archigos Kenne me disse que o senhor veio da guerra dos Hellins com notícias para nós. — O kraljiki falava pausadamente e devagar, parava muitas vezes para tomar fôlego e, ocasionalmente, para conter uma tosse com o lenço. — Ouvimos falar de seu belo desempenho na Garde Civile e saudamos o senhor por servir ao trono. Fico contente em lhe informar que assinei sua Lettre a’Chevaritt para que entre em vigor imediatamente.

Enéas curvou-se novamente. — Kraljiki, sinto-me honrado, e louvado seja Cénzi, que torna tudo possível.

— Sim — respondeu Audric. — Também ouvimos falar de sua grande devoção à fé concénziana, e que um dia o senhor considerou seguir carreira como téni. Os Domínios estão felizes que tenha escolhido uma carreira marcial em vez disso.

— Eu continuo servindo a Cénzi, de uma forma ou de outra — falou Enéas e inclinou a cabeça.

O kraljiki, com uma aparência entediada, dava a impressão de estar ouvindo outra pessoa. O menino deu uma olhadela para o quadro de Marguerite, concordou com a cabeça e disse — Sim, acho que sim. — Enéas não tinha certeza se Audric se dirigiu a ele ou não. Ele hesitou, e o kraljiki voltou sua atenção para Enéas. — Suas notícias, o’offizier? E quanto aos Hellins? Nós não sabemos de nada há mais de um mês.

— Eu trouxe algo para o senhor — disse Enéas. Ele deu um tapinha na bolsa de couro, com cuidado, quase um afago. Tirou a alça pela cabeça e esticou a bolsa na direção de Audric. — Se eu puder me aproximar?

O kraljiki fez que sim com a cabeça, e Enéas subiu na plataforma do Trono do Sol. Agora, mais de perto, ele sentiu o cheiro de doença em volta de Audric: o odor de putrefação, o mau hálito. O o’offizier fingiu não notar e entregou a bolsa para Audric, que a colocou no colo. O kraljiki espiou o interior e enfiou a mão para sentir o que havia ali dentro. — Tijolos de areia? — perguntou ele com a testa franzida, intrigado. Audric contraiu o nariz ao sentir o cheiro. — Terra negra?

— Não — falou Enéas baixinho. — Deixe-me mostrar para o senhor...

Com o chamado da Voz de Cénzi dentro de sua cabeça, ele começou o cântico rapidamente, com gestos bruscos. Pelo rabo do olho, Enéas viu a mulher à esquerda do kraljiki levar um susto, depois se afastar do trono. Ouviu alguém atrás dele na plateia gritar. Audric abriu a boca como se estivesse prestes a falar.

Um fogo intenso surgiu entre as mãos de Enéas. Ele inclinou-se para frente, segurou o fogo sobre a boca aberta da bolsa e deixou cair.

Cénzi rugiu Sua satisfação. O mundo explodiu em som e luz eternos.

 

A Pedra Branca

ELA VIGIOU Talis nos dias que se seguiram.

A Pedra Branca descobriu que não podia simplesmente devolver Nico ao homem e deixar o menino de lado. As vozes da pedra debocharam de sua preocupação. Fynn foi especialmente sarcástico e cruel. — Você quer uma família? Então agora a assassina vai se preocupar com as outras pessoas? A assassina descobriu o amor, agora que tem um bastardo no útero? — Ele gargalhou de felicidade. — Você virou uma tola, mulher. Olhe o que minha família fez comigo! A criança que você carrega irá traí-la alegremente da mesma forma, um dia. Família! — Fynn riu novamente, os demais se juntaram a ele em um coro debochado.

— Calem-se! — disse ela para todas as vozes, o que atraiu os olhares das pessoas à sua volta na rua. A Pedra Branca devolveu a atenção com uma cara feia. Ela abraçou o estômago em um gesto protetor e ficou assustada, como sempre, com a curva inchada onde antes havia um abdômen atlético e reto. Já sentia um leve movimento ali: a filha de Jan. Sua filha. — Vocês não sabem. Não têm como saber.

Quando pensava na criança, nascida e viva, era sempre uma menina, mas com algumas feições de Nico também, como se fossem irmãos estranhos. — Eu abriguei o menino quando ele precisava de alguém — falou ela para as vozes. — Sou responsável por ele agora. Eu fiz essa escolha.

As vozes debocharam dela. Gargalharam.

A Pedra Branca vinha observando o apartamento de Talis desde que deixou Nico lá. Ela abandonou o próprio apartamento e alugou um quarto em cima do de Talis, embora tomasse cuidado para que o menino não a visse entrar ou sair do prédio. Fez um buraco no chão para que pudesse vigiá-los e ouvi-los lá embaixo. E era o que fazia, pronta para agir caso ouvisse Talis maltratar Nico de qualquer maneira, pronta para surgir como a Pedra Branca para tirar a vida do homem, furiosa e vingativa. Mas ela não ouviu nada que a fizesse temer pelo menino.

Não diretamente, de qualquer forma.

Através de Nico, ela já sabia que os numetodos andaram caçando Talis. Sabia que ele era um ocidental e usuário da magia daquele povo, e que os Domínios estavam em guerra com os ocidentais nos Hellins. Por si só, isso já seria um perigo para Nico. Portanto, a Pedra Branca observava.

No segundo cénzidi do mês, ela seguiu os dois quando Nico levou Talis ao antigo apartamento da Pedra Branca, ela os observou das sombras do beco à frente quando eles surgiram novamente. O menino balançou a cabeça, confuso, e gesticulou com os braços enquanto falava com o vatarh. Naquela tarde, pelo buraquinho, ela ouviu a conversa dos dois lá embaixo. — Eu não entendo — disse Nico. — Era lá que Elle morava, Talis. De verdade. Eu estive lá.

— Eu acredito em você, Nico, mas ela não está mais lá — respondeu Talis. A Pedra Branca notou a preocupação na voz do homem e foi capaz de imaginá-lo esfregando os cortes em cicatrização no pescoço enquanto falava. Ela ouviu o comentário implícito nas palavras: ela é perigosa. Ela poderia ter me matado.

— Eu gosto de Elle — disse Nico. — Ela foi boazinha comigo.

— Fico feliz que Elle tenha sido boazinha. Fico feliz que ela tenha trazido você até mim, mas...

Qualquer que fosse a objeção, Talis não disse. A Pedra Branca sorriu diante dessa atitude. — Mas ela é louca — falaram as vozes. — E a loucura está crescendo.

Ela pegou a pedra na bolsinha com força, como se pudesse estrangular as vozes com os dedos, que ficaram brancos com a pressão.

A Pedra Branca não queria ouvir mais. Continuaria a vigiar, sim, mas por enquanto parecia que Nico estava a salvo com Talis. Ela saiu de mansinho do quarto, desceu correndo as escadas e saiu pela porta dos fundos do prédio. Cruzou rapidamente as ruas do Velho Distrito, distanciou-se das áreas principais e entrou nas profundezas tortuosas onde ruas estreitas faziam curvas e se enroscavam e os prédios eram escuros, antigos e pequenos. Ela ouviu os próprios pensamentos, as vozes dentro da cabeça, a conversa ao redor. — Matarh! — ela ouviu o grito de uma criança, e por um momento pensou que fosse Nico. Ela virou-se com um sorriso e os braços abertos para abraçá-lo.

Não era Nico. Era alguma outra criança, quase da mesma idade. — Matarh! — berrou o menino novamente, e uma jovem veio correndo da porta de um prédio próximo e pegou a criança nos braços. Os pés do menino balançaram quando ele foi abraçado por ela.

A Pedra Branca viu a cena e abraçou a si mesma, involuntariamente, em solidariedade. Ela queria sentir prazer com essa cena, que deveria ser bastante comum, mas o que sentiu foi uma onda forte de inveja. — Sim, isso aí é o que você nunca terá — vociferou Fynn dentro dela, os outros se juntaram a ele. — Jamais poderá ter esse amor. Ninguém jamais amará você desta maneira. Nem mesmo a criança que carrega. Jamais.

— Não é verdade — disse ela para as vozes e sentiu lágrimas escorrerem pelas bochechas. — Não, não é verdade.

— É sim. É sim. — Um coro de negativa. — É sim.

A Pedra Branca deu meia-volta e fugiu da cena, perseguida pelas vozes. Andou às pressas, sem saber sequer aonde ia, correu pelas feiras lotadas e por avenidas meio desertas, passou por lojas e comércios. Ela finalmente foi parar na margem norte do A’Sele, perto da Pontica Kralji. Lá, sem se importar com a lama e o cheiro fétido, ela se sentou e abraçou os joelhos, tentou ignorar as vozes que gritavam na cabeça enquanto balançava para frente e para trás. Se alguém a visse, pensaria que era louca e a deixaria em paz. Ficou sentada ali por um bom tempo, os pensamentos eram frenéticos e caóticos, até ser acalmada pela exaustão e as vozes sumirem. Ficou sentada, ofegante, enquanto esfregava a barriga inchada e imaginava a vida ali dentro.

— Eu vou proteger você. Vou mantê-la a salvo — falou ela para a filha.

Em algum lugar do outro lado do A’Sele, na Ilha A’Kralji, quase que como uma resposta, veio o som repentino de um trovão, e a Pedra Branca viu uma fumaça negra subir de algum ponto entre o amontoado de prédios da ilha. Não muito tempo depois, as trompas da cidade começaram a ecoar, embora já passasse da Segunda Chamada.

Ela se perguntou o que teria acontecido.


??? COMBATE ???

Audric ca’Dakwi

Niente

Kenne ca’Fionta

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ALGUÉM ESTAVA GRITANDO. Sem parar.

Quando Audric abriu os olhos, tudo estava tingido de vermelho, como se o mundo tivesse sido pintado com sangue. Coágulos nadavam sobre a sua visão. Sua respiração era fraca e estridente, ele mal conseguia aspirar. Audric parecia estar nos próprios aposentos, na própria cama, mas não conseguia mexer o corpo de forma alguma. O rosto coçava, e ele queria erguer a mão para coçar, mas não conseguia erguer nenhuma das mãos ou mexer os pés. Tinha medo de levantar a cabeça e olhar para baixo, medo do que poderia ver.

E a dor... Havia tanta dor, e Audric queria gritar, mas só conseguia gemer, um lamento fraco e eterno. Sentiu lágrimas quentes escorrerem pelo rosto.

— Você não pode morrer. Não pode... — A voz dela estava tão rouca e hesitante quanto a dele, um mero sussurro.

— Mamatarh? — perguntou Audric. — Onde a senhora está? Marlon? Seaton? Onde está a kraljica Marguerite?

A voz veio de uma distância irreal. Os ouvidos estavam tomados por um rugido contínuo, como se a cidade estivesse caindo em volta dele. — Marlon? Seaton? — chamou Audric de novo. A dor agigantou-se, como uma enorme onda na arrebentação. O kraljiki tentou gritar, mas não saiu nada da boca aberta.

Um rosto surgiu sobre Audric, que piscou. Ele pensou ter reconhecido o archigos Kenne. Cânticos de ténis misturaram-se ao rugido nos ouvidos. — Archigos?

— Sim, kraljiki. Eu vim assim que soube. — Audric mal conseguia ouvir o archigos, as palavras ficaram perdidas no rugido nos ouvidos.

— O que aconteceu? — Cada uma das três palavras pesava tanto quanto os grandes blocos de mármore da fachada do palácio. Audric mal conseguiu colocá-las para fora. Ele fechou os olhos.

— Ainda não temos certeza, kraljiki. O o’offizier co’Kinnear... ele talvez fosse um numetodo ou... — A voz do archigos sumiu. Audric abriu os olhos novamente; a boca de Kenne se movia como se ele ainda estivesse falando, mas o kraljiki só conseguia ouvir o rugido vermelho, que aumentou, e com o ruído veio a dor novamente, ele tentou gritar junto com o rugido, mas saiu apenas um arquejar. — ... jamais saberemos como... a conselheira ca’Ludovici está gravemente ferida... Marlon e Seaton, mortos... — dizia o archigos, mas Audric já não ouvia.

Ele vislumbrou o quadro da mamatarh. Estava apoiado contra a parede perto da cama. A moldura grossa tinha sido quebrada do lado esquerdo, e havia grandes rasgos desfiados na tela, as feridas cruzavam o rosto de Marguerite. Audric gemeu de novo. — Não! — Ele tentou gritar, como se a negação pudesse afastar e mudar tudo.

O kraljiki lembrou. Não tinha certeza. O o’offizier que se aproximou do Trono do Sol, um clarão... depois nada, até agora.

— Você não pode morrer...!

A dor entrou correndo novamente, desta vez ele sentiu o corpo inteiro tremer e sacudir, o corpo arqueou-se, e o archigos pressionou Audric para baixo, berrando com urgência com outra pessoa no quarto. — ... o que você puder fazer... o Ilmodo... Cénzi perdoará...

A dor ameaçou parti-lo ao meio, quebrá-lo como um galho no inverno, mas de repente foi embora. Sumiu. Os olhos estavam abertos, ele viu o archigos Kenne gritar com o curandeiro do palácio e a téni de robe verde, havia outras pessoas no quarto, todas gritavam, mas Audric não conseguia escutar nada, nada além do rugido cada vez mais alto. — Você não pode morrer. — E a dor finalmente foi embora. Audric quis erguer a mão até a mamatarh, mas o corpo ainda não se movia, ele sequer conseguia respirar, embora os pulmões doessem, o kraljiki tentou... tentou... e...

 

Niente

ELE TORCEU PARA que a tomada da ilha de Karnmor fosse o suficiente, que o tecuhtli Zolin ficasse satisfeito com a demonstração do poder dos tehuantinos, e que eles pegassem os navios e voltassem para casa. Mas Zolin olhou para o leste, em vez disso. — Nós ferimos o corpo — disse ele —, mas a cabeça permanece, e o corpo se cicatrizará, a não ser que ataquemos. Eu sei o que você dirá, nahual, mas agora é o momento de atacar. Eu sinto isso. Pergunte a Axat. Ela lhe dirá.

Niente olhou na tigela premonitória e polvilhou as ervas sobre a água. Talvez porque a água daqui fosse menos pura, ou talvez porque a terra de seus deuses estivesse distante, ou talvez porque sua habilidade tivesse diminuído, mas novamente as imagens que ele viu refletidas ali eram confusas ou passageiras demais, e Niente ficou incomodado com elas.

... Um menino em um trono brilhante, mas o rosto era um crânio descarnado, e ali: seria o ocidental que ele enfeitiçou? Uma mulher à espreita no fundo da cena, difícil de ver... Mas a água fez um redemoinho e, quando parou novamente, Niente viu outro garoto em outro trono, e também uma mulher atrás dele, com um téni de robe verde e cabelo escuro ao lado dela... Exércitos passavam por uma terra devastada com estandartes que tremulavam, marchavam sobre um solo cheio de corpos... Fogo e um templo, e fileiras de pessoas em robes verdes rezando... Uma grande cidade com um rio que corria no meio, e fumaça que saía dos grandes prédios... Um guerreiro tehuantino no chão, trespassado por uma lança, e o corpo de um nahualli ao lado de um cajado mágico quebrado, mas a água ficou turva agora, e Niente não conseguiu ver os rostos dos que estavam caídos ali para saber quem eram, embora o estômago tenha ficado embrulhado, e de repente ele não quis ver...

— Então? — perguntou Zolin, e Niente tirou os olhos da tigela. O tecuhtli havia entrado na tenda e observava o nahual. A águia de sua patente espalhava asas com penas vermelhas até as bochechas, enquanto o bico se abria na testa como se para dar um grito feroz.

Eles estavam acampados à beira de um grande rio largo que um dos orientais capturados disse se chamar A’Sele. Segundo informaram, bem longe, rio acima, estava Nessântico, a capital dos Domínios. A frota tehuantina estava ancorada nas proximidades, perto do ponto onde o A’Sele desembocava no Mar Médio, com os cascos baixos na linha d’água com a pilhagem de Karnmor.

Eles deixaram a cidade de Karnor em ruínas há um punhado de dias. A cidade foi violada e saqueada, mas não tomada; o resto da grande ilha foi deixado completamente incólume. Ao contrário, Zolin levou o exército de volta para os navios, saiu do porto de Karnor e contornou Karnmor até a boca do A’Sele, onde o exército seguiu para terra firme mais uma vez. Eles encontraram pouca resistência. O povo dos Domínios desapareceu diante dos tehuantinos como neve na primavera, as pessoas recuaram e sumiram nas florestas e estradas remotas do terreno, abandonaram os vilarejos com seus prédios e casas de formato estranho. Essa era uma terra que tinha sido domada há gerações: com campos e fazendas abundantes, com estradas largas, pavimentadas por paralelepípedos dentro dos vilarejos e cercadas por muretas de pedra do lado de fora. Era uma terra domesticada, diferente das encostas das Montanhas Escudo, mais parecida com as fazendas das grandes cidades em volta do Mar Interior ou dos canais de Tlaxcala, a capital construída no próprio mar.

— Nahual Niente?

Ele levou um susto e percebeu que ainda olhava para a tigela, embora visse apenas seu reflexo confuso e arruinado pela magia, com o olho esquerdo opaco que estava branco de uma maneira assustadora. Uma gota de suor caiu da testa e pingou na água, o que fez tremer a imagem de Niente. Ele ergueu a cabeça e falou — Eu vi uma batalha. E um rei-menino no trono. O rosto era um crânio.

— Ah, então talvez seu oriental tenha cumprido a tarefa?

Niente deu de ombros.

— A batalha, quem ganhou?

— Eu não sei. Eu vi... vi um guerreiro morto e um nahualli morto.

Zolin olhou com desdém e disse — Guerreiros sempre morrem. Nahualli também. É como são as coisas. — ele parou e franziu os olhos, o que movimentou as asas da águia. — Fui eu quem você viu?

Niente balançou a cabeça. — Não sei — respondeu, mas não explicou mais.

— Você nos viu voltando para casa de navio? — perguntou o tecuhtli.

— Não. — Outra resposta curta, Zolin concordou com a cabeça.

— Você não quer estar aqui, não é? Pensa que estou cometendo um erro.

Niente jogou fora a água da tigela premonitória. Ele a secou com a borda da camisa e perguntou-se se deveria dar uma resposta direta para Zolin. O nahual jamais tinha sido senão honesto com Necalli, mas Necalli não tinha o temperamento perigoso de Zolin. — Estamos muito longe de casa, em uma terra estranha.

— Uma terra que não ofereceu quase resistência alguma — falou Zolin. Ele gesticulou com os braços para leste. — Essa grande cidade dos orientais já deve saber que estamos aqui, mas não vejo exército algum diante de nós.

— O senhor verá. E não temos reforços atrás de nós, nenhum guerreiro ou nahualli novos para substituir os caídos. Eu vi os castelos e as fortificações dos orientais na tigela premonitória, tecuhtli. Nós tivemos a vantagem do elemento surpresa em Karnor; isso não existe mais. Eles estarão preparados para nós.

— E sua areia negra irá demolir as muralhas e reduzir as torres a ruínas.

— Eu vi o fogo das forjas e a reza de seus ténis-guerreiros. Vi os exércitos, e eles eram enormes, espalhados sobre a terra como uma floresta de aço. Somos apenas alguns milhares aqui, tecuhtli, e os orientais têm muito mais. Agora nós nos encontramos como eles em nossa terra, longe de nossos recursos. Duvido que nós nos saiamos melhor do que eles lá.

— É isso o que Axat mostra para você? — Zolin apontou para a tigela nas mãos de Niente, inscrita com os símbolos da lua da deusa. — Você vê, inegavelmente, a minha derrota na água?

Niente balançou a cabeça negativamente.

— Ótimo. — Zolin mexeu os músculos do maxilar e flexionou as asas da águia. — Eu sei que você preferiria que voltássemos para casa, nahual. Eu compreendo, e você não é o único a ter essa opinião. Eu escuto vocês, todos vocês. Todos nós sentimos saudade de casa e das nossas famílias, eu mesmo não menos do que qualquer outra pessoa. Mas meu dever é nos proteger da melhor maneira possível, e essa... essa me parece a melhor maneira. Eu gostaria que você não mentisse e me dissesse se os deuses insistem que a retirada é a atitude mais prudente.

— Eu digo o que eu vejo, tecuhtli. Sempre. Nada mais. Nada menos. Eu jurei a Axat que seguiria e serviria ao tecuhtli, não importa quem seja ele ou o que ele nos mande fazer.

Zolin deu um riso meio debochado. Ele esfregou o topo da cabeça, como se fizesse carinho na águia pintada na pele. — Você jurou a Necalli, não a mim. Niente, se você quiser ser liberado do juramento agora... — ele deu de ombros. — Um dos outros nahualli pode me servir.

A ameaça pairou no ar úmido. Niente sabia o que Zolin estava oferecendo: nenhum nahual abria mão do título e sobrevivia; Niente perguntou-se qual dos nahualli sussurrava no ouvido de Zolin. Certamente havia alguns que achavam que podiam ser o nahual. — Se o tecuhtli acha que outro nahualli é mais adequado para servi-lo, então este nahualli deve trazer seu cajado mágico aqui, e veremos qual de nós dois Axat prefere.

Zolin riu, mas havia um constrangimento na reação, o que indicou para Niente que o homem estava tentado. — Por enquanto, eu deixarei que você me sirva, nahual Niente. E você verá que estou certo. Eu irei até essa grande cidade dos orientais, vou destruí-la e deixá-la queimando, como fiz com Munereo e Karnor. Sou uma grande lança lenta, que irá varar a armadura, a carne, os órgãos dos orientais até trespassar o coração deles. O povo dos Domínios entenderá que seu deus é fraco e errado. Eles abandonarão a nossa terra e a de nossos primos para sempre. Pagarão tributos para nós, com medo de que um tecuhtli traga outro exército aqui novamente. É o que farei, e é isso que você verá na sua tigela premonitória, nahual. Você verá.

Niente abaixou a cabeça. — Como eu disse, tecuhtli, eu olharei e direi tudo que Axat me permitir ver, para que o senhor conheça os futuros possíveis para as escolhas que fizer. Isso é tudo o que qualquer nahualli pode fazer.

Zolin torceu o nariz. Ele lançou um olhar confiante para Niente, com os olhos cercados pelas penas das asas da águia. — Você verá — repetiu o tecuhtli. — Isso é o que eu lhe digo.

 

Kenne ca’Fionta

A CULPA REMOÍA O ESTÔMAGO e fez com que ele afastasse o prato.

— Kenne, você precisa comer. — Seu velho companheiro e amante, Petros co’Magnaoi, u’téni da fé concénziana, esticou o braço sobre a toalha de mesa branca para pegar a mão de Kenne. — Você foi apenas um peão no plano de Cénzi. Não tinha como saber.

O archigos balançou a cabeça. A culpa não é sua... Você não tinha como saber... Era o que todo mundo dizia para ele nos últimos dias. Às vezes, as palavras eram ditas com genuína sinceridade; em outras — como na ocasião em que ele foi visitar Sigourney ca’Ludovici em seu leito, enquanto a conselheira se recuperava dos ferimentos —, Kenne pensava ter ouvido um mero verniz de educação sobre um profundo rancor.

— Eu mandei o homem para o kraljiki, Petros. Mandei. Ninguém mais, e...

— Kenne — interrompeu Petros. Ele balançou a cabeça magra e aquilina, o movimento mexeu o cabelo comprido até o queixo que Kenne gostava tanto, que há muito tempo ficou branco, mas que era tão farto na cabeça do homem quanto escasso na do próprio archigos. Olhos azul-claros, ainda afiados e inteligentes, sustentaram o olhar de Kenne e recusaram-se a deixar que o archigos virasse o rosto. — Pare com isso. Você pode continuar repetindo sem parar as mesmas palavras, mas nenhuma irá mudar o que aconteceu. Você fez o que qualquer um de nós teria feito. A reputação desse Enéas co’Kinnear era sólida, e ele disse que tinha notícias dos Hellins, algo que o kraljiki precisava saber desesperadamente. Se eu estivesse no seu lugar, teria feito a mesma coisa.

— Mas você não fez. Ele veio a mim.

— Ele foi, e você não tinha como saber o que Enéas era ou o que faria, assim como seus offiziers superiores não sabiam. O que precisamos fazer agora é garantir que a fúria da população não vire um banho de sangue. Já há vozes no Velho Templo que pedem por um novo expurgo dos numetodos, e a mesma coisa também pode ser ouvida no Conselho dos Ca’. Sua voz é necessária como o líder da Fé, Kenne. A voz da sanidade.

Kenne sentiu o aperto dos dedos de Petros na mão quando não respondeu. — Kenne, meu amor, Cénzi lhe deu um teste agora. Você sabe que a archigos não foi morta pelos numetodos, não com Karl amando-a tanto. Esse Enéas, e o que ele fez com o kraljiki... Parece a mesma coisa que fizeram com Ana. Essa poeira negra que achamos no templo depois; ouvi dizer que também encontraram sobre os pedaços do Trono do Sol...

— Eu matei Audric — murmurou Kenne. — Matei seus camareiros, os suplicantes que estavam próximos. E quanto à pobre Sigourney... — O rosto de Sigourney surgiu diante dele, estraçalhado pelas lascas do Trono do Sol, com o olho direito enfaixado (e perdido, de acordo com o que o curandeiro sussurrou para Kenne depois), a mão direita em bandagens, com dois dedos visivelmente faltando, o jeito horrível como o lençol ficava plano na altura do joelho direito.

A culpa era dele, não importa o que Sigourney possa ter sussurrado com sua voz arruinada. Isso era mais terrível do que o assassinato de Ana, embora este tenha sido bem horrível.

Culpa dele.

Kenne começou a falar com Petros, mas não conseguiu, a voz embargou. Petros apertou a mão de Kenne, levantou-a e deu um beijo.

Alguém bateu na porta. — Archigos? — O chamado veio baixo entre as tábuas entalhadas e envernizadas. Petros afastou a mão rapidamente e recostou-se na cadeira.

— Entre — falou Kenne.

Era uma das integrantes da equipe de o’ténis do archigos: Sara ce’Fallin, sua assistente. Ela deu uma olhadela para Petros, cumprimentou-o com um aceno e fez o sinal de Cénzi para Kenne. — Sinto incomodar seu jantar, archigos, u’téni, mas... — Ela mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça.

— O que foi? — perguntou Kenne com delicadeza.

— Há novidades — respondeu Sara. — Um mensageiro chegou do Conselho dos Ca’; o senhor deve ir ao palácio imediatamente.

— O que foi? — perguntou ele. — Firenzcia?

Ela balançou a cabeça e disse — Não. O mensageiro não disse mais nada além de que era sobre Karnmor.


Ele esperava ser informado de que o vulcão há muito tempo adormecido que abrigava a cidade de Karnor havia despertado novamente. Mas as notícias eram bem piores.

Kenne mal conseguiu acreditar nas palavras do mensageiro, que estava diante dos conselheiros na câmara do Conselho dentro do palácio, mas o cansaço, o rosto sujo de terra e a fuligem, o horror nos olhos e na voz... Estes elementos ele não podia negar.

A cidade de Karnor era uma ruína fumegante, de acordo com o homem, com milhares de mortos, especialmente por causa do ataque dos ténis-guerreiros ocidentais. Pior ainda, o exército ocidental estava agora no continente e avançava lentamente A’Sele acima. A cidade de Villembouchure era a próxima no caminho deles.

— Muitos dos navios em que eles vieram — disse o mensageiro — eram nossos. Eu reconheci os traços do Marguerite quando ele saiu do porto de Karnor para ir aos Hellins há um ano, mas agora ele carrega a bandeira de águia dos ocidentais e foi pintado com cores berrantes. É por isso que não têm vindo navios expressos dos Hellins; os ocidentais devem ter destruído nossas forças lá.

— Não há provas disso — disparou Aleron ca’Gerodi, que olhou feio para o homem, como se o desafiasse a contradizer a afirmação. — Nenhuma.

O mensageiro deu de ombros e falou — Eu vi o que vi, conselheiro. Fui um dos que fugiu de Karnor quando a cidade foi tomada e queimada. Eu encontrei um barco na margem leste da ilha; vi as velas da frota ocidental entrarem na boca do A’Sele e fogueiras na margem norte.

— Ele não mente — disse uma voz assim que as portas da câmara foram abertas. Kenne virou-se e viu Sigourney entrar, sendo carregada em uma liteira. Ela estava sentada com a coluna reta apoiada em travesseiros; o rosto era um horror de linhas vermelhas; o cabelo, sem a tintura negra, tinha agora espessas mechas grisalhas. Seu único olho encarava fixamente os presentes; o esquerdo estava coberto por um tapa-olho acolchoado. — Há outros mensageiros chegando à cidade neste mesmo instante. Eu falei com um deles: um homem dos promontórios da costa. Ele disse a mesma coisa: o exército ocidental está aqui nos Domínios e marcha pela margem norte do A’Sele.

— Conselheira ca’Ludovici — falou Kenne preocupado. — A senhora não deveria estar aqui. Seus ferimentos...

— Meus ferimentos não são importantes — respondeu ela ao abanar uma mão enfaixada e com poucos dedos. — O ervanário me deu extrato de cuore della volpe, que aliviou grande parte da dor. Nós perdemos nosso kraljiki, o regente traidor conspira com Firenzcia, e os ocidentais ousaram vir aqui. Meus ferimentos? — Ela cuspiu. Kenne e os demais viram o arco da cusparada, que foi cair nas lajotas de pedra. — Eles não são nada — vociferou a conselheira com a voz rouca e hesitante. — Não podemos esperar e vacilar aqui. Temos que agir. — Ela fez uma pausa para tomar fôlego. — E a primeira coisa que temos que fazer é nomear um kralji, uma vez que Audric não indicou seu sucessor.

Kenne soube então o que fez Sigourney ignorar os ferimentos e sair do leito.

Ao olhar em volta da câmara para os demais integrantes do Conselho, ficou óbvio que o mesmo pensamento ocorreu a eles. Também ficou óbvio para Kenne quem os conselheiros escolheriam. Aleron concordou com a cabeça, assim como Odil ca’Mazzak; os outros olhavam intensamente para a mesa, como se algo importante tivesse sido rabiscado ali. Foi Odil quem finalmente falou.

— A senhora é a Téte do Conselho dos Ca’, conselheira ca’Ludovici, e a pessoa em quem o kraljiki Audric mais confiava. Eu concordo, um novo kralji deve ser nomeado imediatamente... e eu acredito que deva ser uma kraljica. — Ele olhou em volta da câmara. — Eu proponho que a vajica Sigourney ca’Ludovici seja nomeada kraljica Sigourney. Ela tem o sobrenome, é a parente mais próxima aqui e tem demonstrado amplamente as qualidades de liderança de que precisamos.

— Eu concordo — falou Aleron imediatamente ao se levantar, e então todos ficaram de pé, e Sigourney sorriu, apesar da dor e dos ferimentos em cicatrização, e ergueu as mãos para eles em sinal de falsa humildade, e estava feito; antes que Kenne pudesse dizer qualquer coisa. Não que os conselheiros fossem dar ouvidos a ele, pensou o archigos, com tristeza.

Sua voz não era uma em que o Conselho prestasse atenção.

O olhar caolho de Sigourney percorreu a sala, e quando encontrou o archigos, ela franziu a testa momentaneamente. Kenne notou a acusação e a culpa no rosto da mulher e soube de mais uma coisa.

Ele não seria archigos por muito tempo. A nova kraljica encontraria uma forma de derrubá-lo.

 

Karl ca’Vliomani

SERAFINA SORRIU PARA ELES no momento em que os dois entraram na cozinha do pequeno apartamento, embora Karl pudesse ver uma tristeza, quase inveja, quando ela ergueu os lábios. Serafina penteou o cabelo para trás com as costas da mão, ainda segurando a faca com que cortava as verduras. Karl sentiu o cheiro do guisado que borbulhava na panela preta sobre o fogo. — Bom dia — disse Serafina. — É bom ver vocês dois juntos.

Varina deu o braço a Karl e aconchegou-se nele. — É, sim. Bem mais do que eu esperava.

Karl também sorriu e perguntou-se se alguma das duas mulheres era capaz de ver as emoções misturadas em sua própria felicidade: a pequena sensação incômoda de que, de alguma forma, estava traindo Ana, embora ele e a archigos jamais tenham tido intimidade física. Ana também teria sorrido para você. Também teria dito para ir em frente. Teria ficado feliz por você. Era o que ele dizia para si mesmo, mas não aliviava a semente de culpa.

— Eu fui traída muitas vezes e magoada muitas vezes — disse Ana uma vez para ele, não muito depois de Karl retornar da Ilha de Paeti, após descobrir que Kaitlin não o amava mais, que não queria mais que ele fizesse parte da vida dela ou de seus filhos. — Eu não posso lhe dar essa parte de mim, Karl. Ela simplesmente não está mais lá: existem muitas cicatrizes e muita dor. Eu posso ser sua amiga, se isso for o bastante para você. Mas nada mais. Nada mais.

— Você não me ama... — Ele começou a dizer, e Ana balançou a cabeça.

— Eu amo você, sim, mas não dessa maneira. Se você precisa disso, então encontre outra pessoa. Eu entenderia, Karl. De verdade. Sinto muito... — E ele encontrou alívio em outro lugar, nas grandes horizontales que Varina tinha visto. Mas, de alguma forma, Karl não percebeu a pessoa diante de si que também estava interessada nele mais do que um amigo, e de quem ele também gostava...

Agora Varina abraçou Karl novamente. Ele se inclinou e ela virou o rosto para o embaixador. O beijo foi delicado e doce, e a culpa sumiu um pouco novamente. “Se você precisa disso, então encontre outra pessoa...” Talvez um dia, em breve, até mesmo este sussurro fosse embora.

Karl não sabia que precisava tanto disso e desejou ter percebido antes.

— Deixe-me ajudar você, Sera — falou Varina, e seu calor deixou o corpo do embaixador. — Karl, por que não pega uma chaleira para o chá? — Ele observou as duas mulheres por um instante, depois pegou a chaleira, colocou água dentro da jarra e pendurou no suporte sobre o fogo, ao lado do guisado. Encontrou a hortelã e as ervas, colocou no saquinho de linho e amarrou.

— Vou ao mercado comprar um pouco de mel e talvez croissants — disse Karl. — Com o cortejo fúnebre de Audric hoje, aposto que os mercados...

Ele parou.

Uma sombra passou pelas persianas da janela. Karl ouviu passos do lado de fora da porta. Alguém bateu. — Serafina? Serafina, você está aí?

Ele conhecia a voz. Lembrou-se dela.

Serafina deixou cair a faca que segurava. O objeto bateu na mesa e depois no chão, mas Serafina não notou, pois corria para a porta. — Talis!

Ela escancarou a porta; Karl viu o homem parado ali sobre o ombro de Serafina, então a mulher ficou de joelhos, soltando um grito. — Nico! Ó, Nico! — O menino também estava ali e deu um abraço forte na matarh. Ambos choraram.

— Matarh! Eu sabia que a senhora viria procurar por mim. Eu sabia... — Nico viu os dois ao mesmo tempo. — Varina — falou o menino. — Ah. — De repente, ele soltou a matarh. — Talis...

— Eu vi os dois — disse Talis, que encarava Karl. — Serafina, pegue Nico e saia. Agora.

Serafina olhava de Talis para Karl. O homem ergueu a bengala, e Karl percebeu o que aquilo significava, percebeu agora melhor do que nunca. Ele levantou a mão, pronto para lançar o próprio ataque. — O que... — dizia Serafina.

— Apenas saia! — falou Talis. — Agora!

— Não — disse Serafina enquanto segurava Nico com força, e embora parecesse que ela não quisesse outra coisa senão seguir o conselho de Talis, a mulher permaneceu entre os dois. — Eu não vou sair até entender o que está acontecendo.

Talis gesticulou para Karl com a mão livre e falou — Esse desgraçado é o embaixador numetodo, Serafina. Esse é o homem que tentou me matar e a razão pela qual você teve que ir embora da cidade. Ele sequestrou Nico quando voltou aqui e usou o menino como isca para me pegar.

Serafina olhava fixamente para Karl, com a expressão chocada de quem tinha sido traída.

— Isso é verdade? — perguntou ela. — Diga-me.

Karl deu uma olhadela para Varina, que confirmou com a cabeça. — É verdade, em grande parte — respondeu Karl. — Eu sou o embaixador ca’Vliomani. Sou um numetodo, assim como Varina. Nós encontramos Nico aqui enquanto procurávamos por Talis, e, sim, ficamos com ele; embora eu deva chamar a atenção para o fato de que Nico estava sozinho nas ruas quando Varina o encontrou, e nós cuidamos dele, mantivemos o menino alimentado, aquecido e a salvo. Dissemos para as pessoas na vizinhança que o encontramos... e, sim, fizemos isso na esperança de que Talis viesse atrás de Nico, mas ele nunca veio. Quanto a Talis, eu acredito que ele seja o homem que matou a archigos Ana. — Serafina abraçou forte Nico. A confusão lutava com o medo em seu rosto, enquanto ela escutava Karl, o olhar ia de um para o outro. — Agora, pergunte a ele uma coisa para mim — disse Karl. — A verdade. Pergunte a ele quem matou a archigos.

Serafina olhou para Talis, que balançava a cabeça ao dizer — Não, não fui eu. — Mas o rosto da mulher ficou vermelho.

— Você sabia onde Nico estava e não foi até ele? — Serafina berrou baixo para Talis. — Não tentou ajudá-lo? Não me mandou notícias enquanto eu morria de preocupação por ele?

— Eles teriam me matado se eu tivesse ido até ele, Serafina. E talvez Nico também.

— Não. — Varina aproximou-se de Karl. — Você está errado, Talis. Nós só queríamos saber a verdade. Os numetodos estavam sendo culpados pela morte da archigos Ana; nós mesmos corríamos perigo. Eu... nós... jamais teríamos feito qualquer coisa para prejudicar Nico. Jamais. Você sabe disso, não sabe, Nico?

Nico balançou a cabeça enfaticamente sobre o ombro da matarh e disse — Eu sei. Varina foi boa comigo, matarh. Ela disse que tentaria encontrar a senhora... e olhe só, ela conseguiu.

— Talis é um feiticeiro ocidental, Serafina — falou Karl. — O último ocidental parecido com ele que eu conheci foi Mahri, o Maluco, e ele também tentou matar Ana.

À menção do nome de Mahri, a bengala tremeu nas mãos de Talis e os músculos em seu maxilar ficaram retesados. — Você conheceu Mahri?

— Conheci. E conheci Mahri muito bem. E sei que ele não estava aqui pelo bem de Nessântico. E nem você. Sera, sinto muito. Eu sei que você ama este homem, mas você precisa entender o que ele é. Talis é um inimigo dos Domínios, bem mais do que qualquer numetodo.

— Ela sabe o que eu sou — resmungou Talis. — Sera, eu não mudei. Eu amo você de verdade; amo Nico também. Eu o encontrei e vim trazê-lo para você. Se você não estivesse aqui, eu iria para Ville Paisli a seguir para encontrar você. Não sou o monstro que eles estão pintando. — Ele fez uma cara feia para Karl e Varina. — Se eu fosse, não teria esperado; eu teria atacado o embaixador sem me preocupar se você e Nico estavam no caminho. Sera, por favor. Afaste-se.

Em vez disso, ainda com Nico nos braços, ela voltou-se para Karl e Varina e ficou entre os dois e Talis. — Eu conheço Talis. Eu acredito quando ele diz que não matou a archigos. Se vocês querem conversar com ele, bem, aqui está ele. — Serafina fez uma pausa e um carinho na cabeça de Nico. — Eu confiei em vocês dois. Agora peço que confiem em mim.

Karl deu uma nova olhadela para Varina. Ela tinha abaixado as mãos e deu um discreto aceno de cabeça, e Karl também deixou as mãos caírem.

— Tudo bem — falou ele. — Diga para Talis colocar aquela bengala de lado, e nós podemos conversar.

 

Jan ca’Vörl

O TEMPLO EM BREZNO era menor do que o Templo do Archigos em Nessântico, e não tão venerável e sagrado quanto o Velho Templo na Ilha A’Kralji (ou com um domo tão impressionante). Mas o domo de Brezno e vários de seus famosos afrescos foram pintados pelo grande artista firenzciano co’Goslar, e eram impressionantes. As figuras compridas e estranhas de co’Goslar agigantavam-se e contorciam-se sobre os suplicantes no templo, vestidas com roupas transparentes ou peladas: Cénzi, sim, estava em destaque, mas também estavam representadas pessoas em Firenzcia que foram importantes para a fé concénziana. Havia Gareth ca’Lang, o primeiro a’téni de Brezno, com a espada amarrada ao braço sem mão enquanto lutava uma batalha perdida contra os hereges da seita de Karinthia; havia Pewitt, o Desgraçado, sendo atacado pelos moitidis, que devoravam e arrancavam a carne do seu corpo vivo, que debochavam do homem ao consumir seu corpo enquanto ele observava em sofrimento; havia Ursanne ca’Sankt, a grande mártir que muitos imaginavam que seria archigos enquanto viveu, que tentava desesperadamente afastar os estupradores de Tennshah, de cuja união indesejada nasceria o grande starkkapitän firenzciano Adalwulf, que mais tarde expulsaria os tennshas de seus povoados em volta do lago Firenz.

Jan estava cercado por história e tomado por uma fúria movida pela fé. Parecia apropriado. Aos olhos dele, sua reconciliação com a noção de que a matarh tinha a intenção de disputar o Trono do Sol fora uma luta tão titânica quanto qualquer uma das representadas aqui. Jan confrontou Allesandra após a longa conversa com Sergei ca’Rudka, mas, no fim, ele disse que compreendia, mesmo que não aprovasse. Jan não tinha certeza se isso era verdade ou se, depois de várias viradas da ampulheta de discussão, a declaração pelo menos deixou que ele dormisse um pouco, mas a matarh aceitou o que Jan falou.

O hïrzg acompanhou Allesandra ao templo a pedido do archigos e olhava para o domo enquanto os dois aguardavam Semini. — Eu me lembro da primeira vez que vi essas pinturas — falou Jan para tentar quebrar o silêncio incômodo. — Elas me assustavam; pensei que fossem fantasmas. Imaginei que as figuras se mexiam e saíam da pintura para me perseguir... — Jan riu; ele parecia rir muito pouco desde os eventos que culminaram em sua sagração como hïrzg. — Agora apenas acho que são dramáticas demais e nem tão bem pintadas assim.

— Não diga isso para Semini — falou a matarh. — Ele adora co’Goslar... Ah, lá está ele.

Semini veio a passos largos na direção dos dois, saindo detrás do Alto Púlpito no coro. Entre a Segunda e a Terceira Chamadas, o templo ficava geralmente deserto, e os gardai que entraram antes de Jan e Allesandra agora estavam a vários passos de distância, em silêncio, após terem retirado visitantes desgarrados da câmara principal. Os três estavam tão sozinhos quanto parecia possível para Jan ultimamente.

— Meu hïrzg — trovejou Semini, a voz reverberou no domo enquanto ele fazia o sinal de Cénzi para Jan. — E a’hïrzg. — Jan viu o archigos sorrir para ela; Semini parecia prestes a pegar a mão de Allesandra, embora o gesto tivesse sido uma terrível quebra de protocolo. Mas o homem parou a alguns passos cautelosos, mais perto talvez do que deveria estar, mas não tão próximo a ponto de ser extraordinariamente óbvio. Jan sentiu um pouco da irritação voltar; ele nem podia culpar a matarh por arrumar um caso quando o vatarh traiu a esposa tantas vezes. No entanto, ficava incomodado ao saber. A visão dos dois juntos, dos corpos enroscados como o dele esteve com Elissa... Não, Jan sentiu um arrepio e balançou a cabeça para afastar a cena.

— Obrigado por virem — continuou Semini, que ainda olhava mais para Allesandra do que para Jan. — Como eu disse, recebi uma mensagem com, segundo me disseram, uma mensagem idêntica para o hïrzg. Ela está aqui comigo.

Semini entregou um pergaminho enrolado e selado para Jan e observou o hïrzg examinar o selo na cera azul — um punho em uma manopla, o selo de Nessântico desde a época do kraljiki Justi. Jan desenrolou o papel e vasculhou as letras escritas à tinta com uma fúria crescente. Quase ouviu a voz do onczio Fynn crescer dentro dele — Jan sabia como Fynn teria reagido a esta mensagem. Em silêncio, com a boca franzida, ele entregou o pergaminho para Allesandra e ouviu a matarh tomar fôlego quase que imediatamente. Sem dizer uma palavra, ela devolveu a mensagem de volta para o filho.

— Como ele ousa falar conosco dessa maneira? — disparou Jan. Ele abriu as mãos e deixou o papel cair no piso de mármore. A palavra “ousa” ecoou na câmara por muito tempo depois de tê-la dito. O som pareceu agitar os gardai, que se remexeram de um jeito nervoso. — Ele fala conosco como se Nessântico ainda governasse Firenzcia. “Devolvam o antigo regente para nós em um mês ou tomaremos medidas efetivas para recuperá-lo”. Como ele ousa fazer ameaças assim? — Outro eco. — Deixe que ele tente; nós iremos esmagá-lo.

Jan ergueu os olhos para o domo. Fantasmas... Nenhum deles toleraria essa situação; eu também não posso. Isso é um tapa na cara.

— Jan, eu compreendo o que você sente; acredite em mim, eu tive a mesma reação — disse Allesandra.

— “Mas...?” — disparou Jan com raiva ao se voltar para ela. — É isso o que a senhora ia dizer, matarh? “Mas...” que “mas” seria esse?

Em uma reação estranha, ela sorriu. — Meu querido, você soou igualzinho a Fynn, ou talvez ao meu vatarh. Eu já vi os dois rugirem desse mesmo jeito quando se consideravam insultados.

Allesandra ter achado graça só serviu para aumentar a irritação de Jan. Ele olhou atrás de Semini, para o mural depois do Alto Púlpito, para as tiras ensanguentadas da carne de Pewitt presas às garras dos moitidis, e tentou conter a irritação.

— O “mas”, meu filho, é o que vínhamos considerando — continuou ela. — Talvez essa seja simplesmente a oportunidade de que precisávamos. A desculpa para agir.

— A desculpa? — Jan começou a falar, e, por um momento, sentiu-se bem mais novo, uma criança novamente. — Ah. — Essa palavra não produziu eco algum. Flutuou no ar entre eles, perdida na imensidão do templo. Jan abaixou o olhar para o papel meio enrolado sobre o piso de mármore, e a suspeita cresceu dentro dele. — Estranho que uma mensagem como essa levasse exatamente à situação que a senhora queria, matarh. Uma provocação deslavada de Nessântico contra nós. Que maravilhoso senso de oportunidade. — Jan ergueu as sobrancelhas para ela.

Allesandra balançou a cabeça. — Eu não sabia nada sobre essa situação até agora. Não tive nada a ver com isso. Pergunte ao archigos.

Semini concordou com a cabeça rapidamente. — As cartas chegaram seladas através de vias diplomáticas. Se o hïrzg duvida, posso mandar o mensageiro ser trazido aqui.

Jan abanou a mão e desviou os olhos dos dois para os murais no domo. — Não, não há necessidade. É que... — O olhar retornou para a matarh. — Parece que Cénzi quer o que a senhora quer, matarh. — Talvez fosse coincidência. Allesandra parecia genuinamente chocada. Talvez fosse um sinal. Ele não estava contente com essa perspectiva.

— Ah, certamente — respondeu Semini. — Sem saber, o kraljiki agiu como queríamos, ou Cénzi fez com que ele agisse assim. O kraljiki ameaçou a Coalizão e nossa Fé diretamente, e não temos escolha a não ser responder para proteger nossos interesses e fronteiras. Este é o momento, hïrzg. Esta é a ocasião. A maior parte da Garde Civile de Nessântico foi mandada para oeste, para os Hellins; eles levarão tempo para reunir os chevarittai e o restante da Garde Civile, para preparar os ténis-guerreiros que estiverem disponíveis, e para alistar os soldados de infantaria necessários para honrar essa ameaça. — O archigos sorriu e acenou com a cabeça para Allesandra. — Sua matarh sabe disso. É o momento de o senhor demonstrar sua liderança e levar a Garde Civile e os chevarittai de Firenzcia à guerra. O senhor reunificará os Domínios como eles eram antes, hïrzg Jan, e seu nome será lembrado eternamente por isso.

— Eu não sei...

— Eu sei — disse Allesandra com uma voz firme e orgulhosa. — Você está pronto para isso, Jan.

Ele hesitou. Jan ainda estava incomodado por ser usado pela matarh para os objetivos dela; também estava atormentado pela própria incerteza se poderia ser o hïrzg que ele queria ser. “Também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.” Palavras de Sergei. Elas acalmaram Jan. Elas fizeram Jan decidir.

Um instante depois, o hïrzg concordou com a cabeça. — A senhora estava certa naquela noite. Preciso consultar o starkkapitän ca’Damont e os chevarittai. É o que a senhora queria, não é, matarh?

Se Allesandra ouviu um leve deboche na voz do filho, ela não reagiu. — Eu irei com você, Jan. Eu conheço o starkkapitän e conheço a Garde Civile. Posso ser sua mentora nesta situação. Vá e mande Roderigo convocá-los. Eu irei atrás em um instante.

Jan ergueu as sobrancelhas, incomodado por ter sido obviamente dispensado, mas fez o sinal de Cénzi para Semini e uma leve mesura para a matarh. — Obrigado por passar essa informação, archigos. Nós precisaremos de sua força e orientação. Matarh, eu falo com a senhora mais tarde.

Ele foi embora então, com quase todos os gardai à sua volta ao sair do templo. — Seu filho será um belo hïrzg. — Jan ouviu Semini rosnar com sua voz baixa ao chegar às portas. Ele presumiu que o elogio foi calculado para que fosse ouvido e considerado genuíno.

Jan sorriu para si mesmo. Ele seria um belo hïrzg. Ele surpreenderia os dois com o tamanho da competência de sua liderança.

Jan suspeitava que eles poderiam não gostar do resultado.

 

Allesandra ca’Vörl

A PASSAGEM NOS FUNDOS do templo era escura, iluminada apenas eventualmente por lâmpadas com tampas verdes, penduradas em ganchos cimentados na parede. As colunas estriadas ao longo da passagem não deixavam que o caminho fosse visto dos jardins do pátio, localizado entre a asa norte do complexo do templo e o templo em si. As grandes janelas de vitral agigantavam-se escuras sobre Allesandra. Ela quase corria pela passagem, pois não queria ser vista, apesar de ter recebido a garantia de que não haveria ténis na área; suas sandálias de sola de couro macio pisaram silenciosas no granito encerado. Foi fácil sair de mansinho dos próprios aposentos no palácio pelo corredor de serviço, esperar até que não houvesse ninguém de olho para abrir a porta, atravessar a praça correndo e entrar nas ruas de Brezno. Allesandra usava um capuz sobre o cabelo que encobria o rosto, e a tashta era simplória. Ela podia se passar por uma mulher simples correndo para chegar em casa à noite. Semini disse que a porta estaria aberta e informou quais os lugares que os ténis geralmente evitavam. As cerimônias da Terceira Chamada haviam acabado há uma virada da ampulheta.

A a’hïrzg estava quase lá. A uma curva à esquerda na próxima passagem, depois uma subida pela escada até o quarto que Semini mantinha no complexo do templo quando não queria retornar aos próprios aposentos na ala norte.

— Allesandra.

Ela levou um susto diante da voz sibilante. A mão alcançou a faca escondida na faixa da tashta.

— Francesca — disse a a’hïrzg.

Uma silhueta surgiu ao lado de uma das colunas. Na luz difusa, ela viu a mulher, cujas rugas aprofundavam as sombras no rosto. O brilho verdejante das lâmpadas fez Francesca parecer doente. Ela espalmou as mãos, como se mostrasse para Allesandra que não estava armada. — Eu sei — disse Francesca. — Eu sempre soube.

— O que é que você sabe, Francesca?

Ela gargalhou. O som assustou os estorninhos negros que pousavam nas árvores frutíferas do pátio para passar a noite. Eles levantaram voo e esvoaçaram agitados. Allesandra sentiu um cheiro de álcool no hálito forte da mulher. — Não deveríamos brincar de joguinhos, você e eu — falou a mulher. — Não há nada entre mim e Semini há anos, e se você está disposta a abrir as pernas para que aquele velho aríete soque aí dentro, por que devo me importar?

Allesandra sentiu um calor nas bochechas diante da baixaria e respirou fundo pela boca. — Se você não se importa, por que está falando comigo?

A expressão de quem achava graça sumiu do rosto da mulher. Ela torceu o nariz enquanto encarava Allesandra. — Você é bonita. Semini sempre gostou de você; eu ouvi o carinho na voz dele quando você finalmente voltou de Nessântico. As amantes que ele teve depois... sempre achei parecidas com você. Semini achava também, imagino. Eu sei o rosto de quem ele via quando metia nelas. Ah, isso lhe incomoda, não é? Aposto que ele nunca lhe contou isso. — Francesca aproximou-se de Allesandra, que deu um passo para trás, com a mão ainda no cabo de couro da faca. — Aposto que tem muita coisa que ele não te contou.

— Francesca, você está bêbada e eu não quero ter essa conversa. Agora, deixe-me...

A mulher levantou a mão e torceu a boca com desdém. — Ainda não. Olhe para mim. Olhe... — Francesca abanou as mãos na direção do rosto. — Eu fui linda um dia. Ora, eu era a amante do kraljiki Justi; eu poderia ter sido a esposa dele se o meu vatarh tivesse escolhido o lado certo na guerra. Mas ele não escolheu. E agora... — Por um momento, Allesandra pensou que a mulher não fosse falar novamente. Ela ficou parada ali, o corpo cambaleava levemente. — Você acha que conhece meu marido? Não o conhece. Eu vi você quando chegou a notícia da morte da archigos Ana. Vi o horror e a tristeza no seu rostinho bonito. Você sofreu porque gostava daquela megera frígida. Quanto a mim, eu a odiava. Fiquei feliz por saber que ela morreu. Ri alto. Mas você... a archigos Ana lhe tratou bem, não foi? Ela foi uma matarh para você quando sua própria família lhe abandonou. A archigos Ana... Bá! — Francesca franziu os lábios, virou a cabeça e cuspiu no piso. — Ele sabe quem a matou. Assim como eu.

— Quem? — perguntou Ana. A mão foi parar na garganta. Ela achava que sabia a resposta.

Francesca deu um passo cambaleante para frente, quase caiu e segurou na tashta de Allesandra. — Pergunte a ele — rosnou a mulher, o mau hálito tomou as narinas de Allesandra. — Faça Semini lhe contar, e aí veja o que você sente por ele.

A gargalhada de Francesca provocou outra revoada de pássaros assustados, e ela afastou-se de Allesandra com um empurrão. Foi cambaleante na direção da arcada que levava para a ala norte, sem olhar para trás. — Pergunte a ele. — Allesandra ouviu a mulher repetir, as palavras ecoaram pelo pátio.

Ela viu Francesca abrir com violência as portas e ouviu quando foram fechadas ao sair. Allesandra ficou parada ali por vários instantes, enquanto os estorninhos pousavam nas árvores frutíferas novamente e a lua surgia sobre os domos do templo.

Finalmente, Allesandra deu meia-volta e foi embora do templo, de volta para seus aposentos e para os próprios pensamentos.

 

Nico Morel

AO LONGE, Nico podia ouvir cornetas e zinkes enquanto o cortejo fúnebre do kraljiki Audric prosseguia pela Avi a’Parete a alguns quarteirões de distância. Ele imaginou como seria a procissão — todos os ca’ e co’ em desfile atrás da carruagem funerária, as rodas movidas pela magia dos ténis, a nova kraljica Sigourney seguindo na própria carruagem especial. Seria esplêndido aquele cortejo. Uma maravilha. Audric não era muito mais velho do que ele, e Nico imaginou como seria ser tão jovem e ser também kraljiki. Ele perguntou-se como alguém poderia ter odiado tanto Audric a ponto de matá-lo. Nico não conseguia se imaginar odiando uma pessoa tanto assim.

Ninguém mais na sala parecia notar os sons do funeral — ou talvez tenham escolhido ignorá-los.

— Eu não matei a archigos Ana.

Nico estava sentado no colo da matarh. Ela mal o soltou desde que o viu. Não que ele se importasse; estava bem contente de sentar abraçado a ela, protegido. A sensação fez com que Nico percebesse como sentiu falta da matarh, como esteve com medo por tanto tempo. Ele e a matarh estavam sentados à lareira, e o fogo aquecia a lateral do corpo. Talis estava sentado à mesa no centro da sala; Karl e Varina sentaram-se do outro lado. Nico quase podia ver a tensão entre eles, um arco de fogo quase tão quente quanto aquele às suas costas. Sua matarh sentia também; ele notou o arrepio nos músculos dela e a força com que o abraçava, e Nico sabia que ela tinha medo de que alguma coisa fosse acontecer.

— Eu não a matei — repetiu Talis. — É a verdade.

— Certo — respondeu Karl. — E nós simplesmente devemos acreditar porque você disse que é verdade.

Talis deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Se vocês não quiserem acreditar, tudo bem. Continua sendo verdade. Mas... — Talis lambeu os lábios. — Eu sei como ela foi morta e sei quem deve ter sido, pelo menos parcialmente, o responsável.

— Continue — disse Karl.

— Foi com um... — Talis meteu a mão na bolsa presa ao cinto. Nico viu Varina e Karl ficarem tensos com o gesto, e sua matarh ficou em expectativa. Karl ergueu as mãos subitamente, como se estivesse pronto para lançar um feitiço. Talis levou um susto e falou — Sem magia. Eu não usaria, não com Sera e Nico aqui. Eu não usaria.

Após um instante, Karl pousou as mãos na mesa novamente, e Talis abriu a bolsa. Ele retirou uma pequena bolsinha de pano, desamarrou o nó que a fechava e derramou um montinho de pó negro na mesa. Karl olhou fixamente para o pó e disse — Havia uma poeira negra por toda parte do Alto Púlpito e nas roupas de Ana. Aquilo... aquilo era a mesma coisa?

Talis concordou com a cabeça. — Sim. — Ele recolheu tudo, menos uma pitada do pó, e recolocou na bolsa. — Nós chamamos de bosh lumm em nossa língua. Areia negra, na língua de vocês. Aqui... — Da bolsa, Talis retirou uma tigela de latão rasa e larga, marcada com figuras estranhas na borda. Ele espanou o restante do pó para dentro da tigela e colocou no centro da mesa. — Deixo esta parte com vocês. Lancem um pequeno feitiço de fogo na tigela, apenas uma centelha mínima. — Talis deu um breve sorriso. — E não coloque o rosto muito perto, se quiser manter essa barba.

Karl olhou de relance para Varina, obviamente hesitante. Ela voltou-se para a matarh de Nico e perguntou — Sera? Podemos confiar nele?

Nico mais sentiu do que viu a matarh concordar com a cabeça, mas as mãos dela apertaram o filho com mais força ainda no mesmo momento. Varina fez um rápido gesto com a mão e disse uma palavra em outra língua. A palavra soou como “tihn-eh” aos ouvidos de Nico, e assim que Varina falou, uma centelha apareceu entre os dedos. Ela girou a mão na direção da tigela, e a centelha saiu voando.

Assim que a centelha caiu na tigela, houve um clarão e estrondo simultâneos, como se uma trovoada tivesse ocorrido dentro do objeto. A tigela deu um pulo e retiniu, e uma fumaça branca irrompeu. Alguém gritou; Nico não conseguiu dizer quem foi. A matarh virou-se com o barulho para proteger o filho com o corpo. Ela se virou devagar, e o menino conseguiu ver novamente. Karl esticou a mão sobre a mesa, na direção da tigela, de onde ainda saía fumaça. Havia um odor estranho no ar, como Nico imaginava que o mundo subterrâneo dos moitidis cheirasse.

— Isso foi apenas uma pitada da areia negra — dizia Talis. — Eu diria que vocês podem imaginar o que uma grande quantidade pode fazer, mas eu realmente acho que não conseguiriam.

— Eu posso imaginar — falou Karl, que examinava a tigela. Pela maneira como estava virada, Nico viu que o fundo ficou escurecido, como se tivesse sido queimado. O rosto de Karl estava sério quando ele pousou o objeto. — Eu estava lá quando Ana morreu.

Talis franziu os lábios.

Varina afastou a tigela. Ela ergueu a cabeça e pareceu ouvir o som distante do cortejo fúnebre de Audric pela primeira vez. — O kraljiki. — Seus olhos ficaram arregalados. — Os rumores...

— ... é bem possível que sejam verdadeiros, pelo que eu ouvi — completou Talis. — Mas aquilo também não fui eu que fiz. — Ele gesticulou para Nico. — O menino pode dizer. Eu estava com ele quando aconteceu. Nós ouvimos o toque das trompas, não foi, Nico?

O menino concordou com a cabeça.

— Magia ocidental... — sussurrou Karl. Ele pegou a tigela novamente e olhou fixamente para o interior sujo de fuligem, como se procurasse respostas escritas ali. — Nós estamos apenas começando a entendê-la, e eu posso lhe afirmar, Talis, que ela não vem dos deuses, da mesma forma que a magia dos ténis não vem de Cénzi.

— Então vocês ainda não entendem — disse Talis. — Isso não é magia. Pelo menos não a areia negra em si. É tão magia quanto fazer pão, se a pessoa conhece a receita.

— Você disse que sabe quem é o responsável — falou Karl. — Diga o nome.

Talis respirou fundo. — O nome dele é Uly. Ele tem uma barraca no Mercado do Rio. É um ocidental, mandado para cá na mesma época que eu. É um guerreiro. Seu trabalho é informar o tecuhtli; o tecuhtli é o que o seu kraljiki seria se também fosse o comandante da Garde Civile. Eu vim aqui a mando do nahual, o líder da minha ordem, para ajudar Uly e também para descobrir o que aconteceu com Mahri. E... — Talis respirou fundo novamente. — Eu cometi um erro. Fomos nós, os nahualli, os feiticeiros, que descobrimos como criar a areia negra; é um segredo que nós mantivemos. E sim, se outras pessoas pensavam que a areia era mágica, nós não corrigimos o erro. Mas Uly... nós estávamos aqui há muito tempo, e ele era a única pessoa que eu conhecia que falava minha língua, e até eu encontrar Sera... — ele olhou para a matarh de Nico e sorriu — ... ele era a única pessoa que parecia se importar comigo. Eu fiz o que não deveria ter feito. Ajudei Uly a fazer a areia negra. Tentei evitar que ele conhecesse os detalhes, mas... — Talis pegou a tigela da mesa e guardou novamente na bolsa. — Uly não era idiota. Ele pode facilmente ter visto o suficiente para reproduzir o procedimento. Seu trabalho era apenas me fornecer os ingredientes, afinal de contas.

— Você está dizendo que esse tal de Uly assassinou Ana? — perguntou Karl. — É isso que quer que nós acreditemos agora?

Talis deu de ombros. — Estou dizendo que é possível. Provável. Eu sei que não fui eu. E com certeza foi bosh lumm que matou a archigos. Não magia ocidental, nem magia de numetodo também.

Karl cerrou as mãos sobre a mesa. — Onde está esse tal de Uly?

— Eu não o vejo desde que você me atacou — respondeu Talis. — Eu contei para Uly a respeito do ataque e disse que eu desapareceria por um tempo; desde então, não ouvi mais falar dele. Imagino que o melhor lugar para começar a procurá-lo seria o Mercado do Rio, mas... — Ele começou a falar, mas Nico se agitou nos braços da matarh.

— Uly não está lá — falou o menino. Todos olhavam para ele agora, e a matarh soltou mais os braços ao abaixar o olhar para o filho no colo.

— Nico?

— É verdade, matarh. Uly não está lá. Depois que eu saí da casa da tantzia Alisa e andei até aqui, achei que Uly podia me dizer onde Talis estava, mas quando fui ao Mercado do Rio, a barraca de Uly estava vazia e a vendedora de pimentas falou que ele tinha ido embora.

Talis concordou com a cabeça e disse — Eu imaginei que isso aconteceria. Não sei onde ele está. Ainda na cidade, provavelmente, mas onde...

— A senhora das pimentas disse que ele pode estar no mercado do Velho Distrito — informou Nico.

Karl já estava de pé. Agora Talis levantou-se também e falou — Eu não sei se Uly matou Ana, embaixador. Você também não sabe.

— Eu pretendo descobrir.

— Então eu irei com você.

— Por quê? — perguntou Karl. — Para detê-lo caso Uly me diga que foi você, de fato, ou caso ele não tenha a menor ideia de como fazer essa sua areia negra?

— Uly não falará com você, não importa o que fizer com ele — disse Talis. — Uly é um guerreiro, foi treinado para morrer antes. Ele confia em mim. Você? No primeiro momento em que perguntar algo que gere suspeitas, Uly irá matá-lo e fugir. Ou morrerá feliz tentando.

— Eu estarei com Karl — falou Varina, que estava de pé também, de braço dado com ele. — E nós somos mais fortes do que você pensa.

— Vocês precisarão de mim — insistiu Talis.

— Tudo bem — disse Karl finalmente. — Mas não com isso. — Ele apontou para a bengala de Talis.

O homem fechou a cara. — Eu não posso deixar isto aqui. Não deixarei.

— Então ficará com isso.

Talis pareceu considerar a questão por um momento e falou — Tudo bem. Eu deixarei. Só dessa vez. Eu vou.

— Eu vou também — disse Nico.

Todos os três voltaram-se para o menino, e Nico sentiu a matarh abaixar o olhar para ele também. — Não! — disseram os quatro ao mesmo tempo.

 

Niente

A VISÃO NA TIGELA PREMONITÓRIA perturbou Niente. Ele sentiu que o tecuhtli Zolin examinava seu rosto em busca de qualquer sinal do que as visões indicavam e abaixou a cabeça ainda mais no torvelinho de bruma azul que saía da água.

Uma mulher sentada em um trono brilhante, com o rosto horrivelmente desfigurado e contorcido por dor, sem um olho. Um exército avançava pela bruma atrás dela... Ali, um menino e uma mulher mais velha, e atrás dele também um exército, só que com estandartes pretos e prateados, e não o tom azul e dourado dos Domínios... Um homem que usava o colar de uma concha, e com ele — seria possível? — um nahualli que parecia Talis, embora ele estivesse abraçado a uma mulher e uma criança que não eram tehuantinos, e sim orientais...

As imagens vinham rápido demais, e Niente tentou pará-las com a mente, tentou espaçá-las no tempo para mostrar traços do futuro que poderiam acontecer. Ele rezou para Axat e pediu por clareza, pensou no próprio exército e nos navios que vinham pelo rio ali perto...

Os navios iam de um lado para o outro no meio de uma tempestade de fogo no céu. Exércitos deslocavam-se sobre a terra, havia explosões brilhantes de areia negra, uma densa fumaça pairava sobre os campos pisoteados... Mas a bruma parecia se dividir em duas — como às vezes acontecia quando Axat queria mostrar dois resultados possíveis. Ele viu um campo apinhado de corpos de guerreiros tehuantinos e um único navio de sua frota com velas esfarrapadas, que fugia depressa para oeste, na direção do sol poente, enquanto outras embarcações ardiam em chamas laranjas na água... “Oeste... casa...” Ele quase era capaz de ouvir as palavras no vento.

Mas esta visão foi fechada, e outra surgiu...

Na segunda visão, havia uma batalha intensa e sangrenta nos campos diante da cidade, e o exército de azul e dourado recuou para dentro de suas sólidas muralhas... A mesma cidade, agora com muralhas rachadas, e era difícil enxergar através da fumaça e da bruma da visão, mas ele pensou ter vislumbrado o exército tehuantino entrar aos borbotões pelas brechas...

Havia outra cidade ao longe, ainda maior, e parecia atraí-lo...

E lá estava de novo... a imagem de um guerreiro tehuantino morto, com um nahualli caído ao lado dele...

— O que a Senhora está tentando me mostrar, Axat? — perguntou Niente com a voz hesitante.

— Nahual?

Niente ergueu o olhar; a bruma transbordou da tigela e dissipou-se.

O acampamento tehuantino em volta dos dois homens estava barulhento e agitado enquanto o sol fraco tentava penetrar pelas nuvens ralas e altas. Niente viu-se com saudades do sol intenso e mais quente da própria terra; este lugar era mais frio do que ele gostava, como se sugasse o calor do sangue. O tecuhtli Zolin olhava fixamente para o nahual, o branco dos olhos reluzia em contraste com as linhas negras inscritas em volta das órbitas, a águia vermelha no crânio parecia querer alçar voo. Havia ansiedade no rosto dele. De ambos os lados do tecuhtli, estavam Citlali e Mazatl, e seus olhares não eram menos ansiosos. — O que a visão lhe mostrou? — perguntou Zolin. — O que ela disse?

— Muito pouco — respondeu Niente, e o tecuhtli demonstrou irritação ao mostrar os dentes.

— Muito pouco. — Zolin imitou o tom de Niente. — O tecuhtli Necalli costumava me dizer que suas visões na tigela premonitória forneciam estratégias para ele, guiavam a maneira como Necalli dispunha os guerreiros e avançava pelo terreno. Ele disse que você era o nahual de Axat, que nos mostrava o caminho para a vitória. Mas tudo o que você me dá é “muito pouco”.

— Eu não dou nada ao senhor — disse Niente, e Zolin respondeu com uma cara de desdém. — Assim como também não dei nada ao tecuhtli Necalli. Sou apenas o canal de Axat. Eu posso informar o que Axat me mostra, mas a visão não é minha. É Dela. Tudo o que tenho a dar é o que Axat oferece. Se o senhor quiser reclamar sobre ser pouca coisa, fale com Ela.

— Então me diga essa pouca coisa, nahual — falou Zolin. O tecuhtli apontou para leste, onde os olheiros mais avançados disseram que um exército dos Domínios esperava por eles, fora da cidade, a meio dia de marcha de distância. Niente fora a cavalo com Zolin para ver a cidade, que era bem maior do que a maioria dos vilarejos abandonados por onde eles marcharam nos últimos dias, embora não tão elaborada ou grande quanto aquela que Niente tinha visto na tigela premonitória, essa Nessântico onde o kraljiki vivia. Ainda assim, a cidade aninhada atrás das muralhas, e que se esparramava a partir delas, era pelo menos da metade do tamanho de Tlaxcala ou das outras grandes cidades insulares do império tehuantino, e maior que Munereo ou Karnor.

Parecia que o kraljiki não deixaria que eles avançassem mais sem resistência. Se Zolin quisesse essa cidade, deveria lutar por ela. Niente sabia que isso não incomodava de maneira alguma o tecuhtli.

— Eu vislumbrei uma batalha — disse Niente. Ele fechou os olhos e tentou se lembrar das cenas que lampejaram na tigela premonitória. — Na visão de Axat, o exército dos Domínios lutou, mas depois recuou para trás das muralhas da cidade quando investimos contra eles. Eu vi as muralhas rachadas e os tehuantinos entrando...

— Xatli Ket! — Niente parou quando Zolin soltou o grito de guerra de sua classe; Citlali e Mazatl fizeram o mesmo, e o berro foi repetido, cada vez mais fraco, pelos outros guerreiros presentes. — Então Axat mostrou a nossa vitória para você — falou o tecuhtli. Ele deu um tapa na armadura de bambu que cobria o peito.

— Talvez. — Niente apressou-se a dizer. — Mas Ela também me mostrou nosso exército e frota destruídos, e um navio indo depressa para oeste. Tecuhtli, esse também é um futuro possível; um sinal. Se voltarmos agora, se colocarmos nosso exército nos navios e voltarmos para casa, então esse é um futuro que jamais viveremos. Os orientais temerão para sempre ir à nossa terra novamente. Nós já mostramos a eles as consequências; não há mais nada a provar.

Zolin soltou uma risada sarcástica. Citlali franziu a testa, e Mazatl desviou o olhar, como se estivesse enojado. — Recuar, nahual?

— Recuar, não — insistiu Niente. — Entender que demos uma lição nesses orientais com a ruína de Munereo e Karnor e voltar para casa com a vitória.

— Vitória? — Zolin cuspiu no chão entre eles. — Os orientais pensariam que eles obtiveram a vitória, que corremos assim que vimos seu exército.

— Tecuhtli, se formos derrotados aqui, que bem faria para o nosso povo perder o tecuhtli e tantos guerreiros e nahualli?

— Se formos derrotamos, e não seremos, nahual, se você viu corretamente sua visão, então nosso povo encontrará um novo tecuhtli para liderá-los, e eles treinarão novos nahualli nas tradições do X’in Ka, e nós seremos lembrados quando Sakal nos receber em Seu olho flamejante. Isso é o que será feito, não importa a pouca ajuda que você dê. Está com medo, nahual Niente? Será que a visão do exército oriental faz o mijo escorrer quente por suas pernas?

Citlali e Mazatl riram.

— Eu não estou com medo — disse Niente, e era verdade. Não era medo que revirava seu estômago, mas uma sensação de inevitabilidade. Axat tentava alertá-lo, mas Ela não deixava a mensagem clara o suficiente, ou talvez ele estivesse tão distante Dela que a mensagem estava truncada e difícil de discernir. — Tecuhtli, o que o senhor me pedir, eu farei. Quando me pede para interpretar o que vejo na tigela premonitória, eu também o faço.

Zolin torceu o nariz. — Então isso é o que eu lhe digo para fazer, nahual. Encha seu cajado mágico. Prepare a areia negra. Faça as pazes com Axat e Sakal, e você entrará comigo na cidade dos orientais, e depois iremos até o trono do monarca deles.

Niente ouviu as palavras e abaixou a cabeça para aceitá-las. O único navio que fugia depressa para o sol poente... — Eu farei isso, tecuhtli — falou ele, com pesar. — Eu prepararei os nahualli. Dê-me tempo suficiente, e farei o que acredito que Axat deseja que façamos.


CONTINUA

CONEXÕES

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

Niente

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Nico Morel

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Enéas co’Kinnear

A Pedra Branca


Niente

ELE NUNCA ESTEVE NO MAR antes e não tinha certeza se estava gostando totalmente da experiência.

Niente encontrava-se no castelo de popa do galeão capturado dos Domínios, antigamente chamado de Marguerite e agora rebatizado como Yaoyotl — que significava “guerra” em sua própria língua. O Yaoyotl navegava no meio da frota tehuantina; de sua posição, Niente podia observar as longas ondas azuis decoradas com as velas brancas de mais de uma centena de navios. Atrás deles, perdida no horizonte há dias, estava a costa oriental de sua terra e a fumaça desagradável de Munereo, queimada e saqueada, que agora era a cova da Garde Civile dos Domínios, a não ser para os poucos que recuaram para o último pequeno ponto de resistência dos orientais no continente, a cidade de Tobarro. O exército tehuantino tinha tomado Munereo, recuperado toda a terra ao sul e a oeste de suas muralhas e capturado os navios da frota dos Domínios no porto, ao menos aqueles que escaparam do fogo mágico da frota tehuantina ou que não foram postos a pique pelas próprias tripulações e mandados para o fundo do mar quando a derrota era óbvia. A maior parte dos navios que acompanhavam o Yaoyotl era de embarcações chamadas de acalli: navios de dois mastros e velas latinas com que os tehuantinos cruzavam o Mar Ocidental entre as grandes cidades que os invasores orientais nunca viram. Os acalli não conseguiam levar o número de tripulantes ou soldados que os galeões de velas quadradas de Nessântico eram capazes, nem eram tão rápidos, mas eram mais manobráveis, especialmente nas águas rasas da costa ou quando o vento estava contra eles.

Os ventos do Strettosei, no entanto, sopravam constantemente de oeste para leste nesta latitude, e o vento da passagem da frota assobiava pelos cabos tesos que seguravam as velas enquanto as proas dos navios rasgavam longas linhas brancas pelas ondas, que desciam, subiam e desciam novamente, implacáveis e eternas.

Era um movimento que, após vários dias, ainda embrulhava e fazia arder o estômago de Niente. Os braços e as pernas, contorcidos e arruinados pelos esforços do feitiço que colocara no oriental Enéas, doíam quando ele tentava se manter equilibrado no balanço do navio. Dois dos nahualli subalternos estavam no castelo com ele e o observavam enquanto Niente usava a tigela para realizar um feitiço premonitório; ele não ousaria demonstrar a fraqueza no estômago ou no corpo, ou então a notícia chegaria aos outros nahualli, e com o tempo alcançaria o ouvido do tecuhtli Zolin, que também estava no Yaoyotl. O destino de todo nahual esperava por Niente, o destino que talvez tivesse chegado até mesmo a Mahri, ou talvez a Talis também: como um nahualli, cada uso do X’in Ka tinha seu preço, e quanto maior o feitiço, mais caro o preço que os deuses cobravam.

Com o tempo, o preço seria a morte.

O balanço do navio sacudia a água na tigela premonitória e turvava as visões do futuro: aquilo incomodava Niente mais do que a náusea. Ele espiou dentro da água, que espirrava até a borda da tigela de latão. Os olhos não queriam entrar em foco; o esquerdo, turvo desde o encantamento de Enéas, tinha piorado desde o ataque a Munereo. Niente piscou, mas as cenas na tigela recusaram-se a ficar nítidas. Ele resmungou, fechou a cara e jogou fora a água sobre a amurada da popa, enojado. Os outros nahualli ergueram as sobrancelhas, mas não disseram nada. — Eu preciso falar com o tecuhtli — disse Niente. — Levem a tigela para o meu alojamento e limpem-na.

Eles abaixaram a cabeça obedientemente enquanto Niente passava pelos dois, arrastando os pés.

O nahual discutira com o tecuhtli Zolin que a estratégia era idiota, embora não tivesse ousado usar esta palavra. Ele queria desesperadamente voltar para casa, para trás das Montanhas Afiadas, para as grandes cidades em volta do lago. Para Xaria, sua esposa; para os filhos. Para a familiaridade de casa.

Niente não estava sozinho. O guerreiro supremo Citlali tomara a mesma posição, assim como vários dos guerreiros subalternos. — Por que devemos navegar até a terra dos orientais? Tomemos a última cidade que eles mantêm aqui e joguemos seus corpos na grande água. Voltemos para nossas casas e famílias, e se os orientais retornarem para incomodar nossos primos novamente, nós os afugentaremos mais uma vez.

Mas Zolin foi inflexível e declarou — Sakal exige mais de nós. É hora de mostrarmos a estes orientais que podemos machucá-los assim como eles nos machucam. Se alguém é atacado por um lobo, espantá-lo apenas poupa o lobo para um novo ataque, talvez quando ele estiver mais forte ou a pessoa estiver mais fraca. Matar o lobo é a única maneira de estar realmente a salvo.

— Isso não é um lobo — insistiu Niente. — É um monstro de várias cabeças, com um pequeno rosto que nós vimos, e estamos indo para sua toca. Pode ser que ele nos devore completamente.

Zolin resmungou ao ouvir isso. — Fugir do lobo porque se está com medo é a pior estratégia de todas. Isso só oferece ao lobo as costas desprotegidas.

No fim das contas, Zolin convenceu os guerreiros supremos, e Niente não teve escolha a não ser informar os nahualli que a tarefa deles ainda não havia acabado. Ele quase ficou surpreso ao ver que nenhum dos nahualli resolveu desafiá-lo pelo posto de nahual, como consequência.

Os alojamentos do antigo capitão ficavam embaixo do castelo de popa, e era ali que o tecuhtli Zolin tinha se instalado. A mobília oriental fora jogada ao mar e substituída pelas linhas geométricas mais familiares e os desenhos do estilo tehuantino. O aposento estava animado por tons vermelhos e marrons, as cores do sangue e da terra. O cheiro de incenso fez Niente franzir o nariz ao entrar, os criados do tecuhtli prostraram-se nos tapetes jogados sobre as tábuas de madeira.

O tecuhtli Zolin estava reclinado em uma cadeira entalhada em um único bloco de pedra verde, amaciada por travesseiros e cobertores. O rosto e o torso, como os de todos os soldados, eram tatuados com redemoinhos de traços e linhas curvas: um registro do talento em combate e da patente. A cabeça estava raspada, como sempre, e agora era decorada pela tatuagem vermelha da águia de asas abertas. Os guerreiros supremos Citlali e Mazatl estavam falando com ele em voz baixa, mas interromperam a conversa quando Niente entrou. Os rostos tatuados e carrancudos se voltaram para o nahual.

— Ah, nahual Niente — falou o tecuhtli Zolin, gesticulando. Niente cruzou o aposento até o trono e ficou de joelhos. — Levante-se, levante-se. Diga-me, o que os deuses falaram?

Niente balançou a cabeça ao ficar de pé. Ele sentiu o olhar avaliador dos guerreiros supremos. — Sinto muito, tecuhtli, mas o balanço do navio... perturba as águas. Eu vi uma batalha e uma cidade em chamas à beira de um mar, seu estandarte tremulava sobre ela, mas de resto... eu não vi nada do oriental que mandei para seu kraljiki. Não vi nada da grande cidade deles.

— Ah, mas o estandarte e a cidade em chamas... isto só pode indicar vitória. Quanto ao seu oriental... — Zolin fungou e cuspiu no chão — ... essa era a estratégia do velho Necalli, e nem mesmo o grande Mahri teria sido capaz de fazer com que funcionasse.

Niente ficou vermelho com a indireta e irritado com o menosprezo que Zolin demonstrou por Mahri, cuja habilidade com o X’in Ka era lendária. Mahri evidentemente havia falhado, sim, mas isso só podia ter acontecido porque alguma força dos orientais tinha sido ainda mais forte. Niente abaixou a cabeça, mais para esconder o rosto do que por submissão. — Deve ser como o senhor diz, tecuhtli.

Zolin riu ao ouvir isso. — Ora, vamos, Niente, não seja tão modesto. Ora, você é um vidente e um nahualli de um nível que não vemos desde Mahri. Melhor até, pois Mahri não conseguiu impedir que os orientais invadissem nossas terras e as de nossos primos. Necalli era um tolo que desperdiçava recursos valiosos. Ele desperdiçou você também; todo aquele esforço que você concentrou naquele oriental. Mas agora... — Zolin abriu um largo sorriso. — Eu fiz os orientais recuarem para uma cidade sem importância na terra de nossos primos, com a ajuda de seus conselhos e habilidades, e agora temos a oportunidade de pilhar os orientais como eles um dia pilharam nossos primos do Mar Oriental. — O tecuhtli abanou a mão. — Eu mesmo arrancarei a cabeça dessa serpente oriental e tomarei providências para que nunca cresça outra. — Ele abaixou a mão e deu um sorriso cruel, mas a expressão dos dois guerreiros supremos era séria e impassível.

Niente perguntou-se qual dos dois poderia um dia desafiar Zolin, caso esta expedição falhasse, como ele temia que aconteceria.

O nahual compartilhava da atitude azeda de Citlali e Mazatl. Zolin não era diferente de muitas pessoas fora do círculo dos nahualli. Todas elas pensavam que seu dom era uma coisa simples: bastava olhar na água e deixar a deusa-lua Axat girar o futuro diante dos seus olhos. As pessoas não entendiam que as visões de Axat eram confusas e às vezes opacas, que o que nadava na água sagrada eram apenas possibilidades, e que essas possibilidades podiam ser alteradas, mudadas e até mesmo evitadas pelas habilidades de outras pessoas. Mahri — cujas habilidades, diziam, superaram a de qualquer nahualli — descobrira como Axat podia ser volúvel: a morte de Mahri foi um das primeiras visões que Niente viu em uma tigela premonitória; foi aquela visão que demonstrou para os mentores de Niente como ele tinha sido abençoado por Axat e Sakal. Talis, que fora mandado pelo tecuhtli Necalli para Nessântico, confirmou a visão de Niente: Mahri tinha falhado e tinha sido morto.

Aqueles sem o dom pensavam que devia ser maravilhoso ter o poder de Axat e Sakal, da lua e do sol. Não viam como usar o dom roubava força e vitalidade; como desfigurava e distorcia quem usava o poder. Agora mesmo, Niente podia olhar no espelho de bronze do alojamento e ver as rugas fundas no rosto, rugas que ninguém de sua idade já deveria ter. Notou a boca murcha, que o olho esquerdo chorava constantemente e agora estava esbranquiçado por uma nuvem mágica, que o cabelo ficava mais ralo e com mechas grisalhas. Ele sentia uma dor constante nas juntas que um dia viraria facas cruéis de agonia. Niente jamais conheceu Mahri, mas tinha vislumbrado o rosto do homem na tigela premonitória, e temia que um dia ele também visse as pessoas desviarem o olhar em vez de encará-lo e que ouviria os gritos de crianças assustadas quando passasse.

E Niente sabia que o tecuhtli Zolin podia estar satisfeito com ele agora, mas que o prazer do tecuhtli era frágil e podia desaparecer tão rápido quanto a bruma na luz do sol. Uma batalha perdida... Era tudo o que bastava, e tecuhtli Zolin procuraria por um novo nahual para estar ao lado dele.

— Eu rezo para Axat para que o senhor mate a serpente oriental — disse Niente para Zolin. — Mas eu...

Ele parou ao ouvir um chamado vindo do convés. — Terra... — gritou alguém. — A costa oriental...

Zolin sorriu ainda mais e falou — Ótimo. É chegado o momento de ver uma cidade queimar e nossos estandartes tremularem sobre a terra deles. — Ele ficou de pé e espantou os criados que correram para ajudar. — Venham, vamos ver esta terra juntos, com nossos próprios olhos, antes de tomá-la.

 

Karl ca’Vliomani

— BEM? — PERGUNTOU KARL PARA VARINA quando ela voltou para o quarto. Varina tirou a capa dos ombros e desmoronou em uma cadeira.

— Ela é a matarh de Nico, com certeza — respondeu Varina. — Eu contei que soube que o filho dela tinha fugido, e que quando nós estivemos em Nessântico, eu vi um menino na rua Crescente. A mulher arregalou os olhos quando ouviu isso e me disse que aquela era a rua onde ela morou até o mês passado. Quando descrevi o menino e a casa, a mulher começou a soluçar. Fiz o possível para evitar que ela voltasse correndo para Nessântico hoje à noite.

— E Talis?

— Talis é o vatarh do menino, e ela é apaixonada por ele, Karl. Isso também era óbvio; na verdade, eu suspeito que a mulher esteja grávida de Talis novamente, pelo jeito que segura o corpo quando fala sobre ele. Seu encontro com Talis o assustou tanto que ele despachou a esposa e Nico para fora da cidade; acho que Talis pensou que você mandaria a Garde Kralji atrás dele. Ela está esperando que Talis venha e que Nico retorne também. — Varina recostou a cabeça, fechou os olhos e suspirou. — Ela não trairá Talis para recuperar Nico, Karl. Honestamente, eu nem abordei essa possibilidade com a mulher. Na verdade, eu tenho certeza de que ela está no quarto agora fazendo as malas e se aprontando para ir embora amanhã para Nessântico, na esperança de encontrar Nico lá. A mulher está agitada e sofrendo desde que o menino foi embora. — Ela abriu os olhos novamente e encarou Karl. — É o que eu faria, no lugar dela. Sinto muito... Eu sei que você queria que eu fizesse, mas... não consegui levar adiante. Não consegui manter o filho da mulher como refém em troca de ela entregar Talis para nós, não quando não sabemos onde Nico está, na verdade. Sinto muito. Eu sei que você suspeita que Talis seja o assassino de Ana, e você tem bons motivos para ter essas suspeitas, mas isso...

Outro suspiro. Varina espalmou as mãos. — Eu não consegui fazer.

Não havia arrependimento na voz ou no olhar de Varina. E Karl descobriu que não conseguia ficar com raiva dela — o embaixador sabia como teria sido a situação com os próprios filhos. Karl podia ter sido um vatarh ruim e ausente para eles, mas se tivesse chegado a esse ponto, ele teria feito o que fosse necessário pelos filhos.

Ao menos era o que ele dizia para si mesmo. Ele se perguntou se era verdade. E se Kaitlin tivesse mandado chamá-lo enquanto Karl estava em Nessântico, enquanto Ana estava viva? E se ela tivesse chamado Karl de volta, pelo bem dos filhos? Será que ele teria ido? Ou teria dado alguma desculpa, teria descoberto alguma razão irresistível para permanecer aqui com Ana.

— Karl? — perguntou Varina. — Você está irritado comigo?

Ele balançou a cabeça e disse — Não se preocupe. Eu compreendo. — Os dedos roçaram os pelos da barba. Ele se sentia velho na noite de hoje. Os ossos estavam frios, e o fogo da lareira não ajudava a aquecê-los. — Eu voltarei com a mulher — falou Karl finalmente, quando o silêncio ameaçou durar tempo demais. — Talvez Talis venha atrás dela. Talvez a mulher saiba onde Talis está escondido.

— Se voltar, a Garde Kralji irá encontrar você, e o kraljiki mandará que seja torturado e executado. Seu corpo balançará em uma das jaulas da Pontica Kralji, com corvos arrancando a carne dos seus ossos.

Karl sentiu um arrepio e envolveu o próprio corpo com braços, que pareciam cansados e fracos. — Você pode ter razão. Mas do que eu estou correndo atrás, Varina? O que eu realmente ganhei por sair de Nessântico? Como encontrarei quem matou Ana em outro lugar? — Ele balançou a cabeça. — Não, eu preciso voltar. Esse não é o método numetodo? Para aprender, é preciso examinar; para compreender, é preciso experimentar. É necessário ter fatos. Ter encontrado a matarh de Nico... — Ele sentiu um arrepio novamente. — É quase como se o fantasma de Ana tivesse me conduzido aqui.

— Você não acredita em fantasmas nem deuses, Karl. Só acredita no que consegue ver, tocar e examinar. Não é este o método numetodo?

Ele deu um leve sorriso ao ouvir isso e falou — Não, eu não acredito em fantasmas, mas é estranho como um pensamento assim é confortante, não é? Quase faz entender o apelo que a religião tem para as pessoas. — Karl respirou fundo. — Ainda assim, eu voltarei.

— Então eu voltarei com você — disse Varina. — Assim como você, não há nada que eu esteja correndo atrás. E você precisará de ajuda.

— Você não precisa fazer isso. O kraljiki fará com você o mesmo que faria comigo... ou pior. Não há motivo para você voltar, afinal... — A voz de Karl foi sumindo.

Varina não respondeu, mas Karl notou o jeito dos lábios, a postura do corpo, viu a maneira com que ela olhava com raiva para ele, e subitamente Karl soube, e a revelação foi dolorosa. — Ah — falou o embaixador. Ele se perguntou como podia ter sido tão cego. Ficou de pé e andou até onde Varina estava sentada. Ele começou a colocar a mão no ombro dela, mas Varina franziu os olhos e ele recolheu a mão. — Varina...

Ela sustentou o olhar de Karl, os olhos castanhos de Varina vasculharam os dele. — Você amava Ana, embora ela nunca tenha correspondido exatamente com o mesmo amor. Ana estava muito envolvida com o que enxergava como a única tarefa da vida dela — falou Varina, baixinho. Ela acenou com a cabeça. Os lábios tremeram, como se quisesse sorrir, depois voltou a fechar a cara. — Bem, eu entendo essa situação, Karl. Entendo muito bem.

— Eu não sei o que dizer.

Varina sorriu então, a expressão tinha o toque de uma emoção escondida que Karl não conseguiu decifrar. — Então você não deve dizer nada. Eu não disse nada que exija uma resposta, a não ser que voltarei com você, não importa o que diga.

Varina sustentou o olhar de Karl sem piscar, até ele concordar com a cabeça. — Tudo bem — falou Karl. Ela concordou com a cabeça, mas não falou nada. O silêncio durou muito tempo e ficou cada vez mais incômodo, os dois olhavam fixamente para o pequeno fogo na lareira. Os pensamentos rolavam na cabeça de Karl: todas as vezes que ele e Varina estavam juntos, os comentários que ela fazia, os olhares, os toques ocasionais, a maneira como ela sempre se desviava de perguntas sobre interesses românticos que pudesse ter, a forma como Varina se atirou no trabalho dos numetodos.

Ele deveria ter sabido. Deveria ter percebido. Mas o silêncio já havia tornado mais difíceis as perguntas que Karl deveria ter feito. Ele pigarreou. — Se... se você voltar comigo para Nessântico, então talvez precise começar a me mostrar mais sobre esse modo ocidental de fazer magia.

Abrigar-se no trabalho para evitar intimidade: era o que Ana sempre fazia, afinal de contas.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA ACHOU A HISTÓRIA DE SERGEI fascinante, embora conhecesse bem o homem a ponto de saber que havia detalhes que ele escondia. Allesandra não se importou com isso; ela teria feito o mesmo no lugar dele. Ela fez o mesmo, durante os longos anos que ficou presa em Nessântico. Allesandra gostava da archigos Ana, que a tratou de maneira correta e respeitosa, e era fascinada por Sergei, primeiro pela reputação e pelo nariz de prata, depois — quando passou a conhecê-lo — pela inteligência e personalidade sombria e intrigante.

— Ca’Rudka é um homem interessante e habilidoso, e eu não estaria onde estou agora se não fosse por ele — disse a archigos Ana certa vez para ela, quando se passaram alguns anos de exílio e Allesandra virava uma jovem moça. — Mas você não pode confiar inteiramente nele. Ah, ca’Rudka honra a palavra, mas ele dá esta palavra com cuidado e a contragosto. E manterá a palavra ao pé da letra, mas talvez não fiel ao espírito. Sua verdadeira lealdade é a Nessântico, não a qualquer pessoa dentro dela. Eu não acho que ele ame alguém, não acho que jamais tenha amado. Seus verdadeiros amores são a cidade e os próprios Domínios. E alguns de seus gostos, o que ele tem prazer em fazer... — Ana fez uma careta ao dizer isso. — Eu espero que sejam apenas histórias terríveis, que não sejam verdadeiras.

Allesandra lembrou-se dessa conversa enquanto observava Sergei, agora vestido na moda e cores atuais de Firenzcia. Ele veio a convite de Allesandra para almoçar nos aposentos da a’hïrzg no Palácio de Brezno, e se ficou ofendido com a cuidadosa revista corporal antes que fosse permitido entrar, ou se notou os dois gardai armados que o observavam atentamente de seus postos no cômodo, Sergei não disse nada. Ele sorriu para Allesandra como teria feito para qualquer ca’ em Nessântico e elogiou a apresentação e o gosto da refeição enquanto os criados entravam e saíam, recostou-se na cadeira segurando uma xícara de chá como se estivesse relaxado e à vontade. Sergei contou como foi aprisionado na Bastida e como escapou. Allesandra observou o rosto do homem, as mãos — nenhum deles revelava emoção alguma; ele poderia estar contando uma história que aconteceu com algum parente distante, alguma certa vez.

— Então o embaixador numetodo ajudou você? — Allesandra também se lembrava de Karl ca’Vliomani, que era tão obviamente apaixonado pela archigos Ana, embora ela parecesse tratá-lo apenas como um bom amigo. Allesandra não se importava muito com ele ou com os numetodos, que desdenhavam e debochavam de sua própria crença, que não acreditavam em nenhum deus. Os numetodos acreditavam que o mundo sempre existiu, que era velho de uma maneira impossível, que os processos naturais podiam explicar tudo dentro do mundo; o absurdo e a arrogância da filosofia deles incomodavam Allesandra. — Isso não vai deixar o archigos Semini satisfeito... nem o archigos Kenne, imagino.

— Foi um ato de amizade e nada mais.

— Uma vez, a archigos Ana me disse que todo ato reflete a fé da pessoa que o comete — falou Allesandra. — Você é um numetodo agora, Sergei?

Ele balançou a cabeça. — Não. Eu acredito tão piamente em Cénzi quanto sempre acreditei.

A a’hïrzg perguntou-se se a declaração era uma mera falsidade engenhosa, mas deixou para lá. — Será que o kraljiki Audric pode realmente governar os Domínios? Será que o archigos Kenne pode unir os a’ténis como Ana fazia?

— Só o tempo pode lhe dar essa resposta, a’hïrzg.

— Então me conceda uma especulação.

Sergei deu de ombros. — O archigos Kenne é... fraco. Não apenas fisicamente, mas também quando se trata de confrontar. Ele é um homem bom, moral e fiel, mas é um seguidor, não um líder. É louvável que ele conheça e reconheça este defeito. O Colégio A’téni o elegeu como archigos por causa disso: eles não queriam outro líder forte como Ana. Quanto ao kraljiki Audric... bem, ele é só um menino e tem péssima saúde. Tenho certeza de que a senhora tem seus próprios agentes, que passam relatórios, mas suspeito que eles não contaram toda a história.

Sergei inclinou-se para a frente e pousou a xícara de chá e o pires silenciosamente sobre a mesa. Allesandra viu o próprio reflexo distorcido no nariz dele. — Audric enlouqueceu — falou Sergei, baixinho, e bateu com o indicador na testa. — O quanto ele enlouqueceu, eu não sei. Eu mesmo notei antes de Audric me mandar para a Bastida, e depois meus amigos na corte e na Fé me mandaram notícias. O kraljiki conversa com o quadro de sua mamatarh Marguerite; ele coloca a pintura ao seu lado direito na corte como se ela fosse sua conselheira.

— Sério? — Allesandra gesticulou, e um dos criados correu para encher as xícaras novamente. Ela viu o líquido dourado soltar fumaça em sua xícara. — E ninguém diz nada?

— Os kralji às vezes agem de modo esquisito e às vezes punem aqueles que apontam sua esquisitice. Isso aconteceu muitas vezes na longa história de Nessântico; nós dois podemos citar nomes, tenho certeza. E se o problema não parece afetar os Domínios diretamente... — ele deu de ombros — ... então é melhor não comentar nada... e tomar cuidado. Tenho certeza de que é o que Sigourney ca’Ludovici está fazendo: ela quer o trono e espera a oportunidade para tomá-lo. A maior parte do Conselho dos Ca’ apoiaria Sigourney; o Trono do Sol será dela se Audric morrer ou tiver que ser... removido. Qualquer uma dessas duas é uma possibilidade bem provável nos próximos meses, eu suspeito.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela ergueu a xícara, soprou a superfície aromática e tomou um gole com cuidado. Nenhum dos dois falou alguma coisa por vários instantes. — Por que você veio para cá, regente? — perguntou a a’hïrzg, finalmente. — Eu sei o que você disse para meu filho e para o archigos, mas eu acho que tem mais alguma coisa.

Sergei olhou para trás, para os gardai, e não disse nada. — Eles são homens de minha confiança — falou Allesandra. — Meus gardai escolhidos a dedo, estão comigo desde que voltei para Firenzcia. Eu confio totalmente neles. Tenho certeza de que você teve homens sob seu comando em cuja integridade você confiava dessa maneira.

— Pela minha experiência, quase todo mundo tem um defeito que pode ser explorado. Eu aprendi que, quanto menos ouvidos escutam alguma coisa, mais chances há de que as declarações não sejam repetidas.

Allesandra esperou enquanto tomava o chá; Sergei esfregou o nariz e turvou o reflexo da a’hïrzg.

— Como queira — disse ele, finalmente. — Nessântico e os Domínios têm sido a minha vida, a’hïrzg. Esta é uma lealdade a qual não posso e nem irei abrir mão. Meu desejo mais sincero é ver os Domínios restaurados ao que eram na época em que a kraljica Marguerite estava no trono. Eu gostaria de ver a senhora em Nessântico, como a kraljica Allesandra. A senhora pode ser a kraljica que Nessântico precisa agora.

Embora estivesse esperando estas palavras, Allesandra ainda se viu um pouco nervosa. Viu só, vatarh? Viu só? Esse é o legado que o senhor queria, e essa é a promessa que o senhor abriu mão quando me abandonou por Fynn. A emoção de sua resposta interior surpreendeu Allesandra; ela sentiu o calor subir do peito para o rosto. Fez um esforço para não demonstrar nada disso para ca’Rudka. — Sonhar não custa nada — disse a a’hïrzg. — Nós podemos sonhar à vontade. Poder realizar o sonho é uma coisa completamente diferente.

— No entanto, se duas pessoas tiverem o mesmo sonho, e ele coincidir com o de outras pessoas, e se estas pessoas forem poderosas o suficiente... — Sergei sorriu e fechou os dedos sobre a toalha de mesa de renda, como se estivesse rezando. — Este seria o seu sonho também, a’hïrzg? A senhora consegue ver um ca’Vörl no Trono do Sol? Eu sei que seu vatarh tinha essa visão.

Ele sabe. — Vamos deixar este assunto de lado por um momento, regente. Há outras questões envolvidas caso perseguíssemos esse objetivo... e não estou dizendo que estamos. E quanto à fé concénziana? Quem seria o archigos nestes Domínios restaurados que você imagina: Semini ou Kenne?

— Apesar do que eu disse sobre os defeitos dele, eu gosto do archigos Kenne. Ele é meu amigo, sua fé é verdadeira, e, como eu disse, ele é um bom homem.

— Ele pode ser tudo isso, mas Kenne não é um amigo de Firenzcia e, como Ana, ele passaria a mão na cabeça dos hereges. E Semini é meu amigo.

Sergei fez um som contemplativo no fundo da garganta. — Há rumores, a’hïrzg, de que ele talvez seja mais do que isso.

Allesandra ficou vermelha ao ouvir isso. O garda atrás do regente levou a mão ao cabo da espada, mas ela fez que não com a cabeça para o homem. — Você fala abertamente demais sobre rumores e mentiras, regente. Você não pode mais me tratar como uma menina ou uma refém da realeza. Você está em minha terra, e é a sua vida que está em jogo, não a minha. Se essa é a maneira como falava com Audric, então não é de admirar que ele não quisesse mais que você fosse regente.

Sergei abaixou a cabeça, mas não havia desculpas no olhar implacável. — Minhas desculpas, a’hïrzg. Minha estada na Bastida acabou, infelizmente, com minha diplomacia e paciência. Mas esses rumores e mentiras me preocupam de verdade, se formos trabalhar juntos.

— O archigos já tem uma esposa. É tudo o que precisa ser dito, e toda a resposta que você receberá. Quanto ao archigos Kenne... — Allesandra também se lembrava de Kenne ca’Fionta: um homem gentil, quieto, que sempre foi um eficiente subcomandante, mas que nunca questionava o que lhe era pedido ou dizia o que pensava. A a’hïrzg não conseguia imaginá-lo como archigos. Ana também podia ser gentil e carinhosa, mas havia ossos duros e aço sob o veludo, e ninguém gostaria de ser inimigo dela. Allesandra não tinha certeza do que havia sob o exterior de ca’Fionta, mas suspeitava que a avaliação de Sergei era correta.

Mas Semini... Semini podia ser tão inflexível e forte quanto Ana. — Se você quiser a ajuda de Firenzcia — continuou ela —, se quiser a ajuda de nossos ténis-guerreiros, então será o archigos Semini, e não o archigos Kenne, quem reunirá a fé concénziana. Kenne não precisa ser morto; se puder ser convencido a renunciar ao título pelo bem da Fé, talvez até mesmo para se tornar o a’téni de uma das cidades. Eu desconfio que um amigo poderia convencer outro amigo da sensatez desse rumo. Eu espero, pelo bem de Kenne.

Allesandra recostou-se na cadeira. Sergei, pela primeira vez, tinha uma expressão de incerteza no rosto, e ela ficou surpresa com a intensidade da alegria que esta reação lhe proporcionou. A a’hïrzg perguntou-se se era assim que uma kraljica ou hïrzgin geralmente se sentiam, se era uma das dádivas do poder. Uma dádiva ou talvez uma armadilha para aqueles que cediam ao domínio daquela sensação. — Eu sei o que eu trago para você, regente. Eu trago meu nome e minha genealogia. Trago o inigualável exército de Firenzcia, através do meu filho. Trago os temíveis ténis-guerreiros da verdadeira fé concénziana através do archigos Semini. Trago Miscoli, Sesemora e as Magyarias, que obedecem a Firenzcia. Eu trago tudo isso à mesa. O que você traz para nós, regente?

Sergei não respondeu imediatamente. O indicador direito roçou a borda da xícara diante dele, e o regente pareceu observar o desenho das folhas no fundo. — Eu trago conhecimento. Eu conheço a Garde Kralji e a Garde Civile e as forças e fraquezas de seus comandantes. Conheço Nessântico; conheço todos os seus caminhos e segredos. Há aqueles na Garde Civile e na Garde Kralji que responderão se eu chamá-los. Há aqueles entre os ca’ e co’ que farão a mesma coisa. Há chevarittai que virão a mim se eu convocá-los. Pode ser, a’hïrzg, que eu consiga lhe entregar o Trono do Sol com o mínimo de vidas perdidas possível.

— Ora, se é capaz de fazer tudo isso, por que você não é o próprio kraljiki em vez de um refugiado? — perguntou Allesandra, mas ela não deu tempo para Sergei responder. — Se é capaz de fazer tudo isso, o que você quer em troca?

— Nada — respondeu Sergei, e Allesandra ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Dê-me a recompensa que a senhora achar condizente. Eu faço isso apenas por Nessântico, por que sempre empenhei a vida. Uma vez, eu protegi Nessântico da agressão de Firenzcia; agora, eu entregarei Nessântico a Firenzcia livremente. A kraljica Marguerite acreditava no casamento como uma forma de conciliar forças opostas, e eu acredito na mesma coisa, porque o casamento de Nessântico com Firenzcia é tudo que ela precisa agora para sobreviver.

Belas palavras, Allesandra queria dizer, com desdém. A a’hïrzg não tinha certeza se acreditava realmente no homem, mas Cénzi tinha trazido o regente até ela, de maneira totalmente inesperada, um presente irrecusável. — Você é uma jovem inteligente, talentosa e atraente — disse a archigos Ana para ela quando chegou a Nessântico a notícia de que seu vatarh nomeara o menino Fynn como a’hïrzg e se recusara a pagar o resgate exigido pelo kraljiki Justi para sua libertação. Aconteceu em menos de um ano dentro do período de sua prisão cheia de confortos e luxos, e Allesandra chorou de perplexidade e medo. Ana, a inimiga, abraçou e confortou Allesandra, fez carinho em seu cabelo e acalmou a menina novamente. — Eu sei que Cénzi tem um plano para você. Eu sinto isso, Allesandra. Há um grande papel para você cumprir ainda na vida...

Allesandra cumpriria esse papel. Ela teria aquilo que um dia seu vatarh lhe prometeu: o colar reluzente de Nessântico. Aquele era o motivo pelo qual Sergei ca’Rudka tinha aparecido neste momento.

— Veremos, regente ca’Rudka — foi tudo que Allesandra disse para ele agora. — No fim, será como Cénzi quiser...

 

Niente

NIENTE ESTAVA NA ENCOSTA de Karnor com o tecuhtli Zolin e seus guerreiros supremos, com a cidade estendida embaixo, e ele viu a cena que tinha vislumbrado na tigela.

As janelas do templo logo abaixo de Niente estavam quebradas, pareciam olhos arrancados no crânio de um prédio em ruínas. A fuligem escurecia as pedras em volta, uma fumaça imunda ainda subia entre elas. O meio domo de ouro estava quebrado, a alvenaria dourada, desmoronada. Chamas disparavam para o alto em uma dezena de pontos da cidade, mais intensas do que o sol do poente.

O ataque ocorreu facilmente e com rapidez. Assim que eles viram as encostas da grande ilha de Karnmor dos orientais, Niente reuniu os nahualli que podiam controlar o vento e o céu, e eles conjuraram uma muralha de bruma espessa para esconder a frota tehuantina enquanto ela se aproximava. A neblina envolveu os tehuantinos em um ar branco acinzentado e abafou os barulhos dos preparativos. Quando a bruma mágica acabou e foi soprada pelo vento, o Yaoyotl — com a bandeira da águia dos tehuantinos — já estava na boca do porto de Karnor, com os navios coirmãos espalhados em duas grandes alas de ambos os lado. O porto de Karnor era extenso e fundo, aninhado em penhascos de braços rochosos com a cidade empoleirada bem ao longe, a quilômetros de distância.

Um punhado de navios da marinha dos Domínios estava ancorado ali, e eles foram manobrados para encarar o ataque enquanto as embarcações pesqueiras e de lazer fugiam para um lugar seguro. Niente teve que admirar a bravura dos capitães dos Domínios: diante de uma força imensamente superior, eles não fugiram, mas se voltaram para confrontá-la diretamente, com suas bandeiras azuis e douradas tremulando no topo dos mastros. Ainda assim, foi um massacre. O vento do mar veio atrás da frota tehuantina, e os navios dos Domínios tiveram que avançar lentamente contra o vento. Os ténis-guerreiros a bordo dos galeões dos Domínios tiveram pouco tempo para preparar os feitiços — talvez mais poderosos que aqueles dos nahualli, mas lentos de serem criados, e Niente tinha passado o dia exigindo de seus nahualli. Os cajados mágicos estavam cheios, as areias negras já preparadas. Os feitiços dos nahualli foram capazes de desviar a maior parte do fogo disparado pelos ténis-guerreiros para longe dos navios tehuantinos, embora a embarcação ao lado do Yaoyotl tivesse levado um tiro em cheio que se espalhou como uma monstruosa onda de fogo e destruição pelos conveses e fez dezenas de homens pularem aos gritos nas vagas frias. O disparo fez o navio pegar fogo e encalhar, de maneira que as embarcações atrás tiveram que se virar de repente para evitá-lo.

O tecuhtli Zolin estava no convés e berrava ordens do castelo de popa; os navios tehuantinos responderam com enormes dardos com cápsulas de areia negra na ponta lançados dos conveses: as catapultas dispararam os projéteis faiscantes na direção dos defensores de Karnmor; as cápsulas, encantadas com feitiços de fogo, explodiram com o impacto, o que estilhaçou tábuas e arrancou braços e pernas ensanguentados de marinheiros azarados. Os navios de Nessântico fracassaram, as velas estavam em chamas ou penderam quando perderam o vento sob o ataque. O tecuhtli Zolin gritou ordens e um segundo bombardeiro de projéteis de fogo varreu os inimigos.

Eles deixaram os defensores na retaguarda como nada mais do que carcaças consumidas pelo fogo até a linha-d’água, e a frota tehuantina avançou para o porto interno da cidade. Os soldados de Karnor estavam reunidos ali sob o comando de uns poucos chevarittai a cavalo, mas o tecuhtli Zolin berrou ordens mais uma vez, e as catapultas dispararam seus terríveis mensageiros em meio aos inimigos, as explosões fizeram tremer os morros íngremes onde Karnor foi construída e atearam fogo entre os prédios. Os soldados e os nahualli deram gritos de vitória quando se aproximaram do porto, o som dos homens batendo os cajados mágicos e as espadas nos escudos era aterrorizante. Niente gritou ao lado deles, a própria garganta estava rouca por causa dos berros e da fumaça da batalha. Ele viu moradores fugirem pelas ruas em turbas desorganizadas que subiam e se afastavam do repentino conflito da batalha no porto, enquanto pranchas eram descidas e expeliam soldados tehuantinos. Eles avançaram aos gritos, os rostos tatuados estavam furiosos e alegres ao mesmo tempo. O tecuhtli Zolin liderava os homens, a escada curva reluzia à luz do sol e a voz desafiava o inimigo à espera. Niente e seus nahualli correram atrás dos soldados, seus cajados mágicos emitiam um brilho branco ao disparar raios nas fileiras dos soldados. O próprio cajado de Niente se esgotou rapidamente, ele pegou o conjunto de garras de águia que estava amarrado nas costas, girou o tubo de marfim para ativar o feitiço de fogo por contato e jogou os artefatos sobre as primeiras fileiras de soldados para que explodissem no meio dos inimigos. Em um momento, um soldado ferido de Nessântico levantou-se do chão quando Niente passou por cima dele. Por sorte, o homem estava fraco por conta dos ferimentos, e o nahual conseguiu se desviar da estocada vacilante da espada. Ele sacou a faca do cinto e passou o gume afiado na garganta exposta do sujeito antes que o soldado pudesse se recuperar. O sangue quente jorrou sobre a mão de Niente, e o homem soltou um grito gorgolejante ao desmoronar pela última vez. Uma facada forte na lateral do pescoço do soldado acabou com ele, e Niente levantou-se para descobrir que a batalha estava praticamente encerrada, os defensores recuando para o interior da cidade e sendo perseguidos pelos tehuantinos.

No momento em que o sol se pôs — vermelho e melancólico em meio à fumaça da cidade em chamas —, Karnor era dos tehuantinos, ou o que tinha sobrado da cidade. Embaixo dele, Niente ouviu gritos e gemidos fracos enquanto os tehuantinos saqueavam a cidade e matavam quem encontrassem por lá. Mais embaixo ainda, no porto, os porões dos navios tehuantinos estavam sendo preenchidos com a riqueza da cidade.

Niente estava com o tecuhtli Zolin e os guerreiros supremos tehuantinos Citlali e Mazatl. Ali perto, vigiados por guerreiros tatuados, o comandante e três offiziers superiores dos defensores estavam ajoelhados, amarrados e amordaçados. Os prisioneiros encaravam a fogueira armada pelos nahualli sob orientação de Niente e olhavam para o altar plano de pedra do Templo de Karnmor, que Niente tinha ordenado que fosse arrastado até o cume do monte Karnmor.

Quatro garras de águia, com os chifres cheios de areia negra, foram colocadas no centro do altar de pedra. Os prisioneiros olhavam fixamente, sobretudo para elas.

— Esses orientais — comentou o tecuhtli Zolin — são péssimos guerreiros. Eles correram como crianças assustadas. — Ele olhou novamente para os prisioneiros com uma expressão de desdém. O tecuhtli usava sua armadura de couro e bambu, com um talho aqui e ali de uma lâmina inimiga, e os tubos roliços chacoalhavam baixinho enquanto ele se mexia. A armadura estava respingada e manchada de sangue, embora pouco parecesse ser de Zolin. O sol tinha se posto completamente agora, e a lua surgiu a leste...

Zolin olhou na direção da lua. — Axat sequer aceita a oferta desses incompetentes.

Niente lembrou-se das batalhas em volta do lago Malik e balançou a cabeça. — Tecuhtli, eles foram pegos de surpresa e não estavam preparados para nós. Isso não acontecerá novamente. Os rumores do que aconteceu aqui chegarão ao kraljiki e aos comandantes do exército oriental. Talvez... — Ele hesitou, não queria dizer as próximas palavras. — Talvez seja melhor pegarmos o que conseguimos aqui e voltarmos para casa.

O tecuhtli Zolin deu uma gargalhada debochada. — Voltar? Agora? Quando estamos aqui, na fumaça da vitória, exatamente como você previu? Nahual Niente, você me desaponta. Eu vim aqui desafiar esse kraljiki que manda seu povo roubar a terra de nossos primos, mas sequer lidera o próprio exército. Citlali, Mazatl, o que vocês me dizem?

Mazatl já estava de cara amarrada, a luz da fogueira banhava o rosto marcado. Assim como Zolin, ele ainda usava a armadura surrada e ensanguentada. — Eu digo que estou contente por estar em terra firme, mesmo aqui. Voltar para o mar? — O supremo guerreiro cuspiu nas pedras aos pés. — Eu vim para lutar, não velejar. Eu digo para darmos a Axat o que Ela ganhou aqui e depois seguirmos em frente. — Citlali concordou com um murmúrio, mas parecia estar menos convicto.

Os nahualli e guerreiros reunidos perto do fogo já haviam começado o cântico baixo e assustador da prece à Axat. O luar brilhou forte sobre o altar de pedra e reluziu nas pontas grossas de vidro das garras de águia. Niente acenou com a cabeça para Zolin.

Dois nahualli agarraram um dos prisioneiros e arrastaram o homem para frente. O offizier choramingava de medo e invocava Cénzi. Os nahualli colocaram o homem sobre o altar de pedra, de joelhos. Ele ergueu os olhos para Niente, aterrorizado. — Vá bravamente para sua morte — disse o nahual para o oriental em sua própria língua ao pegar uma garra de águia. Ele girou a ponta do chifre, e o fatídico clique soou alto quando o feitiço foi ativado. — Reze para o seu deus. A morte será rápida. Eu lhe prometo ao menos isso. — Niente acenou novamente com a cabeça, e os nahualli seguraram firmemente os braços do homem, que fechou os olhos e moveu os lábios em uma prece silenciosa.

O nahual abriu a própria mente para Axat e para o brilho da lua, depois pressionou a boca ossuda da arma no estômago do homem. O som do disparo da garra de águia ecoou pela cidade.

 

Allesandra ca’Vörl

JAN QUASE PARECIA ASSUSTADO, os olhos tão arregalados que era possível ver o branco em volta da íris. — Matarh... levar o exército contra os Domínios... eu não sei.

— Eu compreendo o perigo — falou Allesandra. — Sim, é um grande passo para ser dado assim tão cedo no seu período como hïrzg, e entendo como deve estar se sentindo. Você precisaria confiar na capacidade do starkkapitän ca’Damont; mesmo assim, isso seria um teste maior do que tudo o que você já fez na vida. Mas, Jan, eu sei que é algo que você é capaz de fazer. Levar o exército à guerra é algo que você terá que fazer eventualmente, como quase todo hïrzg de Firenzcia já fez. Até mesmo seu vatarh lhe diria isso. Fynn tinha 18 anos, era apenas dois anos mais velho do que você, quando levou o exército à guerra pela primeira vez. — Ela acenou a cabeça para Semini, que estava sentado em silêncio na própria cadeira. Os três estavam nos aposentos de Allesandra. Os criados foram dispensados após servirem o jantar, cujas sobras ainda decoravam a mesa entre eles. — Semini sabe — disse Allesandra. — Ele comandava os ténis-guerreiros quando seu vavatarh Jan quase tomou Nessântico.

— E ele teria conseguido se aquela archigos herege desprezível não tivesse usado sua magia dos numetodos contra nós — resmungou Semini. O archigos pareceu um urso mais do que nunca, curvado na cadeira. Ele bateu de leve no prato, mas teve o cuidado de desviar o olhar de Allesandra.

A a’hïrzg ainda se lembrava do choque daquela noite: ela estava na tenda, sentada no colo do seu vatarh. — Você é meu passarinho — dizia Jan — e eu amo... — Então a voz foi interrompida e, impossivelmente, ela estava do lado de fora, longe do acampamento, esparramada no chão molhado de chuva, à noite, enquanto a archigos Ana e um homem estranho qualquer lutavam um contra o outro com uma magia do Ilmodo que Allesandra pensava ser impossível. Sim, ela lembrava-se muito bem daquilo e sabia que sua captura foi a razão do fracasso de seu vatarh, e que Jan culpava Allesandra por isso.

— Ah, os Domínios ainda têm que responder por muita coisa — continuou o archigos, que olhava apenas para Jan. Ele bateu de leve na toalha de mesa com o punho. — Eu aguardo ansiosamente para cobrar o pagamento. Hïrzg Jan, estou pronto para ser seu braço direito, com todos os ténis-guerreiros da fé concénziana comigo.

Jan ainda parecia inseguro, e Allesandra esticou o braço para afagar a mão do filho. — Jan, no fim esta deve ser uma decisão sua, não minha. Eu não sou o hïrzg, você é.

— A senhora não quis isto quando podia tê-la — disse Jan ao tocar na coroa dourada de hïrzg na cabeça. — E, no entanto, agora a senhora quer... — Ele parou abruptamente. Pestanejou. — Ah. — Franziu os olhos.

Allesandra ficou preocupada com a expressão no rosto do filho. — Pense no que podemos conseguir juntos, Jan — falou ela, às pressas —, com a mesma família no Trono do Sol e no trono de Firenzcia. Nós podemos unificar os Domínios e criar um império maior e mais pacífico do que o de Marguerite.

Jan não disse nada. Ele olhou de Semini para Allesandra, depois ficou de pé e andou rapidamente até a porta. — Jan? — chamou Allesandra, e o hïrzg parou ali. Ele falou sem se virar para a matarh.

— Eu começo a entender um pouco o que o vatarh falou sobre a senhora antes de ir embora, matarh. Ele me disse que a senhora usava as pessoas para seus próprios objetivos; disse que este era exatamente o mesmo jeito do seu próprio vatarh, e que isso não era assim tão surpreendente. Ele disse que esse comportamento foi que tornou o vavatarh um hïrzg competente, mas um amigo perigoso. Eu me pergunto se um dia poderei ser um hïrzg assim tão bom. Eu me pergunto se um dia terei vontade de ser. — Jan bateu na porta, que foi aberta pelos criados do corredor.

Allesandra ficou de pé e afastou-se da mesa; começou a ir atrás dele enquanto os pratos batiam e as taças tremiam. — Jan, fique. Por favor. Fale comigo.

Jan balançou a cabeça e saiu sem dizer outra palavra, a porta foi fechada.

Allesandra ficou parada no centro da sala de jantar e não conseguiu conter o soluço. Eu nunca tive a intenção de magoá-lo. Eu não quero magoá-lo. Ao mesmo tempo, a a’hïrzg considerou a declaração do filho: será que ela cometeu um erro ao colocá-lo no trono do hïrzg? Será que enxergava Jan com os olhos de uma matarh e não com os olhos da verdade? Allesandra sentiu as mãos de Semini em seus ombros e percebeu que ele havia se levantado para ficar atrás dela. — Não se preocupe, Allesandra. — As palavras do archigos eram um rugido baixo no ouvido. — Deixe o menino sozinho por um tempo e lembre-se que, em muitos aspectos, ele ainda é um menino. Jan sabe que você está certa, mas neste momento ele acha que você lhe deu a coroa de hïrzg como um prêmio de consolação.

— Não foi assim, de verdade. — As lágrimas ameaçaram cair, e Allesandra fungou e piscou para contê-las. — Eu amo Jan, Semini. Amo mesmo. Ele não faz noção do quanto. Eu fico magoada de vê-lo com raiva de mim. Não era o que eu pretendia.

— Eu sei — sussurrou o archigos. — Eu falarei com ele. Posso convencê-lo de que você está certa.

Ela meneou a cabeça enquanto olhava fixamente para a porta. — Eu preciso ir atrás dele.

— Se fizer isso, vocês dois apenas acabarão tendo uma discussão ainda pior. Vocês dois são muito parecidos. Dê um tempo para Jan se acalmar e pensar sobre a situação, e ele perceberá que exagerou na reação. Pode até ser que se desculpe. Dê um tempo. Deixe que ele fique com raiva agora.

As mãos de Semini massagearam os ombros de Allesandra. Ela sentiu os lábios do archigos roçarem o cabelo na nuca e deixou a cabeça pender para frente em resposta. — Ele é meu filho. Eu fico magoada quando ele está magoado.

— Se você conseguir o que quer, então essa é uma situação que poderá vir a ter que aceitar. Os kralji de Nessântico e os hïrzgai de Firenzcia sempre tiveram suas diferenças e seus interesses separados. Se não quiser um conflito entre você dois, é melhor abandonar essa ideia.

Allesandra ficou tensa sob as mãos que a massageavam, e Semini riu. — Pronto, viu só. Jan não é o único que se irrita quando alguém lhe diz o que fazer. — Ele continuou a trabalhar os músculos dos ombros da a’hïrzg. — Eu estou com você, meu amor, mas também tenho ambição. Eu quero ser o archigos da fé concénziana unificada e quero me sentar no Trono de Cénzi no Templo do Archigos e ser a sua Mão da Verdade. E quero ser mais do que isso, Allesandra. Quero ser o archigos ca’Vörl.

Ela virou-se para Semini e encontrou o rosto dele perto do seu. Allesandra beijou os lábios do archigos sem paixão. — Semini...

— Você disse para Jan pensar no que vocês dois poderiam conseguir juntos como a mesma família nos dois tronos. Eu lhe peço que considere o que poderia ser feito se a mesma família não só controlasse os tronos políticos, mas também o da fé concénziana.

— O que você sugere não é possível — falou Allesandra. — Tem o Pauli. E Francesca. Sim, eu adoro os momentos secretos que passamos juntos e gostaria que fosse de outra forma, mas não é. Semini, o que pareceria se o archigos dissolvesse o próprio casamento e o matrimônio da a’hïrzg em nome do próprio interesse? O que diriam os ca’ e co’, mesmo que em segredo? Que mal isso faria à Fé e ao Trono do Sol?

— Eu sei. — Semini rosnou e deu um passo para trás. — Eu sei. Mas meu casamento com Francesca foi político desde o início; nunca houve amor entre nós, nem muita intimidade realmente, depois dos primeiros anos e os abortos. Orlandi insistiu que eu tinha que casar com sua filha, e ele era o archigos, e seu vatarh pensou que seria bom também, e você era... — Semini fez uma pausa. — Sei que sou muito mais velho do que Pauli, Allesandra, mas eu pensei...

— A nossa diferença de idade não significa nada. — Allesandra esticou a mão para tocar no rosto do archigos, a barba grisalha sob os dedos era surpreendente. — Semini... Eu gosto mesmo de você. Eu adoro o que nós temos, mas isso tem que bastar. O que você sugere... seria um erro terrível.

— Seria? Eu não acredito nisso, Allesandra. Se você soubesse o quanto eu lutei com essa ideia, se soubesse como rezei para Cénzi... — Semini balançou a cabeça sob os dedos dela e disse — Não seria um erro. Como poderia ser, se existem sentimentos verdadeiros entre nós? Você pode me dizer que esses sentimentos são unilaterais e que nosso caso é simplesmente uma questão de conveniência para você? É assim, Allesandra? Diga-me. Diga-me a verdade.

Allesandra encarou Semini, que ainda tinha o rosto nas mãos dela, e sussurrou — Unilaterais? Não.

Ele soltou um longo suspiro de alívio, praticamente uma palavra ou soluço, e depois beijou Allesandra, que devolveu o beijo. Ela abandonou a si mesma e as preocupações sobre Jan e o que poderia acontecer na paixão que a envolveu.

 

Jan ca’Vörl

JAN DEIXOU O SUOR PINGAR enquanto estocava e defendia com a espada contra um oponente invisível. Às vezes era Semini, às vezes era sua matarh, às vezes era o fantasma de Fynn ou do vavatarh. Jan colocou toda a raiva para fora no treino. Golpeou, girou o corpo e estocou até todos os fantasmas estarem mortos e os músculos arderem.

Finalmente, Jan embainhou a espada e parou com as mãos nos joelhos, ofegante. Ele ouviu um aplauso baixo e irônico atrás de si e se virou. Gotas de suor voaram do cabelo molhado. O hïrzg viu Sergei ca’Rudka parado à porta da sala de treino, com dois gardai atrás dele. — Como...? — Jan começou a perguntar quando ca’Rudka sorriu.

— Eu perguntei ao assistente Roderigo onde o senhor estaria. Não deixaram que eu viesse sem meus amigos, de qualquer forma — acrescentou Sergei ao gesticular para os gardai solenes e carrancudos que o acompanhavam. Ele entrou na sala comprida e apertada, com paredes de bronze lustroso, uma estreita fileira de bancos ao longo do outro lado e espadas de madeira para treino expostas em suportes em um canto. — O senhor teve um bom professor de armas, embora isso valha menos do que imagina.

Jan pegou uma toalha de um cabide perto das espadas e secou o suor da testa. — O que você quer dizer, regente?

— O senhor pode ter todas as habilidades técnicas, e o senhor possui, de fato, mas elas valem pouco ao se enfrentar um oponente de verdade, que queira lhe matar.

O jeito com que ca’Rudka fez o comentário, em um tom superior e professoral, reacendeu a raiva de Jan. Todos agiam de maneira superior a ele. Todos lhe diziam o que fazer, como se ele fosse estúpido para entender qualquer coisa sozinho. Jan torceu o nariz e jogou a toalha no canto. — Mostre-me — falou ele para Sergei. — Prove.

— Hïrzg... — alertou um dos gardai, mas Jan olhou com ódio para o homem.

— Cale-se — disse Jan. — Eu sei o que estou fazendo. — Ele indicou o suporte de espadas de madeira com a cabeça. — Mostre-me, regente. É fácil dizer banalidades.

Sergei fez uma mesura, como se cumprimentasse um parceiro de dança. Ele deu uma olhadela para os gardai e foi até o suporte. Jan observou o regente: o homem tinha a postura de um velho e fez uma careta ao se abaixar para puxar uma das espadas de treino e examiná-la. — Certa vez, o grande espadachim co’Musa disse que a experiência é geralmente melhor do que a habilidade crua — falou Sergei. — Há uma história que, em um duelo, co’Musa matou seu oponente apenas com uma espada de madeira. Assim como o senhor, o adversário estava armado com aço.

Ambos os gardai avançaram, meteram as mãos nas próprias armas e colocaram-se entre o hïrzg e ca’Rudka, mas Jan fez um gesto para que se afastassem e disse — Você não é co’Musa.

— Não sou — respondeu ca’Rudka. Ele deu um leve golpe no ar com a lâmina de madeira. Foi uma estocada desajeitada, e Jan notou como ca’Rudka pegava no cabo com a mão um pouco virada embaixo; seu antigo professor, lá em Malacki, teria corrigido o homem imediatamente, se tivesse visto aquilo. “Com a mão desse jeito, o senhor não tem alcance”, teria dito ele. Mas Sergei já havia assumido uma postura, com a espada abaixada e as pernas juntas demais. — Quando o senhor estiver pronto, hïrzg Jan — falou ca’Rudka.

— Comece — disse Jan.

Dito isso, Sergei começou a erguer a espada: devagar, quase desajeitado; o movimento de um amador. Jan torceu o nariz e afastou desdenhosamente a arma do homem com sua própria. Mas a esperada resistência de lâmina contra lâmina não ocorreu: ca’Rudka abrira a mão. Jan ouviu a espada de madeira bater nos ladrilhos do piso, viu quando ela escorregou até acertar a parede revestida de bronze. O golpe de Jan arrancou a arma do regente, sim, mas sem a resistência, o ataque se lançou mais para a esquerda do que deveria, e o hïrzg viu um movimento de roupa escura e sentiu as mãos de ca’Rudka baterem de leve nos dois lados do pescoço antes que pudesse reagir. O homem estava diretamente à sua frente, com o nariz de metal tão próximo que o rosto do hïrzg preencheu a superfície refletora. Ca’Rudka agarrou a gola da tashta de Jan com as duas mãos, deu um passo e imprensou o hïrzg contra a parede. A espada de Jan era inútil em sua mão: o regente estava próximo demais.

— Viu só, hïrzg Jan — ca’Rudka quase sussurrou —, alguém que queira matar o senhor não se preocupará com regras e educação, apenas resultados. — O hálito era quente e cheirava à menta. — Eu poderia ter esmagado sua traqueia com aquele primeiro golpe ou poderia ter uma faca na outra mão. De um jeito ou de outro, o senhor já estaria nos últimos suspiros.

Sergei afastou-se e soltou Jan quando foi agarrado por trás pelos gardai, com violência. Um deles socou ca’Rudka com a manopla, e o velho regente desmoronou sobre um joelho, ofegante. — Mas o senhor é um espadachim melhor do que eu, hïrzg. — Ele terminou de dizer, no chão. — Eu admito livremente. — O garda preparou o punho para dar outro soco, mas Jan ergueu a mão.

— Não! — disparou o hïrzg. — Vão embora! Vocês dois!

Os gardai olharam para ele, assustados. Os dois começaram a protestar, mas Jan gesticulou novamente para a porta. Depois que se curvaram e saíram, Jan foi até ca’Rudka e ajudou o homem a se levantar. — Você é realmente um espadachim tão ruim assim, regente?

Ca’Rudka conseguiu sorrir ao colocar a mão na lateral do corpo, inclinado para frente enquanto tentava recuperar o fôlego, e respondeu — Não, mas fiz o senhor pensar que eu era. — Ele respirou fundo pela boca e gemeu. — Por Cénzi, essa doeu. Acredito que minha lição tenha ficado bem clara?

— Que as pessoas podem mentir e me enganar para conseguir o que querem? — Jan deu uma risada amarga. — Você não é o único que está tentando me ensinar essa lição.

— Ah. — Ca’Rudka pareceu considerar a informação. Ele não disse nada e esperou.

— Minha matarh e o archigos parecem achar que agora é o momento de atacar Nessântico.

Ca’Rudka deu de ombros, depois fez outra careta. — O senhor quer admitir isso para um espião em potencial que está entre vocês, hïrzg? Ora, eu poderia mandar uma mensagem para o kraljiki.

— Você não mandará.

Sergei ficou com o rosto impassível ao ouvir isso. Ele piscou sobre o nariz de prata. — O senhor já considerou que sua matarh e o archigos podem estar certos?

— Você concorda com eles?

— Honestamente, eu preferia que não houvesse guerra de maneira alguma, que nós resolvêssemos as diferenças de outra forma. Mas se eu fosse a sua matarh... — Ele deu de ombros. — Talvez pensasse a mesma coisa.

— Então você acha que eu devo dar ouvidos a eles?

— Eu acho que o senhor é o hïrzg, e, portanto, deve tomar a própria decisão. Mas também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.

Jan desviou o olhar do homem. Ele podia se ver nos espelhos de bronze da sala, a imagem era ligeiramente distorcida nas ondas do metal fino. Jan ainda segurava a espada. Ele foi até a parede onde a arma de ca’Rudka tinha ido parar. Abaixou-se e pegou a espada de treino, depois jogou para o homem.

— Mostre-me outra coisa — disse o hïrzg. — Mostre-me como a experiência é capaz de vencer a habilidade crua.

Ca’Rudka sorriu. Ele pegou a espada, e dessa vez seus movimentos foram ágeis e graciosos. — Tudo bem. Fique em posição...

 

Nico Morel

APÓS PASSAR VÁRIOS DIAS com a mulher, Nico decidiu que ela era muito esquisita, mas também fascinante. A mulher era boa com ele. Ela alimentava bem o menino, conversava com ele — longas conversas em que Nico se viu contando tudo sobre sua matarh e Talis, que ele e a matarh fugiram de Nessântico, que ele odiava seu onczio e os primos, como fugiu do vilarejo e foi ajudado pelo regente e Varina...

A mulher passeava com Nico durante o dia pela velha vizinhança, e ele torcia para que visse Talis ou sua matarh.

Mas não viu. — O nome de seu vatarh é Talis Posti? — perguntou a mulher na primeira noite, e o menino contou sua história. — Tem certeza disso? E ele está aqui na cidade? — Nico concordou com a cabeça, e ela não falou mais nada.

A mulher disse que seu nome era Elle, mas às vezes parecia não notar quando Nico a chamava pelo nome. Às vezes, no meio de uma conversa, ela respondia a um comentário inaudível ou se dirigia ao vento como se falasse com ele. Em público, Elle dava a impressão de se encolher e parecer velha e frágil, mas na privacidade dos aposentos, a mulher era completamente outra pessoa: mais jovem, forte, atlética e cheia de vida. Ela mantinha armas no quarto: uma espada encostada em um canto perto da porta e outra ao lado da cama, e havia várias facas com gumes cruelmente afiados — a mulher quase sempre tinha duas ou mais com ela. Nico observava Elle afiar as armas à noite com uma pedra de amolar. Observava o rosto e a concentração apaixonada enquanto afiava os gumes, que provocavam arrepios em Nico.

Elle tinha uma bolsinha de couro no pescoço que não tirava nunca. Estava sempre debaixo da roupa, e à noite ela a pegava firme com a mão, como se tivesse medo de que alguém a roubasse. Nico imaginava se a mulher também não tirava a bolsinha quando tomava seu banho diário na banheira de cobre da sala de estar. O banho em si era estranho, pois o menino jamais tinha visto alguém tomar banho mais do que uma vez por semana, nem mais que uma vez por mês. Sua matarh sempre dizia que tomar banho demais deixava a pessoa doente. Talvez, pensou Nico, fosse isso que havia de errado com Elle.

De vez em quando, a mulher mandava que ele ficasse no apartamento alugado e saía sozinha — geralmente à noite. Ela ficava ausente por várias viradas da ampulheta, e geralmente Nico dormia enquanto esperava que ela voltasse. O que quer que Elle fazia naquelas noites, ela nunca contava para ele.

A noite de hoje tinha sido uma dessas. — Nico... — O menino sentiu a mão dela sacudindo seu corpo e pestanejou ao olhar para o rosto da mulher, iluminado pelas velas contra a escuridão do quarto. — Levante-se.

— Por que, Elle? — resmungou Nico com sono. Estava gostoso e quentinho debaixo das cobertas. Ela não respondeu; já tinha ido na direção da porta do quarto.

— Eu quero que você venha comigo — falou ela. De má vontade, Nico empurrou as cobertas para o lado e saiu do colchão de palha. — Sapatos — disse Elle quando ele começou a ir em sua direção descalço. Nico calçou as botas gastas, e a mulher abriu a porta. — Fique comigo. — Ela deu a ordem ao pegar sua mão, e os dois saíram noite afora.

Nico sabia que Nessântico nunca dormia, não completamente. Não importava a hora do dia ou da noite, havia pessoas pelas ruas do Velho Distrito. Mas à noite os cidadãos eram mais perigosos do que de dia, como sua matarh lhe dissera. — Você vai entender melhor quando crescer — falara ela, mais de uma vez. — A noite é uma máscara que a cidade coloca quando quer fazer coisas que não deveria. O que as pessoas fazem à noite... bem, às vezes elas precisam da escuridão para esconder. — Nico vislumbrou um pouco disso recentemente, sozinho no Velho Distrito, antes de ser encontrado por Elle. Testemunhou a fala pastosa e o passo vacilante dos frequentadores de tavernas; viu os encontros acompanhados por gemidos nos becos escuros; vislumbrou ataques rápidos e violentos; testemunhou as trocas furtivas de moedas tilintantes por embrulhos. Nico ficou próximo de Elle enquanto andavam pelas ruas, que estavam animadas por aqueles que usavam a máscara da noite.

Ela andava rapidamente, tão rápido que o menino teve que correr um pouco para acompanhá-la. Os dois cruzaram uma esquina do centro do Velho Distrito e entraram no emaranhado de vielas que iam para sudoeste, na direção do rio, e os prédios de cada lado ficaram cada vez mais velhos, próximos e menores, como se quisessem permanecer juntinhos à noite para se esquentar. Nico ficou rapidamente perdido. Não havia luzes mágicas aqui, apenas algumas lâmpadas ocasionais colocadas nas janelas de tavernas e bordéis. Duas vezes os dois passaram por um utilino, e Elle encolheu o corpo, fez com que parecesse menor e mais velha, e o cumprimentou com uma voz rouca que não parecia de forma alguma com a própria.

Finalmente, Elle puxou o menino para a escuridão de um beco e ajoelhou-se ao lado dele. — Escute, Nico. Preciso que você fique muito, muito quietinho agora. Tem que tomar cuidado ao andar para que ninguém escute seus passos, e não pode falar. Não importa o que você veja ou aconteça. Entendeu? — Na luz fraca do luar, ele enxergou o branco dos olhos, e o olhar de Elle sério e solene.

Nico concordou com a cabeça. Ela pegou a mão do menino e apertou uma vez, com delicadeza. — Muito bem, vamos.

Os dois prosseguiram mais adiante pelo beco até uma portinha meio empenada nas dobradiças enferrujadas. Elle meteu a mão debaixo do manto; quando a mão surgiu novamente, os dedos tinham um bocado de uma substância escura que ela passou nas dobradiças. A mulher empurrou a porta, que abriu relutantemente, porém em silêncio. Elle entrou e fez um gesto para Nico segui-la.

O cheiro no interior provocou ânsia de vômito no menino: havia algo morto e apodrecendo por perto, e pelo menos uma vez ele ficou contente por estar escuro demais para ser capaz de enxergar direito, embora sentisse medo de tropeçar no que estivesse morto ali. Elle pegou Nico pela mão novamente, e ele seguiu de perto a mulher até uma escada que mal conseguiu ver. Os dois subiram e chegaram a uma porta; o menino viu Elle inclinar-se ao seu lado e mexer por alguns momentos com uns pedaços de arame dentro da fechadura. Houve um clique baixinho, e Elle empurrou a porta devagar. Nico viu-se andando rápido atrás dela por um corredor estreito e escuro até parar diante de uma porta. — Quando eu abrir estar porta — sussurrou a mulher com voz rouca —, eu preciso que você fique aqui no corredor. Não se mova, não importa o que aconteça. Não diga nada. Apenas escute. Escute. Entendeu?

Nico concordou com a cabeça, calado. Elle novamente se agachou ao lado da porta com os arames; outra vez houve um clique. Ela abriu e entrou de mansinho, deixou a porta aberta. O menino não conseguiu ver nada lá dentro, embora tivesse apertado os olhos com força. Alguém no cômodo respirava alto, como se estivesse dormindo. A própria respiração de Nico parecia terrivelmente alta, e se Elle estivesse fazendo algum barulho ao andar pelo aposento, ele não foi capaz de escutar. O menino segurou o batente assustado e com vontade de desobedecer Elle e chamá-la, mas o medo sufocou a garganta.

Houve um barulhinho, um grunhido de susto, e depois a voz de Elle. — Isso mesmo. — Nico ouviu alguém falar baixinho, parecia um pouco com Elle, mas o tom de voz era grave e baixo. — Isso é uma faca no seu pescoço, e se gritar, ou sequer mexer as mãos, você morre. Faça o que eu disser e talvez você viva. Se entendeu, balance a cabeça. — Houve outra pausa, e então: — Ótimo. Eu sei quem e o que você é. Andei de olho em você. Agora, eu quero saber outra coisa. Conhece um menino chamado Nico Morel? Responda: sim ou não. E baixinho.

Nico arfou ao ouvir o próprio nome. Ele escutou a pessoa meio que sussurrar uma resposta: — Sim.

Com aquela única palavra, o menino reconheceu a voz: Talis. Ele quase pulou dentro do quarto, mas se lembrou do aviso de Elle e permaneceu agachado ao lado da porta.

— Ótimo. Você ainda continuará vivo — sussurrou a mulher para Talis. — Ah! Não se mexa; lembre-se do que eu disse. Eu odiaria que você se cortasse acidentalmente. Você dividiu a cama com a matarh do menino?

— Sim.

— Você a ama? Responda de verdade agora.

Houve uma hesitação, e Nico ficou nervoso. Depois: — Amo.

— E o garoto? Você se importa com ele?

A resposta foi mais rápida e enfática. — Sim. O garoto é... — A voz foi sumindo até um longo silêncio.

— O garoto é o quê?

— Meu filho. E sim, eu me importo com ele. Foi por isso que mandei Nico e Serafina embora, para que ficassem a salvo.

— Mas ele voltou aqui, para esta cidade. Você descobriu que Nico retornou após o numetodo pegá-lo. Sabia que o embaixador ca’Vliomani queria falar com você, mas não respondeu. Você abandonou o menino para salvar a própria pele. — Nico percebeu que Elle falava mais por causa dele mesmo, para que ouvisse a resposta de Talis.

O menino ouviu o farfalhar de pano e palha quando, apesar do aviso de Elle, Talis se mexeu. — Opa! Não. Isso não é verdade. Opa! Calma! Você está certa, eu sei que Nico estava aqui e não respondi ao embaixador, mas não pelas razões que disse, e sim porque...

— Por quê?

— Eu percebi as consequências de tentar fazer isso. Percebi que, se fosse até o numetodo, coisas piores teriam acontecido: para Nico, para mim, para todos nós. Se eu pudesse ter recuperado Nico com segurança, eu teria feito isso. Eu sabia que o embaixador trataria bem o menino. Sabia que Nico não seria maltratado se eu permanecesse escondido; mas se eu fosse atrás dele, se tentasse resgatá-lo, eu não sabia o que aconteceria. Nico poderia se machucar ou coisa pior. Poderia ter havido consequências terríveis.

— Você sabe disso por causa de magia. Magia ocidental. — Nico quase foi capaz de ver Talis fazer que sim com a cabeça. Era difícil ficar parado em silêncio e escutar. O menino queria ir até Talis, até Elle, mas também queria escutar o que ele diria. — E você viu este momento em seus feitiços? Você me viu? — perguntou Elle na voz estranha e rouca.

— Não. Eu continuei a ver Nico na tigela premonitória, como se ele estivesse próximo, mas havia algo ao redor, algo que o protegia.

— Então você me viu sim. Eu protejo Nico. E continuarei a proteger.

— Onde está ele? — perguntou Talis. — Leve-me até Nico!

— Por quê? Por que eu deveria fazer isso?

— Porque... — Nico ouviu Talis engolir em seco. — ... Porque Nico deve ficar com pessoas que conhece. Eu posso levá-lo de volta à matarh dele.

— Você faria isso?

— Sim.

— Então eu torço, pelo seu bem, que você cumpra promessas.

Após a resposta de Elle, ninguém disse nada, embora Nico tenha pensado que ouviu movimentos rápidos e furtivos. Ele espiou na escuridão até que manchas de cores nadaram diante de seus olhos, enquanto tentava ver. Ouviu Talis se remexer, ouviu o homem falar uma palavra em outra língua, e Nico sentiu um arrepio, como se fosse tocado por uma brisa fria e invisível. De repente, houve uma luz intensa, que parecia emanar do próprio Talis. Ele estava sentado na cama, com os cobertores reunidos em volta da cintura e dois pequenos filetes de sangue que escorriam do pescoço para o peito, e a luz vinha de um pequeno foco que brilhava na palma da mão, virada para cima. Elle não estava mais no quarto, embora as cortinas tremulassem em frente a uma janela aberta, perto da cama. Talis viu Nico no corredor e ficou boquiaberto. — Nico!

Nico correu para ele, chorando.

 

Audric ca’Dakwi

O PAPEL FARFALHOU na mão de Audric enquanto ele o segurava de forma que sua mamatarh Marguerite também lesse. Ouviu a kraljica respirar fundo, irritada. — Confirmamos que o selo nesta mensagem é genuinamente de Francesca ca’Cellibrecca — dizia Sigourney enquanto ele lia a missiva. — E também recebemos uma confirmação independente de que o antigo regente ca’Rudka... perdão, Rudka... realmente está em Brezno e teve uma reunião com o hïrzg, a a’hïrzg e o archigos. Quanto ao caso amoroso que ela alega haver entre o archigos e a a’hïrzg Allesandra... bem, quanto a isso só podemos especular.

O papel tremeu na mão de Audric. A mamatarh encarava o neto com um olhar furioso. — A senhora acredita nisso? — Ele perguntou para Marguerite, mas foi Sigourney quem respondeu.

— Não temos motivo para não acreditar.

— Bem, eu tenho uma razão: o mestre ci’Blaylock martelou muito bem essa história na minha cabeça. O vatarh de Francesca ca’Cellibrecca traiu o meu vatarh e todos os Domínios em Passe a’Fiume. — Seu dedo bateu no pergaminho. — Agora ela quer se aliar a nós? Quer uma recompensa?

— Se ela estiver certa, kraljiki, acho que devemos agradecê-la pelo aviso. Francesca pode nos ajudar, sendo tão íntima dos círculos de poder de Brezno.

— A senhora realmente acha que haverá guerra? — perguntou Audric, que odiou o jeito que soou: como uma criança preocupada.

— Você não é uma criança. Não é mais. Agora você deve ser o kraljiki — disse Marguerite para o neto, e ele concordou com a cabeça.

Audric falou com a voz mais grave e séria possível. — O novo hïrzg é um tolo se pensa que pode fazer isso. Nós iremos esmagá-lo. Mandaremos o hïrzg de volta para Firenzcia, sangrando e derrotado.

— Estas são bravas palavras, kraljiki Audric — disse Sigourney ao concordar com a cabeça, embora Audric tenha achado que ela não parecesse convencida, pela expressão no rosto. — Tenho certeza de que o senhor está certo, mas também devemos torcer para que a situação não chegue a esse ponto. — A conselheira inclinou a cabeça na direção do quadro, no cavalete ao lado dele. — Com a ajuda da vajica ca’Cellibrecca, talvez possamos impor diplomacia a Firenzcia. Sua mamatarh sabia disso; ela não usava força a não ser que fosse necessário.

— Não diga para mim o que ela faria — disparou Audric. Ele tossiu com a ferocidade das palavras e teve que apertar o lenço contra os lábios até o espasmo passar. Quando terminou, o kraljiki continuou, com menos volume na voz e a garganta dolorida pelo acesso. — Eu conheço melhor a minha mamatarh. Sou eu quem a compreende. É comigo que ela fala. Não com a senhora.

Sigourney ergueu as mãos e arregalou os olhos pela explosão de Audric. — Eu não quis sugerir outra coisa, kraljiki. É apenas que... — A conselheira falou mais baixo e inclinou-se na direção de Audric, como se temesse que alguém pudesse escutar, embora só houvesse os três na sala. — Precisamos tomar cuidado aqui. É possível que isso não seja nada ou que sejam as suspeitas de uma esposa que acha que perdeu a confiança do marido, especialmente se os rumores que envolvem o archigos ca’Cellibrecca e Allesandra forem verdade. Temos que levar em consideração os motivos da vajica ca’Cellibrecca.

— Sergei Rudka está em Brezno — disparou Audric. — Eu quero Rudka aqui. Quero Rudka na Bastida novamente, e dessa vez vou garantir que ele vivencie todos os prazeres das celas subterrâneas.

— Sim, sim — dizia Sigourney, mas Audric mal ouviu a conselheira, que tagarelava como se tentasse acalmar uma criança à beira de um ataque. Ela continuava falando, mas o kraljiki não ouvia nada. Sigourney começou a lembrá-lo de Sergei, a agir como se ela estivesse no Trono do Sol, e não ele. Talvez Audric tivesse que jogá-la na Bastida também. Agora que ele foi reconhecido como kraljiki, talvez jogasse todo o Conselho dos Ca’ lá dentro. Deixe que eles se reúnam e tramem nas pedras da torre principal e vejam se gostam disso. Sergei provou que era um traidor e pagaria por isso; Audric jurou que veria o sofrimento do homem em pessoa, talvez até ajudasse o torturador. Assistiria a Sergei se contorcer de sofrimento na mesa, e depois adoraria ver os corvos arrancando a carne de seus ossos enquanto o corpo balançaria na jaula na Pontica Kralji.

— Sim, você terá tudo isso — falou Marguerite. A boca contorceu-se em um sorriso momentâneo. — Você é o kraljiki agora, e eles não podem lhe negar nada. Você fincará a bandeira dos Domínios na própria cova do hïrzg. Da sua espada escorregará o sangue daqueles que tentarem impedi-lo.

— Sim — disse Audric para a mamatarh. — Eu prometo.

— O quê? — perguntou Sigourney. Ela parecia assustada ao ser interrompida. — O que o senhor promete, kraljiki?

Audric queria tossir, podia sentir a vontade na garganta e nos pulmões, mas se conteve. — Eu prometo que aqueles que tentarem me impedirem serão destruídos. É isso o que prometo. — Ele encarou os olhos da conselheira fixamente. Audric esperava ver medo ali, queria ver, mas não foi o que percebeu no rosto de Sigourney. Havia apenas uma avaliação silenciosa, e talvez pena. Isso deixou o kraljiki irritado, e a emoção provocou espasmos de tosse novamente. Ele sentiu dificuldade para respirar, sentiu a borda da visão escurecer, e pensou que fosse desmaiar completamente.

Enquanto tossia seco no lenço, praticamente com o corpo dobrado, Audric de repente sentiu a mão de Sigourney afagar seu cabelo.

— Eu sei como essa doença deve incomodar, kraljiki. Audric. Eu sei. — Sigourney puxou Audric, que resistiu por um momento.

— Você tem que ser forte. Não pode deixar que vejam sua fraqueza, ou eles a explorarão.

Mas Audric descobriu que queria esse toque de matarh e se permitiu ser aninhado por Sigourney, como se ela abraçasse um dos próprios filhos. O calor da conselheira era um alívio, e Audric ouviu um soluço que percebeu com um susto que era dele. Sigourney ouviu também, evidentemente. — Shh... tudo bem. Estamos só nós dois aqui. Só nós dois. Se precisa chorar, eu compreendo. Compreendo sim... Eu chamarei o archigos e mandarei que ele traga aquela téni de volta aqui.

Os dedos da conselheira afastaram o cabelo da testa do kraljiki. — Seja forte... — Mas era difícil ser forte o tempo todo, e ele nunca teve o carinho de matarh, e seu vatarh sempre esteve cercado por chevarittai, pelos ca’ e co’ e pelos criados. Enquanto Sigourney o abraçava, Audric abriu os olhos e viu o retrato de Marguerite. Ela olhava o neto com seriedade, frieza e reprovação. A kraljica balançou a cabeça lentamente. — Meu verdadeiro herdeiro não faria isso. Isso é fraqueza. Meu verdadeiro herdeiro saberia como deve agir. — A reprovação ardeu dentro de Audric.

Ele afastou-se de Sigourney, com tanta força que a mulher cambaleou para trás e quase caiu.

— Não! — berrou Audric. — Não. Faremos como eu quero quanto a esta questão. Mandaremos uma exigência ao hïrzg: ele tem que devolver Sergei para nós, ou eu irei pegá-lo. A senhora me escutou? Eu mesmo irei lá, à frente da Garde Civile, e arrancarei Rudka das mãos deles. — A força de Marguerite preencheu o neto neste momento, e ele ficou de pé, sem tossir. — Mande o comandante vir até mim, para que ele comece a reunir as tropas. Quero que a senhora escreva as exigências; mandaremos por mensagem rápida hoje. Daremos um mês para eles devolverem Sergei. Não mais do que isso.

— Kraljiki, o senhor está agindo rápido demais. Precisamos estudar mais essa situação, esperar...

— Esperar? — A palavra foi dita por ele e pela mamatarh ao mesmo tempo. — Não podemos esperar, vajica. E aqueles que se opuserem a mim ou se recusarem a ir comigo, eu considerarei nada mais do que traidores. Espero ver um rascunho da exigência à Terceira Chamada. Fui claro?

A conselheira encarou o kraljiki.

— Ah, finalmente você vê medo nos traços do rosto dela. Você agiu bem, Audric.

— Claríssimo, kraljiki — respondeu Sigourney. — Claríssimo.

 

Varina ci’Pallo

— ISSO MESMO... Com o cântico, pense nas fibras da madeira sendo abertas como se você afastasse uma cortina.

Varina falou baixinho para encorajar Karl, enquanto ele entoava as palavras mágicas e olhava fixamente para a bengala na mão direita, enquanto a esquerda executava o gestual necessário. Ela viu a fibra da madeira tremer e se separar, com uma flexibilidade estranha e desconcertante. Viu o esforço que Karl usou para criar o feitiço; ele ofegava e suava intensamente, como se tivesse corrido o circuito inteiro da Avi a’Parete.

— Agora, essa parte é mais complicada: mantenha a madeira separada enquanto coloca dentro o feitiço que você já preparou — disse Varina. Ele não olhou de volta para ela; Varina sabia que Karl não ousaria desviar o olhar do cajado: ou a madeira se juntaria outra vez e a bengala se estilhaçaria completamente. Ainda havia farpas nos dedos de Karl das últimas tentativas. — Vá em frente — continuou ela. — Você deve ser capaz de sentir o feitiço de luz que preparou. Eu sempre sinto como se fosse uma pequenina bola de energia na cabeça, pronta para estourar. Imagine a bola saindo de sua mente e entrando no espaço que você acabou de criar na bengala. Imagine a bola se aninhando ali. Com cuidado. Ótimo. Ótimo. E... solte tudo!

Karl encerrou o cântico e deixou a mão cair ao lado do corpo. A fenda na madeira fechou-se novamente, fazendo um som como duas tábuas batendo juntas, e a bengala estava inteira e intacta em sua mão, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Karl desmoronou na cadeira onde estava sentado. Ele secou a testa com a manga da bashta enquanto Varina ria, batendo as palmas uma vez. Karl ficou sentado ali pelo que pareceu ser várias marcas da ampulheta, enquanto tentava recuperar o fôlego.

— Você conseguiu dessa vez — falou Varina.

— Tomara que sim.

— Quer testar para ter certeza? Basta segurar a bengala e falar a palavra de ativação.

— Depois de todo aquele transtorno? — disse Karl. — Acho que simplesmente vou acreditar em você, por enquanto. — Ele suspirou, deixou a cabeça pender e fechou os olhos. — Por Cénzi, isso foi difícil. Não admira que Mahri tivesse aquela aparência.

Varina riu novamente ao ouvir isso, mas ouviu uma certa amargura involuntária no som. Ela tocou o próprio rosto e acompanhou o traçado das rugas que não eram visíveis há um ano. Enterrou a preocupação nas palavras: — É uma questão de encontrar a palavra e os gestos corretos para mover a energia, só que você deve conter o feitiço e segurar o objeto a ser enfeitiçado ao mesmo tempo; isso é o que torna difícil. Pelo que sabemos dos ocidentais, eles atribuem o poder a um de seus deuses, assim como os ténis fazem aqui, mas é apenas uma questão do cântico certo, dos movimentos corretos. Questão de ciência, não de fé. A vantagem é que, assim que a tarefa é cumprida, é o objeto que contém o feitiço, não o feiticeiro, e desde que, antes de mais nada, o objeto seja de qualidade e não se quebre depois, é concebível que ele consiga conter o feitiço indefinidamente, desconfio eu. Ainda assim... — Os dedos passaram novamente sobre as rugas do rosto e pentearam o cabelo grisalho e seco para trás. — É um jeito caro demais de fazer as coisas, se quer saber.

— Eu entendo — falou Karl. — Eu me sinto completamente exaurido.

Karl não entendia. Não poderia entender. Não ainda. Varina sorriu novamente. Esticou o braço como se fosse dar um tapinha em sua mão, mas recuou no último instante. Isto fazia parte da dança incômoda que os dois faziam há dias agora.

Eles tinham voltado a Nessântico há dez dias. Os dois retornaram à cidade com Serafina, que voltou a morar na antiga casa. A mulher convidou Varina e Karl para ficar com ela, uma oferta que eles aceitaram — os antigos locais frequentados pelos numetodos sem dúvida estavam sendo vigiados pela Garde Kralji, e os dois não viram absolutamente nenhum numetodo no Velho Distrito. Eles vasculharam a vizinhança com Serafina, perguntaram sobre Nico, mas ninguém se lembrava de ter visto o menino, certamente não depois do dia em que Varina e Karl ajudaram o regente a escapar da Bastida. Se Nico realmente retornou a Nessântico, como Varina sabia, ele parecia ter desaparecido de alguma forma; se Talis ainda estava na cidade, ele também permanecia escondido.

E quanto a Varina... após a incômoda conversa em Ville Paisli, ela não parecia saber exatamente como agir perto de Karl. Ter admitido que queria mais do que sua amizade. . . Por que ela disse aquilo para ele? Karl olhava Varina de um jeito esquisito agora, como se lembrasse de todas as conversas que tiveram ao longo dos anos e reinterpretasse os diálogos, como se encarasse as conversas à luz dessa revelação e ficasse pensando.

Por que você contou para ele? Por que admitiu?

Ela afastou a mão da mão de Karl. Ele começou a esticar o braço na direção dela. — Varina...

— Voltei! — O chamado soou assim que a porta da sala foi aberta e Serafina entrou. Ela carregava uma sacola de pano com uma bisnaga de pão protuberante. Varina viu que a mulher olhou esquisito para os dois antes de andar até a mesa e pousar a sacola ali. Serafina tirou a bisnaga de pão, depois meia rodela de queijo e um saco de papel com amoras-do-brejo. Sem falar nada, Karl e Varina observaram Serafina, que suspirou e balançou a cabeça.

— O que está acontecendo? — perguntou ela.

— Eu não sei do que você está falando — falou Varina. Ela perguntou-se se Serafina tinha visto os dois trabalhando no feitiço, mas a mulher balançava a cabeça com um sorriso irônico.

— Vocês dois — disse Serafina enquanto olhava de Varina para Karl. — É óbvio que não são casados, não importa o que tenham dito para minha irmã, lá em Ville Paisli. Mas também é óbvio que existe algo entre vocês, e que nenhum dos dois sabe o que fazer a respeito disso. Eu entendo: foi assim comigo e Talis, a princípio. Eu fui muito magoada por um antigo amor que não se importava comigo, apenas com ele mesmo, e pensei que seria assim com todo mundo. Mas Talis... é um bom homem. Ele se importava comigo, e quando Nico nasceu, ele foi um bom vatarh também. Mas aquele maldito numetodo... — Ela mordeu o lábio inferior, enquanto Varina olhava para Karl, erguendo uma sobrancelha.

— O numetodo? — perguntou Karl.

— Talis disse que o embaixador tentou matá-lo; é por isso que ele mandou a mim e a Nico embora, porque pensava que os numetodos viriam atrás dele, e, uma vez que o embaixador era amigo do regente ca’Rudka, que a Garde Kralji viria atrás dele também. Eu acho que isso é algo que ele não tem mais com que se preocupar... — acrescentou Serafina com um sorriso irônico. — O kraljiki parece gostar do regente e do embaixador ainda menos do que Talis.

— Talis não entrou em contato com você? — insistiu Karl.

Serafina negou com a cabeça. — Ele entrará em contato quando achar que é seguro. Talis saberá que estou aqui em breve, se já não souber. Talvez tenha encontrado Nico também. — Ela suspirou, e Varina viu a mulher pestanejar para conter as lágrimas. — De qualquer forma, eu estava dizendo que vejo vocês dois darem voltas um ao redor do outro como se estivessem passeando pela Avi a’Parete e... bem, eu fiquei contente por finalmente admitir que estava apaixonada por Talis. Foi a melhor coisa que fiz em muito tempo. É isso.

Serafina sorriu e deu tapinhas na mão de Varina, que ainda estava em seu ombro. — Eu irei ao açougueiro para ver o que ele tem. Depois vou procurar por Nico em volta do Parque do Templo; ele sempre gostou de ir lá.

— Eu irei com você — falou Varina, mas Serafina balançou a cabeça.

— Não. Eu gostaria de ficar um pouco sozinha. Voltarei para casa antes da Terceira Chamada, e podemos preparar o jantar então.

Serafina sorriu para os dois novamente, pegou a sacola de pano e saiu dos aposentos outra vez. Eles ouviram o barulho da fechadura quando a mulher saiu; Varina sentiu o olhar de Karl e perguntou — O que faremos se encontrarmos Talis, Karl? Ou se ela encontrar Nico? Serafina ama Talis, e Nico nos reconheceria. O que faremos então?

— Eu não sei. Eu não sei de mais nada.

Varina balançou ao ouvir isso, e o silêncio entre eles, aos poucos, cresceu. Ela sentiu seu peso, o silêncio envolveu os dois como as correntes sujas de uma cela da Bastida. Varina ocupou-se ao colocar o pão e o queixo em uma cesta de vime.

— Varina — disse Karl finalmente, e ela parou. — Serafina está certa. É que... — Os dedos bateram na bengala. — Ainda dói sempre que penso em Ana. Ela...

— Eu sei. Eu vi... — Varina começou a falar, depois abaixou o olhar para a mesa. — Algumas vezes, na rua, eu vi as grandes horizontales que você contratava para... — Ela ergueu o olhar novamente. — Para mim, todas pareciam com ela: o mesmo tom de pele; a mesma compleição física.

Karl abaixou o olhar, culpado. — Varina...

— Não. — Ela interrompeu. — Eu entendia. Entendia mesmo. Mas ainda assim doía, porque você não me enxergava, quando era... — Varina fechou a boca e apertou os lábios. Ela não diria o resto. Não diria.

Karl ergueu as mãos e deixou que caíssem de volta na mesa. — Serafina está certa. Por causa da minha obsessão, eu deixei de ver o que estava bem na frente do meu nariz. Fui estúpido. Pior, fui cruel, e isso é algo que nunca quis ser. Não com você, Varina. Jamais com você. Você sempre foi alguém que eu admirava e em quem confiava. E agora... eu não sei se...

— Eu também não sei — disse ela. Vamos, Varina ouviu uma voz interna. Vamos. Diga. — Karl, nós dois podemos continuar a imaginar ou...

Ela deixou a palavra no ar, tão intensa na mente de Karl como fogo mágico.

Ele estendeu a mão para Varina.

Ela pegou.

 

Enéas co’Kinnear

O SEGUNDO CÉNZIDI. O dia em que ele deveria se encontrar com o kraljiki.

Este é o seu momento. Hoje, eu o tomarei em Meus braços, e você ficará eternamente feliz e em paz. Hoje...

— Obrigado, Cénzi — sussurrou Enéas agradecido. — Obrigado. Eu sou Seu criado, Seu instrumento.

Ele pegou o nitro em pó, o carvão e o enxofre; misturou todos cuidadosamente com urina velha, como Cénzi instruiu, até criar a areia negra dos ocidentais. Enfiou bolos da areia negra em uma bolsa de couro a tiracolo, que depois colocou sobre o uniforme. Ensaiou na mente o feitiço de fogo dado por Cénzi até saber os gestos e o cântico e ser capaz de executar o encantamento simples em poucos instantes. Sim, isso demonstraria ao kralji o que os ocidentais podiam fazer. Faria Nessântico se dar conta de como essa guerra ficou importante e perigosa.

Então, finalmente, Enéas arrumou o quarto, para que o local parecesse organizado quando viessem investigá-lo depois.

Ao caminhar para sua audiência no palácio do kraljiki, ele permitiu-se apreciar os locais interessantes de Nessântico, absorveu tudo que a cidade que tanto amava tinha para oferecer. Enéas passeou pela margem norte da Ilha A’Kralji ao sair do apartamento, olhou com carinho para as torres com portões da Pontica Mordei e viu uma barcaça cheia de caixotes passar sob a travessia de pedra trabalhada. O A’Sele reluzia à luz do sol, com ondinhas que brilhavam e dançavam. Casais estavam sentados de braços dados na grama da margem, perdidos na presença uns dos outros. Um quarteto de e’ténis passou correndo por Enéas a caminho de alguma tarefa, os robes verdes tremulavam em volta dos tornozelos, um leve rastro de incenso ficou para trás. Ele ouviu a voz eterna e caótica da cidade, o som de milhares de vozes que falavam ao mesmo tempo.

Enéas passou pelo Velho Templo e ergueu o olhar para o domo inacreditável que o artesão co’Brunelli construía, o maior do mundo — se não entrasse em colapso sob o terrível peso da alvenaria. Ele fechou a cara uma vez, ao ver um artista de rua que equilibrava bolas acesas pelo próprio malabarista através de um feitiço — aquilo era serviço de numetodo, não foi feito pelas preces de um téni, e incomodava Enéas ver tal coisa feita publicamente, sem que qualquer espectador ficasse incomodado com a cena.

A archigos Ana permitiu que as pessoas perdessem a noção da verdade e da fé. Ela passava a mão na cabeça dos numetodos e permitia que sua heresia se espalhasse — e é por isso que os Domínios e a Fé estão partidos em dois e quebrados. Eu mandei os ocidentais como um sinal e um aviso. Hoje, você levará a eles o Meu alerta final.

A voz falou em tom baixo e sinistro na cabeça de Enéas. Ele fez o sinal de Cénzi com uma cara feia para o malabarista e para o público em volta antes de ir embora.

O Palácio do Kraljiki era branco e dourado contra um céu que parecia pintado. Enéas esteve uma vez anteriormente no palácio, como um e’offizier ajudante de ordens que acompanhava seu a’offizier em uma reunião do Conselho dos Ca’, mas essa seria a primeira vez que ele estaria realmente diante do Trono do Sol. Enéas deu sua Lettre a’Approche ao garda nos portões laterais, que a verificou, passou um dedo pelo selo em alto relevo e prestou continência a ele. — O senhor é aguardado, o’offizier co’Kinnear — disse o homem, gesticulando. Um criado jovem veio correndo, com o uniforme dourado e azul da equipe do kraljiki. Enéas seguiu o garoto pelos jardins podados e esculpidos com topiarias e arranjos de flores, com vários cortesãos ca’ e co’ passeando pelos caminhos de seixos brancos. Ele foi conduzido pelo guia por uma porta lateral para o interior do palácio em si, depois por um corredor de mármore rosa-claro, com um piso lustradíssimo e lâmpadas mágicas, dispostas poucos passos umas das outras, que não estavam acesas, pois havia luz suficiente que entrava pelas janelas nas duas pontas do corredor. — Espere aqui, o’offizier — disse o menino ao parar diante de uma porta com dois gardai em posição de sentido. — A recepção pública está praticamente encerrada. Verei se o kraljiki está pronto para receber o senhor. — Os gardai abriram a porta e o criado entrou. Enéas vislumbrou um grupo de suplicantes e ouviu o burburinho baixo de conversas sussurradas; ao longe, alguém falava mais alto: a voz de um menino, rouca e interrompida por tosses. Ele pensou ter visto o Trono do Sol, reluzente em contraste com a meia penumbra das janelas fechadas do resto do salão. A porta foi fechada novamente antes que Enéas pudesse ver mais.

— Como está a guerra, o’offizier? — perguntou um garda da porta. — Todo mundo está esperando um navio expresso dos Hellins, mas ele não chega.

— Ele não chegará — disse Enéas.

Os dois gardai entreolharam-se. — O’offizier?

— Ele não chegará — repetiu Enéas. — Cénzi já me disse isso.

Os gardai entreolharam-se novamente. Enéas viu uma rápida revirada de olhos. — Ah, Cénzi disse para o senhor. Entendi.

— O senhor não fala com Cénzi, e’offizier? — perguntou Éneas para o homem. — Então tenho pena do senhor.

A porta foi aberta novamente e interrompeu qualquer réplica que o garda viesse a dar. Não surgiu o garoto, mas sim um homem mais velho, com a insígnia do kraljiki no uniforme. — Sou Marlon — disse ele. — O kraljiki está pronto para o senhor. Siga-me.

Os gardai mantiveram a porta aberta para Enéas passar. O salão ainda estava lotado, com grupos de ca’ e co’ e por quem teve a sorte de ter o nome incluído na lista de suplicantes do segundo cénzidi. Eles viram Enéas entrar atrás de Marlon, com um misto de curiosidade e rancor quando ficou claro que o o’offizier estava sendo levado diretamente para o Trono do Sol.

As janelas do salão estavam parcialmente fechadas, de maneira que o aposento estava escuro e abafado. No fundo do salão, o Trono do Sol reluzia com seu brilho amarelo solar e destacava a silhueta de um rapaz. Enéas sabia que o kraljiki Audric era jovem, mas mesmo assim se assustou com sua aparência. Ele parecia pequeno para a idade, com peitoral largo, porém magro, e tinha um rosto encovado e olheiras. A testa suava, mas o menino parecia mais febril do que encalorado.

Havia um integrante do Conselho dos Ca’ à esquerda do kraljiki: uma mulher mais velha, com cabelo obviamente tingido de preto, que olhava fixamente para Enéas, com o olhar predatório de um falcão, embora ele não a reconhecesse. Um retrato da kraljica Marguerite estava à direita de Audric. O impacto da pintura era impressionante: Enéas nunca tinha visto algo tão realista e sólido — tinha mais presença do que a mulher do outro lado do trono. Enéas pensou que estava sendo observado pela kraljica ao se aproximar, e a sensação não foi agradável. Isso fez com que ele quisesse abraçar a bolsa que carregava; fez com que quisesse dar meia volta e fugir.

Você não pode. Eu não permitirei. Cénzi rugiu em sua mente, e Enéas balançou a cabeça como um cachorro tentando se livrar de pulgas.

O kraljiki pigarreou quando o o’offizier se aproximou, um som líquido. Ele tossiu uma vez, e Enéas ouviu o barulho de catarro nos pulmões do menino. Audric estava com a boca semiaberta e segurava um lenço de renda com manchas de sangue na mão direita. — O’offizier co’Kinnear — falou o kraljiki quando Enéas se aproximou do tablado e se curvou. — O archigos Kenne me disse que o senhor veio da guerra dos Hellins com notícias para nós. — O kraljiki falava pausadamente e devagar, parava muitas vezes para tomar fôlego e, ocasionalmente, para conter uma tosse com o lenço. — Ouvimos falar de seu belo desempenho na Garde Civile e saudamos o senhor por servir ao trono. Fico contente em lhe informar que assinei sua Lettre a’Chevaritt para que entre em vigor imediatamente.

Enéas curvou-se novamente. — Kraljiki, sinto-me honrado, e louvado seja Cénzi, que torna tudo possível.

— Sim — respondeu Audric. — Também ouvimos falar de sua grande devoção à fé concénziana, e que um dia o senhor considerou seguir carreira como téni. Os Domínios estão felizes que tenha escolhido uma carreira marcial em vez disso.

— Eu continuo servindo a Cénzi, de uma forma ou de outra — falou Enéas e inclinou a cabeça.

O kraljiki, com uma aparência entediada, dava a impressão de estar ouvindo outra pessoa. O menino deu uma olhadela para o quadro de Marguerite, concordou com a cabeça e disse — Sim, acho que sim. — Enéas não tinha certeza se Audric se dirigiu a ele ou não. Ele hesitou, e o kraljiki voltou sua atenção para Enéas. — Suas notícias, o’offizier? E quanto aos Hellins? Nós não sabemos de nada há mais de um mês.

— Eu trouxe algo para o senhor — disse Enéas. Ele deu um tapinha na bolsa de couro, com cuidado, quase um afago. Tirou a alça pela cabeça e esticou a bolsa na direção de Audric. — Se eu puder me aproximar?

O kraljiki fez que sim com a cabeça, e Enéas subiu na plataforma do Trono do Sol. Agora, mais de perto, ele sentiu o cheiro de doença em volta de Audric: o odor de putrefação, o mau hálito. O o’offizier fingiu não notar e entregou a bolsa para Audric, que a colocou no colo. O kraljiki espiou o interior e enfiou a mão para sentir o que havia ali dentro. — Tijolos de areia? — perguntou ele com a testa franzida, intrigado. Audric contraiu o nariz ao sentir o cheiro. — Terra negra?

— Não — falou Enéas baixinho. — Deixe-me mostrar para o senhor...

Com o chamado da Voz de Cénzi dentro de sua cabeça, ele começou o cântico rapidamente, com gestos bruscos. Pelo rabo do olho, Enéas viu a mulher à esquerda do kraljiki levar um susto, depois se afastar do trono. Ouviu alguém atrás dele na plateia gritar. Audric abriu a boca como se estivesse prestes a falar.

Um fogo intenso surgiu entre as mãos de Enéas. Ele inclinou-se para frente, segurou o fogo sobre a boca aberta da bolsa e deixou cair.

Cénzi rugiu Sua satisfação. O mundo explodiu em som e luz eternos.

 

A Pedra Branca

ELA VIGIOU Talis nos dias que se seguiram.

A Pedra Branca descobriu que não podia simplesmente devolver Nico ao homem e deixar o menino de lado. As vozes da pedra debocharam de sua preocupação. Fynn foi especialmente sarcástico e cruel. — Você quer uma família? Então agora a assassina vai se preocupar com as outras pessoas? A assassina descobriu o amor, agora que tem um bastardo no útero? — Ele gargalhou de felicidade. — Você virou uma tola, mulher. Olhe o que minha família fez comigo! A criança que você carrega irá traí-la alegremente da mesma forma, um dia. Família! — Fynn riu novamente, os demais se juntaram a ele em um coro debochado.

— Calem-se! — disse ela para todas as vozes, o que atraiu os olhares das pessoas à sua volta na rua. A Pedra Branca devolveu a atenção com uma cara feia. Ela abraçou o estômago em um gesto protetor e ficou assustada, como sempre, com a curva inchada onde antes havia um abdômen atlético e reto. Já sentia um leve movimento ali: a filha de Jan. Sua filha. — Vocês não sabem. Não têm como saber.

Quando pensava na criança, nascida e viva, era sempre uma menina, mas com algumas feições de Nico também, como se fossem irmãos estranhos. — Eu abriguei o menino quando ele precisava de alguém — falou ela para as vozes. — Sou responsável por ele agora. Eu fiz essa escolha.

As vozes debocharam dela. Gargalharam.

A Pedra Branca vinha observando o apartamento de Talis desde que deixou Nico lá. Ela abandonou o próprio apartamento e alugou um quarto em cima do de Talis, embora tomasse cuidado para que o menino não a visse entrar ou sair do prédio. Fez um buraco no chão para que pudesse vigiá-los e ouvi-los lá embaixo. E era o que fazia, pronta para agir caso ouvisse Talis maltratar Nico de qualquer maneira, pronta para surgir como a Pedra Branca para tirar a vida do homem, furiosa e vingativa. Mas ela não ouviu nada que a fizesse temer pelo menino.

Não diretamente, de qualquer forma.

Através de Nico, ela já sabia que os numetodos andaram caçando Talis. Sabia que ele era um ocidental e usuário da magia daquele povo, e que os Domínios estavam em guerra com os ocidentais nos Hellins. Por si só, isso já seria um perigo para Nico. Portanto, a Pedra Branca observava.

No segundo cénzidi do mês, ela seguiu os dois quando Nico levou Talis ao antigo apartamento da Pedra Branca, ela os observou das sombras do beco à frente quando eles surgiram novamente. O menino balançou a cabeça, confuso, e gesticulou com os braços enquanto falava com o vatarh. Naquela tarde, pelo buraquinho, ela ouviu a conversa dos dois lá embaixo. — Eu não entendo — disse Nico. — Era lá que Elle morava, Talis. De verdade. Eu estive lá.

— Eu acredito em você, Nico, mas ela não está mais lá — respondeu Talis. A Pedra Branca notou a preocupação na voz do homem e foi capaz de imaginá-lo esfregando os cortes em cicatrização no pescoço enquanto falava. Ela ouviu o comentário implícito nas palavras: ela é perigosa. Ela poderia ter me matado.

— Eu gosto de Elle — disse Nico. — Ela foi boazinha comigo.

— Fico feliz que Elle tenha sido boazinha. Fico feliz que ela tenha trazido você até mim, mas...

Qualquer que fosse a objeção, Talis não disse. A Pedra Branca sorriu diante dessa atitude. — Mas ela é louca — falaram as vozes. — E a loucura está crescendo.

Ela pegou a pedra na bolsinha com força, como se pudesse estrangular as vozes com os dedos, que ficaram brancos com a pressão.

A Pedra Branca não queria ouvir mais. Continuaria a vigiar, sim, mas por enquanto parecia que Nico estava a salvo com Talis. Ela saiu de mansinho do quarto, desceu correndo as escadas e saiu pela porta dos fundos do prédio. Cruzou rapidamente as ruas do Velho Distrito, distanciou-se das áreas principais e entrou nas profundezas tortuosas onde ruas estreitas faziam curvas e se enroscavam e os prédios eram escuros, antigos e pequenos. Ela ouviu os próprios pensamentos, as vozes dentro da cabeça, a conversa ao redor. — Matarh! — ela ouviu o grito de uma criança, e por um momento pensou que fosse Nico. Ela virou-se com um sorriso e os braços abertos para abraçá-lo.

Não era Nico. Era alguma outra criança, quase da mesma idade. — Matarh! — berrou o menino novamente, e uma jovem veio correndo da porta de um prédio próximo e pegou a criança nos braços. Os pés do menino balançaram quando ele foi abraçado por ela.

A Pedra Branca viu a cena e abraçou a si mesma, involuntariamente, em solidariedade. Ela queria sentir prazer com essa cena, que deveria ser bastante comum, mas o que sentiu foi uma onda forte de inveja. — Sim, isso aí é o que você nunca terá — vociferou Fynn dentro dela, os outros se juntaram a ele. — Jamais poderá ter esse amor. Ninguém jamais amará você desta maneira. Nem mesmo a criança que carrega. Jamais.

— Não é verdade — disse ela para as vozes e sentiu lágrimas escorrerem pelas bochechas. — Não, não é verdade.

— É sim. É sim. — Um coro de negativa. — É sim.

A Pedra Branca deu meia-volta e fugiu da cena, perseguida pelas vozes. Andou às pressas, sem saber sequer aonde ia, correu pelas feiras lotadas e por avenidas meio desertas, passou por lojas e comércios. Ela finalmente foi parar na margem norte do A’Sele, perto da Pontica Kralji. Lá, sem se importar com a lama e o cheiro fétido, ela se sentou e abraçou os joelhos, tentou ignorar as vozes que gritavam na cabeça enquanto balançava para frente e para trás. Se alguém a visse, pensaria que era louca e a deixaria em paz. Ficou sentada ali por um bom tempo, os pensamentos eram frenéticos e caóticos, até ser acalmada pela exaustão e as vozes sumirem. Ficou sentada, ofegante, enquanto esfregava a barriga inchada e imaginava a vida ali dentro.

— Eu vou proteger você. Vou mantê-la a salvo — falou ela para a filha.

Em algum lugar do outro lado do A’Sele, na Ilha A’Kralji, quase que como uma resposta, veio o som repentino de um trovão, e a Pedra Branca viu uma fumaça negra subir de algum ponto entre o amontoado de prédios da ilha. Não muito tempo depois, as trompas da cidade começaram a ecoar, embora já passasse da Segunda Chamada.

Ela se perguntou o que teria acontecido.


??? COMBATE ???

Audric ca’Dakwi

Niente

Kenne ca’Fionta

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ALGUÉM ESTAVA GRITANDO. Sem parar.

Quando Audric abriu os olhos, tudo estava tingido de vermelho, como se o mundo tivesse sido pintado com sangue. Coágulos nadavam sobre a sua visão. Sua respiração era fraca e estridente, ele mal conseguia aspirar. Audric parecia estar nos próprios aposentos, na própria cama, mas não conseguia mexer o corpo de forma alguma. O rosto coçava, e ele queria erguer a mão para coçar, mas não conseguia erguer nenhuma das mãos ou mexer os pés. Tinha medo de levantar a cabeça e olhar para baixo, medo do que poderia ver.

E a dor... Havia tanta dor, e Audric queria gritar, mas só conseguia gemer, um lamento fraco e eterno. Sentiu lágrimas quentes escorrerem pelo rosto.

— Você não pode morrer. Não pode... — A voz dela estava tão rouca e hesitante quanto a dele, um mero sussurro.

— Mamatarh? — perguntou Audric. — Onde a senhora está? Marlon? Seaton? Onde está a kraljica Marguerite?

A voz veio de uma distância irreal. Os ouvidos estavam tomados por um rugido contínuo, como se a cidade estivesse caindo em volta dele. — Marlon? Seaton? — chamou Audric de novo. A dor agigantou-se, como uma enorme onda na arrebentação. O kraljiki tentou gritar, mas não saiu nada da boca aberta.

Um rosto surgiu sobre Audric, que piscou. Ele pensou ter reconhecido o archigos Kenne. Cânticos de ténis misturaram-se ao rugido nos ouvidos. — Archigos?

— Sim, kraljiki. Eu vim assim que soube. — Audric mal conseguia ouvir o archigos, as palavras ficaram perdidas no rugido nos ouvidos.

— O que aconteceu? — Cada uma das três palavras pesava tanto quanto os grandes blocos de mármore da fachada do palácio. Audric mal conseguiu colocá-las para fora. Ele fechou os olhos.

— Ainda não temos certeza, kraljiki. O o’offizier co’Kinnear... ele talvez fosse um numetodo ou... — A voz do archigos sumiu. Audric abriu os olhos novamente; a boca de Kenne se movia como se ele ainda estivesse falando, mas o kraljiki só conseguia ouvir o rugido vermelho, que aumentou, e com o ruído veio a dor novamente, ele tentou gritar junto com o rugido, mas saiu apenas um arquejar. — ... jamais saberemos como... a conselheira ca’Ludovici está gravemente ferida... Marlon e Seaton, mortos... — dizia o archigos, mas Audric já não ouvia.

Ele vislumbrou o quadro da mamatarh. Estava apoiado contra a parede perto da cama. A moldura grossa tinha sido quebrada do lado esquerdo, e havia grandes rasgos desfiados na tela, as feridas cruzavam o rosto de Marguerite. Audric gemeu de novo. — Não! — Ele tentou gritar, como se a negação pudesse afastar e mudar tudo.

O kraljiki lembrou. Não tinha certeza. O o’offizier que se aproximou do Trono do Sol, um clarão... depois nada, até agora.

— Você não pode morrer...!

A dor entrou correndo novamente, desta vez ele sentiu o corpo inteiro tremer e sacudir, o corpo arqueou-se, e o archigos pressionou Audric para baixo, berrando com urgência com outra pessoa no quarto. — ... o que você puder fazer... o Ilmodo... Cénzi perdoará...

A dor ameaçou parti-lo ao meio, quebrá-lo como um galho no inverno, mas de repente foi embora. Sumiu. Os olhos estavam abertos, ele viu o archigos Kenne gritar com o curandeiro do palácio e a téni de robe verde, havia outras pessoas no quarto, todas gritavam, mas Audric não conseguia escutar nada, nada além do rugido cada vez mais alto. — Você não pode morrer. — E a dor finalmente foi embora. Audric quis erguer a mão até a mamatarh, mas o corpo ainda não se movia, ele sequer conseguia respirar, embora os pulmões doessem, o kraljiki tentou... tentou... e...

 

Niente

ELE TORCEU PARA que a tomada da ilha de Karnmor fosse o suficiente, que o tecuhtli Zolin ficasse satisfeito com a demonstração do poder dos tehuantinos, e que eles pegassem os navios e voltassem para casa. Mas Zolin olhou para o leste, em vez disso. — Nós ferimos o corpo — disse ele —, mas a cabeça permanece, e o corpo se cicatrizará, a não ser que ataquemos. Eu sei o que você dirá, nahual, mas agora é o momento de atacar. Eu sinto isso. Pergunte a Axat. Ela lhe dirá.

Niente olhou na tigela premonitória e polvilhou as ervas sobre a água. Talvez porque a água daqui fosse menos pura, ou talvez porque a terra de seus deuses estivesse distante, ou talvez porque sua habilidade tivesse diminuído, mas novamente as imagens que ele viu refletidas ali eram confusas ou passageiras demais, e Niente ficou incomodado com elas.

... Um menino em um trono brilhante, mas o rosto era um crânio descarnado, e ali: seria o ocidental que ele enfeitiçou? Uma mulher à espreita no fundo da cena, difícil de ver... Mas a água fez um redemoinho e, quando parou novamente, Niente viu outro garoto em outro trono, e também uma mulher atrás dele, com um téni de robe verde e cabelo escuro ao lado dela... Exércitos passavam por uma terra devastada com estandartes que tremulavam, marchavam sobre um solo cheio de corpos... Fogo e um templo, e fileiras de pessoas em robes verdes rezando... Uma grande cidade com um rio que corria no meio, e fumaça que saía dos grandes prédios... Um guerreiro tehuantino no chão, trespassado por uma lança, e o corpo de um nahualli ao lado de um cajado mágico quebrado, mas a água ficou turva agora, e Niente não conseguiu ver os rostos dos que estavam caídos ali para saber quem eram, embora o estômago tenha ficado embrulhado, e de repente ele não quis ver...

— Então? — perguntou Zolin, e Niente tirou os olhos da tigela. O tecuhtli havia entrado na tenda e observava o nahual. A águia de sua patente espalhava asas com penas vermelhas até as bochechas, enquanto o bico se abria na testa como se para dar um grito feroz.

Eles estavam acampados à beira de um grande rio largo que um dos orientais capturados disse se chamar A’Sele. Segundo informaram, bem longe, rio acima, estava Nessântico, a capital dos Domínios. A frota tehuantina estava ancorada nas proximidades, perto do ponto onde o A’Sele desembocava no Mar Médio, com os cascos baixos na linha d’água com a pilhagem de Karnmor.

Eles deixaram a cidade de Karnor em ruínas há um punhado de dias. A cidade foi violada e saqueada, mas não tomada; o resto da grande ilha foi deixado completamente incólume. Ao contrário, Zolin levou o exército de volta para os navios, saiu do porto de Karnor e contornou Karnmor até a boca do A’Sele, onde o exército seguiu para terra firme mais uma vez. Eles encontraram pouca resistência. O povo dos Domínios desapareceu diante dos tehuantinos como neve na primavera, as pessoas recuaram e sumiram nas florestas e estradas remotas do terreno, abandonaram os vilarejos com seus prédios e casas de formato estranho. Essa era uma terra que tinha sido domada há gerações: com campos e fazendas abundantes, com estradas largas, pavimentadas por paralelepípedos dentro dos vilarejos e cercadas por muretas de pedra do lado de fora. Era uma terra domesticada, diferente das encostas das Montanhas Escudo, mais parecida com as fazendas das grandes cidades em volta do Mar Interior ou dos canais de Tlaxcala, a capital construída no próprio mar.

— Nahual Niente?

Ele levou um susto e percebeu que ainda olhava para a tigela, embora visse apenas seu reflexo confuso e arruinado pela magia, com o olho esquerdo opaco que estava branco de uma maneira assustadora. Uma gota de suor caiu da testa e pingou na água, o que fez tremer a imagem de Niente. Ele ergueu a cabeça e falou — Eu vi uma batalha. E um rei-menino no trono. O rosto era um crânio.

— Ah, então talvez seu oriental tenha cumprido a tarefa?

Niente deu de ombros.

— A batalha, quem ganhou?

— Eu não sei. Eu vi... vi um guerreiro morto e um nahualli morto.

Zolin olhou com desdém e disse — Guerreiros sempre morrem. Nahualli também. É como são as coisas. — ele parou e franziu os olhos, o que movimentou as asas da águia. — Fui eu quem você viu?

Niente balançou a cabeça. — Não sei — respondeu, mas não explicou mais.

— Você nos viu voltando para casa de navio? — perguntou o tecuhtli.

— Não. — Outra resposta curta, Zolin concordou com a cabeça.

— Você não quer estar aqui, não é? Pensa que estou cometendo um erro.

Niente jogou fora a água da tigela premonitória. Ele a secou com a borda da camisa e perguntou-se se deveria dar uma resposta direta para Zolin. O nahual jamais tinha sido senão honesto com Necalli, mas Necalli não tinha o temperamento perigoso de Zolin. — Estamos muito longe de casa, em uma terra estranha.

— Uma terra que não ofereceu quase resistência alguma — falou Zolin. Ele gesticulou com os braços para leste. — Essa grande cidade dos orientais já deve saber que estamos aqui, mas não vejo exército algum diante de nós.

— O senhor verá. E não temos reforços atrás de nós, nenhum guerreiro ou nahualli novos para substituir os caídos. Eu vi os castelos e as fortificações dos orientais na tigela premonitória, tecuhtli. Nós tivemos a vantagem do elemento surpresa em Karnor; isso não existe mais. Eles estarão preparados para nós.

— E sua areia negra irá demolir as muralhas e reduzir as torres a ruínas.

— Eu vi o fogo das forjas e a reza de seus ténis-guerreiros. Vi os exércitos, e eles eram enormes, espalhados sobre a terra como uma floresta de aço. Somos apenas alguns milhares aqui, tecuhtli, e os orientais têm muito mais. Agora nós nos encontramos como eles em nossa terra, longe de nossos recursos. Duvido que nós nos saiamos melhor do que eles lá.

— É isso o que Axat mostra para você? — Zolin apontou para a tigela nas mãos de Niente, inscrita com os símbolos da lua da deusa. — Você vê, inegavelmente, a minha derrota na água?

Niente balançou a cabeça negativamente.

— Ótimo. — Zolin mexeu os músculos do maxilar e flexionou as asas da águia. — Eu sei que você preferiria que voltássemos para casa, nahual. Eu compreendo, e você não é o único a ter essa opinião. Eu escuto vocês, todos vocês. Todos nós sentimos saudade de casa e das nossas famílias, eu mesmo não menos do que qualquer outra pessoa. Mas meu dever é nos proteger da melhor maneira possível, e essa... essa me parece a melhor maneira. Eu gostaria que você não mentisse e me dissesse se os deuses insistem que a retirada é a atitude mais prudente.

— Eu digo o que eu vejo, tecuhtli. Sempre. Nada mais. Nada menos. Eu jurei a Axat que seguiria e serviria ao tecuhtli, não importa quem seja ele ou o que ele nos mande fazer.

Zolin deu um riso meio debochado. Ele esfregou o topo da cabeça, como se fizesse carinho na águia pintada na pele. — Você jurou a Necalli, não a mim. Niente, se você quiser ser liberado do juramento agora... — ele deu de ombros. — Um dos outros nahualli pode me servir.

A ameaça pairou no ar úmido. Niente sabia o que Zolin estava oferecendo: nenhum nahual abria mão do título e sobrevivia; Niente perguntou-se qual dos nahualli sussurrava no ouvido de Zolin. Certamente havia alguns que achavam que podiam ser o nahual. — Se o tecuhtli acha que outro nahualli é mais adequado para servi-lo, então este nahualli deve trazer seu cajado mágico aqui, e veremos qual de nós dois Axat prefere.

Zolin riu, mas havia um constrangimento na reação, o que indicou para Niente que o homem estava tentado. — Por enquanto, eu deixarei que você me sirva, nahual Niente. E você verá que estou certo. Eu irei até essa grande cidade dos orientais, vou destruí-la e deixá-la queimando, como fiz com Munereo e Karnor. Sou uma grande lança lenta, que irá varar a armadura, a carne, os órgãos dos orientais até trespassar o coração deles. O povo dos Domínios entenderá que seu deus é fraco e errado. Eles abandonarão a nossa terra e a de nossos primos para sempre. Pagarão tributos para nós, com medo de que um tecuhtli traga outro exército aqui novamente. É o que farei, e é isso que você verá na sua tigela premonitória, nahual. Você verá.

Niente abaixou a cabeça. — Como eu disse, tecuhtli, eu olharei e direi tudo que Axat me permitir ver, para que o senhor conheça os futuros possíveis para as escolhas que fizer. Isso é tudo o que qualquer nahualli pode fazer.

Zolin torceu o nariz. Ele lançou um olhar confiante para Niente, com os olhos cercados pelas penas das asas da águia. — Você verá — repetiu o tecuhtli. — Isso é o que eu lhe digo.

 

Kenne ca’Fionta

A CULPA REMOÍA O ESTÔMAGO e fez com que ele afastasse o prato.

— Kenne, você precisa comer. — Seu velho companheiro e amante, Petros co’Magnaoi, u’téni da fé concénziana, esticou o braço sobre a toalha de mesa branca para pegar a mão de Kenne. — Você foi apenas um peão no plano de Cénzi. Não tinha como saber.

O archigos balançou a cabeça. A culpa não é sua... Você não tinha como saber... Era o que todo mundo dizia para ele nos últimos dias. Às vezes, as palavras eram ditas com genuína sinceridade; em outras — como na ocasião em que ele foi visitar Sigourney ca’Ludovici em seu leito, enquanto a conselheira se recuperava dos ferimentos —, Kenne pensava ter ouvido um mero verniz de educação sobre um profundo rancor.

— Eu mandei o homem para o kraljiki, Petros. Mandei. Ninguém mais, e...

— Kenne — interrompeu Petros. Ele balançou a cabeça magra e aquilina, o movimento mexeu o cabelo comprido até o queixo que Kenne gostava tanto, que há muito tempo ficou branco, mas que era tão farto na cabeça do homem quanto escasso na do próprio archigos. Olhos azul-claros, ainda afiados e inteligentes, sustentaram o olhar de Kenne e recusaram-se a deixar que o archigos virasse o rosto. — Pare com isso. Você pode continuar repetindo sem parar as mesmas palavras, mas nenhuma irá mudar o que aconteceu. Você fez o que qualquer um de nós teria feito. A reputação desse Enéas co’Kinnear era sólida, e ele disse que tinha notícias dos Hellins, algo que o kraljiki precisava saber desesperadamente. Se eu estivesse no seu lugar, teria feito a mesma coisa.

— Mas você não fez. Ele veio a mim.

— Ele foi, e você não tinha como saber o que Enéas era ou o que faria, assim como seus offiziers superiores não sabiam. O que precisamos fazer agora é garantir que a fúria da população não vire um banho de sangue. Já há vozes no Velho Templo que pedem por um novo expurgo dos numetodos, e a mesma coisa também pode ser ouvida no Conselho dos Ca’. Sua voz é necessária como o líder da Fé, Kenne. A voz da sanidade.

Kenne sentiu o aperto dos dedos de Petros na mão quando não respondeu. — Kenne, meu amor, Cénzi lhe deu um teste agora. Você sabe que a archigos não foi morta pelos numetodos, não com Karl amando-a tanto. Esse Enéas, e o que ele fez com o kraljiki... Parece a mesma coisa que fizeram com Ana. Essa poeira negra que achamos no templo depois; ouvi dizer que também encontraram sobre os pedaços do Trono do Sol...

— Eu matei Audric — murmurou Kenne. — Matei seus camareiros, os suplicantes que estavam próximos. E quanto à pobre Sigourney... — O rosto de Sigourney surgiu diante dele, estraçalhado pelas lascas do Trono do Sol, com o olho direito enfaixado (e perdido, de acordo com o que o curandeiro sussurrou para Kenne depois), a mão direita em bandagens, com dois dedos visivelmente faltando, o jeito horrível como o lençol ficava plano na altura do joelho direito.

A culpa era dele, não importa o que Sigourney possa ter sussurrado com sua voz arruinada. Isso era mais terrível do que o assassinato de Ana, embora este tenha sido bem horrível.

Culpa dele.

Kenne começou a falar com Petros, mas não conseguiu, a voz embargou. Petros apertou a mão de Kenne, levantou-a e deu um beijo.

Alguém bateu na porta. — Archigos? — O chamado veio baixo entre as tábuas entalhadas e envernizadas. Petros afastou a mão rapidamente e recostou-se na cadeira.

— Entre — falou Kenne.

Era uma das integrantes da equipe de o’ténis do archigos: Sara ce’Fallin, sua assistente. Ela deu uma olhadela para Petros, cumprimentou-o com um aceno e fez o sinal de Cénzi para Kenne. — Sinto incomodar seu jantar, archigos, u’téni, mas... — Ela mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça.

— O que foi? — perguntou Kenne com delicadeza.

— Há novidades — respondeu Sara. — Um mensageiro chegou do Conselho dos Ca’; o senhor deve ir ao palácio imediatamente.

— O que foi? — perguntou ele. — Firenzcia?

Ela balançou a cabeça e disse — Não. O mensageiro não disse mais nada além de que era sobre Karnmor.


Ele esperava ser informado de que o vulcão há muito tempo adormecido que abrigava a cidade de Karnor havia despertado novamente. Mas as notícias eram bem piores.

Kenne mal conseguiu acreditar nas palavras do mensageiro, que estava diante dos conselheiros na câmara do Conselho dentro do palácio, mas o cansaço, o rosto sujo de terra e a fuligem, o horror nos olhos e na voz... Estes elementos ele não podia negar.

A cidade de Karnor era uma ruína fumegante, de acordo com o homem, com milhares de mortos, especialmente por causa do ataque dos ténis-guerreiros ocidentais. Pior ainda, o exército ocidental estava agora no continente e avançava lentamente A’Sele acima. A cidade de Villembouchure era a próxima no caminho deles.

— Muitos dos navios em que eles vieram — disse o mensageiro — eram nossos. Eu reconheci os traços do Marguerite quando ele saiu do porto de Karnor para ir aos Hellins há um ano, mas agora ele carrega a bandeira de águia dos ocidentais e foi pintado com cores berrantes. É por isso que não têm vindo navios expressos dos Hellins; os ocidentais devem ter destruído nossas forças lá.

— Não há provas disso — disparou Aleron ca’Gerodi, que olhou feio para o homem, como se o desafiasse a contradizer a afirmação. — Nenhuma.

O mensageiro deu de ombros e falou — Eu vi o que vi, conselheiro. Fui um dos que fugiu de Karnor quando a cidade foi tomada e queimada. Eu encontrei um barco na margem leste da ilha; vi as velas da frota ocidental entrarem na boca do A’Sele e fogueiras na margem norte.

— Ele não mente — disse uma voz assim que as portas da câmara foram abertas. Kenne virou-se e viu Sigourney entrar, sendo carregada em uma liteira. Ela estava sentada com a coluna reta apoiada em travesseiros; o rosto era um horror de linhas vermelhas; o cabelo, sem a tintura negra, tinha agora espessas mechas grisalhas. Seu único olho encarava fixamente os presentes; o esquerdo estava coberto por um tapa-olho acolchoado. — Há outros mensageiros chegando à cidade neste mesmo instante. Eu falei com um deles: um homem dos promontórios da costa. Ele disse a mesma coisa: o exército ocidental está aqui nos Domínios e marcha pela margem norte do A’Sele.

— Conselheira ca’Ludovici — falou Kenne preocupado. — A senhora não deveria estar aqui. Seus ferimentos...

— Meus ferimentos não são importantes — respondeu ela ao abanar uma mão enfaixada e com poucos dedos. — O ervanário me deu extrato de cuore della volpe, que aliviou grande parte da dor. Nós perdemos nosso kraljiki, o regente traidor conspira com Firenzcia, e os ocidentais ousaram vir aqui. Meus ferimentos? — Ela cuspiu. Kenne e os demais viram o arco da cusparada, que foi cair nas lajotas de pedra. — Eles não são nada — vociferou a conselheira com a voz rouca e hesitante. — Não podemos esperar e vacilar aqui. Temos que agir. — Ela fez uma pausa para tomar fôlego. — E a primeira coisa que temos que fazer é nomear um kralji, uma vez que Audric não indicou seu sucessor.

Kenne soube então o que fez Sigourney ignorar os ferimentos e sair do leito.

Ao olhar em volta da câmara para os demais integrantes do Conselho, ficou óbvio que o mesmo pensamento ocorreu a eles. Também ficou óbvio para Kenne quem os conselheiros escolheriam. Aleron concordou com a cabeça, assim como Odil ca’Mazzak; os outros olhavam intensamente para a mesa, como se algo importante tivesse sido rabiscado ali. Foi Odil quem finalmente falou.

— A senhora é a Téte do Conselho dos Ca’, conselheira ca’Ludovici, e a pessoa em quem o kraljiki Audric mais confiava. Eu concordo, um novo kralji deve ser nomeado imediatamente... e eu acredito que deva ser uma kraljica. — Ele olhou em volta da câmara. — Eu proponho que a vajica Sigourney ca’Ludovici seja nomeada kraljica Sigourney. Ela tem o sobrenome, é a parente mais próxima aqui e tem demonstrado amplamente as qualidades de liderança de que precisamos.

— Eu concordo — falou Aleron imediatamente ao se levantar, e então todos ficaram de pé, e Sigourney sorriu, apesar da dor e dos ferimentos em cicatrização, e ergueu as mãos para eles em sinal de falsa humildade, e estava feito; antes que Kenne pudesse dizer qualquer coisa. Não que os conselheiros fossem dar ouvidos a ele, pensou o archigos, com tristeza.

Sua voz não era uma em que o Conselho prestasse atenção.

O olhar caolho de Sigourney percorreu a sala, e quando encontrou o archigos, ela franziu a testa momentaneamente. Kenne notou a acusação e a culpa no rosto da mulher e soube de mais uma coisa.

Ele não seria archigos por muito tempo. A nova kraljica encontraria uma forma de derrubá-lo.

 

Karl ca’Vliomani

SERAFINA SORRIU PARA ELES no momento em que os dois entraram na cozinha do pequeno apartamento, embora Karl pudesse ver uma tristeza, quase inveja, quando ela ergueu os lábios. Serafina penteou o cabelo para trás com as costas da mão, ainda segurando a faca com que cortava as verduras. Karl sentiu o cheiro do guisado que borbulhava na panela preta sobre o fogo. — Bom dia — disse Serafina. — É bom ver vocês dois juntos.

Varina deu o braço a Karl e aconchegou-se nele. — É, sim. Bem mais do que eu esperava.

Karl também sorriu e perguntou-se se alguma das duas mulheres era capaz de ver as emoções misturadas em sua própria felicidade: a pequena sensação incômoda de que, de alguma forma, estava traindo Ana, embora ele e a archigos jamais tenham tido intimidade física. Ana também teria sorrido para você. Também teria dito para ir em frente. Teria ficado feliz por você. Era o que ele dizia para si mesmo, mas não aliviava a semente de culpa.

— Eu fui traída muitas vezes e magoada muitas vezes — disse Ana uma vez para ele, não muito depois de Karl retornar da Ilha de Paeti, após descobrir que Kaitlin não o amava mais, que não queria mais que ele fizesse parte da vida dela ou de seus filhos. — Eu não posso lhe dar essa parte de mim, Karl. Ela simplesmente não está mais lá: existem muitas cicatrizes e muita dor. Eu posso ser sua amiga, se isso for o bastante para você. Mas nada mais. Nada mais.

— Você não me ama... — Ele começou a dizer, e Ana balançou a cabeça.

— Eu amo você, sim, mas não dessa maneira. Se você precisa disso, então encontre outra pessoa. Eu entenderia, Karl. De verdade. Sinto muito... — E ele encontrou alívio em outro lugar, nas grandes horizontales que Varina tinha visto. Mas, de alguma forma, Karl não percebeu a pessoa diante de si que também estava interessada nele mais do que um amigo, e de quem ele também gostava...

Agora Varina abraçou Karl novamente. Ele se inclinou e ela virou o rosto para o embaixador. O beijo foi delicado e doce, e a culpa sumiu um pouco novamente. “Se você precisa disso, então encontre outra pessoa...” Talvez um dia, em breve, até mesmo este sussurro fosse embora.

Karl não sabia que precisava tanto disso e desejou ter percebido antes.

— Deixe-me ajudar você, Sera — falou Varina, e seu calor deixou o corpo do embaixador. — Karl, por que não pega uma chaleira para o chá? — Ele observou as duas mulheres por um instante, depois pegou a chaleira, colocou água dentro da jarra e pendurou no suporte sobre o fogo, ao lado do guisado. Encontrou a hortelã e as ervas, colocou no saquinho de linho e amarrou.

— Vou ao mercado comprar um pouco de mel e talvez croissants — disse Karl. — Com o cortejo fúnebre de Audric hoje, aposto que os mercados...

Ele parou.

Uma sombra passou pelas persianas da janela. Karl ouviu passos do lado de fora da porta. Alguém bateu. — Serafina? Serafina, você está aí?

Ele conhecia a voz. Lembrou-se dela.

Serafina deixou cair a faca que segurava. O objeto bateu na mesa e depois no chão, mas Serafina não notou, pois corria para a porta. — Talis!

Ela escancarou a porta; Karl viu o homem parado ali sobre o ombro de Serafina, então a mulher ficou de joelhos, soltando um grito. — Nico! Ó, Nico! — O menino também estava ali e deu um abraço forte na matarh. Ambos choraram.

— Matarh! Eu sabia que a senhora viria procurar por mim. Eu sabia... — Nico viu os dois ao mesmo tempo. — Varina — falou o menino. — Ah. — De repente, ele soltou a matarh. — Talis...

— Eu vi os dois — disse Talis, que encarava Karl. — Serafina, pegue Nico e saia. Agora.

Serafina olhava de Talis para Karl. O homem ergueu a bengala, e Karl percebeu o que aquilo significava, percebeu agora melhor do que nunca. Ele levantou a mão, pronto para lançar o próprio ataque. — O que... — dizia Serafina.

— Apenas saia! — falou Talis. — Agora!

— Não — disse Serafina enquanto segurava Nico com força, e embora parecesse que ela não quisesse outra coisa senão seguir o conselho de Talis, a mulher permaneceu entre os dois. — Eu não vou sair até entender o que está acontecendo.

Talis gesticulou para Karl com a mão livre e falou — Esse desgraçado é o embaixador numetodo, Serafina. Esse é o homem que tentou me matar e a razão pela qual você teve que ir embora da cidade. Ele sequestrou Nico quando voltou aqui e usou o menino como isca para me pegar.

Serafina olhava fixamente para Karl, com a expressão chocada de quem tinha sido traída.

— Isso é verdade? — perguntou ela. — Diga-me.

Karl deu uma olhadela para Varina, que confirmou com a cabeça. — É verdade, em grande parte — respondeu Karl. — Eu sou o embaixador ca’Vliomani. Sou um numetodo, assim como Varina. Nós encontramos Nico aqui enquanto procurávamos por Talis, e, sim, ficamos com ele; embora eu deva chamar a atenção para o fato de que Nico estava sozinho nas ruas quando Varina o encontrou, e nós cuidamos dele, mantivemos o menino alimentado, aquecido e a salvo. Dissemos para as pessoas na vizinhança que o encontramos... e, sim, fizemos isso na esperança de que Talis viesse atrás de Nico, mas ele nunca veio. Quanto a Talis, eu acredito que ele seja o homem que matou a archigos Ana. — Serafina abraçou forte Nico. A confusão lutava com o medo em seu rosto, enquanto ela escutava Karl, o olhar ia de um para o outro. — Agora, pergunte a ele uma coisa para mim — disse Karl. — A verdade. Pergunte a ele quem matou a archigos.

Serafina olhou para Talis, que balançava a cabeça ao dizer — Não, não fui eu. — Mas o rosto da mulher ficou vermelho.

— Você sabia onde Nico estava e não foi até ele? — Serafina berrou baixo para Talis. — Não tentou ajudá-lo? Não me mandou notícias enquanto eu morria de preocupação por ele?

— Eles teriam me matado se eu tivesse ido até ele, Serafina. E talvez Nico também.

— Não. — Varina aproximou-se de Karl. — Você está errado, Talis. Nós só queríamos saber a verdade. Os numetodos estavam sendo culpados pela morte da archigos Ana; nós mesmos corríamos perigo. Eu... nós... jamais teríamos feito qualquer coisa para prejudicar Nico. Jamais. Você sabe disso, não sabe, Nico?

Nico balançou a cabeça enfaticamente sobre o ombro da matarh e disse — Eu sei. Varina foi boa comigo, matarh. Ela disse que tentaria encontrar a senhora... e olhe só, ela conseguiu.

— Talis é um feiticeiro ocidental, Serafina — falou Karl. — O último ocidental parecido com ele que eu conheci foi Mahri, o Maluco, e ele também tentou matar Ana.

À menção do nome de Mahri, a bengala tremeu nas mãos de Talis e os músculos em seu maxilar ficaram retesados. — Você conheceu Mahri?

— Conheci. E conheci Mahri muito bem. E sei que ele não estava aqui pelo bem de Nessântico. E nem você. Sera, sinto muito. Eu sei que você ama este homem, mas você precisa entender o que ele é. Talis é um inimigo dos Domínios, bem mais do que qualquer numetodo.

— Ela sabe o que eu sou — resmungou Talis. — Sera, eu não mudei. Eu amo você de verdade; amo Nico também. Eu o encontrei e vim trazê-lo para você. Se você não estivesse aqui, eu iria para Ville Paisli a seguir para encontrar você. Não sou o monstro que eles estão pintando. — Ele fez uma cara feia para Karl e Varina. — Se eu fosse, não teria esperado; eu teria atacado o embaixador sem me preocupar se você e Nico estavam no caminho. Sera, por favor. Afaste-se.

Em vez disso, ainda com Nico nos braços, ela voltou-se para Karl e Varina e ficou entre os dois e Talis. — Eu conheço Talis. Eu acredito quando ele diz que não matou a archigos. Se vocês querem conversar com ele, bem, aqui está ele. — Serafina fez uma pausa e um carinho na cabeça de Nico. — Eu confiei em vocês dois. Agora peço que confiem em mim.

Karl deu uma nova olhadela para Varina. Ela tinha abaixado as mãos e deu um discreto aceno de cabeça, e Karl também deixou as mãos caírem.

— Tudo bem — falou ele. — Diga para Talis colocar aquela bengala de lado, e nós podemos conversar.

 

Jan ca’Vörl

O TEMPLO EM BREZNO era menor do que o Templo do Archigos em Nessântico, e não tão venerável e sagrado quanto o Velho Templo na Ilha A’Kralji (ou com um domo tão impressionante). Mas o domo de Brezno e vários de seus famosos afrescos foram pintados pelo grande artista firenzciano co’Goslar, e eram impressionantes. As figuras compridas e estranhas de co’Goslar agigantavam-se e contorciam-se sobre os suplicantes no templo, vestidas com roupas transparentes ou peladas: Cénzi, sim, estava em destaque, mas também estavam representadas pessoas em Firenzcia que foram importantes para a fé concénziana. Havia Gareth ca’Lang, o primeiro a’téni de Brezno, com a espada amarrada ao braço sem mão enquanto lutava uma batalha perdida contra os hereges da seita de Karinthia; havia Pewitt, o Desgraçado, sendo atacado pelos moitidis, que devoravam e arrancavam a carne do seu corpo vivo, que debochavam do homem ao consumir seu corpo enquanto ele observava em sofrimento; havia Ursanne ca’Sankt, a grande mártir que muitos imaginavam que seria archigos enquanto viveu, que tentava desesperadamente afastar os estupradores de Tennshah, de cuja união indesejada nasceria o grande starkkapitän firenzciano Adalwulf, que mais tarde expulsaria os tennshas de seus povoados em volta do lago Firenz.

Jan estava cercado por história e tomado por uma fúria movida pela fé. Parecia apropriado. Aos olhos dele, sua reconciliação com a noção de que a matarh tinha a intenção de disputar o Trono do Sol fora uma luta tão titânica quanto qualquer uma das representadas aqui. Jan confrontou Allesandra após a longa conversa com Sergei ca’Rudka, mas, no fim, ele disse que compreendia, mesmo que não aprovasse. Jan não tinha certeza se isso era verdade ou se, depois de várias viradas da ampulheta de discussão, a declaração pelo menos deixou que ele dormisse um pouco, mas a matarh aceitou o que Jan falou.

O hïrzg acompanhou Allesandra ao templo a pedido do archigos e olhava para o domo enquanto os dois aguardavam Semini. — Eu me lembro da primeira vez que vi essas pinturas — falou Jan para tentar quebrar o silêncio incômodo. — Elas me assustavam; pensei que fossem fantasmas. Imaginei que as figuras se mexiam e saíam da pintura para me perseguir... — Jan riu; ele parecia rir muito pouco desde os eventos que culminaram em sua sagração como hïrzg. — Agora apenas acho que são dramáticas demais e nem tão bem pintadas assim.

— Não diga isso para Semini — falou a matarh. — Ele adora co’Goslar... Ah, lá está ele.

Semini veio a passos largos na direção dos dois, saindo detrás do Alto Púlpito no coro. Entre a Segunda e a Terceira Chamadas, o templo ficava geralmente deserto, e os gardai que entraram antes de Jan e Allesandra agora estavam a vários passos de distância, em silêncio, após terem retirado visitantes desgarrados da câmara principal. Os três estavam tão sozinhos quanto parecia possível para Jan ultimamente.

— Meu hïrzg — trovejou Semini, a voz reverberou no domo enquanto ele fazia o sinal de Cénzi para Jan. — E a’hïrzg. — Jan viu o archigos sorrir para ela; Semini parecia prestes a pegar a mão de Allesandra, embora o gesto tivesse sido uma terrível quebra de protocolo. Mas o homem parou a alguns passos cautelosos, mais perto talvez do que deveria estar, mas não tão próximo a ponto de ser extraordinariamente óbvio. Jan sentiu um pouco da irritação voltar; ele nem podia culpar a matarh por arrumar um caso quando o vatarh traiu a esposa tantas vezes. No entanto, ficava incomodado ao saber. A visão dos dois juntos, dos corpos enroscados como o dele esteve com Elissa... Não, Jan sentiu um arrepio e balançou a cabeça para afastar a cena.

— Obrigado por virem — continuou Semini, que ainda olhava mais para Allesandra do que para Jan. — Como eu disse, recebi uma mensagem com, segundo me disseram, uma mensagem idêntica para o hïrzg. Ela está aqui comigo.

Semini entregou um pergaminho enrolado e selado para Jan e observou o hïrzg examinar o selo na cera azul — um punho em uma manopla, o selo de Nessântico desde a época do kraljiki Justi. Jan desenrolou o papel e vasculhou as letras escritas à tinta com uma fúria crescente. Quase ouviu a voz do onczio Fynn crescer dentro dele — Jan sabia como Fynn teria reagido a esta mensagem. Em silêncio, com a boca franzida, ele entregou o pergaminho para Allesandra e ouviu a matarh tomar fôlego quase que imediatamente. Sem dizer uma palavra, ela devolveu a mensagem de volta para o filho.

— Como ele ousa falar conosco dessa maneira? — disparou Jan. Ele abriu as mãos e deixou o papel cair no piso de mármore. A palavra “ousa” ecoou na câmara por muito tempo depois de tê-la dito. O som pareceu agitar os gardai, que se remexeram de um jeito nervoso. — Ele fala conosco como se Nessântico ainda governasse Firenzcia. “Devolvam o antigo regente para nós em um mês ou tomaremos medidas efetivas para recuperá-lo”. Como ele ousa fazer ameaças assim? — Outro eco. — Deixe que ele tente; nós iremos esmagá-lo.

Jan ergueu os olhos para o domo. Fantasmas... Nenhum deles toleraria essa situação; eu também não posso. Isso é um tapa na cara.

— Jan, eu compreendo o que você sente; acredite em mim, eu tive a mesma reação — disse Allesandra.

— “Mas...?” — disparou Jan com raiva ao se voltar para ela. — É isso o que a senhora ia dizer, matarh? “Mas...” que “mas” seria esse?

Em uma reação estranha, ela sorriu. — Meu querido, você soou igualzinho a Fynn, ou talvez ao meu vatarh. Eu já vi os dois rugirem desse mesmo jeito quando se consideravam insultados.

Allesandra ter achado graça só serviu para aumentar a irritação de Jan. Ele olhou atrás de Semini, para o mural depois do Alto Púlpito, para as tiras ensanguentadas da carne de Pewitt presas às garras dos moitidis, e tentou conter a irritação.

— O “mas”, meu filho, é o que vínhamos considerando — continuou ela. — Talvez essa seja simplesmente a oportunidade de que precisávamos. A desculpa para agir.

— A desculpa? — Jan começou a falar, e, por um momento, sentiu-se bem mais novo, uma criança novamente. — Ah. — Essa palavra não produziu eco algum. Flutuou no ar entre eles, perdida na imensidão do templo. Jan abaixou o olhar para o papel meio enrolado sobre o piso de mármore, e a suspeita cresceu dentro dele. — Estranho que uma mensagem como essa levasse exatamente à situação que a senhora queria, matarh. Uma provocação deslavada de Nessântico contra nós. Que maravilhoso senso de oportunidade. — Jan ergueu as sobrancelhas para ela.

Allesandra balançou a cabeça. — Eu não sabia nada sobre essa situação até agora. Não tive nada a ver com isso. Pergunte ao archigos.

Semini concordou com a cabeça rapidamente. — As cartas chegaram seladas através de vias diplomáticas. Se o hïrzg duvida, posso mandar o mensageiro ser trazido aqui.

Jan abanou a mão e desviou os olhos dos dois para os murais no domo. — Não, não há necessidade. É que... — O olhar retornou para a matarh. — Parece que Cénzi quer o que a senhora quer, matarh. — Talvez fosse coincidência. Allesandra parecia genuinamente chocada. Talvez fosse um sinal. Ele não estava contente com essa perspectiva.

— Ah, certamente — respondeu Semini. — Sem saber, o kraljiki agiu como queríamos, ou Cénzi fez com que ele agisse assim. O kraljiki ameaçou a Coalizão e nossa Fé diretamente, e não temos escolha a não ser responder para proteger nossos interesses e fronteiras. Este é o momento, hïrzg. Esta é a ocasião. A maior parte da Garde Civile de Nessântico foi mandada para oeste, para os Hellins; eles levarão tempo para reunir os chevarittai e o restante da Garde Civile, para preparar os ténis-guerreiros que estiverem disponíveis, e para alistar os soldados de infantaria necessários para honrar essa ameaça. — O archigos sorriu e acenou com a cabeça para Allesandra. — Sua matarh sabe disso. É o momento de o senhor demonstrar sua liderança e levar a Garde Civile e os chevarittai de Firenzcia à guerra. O senhor reunificará os Domínios como eles eram antes, hïrzg Jan, e seu nome será lembrado eternamente por isso.

— Eu não sei...

— Eu sei — disse Allesandra com uma voz firme e orgulhosa. — Você está pronto para isso, Jan.

Ele hesitou. Jan ainda estava incomodado por ser usado pela matarh para os objetivos dela; também estava atormentado pela própria incerteza se poderia ser o hïrzg que ele queria ser. “Também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.” Palavras de Sergei. Elas acalmaram Jan. Elas fizeram Jan decidir.

Um instante depois, o hïrzg concordou com a cabeça. — A senhora estava certa naquela noite. Preciso consultar o starkkapitän ca’Damont e os chevarittai. É o que a senhora queria, não é, matarh?

Se Allesandra ouviu um leve deboche na voz do filho, ela não reagiu. — Eu irei com você, Jan. Eu conheço o starkkapitän e conheço a Garde Civile. Posso ser sua mentora nesta situação. Vá e mande Roderigo convocá-los. Eu irei atrás em um instante.

Jan ergueu as sobrancelhas, incomodado por ter sido obviamente dispensado, mas fez o sinal de Cénzi para Semini e uma leve mesura para a matarh. — Obrigado por passar essa informação, archigos. Nós precisaremos de sua força e orientação. Matarh, eu falo com a senhora mais tarde.

Ele foi embora então, com quase todos os gardai à sua volta ao sair do templo. — Seu filho será um belo hïrzg. — Jan ouviu Semini rosnar com sua voz baixa ao chegar às portas. Ele presumiu que o elogio foi calculado para que fosse ouvido e considerado genuíno.

Jan sorriu para si mesmo. Ele seria um belo hïrzg. Ele surpreenderia os dois com o tamanho da competência de sua liderança.

Jan suspeitava que eles poderiam não gostar do resultado.

 

Allesandra ca’Vörl

A PASSAGEM NOS FUNDOS do templo era escura, iluminada apenas eventualmente por lâmpadas com tampas verdes, penduradas em ganchos cimentados na parede. As colunas estriadas ao longo da passagem não deixavam que o caminho fosse visto dos jardins do pátio, localizado entre a asa norte do complexo do templo e o templo em si. As grandes janelas de vitral agigantavam-se escuras sobre Allesandra. Ela quase corria pela passagem, pois não queria ser vista, apesar de ter recebido a garantia de que não haveria ténis na área; suas sandálias de sola de couro macio pisaram silenciosas no granito encerado. Foi fácil sair de mansinho dos próprios aposentos no palácio pelo corredor de serviço, esperar até que não houvesse ninguém de olho para abrir a porta, atravessar a praça correndo e entrar nas ruas de Brezno. Allesandra usava um capuz sobre o cabelo que encobria o rosto, e a tashta era simplória. Ela podia se passar por uma mulher simples correndo para chegar em casa à noite. Semini disse que a porta estaria aberta e informou quais os lugares que os ténis geralmente evitavam. As cerimônias da Terceira Chamada haviam acabado há uma virada da ampulheta.

A a’hïrzg estava quase lá. A uma curva à esquerda na próxima passagem, depois uma subida pela escada até o quarto que Semini mantinha no complexo do templo quando não queria retornar aos próprios aposentos na ala norte.

— Allesandra.

Ela levou um susto diante da voz sibilante. A mão alcançou a faca escondida na faixa da tashta.

— Francesca — disse a a’hïrzg.

Uma silhueta surgiu ao lado de uma das colunas. Na luz difusa, ela viu a mulher, cujas rugas aprofundavam as sombras no rosto. O brilho verdejante das lâmpadas fez Francesca parecer doente. Ela espalmou as mãos, como se mostrasse para Allesandra que não estava armada. — Eu sei — disse Francesca. — Eu sempre soube.

— O que é que você sabe, Francesca?

Ela gargalhou. O som assustou os estorninhos negros que pousavam nas árvores frutíferas do pátio para passar a noite. Eles levantaram voo e esvoaçaram agitados. Allesandra sentiu um cheiro de álcool no hálito forte da mulher. — Não deveríamos brincar de joguinhos, você e eu — falou a mulher. — Não há nada entre mim e Semini há anos, e se você está disposta a abrir as pernas para que aquele velho aríete soque aí dentro, por que devo me importar?

Allesandra sentiu um calor nas bochechas diante da baixaria e respirou fundo pela boca. — Se você não se importa, por que está falando comigo?

A expressão de quem achava graça sumiu do rosto da mulher. Ela torceu o nariz enquanto encarava Allesandra. — Você é bonita. Semini sempre gostou de você; eu ouvi o carinho na voz dele quando você finalmente voltou de Nessântico. As amantes que ele teve depois... sempre achei parecidas com você. Semini achava também, imagino. Eu sei o rosto de quem ele via quando metia nelas. Ah, isso lhe incomoda, não é? Aposto que ele nunca lhe contou isso. — Francesca aproximou-se de Allesandra, que deu um passo para trás, com a mão ainda no cabo de couro da faca. — Aposto que tem muita coisa que ele não te contou.

— Francesca, você está bêbada e eu não quero ter essa conversa. Agora, deixe-me...

A mulher levantou a mão e torceu a boca com desdém. — Ainda não. Olhe para mim. Olhe... — Francesca abanou as mãos na direção do rosto. — Eu fui linda um dia. Ora, eu era a amante do kraljiki Justi; eu poderia ter sido a esposa dele se o meu vatarh tivesse escolhido o lado certo na guerra. Mas ele não escolheu. E agora... — Por um momento, Allesandra pensou que a mulher não fosse falar novamente. Ela ficou parada ali, o corpo cambaleava levemente. — Você acha que conhece meu marido? Não o conhece. Eu vi você quando chegou a notícia da morte da archigos Ana. Vi o horror e a tristeza no seu rostinho bonito. Você sofreu porque gostava daquela megera frígida. Quanto a mim, eu a odiava. Fiquei feliz por saber que ela morreu. Ri alto. Mas você... a archigos Ana lhe tratou bem, não foi? Ela foi uma matarh para você quando sua própria família lhe abandonou. A archigos Ana... Bá! — Francesca franziu os lábios, virou a cabeça e cuspiu no piso. — Ele sabe quem a matou. Assim como eu.

— Quem? — perguntou Ana. A mão foi parar na garganta. Ela achava que sabia a resposta.

Francesca deu um passo cambaleante para frente, quase caiu e segurou na tashta de Allesandra. — Pergunte a ele — rosnou a mulher, o mau hálito tomou as narinas de Allesandra. — Faça Semini lhe contar, e aí veja o que você sente por ele.

A gargalhada de Francesca provocou outra revoada de pássaros assustados, e ela afastou-se de Allesandra com um empurrão. Foi cambaleante na direção da arcada que levava para a ala norte, sem olhar para trás. — Pergunte a ele. — Allesandra ouviu a mulher repetir, as palavras ecoaram pelo pátio.

Ela viu Francesca abrir com violência as portas e ouviu quando foram fechadas ao sair. Allesandra ficou parada ali por vários instantes, enquanto os estorninhos pousavam nas árvores frutíferas novamente e a lua surgia sobre os domos do templo.

Finalmente, Allesandra deu meia-volta e foi embora do templo, de volta para seus aposentos e para os próprios pensamentos.

 

Nico Morel

AO LONGE, Nico podia ouvir cornetas e zinkes enquanto o cortejo fúnebre do kraljiki Audric prosseguia pela Avi a’Parete a alguns quarteirões de distância. Ele imaginou como seria a procissão — todos os ca’ e co’ em desfile atrás da carruagem funerária, as rodas movidas pela magia dos ténis, a nova kraljica Sigourney seguindo na própria carruagem especial. Seria esplêndido aquele cortejo. Uma maravilha. Audric não era muito mais velho do que ele, e Nico imaginou como seria ser tão jovem e ser também kraljiki. Ele perguntou-se como alguém poderia ter odiado tanto Audric a ponto de matá-lo. Nico não conseguia se imaginar odiando uma pessoa tanto assim.

Ninguém mais na sala parecia notar os sons do funeral — ou talvez tenham escolhido ignorá-los.

— Eu não matei a archigos Ana.

Nico estava sentado no colo da matarh. Ela mal o soltou desde que o viu. Não que ele se importasse; estava bem contente de sentar abraçado a ela, protegido. A sensação fez com que Nico percebesse como sentiu falta da matarh, como esteve com medo por tanto tempo. Ele e a matarh estavam sentados à lareira, e o fogo aquecia a lateral do corpo. Talis estava sentado à mesa no centro da sala; Karl e Varina sentaram-se do outro lado. Nico quase podia ver a tensão entre eles, um arco de fogo quase tão quente quanto aquele às suas costas. Sua matarh sentia também; ele notou o arrepio nos músculos dela e a força com que o abraçava, e Nico sabia que ela tinha medo de que alguma coisa fosse acontecer.

— Eu não a matei — repetiu Talis. — É a verdade.

— Certo — respondeu Karl. — E nós simplesmente devemos acreditar porque você disse que é verdade.

Talis deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Se vocês não quiserem acreditar, tudo bem. Continua sendo verdade. Mas... — Talis lambeu os lábios. — Eu sei como ela foi morta e sei quem deve ter sido, pelo menos parcialmente, o responsável.

— Continue — disse Karl.

— Foi com um... — Talis meteu a mão na bolsa presa ao cinto. Nico viu Varina e Karl ficarem tensos com o gesto, e sua matarh ficou em expectativa. Karl ergueu as mãos subitamente, como se estivesse pronto para lançar um feitiço. Talis levou um susto e falou — Sem magia. Eu não usaria, não com Sera e Nico aqui. Eu não usaria.

Após um instante, Karl pousou as mãos na mesa novamente, e Talis abriu a bolsa. Ele retirou uma pequena bolsinha de pano, desamarrou o nó que a fechava e derramou um montinho de pó negro na mesa. Karl olhou fixamente para o pó e disse — Havia uma poeira negra por toda parte do Alto Púlpito e nas roupas de Ana. Aquilo... aquilo era a mesma coisa?

Talis concordou com a cabeça. — Sim. — Ele recolheu tudo, menos uma pitada do pó, e recolocou na bolsa. — Nós chamamos de bosh lumm em nossa língua. Areia negra, na língua de vocês. Aqui... — Da bolsa, Talis retirou uma tigela de latão rasa e larga, marcada com figuras estranhas na borda. Ele espanou o restante do pó para dentro da tigela e colocou no centro da mesa. — Deixo esta parte com vocês. Lancem um pequeno feitiço de fogo na tigela, apenas uma centelha mínima. — Talis deu um breve sorriso. — E não coloque o rosto muito perto, se quiser manter essa barba.

Karl olhou de relance para Varina, obviamente hesitante. Ela voltou-se para a matarh de Nico e perguntou — Sera? Podemos confiar nele?

Nico mais sentiu do que viu a matarh concordar com a cabeça, mas as mãos dela apertaram o filho com mais força ainda no mesmo momento. Varina fez um rápido gesto com a mão e disse uma palavra em outra língua. A palavra soou como “tihn-eh” aos ouvidos de Nico, e assim que Varina falou, uma centelha apareceu entre os dedos. Ela girou a mão na direção da tigela, e a centelha saiu voando.

Assim que a centelha caiu na tigela, houve um clarão e estrondo simultâneos, como se uma trovoada tivesse ocorrido dentro do objeto. A tigela deu um pulo e retiniu, e uma fumaça branca irrompeu. Alguém gritou; Nico não conseguiu dizer quem foi. A matarh virou-se com o barulho para proteger o filho com o corpo. Ela se virou devagar, e o menino conseguiu ver novamente. Karl esticou a mão sobre a mesa, na direção da tigela, de onde ainda saía fumaça. Havia um odor estranho no ar, como Nico imaginava que o mundo subterrâneo dos moitidis cheirasse.

— Isso foi apenas uma pitada da areia negra — dizia Talis. — Eu diria que vocês podem imaginar o que uma grande quantidade pode fazer, mas eu realmente acho que não conseguiriam.

— Eu posso imaginar — falou Karl, que examinava a tigela. Pela maneira como estava virada, Nico viu que o fundo ficou escurecido, como se tivesse sido queimado. O rosto de Karl estava sério quando ele pousou o objeto. — Eu estava lá quando Ana morreu.

Talis franziu os lábios.

Varina afastou a tigela. Ela ergueu a cabeça e pareceu ouvir o som distante do cortejo fúnebre de Audric pela primeira vez. — O kraljiki. — Seus olhos ficaram arregalados. — Os rumores...

— ... é bem possível que sejam verdadeiros, pelo que eu ouvi — completou Talis. — Mas aquilo também não fui eu que fiz. — Ele gesticulou para Nico. — O menino pode dizer. Eu estava com ele quando aconteceu. Nós ouvimos o toque das trompas, não foi, Nico?

O menino concordou com a cabeça.

— Magia ocidental... — sussurrou Karl. Ele pegou a tigela novamente e olhou fixamente para o interior sujo de fuligem, como se procurasse respostas escritas ali. — Nós estamos apenas começando a entendê-la, e eu posso lhe afirmar, Talis, que ela não vem dos deuses, da mesma forma que a magia dos ténis não vem de Cénzi.

— Então vocês ainda não entendem — disse Talis. — Isso não é magia. Pelo menos não a areia negra em si. É tão magia quanto fazer pão, se a pessoa conhece a receita.

— Você disse que sabe quem é o responsável — falou Karl. — Diga o nome.

Talis respirou fundo. — O nome dele é Uly. Ele tem uma barraca no Mercado do Rio. É um ocidental, mandado para cá na mesma época que eu. É um guerreiro. Seu trabalho é informar o tecuhtli; o tecuhtli é o que o seu kraljiki seria se também fosse o comandante da Garde Civile. Eu vim aqui a mando do nahual, o líder da minha ordem, para ajudar Uly e também para descobrir o que aconteceu com Mahri. E... — Talis respirou fundo novamente. — Eu cometi um erro. Fomos nós, os nahualli, os feiticeiros, que descobrimos como criar a areia negra; é um segredo que nós mantivemos. E sim, se outras pessoas pensavam que a areia era mágica, nós não corrigimos o erro. Mas Uly... nós estávamos aqui há muito tempo, e ele era a única pessoa que eu conhecia que falava minha língua, e até eu encontrar Sera... — ele olhou para a matarh de Nico e sorriu — ... ele era a única pessoa que parecia se importar comigo. Eu fiz o que não deveria ter feito. Ajudei Uly a fazer a areia negra. Tentei evitar que ele conhecesse os detalhes, mas... — Talis pegou a tigela da mesa e guardou novamente na bolsa. — Uly não era idiota. Ele pode facilmente ter visto o suficiente para reproduzir o procedimento. Seu trabalho era apenas me fornecer os ingredientes, afinal de contas.

— Você está dizendo que esse tal de Uly assassinou Ana? — perguntou Karl. — É isso que quer que nós acreditemos agora?

Talis deu de ombros. — Estou dizendo que é possível. Provável. Eu sei que não fui eu. E com certeza foi bosh lumm que matou a archigos. Não magia ocidental, nem magia de numetodo também.

Karl cerrou as mãos sobre a mesa. — Onde está esse tal de Uly?

— Eu não o vejo desde que você me atacou — respondeu Talis. — Eu contei para Uly a respeito do ataque e disse que eu desapareceria por um tempo; desde então, não ouvi mais falar dele. Imagino que o melhor lugar para começar a procurá-lo seria o Mercado do Rio, mas... — Ele começou a falar, mas Nico se agitou nos braços da matarh.

— Uly não está lá — falou o menino. Todos olhavam para ele agora, e a matarh soltou mais os braços ao abaixar o olhar para o filho no colo.

— Nico?

— É verdade, matarh. Uly não está lá. Depois que eu saí da casa da tantzia Alisa e andei até aqui, achei que Uly podia me dizer onde Talis estava, mas quando fui ao Mercado do Rio, a barraca de Uly estava vazia e a vendedora de pimentas falou que ele tinha ido embora.

Talis concordou com a cabeça e disse — Eu imaginei que isso aconteceria. Não sei onde ele está. Ainda na cidade, provavelmente, mas onde...

— A senhora das pimentas disse que ele pode estar no mercado do Velho Distrito — informou Nico.

Karl já estava de pé. Agora Talis levantou-se também e falou — Eu não sei se Uly matou Ana, embaixador. Você também não sabe.

— Eu pretendo descobrir.

— Então eu irei com você.

— Por quê? — perguntou Karl. — Para detê-lo caso Uly me diga que foi você, de fato, ou caso ele não tenha a menor ideia de como fazer essa sua areia negra?

— Uly não falará com você, não importa o que fizer com ele — disse Talis. — Uly é um guerreiro, foi treinado para morrer antes. Ele confia em mim. Você? No primeiro momento em que perguntar algo que gere suspeitas, Uly irá matá-lo e fugir. Ou morrerá feliz tentando.

— Eu estarei com Karl — falou Varina, que estava de pé também, de braço dado com ele. — E nós somos mais fortes do que você pensa.

— Vocês precisarão de mim — insistiu Talis.

— Tudo bem — disse Karl finalmente. — Mas não com isso. — Ele apontou para a bengala de Talis.

O homem fechou a cara. — Eu não posso deixar isto aqui. Não deixarei.

— Então ficará com isso.

Talis pareceu considerar a questão por um momento e falou — Tudo bem. Eu deixarei. Só dessa vez. Eu vou.

— Eu vou também — disse Nico.

Todos os três voltaram-se para o menino, e Nico sentiu a matarh abaixar o olhar para ele também. — Não! — disseram os quatro ao mesmo tempo.

 

Niente

A VISÃO NA TIGELA PREMONITÓRIA perturbou Niente. Ele sentiu que o tecuhtli Zolin examinava seu rosto em busca de qualquer sinal do que as visões indicavam e abaixou a cabeça ainda mais no torvelinho de bruma azul que saía da água.

Uma mulher sentada em um trono brilhante, com o rosto horrivelmente desfigurado e contorcido por dor, sem um olho. Um exército avançava pela bruma atrás dela... Ali, um menino e uma mulher mais velha, e atrás dele também um exército, só que com estandartes pretos e prateados, e não o tom azul e dourado dos Domínios... Um homem que usava o colar de uma concha, e com ele — seria possível? — um nahualli que parecia Talis, embora ele estivesse abraçado a uma mulher e uma criança que não eram tehuantinos, e sim orientais...

As imagens vinham rápido demais, e Niente tentou pará-las com a mente, tentou espaçá-las no tempo para mostrar traços do futuro que poderiam acontecer. Ele rezou para Axat e pediu por clareza, pensou no próprio exército e nos navios que vinham pelo rio ali perto...

Os navios iam de um lado para o outro no meio de uma tempestade de fogo no céu. Exércitos deslocavam-se sobre a terra, havia explosões brilhantes de areia negra, uma densa fumaça pairava sobre os campos pisoteados... Mas a bruma parecia se dividir em duas — como às vezes acontecia quando Axat queria mostrar dois resultados possíveis. Ele viu um campo apinhado de corpos de guerreiros tehuantinos e um único navio de sua frota com velas esfarrapadas, que fugia depressa para oeste, na direção do sol poente, enquanto outras embarcações ardiam em chamas laranjas na água... “Oeste... casa...” Ele quase era capaz de ouvir as palavras no vento.

Mas esta visão foi fechada, e outra surgiu...

Na segunda visão, havia uma batalha intensa e sangrenta nos campos diante da cidade, e o exército de azul e dourado recuou para dentro de suas sólidas muralhas... A mesma cidade, agora com muralhas rachadas, e era difícil enxergar através da fumaça e da bruma da visão, mas ele pensou ter vislumbrado o exército tehuantino entrar aos borbotões pelas brechas...

Havia outra cidade ao longe, ainda maior, e parecia atraí-lo...

E lá estava de novo... a imagem de um guerreiro tehuantino morto, com um nahualli caído ao lado dele...

— O que a Senhora está tentando me mostrar, Axat? — perguntou Niente com a voz hesitante.

— Nahual?

Niente ergueu o olhar; a bruma transbordou da tigela e dissipou-se.

O acampamento tehuantino em volta dos dois homens estava barulhento e agitado enquanto o sol fraco tentava penetrar pelas nuvens ralas e altas. Niente viu-se com saudades do sol intenso e mais quente da própria terra; este lugar era mais frio do que ele gostava, como se sugasse o calor do sangue. O tecuhtli Zolin olhava fixamente para o nahual, o branco dos olhos reluzia em contraste com as linhas negras inscritas em volta das órbitas, a águia vermelha no crânio parecia querer alçar voo. Havia ansiedade no rosto dele. De ambos os lados do tecuhtli, estavam Citlali e Mazatl, e seus olhares não eram menos ansiosos. — O que a visão lhe mostrou? — perguntou Zolin. — O que ela disse?

— Muito pouco — respondeu Niente, e o tecuhtli demonstrou irritação ao mostrar os dentes.

— Muito pouco. — Zolin imitou o tom de Niente. — O tecuhtli Necalli costumava me dizer que suas visões na tigela premonitória forneciam estratégias para ele, guiavam a maneira como Necalli dispunha os guerreiros e avançava pelo terreno. Ele disse que você era o nahual de Axat, que nos mostrava o caminho para a vitória. Mas tudo o que você me dá é “muito pouco”.

— Eu não dou nada ao senhor — disse Niente, e Zolin respondeu com uma cara de desdém. — Assim como também não dei nada ao tecuhtli Necalli. Sou apenas o canal de Axat. Eu posso informar o que Axat me mostra, mas a visão não é minha. É Dela. Tudo o que tenho a dar é o que Axat oferece. Se o senhor quiser reclamar sobre ser pouca coisa, fale com Ela.

— Então me diga essa pouca coisa, nahual — falou Zolin. O tecuhtli apontou para leste, onde os olheiros mais avançados disseram que um exército dos Domínios esperava por eles, fora da cidade, a meio dia de marcha de distância. Niente fora a cavalo com Zolin para ver a cidade, que era bem maior do que a maioria dos vilarejos abandonados por onde eles marcharam nos últimos dias, embora não tão elaborada ou grande quanto aquela que Niente tinha visto na tigela premonitória, essa Nessântico onde o kraljiki vivia. Ainda assim, a cidade aninhada atrás das muralhas, e que se esparramava a partir delas, era pelo menos da metade do tamanho de Tlaxcala ou das outras grandes cidades insulares do império tehuantino, e maior que Munereo ou Karnor.

Parecia que o kraljiki não deixaria que eles avançassem mais sem resistência. Se Zolin quisesse essa cidade, deveria lutar por ela. Niente sabia que isso não incomodava de maneira alguma o tecuhtli.

— Eu vislumbrei uma batalha — disse Niente. Ele fechou os olhos e tentou se lembrar das cenas que lampejaram na tigela premonitória. — Na visão de Axat, o exército dos Domínios lutou, mas depois recuou para trás das muralhas da cidade quando investimos contra eles. Eu vi as muralhas rachadas e os tehuantinos entrando...

— Xatli Ket! — Niente parou quando Zolin soltou o grito de guerra de sua classe; Citlali e Mazatl fizeram o mesmo, e o berro foi repetido, cada vez mais fraco, pelos outros guerreiros presentes. — Então Axat mostrou a nossa vitória para você — falou o tecuhtli. Ele deu um tapa na armadura de bambu que cobria o peito.

— Talvez. — Niente apressou-se a dizer. — Mas Ela também me mostrou nosso exército e frota destruídos, e um navio indo depressa para oeste. Tecuhtli, esse também é um futuro possível; um sinal. Se voltarmos agora, se colocarmos nosso exército nos navios e voltarmos para casa, então esse é um futuro que jamais viveremos. Os orientais temerão para sempre ir à nossa terra novamente. Nós já mostramos a eles as consequências; não há mais nada a provar.

Zolin soltou uma risada sarcástica. Citlali franziu a testa, e Mazatl desviou o olhar, como se estivesse enojado. — Recuar, nahual?

— Recuar, não — insistiu Niente. — Entender que demos uma lição nesses orientais com a ruína de Munereo e Karnor e voltar para casa com a vitória.

— Vitória? — Zolin cuspiu no chão entre eles. — Os orientais pensariam que eles obtiveram a vitória, que corremos assim que vimos seu exército.

— Tecuhtli, se formos derrotados aqui, que bem faria para o nosso povo perder o tecuhtli e tantos guerreiros e nahualli?

— Se formos derrotamos, e não seremos, nahual, se você viu corretamente sua visão, então nosso povo encontrará um novo tecuhtli para liderá-los, e eles treinarão novos nahualli nas tradições do X’in Ka, e nós seremos lembrados quando Sakal nos receber em Seu olho flamejante. Isso é o que será feito, não importa a pouca ajuda que você dê. Está com medo, nahual Niente? Será que a visão do exército oriental faz o mijo escorrer quente por suas pernas?

Citlali e Mazatl riram.

— Eu não estou com medo — disse Niente, e era verdade. Não era medo que revirava seu estômago, mas uma sensação de inevitabilidade. Axat tentava alertá-lo, mas Ela não deixava a mensagem clara o suficiente, ou talvez ele estivesse tão distante Dela que a mensagem estava truncada e difícil de discernir. — Tecuhtli, o que o senhor me pedir, eu farei. Quando me pede para interpretar o que vejo na tigela premonitória, eu também o faço.

Zolin torceu o nariz. — Então isso é o que eu lhe digo para fazer, nahual. Encha seu cajado mágico. Prepare a areia negra. Faça as pazes com Axat e Sakal, e você entrará comigo na cidade dos orientais, e depois iremos até o trono do monarca deles.

Niente ouviu as palavras e abaixou a cabeça para aceitá-las. O único navio que fugia depressa para o sol poente... — Eu farei isso, tecuhtli — falou ele, com pesar. — Eu prepararei os nahualli. Dê-me tempo suficiente, e farei o que acredito que Axat deseja que façamos.


CONTINUA

CONEXÕES

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

Niente

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Nico Morel

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Enéas co’Kinnear

A Pedra Branca


Niente

ELE NUNCA ESTEVE NO MAR antes e não tinha certeza se estava gostando totalmente da experiência.

Niente encontrava-se no castelo de popa do galeão capturado dos Domínios, antigamente chamado de Marguerite e agora rebatizado como Yaoyotl — que significava “guerra” em sua própria língua. O Yaoyotl navegava no meio da frota tehuantina; de sua posição, Niente podia observar as longas ondas azuis decoradas com as velas brancas de mais de uma centena de navios. Atrás deles, perdida no horizonte há dias, estava a costa oriental de sua terra e a fumaça desagradável de Munereo, queimada e saqueada, que agora era a cova da Garde Civile dos Domínios, a não ser para os poucos que recuaram para o último pequeno ponto de resistência dos orientais no continente, a cidade de Tobarro. O exército tehuantino tinha tomado Munereo, recuperado toda a terra ao sul e a oeste de suas muralhas e capturado os navios da frota dos Domínios no porto, ao menos aqueles que escaparam do fogo mágico da frota tehuantina ou que não foram postos a pique pelas próprias tripulações e mandados para o fundo do mar quando a derrota era óbvia. A maior parte dos navios que acompanhavam o Yaoyotl era de embarcações chamadas de acalli: navios de dois mastros e velas latinas com que os tehuantinos cruzavam o Mar Ocidental entre as grandes cidades que os invasores orientais nunca viram. Os acalli não conseguiam levar o número de tripulantes ou soldados que os galeões de velas quadradas de Nessântico eram capazes, nem eram tão rápidos, mas eram mais manobráveis, especialmente nas águas rasas da costa ou quando o vento estava contra eles.

Os ventos do Strettosei, no entanto, sopravam constantemente de oeste para leste nesta latitude, e o vento da passagem da frota assobiava pelos cabos tesos que seguravam as velas enquanto as proas dos navios rasgavam longas linhas brancas pelas ondas, que desciam, subiam e desciam novamente, implacáveis e eternas.

Era um movimento que, após vários dias, ainda embrulhava e fazia arder o estômago de Niente. Os braços e as pernas, contorcidos e arruinados pelos esforços do feitiço que colocara no oriental Enéas, doíam quando ele tentava se manter equilibrado no balanço do navio. Dois dos nahualli subalternos estavam no castelo com ele e o observavam enquanto Niente usava a tigela para realizar um feitiço premonitório; ele não ousaria demonstrar a fraqueza no estômago ou no corpo, ou então a notícia chegaria aos outros nahualli, e com o tempo alcançaria o ouvido do tecuhtli Zolin, que também estava no Yaoyotl. O destino de todo nahual esperava por Niente, o destino que talvez tivesse chegado até mesmo a Mahri, ou talvez a Talis também: como um nahualli, cada uso do X’in Ka tinha seu preço, e quanto maior o feitiço, mais caro o preço que os deuses cobravam.

Com o tempo, o preço seria a morte.

O balanço do navio sacudia a água na tigela premonitória e turvava as visões do futuro: aquilo incomodava Niente mais do que a náusea. Ele espiou dentro da água, que espirrava até a borda da tigela de latão. Os olhos não queriam entrar em foco; o esquerdo, turvo desde o encantamento de Enéas, tinha piorado desde o ataque a Munereo. Niente piscou, mas as cenas na tigela recusaram-se a ficar nítidas. Ele resmungou, fechou a cara e jogou fora a água sobre a amurada da popa, enojado. Os outros nahualli ergueram as sobrancelhas, mas não disseram nada. — Eu preciso falar com o tecuhtli — disse Niente. — Levem a tigela para o meu alojamento e limpem-na.

Eles abaixaram a cabeça obedientemente enquanto Niente passava pelos dois, arrastando os pés.

O nahual discutira com o tecuhtli Zolin que a estratégia era idiota, embora não tivesse ousado usar esta palavra. Ele queria desesperadamente voltar para casa, para trás das Montanhas Afiadas, para as grandes cidades em volta do lago. Para Xaria, sua esposa; para os filhos. Para a familiaridade de casa.

Niente não estava sozinho. O guerreiro supremo Citlali tomara a mesma posição, assim como vários dos guerreiros subalternos. — Por que devemos navegar até a terra dos orientais? Tomemos a última cidade que eles mantêm aqui e joguemos seus corpos na grande água. Voltemos para nossas casas e famílias, e se os orientais retornarem para incomodar nossos primos novamente, nós os afugentaremos mais uma vez.

Mas Zolin foi inflexível e declarou — Sakal exige mais de nós. É hora de mostrarmos a estes orientais que podemos machucá-los assim como eles nos machucam. Se alguém é atacado por um lobo, espantá-lo apenas poupa o lobo para um novo ataque, talvez quando ele estiver mais forte ou a pessoa estiver mais fraca. Matar o lobo é a única maneira de estar realmente a salvo.

— Isso não é um lobo — insistiu Niente. — É um monstro de várias cabeças, com um pequeno rosto que nós vimos, e estamos indo para sua toca. Pode ser que ele nos devore completamente.

Zolin resmungou ao ouvir isso. — Fugir do lobo porque se está com medo é a pior estratégia de todas. Isso só oferece ao lobo as costas desprotegidas.

No fim das contas, Zolin convenceu os guerreiros supremos, e Niente não teve escolha a não ser informar os nahualli que a tarefa deles ainda não havia acabado. Ele quase ficou surpreso ao ver que nenhum dos nahualli resolveu desafiá-lo pelo posto de nahual, como consequência.

Os alojamentos do antigo capitão ficavam embaixo do castelo de popa, e era ali que o tecuhtli Zolin tinha se instalado. A mobília oriental fora jogada ao mar e substituída pelas linhas geométricas mais familiares e os desenhos do estilo tehuantino. O aposento estava animado por tons vermelhos e marrons, as cores do sangue e da terra. O cheiro de incenso fez Niente franzir o nariz ao entrar, os criados do tecuhtli prostraram-se nos tapetes jogados sobre as tábuas de madeira.

O tecuhtli Zolin estava reclinado em uma cadeira entalhada em um único bloco de pedra verde, amaciada por travesseiros e cobertores. O rosto e o torso, como os de todos os soldados, eram tatuados com redemoinhos de traços e linhas curvas: um registro do talento em combate e da patente. A cabeça estava raspada, como sempre, e agora era decorada pela tatuagem vermelha da águia de asas abertas. Os guerreiros supremos Citlali e Mazatl estavam falando com ele em voz baixa, mas interromperam a conversa quando Niente entrou. Os rostos tatuados e carrancudos se voltaram para o nahual.

— Ah, nahual Niente — falou o tecuhtli Zolin, gesticulando. Niente cruzou o aposento até o trono e ficou de joelhos. — Levante-se, levante-se. Diga-me, o que os deuses falaram?

Niente balançou a cabeça ao ficar de pé. Ele sentiu o olhar avaliador dos guerreiros supremos. — Sinto muito, tecuhtli, mas o balanço do navio... perturba as águas. Eu vi uma batalha e uma cidade em chamas à beira de um mar, seu estandarte tremulava sobre ela, mas de resto... eu não vi nada do oriental que mandei para seu kraljiki. Não vi nada da grande cidade deles.

— Ah, mas o estandarte e a cidade em chamas... isto só pode indicar vitória. Quanto ao seu oriental... — Zolin fungou e cuspiu no chão — ... essa era a estratégia do velho Necalli, e nem mesmo o grande Mahri teria sido capaz de fazer com que funcionasse.

Niente ficou vermelho com a indireta e irritado com o menosprezo que Zolin demonstrou por Mahri, cuja habilidade com o X’in Ka era lendária. Mahri evidentemente havia falhado, sim, mas isso só podia ter acontecido porque alguma força dos orientais tinha sido ainda mais forte. Niente abaixou a cabeça, mais para esconder o rosto do que por submissão. — Deve ser como o senhor diz, tecuhtli.

Zolin riu ao ouvir isso. — Ora, vamos, Niente, não seja tão modesto. Ora, você é um vidente e um nahualli de um nível que não vemos desde Mahri. Melhor até, pois Mahri não conseguiu impedir que os orientais invadissem nossas terras e as de nossos primos. Necalli era um tolo que desperdiçava recursos valiosos. Ele desperdiçou você também; todo aquele esforço que você concentrou naquele oriental. Mas agora... — Zolin abriu um largo sorriso. — Eu fiz os orientais recuarem para uma cidade sem importância na terra de nossos primos, com a ajuda de seus conselhos e habilidades, e agora temos a oportunidade de pilhar os orientais como eles um dia pilharam nossos primos do Mar Oriental. — O tecuhtli abanou a mão. — Eu mesmo arrancarei a cabeça dessa serpente oriental e tomarei providências para que nunca cresça outra. — Ele abaixou a mão e deu um sorriso cruel, mas a expressão dos dois guerreiros supremos era séria e impassível.

Niente perguntou-se qual dos dois poderia um dia desafiar Zolin, caso esta expedição falhasse, como ele temia que aconteceria.

O nahual compartilhava da atitude azeda de Citlali e Mazatl. Zolin não era diferente de muitas pessoas fora do círculo dos nahualli. Todas elas pensavam que seu dom era uma coisa simples: bastava olhar na água e deixar a deusa-lua Axat girar o futuro diante dos seus olhos. As pessoas não entendiam que as visões de Axat eram confusas e às vezes opacas, que o que nadava na água sagrada eram apenas possibilidades, e que essas possibilidades podiam ser alteradas, mudadas e até mesmo evitadas pelas habilidades de outras pessoas. Mahri — cujas habilidades, diziam, superaram a de qualquer nahualli — descobrira como Axat podia ser volúvel: a morte de Mahri foi um das primeiras visões que Niente viu em uma tigela premonitória; foi aquela visão que demonstrou para os mentores de Niente como ele tinha sido abençoado por Axat e Sakal. Talis, que fora mandado pelo tecuhtli Necalli para Nessântico, confirmou a visão de Niente: Mahri tinha falhado e tinha sido morto.

Aqueles sem o dom pensavam que devia ser maravilhoso ter o poder de Axat e Sakal, da lua e do sol. Não viam como usar o dom roubava força e vitalidade; como desfigurava e distorcia quem usava o poder. Agora mesmo, Niente podia olhar no espelho de bronze do alojamento e ver as rugas fundas no rosto, rugas que ninguém de sua idade já deveria ter. Notou a boca murcha, que o olho esquerdo chorava constantemente e agora estava esbranquiçado por uma nuvem mágica, que o cabelo ficava mais ralo e com mechas grisalhas. Ele sentia uma dor constante nas juntas que um dia viraria facas cruéis de agonia. Niente jamais conheceu Mahri, mas tinha vislumbrado o rosto do homem na tigela premonitória, e temia que um dia ele também visse as pessoas desviarem o olhar em vez de encará-lo e que ouviria os gritos de crianças assustadas quando passasse.

E Niente sabia que o tecuhtli Zolin podia estar satisfeito com ele agora, mas que o prazer do tecuhtli era frágil e podia desaparecer tão rápido quanto a bruma na luz do sol. Uma batalha perdida... Era tudo o que bastava, e tecuhtli Zolin procuraria por um novo nahual para estar ao lado dele.

— Eu rezo para Axat para que o senhor mate a serpente oriental — disse Niente para Zolin. — Mas eu...

Ele parou ao ouvir um chamado vindo do convés. — Terra... — gritou alguém. — A costa oriental...

Zolin sorriu ainda mais e falou — Ótimo. É chegado o momento de ver uma cidade queimar e nossos estandartes tremularem sobre a terra deles. — Ele ficou de pé e espantou os criados que correram para ajudar. — Venham, vamos ver esta terra juntos, com nossos próprios olhos, antes de tomá-la.

 

Karl ca’Vliomani

— BEM? — PERGUNTOU KARL PARA VARINA quando ela voltou para o quarto. Varina tirou a capa dos ombros e desmoronou em uma cadeira.

— Ela é a matarh de Nico, com certeza — respondeu Varina. — Eu contei que soube que o filho dela tinha fugido, e que quando nós estivemos em Nessântico, eu vi um menino na rua Crescente. A mulher arregalou os olhos quando ouviu isso e me disse que aquela era a rua onde ela morou até o mês passado. Quando descrevi o menino e a casa, a mulher começou a soluçar. Fiz o possível para evitar que ela voltasse correndo para Nessântico hoje à noite.

— E Talis?

— Talis é o vatarh do menino, e ela é apaixonada por ele, Karl. Isso também era óbvio; na verdade, eu suspeito que a mulher esteja grávida de Talis novamente, pelo jeito que segura o corpo quando fala sobre ele. Seu encontro com Talis o assustou tanto que ele despachou a esposa e Nico para fora da cidade; acho que Talis pensou que você mandaria a Garde Kralji atrás dele. Ela está esperando que Talis venha e que Nico retorne também. — Varina recostou a cabeça, fechou os olhos e suspirou. — Ela não trairá Talis para recuperar Nico, Karl. Honestamente, eu nem abordei essa possibilidade com a mulher. Na verdade, eu tenho certeza de que ela está no quarto agora fazendo as malas e se aprontando para ir embora amanhã para Nessântico, na esperança de encontrar Nico lá. A mulher está agitada e sofrendo desde que o menino foi embora. — Ela abriu os olhos novamente e encarou Karl. — É o que eu faria, no lugar dela. Sinto muito... Eu sei que você queria que eu fizesse, mas... não consegui levar adiante. Não consegui manter o filho da mulher como refém em troca de ela entregar Talis para nós, não quando não sabemos onde Nico está, na verdade. Sinto muito. Eu sei que você suspeita que Talis seja o assassino de Ana, e você tem bons motivos para ter essas suspeitas, mas isso...

Outro suspiro. Varina espalmou as mãos. — Eu não consegui fazer.

Não havia arrependimento na voz ou no olhar de Varina. E Karl descobriu que não conseguia ficar com raiva dela — o embaixador sabia como teria sido a situação com os próprios filhos. Karl podia ter sido um vatarh ruim e ausente para eles, mas se tivesse chegado a esse ponto, ele teria feito o que fosse necessário pelos filhos.

Ao menos era o que ele dizia para si mesmo. Ele se perguntou se era verdade. E se Kaitlin tivesse mandado chamá-lo enquanto Karl estava em Nessântico, enquanto Ana estava viva? E se ela tivesse chamado Karl de volta, pelo bem dos filhos? Será que ele teria ido? Ou teria dado alguma desculpa, teria descoberto alguma razão irresistível para permanecer aqui com Ana.

— Karl? — perguntou Varina. — Você está irritado comigo?

Ele balançou a cabeça e disse — Não se preocupe. Eu compreendo. — Os dedos roçaram os pelos da barba. Ele se sentia velho na noite de hoje. Os ossos estavam frios, e o fogo da lareira não ajudava a aquecê-los. — Eu voltarei com a mulher — falou Karl finalmente, quando o silêncio ameaçou durar tempo demais. — Talvez Talis venha atrás dela. Talvez a mulher saiba onde Talis está escondido.

— Se voltar, a Garde Kralji irá encontrar você, e o kraljiki mandará que seja torturado e executado. Seu corpo balançará em uma das jaulas da Pontica Kralji, com corvos arrancando a carne dos seus ossos.

Karl sentiu um arrepio e envolveu o próprio corpo com braços, que pareciam cansados e fracos. — Você pode ter razão. Mas do que eu estou correndo atrás, Varina? O que eu realmente ganhei por sair de Nessântico? Como encontrarei quem matou Ana em outro lugar? — Ele balançou a cabeça. — Não, eu preciso voltar. Esse não é o método numetodo? Para aprender, é preciso examinar; para compreender, é preciso experimentar. É necessário ter fatos. Ter encontrado a matarh de Nico... — Ele sentiu um arrepio novamente. — É quase como se o fantasma de Ana tivesse me conduzido aqui.

— Você não acredita em fantasmas nem deuses, Karl. Só acredita no que consegue ver, tocar e examinar. Não é este o método numetodo?

Ele deu um leve sorriso ao ouvir isso e falou — Não, eu não acredito em fantasmas, mas é estranho como um pensamento assim é confortante, não é? Quase faz entender o apelo que a religião tem para as pessoas. — Karl respirou fundo. — Ainda assim, eu voltarei.

— Então eu voltarei com você — disse Varina. — Assim como você, não há nada que eu esteja correndo atrás. E você precisará de ajuda.

— Você não precisa fazer isso. O kraljiki fará com você o mesmo que faria comigo... ou pior. Não há motivo para você voltar, afinal... — A voz de Karl foi sumindo.

Varina não respondeu, mas Karl notou o jeito dos lábios, a postura do corpo, viu a maneira com que ela olhava com raiva para ele, e subitamente Karl soube, e a revelação foi dolorosa. — Ah — falou o embaixador. Ele se perguntou como podia ter sido tão cego. Ficou de pé e andou até onde Varina estava sentada. Ele começou a colocar a mão no ombro dela, mas Varina franziu os olhos e ele recolheu a mão. — Varina...

Ela sustentou o olhar de Karl, os olhos castanhos de Varina vasculharam os dele. — Você amava Ana, embora ela nunca tenha correspondido exatamente com o mesmo amor. Ana estava muito envolvida com o que enxergava como a única tarefa da vida dela — falou Varina, baixinho. Ela acenou com a cabeça. Os lábios tremeram, como se quisesse sorrir, depois voltou a fechar a cara. — Bem, eu entendo essa situação, Karl. Entendo muito bem.

— Eu não sei o que dizer.

Varina sorriu então, a expressão tinha o toque de uma emoção escondida que Karl não conseguiu decifrar. — Então você não deve dizer nada. Eu não disse nada que exija uma resposta, a não ser que voltarei com você, não importa o que diga.

Varina sustentou o olhar de Karl sem piscar, até ele concordar com a cabeça. — Tudo bem — falou Karl. Ela concordou com a cabeça, mas não falou nada. O silêncio durou muito tempo e ficou cada vez mais incômodo, os dois olhavam fixamente para o pequeno fogo na lareira. Os pensamentos rolavam na cabeça de Karl: todas as vezes que ele e Varina estavam juntos, os comentários que ela fazia, os olhares, os toques ocasionais, a maneira como ela sempre se desviava de perguntas sobre interesses românticos que pudesse ter, a forma como Varina se atirou no trabalho dos numetodos.

Ele deveria ter sabido. Deveria ter percebido. Mas o silêncio já havia tornado mais difíceis as perguntas que Karl deveria ter feito. Ele pigarreou. — Se... se você voltar comigo para Nessântico, então talvez precise começar a me mostrar mais sobre esse modo ocidental de fazer magia.

Abrigar-se no trabalho para evitar intimidade: era o que Ana sempre fazia, afinal de contas.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA ACHOU A HISTÓRIA DE SERGEI fascinante, embora conhecesse bem o homem a ponto de saber que havia detalhes que ele escondia. Allesandra não se importou com isso; ela teria feito o mesmo no lugar dele. Ela fez o mesmo, durante os longos anos que ficou presa em Nessântico. Allesandra gostava da archigos Ana, que a tratou de maneira correta e respeitosa, e era fascinada por Sergei, primeiro pela reputação e pelo nariz de prata, depois — quando passou a conhecê-lo — pela inteligência e personalidade sombria e intrigante.

— Ca’Rudka é um homem interessante e habilidoso, e eu não estaria onde estou agora se não fosse por ele — disse a archigos Ana certa vez para ela, quando se passaram alguns anos de exílio e Allesandra virava uma jovem moça. — Mas você não pode confiar inteiramente nele. Ah, ca’Rudka honra a palavra, mas ele dá esta palavra com cuidado e a contragosto. E manterá a palavra ao pé da letra, mas talvez não fiel ao espírito. Sua verdadeira lealdade é a Nessântico, não a qualquer pessoa dentro dela. Eu não acho que ele ame alguém, não acho que jamais tenha amado. Seus verdadeiros amores são a cidade e os próprios Domínios. E alguns de seus gostos, o que ele tem prazer em fazer... — Ana fez uma careta ao dizer isso. — Eu espero que sejam apenas histórias terríveis, que não sejam verdadeiras.

Allesandra lembrou-se dessa conversa enquanto observava Sergei, agora vestido na moda e cores atuais de Firenzcia. Ele veio a convite de Allesandra para almoçar nos aposentos da a’hïrzg no Palácio de Brezno, e se ficou ofendido com a cuidadosa revista corporal antes que fosse permitido entrar, ou se notou os dois gardai armados que o observavam atentamente de seus postos no cômodo, Sergei não disse nada. Ele sorriu para Allesandra como teria feito para qualquer ca’ em Nessântico e elogiou a apresentação e o gosto da refeição enquanto os criados entravam e saíam, recostou-se na cadeira segurando uma xícara de chá como se estivesse relaxado e à vontade. Sergei contou como foi aprisionado na Bastida e como escapou. Allesandra observou o rosto do homem, as mãos — nenhum deles revelava emoção alguma; ele poderia estar contando uma história que aconteceu com algum parente distante, alguma certa vez.

— Então o embaixador numetodo ajudou você? — Allesandra também se lembrava de Karl ca’Vliomani, que era tão obviamente apaixonado pela archigos Ana, embora ela parecesse tratá-lo apenas como um bom amigo. Allesandra não se importava muito com ele ou com os numetodos, que desdenhavam e debochavam de sua própria crença, que não acreditavam em nenhum deus. Os numetodos acreditavam que o mundo sempre existiu, que era velho de uma maneira impossível, que os processos naturais podiam explicar tudo dentro do mundo; o absurdo e a arrogância da filosofia deles incomodavam Allesandra. — Isso não vai deixar o archigos Semini satisfeito... nem o archigos Kenne, imagino.

— Foi um ato de amizade e nada mais.

— Uma vez, a archigos Ana me disse que todo ato reflete a fé da pessoa que o comete — falou Allesandra. — Você é um numetodo agora, Sergei?

Ele balançou a cabeça. — Não. Eu acredito tão piamente em Cénzi quanto sempre acreditei.

A a’hïrzg perguntou-se se a declaração era uma mera falsidade engenhosa, mas deixou para lá. — Será que o kraljiki Audric pode realmente governar os Domínios? Será que o archigos Kenne pode unir os a’ténis como Ana fazia?

— Só o tempo pode lhe dar essa resposta, a’hïrzg.

— Então me conceda uma especulação.

Sergei deu de ombros. — O archigos Kenne é... fraco. Não apenas fisicamente, mas também quando se trata de confrontar. Ele é um homem bom, moral e fiel, mas é um seguidor, não um líder. É louvável que ele conheça e reconheça este defeito. O Colégio A’téni o elegeu como archigos por causa disso: eles não queriam outro líder forte como Ana. Quanto ao kraljiki Audric... bem, ele é só um menino e tem péssima saúde. Tenho certeza de que a senhora tem seus próprios agentes, que passam relatórios, mas suspeito que eles não contaram toda a história.

Sergei inclinou-se para a frente e pousou a xícara de chá e o pires silenciosamente sobre a mesa. Allesandra viu o próprio reflexo distorcido no nariz dele. — Audric enlouqueceu — falou Sergei, baixinho, e bateu com o indicador na testa. — O quanto ele enlouqueceu, eu não sei. Eu mesmo notei antes de Audric me mandar para a Bastida, e depois meus amigos na corte e na Fé me mandaram notícias. O kraljiki conversa com o quadro de sua mamatarh Marguerite; ele coloca a pintura ao seu lado direito na corte como se ela fosse sua conselheira.

— Sério? — Allesandra gesticulou, e um dos criados correu para encher as xícaras novamente. Ela viu o líquido dourado soltar fumaça em sua xícara. — E ninguém diz nada?

— Os kralji às vezes agem de modo esquisito e às vezes punem aqueles que apontam sua esquisitice. Isso aconteceu muitas vezes na longa história de Nessântico; nós dois podemos citar nomes, tenho certeza. E se o problema não parece afetar os Domínios diretamente... — ele deu de ombros — ... então é melhor não comentar nada... e tomar cuidado. Tenho certeza de que é o que Sigourney ca’Ludovici está fazendo: ela quer o trono e espera a oportunidade para tomá-lo. A maior parte do Conselho dos Ca’ apoiaria Sigourney; o Trono do Sol será dela se Audric morrer ou tiver que ser... removido. Qualquer uma dessas duas é uma possibilidade bem provável nos próximos meses, eu suspeito.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela ergueu a xícara, soprou a superfície aromática e tomou um gole com cuidado. Nenhum dos dois falou alguma coisa por vários instantes. — Por que você veio para cá, regente? — perguntou a a’hïrzg, finalmente. — Eu sei o que você disse para meu filho e para o archigos, mas eu acho que tem mais alguma coisa.

Sergei olhou para trás, para os gardai, e não disse nada. — Eles são homens de minha confiança — falou Allesandra. — Meus gardai escolhidos a dedo, estão comigo desde que voltei para Firenzcia. Eu confio totalmente neles. Tenho certeza de que você teve homens sob seu comando em cuja integridade você confiava dessa maneira.

— Pela minha experiência, quase todo mundo tem um defeito que pode ser explorado. Eu aprendi que, quanto menos ouvidos escutam alguma coisa, mais chances há de que as declarações não sejam repetidas.

Allesandra esperou enquanto tomava o chá; Sergei esfregou o nariz e turvou o reflexo da a’hïrzg.

— Como queira — disse ele, finalmente. — Nessântico e os Domínios têm sido a minha vida, a’hïrzg. Esta é uma lealdade a qual não posso e nem irei abrir mão. Meu desejo mais sincero é ver os Domínios restaurados ao que eram na época em que a kraljica Marguerite estava no trono. Eu gostaria de ver a senhora em Nessântico, como a kraljica Allesandra. A senhora pode ser a kraljica que Nessântico precisa agora.

Embora estivesse esperando estas palavras, Allesandra ainda se viu um pouco nervosa. Viu só, vatarh? Viu só? Esse é o legado que o senhor queria, e essa é a promessa que o senhor abriu mão quando me abandonou por Fynn. A emoção de sua resposta interior surpreendeu Allesandra; ela sentiu o calor subir do peito para o rosto. Fez um esforço para não demonstrar nada disso para ca’Rudka. — Sonhar não custa nada — disse a a’hïrzg. — Nós podemos sonhar à vontade. Poder realizar o sonho é uma coisa completamente diferente.

— No entanto, se duas pessoas tiverem o mesmo sonho, e ele coincidir com o de outras pessoas, e se estas pessoas forem poderosas o suficiente... — Sergei sorriu e fechou os dedos sobre a toalha de mesa de renda, como se estivesse rezando. — Este seria o seu sonho também, a’hïrzg? A senhora consegue ver um ca’Vörl no Trono do Sol? Eu sei que seu vatarh tinha essa visão.

Ele sabe. — Vamos deixar este assunto de lado por um momento, regente. Há outras questões envolvidas caso perseguíssemos esse objetivo... e não estou dizendo que estamos. E quanto à fé concénziana? Quem seria o archigos nestes Domínios restaurados que você imagina: Semini ou Kenne?

— Apesar do que eu disse sobre os defeitos dele, eu gosto do archigos Kenne. Ele é meu amigo, sua fé é verdadeira, e, como eu disse, ele é um bom homem.

— Ele pode ser tudo isso, mas Kenne não é um amigo de Firenzcia e, como Ana, ele passaria a mão na cabeça dos hereges. E Semini é meu amigo.

Sergei fez um som contemplativo no fundo da garganta. — Há rumores, a’hïrzg, de que ele talvez seja mais do que isso.

Allesandra ficou vermelha ao ouvir isso. O garda atrás do regente levou a mão ao cabo da espada, mas ela fez que não com a cabeça para o homem. — Você fala abertamente demais sobre rumores e mentiras, regente. Você não pode mais me tratar como uma menina ou uma refém da realeza. Você está em minha terra, e é a sua vida que está em jogo, não a minha. Se essa é a maneira como falava com Audric, então não é de admirar que ele não quisesse mais que você fosse regente.

Sergei abaixou a cabeça, mas não havia desculpas no olhar implacável. — Minhas desculpas, a’hïrzg. Minha estada na Bastida acabou, infelizmente, com minha diplomacia e paciência. Mas esses rumores e mentiras me preocupam de verdade, se formos trabalhar juntos.

— O archigos já tem uma esposa. É tudo o que precisa ser dito, e toda a resposta que você receberá. Quanto ao archigos Kenne... — Allesandra também se lembrava de Kenne ca’Fionta: um homem gentil, quieto, que sempre foi um eficiente subcomandante, mas que nunca questionava o que lhe era pedido ou dizia o que pensava. A a’hïrzg não conseguia imaginá-lo como archigos. Ana também podia ser gentil e carinhosa, mas havia ossos duros e aço sob o veludo, e ninguém gostaria de ser inimigo dela. Allesandra não tinha certeza do que havia sob o exterior de ca’Fionta, mas suspeitava que a avaliação de Sergei era correta.

Mas Semini... Semini podia ser tão inflexível e forte quanto Ana. — Se você quiser a ajuda de Firenzcia — continuou ela —, se quiser a ajuda de nossos ténis-guerreiros, então será o archigos Semini, e não o archigos Kenne, quem reunirá a fé concénziana. Kenne não precisa ser morto; se puder ser convencido a renunciar ao título pelo bem da Fé, talvez até mesmo para se tornar o a’téni de uma das cidades. Eu desconfio que um amigo poderia convencer outro amigo da sensatez desse rumo. Eu espero, pelo bem de Kenne.

Allesandra recostou-se na cadeira. Sergei, pela primeira vez, tinha uma expressão de incerteza no rosto, e ela ficou surpresa com a intensidade da alegria que esta reação lhe proporcionou. A a’hïrzg perguntou-se se era assim que uma kraljica ou hïrzgin geralmente se sentiam, se era uma das dádivas do poder. Uma dádiva ou talvez uma armadilha para aqueles que cediam ao domínio daquela sensação. — Eu sei o que eu trago para você, regente. Eu trago meu nome e minha genealogia. Trago o inigualável exército de Firenzcia, através do meu filho. Trago os temíveis ténis-guerreiros da verdadeira fé concénziana através do archigos Semini. Trago Miscoli, Sesemora e as Magyarias, que obedecem a Firenzcia. Eu trago tudo isso à mesa. O que você traz para nós, regente?

Sergei não respondeu imediatamente. O indicador direito roçou a borda da xícara diante dele, e o regente pareceu observar o desenho das folhas no fundo. — Eu trago conhecimento. Eu conheço a Garde Kralji e a Garde Civile e as forças e fraquezas de seus comandantes. Conheço Nessântico; conheço todos os seus caminhos e segredos. Há aqueles na Garde Civile e na Garde Kralji que responderão se eu chamá-los. Há aqueles entre os ca’ e co’ que farão a mesma coisa. Há chevarittai que virão a mim se eu convocá-los. Pode ser, a’hïrzg, que eu consiga lhe entregar o Trono do Sol com o mínimo de vidas perdidas possível.

— Ora, se é capaz de fazer tudo isso, por que você não é o próprio kraljiki em vez de um refugiado? — perguntou Allesandra, mas ela não deu tempo para Sergei responder. — Se é capaz de fazer tudo isso, o que você quer em troca?

— Nada — respondeu Sergei, e Allesandra ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Dê-me a recompensa que a senhora achar condizente. Eu faço isso apenas por Nessântico, por que sempre empenhei a vida. Uma vez, eu protegi Nessântico da agressão de Firenzcia; agora, eu entregarei Nessântico a Firenzcia livremente. A kraljica Marguerite acreditava no casamento como uma forma de conciliar forças opostas, e eu acredito na mesma coisa, porque o casamento de Nessântico com Firenzcia é tudo que ela precisa agora para sobreviver.

Belas palavras, Allesandra queria dizer, com desdém. A a’hïrzg não tinha certeza se acreditava realmente no homem, mas Cénzi tinha trazido o regente até ela, de maneira totalmente inesperada, um presente irrecusável. — Você é uma jovem inteligente, talentosa e atraente — disse a archigos Ana para ela quando chegou a Nessântico a notícia de que seu vatarh nomeara o menino Fynn como a’hïrzg e se recusara a pagar o resgate exigido pelo kraljiki Justi para sua libertação. Aconteceu em menos de um ano dentro do período de sua prisão cheia de confortos e luxos, e Allesandra chorou de perplexidade e medo. Ana, a inimiga, abraçou e confortou Allesandra, fez carinho em seu cabelo e acalmou a menina novamente. — Eu sei que Cénzi tem um plano para você. Eu sinto isso, Allesandra. Há um grande papel para você cumprir ainda na vida...

Allesandra cumpriria esse papel. Ela teria aquilo que um dia seu vatarh lhe prometeu: o colar reluzente de Nessântico. Aquele era o motivo pelo qual Sergei ca’Rudka tinha aparecido neste momento.

— Veremos, regente ca’Rudka — foi tudo que Allesandra disse para ele agora. — No fim, será como Cénzi quiser...

 

Niente

NIENTE ESTAVA NA ENCOSTA de Karnor com o tecuhtli Zolin e seus guerreiros supremos, com a cidade estendida embaixo, e ele viu a cena que tinha vislumbrado na tigela.

As janelas do templo logo abaixo de Niente estavam quebradas, pareciam olhos arrancados no crânio de um prédio em ruínas. A fuligem escurecia as pedras em volta, uma fumaça imunda ainda subia entre elas. O meio domo de ouro estava quebrado, a alvenaria dourada, desmoronada. Chamas disparavam para o alto em uma dezena de pontos da cidade, mais intensas do que o sol do poente.

O ataque ocorreu facilmente e com rapidez. Assim que eles viram as encostas da grande ilha de Karnmor dos orientais, Niente reuniu os nahualli que podiam controlar o vento e o céu, e eles conjuraram uma muralha de bruma espessa para esconder a frota tehuantina enquanto ela se aproximava. A neblina envolveu os tehuantinos em um ar branco acinzentado e abafou os barulhos dos preparativos. Quando a bruma mágica acabou e foi soprada pelo vento, o Yaoyotl — com a bandeira da águia dos tehuantinos — já estava na boca do porto de Karnor, com os navios coirmãos espalhados em duas grandes alas de ambos os lado. O porto de Karnor era extenso e fundo, aninhado em penhascos de braços rochosos com a cidade empoleirada bem ao longe, a quilômetros de distância.

Um punhado de navios da marinha dos Domínios estava ancorado ali, e eles foram manobrados para encarar o ataque enquanto as embarcações pesqueiras e de lazer fugiam para um lugar seguro. Niente teve que admirar a bravura dos capitães dos Domínios: diante de uma força imensamente superior, eles não fugiram, mas se voltaram para confrontá-la diretamente, com suas bandeiras azuis e douradas tremulando no topo dos mastros. Ainda assim, foi um massacre. O vento do mar veio atrás da frota tehuantina, e os navios dos Domínios tiveram que avançar lentamente contra o vento. Os ténis-guerreiros a bordo dos galeões dos Domínios tiveram pouco tempo para preparar os feitiços — talvez mais poderosos que aqueles dos nahualli, mas lentos de serem criados, e Niente tinha passado o dia exigindo de seus nahualli. Os cajados mágicos estavam cheios, as areias negras já preparadas. Os feitiços dos nahualli foram capazes de desviar a maior parte do fogo disparado pelos ténis-guerreiros para longe dos navios tehuantinos, embora a embarcação ao lado do Yaoyotl tivesse levado um tiro em cheio que se espalhou como uma monstruosa onda de fogo e destruição pelos conveses e fez dezenas de homens pularem aos gritos nas vagas frias. O disparo fez o navio pegar fogo e encalhar, de maneira que as embarcações atrás tiveram que se virar de repente para evitá-lo.

O tecuhtli Zolin estava no convés e berrava ordens do castelo de popa; os navios tehuantinos responderam com enormes dardos com cápsulas de areia negra na ponta lançados dos conveses: as catapultas dispararam os projéteis faiscantes na direção dos defensores de Karnmor; as cápsulas, encantadas com feitiços de fogo, explodiram com o impacto, o que estilhaçou tábuas e arrancou braços e pernas ensanguentados de marinheiros azarados. Os navios de Nessântico fracassaram, as velas estavam em chamas ou penderam quando perderam o vento sob o ataque. O tecuhtli Zolin gritou ordens e um segundo bombardeiro de projéteis de fogo varreu os inimigos.

Eles deixaram os defensores na retaguarda como nada mais do que carcaças consumidas pelo fogo até a linha-d’água, e a frota tehuantina avançou para o porto interno da cidade. Os soldados de Karnor estavam reunidos ali sob o comando de uns poucos chevarittai a cavalo, mas o tecuhtli Zolin berrou ordens mais uma vez, e as catapultas dispararam seus terríveis mensageiros em meio aos inimigos, as explosões fizeram tremer os morros íngremes onde Karnor foi construída e atearam fogo entre os prédios. Os soldados e os nahualli deram gritos de vitória quando se aproximaram do porto, o som dos homens batendo os cajados mágicos e as espadas nos escudos era aterrorizante. Niente gritou ao lado deles, a própria garganta estava rouca por causa dos berros e da fumaça da batalha. Ele viu moradores fugirem pelas ruas em turbas desorganizadas que subiam e se afastavam do repentino conflito da batalha no porto, enquanto pranchas eram descidas e expeliam soldados tehuantinos. Eles avançaram aos gritos, os rostos tatuados estavam furiosos e alegres ao mesmo tempo. O tecuhtli Zolin liderava os homens, a escada curva reluzia à luz do sol e a voz desafiava o inimigo à espera. Niente e seus nahualli correram atrás dos soldados, seus cajados mágicos emitiam um brilho branco ao disparar raios nas fileiras dos soldados. O próprio cajado de Niente se esgotou rapidamente, ele pegou o conjunto de garras de águia que estava amarrado nas costas, girou o tubo de marfim para ativar o feitiço de fogo por contato e jogou os artefatos sobre as primeiras fileiras de soldados para que explodissem no meio dos inimigos. Em um momento, um soldado ferido de Nessântico levantou-se do chão quando Niente passou por cima dele. Por sorte, o homem estava fraco por conta dos ferimentos, e o nahual conseguiu se desviar da estocada vacilante da espada. Ele sacou a faca do cinto e passou o gume afiado na garganta exposta do sujeito antes que o soldado pudesse se recuperar. O sangue quente jorrou sobre a mão de Niente, e o homem soltou um grito gorgolejante ao desmoronar pela última vez. Uma facada forte na lateral do pescoço do soldado acabou com ele, e Niente levantou-se para descobrir que a batalha estava praticamente encerrada, os defensores recuando para o interior da cidade e sendo perseguidos pelos tehuantinos.

No momento em que o sol se pôs — vermelho e melancólico em meio à fumaça da cidade em chamas —, Karnor era dos tehuantinos, ou o que tinha sobrado da cidade. Embaixo dele, Niente ouviu gritos e gemidos fracos enquanto os tehuantinos saqueavam a cidade e matavam quem encontrassem por lá. Mais embaixo ainda, no porto, os porões dos navios tehuantinos estavam sendo preenchidos com a riqueza da cidade.

Niente estava com o tecuhtli Zolin e os guerreiros supremos tehuantinos Citlali e Mazatl. Ali perto, vigiados por guerreiros tatuados, o comandante e três offiziers superiores dos defensores estavam ajoelhados, amarrados e amordaçados. Os prisioneiros encaravam a fogueira armada pelos nahualli sob orientação de Niente e olhavam para o altar plano de pedra do Templo de Karnmor, que Niente tinha ordenado que fosse arrastado até o cume do monte Karnmor.

Quatro garras de águia, com os chifres cheios de areia negra, foram colocadas no centro do altar de pedra. Os prisioneiros olhavam fixamente, sobretudo para elas.

— Esses orientais — comentou o tecuhtli Zolin — são péssimos guerreiros. Eles correram como crianças assustadas. — Ele olhou novamente para os prisioneiros com uma expressão de desdém. O tecuhtli usava sua armadura de couro e bambu, com um talho aqui e ali de uma lâmina inimiga, e os tubos roliços chacoalhavam baixinho enquanto ele se mexia. A armadura estava respingada e manchada de sangue, embora pouco parecesse ser de Zolin. O sol tinha se posto completamente agora, e a lua surgiu a leste...

Zolin olhou na direção da lua. — Axat sequer aceita a oferta desses incompetentes.

Niente lembrou-se das batalhas em volta do lago Malik e balançou a cabeça. — Tecuhtli, eles foram pegos de surpresa e não estavam preparados para nós. Isso não acontecerá novamente. Os rumores do que aconteceu aqui chegarão ao kraljiki e aos comandantes do exército oriental. Talvez... — Ele hesitou, não queria dizer as próximas palavras. — Talvez seja melhor pegarmos o que conseguimos aqui e voltarmos para casa.

O tecuhtli Zolin deu uma gargalhada debochada. — Voltar? Agora? Quando estamos aqui, na fumaça da vitória, exatamente como você previu? Nahual Niente, você me desaponta. Eu vim aqui desafiar esse kraljiki que manda seu povo roubar a terra de nossos primos, mas sequer lidera o próprio exército. Citlali, Mazatl, o que vocês me dizem?

Mazatl já estava de cara amarrada, a luz da fogueira banhava o rosto marcado. Assim como Zolin, ele ainda usava a armadura surrada e ensanguentada. — Eu digo que estou contente por estar em terra firme, mesmo aqui. Voltar para o mar? — O supremo guerreiro cuspiu nas pedras aos pés. — Eu vim para lutar, não velejar. Eu digo para darmos a Axat o que Ela ganhou aqui e depois seguirmos em frente. — Citlali concordou com um murmúrio, mas parecia estar menos convicto.

Os nahualli e guerreiros reunidos perto do fogo já haviam começado o cântico baixo e assustador da prece à Axat. O luar brilhou forte sobre o altar de pedra e reluziu nas pontas grossas de vidro das garras de águia. Niente acenou com a cabeça para Zolin.

Dois nahualli agarraram um dos prisioneiros e arrastaram o homem para frente. O offizier choramingava de medo e invocava Cénzi. Os nahualli colocaram o homem sobre o altar de pedra, de joelhos. Ele ergueu os olhos para Niente, aterrorizado. — Vá bravamente para sua morte — disse o nahual para o oriental em sua própria língua ao pegar uma garra de águia. Ele girou a ponta do chifre, e o fatídico clique soou alto quando o feitiço foi ativado. — Reze para o seu deus. A morte será rápida. Eu lhe prometo ao menos isso. — Niente acenou novamente com a cabeça, e os nahualli seguraram firmemente os braços do homem, que fechou os olhos e moveu os lábios em uma prece silenciosa.

O nahual abriu a própria mente para Axat e para o brilho da lua, depois pressionou a boca ossuda da arma no estômago do homem. O som do disparo da garra de águia ecoou pela cidade.

 

Allesandra ca’Vörl

JAN QUASE PARECIA ASSUSTADO, os olhos tão arregalados que era possível ver o branco em volta da íris. — Matarh... levar o exército contra os Domínios... eu não sei.

— Eu compreendo o perigo — falou Allesandra. — Sim, é um grande passo para ser dado assim tão cedo no seu período como hïrzg, e entendo como deve estar se sentindo. Você precisaria confiar na capacidade do starkkapitän ca’Damont; mesmo assim, isso seria um teste maior do que tudo o que você já fez na vida. Mas, Jan, eu sei que é algo que você é capaz de fazer. Levar o exército à guerra é algo que você terá que fazer eventualmente, como quase todo hïrzg de Firenzcia já fez. Até mesmo seu vatarh lhe diria isso. Fynn tinha 18 anos, era apenas dois anos mais velho do que você, quando levou o exército à guerra pela primeira vez. — Ela acenou a cabeça para Semini, que estava sentado em silêncio na própria cadeira. Os três estavam nos aposentos de Allesandra. Os criados foram dispensados após servirem o jantar, cujas sobras ainda decoravam a mesa entre eles. — Semini sabe — disse Allesandra. — Ele comandava os ténis-guerreiros quando seu vavatarh Jan quase tomou Nessântico.

— E ele teria conseguido se aquela archigos herege desprezível não tivesse usado sua magia dos numetodos contra nós — resmungou Semini. O archigos pareceu um urso mais do que nunca, curvado na cadeira. Ele bateu de leve no prato, mas teve o cuidado de desviar o olhar de Allesandra.

A a’hïrzg ainda se lembrava do choque daquela noite: ela estava na tenda, sentada no colo do seu vatarh. — Você é meu passarinho — dizia Jan — e eu amo... — Então a voz foi interrompida e, impossivelmente, ela estava do lado de fora, longe do acampamento, esparramada no chão molhado de chuva, à noite, enquanto a archigos Ana e um homem estranho qualquer lutavam um contra o outro com uma magia do Ilmodo que Allesandra pensava ser impossível. Sim, ela lembrava-se muito bem daquilo e sabia que sua captura foi a razão do fracasso de seu vatarh, e que Jan culpava Allesandra por isso.

— Ah, os Domínios ainda têm que responder por muita coisa — continuou o archigos, que olhava apenas para Jan. Ele bateu de leve na toalha de mesa com o punho. — Eu aguardo ansiosamente para cobrar o pagamento. Hïrzg Jan, estou pronto para ser seu braço direito, com todos os ténis-guerreiros da fé concénziana comigo.

Jan ainda parecia inseguro, e Allesandra esticou o braço para afagar a mão do filho. — Jan, no fim esta deve ser uma decisão sua, não minha. Eu não sou o hïrzg, você é.

— A senhora não quis isto quando podia tê-la — disse Jan ao tocar na coroa dourada de hïrzg na cabeça. — E, no entanto, agora a senhora quer... — Ele parou abruptamente. Pestanejou. — Ah. — Franziu os olhos.

Allesandra ficou preocupada com a expressão no rosto do filho. — Pense no que podemos conseguir juntos, Jan — falou ela, às pressas —, com a mesma família no Trono do Sol e no trono de Firenzcia. Nós podemos unificar os Domínios e criar um império maior e mais pacífico do que o de Marguerite.

Jan não disse nada. Ele olhou de Semini para Allesandra, depois ficou de pé e andou rapidamente até a porta. — Jan? — chamou Allesandra, e o hïrzg parou ali. Ele falou sem se virar para a matarh.

— Eu começo a entender um pouco o que o vatarh falou sobre a senhora antes de ir embora, matarh. Ele me disse que a senhora usava as pessoas para seus próprios objetivos; disse que este era exatamente o mesmo jeito do seu próprio vatarh, e que isso não era assim tão surpreendente. Ele disse que esse comportamento foi que tornou o vavatarh um hïrzg competente, mas um amigo perigoso. Eu me pergunto se um dia poderei ser um hïrzg assim tão bom. Eu me pergunto se um dia terei vontade de ser. — Jan bateu na porta, que foi aberta pelos criados do corredor.

Allesandra ficou de pé e afastou-se da mesa; começou a ir atrás dele enquanto os pratos batiam e as taças tremiam. — Jan, fique. Por favor. Fale comigo.

Jan balançou a cabeça e saiu sem dizer outra palavra, a porta foi fechada.

Allesandra ficou parada no centro da sala de jantar e não conseguiu conter o soluço. Eu nunca tive a intenção de magoá-lo. Eu não quero magoá-lo. Ao mesmo tempo, a a’hïrzg considerou a declaração do filho: será que ela cometeu um erro ao colocá-lo no trono do hïrzg? Será que enxergava Jan com os olhos de uma matarh e não com os olhos da verdade? Allesandra sentiu as mãos de Semini em seus ombros e percebeu que ele havia se levantado para ficar atrás dela. — Não se preocupe, Allesandra. — As palavras do archigos eram um rugido baixo no ouvido. — Deixe o menino sozinho por um tempo e lembre-se que, em muitos aspectos, ele ainda é um menino. Jan sabe que você está certa, mas neste momento ele acha que você lhe deu a coroa de hïrzg como um prêmio de consolação.

— Não foi assim, de verdade. — As lágrimas ameaçaram cair, e Allesandra fungou e piscou para contê-las. — Eu amo Jan, Semini. Amo mesmo. Ele não faz noção do quanto. Eu fico magoada de vê-lo com raiva de mim. Não era o que eu pretendia.

— Eu sei — sussurrou o archigos. — Eu falarei com ele. Posso convencê-lo de que você está certa.

Ela meneou a cabeça enquanto olhava fixamente para a porta. — Eu preciso ir atrás dele.

— Se fizer isso, vocês dois apenas acabarão tendo uma discussão ainda pior. Vocês dois são muito parecidos. Dê um tempo para Jan se acalmar e pensar sobre a situação, e ele perceberá que exagerou na reação. Pode até ser que se desculpe. Dê um tempo. Deixe que ele fique com raiva agora.

As mãos de Semini massagearam os ombros de Allesandra. Ela sentiu os lábios do archigos roçarem o cabelo na nuca e deixou a cabeça pender para frente em resposta. — Ele é meu filho. Eu fico magoada quando ele está magoado.

— Se você conseguir o que quer, então essa é uma situação que poderá vir a ter que aceitar. Os kralji de Nessântico e os hïrzgai de Firenzcia sempre tiveram suas diferenças e seus interesses separados. Se não quiser um conflito entre você dois, é melhor abandonar essa ideia.

Allesandra ficou tensa sob as mãos que a massageavam, e Semini riu. — Pronto, viu só. Jan não é o único que se irrita quando alguém lhe diz o que fazer. — Ele continuou a trabalhar os músculos dos ombros da a’hïrzg. — Eu estou com você, meu amor, mas também tenho ambição. Eu quero ser o archigos da fé concénziana unificada e quero me sentar no Trono de Cénzi no Templo do Archigos e ser a sua Mão da Verdade. E quero ser mais do que isso, Allesandra. Quero ser o archigos ca’Vörl.

Ela virou-se para Semini e encontrou o rosto dele perto do seu. Allesandra beijou os lábios do archigos sem paixão. — Semini...

— Você disse para Jan pensar no que vocês dois poderiam conseguir juntos como a mesma família nos dois tronos. Eu lhe peço que considere o que poderia ser feito se a mesma família não só controlasse os tronos políticos, mas também o da fé concénziana.

— O que você sugere não é possível — falou Allesandra. — Tem o Pauli. E Francesca. Sim, eu adoro os momentos secretos que passamos juntos e gostaria que fosse de outra forma, mas não é. Semini, o que pareceria se o archigos dissolvesse o próprio casamento e o matrimônio da a’hïrzg em nome do próprio interesse? O que diriam os ca’ e co’, mesmo que em segredo? Que mal isso faria à Fé e ao Trono do Sol?

— Eu sei. — Semini rosnou e deu um passo para trás. — Eu sei. Mas meu casamento com Francesca foi político desde o início; nunca houve amor entre nós, nem muita intimidade realmente, depois dos primeiros anos e os abortos. Orlandi insistiu que eu tinha que casar com sua filha, e ele era o archigos, e seu vatarh pensou que seria bom também, e você era... — Semini fez uma pausa. — Sei que sou muito mais velho do que Pauli, Allesandra, mas eu pensei...

— A nossa diferença de idade não significa nada. — Allesandra esticou a mão para tocar no rosto do archigos, a barba grisalha sob os dedos era surpreendente. — Semini... Eu gosto mesmo de você. Eu adoro o que nós temos, mas isso tem que bastar. O que você sugere... seria um erro terrível.

— Seria? Eu não acredito nisso, Allesandra. Se você soubesse o quanto eu lutei com essa ideia, se soubesse como rezei para Cénzi... — Semini balançou a cabeça sob os dedos dela e disse — Não seria um erro. Como poderia ser, se existem sentimentos verdadeiros entre nós? Você pode me dizer que esses sentimentos são unilaterais e que nosso caso é simplesmente uma questão de conveniência para você? É assim, Allesandra? Diga-me. Diga-me a verdade.

Allesandra encarou Semini, que ainda tinha o rosto nas mãos dela, e sussurrou — Unilaterais? Não.

Ele soltou um longo suspiro de alívio, praticamente uma palavra ou soluço, e depois beijou Allesandra, que devolveu o beijo. Ela abandonou a si mesma e as preocupações sobre Jan e o que poderia acontecer na paixão que a envolveu.

 

Jan ca’Vörl

JAN DEIXOU O SUOR PINGAR enquanto estocava e defendia com a espada contra um oponente invisível. Às vezes era Semini, às vezes era sua matarh, às vezes era o fantasma de Fynn ou do vavatarh. Jan colocou toda a raiva para fora no treino. Golpeou, girou o corpo e estocou até todos os fantasmas estarem mortos e os músculos arderem.

Finalmente, Jan embainhou a espada e parou com as mãos nos joelhos, ofegante. Ele ouviu um aplauso baixo e irônico atrás de si e se virou. Gotas de suor voaram do cabelo molhado. O hïrzg viu Sergei ca’Rudka parado à porta da sala de treino, com dois gardai atrás dele. — Como...? — Jan começou a perguntar quando ca’Rudka sorriu.

— Eu perguntei ao assistente Roderigo onde o senhor estaria. Não deixaram que eu viesse sem meus amigos, de qualquer forma — acrescentou Sergei ao gesticular para os gardai solenes e carrancudos que o acompanhavam. Ele entrou na sala comprida e apertada, com paredes de bronze lustroso, uma estreita fileira de bancos ao longo do outro lado e espadas de madeira para treino expostas em suportes em um canto. — O senhor teve um bom professor de armas, embora isso valha menos do que imagina.

Jan pegou uma toalha de um cabide perto das espadas e secou o suor da testa. — O que você quer dizer, regente?

— O senhor pode ter todas as habilidades técnicas, e o senhor possui, de fato, mas elas valem pouco ao se enfrentar um oponente de verdade, que queira lhe matar.

O jeito com que ca’Rudka fez o comentário, em um tom superior e professoral, reacendeu a raiva de Jan. Todos agiam de maneira superior a ele. Todos lhe diziam o que fazer, como se ele fosse estúpido para entender qualquer coisa sozinho. Jan torceu o nariz e jogou a toalha no canto. — Mostre-me — falou ele para Sergei. — Prove.

— Hïrzg... — alertou um dos gardai, mas Jan olhou com ódio para o homem.

— Cale-se — disse Jan. — Eu sei o que estou fazendo. — Ele indicou o suporte de espadas de madeira com a cabeça. — Mostre-me, regente. É fácil dizer banalidades.

Sergei fez uma mesura, como se cumprimentasse um parceiro de dança. Ele deu uma olhadela para os gardai e foi até o suporte. Jan observou o regente: o homem tinha a postura de um velho e fez uma careta ao se abaixar para puxar uma das espadas de treino e examiná-la. — Certa vez, o grande espadachim co’Musa disse que a experiência é geralmente melhor do que a habilidade crua — falou Sergei. — Há uma história que, em um duelo, co’Musa matou seu oponente apenas com uma espada de madeira. Assim como o senhor, o adversário estava armado com aço.

Ambos os gardai avançaram, meteram as mãos nas próprias armas e colocaram-se entre o hïrzg e ca’Rudka, mas Jan fez um gesto para que se afastassem e disse — Você não é co’Musa.

— Não sou — respondeu ca’Rudka. Ele deu um leve golpe no ar com a lâmina de madeira. Foi uma estocada desajeitada, e Jan notou como ca’Rudka pegava no cabo com a mão um pouco virada embaixo; seu antigo professor, lá em Malacki, teria corrigido o homem imediatamente, se tivesse visto aquilo. “Com a mão desse jeito, o senhor não tem alcance”, teria dito ele. Mas Sergei já havia assumido uma postura, com a espada abaixada e as pernas juntas demais. — Quando o senhor estiver pronto, hïrzg Jan — falou ca’Rudka.

— Comece — disse Jan.

Dito isso, Sergei começou a erguer a espada: devagar, quase desajeitado; o movimento de um amador. Jan torceu o nariz e afastou desdenhosamente a arma do homem com sua própria. Mas a esperada resistência de lâmina contra lâmina não ocorreu: ca’Rudka abrira a mão. Jan ouviu a espada de madeira bater nos ladrilhos do piso, viu quando ela escorregou até acertar a parede revestida de bronze. O golpe de Jan arrancou a arma do regente, sim, mas sem a resistência, o ataque se lançou mais para a esquerda do que deveria, e o hïrzg viu um movimento de roupa escura e sentiu as mãos de ca’Rudka baterem de leve nos dois lados do pescoço antes que pudesse reagir. O homem estava diretamente à sua frente, com o nariz de metal tão próximo que o rosto do hïrzg preencheu a superfície refletora. Ca’Rudka agarrou a gola da tashta de Jan com as duas mãos, deu um passo e imprensou o hïrzg contra a parede. A espada de Jan era inútil em sua mão: o regente estava próximo demais.

— Viu só, hïrzg Jan — ca’Rudka quase sussurrou —, alguém que queira matar o senhor não se preocupará com regras e educação, apenas resultados. — O hálito era quente e cheirava à menta. — Eu poderia ter esmagado sua traqueia com aquele primeiro golpe ou poderia ter uma faca na outra mão. De um jeito ou de outro, o senhor já estaria nos últimos suspiros.

Sergei afastou-se e soltou Jan quando foi agarrado por trás pelos gardai, com violência. Um deles socou ca’Rudka com a manopla, e o velho regente desmoronou sobre um joelho, ofegante. — Mas o senhor é um espadachim melhor do que eu, hïrzg. — Ele terminou de dizer, no chão. — Eu admito livremente. — O garda preparou o punho para dar outro soco, mas Jan ergueu a mão.

— Não! — disparou o hïrzg. — Vão embora! Vocês dois!

Os gardai olharam para ele, assustados. Os dois começaram a protestar, mas Jan gesticulou novamente para a porta. Depois que se curvaram e saíram, Jan foi até ca’Rudka e ajudou o homem a se levantar. — Você é realmente um espadachim tão ruim assim, regente?

Ca’Rudka conseguiu sorrir ao colocar a mão na lateral do corpo, inclinado para frente enquanto tentava recuperar o fôlego, e respondeu — Não, mas fiz o senhor pensar que eu era. — Ele respirou fundo pela boca e gemeu. — Por Cénzi, essa doeu. Acredito que minha lição tenha ficado bem clara?

— Que as pessoas podem mentir e me enganar para conseguir o que querem? — Jan deu uma risada amarga. — Você não é o único que está tentando me ensinar essa lição.

— Ah. — Ca’Rudka pareceu considerar a informação. Ele não disse nada e esperou.

— Minha matarh e o archigos parecem achar que agora é o momento de atacar Nessântico.

Ca’Rudka deu de ombros, depois fez outra careta. — O senhor quer admitir isso para um espião em potencial que está entre vocês, hïrzg? Ora, eu poderia mandar uma mensagem para o kraljiki.

— Você não mandará.

Sergei ficou com o rosto impassível ao ouvir isso. Ele piscou sobre o nariz de prata. — O senhor já considerou que sua matarh e o archigos podem estar certos?

— Você concorda com eles?

— Honestamente, eu preferia que não houvesse guerra de maneira alguma, que nós resolvêssemos as diferenças de outra forma. Mas se eu fosse a sua matarh... — Ele deu de ombros. — Talvez pensasse a mesma coisa.

— Então você acha que eu devo dar ouvidos a eles?

— Eu acho que o senhor é o hïrzg, e, portanto, deve tomar a própria decisão. Mas também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.

Jan desviou o olhar do homem. Ele podia se ver nos espelhos de bronze da sala, a imagem era ligeiramente distorcida nas ondas do metal fino. Jan ainda segurava a espada. Ele foi até a parede onde a arma de ca’Rudka tinha ido parar. Abaixou-se e pegou a espada de treino, depois jogou para o homem.

— Mostre-me outra coisa — disse o hïrzg. — Mostre-me como a experiência é capaz de vencer a habilidade crua.

Ca’Rudka sorriu. Ele pegou a espada, e dessa vez seus movimentos foram ágeis e graciosos. — Tudo bem. Fique em posição...

 

Nico Morel

APÓS PASSAR VÁRIOS DIAS com a mulher, Nico decidiu que ela era muito esquisita, mas também fascinante. A mulher era boa com ele. Ela alimentava bem o menino, conversava com ele — longas conversas em que Nico se viu contando tudo sobre sua matarh e Talis, que ele e a matarh fugiram de Nessântico, que ele odiava seu onczio e os primos, como fugiu do vilarejo e foi ajudado pelo regente e Varina...

A mulher passeava com Nico durante o dia pela velha vizinhança, e ele torcia para que visse Talis ou sua matarh.

Mas não viu. — O nome de seu vatarh é Talis Posti? — perguntou a mulher na primeira noite, e o menino contou sua história. — Tem certeza disso? E ele está aqui na cidade? — Nico concordou com a cabeça, e ela não falou mais nada.

A mulher disse que seu nome era Elle, mas às vezes parecia não notar quando Nico a chamava pelo nome. Às vezes, no meio de uma conversa, ela respondia a um comentário inaudível ou se dirigia ao vento como se falasse com ele. Em público, Elle dava a impressão de se encolher e parecer velha e frágil, mas na privacidade dos aposentos, a mulher era completamente outra pessoa: mais jovem, forte, atlética e cheia de vida. Ela mantinha armas no quarto: uma espada encostada em um canto perto da porta e outra ao lado da cama, e havia várias facas com gumes cruelmente afiados — a mulher quase sempre tinha duas ou mais com ela. Nico observava Elle afiar as armas à noite com uma pedra de amolar. Observava o rosto e a concentração apaixonada enquanto afiava os gumes, que provocavam arrepios em Nico.

Elle tinha uma bolsinha de couro no pescoço que não tirava nunca. Estava sempre debaixo da roupa, e à noite ela a pegava firme com a mão, como se tivesse medo de que alguém a roubasse. Nico imaginava se a mulher também não tirava a bolsinha quando tomava seu banho diário na banheira de cobre da sala de estar. O banho em si era estranho, pois o menino jamais tinha visto alguém tomar banho mais do que uma vez por semana, nem mais que uma vez por mês. Sua matarh sempre dizia que tomar banho demais deixava a pessoa doente. Talvez, pensou Nico, fosse isso que havia de errado com Elle.

De vez em quando, a mulher mandava que ele ficasse no apartamento alugado e saía sozinha — geralmente à noite. Ela ficava ausente por várias viradas da ampulheta, e geralmente Nico dormia enquanto esperava que ela voltasse. O que quer que Elle fazia naquelas noites, ela nunca contava para ele.

A noite de hoje tinha sido uma dessas. — Nico... — O menino sentiu a mão dela sacudindo seu corpo e pestanejou ao olhar para o rosto da mulher, iluminado pelas velas contra a escuridão do quarto. — Levante-se.

— Por que, Elle? — resmungou Nico com sono. Estava gostoso e quentinho debaixo das cobertas. Ela não respondeu; já tinha ido na direção da porta do quarto.

— Eu quero que você venha comigo — falou ela. De má vontade, Nico empurrou as cobertas para o lado e saiu do colchão de palha. — Sapatos — disse Elle quando ele começou a ir em sua direção descalço. Nico calçou as botas gastas, e a mulher abriu a porta. — Fique comigo. — Ela deu a ordem ao pegar sua mão, e os dois saíram noite afora.

Nico sabia que Nessântico nunca dormia, não completamente. Não importava a hora do dia ou da noite, havia pessoas pelas ruas do Velho Distrito. Mas à noite os cidadãos eram mais perigosos do que de dia, como sua matarh lhe dissera. — Você vai entender melhor quando crescer — falara ela, mais de uma vez. — A noite é uma máscara que a cidade coloca quando quer fazer coisas que não deveria. O que as pessoas fazem à noite... bem, às vezes elas precisam da escuridão para esconder. — Nico vislumbrou um pouco disso recentemente, sozinho no Velho Distrito, antes de ser encontrado por Elle. Testemunhou a fala pastosa e o passo vacilante dos frequentadores de tavernas; viu os encontros acompanhados por gemidos nos becos escuros; vislumbrou ataques rápidos e violentos; testemunhou as trocas furtivas de moedas tilintantes por embrulhos. Nico ficou próximo de Elle enquanto andavam pelas ruas, que estavam animadas por aqueles que usavam a máscara da noite.

Ela andava rapidamente, tão rápido que o menino teve que correr um pouco para acompanhá-la. Os dois cruzaram uma esquina do centro do Velho Distrito e entraram no emaranhado de vielas que iam para sudoeste, na direção do rio, e os prédios de cada lado ficaram cada vez mais velhos, próximos e menores, como se quisessem permanecer juntinhos à noite para se esquentar. Nico ficou rapidamente perdido. Não havia luzes mágicas aqui, apenas algumas lâmpadas ocasionais colocadas nas janelas de tavernas e bordéis. Duas vezes os dois passaram por um utilino, e Elle encolheu o corpo, fez com que parecesse menor e mais velha, e o cumprimentou com uma voz rouca que não parecia de forma alguma com a própria.

Finalmente, Elle puxou o menino para a escuridão de um beco e ajoelhou-se ao lado dele. — Escute, Nico. Preciso que você fique muito, muito quietinho agora. Tem que tomar cuidado ao andar para que ninguém escute seus passos, e não pode falar. Não importa o que você veja ou aconteça. Entendeu? — Na luz fraca do luar, ele enxergou o branco dos olhos, e o olhar de Elle sério e solene.

Nico concordou com a cabeça. Ela pegou a mão do menino e apertou uma vez, com delicadeza. — Muito bem, vamos.

Os dois prosseguiram mais adiante pelo beco até uma portinha meio empenada nas dobradiças enferrujadas. Elle meteu a mão debaixo do manto; quando a mão surgiu novamente, os dedos tinham um bocado de uma substância escura que ela passou nas dobradiças. A mulher empurrou a porta, que abriu relutantemente, porém em silêncio. Elle entrou e fez um gesto para Nico segui-la.

O cheiro no interior provocou ânsia de vômito no menino: havia algo morto e apodrecendo por perto, e pelo menos uma vez ele ficou contente por estar escuro demais para ser capaz de enxergar direito, embora sentisse medo de tropeçar no que estivesse morto ali. Elle pegou Nico pela mão novamente, e ele seguiu de perto a mulher até uma escada que mal conseguiu ver. Os dois subiram e chegaram a uma porta; o menino viu Elle inclinar-se ao seu lado e mexer por alguns momentos com uns pedaços de arame dentro da fechadura. Houve um clique baixinho, e Elle empurrou a porta devagar. Nico viu-se andando rápido atrás dela por um corredor estreito e escuro até parar diante de uma porta. — Quando eu abrir estar porta — sussurrou a mulher com voz rouca —, eu preciso que você fique aqui no corredor. Não se mova, não importa o que aconteça. Não diga nada. Apenas escute. Escute. Entendeu?

Nico concordou com a cabeça, calado. Elle novamente se agachou ao lado da porta com os arames; outra vez houve um clique. Ela abriu e entrou de mansinho, deixou a porta aberta. O menino não conseguiu ver nada lá dentro, embora tivesse apertado os olhos com força. Alguém no cômodo respirava alto, como se estivesse dormindo. A própria respiração de Nico parecia terrivelmente alta, e se Elle estivesse fazendo algum barulho ao andar pelo aposento, ele não foi capaz de escutar. O menino segurou o batente assustado e com vontade de desobedecer Elle e chamá-la, mas o medo sufocou a garganta.

Houve um barulhinho, um grunhido de susto, e depois a voz de Elle. — Isso mesmo. — Nico ouviu alguém falar baixinho, parecia um pouco com Elle, mas o tom de voz era grave e baixo. — Isso é uma faca no seu pescoço, e se gritar, ou sequer mexer as mãos, você morre. Faça o que eu disser e talvez você viva. Se entendeu, balance a cabeça. — Houve outra pausa, e então: — Ótimo. Eu sei quem e o que você é. Andei de olho em você. Agora, eu quero saber outra coisa. Conhece um menino chamado Nico Morel? Responda: sim ou não. E baixinho.

Nico arfou ao ouvir o próprio nome. Ele escutou a pessoa meio que sussurrar uma resposta: — Sim.

Com aquela única palavra, o menino reconheceu a voz: Talis. Ele quase pulou dentro do quarto, mas se lembrou do aviso de Elle e permaneceu agachado ao lado da porta.

— Ótimo. Você ainda continuará vivo — sussurrou a mulher para Talis. — Ah! Não se mexa; lembre-se do que eu disse. Eu odiaria que você se cortasse acidentalmente. Você dividiu a cama com a matarh do menino?

— Sim.

— Você a ama? Responda de verdade agora.

Houve uma hesitação, e Nico ficou nervoso. Depois: — Amo.

— E o garoto? Você se importa com ele?

A resposta foi mais rápida e enfática. — Sim. O garoto é... — A voz foi sumindo até um longo silêncio.

— O garoto é o quê?

— Meu filho. E sim, eu me importo com ele. Foi por isso que mandei Nico e Serafina embora, para que ficassem a salvo.

— Mas ele voltou aqui, para esta cidade. Você descobriu que Nico retornou após o numetodo pegá-lo. Sabia que o embaixador ca’Vliomani queria falar com você, mas não respondeu. Você abandonou o menino para salvar a própria pele. — Nico percebeu que Elle falava mais por causa dele mesmo, para que ouvisse a resposta de Talis.

O menino ouviu o farfalhar de pano e palha quando, apesar do aviso de Elle, Talis se mexeu. — Opa! Não. Isso não é verdade. Opa! Calma! Você está certa, eu sei que Nico estava aqui e não respondi ao embaixador, mas não pelas razões que disse, e sim porque...

— Por quê?

— Eu percebi as consequências de tentar fazer isso. Percebi que, se fosse até o numetodo, coisas piores teriam acontecido: para Nico, para mim, para todos nós. Se eu pudesse ter recuperado Nico com segurança, eu teria feito isso. Eu sabia que o embaixador trataria bem o menino. Sabia que Nico não seria maltratado se eu permanecesse escondido; mas se eu fosse atrás dele, se tentasse resgatá-lo, eu não sabia o que aconteceria. Nico poderia se machucar ou coisa pior. Poderia ter havido consequências terríveis.

— Você sabe disso por causa de magia. Magia ocidental. — Nico quase foi capaz de ver Talis fazer que sim com a cabeça. Era difícil ficar parado em silêncio e escutar. O menino queria ir até Talis, até Elle, mas também queria escutar o que ele diria. — E você viu este momento em seus feitiços? Você me viu? — perguntou Elle na voz estranha e rouca.

— Não. Eu continuei a ver Nico na tigela premonitória, como se ele estivesse próximo, mas havia algo ao redor, algo que o protegia.

— Então você me viu sim. Eu protejo Nico. E continuarei a proteger.

— Onde está ele? — perguntou Talis. — Leve-me até Nico!

— Por quê? Por que eu deveria fazer isso?

— Porque... — Nico ouviu Talis engolir em seco. — ... Porque Nico deve ficar com pessoas que conhece. Eu posso levá-lo de volta à matarh dele.

— Você faria isso?

— Sim.

— Então eu torço, pelo seu bem, que você cumpra promessas.

Após a resposta de Elle, ninguém disse nada, embora Nico tenha pensado que ouviu movimentos rápidos e furtivos. Ele espiou na escuridão até que manchas de cores nadaram diante de seus olhos, enquanto tentava ver. Ouviu Talis se remexer, ouviu o homem falar uma palavra em outra língua, e Nico sentiu um arrepio, como se fosse tocado por uma brisa fria e invisível. De repente, houve uma luz intensa, que parecia emanar do próprio Talis. Ele estava sentado na cama, com os cobertores reunidos em volta da cintura e dois pequenos filetes de sangue que escorriam do pescoço para o peito, e a luz vinha de um pequeno foco que brilhava na palma da mão, virada para cima. Elle não estava mais no quarto, embora as cortinas tremulassem em frente a uma janela aberta, perto da cama. Talis viu Nico no corredor e ficou boquiaberto. — Nico!

Nico correu para ele, chorando.

 

Audric ca’Dakwi

O PAPEL FARFALHOU na mão de Audric enquanto ele o segurava de forma que sua mamatarh Marguerite também lesse. Ouviu a kraljica respirar fundo, irritada. — Confirmamos que o selo nesta mensagem é genuinamente de Francesca ca’Cellibrecca — dizia Sigourney enquanto ele lia a missiva. — E também recebemos uma confirmação independente de que o antigo regente ca’Rudka... perdão, Rudka... realmente está em Brezno e teve uma reunião com o hïrzg, a a’hïrzg e o archigos. Quanto ao caso amoroso que ela alega haver entre o archigos e a a’hïrzg Allesandra... bem, quanto a isso só podemos especular.

O papel tremeu na mão de Audric. A mamatarh encarava o neto com um olhar furioso. — A senhora acredita nisso? — Ele perguntou para Marguerite, mas foi Sigourney quem respondeu.

— Não temos motivo para não acreditar.

— Bem, eu tenho uma razão: o mestre ci’Blaylock martelou muito bem essa história na minha cabeça. O vatarh de Francesca ca’Cellibrecca traiu o meu vatarh e todos os Domínios em Passe a’Fiume. — Seu dedo bateu no pergaminho. — Agora ela quer se aliar a nós? Quer uma recompensa?

— Se ela estiver certa, kraljiki, acho que devemos agradecê-la pelo aviso. Francesca pode nos ajudar, sendo tão íntima dos círculos de poder de Brezno.

— A senhora realmente acha que haverá guerra? — perguntou Audric, que odiou o jeito que soou: como uma criança preocupada.

— Você não é uma criança. Não é mais. Agora você deve ser o kraljiki — disse Marguerite para o neto, e ele concordou com a cabeça.

Audric falou com a voz mais grave e séria possível. — O novo hïrzg é um tolo se pensa que pode fazer isso. Nós iremos esmagá-lo. Mandaremos o hïrzg de volta para Firenzcia, sangrando e derrotado.

— Estas são bravas palavras, kraljiki Audric — disse Sigourney ao concordar com a cabeça, embora Audric tenha achado que ela não parecesse convencida, pela expressão no rosto. — Tenho certeza de que o senhor está certo, mas também devemos torcer para que a situação não chegue a esse ponto. — A conselheira inclinou a cabeça na direção do quadro, no cavalete ao lado dele. — Com a ajuda da vajica ca’Cellibrecca, talvez possamos impor diplomacia a Firenzcia. Sua mamatarh sabia disso; ela não usava força a não ser que fosse necessário.

— Não diga para mim o que ela faria — disparou Audric. Ele tossiu com a ferocidade das palavras e teve que apertar o lenço contra os lábios até o espasmo passar. Quando terminou, o kraljiki continuou, com menos volume na voz e a garganta dolorida pelo acesso. — Eu conheço melhor a minha mamatarh. Sou eu quem a compreende. É comigo que ela fala. Não com a senhora.

Sigourney ergueu as mãos e arregalou os olhos pela explosão de Audric. — Eu não quis sugerir outra coisa, kraljiki. É apenas que... — A conselheira falou mais baixo e inclinou-se na direção de Audric, como se temesse que alguém pudesse escutar, embora só houvesse os três na sala. — Precisamos tomar cuidado aqui. É possível que isso não seja nada ou que sejam as suspeitas de uma esposa que acha que perdeu a confiança do marido, especialmente se os rumores que envolvem o archigos ca’Cellibrecca e Allesandra forem verdade. Temos que levar em consideração os motivos da vajica ca’Cellibrecca.

— Sergei Rudka está em Brezno — disparou Audric. — Eu quero Rudka aqui. Quero Rudka na Bastida novamente, e dessa vez vou garantir que ele vivencie todos os prazeres das celas subterrâneas.

— Sim, sim — dizia Sigourney, mas Audric mal ouviu a conselheira, que tagarelava como se tentasse acalmar uma criança à beira de um ataque. Ela continuava falando, mas o kraljiki não ouvia nada. Sigourney começou a lembrá-lo de Sergei, a agir como se ela estivesse no Trono do Sol, e não ele. Talvez Audric tivesse que jogá-la na Bastida também. Agora que ele foi reconhecido como kraljiki, talvez jogasse todo o Conselho dos Ca’ lá dentro. Deixe que eles se reúnam e tramem nas pedras da torre principal e vejam se gostam disso. Sergei provou que era um traidor e pagaria por isso; Audric jurou que veria o sofrimento do homem em pessoa, talvez até ajudasse o torturador. Assistiria a Sergei se contorcer de sofrimento na mesa, e depois adoraria ver os corvos arrancando a carne de seus ossos enquanto o corpo balançaria na jaula na Pontica Kralji.

— Sim, você terá tudo isso — falou Marguerite. A boca contorceu-se em um sorriso momentâneo. — Você é o kraljiki agora, e eles não podem lhe negar nada. Você fincará a bandeira dos Domínios na própria cova do hïrzg. Da sua espada escorregará o sangue daqueles que tentarem impedi-lo.

— Sim — disse Audric para a mamatarh. — Eu prometo.

— O quê? — perguntou Sigourney. Ela parecia assustada ao ser interrompida. — O que o senhor promete, kraljiki?

Audric queria tossir, podia sentir a vontade na garganta e nos pulmões, mas se conteve. — Eu prometo que aqueles que tentarem me impedirem serão destruídos. É isso o que prometo. — Ele encarou os olhos da conselheira fixamente. Audric esperava ver medo ali, queria ver, mas não foi o que percebeu no rosto de Sigourney. Havia apenas uma avaliação silenciosa, e talvez pena. Isso deixou o kraljiki irritado, e a emoção provocou espasmos de tosse novamente. Ele sentiu dificuldade para respirar, sentiu a borda da visão escurecer, e pensou que fosse desmaiar completamente.

Enquanto tossia seco no lenço, praticamente com o corpo dobrado, Audric de repente sentiu a mão de Sigourney afagar seu cabelo.

— Eu sei como essa doença deve incomodar, kraljiki. Audric. Eu sei. — Sigourney puxou Audric, que resistiu por um momento.

— Você tem que ser forte. Não pode deixar que vejam sua fraqueza, ou eles a explorarão.

Mas Audric descobriu que queria esse toque de matarh e se permitiu ser aninhado por Sigourney, como se ela abraçasse um dos próprios filhos. O calor da conselheira era um alívio, e Audric ouviu um soluço que percebeu com um susto que era dele. Sigourney ouviu também, evidentemente. — Shh... tudo bem. Estamos só nós dois aqui. Só nós dois. Se precisa chorar, eu compreendo. Compreendo sim... Eu chamarei o archigos e mandarei que ele traga aquela téni de volta aqui.

Os dedos da conselheira afastaram o cabelo da testa do kraljiki. — Seja forte... — Mas era difícil ser forte o tempo todo, e ele nunca teve o carinho de matarh, e seu vatarh sempre esteve cercado por chevarittai, pelos ca’ e co’ e pelos criados. Enquanto Sigourney o abraçava, Audric abriu os olhos e viu o retrato de Marguerite. Ela olhava o neto com seriedade, frieza e reprovação. A kraljica balançou a cabeça lentamente. — Meu verdadeiro herdeiro não faria isso. Isso é fraqueza. Meu verdadeiro herdeiro saberia como deve agir. — A reprovação ardeu dentro de Audric.

Ele afastou-se de Sigourney, com tanta força que a mulher cambaleou para trás e quase caiu.

— Não! — berrou Audric. — Não. Faremos como eu quero quanto a esta questão. Mandaremos uma exigência ao hïrzg: ele tem que devolver Sergei para nós, ou eu irei pegá-lo. A senhora me escutou? Eu mesmo irei lá, à frente da Garde Civile, e arrancarei Rudka das mãos deles. — A força de Marguerite preencheu o neto neste momento, e ele ficou de pé, sem tossir. — Mande o comandante vir até mim, para que ele comece a reunir as tropas. Quero que a senhora escreva as exigências; mandaremos por mensagem rápida hoje. Daremos um mês para eles devolverem Sergei. Não mais do que isso.

— Kraljiki, o senhor está agindo rápido demais. Precisamos estudar mais essa situação, esperar...

— Esperar? — A palavra foi dita por ele e pela mamatarh ao mesmo tempo. — Não podemos esperar, vajica. E aqueles que se opuserem a mim ou se recusarem a ir comigo, eu considerarei nada mais do que traidores. Espero ver um rascunho da exigência à Terceira Chamada. Fui claro?

A conselheira encarou o kraljiki.

— Ah, finalmente você vê medo nos traços do rosto dela. Você agiu bem, Audric.

— Claríssimo, kraljiki — respondeu Sigourney. — Claríssimo.

 

Varina ci’Pallo

— ISSO MESMO... Com o cântico, pense nas fibras da madeira sendo abertas como se você afastasse uma cortina.

Varina falou baixinho para encorajar Karl, enquanto ele entoava as palavras mágicas e olhava fixamente para a bengala na mão direita, enquanto a esquerda executava o gestual necessário. Ela viu a fibra da madeira tremer e se separar, com uma flexibilidade estranha e desconcertante. Viu o esforço que Karl usou para criar o feitiço; ele ofegava e suava intensamente, como se tivesse corrido o circuito inteiro da Avi a’Parete.

— Agora, essa parte é mais complicada: mantenha a madeira separada enquanto coloca dentro o feitiço que você já preparou — disse Varina. Ele não olhou de volta para ela; Varina sabia que Karl não ousaria desviar o olhar do cajado: ou a madeira se juntaria outra vez e a bengala se estilhaçaria completamente. Ainda havia farpas nos dedos de Karl das últimas tentativas. — Vá em frente — continuou ela. — Você deve ser capaz de sentir o feitiço de luz que preparou. Eu sempre sinto como se fosse uma pequenina bola de energia na cabeça, pronta para estourar. Imagine a bola saindo de sua mente e entrando no espaço que você acabou de criar na bengala. Imagine a bola se aninhando ali. Com cuidado. Ótimo. Ótimo. E... solte tudo!

Karl encerrou o cântico e deixou a mão cair ao lado do corpo. A fenda na madeira fechou-se novamente, fazendo um som como duas tábuas batendo juntas, e a bengala estava inteira e intacta em sua mão, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Karl desmoronou na cadeira onde estava sentado. Ele secou a testa com a manga da bashta enquanto Varina ria, batendo as palmas uma vez. Karl ficou sentado ali pelo que pareceu ser várias marcas da ampulheta, enquanto tentava recuperar o fôlego.

— Você conseguiu dessa vez — falou Varina.

— Tomara que sim.

— Quer testar para ter certeza? Basta segurar a bengala e falar a palavra de ativação.

— Depois de todo aquele transtorno? — disse Karl. — Acho que simplesmente vou acreditar em você, por enquanto. — Ele suspirou, deixou a cabeça pender e fechou os olhos. — Por Cénzi, isso foi difícil. Não admira que Mahri tivesse aquela aparência.

Varina riu novamente ao ouvir isso, mas ouviu uma certa amargura involuntária no som. Ela tocou o próprio rosto e acompanhou o traçado das rugas que não eram visíveis há um ano. Enterrou a preocupação nas palavras: — É uma questão de encontrar a palavra e os gestos corretos para mover a energia, só que você deve conter o feitiço e segurar o objeto a ser enfeitiçado ao mesmo tempo; isso é o que torna difícil. Pelo que sabemos dos ocidentais, eles atribuem o poder a um de seus deuses, assim como os ténis fazem aqui, mas é apenas uma questão do cântico certo, dos movimentos corretos. Questão de ciência, não de fé. A vantagem é que, assim que a tarefa é cumprida, é o objeto que contém o feitiço, não o feiticeiro, e desde que, antes de mais nada, o objeto seja de qualidade e não se quebre depois, é concebível que ele consiga conter o feitiço indefinidamente, desconfio eu. Ainda assim... — Os dedos passaram novamente sobre as rugas do rosto e pentearam o cabelo grisalho e seco para trás. — É um jeito caro demais de fazer as coisas, se quer saber.

— Eu entendo — falou Karl. — Eu me sinto completamente exaurido.

Karl não entendia. Não poderia entender. Não ainda. Varina sorriu novamente. Esticou o braço como se fosse dar um tapinha em sua mão, mas recuou no último instante. Isto fazia parte da dança incômoda que os dois faziam há dias agora.

Eles tinham voltado a Nessântico há dez dias. Os dois retornaram à cidade com Serafina, que voltou a morar na antiga casa. A mulher convidou Varina e Karl para ficar com ela, uma oferta que eles aceitaram — os antigos locais frequentados pelos numetodos sem dúvida estavam sendo vigiados pela Garde Kralji, e os dois não viram absolutamente nenhum numetodo no Velho Distrito. Eles vasculharam a vizinhança com Serafina, perguntaram sobre Nico, mas ninguém se lembrava de ter visto o menino, certamente não depois do dia em que Varina e Karl ajudaram o regente a escapar da Bastida. Se Nico realmente retornou a Nessântico, como Varina sabia, ele parecia ter desaparecido de alguma forma; se Talis ainda estava na cidade, ele também permanecia escondido.

E quanto a Varina... após a incômoda conversa em Ville Paisli, ela não parecia saber exatamente como agir perto de Karl. Ter admitido que queria mais do que sua amizade. . . Por que ela disse aquilo para ele? Karl olhava Varina de um jeito esquisito agora, como se lembrasse de todas as conversas que tiveram ao longo dos anos e reinterpretasse os diálogos, como se encarasse as conversas à luz dessa revelação e ficasse pensando.

Por que você contou para ele? Por que admitiu?

Ela afastou a mão da mão de Karl. Ele começou a esticar o braço na direção dela. — Varina...

— Voltei! — O chamado soou assim que a porta da sala foi aberta e Serafina entrou. Ela carregava uma sacola de pano com uma bisnaga de pão protuberante. Varina viu que a mulher olhou esquisito para os dois antes de andar até a mesa e pousar a sacola ali. Serafina tirou a bisnaga de pão, depois meia rodela de queijo e um saco de papel com amoras-do-brejo. Sem falar nada, Karl e Varina observaram Serafina, que suspirou e balançou a cabeça.

— O que está acontecendo? — perguntou ela.

— Eu não sei do que você está falando — falou Varina. Ela perguntou-se se Serafina tinha visto os dois trabalhando no feitiço, mas a mulher balançava a cabeça com um sorriso irônico.

— Vocês dois — disse Serafina enquanto olhava de Varina para Karl. — É óbvio que não são casados, não importa o que tenham dito para minha irmã, lá em Ville Paisli. Mas também é óbvio que existe algo entre vocês, e que nenhum dos dois sabe o que fazer a respeito disso. Eu entendo: foi assim comigo e Talis, a princípio. Eu fui muito magoada por um antigo amor que não se importava comigo, apenas com ele mesmo, e pensei que seria assim com todo mundo. Mas Talis... é um bom homem. Ele se importava comigo, e quando Nico nasceu, ele foi um bom vatarh também. Mas aquele maldito numetodo... — Ela mordeu o lábio inferior, enquanto Varina olhava para Karl, erguendo uma sobrancelha.

— O numetodo? — perguntou Karl.

— Talis disse que o embaixador tentou matá-lo; é por isso que ele mandou a mim e a Nico embora, porque pensava que os numetodos viriam atrás dele, e, uma vez que o embaixador era amigo do regente ca’Rudka, que a Garde Kralji viria atrás dele também. Eu acho que isso é algo que ele não tem mais com que se preocupar... — acrescentou Serafina com um sorriso irônico. — O kraljiki parece gostar do regente e do embaixador ainda menos do que Talis.

— Talis não entrou em contato com você? — insistiu Karl.

Serafina negou com a cabeça. — Ele entrará em contato quando achar que é seguro. Talis saberá que estou aqui em breve, se já não souber. Talvez tenha encontrado Nico também. — Ela suspirou, e Varina viu a mulher pestanejar para conter as lágrimas. — De qualquer forma, eu estava dizendo que vejo vocês dois darem voltas um ao redor do outro como se estivessem passeando pela Avi a’Parete e... bem, eu fiquei contente por finalmente admitir que estava apaixonada por Talis. Foi a melhor coisa que fiz em muito tempo. É isso.

Serafina sorriu e deu tapinhas na mão de Varina, que ainda estava em seu ombro. — Eu irei ao açougueiro para ver o que ele tem. Depois vou procurar por Nico em volta do Parque do Templo; ele sempre gostou de ir lá.

— Eu irei com você — falou Varina, mas Serafina balançou a cabeça.

— Não. Eu gostaria de ficar um pouco sozinha. Voltarei para casa antes da Terceira Chamada, e podemos preparar o jantar então.

Serafina sorriu para os dois novamente, pegou a sacola de pano e saiu dos aposentos outra vez. Eles ouviram o barulho da fechadura quando a mulher saiu; Varina sentiu o olhar de Karl e perguntou — O que faremos se encontrarmos Talis, Karl? Ou se ela encontrar Nico? Serafina ama Talis, e Nico nos reconheceria. O que faremos então?

— Eu não sei. Eu não sei de mais nada.

Varina balançou ao ouvir isso, e o silêncio entre eles, aos poucos, cresceu. Ela sentiu seu peso, o silêncio envolveu os dois como as correntes sujas de uma cela da Bastida. Varina ocupou-se ao colocar o pão e o queixo em uma cesta de vime.

— Varina — disse Karl finalmente, e ela parou. — Serafina está certa. É que... — Os dedos bateram na bengala. — Ainda dói sempre que penso em Ana. Ela...

— Eu sei. Eu vi... — Varina começou a falar, depois abaixou o olhar para a mesa. — Algumas vezes, na rua, eu vi as grandes horizontales que você contratava para... — Ela ergueu o olhar novamente. — Para mim, todas pareciam com ela: o mesmo tom de pele; a mesma compleição física.

Karl abaixou o olhar, culpado. — Varina...

— Não. — Ela interrompeu. — Eu entendia. Entendia mesmo. Mas ainda assim doía, porque você não me enxergava, quando era... — Varina fechou a boca e apertou os lábios. Ela não diria o resto. Não diria.

Karl ergueu as mãos e deixou que caíssem de volta na mesa. — Serafina está certa. Por causa da minha obsessão, eu deixei de ver o que estava bem na frente do meu nariz. Fui estúpido. Pior, fui cruel, e isso é algo que nunca quis ser. Não com você, Varina. Jamais com você. Você sempre foi alguém que eu admirava e em quem confiava. E agora... eu não sei se...

— Eu também não sei — disse ela. Vamos, Varina ouviu uma voz interna. Vamos. Diga. — Karl, nós dois podemos continuar a imaginar ou...

Ela deixou a palavra no ar, tão intensa na mente de Karl como fogo mágico.

Ele estendeu a mão para Varina.

Ela pegou.

 

Enéas co’Kinnear

O SEGUNDO CÉNZIDI. O dia em que ele deveria se encontrar com o kraljiki.

Este é o seu momento. Hoje, eu o tomarei em Meus braços, e você ficará eternamente feliz e em paz. Hoje...

— Obrigado, Cénzi — sussurrou Enéas agradecido. — Obrigado. Eu sou Seu criado, Seu instrumento.

Ele pegou o nitro em pó, o carvão e o enxofre; misturou todos cuidadosamente com urina velha, como Cénzi instruiu, até criar a areia negra dos ocidentais. Enfiou bolos da areia negra em uma bolsa de couro a tiracolo, que depois colocou sobre o uniforme. Ensaiou na mente o feitiço de fogo dado por Cénzi até saber os gestos e o cântico e ser capaz de executar o encantamento simples em poucos instantes. Sim, isso demonstraria ao kralji o que os ocidentais podiam fazer. Faria Nessântico se dar conta de como essa guerra ficou importante e perigosa.

Então, finalmente, Enéas arrumou o quarto, para que o local parecesse organizado quando viessem investigá-lo depois.

Ao caminhar para sua audiência no palácio do kraljiki, ele permitiu-se apreciar os locais interessantes de Nessântico, absorveu tudo que a cidade que tanto amava tinha para oferecer. Enéas passeou pela margem norte da Ilha A’Kralji ao sair do apartamento, olhou com carinho para as torres com portões da Pontica Mordei e viu uma barcaça cheia de caixotes passar sob a travessia de pedra trabalhada. O A’Sele reluzia à luz do sol, com ondinhas que brilhavam e dançavam. Casais estavam sentados de braços dados na grama da margem, perdidos na presença uns dos outros. Um quarteto de e’ténis passou correndo por Enéas a caminho de alguma tarefa, os robes verdes tremulavam em volta dos tornozelos, um leve rastro de incenso ficou para trás. Ele ouviu a voz eterna e caótica da cidade, o som de milhares de vozes que falavam ao mesmo tempo.

Enéas passou pelo Velho Templo e ergueu o olhar para o domo inacreditável que o artesão co’Brunelli construía, o maior do mundo — se não entrasse em colapso sob o terrível peso da alvenaria. Ele fechou a cara uma vez, ao ver um artista de rua que equilibrava bolas acesas pelo próprio malabarista através de um feitiço — aquilo era serviço de numetodo, não foi feito pelas preces de um téni, e incomodava Enéas ver tal coisa feita publicamente, sem que qualquer espectador ficasse incomodado com a cena.

A archigos Ana permitiu que as pessoas perdessem a noção da verdade e da fé. Ela passava a mão na cabeça dos numetodos e permitia que sua heresia se espalhasse — e é por isso que os Domínios e a Fé estão partidos em dois e quebrados. Eu mandei os ocidentais como um sinal e um aviso. Hoje, você levará a eles o Meu alerta final.

A voz falou em tom baixo e sinistro na cabeça de Enéas. Ele fez o sinal de Cénzi com uma cara feia para o malabarista e para o público em volta antes de ir embora.

O Palácio do Kraljiki era branco e dourado contra um céu que parecia pintado. Enéas esteve uma vez anteriormente no palácio, como um e’offizier ajudante de ordens que acompanhava seu a’offizier em uma reunião do Conselho dos Ca’, mas essa seria a primeira vez que ele estaria realmente diante do Trono do Sol. Enéas deu sua Lettre a’Approche ao garda nos portões laterais, que a verificou, passou um dedo pelo selo em alto relevo e prestou continência a ele. — O senhor é aguardado, o’offizier co’Kinnear — disse o homem, gesticulando. Um criado jovem veio correndo, com o uniforme dourado e azul da equipe do kraljiki. Enéas seguiu o garoto pelos jardins podados e esculpidos com topiarias e arranjos de flores, com vários cortesãos ca’ e co’ passeando pelos caminhos de seixos brancos. Ele foi conduzido pelo guia por uma porta lateral para o interior do palácio em si, depois por um corredor de mármore rosa-claro, com um piso lustradíssimo e lâmpadas mágicas, dispostas poucos passos umas das outras, que não estavam acesas, pois havia luz suficiente que entrava pelas janelas nas duas pontas do corredor. — Espere aqui, o’offizier — disse o menino ao parar diante de uma porta com dois gardai em posição de sentido. — A recepção pública está praticamente encerrada. Verei se o kraljiki está pronto para receber o senhor. — Os gardai abriram a porta e o criado entrou. Enéas vislumbrou um grupo de suplicantes e ouviu o burburinho baixo de conversas sussurradas; ao longe, alguém falava mais alto: a voz de um menino, rouca e interrompida por tosses. Ele pensou ter visto o Trono do Sol, reluzente em contraste com a meia penumbra das janelas fechadas do resto do salão. A porta foi fechada novamente antes que Enéas pudesse ver mais.

— Como está a guerra, o’offizier? — perguntou um garda da porta. — Todo mundo está esperando um navio expresso dos Hellins, mas ele não chega.

— Ele não chegará — disse Enéas.

Os dois gardai entreolharam-se. — O’offizier?

— Ele não chegará — repetiu Enéas. — Cénzi já me disse isso.

Os gardai entreolharam-se novamente. Enéas viu uma rápida revirada de olhos. — Ah, Cénzi disse para o senhor. Entendi.

— O senhor não fala com Cénzi, e’offizier? — perguntou Éneas para o homem. — Então tenho pena do senhor.

A porta foi aberta novamente e interrompeu qualquer réplica que o garda viesse a dar. Não surgiu o garoto, mas sim um homem mais velho, com a insígnia do kraljiki no uniforme. — Sou Marlon — disse ele. — O kraljiki está pronto para o senhor. Siga-me.

Os gardai mantiveram a porta aberta para Enéas passar. O salão ainda estava lotado, com grupos de ca’ e co’ e por quem teve a sorte de ter o nome incluído na lista de suplicantes do segundo cénzidi. Eles viram Enéas entrar atrás de Marlon, com um misto de curiosidade e rancor quando ficou claro que o o’offizier estava sendo levado diretamente para o Trono do Sol.

As janelas do salão estavam parcialmente fechadas, de maneira que o aposento estava escuro e abafado. No fundo do salão, o Trono do Sol reluzia com seu brilho amarelo solar e destacava a silhueta de um rapaz. Enéas sabia que o kraljiki Audric era jovem, mas mesmo assim se assustou com sua aparência. Ele parecia pequeno para a idade, com peitoral largo, porém magro, e tinha um rosto encovado e olheiras. A testa suava, mas o menino parecia mais febril do que encalorado.

Havia um integrante do Conselho dos Ca’ à esquerda do kraljiki: uma mulher mais velha, com cabelo obviamente tingido de preto, que olhava fixamente para Enéas, com o olhar predatório de um falcão, embora ele não a reconhecesse. Um retrato da kraljica Marguerite estava à direita de Audric. O impacto da pintura era impressionante: Enéas nunca tinha visto algo tão realista e sólido — tinha mais presença do que a mulher do outro lado do trono. Enéas pensou que estava sendo observado pela kraljica ao se aproximar, e a sensação não foi agradável. Isso fez com que ele quisesse abraçar a bolsa que carregava; fez com que quisesse dar meia volta e fugir.

Você não pode. Eu não permitirei. Cénzi rugiu em sua mente, e Enéas balançou a cabeça como um cachorro tentando se livrar de pulgas.

O kraljiki pigarreou quando o o’offizier se aproximou, um som líquido. Ele tossiu uma vez, e Enéas ouviu o barulho de catarro nos pulmões do menino. Audric estava com a boca semiaberta e segurava um lenço de renda com manchas de sangue na mão direita. — O’offizier co’Kinnear — falou o kraljiki quando Enéas se aproximou do tablado e se curvou. — O archigos Kenne me disse que o senhor veio da guerra dos Hellins com notícias para nós. — O kraljiki falava pausadamente e devagar, parava muitas vezes para tomar fôlego e, ocasionalmente, para conter uma tosse com o lenço. — Ouvimos falar de seu belo desempenho na Garde Civile e saudamos o senhor por servir ao trono. Fico contente em lhe informar que assinei sua Lettre a’Chevaritt para que entre em vigor imediatamente.

Enéas curvou-se novamente. — Kraljiki, sinto-me honrado, e louvado seja Cénzi, que torna tudo possível.

— Sim — respondeu Audric. — Também ouvimos falar de sua grande devoção à fé concénziana, e que um dia o senhor considerou seguir carreira como téni. Os Domínios estão felizes que tenha escolhido uma carreira marcial em vez disso.

— Eu continuo servindo a Cénzi, de uma forma ou de outra — falou Enéas e inclinou a cabeça.

O kraljiki, com uma aparência entediada, dava a impressão de estar ouvindo outra pessoa. O menino deu uma olhadela para o quadro de Marguerite, concordou com a cabeça e disse — Sim, acho que sim. — Enéas não tinha certeza se Audric se dirigiu a ele ou não. Ele hesitou, e o kraljiki voltou sua atenção para Enéas. — Suas notícias, o’offizier? E quanto aos Hellins? Nós não sabemos de nada há mais de um mês.

— Eu trouxe algo para o senhor — disse Enéas. Ele deu um tapinha na bolsa de couro, com cuidado, quase um afago. Tirou a alça pela cabeça e esticou a bolsa na direção de Audric. — Se eu puder me aproximar?

O kraljiki fez que sim com a cabeça, e Enéas subiu na plataforma do Trono do Sol. Agora, mais de perto, ele sentiu o cheiro de doença em volta de Audric: o odor de putrefação, o mau hálito. O o’offizier fingiu não notar e entregou a bolsa para Audric, que a colocou no colo. O kraljiki espiou o interior e enfiou a mão para sentir o que havia ali dentro. — Tijolos de areia? — perguntou ele com a testa franzida, intrigado. Audric contraiu o nariz ao sentir o cheiro. — Terra negra?

— Não — falou Enéas baixinho. — Deixe-me mostrar para o senhor...

Com o chamado da Voz de Cénzi dentro de sua cabeça, ele começou o cântico rapidamente, com gestos bruscos. Pelo rabo do olho, Enéas viu a mulher à esquerda do kraljiki levar um susto, depois se afastar do trono. Ouviu alguém atrás dele na plateia gritar. Audric abriu a boca como se estivesse prestes a falar.

Um fogo intenso surgiu entre as mãos de Enéas. Ele inclinou-se para frente, segurou o fogo sobre a boca aberta da bolsa e deixou cair.

Cénzi rugiu Sua satisfação. O mundo explodiu em som e luz eternos.

 

A Pedra Branca

ELA VIGIOU Talis nos dias que se seguiram.

A Pedra Branca descobriu que não podia simplesmente devolver Nico ao homem e deixar o menino de lado. As vozes da pedra debocharam de sua preocupação. Fynn foi especialmente sarcástico e cruel. — Você quer uma família? Então agora a assassina vai se preocupar com as outras pessoas? A assassina descobriu o amor, agora que tem um bastardo no útero? — Ele gargalhou de felicidade. — Você virou uma tola, mulher. Olhe o que minha família fez comigo! A criança que você carrega irá traí-la alegremente da mesma forma, um dia. Família! — Fynn riu novamente, os demais se juntaram a ele em um coro debochado.

— Calem-se! — disse ela para todas as vozes, o que atraiu os olhares das pessoas à sua volta na rua. A Pedra Branca devolveu a atenção com uma cara feia. Ela abraçou o estômago em um gesto protetor e ficou assustada, como sempre, com a curva inchada onde antes havia um abdômen atlético e reto. Já sentia um leve movimento ali: a filha de Jan. Sua filha. — Vocês não sabem. Não têm como saber.

Quando pensava na criança, nascida e viva, era sempre uma menina, mas com algumas feições de Nico também, como se fossem irmãos estranhos. — Eu abriguei o menino quando ele precisava de alguém — falou ela para as vozes. — Sou responsável por ele agora. Eu fiz essa escolha.

As vozes debocharam dela. Gargalharam.

A Pedra Branca vinha observando o apartamento de Talis desde que deixou Nico lá. Ela abandonou o próprio apartamento e alugou um quarto em cima do de Talis, embora tomasse cuidado para que o menino não a visse entrar ou sair do prédio. Fez um buraco no chão para que pudesse vigiá-los e ouvi-los lá embaixo. E era o que fazia, pronta para agir caso ouvisse Talis maltratar Nico de qualquer maneira, pronta para surgir como a Pedra Branca para tirar a vida do homem, furiosa e vingativa. Mas ela não ouviu nada que a fizesse temer pelo menino.

Não diretamente, de qualquer forma.

Através de Nico, ela já sabia que os numetodos andaram caçando Talis. Sabia que ele era um ocidental e usuário da magia daquele povo, e que os Domínios estavam em guerra com os ocidentais nos Hellins. Por si só, isso já seria um perigo para Nico. Portanto, a Pedra Branca observava.

No segundo cénzidi do mês, ela seguiu os dois quando Nico levou Talis ao antigo apartamento da Pedra Branca, ela os observou das sombras do beco à frente quando eles surgiram novamente. O menino balançou a cabeça, confuso, e gesticulou com os braços enquanto falava com o vatarh. Naquela tarde, pelo buraquinho, ela ouviu a conversa dos dois lá embaixo. — Eu não entendo — disse Nico. — Era lá que Elle morava, Talis. De verdade. Eu estive lá.

— Eu acredito em você, Nico, mas ela não está mais lá — respondeu Talis. A Pedra Branca notou a preocupação na voz do homem e foi capaz de imaginá-lo esfregando os cortes em cicatrização no pescoço enquanto falava. Ela ouviu o comentário implícito nas palavras: ela é perigosa. Ela poderia ter me matado.

— Eu gosto de Elle — disse Nico. — Ela foi boazinha comigo.

— Fico feliz que Elle tenha sido boazinha. Fico feliz que ela tenha trazido você até mim, mas...

Qualquer que fosse a objeção, Talis não disse. A Pedra Branca sorriu diante dessa atitude. — Mas ela é louca — falaram as vozes. — E a loucura está crescendo.

Ela pegou a pedra na bolsinha com força, como se pudesse estrangular as vozes com os dedos, que ficaram brancos com a pressão.

A Pedra Branca não queria ouvir mais. Continuaria a vigiar, sim, mas por enquanto parecia que Nico estava a salvo com Talis. Ela saiu de mansinho do quarto, desceu correndo as escadas e saiu pela porta dos fundos do prédio. Cruzou rapidamente as ruas do Velho Distrito, distanciou-se das áreas principais e entrou nas profundezas tortuosas onde ruas estreitas faziam curvas e se enroscavam e os prédios eram escuros, antigos e pequenos. Ela ouviu os próprios pensamentos, as vozes dentro da cabeça, a conversa ao redor. — Matarh! — ela ouviu o grito de uma criança, e por um momento pensou que fosse Nico. Ela virou-se com um sorriso e os braços abertos para abraçá-lo.

Não era Nico. Era alguma outra criança, quase da mesma idade. — Matarh! — berrou o menino novamente, e uma jovem veio correndo da porta de um prédio próximo e pegou a criança nos braços. Os pés do menino balançaram quando ele foi abraçado por ela.

A Pedra Branca viu a cena e abraçou a si mesma, involuntariamente, em solidariedade. Ela queria sentir prazer com essa cena, que deveria ser bastante comum, mas o que sentiu foi uma onda forte de inveja. — Sim, isso aí é o que você nunca terá — vociferou Fynn dentro dela, os outros se juntaram a ele. — Jamais poderá ter esse amor. Ninguém jamais amará você desta maneira. Nem mesmo a criança que carrega. Jamais.

— Não é verdade — disse ela para as vozes e sentiu lágrimas escorrerem pelas bochechas. — Não, não é verdade.

— É sim. É sim. — Um coro de negativa. — É sim.

A Pedra Branca deu meia-volta e fugiu da cena, perseguida pelas vozes. Andou às pressas, sem saber sequer aonde ia, correu pelas feiras lotadas e por avenidas meio desertas, passou por lojas e comércios. Ela finalmente foi parar na margem norte do A’Sele, perto da Pontica Kralji. Lá, sem se importar com a lama e o cheiro fétido, ela se sentou e abraçou os joelhos, tentou ignorar as vozes que gritavam na cabeça enquanto balançava para frente e para trás. Se alguém a visse, pensaria que era louca e a deixaria em paz. Ficou sentada ali por um bom tempo, os pensamentos eram frenéticos e caóticos, até ser acalmada pela exaustão e as vozes sumirem. Ficou sentada, ofegante, enquanto esfregava a barriga inchada e imaginava a vida ali dentro.

— Eu vou proteger você. Vou mantê-la a salvo — falou ela para a filha.

Em algum lugar do outro lado do A’Sele, na Ilha A’Kralji, quase que como uma resposta, veio o som repentino de um trovão, e a Pedra Branca viu uma fumaça negra subir de algum ponto entre o amontoado de prédios da ilha. Não muito tempo depois, as trompas da cidade começaram a ecoar, embora já passasse da Segunda Chamada.

Ela se perguntou o que teria acontecido.


??? COMBATE ???

Audric ca’Dakwi

Niente

Kenne ca’Fionta

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ALGUÉM ESTAVA GRITANDO. Sem parar.

Quando Audric abriu os olhos, tudo estava tingido de vermelho, como se o mundo tivesse sido pintado com sangue. Coágulos nadavam sobre a sua visão. Sua respiração era fraca e estridente, ele mal conseguia aspirar. Audric parecia estar nos próprios aposentos, na própria cama, mas não conseguia mexer o corpo de forma alguma. O rosto coçava, e ele queria erguer a mão para coçar, mas não conseguia erguer nenhuma das mãos ou mexer os pés. Tinha medo de levantar a cabeça e olhar para baixo, medo do que poderia ver.

E a dor... Havia tanta dor, e Audric queria gritar, mas só conseguia gemer, um lamento fraco e eterno. Sentiu lágrimas quentes escorrerem pelo rosto.

— Você não pode morrer. Não pode... — A voz dela estava tão rouca e hesitante quanto a dele, um mero sussurro.

— Mamatarh? — perguntou Audric. — Onde a senhora está? Marlon? Seaton? Onde está a kraljica Marguerite?

A voz veio de uma distância irreal. Os ouvidos estavam tomados por um rugido contínuo, como se a cidade estivesse caindo em volta dele. — Marlon? Seaton? — chamou Audric de novo. A dor agigantou-se, como uma enorme onda na arrebentação. O kraljiki tentou gritar, mas não saiu nada da boca aberta.

Um rosto surgiu sobre Audric, que piscou. Ele pensou ter reconhecido o archigos Kenne. Cânticos de ténis misturaram-se ao rugido nos ouvidos. — Archigos?

— Sim, kraljiki. Eu vim assim que soube. — Audric mal conseguia ouvir o archigos, as palavras ficaram perdidas no rugido nos ouvidos.

— O que aconteceu? — Cada uma das três palavras pesava tanto quanto os grandes blocos de mármore da fachada do palácio. Audric mal conseguiu colocá-las para fora. Ele fechou os olhos.

— Ainda não temos certeza, kraljiki. O o’offizier co’Kinnear... ele talvez fosse um numetodo ou... — A voz do archigos sumiu. Audric abriu os olhos novamente; a boca de Kenne se movia como se ele ainda estivesse falando, mas o kraljiki só conseguia ouvir o rugido vermelho, que aumentou, e com o ruído veio a dor novamente, ele tentou gritar junto com o rugido, mas saiu apenas um arquejar. — ... jamais saberemos como... a conselheira ca’Ludovici está gravemente ferida... Marlon e Seaton, mortos... — dizia o archigos, mas Audric já não ouvia.

Ele vislumbrou o quadro da mamatarh. Estava apoiado contra a parede perto da cama. A moldura grossa tinha sido quebrada do lado esquerdo, e havia grandes rasgos desfiados na tela, as feridas cruzavam o rosto de Marguerite. Audric gemeu de novo. — Não! — Ele tentou gritar, como se a negação pudesse afastar e mudar tudo.

O kraljiki lembrou. Não tinha certeza. O o’offizier que se aproximou do Trono do Sol, um clarão... depois nada, até agora.

— Você não pode morrer...!

A dor entrou correndo novamente, desta vez ele sentiu o corpo inteiro tremer e sacudir, o corpo arqueou-se, e o archigos pressionou Audric para baixo, berrando com urgência com outra pessoa no quarto. — ... o que você puder fazer... o Ilmodo... Cénzi perdoará...

A dor ameaçou parti-lo ao meio, quebrá-lo como um galho no inverno, mas de repente foi embora. Sumiu. Os olhos estavam abertos, ele viu o archigos Kenne gritar com o curandeiro do palácio e a téni de robe verde, havia outras pessoas no quarto, todas gritavam, mas Audric não conseguia escutar nada, nada além do rugido cada vez mais alto. — Você não pode morrer. — E a dor finalmente foi embora. Audric quis erguer a mão até a mamatarh, mas o corpo ainda não se movia, ele sequer conseguia respirar, embora os pulmões doessem, o kraljiki tentou... tentou... e...

 

Niente

ELE TORCEU PARA que a tomada da ilha de Karnmor fosse o suficiente, que o tecuhtli Zolin ficasse satisfeito com a demonstração do poder dos tehuantinos, e que eles pegassem os navios e voltassem para casa. Mas Zolin olhou para o leste, em vez disso. — Nós ferimos o corpo — disse ele —, mas a cabeça permanece, e o corpo se cicatrizará, a não ser que ataquemos. Eu sei o que você dirá, nahual, mas agora é o momento de atacar. Eu sinto isso. Pergunte a Axat. Ela lhe dirá.

Niente olhou na tigela premonitória e polvilhou as ervas sobre a água. Talvez porque a água daqui fosse menos pura, ou talvez porque a terra de seus deuses estivesse distante, ou talvez porque sua habilidade tivesse diminuído, mas novamente as imagens que ele viu refletidas ali eram confusas ou passageiras demais, e Niente ficou incomodado com elas.

... Um menino em um trono brilhante, mas o rosto era um crânio descarnado, e ali: seria o ocidental que ele enfeitiçou? Uma mulher à espreita no fundo da cena, difícil de ver... Mas a água fez um redemoinho e, quando parou novamente, Niente viu outro garoto em outro trono, e também uma mulher atrás dele, com um téni de robe verde e cabelo escuro ao lado dela... Exércitos passavam por uma terra devastada com estandartes que tremulavam, marchavam sobre um solo cheio de corpos... Fogo e um templo, e fileiras de pessoas em robes verdes rezando... Uma grande cidade com um rio que corria no meio, e fumaça que saía dos grandes prédios... Um guerreiro tehuantino no chão, trespassado por uma lança, e o corpo de um nahualli ao lado de um cajado mágico quebrado, mas a água ficou turva agora, e Niente não conseguiu ver os rostos dos que estavam caídos ali para saber quem eram, embora o estômago tenha ficado embrulhado, e de repente ele não quis ver...

— Então? — perguntou Zolin, e Niente tirou os olhos da tigela. O tecuhtli havia entrado na tenda e observava o nahual. A águia de sua patente espalhava asas com penas vermelhas até as bochechas, enquanto o bico se abria na testa como se para dar um grito feroz.

Eles estavam acampados à beira de um grande rio largo que um dos orientais capturados disse se chamar A’Sele. Segundo informaram, bem longe, rio acima, estava Nessântico, a capital dos Domínios. A frota tehuantina estava ancorada nas proximidades, perto do ponto onde o A’Sele desembocava no Mar Médio, com os cascos baixos na linha d’água com a pilhagem de Karnmor.

Eles deixaram a cidade de Karnor em ruínas há um punhado de dias. A cidade foi violada e saqueada, mas não tomada; o resto da grande ilha foi deixado completamente incólume. Ao contrário, Zolin levou o exército de volta para os navios, saiu do porto de Karnor e contornou Karnmor até a boca do A’Sele, onde o exército seguiu para terra firme mais uma vez. Eles encontraram pouca resistência. O povo dos Domínios desapareceu diante dos tehuantinos como neve na primavera, as pessoas recuaram e sumiram nas florestas e estradas remotas do terreno, abandonaram os vilarejos com seus prédios e casas de formato estranho. Essa era uma terra que tinha sido domada há gerações: com campos e fazendas abundantes, com estradas largas, pavimentadas por paralelepípedos dentro dos vilarejos e cercadas por muretas de pedra do lado de fora. Era uma terra domesticada, diferente das encostas das Montanhas Escudo, mais parecida com as fazendas das grandes cidades em volta do Mar Interior ou dos canais de Tlaxcala, a capital construída no próprio mar.

— Nahual Niente?

Ele levou um susto e percebeu que ainda olhava para a tigela, embora visse apenas seu reflexo confuso e arruinado pela magia, com o olho esquerdo opaco que estava branco de uma maneira assustadora. Uma gota de suor caiu da testa e pingou na água, o que fez tremer a imagem de Niente. Ele ergueu a cabeça e falou — Eu vi uma batalha. E um rei-menino no trono. O rosto era um crânio.

— Ah, então talvez seu oriental tenha cumprido a tarefa?

Niente deu de ombros.

— A batalha, quem ganhou?

— Eu não sei. Eu vi... vi um guerreiro morto e um nahualli morto.

Zolin olhou com desdém e disse — Guerreiros sempre morrem. Nahualli também. É como são as coisas. — ele parou e franziu os olhos, o que movimentou as asas da águia. — Fui eu quem você viu?

Niente balançou a cabeça. — Não sei — respondeu, mas não explicou mais.

— Você nos viu voltando para casa de navio? — perguntou o tecuhtli.

— Não. — Outra resposta curta, Zolin concordou com a cabeça.

— Você não quer estar aqui, não é? Pensa que estou cometendo um erro.

Niente jogou fora a água da tigela premonitória. Ele a secou com a borda da camisa e perguntou-se se deveria dar uma resposta direta para Zolin. O nahual jamais tinha sido senão honesto com Necalli, mas Necalli não tinha o temperamento perigoso de Zolin. — Estamos muito longe de casa, em uma terra estranha.

— Uma terra que não ofereceu quase resistência alguma — falou Zolin. Ele gesticulou com os braços para leste. — Essa grande cidade dos orientais já deve saber que estamos aqui, mas não vejo exército algum diante de nós.

— O senhor verá. E não temos reforços atrás de nós, nenhum guerreiro ou nahualli novos para substituir os caídos. Eu vi os castelos e as fortificações dos orientais na tigela premonitória, tecuhtli. Nós tivemos a vantagem do elemento surpresa em Karnor; isso não existe mais. Eles estarão preparados para nós.

— E sua areia negra irá demolir as muralhas e reduzir as torres a ruínas.

— Eu vi o fogo das forjas e a reza de seus ténis-guerreiros. Vi os exércitos, e eles eram enormes, espalhados sobre a terra como uma floresta de aço. Somos apenas alguns milhares aqui, tecuhtli, e os orientais têm muito mais. Agora nós nos encontramos como eles em nossa terra, longe de nossos recursos. Duvido que nós nos saiamos melhor do que eles lá.

— É isso o que Axat mostra para você? — Zolin apontou para a tigela nas mãos de Niente, inscrita com os símbolos da lua da deusa. — Você vê, inegavelmente, a minha derrota na água?

Niente balançou a cabeça negativamente.

— Ótimo. — Zolin mexeu os músculos do maxilar e flexionou as asas da águia. — Eu sei que você preferiria que voltássemos para casa, nahual. Eu compreendo, e você não é o único a ter essa opinião. Eu escuto vocês, todos vocês. Todos nós sentimos saudade de casa e das nossas famílias, eu mesmo não menos do que qualquer outra pessoa. Mas meu dever é nos proteger da melhor maneira possível, e essa... essa me parece a melhor maneira. Eu gostaria que você não mentisse e me dissesse se os deuses insistem que a retirada é a atitude mais prudente.

— Eu digo o que eu vejo, tecuhtli. Sempre. Nada mais. Nada menos. Eu jurei a Axat que seguiria e serviria ao tecuhtli, não importa quem seja ele ou o que ele nos mande fazer.

Zolin deu um riso meio debochado. Ele esfregou o topo da cabeça, como se fizesse carinho na águia pintada na pele. — Você jurou a Necalli, não a mim. Niente, se você quiser ser liberado do juramento agora... — ele deu de ombros. — Um dos outros nahualli pode me servir.

A ameaça pairou no ar úmido. Niente sabia o que Zolin estava oferecendo: nenhum nahual abria mão do título e sobrevivia; Niente perguntou-se qual dos nahualli sussurrava no ouvido de Zolin. Certamente havia alguns que achavam que podiam ser o nahual. — Se o tecuhtli acha que outro nahualli é mais adequado para servi-lo, então este nahualli deve trazer seu cajado mágico aqui, e veremos qual de nós dois Axat prefere.

Zolin riu, mas havia um constrangimento na reação, o que indicou para Niente que o homem estava tentado. — Por enquanto, eu deixarei que você me sirva, nahual Niente. E você verá que estou certo. Eu irei até essa grande cidade dos orientais, vou destruí-la e deixá-la queimando, como fiz com Munereo e Karnor. Sou uma grande lança lenta, que irá varar a armadura, a carne, os órgãos dos orientais até trespassar o coração deles. O povo dos Domínios entenderá que seu deus é fraco e errado. Eles abandonarão a nossa terra e a de nossos primos para sempre. Pagarão tributos para nós, com medo de que um tecuhtli traga outro exército aqui novamente. É o que farei, e é isso que você verá na sua tigela premonitória, nahual. Você verá.

Niente abaixou a cabeça. — Como eu disse, tecuhtli, eu olharei e direi tudo que Axat me permitir ver, para que o senhor conheça os futuros possíveis para as escolhas que fizer. Isso é tudo o que qualquer nahualli pode fazer.

Zolin torceu o nariz. Ele lançou um olhar confiante para Niente, com os olhos cercados pelas penas das asas da águia. — Você verá — repetiu o tecuhtli. — Isso é o que eu lhe digo.

 

Kenne ca’Fionta

A CULPA REMOÍA O ESTÔMAGO e fez com que ele afastasse o prato.

— Kenne, você precisa comer. — Seu velho companheiro e amante, Petros co’Magnaoi, u’téni da fé concénziana, esticou o braço sobre a toalha de mesa branca para pegar a mão de Kenne. — Você foi apenas um peão no plano de Cénzi. Não tinha como saber.

O archigos balançou a cabeça. A culpa não é sua... Você não tinha como saber... Era o que todo mundo dizia para ele nos últimos dias. Às vezes, as palavras eram ditas com genuína sinceridade; em outras — como na ocasião em que ele foi visitar Sigourney ca’Ludovici em seu leito, enquanto a conselheira se recuperava dos ferimentos —, Kenne pensava ter ouvido um mero verniz de educação sobre um profundo rancor.

— Eu mandei o homem para o kraljiki, Petros. Mandei. Ninguém mais, e...

— Kenne — interrompeu Petros. Ele balançou a cabeça magra e aquilina, o movimento mexeu o cabelo comprido até o queixo que Kenne gostava tanto, que há muito tempo ficou branco, mas que era tão farto na cabeça do homem quanto escasso na do próprio archigos. Olhos azul-claros, ainda afiados e inteligentes, sustentaram o olhar de Kenne e recusaram-se a deixar que o archigos virasse o rosto. — Pare com isso. Você pode continuar repetindo sem parar as mesmas palavras, mas nenhuma irá mudar o que aconteceu. Você fez o que qualquer um de nós teria feito. A reputação desse Enéas co’Kinnear era sólida, e ele disse que tinha notícias dos Hellins, algo que o kraljiki precisava saber desesperadamente. Se eu estivesse no seu lugar, teria feito a mesma coisa.

— Mas você não fez. Ele veio a mim.

— Ele foi, e você não tinha como saber o que Enéas era ou o que faria, assim como seus offiziers superiores não sabiam. O que precisamos fazer agora é garantir que a fúria da população não vire um banho de sangue. Já há vozes no Velho Templo que pedem por um novo expurgo dos numetodos, e a mesma coisa também pode ser ouvida no Conselho dos Ca’. Sua voz é necessária como o líder da Fé, Kenne. A voz da sanidade.

Kenne sentiu o aperto dos dedos de Petros na mão quando não respondeu. — Kenne, meu amor, Cénzi lhe deu um teste agora. Você sabe que a archigos não foi morta pelos numetodos, não com Karl amando-a tanto. Esse Enéas, e o que ele fez com o kraljiki... Parece a mesma coisa que fizeram com Ana. Essa poeira negra que achamos no templo depois; ouvi dizer que também encontraram sobre os pedaços do Trono do Sol...

— Eu matei Audric — murmurou Kenne. — Matei seus camareiros, os suplicantes que estavam próximos. E quanto à pobre Sigourney... — O rosto de Sigourney surgiu diante dele, estraçalhado pelas lascas do Trono do Sol, com o olho direito enfaixado (e perdido, de acordo com o que o curandeiro sussurrou para Kenne depois), a mão direita em bandagens, com dois dedos visivelmente faltando, o jeito horrível como o lençol ficava plano na altura do joelho direito.

A culpa era dele, não importa o que Sigourney possa ter sussurrado com sua voz arruinada. Isso era mais terrível do que o assassinato de Ana, embora este tenha sido bem horrível.

Culpa dele.

Kenne começou a falar com Petros, mas não conseguiu, a voz embargou. Petros apertou a mão de Kenne, levantou-a e deu um beijo.

Alguém bateu na porta. — Archigos? — O chamado veio baixo entre as tábuas entalhadas e envernizadas. Petros afastou a mão rapidamente e recostou-se na cadeira.

— Entre — falou Kenne.

Era uma das integrantes da equipe de o’ténis do archigos: Sara ce’Fallin, sua assistente. Ela deu uma olhadela para Petros, cumprimentou-o com um aceno e fez o sinal de Cénzi para Kenne. — Sinto incomodar seu jantar, archigos, u’téni, mas... — Ela mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça.

— O que foi? — perguntou Kenne com delicadeza.

— Há novidades — respondeu Sara. — Um mensageiro chegou do Conselho dos Ca’; o senhor deve ir ao palácio imediatamente.

— O que foi? — perguntou ele. — Firenzcia?

Ela balançou a cabeça e disse — Não. O mensageiro não disse mais nada além de que era sobre Karnmor.


Ele esperava ser informado de que o vulcão há muito tempo adormecido que abrigava a cidade de Karnor havia despertado novamente. Mas as notícias eram bem piores.

Kenne mal conseguiu acreditar nas palavras do mensageiro, que estava diante dos conselheiros na câmara do Conselho dentro do palácio, mas o cansaço, o rosto sujo de terra e a fuligem, o horror nos olhos e na voz... Estes elementos ele não podia negar.

A cidade de Karnor era uma ruína fumegante, de acordo com o homem, com milhares de mortos, especialmente por causa do ataque dos ténis-guerreiros ocidentais. Pior ainda, o exército ocidental estava agora no continente e avançava lentamente A’Sele acima. A cidade de Villembouchure era a próxima no caminho deles.

— Muitos dos navios em que eles vieram — disse o mensageiro — eram nossos. Eu reconheci os traços do Marguerite quando ele saiu do porto de Karnor para ir aos Hellins há um ano, mas agora ele carrega a bandeira de águia dos ocidentais e foi pintado com cores berrantes. É por isso que não têm vindo navios expressos dos Hellins; os ocidentais devem ter destruído nossas forças lá.

— Não há provas disso — disparou Aleron ca’Gerodi, que olhou feio para o homem, como se o desafiasse a contradizer a afirmação. — Nenhuma.

O mensageiro deu de ombros e falou — Eu vi o que vi, conselheiro. Fui um dos que fugiu de Karnor quando a cidade foi tomada e queimada. Eu encontrei um barco na margem leste da ilha; vi as velas da frota ocidental entrarem na boca do A’Sele e fogueiras na margem norte.

— Ele não mente — disse uma voz assim que as portas da câmara foram abertas. Kenne virou-se e viu Sigourney entrar, sendo carregada em uma liteira. Ela estava sentada com a coluna reta apoiada em travesseiros; o rosto era um horror de linhas vermelhas; o cabelo, sem a tintura negra, tinha agora espessas mechas grisalhas. Seu único olho encarava fixamente os presentes; o esquerdo estava coberto por um tapa-olho acolchoado. — Há outros mensageiros chegando à cidade neste mesmo instante. Eu falei com um deles: um homem dos promontórios da costa. Ele disse a mesma coisa: o exército ocidental está aqui nos Domínios e marcha pela margem norte do A’Sele.

— Conselheira ca’Ludovici — falou Kenne preocupado. — A senhora não deveria estar aqui. Seus ferimentos...

— Meus ferimentos não são importantes — respondeu ela ao abanar uma mão enfaixada e com poucos dedos. — O ervanário me deu extrato de cuore della volpe, que aliviou grande parte da dor. Nós perdemos nosso kraljiki, o regente traidor conspira com Firenzcia, e os ocidentais ousaram vir aqui. Meus ferimentos? — Ela cuspiu. Kenne e os demais viram o arco da cusparada, que foi cair nas lajotas de pedra. — Eles não são nada — vociferou a conselheira com a voz rouca e hesitante. — Não podemos esperar e vacilar aqui. Temos que agir. — Ela fez uma pausa para tomar fôlego. — E a primeira coisa que temos que fazer é nomear um kralji, uma vez que Audric não indicou seu sucessor.

Kenne soube então o que fez Sigourney ignorar os ferimentos e sair do leito.

Ao olhar em volta da câmara para os demais integrantes do Conselho, ficou óbvio que o mesmo pensamento ocorreu a eles. Também ficou óbvio para Kenne quem os conselheiros escolheriam. Aleron concordou com a cabeça, assim como Odil ca’Mazzak; os outros olhavam intensamente para a mesa, como se algo importante tivesse sido rabiscado ali. Foi Odil quem finalmente falou.

— A senhora é a Téte do Conselho dos Ca’, conselheira ca’Ludovici, e a pessoa em quem o kraljiki Audric mais confiava. Eu concordo, um novo kralji deve ser nomeado imediatamente... e eu acredito que deva ser uma kraljica. — Ele olhou em volta da câmara. — Eu proponho que a vajica Sigourney ca’Ludovici seja nomeada kraljica Sigourney. Ela tem o sobrenome, é a parente mais próxima aqui e tem demonstrado amplamente as qualidades de liderança de que precisamos.

— Eu concordo — falou Aleron imediatamente ao se levantar, e então todos ficaram de pé, e Sigourney sorriu, apesar da dor e dos ferimentos em cicatrização, e ergueu as mãos para eles em sinal de falsa humildade, e estava feito; antes que Kenne pudesse dizer qualquer coisa. Não que os conselheiros fossem dar ouvidos a ele, pensou o archigos, com tristeza.

Sua voz não era uma em que o Conselho prestasse atenção.

O olhar caolho de Sigourney percorreu a sala, e quando encontrou o archigos, ela franziu a testa momentaneamente. Kenne notou a acusação e a culpa no rosto da mulher e soube de mais uma coisa.

Ele não seria archigos por muito tempo. A nova kraljica encontraria uma forma de derrubá-lo.

 

Karl ca’Vliomani

SERAFINA SORRIU PARA ELES no momento em que os dois entraram na cozinha do pequeno apartamento, embora Karl pudesse ver uma tristeza, quase inveja, quando ela ergueu os lábios. Serafina penteou o cabelo para trás com as costas da mão, ainda segurando a faca com que cortava as verduras. Karl sentiu o cheiro do guisado que borbulhava na panela preta sobre o fogo. — Bom dia — disse Serafina. — É bom ver vocês dois juntos.

Varina deu o braço a Karl e aconchegou-se nele. — É, sim. Bem mais do que eu esperava.

Karl também sorriu e perguntou-se se alguma das duas mulheres era capaz de ver as emoções misturadas em sua própria felicidade: a pequena sensação incômoda de que, de alguma forma, estava traindo Ana, embora ele e a archigos jamais tenham tido intimidade física. Ana também teria sorrido para você. Também teria dito para ir em frente. Teria ficado feliz por você. Era o que ele dizia para si mesmo, mas não aliviava a semente de culpa.

— Eu fui traída muitas vezes e magoada muitas vezes — disse Ana uma vez para ele, não muito depois de Karl retornar da Ilha de Paeti, após descobrir que Kaitlin não o amava mais, que não queria mais que ele fizesse parte da vida dela ou de seus filhos. — Eu não posso lhe dar essa parte de mim, Karl. Ela simplesmente não está mais lá: existem muitas cicatrizes e muita dor. Eu posso ser sua amiga, se isso for o bastante para você. Mas nada mais. Nada mais.

— Você não me ama... — Ele começou a dizer, e Ana balançou a cabeça.

— Eu amo você, sim, mas não dessa maneira. Se você precisa disso, então encontre outra pessoa. Eu entenderia, Karl. De verdade. Sinto muito... — E ele encontrou alívio em outro lugar, nas grandes horizontales que Varina tinha visto. Mas, de alguma forma, Karl não percebeu a pessoa diante de si que também estava interessada nele mais do que um amigo, e de quem ele também gostava...

Agora Varina abraçou Karl novamente. Ele se inclinou e ela virou o rosto para o embaixador. O beijo foi delicado e doce, e a culpa sumiu um pouco novamente. “Se você precisa disso, então encontre outra pessoa...” Talvez um dia, em breve, até mesmo este sussurro fosse embora.

Karl não sabia que precisava tanto disso e desejou ter percebido antes.

— Deixe-me ajudar você, Sera — falou Varina, e seu calor deixou o corpo do embaixador. — Karl, por que não pega uma chaleira para o chá? — Ele observou as duas mulheres por um instante, depois pegou a chaleira, colocou água dentro da jarra e pendurou no suporte sobre o fogo, ao lado do guisado. Encontrou a hortelã e as ervas, colocou no saquinho de linho e amarrou.

— Vou ao mercado comprar um pouco de mel e talvez croissants — disse Karl. — Com o cortejo fúnebre de Audric hoje, aposto que os mercados...

Ele parou.

Uma sombra passou pelas persianas da janela. Karl ouviu passos do lado de fora da porta. Alguém bateu. — Serafina? Serafina, você está aí?

Ele conhecia a voz. Lembrou-se dela.

Serafina deixou cair a faca que segurava. O objeto bateu na mesa e depois no chão, mas Serafina não notou, pois corria para a porta. — Talis!

Ela escancarou a porta; Karl viu o homem parado ali sobre o ombro de Serafina, então a mulher ficou de joelhos, soltando um grito. — Nico! Ó, Nico! — O menino também estava ali e deu um abraço forte na matarh. Ambos choraram.

— Matarh! Eu sabia que a senhora viria procurar por mim. Eu sabia... — Nico viu os dois ao mesmo tempo. — Varina — falou o menino. — Ah. — De repente, ele soltou a matarh. — Talis...

— Eu vi os dois — disse Talis, que encarava Karl. — Serafina, pegue Nico e saia. Agora.

Serafina olhava de Talis para Karl. O homem ergueu a bengala, e Karl percebeu o que aquilo significava, percebeu agora melhor do que nunca. Ele levantou a mão, pronto para lançar o próprio ataque. — O que... — dizia Serafina.

— Apenas saia! — falou Talis. — Agora!

— Não — disse Serafina enquanto segurava Nico com força, e embora parecesse que ela não quisesse outra coisa senão seguir o conselho de Talis, a mulher permaneceu entre os dois. — Eu não vou sair até entender o que está acontecendo.

Talis gesticulou para Karl com a mão livre e falou — Esse desgraçado é o embaixador numetodo, Serafina. Esse é o homem que tentou me matar e a razão pela qual você teve que ir embora da cidade. Ele sequestrou Nico quando voltou aqui e usou o menino como isca para me pegar.

Serafina olhava fixamente para Karl, com a expressão chocada de quem tinha sido traída.

— Isso é verdade? — perguntou ela. — Diga-me.

Karl deu uma olhadela para Varina, que confirmou com a cabeça. — É verdade, em grande parte — respondeu Karl. — Eu sou o embaixador ca’Vliomani. Sou um numetodo, assim como Varina. Nós encontramos Nico aqui enquanto procurávamos por Talis, e, sim, ficamos com ele; embora eu deva chamar a atenção para o fato de que Nico estava sozinho nas ruas quando Varina o encontrou, e nós cuidamos dele, mantivemos o menino alimentado, aquecido e a salvo. Dissemos para as pessoas na vizinhança que o encontramos... e, sim, fizemos isso na esperança de que Talis viesse atrás de Nico, mas ele nunca veio. Quanto a Talis, eu acredito que ele seja o homem que matou a archigos Ana. — Serafina abraçou forte Nico. A confusão lutava com o medo em seu rosto, enquanto ela escutava Karl, o olhar ia de um para o outro. — Agora, pergunte a ele uma coisa para mim — disse Karl. — A verdade. Pergunte a ele quem matou a archigos.

Serafina olhou para Talis, que balançava a cabeça ao dizer — Não, não fui eu. — Mas o rosto da mulher ficou vermelho.

— Você sabia onde Nico estava e não foi até ele? — Serafina berrou baixo para Talis. — Não tentou ajudá-lo? Não me mandou notícias enquanto eu morria de preocupação por ele?

— Eles teriam me matado se eu tivesse ido até ele, Serafina. E talvez Nico também.

— Não. — Varina aproximou-se de Karl. — Você está errado, Talis. Nós só queríamos saber a verdade. Os numetodos estavam sendo culpados pela morte da archigos Ana; nós mesmos corríamos perigo. Eu... nós... jamais teríamos feito qualquer coisa para prejudicar Nico. Jamais. Você sabe disso, não sabe, Nico?

Nico balançou a cabeça enfaticamente sobre o ombro da matarh e disse — Eu sei. Varina foi boa comigo, matarh. Ela disse que tentaria encontrar a senhora... e olhe só, ela conseguiu.

— Talis é um feiticeiro ocidental, Serafina — falou Karl. — O último ocidental parecido com ele que eu conheci foi Mahri, o Maluco, e ele também tentou matar Ana.

À menção do nome de Mahri, a bengala tremeu nas mãos de Talis e os músculos em seu maxilar ficaram retesados. — Você conheceu Mahri?

— Conheci. E conheci Mahri muito bem. E sei que ele não estava aqui pelo bem de Nessântico. E nem você. Sera, sinto muito. Eu sei que você ama este homem, mas você precisa entender o que ele é. Talis é um inimigo dos Domínios, bem mais do que qualquer numetodo.

— Ela sabe o que eu sou — resmungou Talis. — Sera, eu não mudei. Eu amo você de verdade; amo Nico também. Eu o encontrei e vim trazê-lo para você. Se você não estivesse aqui, eu iria para Ville Paisli a seguir para encontrar você. Não sou o monstro que eles estão pintando. — Ele fez uma cara feia para Karl e Varina. — Se eu fosse, não teria esperado; eu teria atacado o embaixador sem me preocupar se você e Nico estavam no caminho. Sera, por favor. Afaste-se.

Em vez disso, ainda com Nico nos braços, ela voltou-se para Karl e Varina e ficou entre os dois e Talis. — Eu conheço Talis. Eu acredito quando ele diz que não matou a archigos. Se vocês querem conversar com ele, bem, aqui está ele. — Serafina fez uma pausa e um carinho na cabeça de Nico. — Eu confiei em vocês dois. Agora peço que confiem em mim.

Karl deu uma nova olhadela para Varina. Ela tinha abaixado as mãos e deu um discreto aceno de cabeça, e Karl também deixou as mãos caírem.

— Tudo bem — falou ele. — Diga para Talis colocar aquela bengala de lado, e nós podemos conversar.

 

Jan ca’Vörl

O TEMPLO EM BREZNO era menor do que o Templo do Archigos em Nessântico, e não tão venerável e sagrado quanto o Velho Templo na Ilha A’Kralji (ou com um domo tão impressionante). Mas o domo de Brezno e vários de seus famosos afrescos foram pintados pelo grande artista firenzciano co’Goslar, e eram impressionantes. As figuras compridas e estranhas de co’Goslar agigantavam-se e contorciam-se sobre os suplicantes no templo, vestidas com roupas transparentes ou peladas: Cénzi, sim, estava em destaque, mas também estavam representadas pessoas em Firenzcia que foram importantes para a fé concénziana. Havia Gareth ca’Lang, o primeiro a’téni de Brezno, com a espada amarrada ao braço sem mão enquanto lutava uma batalha perdida contra os hereges da seita de Karinthia; havia Pewitt, o Desgraçado, sendo atacado pelos moitidis, que devoravam e arrancavam a carne do seu corpo vivo, que debochavam do homem ao consumir seu corpo enquanto ele observava em sofrimento; havia Ursanne ca’Sankt, a grande mártir que muitos imaginavam que seria archigos enquanto viveu, que tentava desesperadamente afastar os estupradores de Tennshah, de cuja união indesejada nasceria o grande starkkapitän firenzciano Adalwulf, que mais tarde expulsaria os tennshas de seus povoados em volta do lago Firenz.

Jan estava cercado por história e tomado por uma fúria movida pela fé. Parecia apropriado. Aos olhos dele, sua reconciliação com a noção de que a matarh tinha a intenção de disputar o Trono do Sol fora uma luta tão titânica quanto qualquer uma das representadas aqui. Jan confrontou Allesandra após a longa conversa com Sergei ca’Rudka, mas, no fim, ele disse que compreendia, mesmo que não aprovasse. Jan não tinha certeza se isso era verdade ou se, depois de várias viradas da ampulheta de discussão, a declaração pelo menos deixou que ele dormisse um pouco, mas a matarh aceitou o que Jan falou.

O hïrzg acompanhou Allesandra ao templo a pedido do archigos e olhava para o domo enquanto os dois aguardavam Semini. — Eu me lembro da primeira vez que vi essas pinturas — falou Jan para tentar quebrar o silêncio incômodo. — Elas me assustavam; pensei que fossem fantasmas. Imaginei que as figuras se mexiam e saíam da pintura para me perseguir... — Jan riu; ele parecia rir muito pouco desde os eventos que culminaram em sua sagração como hïrzg. — Agora apenas acho que são dramáticas demais e nem tão bem pintadas assim.

— Não diga isso para Semini — falou a matarh. — Ele adora co’Goslar... Ah, lá está ele.

Semini veio a passos largos na direção dos dois, saindo detrás do Alto Púlpito no coro. Entre a Segunda e a Terceira Chamadas, o templo ficava geralmente deserto, e os gardai que entraram antes de Jan e Allesandra agora estavam a vários passos de distância, em silêncio, após terem retirado visitantes desgarrados da câmara principal. Os três estavam tão sozinhos quanto parecia possível para Jan ultimamente.

— Meu hïrzg — trovejou Semini, a voz reverberou no domo enquanto ele fazia o sinal de Cénzi para Jan. — E a’hïrzg. — Jan viu o archigos sorrir para ela; Semini parecia prestes a pegar a mão de Allesandra, embora o gesto tivesse sido uma terrível quebra de protocolo. Mas o homem parou a alguns passos cautelosos, mais perto talvez do que deveria estar, mas não tão próximo a ponto de ser extraordinariamente óbvio. Jan sentiu um pouco da irritação voltar; ele nem podia culpar a matarh por arrumar um caso quando o vatarh traiu a esposa tantas vezes. No entanto, ficava incomodado ao saber. A visão dos dois juntos, dos corpos enroscados como o dele esteve com Elissa... Não, Jan sentiu um arrepio e balançou a cabeça para afastar a cena.

— Obrigado por virem — continuou Semini, que ainda olhava mais para Allesandra do que para Jan. — Como eu disse, recebi uma mensagem com, segundo me disseram, uma mensagem idêntica para o hïrzg. Ela está aqui comigo.

Semini entregou um pergaminho enrolado e selado para Jan e observou o hïrzg examinar o selo na cera azul — um punho em uma manopla, o selo de Nessântico desde a época do kraljiki Justi. Jan desenrolou o papel e vasculhou as letras escritas à tinta com uma fúria crescente. Quase ouviu a voz do onczio Fynn crescer dentro dele — Jan sabia como Fynn teria reagido a esta mensagem. Em silêncio, com a boca franzida, ele entregou o pergaminho para Allesandra e ouviu a matarh tomar fôlego quase que imediatamente. Sem dizer uma palavra, ela devolveu a mensagem de volta para o filho.

— Como ele ousa falar conosco dessa maneira? — disparou Jan. Ele abriu as mãos e deixou o papel cair no piso de mármore. A palavra “ousa” ecoou na câmara por muito tempo depois de tê-la dito. O som pareceu agitar os gardai, que se remexeram de um jeito nervoso. — Ele fala conosco como se Nessântico ainda governasse Firenzcia. “Devolvam o antigo regente para nós em um mês ou tomaremos medidas efetivas para recuperá-lo”. Como ele ousa fazer ameaças assim? — Outro eco. — Deixe que ele tente; nós iremos esmagá-lo.

Jan ergueu os olhos para o domo. Fantasmas... Nenhum deles toleraria essa situação; eu também não posso. Isso é um tapa na cara.

— Jan, eu compreendo o que você sente; acredite em mim, eu tive a mesma reação — disse Allesandra.

— “Mas...?” — disparou Jan com raiva ao se voltar para ela. — É isso o que a senhora ia dizer, matarh? “Mas...” que “mas” seria esse?

Em uma reação estranha, ela sorriu. — Meu querido, você soou igualzinho a Fynn, ou talvez ao meu vatarh. Eu já vi os dois rugirem desse mesmo jeito quando se consideravam insultados.

Allesandra ter achado graça só serviu para aumentar a irritação de Jan. Ele olhou atrás de Semini, para o mural depois do Alto Púlpito, para as tiras ensanguentadas da carne de Pewitt presas às garras dos moitidis, e tentou conter a irritação.

— O “mas”, meu filho, é o que vínhamos considerando — continuou ela. — Talvez essa seja simplesmente a oportunidade de que precisávamos. A desculpa para agir.

— A desculpa? — Jan começou a falar, e, por um momento, sentiu-se bem mais novo, uma criança novamente. — Ah. — Essa palavra não produziu eco algum. Flutuou no ar entre eles, perdida na imensidão do templo. Jan abaixou o olhar para o papel meio enrolado sobre o piso de mármore, e a suspeita cresceu dentro dele. — Estranho que uma mensagem como essa levasse exatamente à situação que a senhora queria, matarh. Uma provocação deslavada de Nessântico contra nós. Que maravilhoso senso de oportunidade. — Jan ergueu as sobrancelhas para ela.

Allesandra balançou a cabeça. — Eu não sabia nada sobre essa situação até agora. Não tive nada a ver com isso. Pergunte ao archigos.

Semini concordou com a cabeça rapidamente. — As cartas chegaram seladas através de vias diplomáticas. Se o hïrzg duvida, posso mandar o mensageiro ser trazido aqui.

Jan abanou a mão e desviou os olhos dos dois para os murais no domo. — Não, não há necessidade. É que... — O olhar retornou para a matarh. — Parece que Cénzi quer o que a senhora quer, matarh. — Talvez fosse coincidência. Allesandra parecia genuinamente chocada. Talvez fosse um sinal. Ele não estava contente com essa perspectiva.

— Ah, certamente — respondeu Semini. — Sem saber, o kraljiki agiu como queríamos, ou Cénzi fez com que ele agisse assim. O kraljiki ameaçou a Coalizão e nossa Fé diretamente, e não temos escolha a não ser responder para proteger nossos interesses e fronteiras. Este é o momento, hïrzg. Esta é a ocasião. A maior parte da Garde Civile de Nessântico foi mandada para oeste, para os Hellins; eles levarão tempo para reunir os chevarittai e o restante da Garde Civile, para preparar os ténis-guerreiros que estiverem disponíveis, e para alistar os soldados de infantaria necessários para honrar essa ameaça. — O archigos sorriu e acenou com a cabeça para Allesandra. — Sua matarh sabe disso. É o momento de o senhor demonstrar sua liderança e levar a Garde Civile e os chevarittai de Firenzcia à guerra. O senhor reunificará os Domínios como eles eram antes, hïrzg Jan, e seu nome será lembrado eternamente por isso.

— Eu não sei...

— Eu sei — disse Allesandra com uma voz firme e orgulhosa. — Você está pronto para isso, Jan.

Ele hesitou. Jan ainda estava incomodado por ser usado pela matarh para os objetivos dela; também estava atormentado pela própria incerteza se poderia ser o hïrzg que ele queria ser. “Também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.” Palavras de Sergei. Elas acalmaram Jan. Elas fizeram Jan decidir.

Um instante depois, o hïrzg concordou com a cabeça. — A senhora estava certa naquela noite. Preciso consultar o starkkapitän ca’Damont e os chevarittai. É o que a senhora queria, não é, matarh?

Se Allesandra ouviu um leve deboche na voz do filho, ela não reagiu. — Eu irei com você, Jan. Eu conheço o starkkapitän e conheço a Garde Civile. Posso ser sua mentora nesta situação. Vá e mande Roderigo convocá-los. Eu irei atrás em um instante.

Jan ergueu as sobrancelhas, incomodado por ter sido obviamente dispensado, mas fez o sinal de Cénzi para Semini e uma leve mesura para a matarh. — Obrigado por passar essa informação, archigos. Nós precisaremos de sua força e orientação. Matarh, eu falo com a senhora mais tarde.

Ele foi embora então, com quase todos os gardai à sua volta ao sair do templo. — Seu filho será um belo hïrzg. — Jan ouviu Semini rosnar com sua voz baixa ao chegar às portas. Ele presumiu que o elogio foi calculado para que fosse ouvido e considerado genuíno.

Jan sorriu para si mesmo. Ele seria um belo hïrzg. Ele surpreenderia os dois com o tamanho da competência de sua liderança.

Jan suspeitava que eles poderiam não gostar do resultado.

 

Allesandra ca’Vörl

A PASSAGEM NOS FUNDOS do templo era escura, iluminada apenas eventualmente por lâmpadas com tampas verdes, penduradas em ganchos cimentados na parede. As colunas estriadas ao longo da passagem não deixavam que o caminho fosse visto dos jardins do pátio, localizado entre a asa norte do complexo do templo e o templo em si. As grandes janelas de vitral agigantavam-se escuras sobre Allesandra. Ela quase corria pela passagem, pois não queria ser vista, apesar de ter recebido a garantia de que não haveria ténis na área; suas sandálias de sola de couro macio pisaram silenciosas no granito encerado. Foi fácil sair de mansinho dos próprios aposentos no palácio pelo corredor de serviço, esperar até que não houvesse ninguém de olho para abrir a porta, atravessar a praça correndo e entrar nas ruas de Brezno. Allesandra usava um capuz sobre o cabelo que encobria o rosto, e a tashta era simplória. Ela podia se passar por uma mulher simples correndo para chegar em casa à noite. Semini disse que a porta estaria aberta e informou quais os lugares que os ténis geralmente evitavam. As cerimônias da Terceira Chamada haviam acabado há uma virada da ampulheta.

A a’hïrzg estava quase lá. A uma curva à esquerda na próxima passagem, depois uma subida pela escada até o quarto que Semini mantinha no complexo do templo quando não queria retornar aos próprios aposentos na ala norte.

— Allesandra.

Ela levou um susto diante da voz sibilante. A mão alcançou a faca escondida na faixa da tashta.

— Francesca — disse a a’hïrzg.

Uma silhueta surgiu ao lado de uma das colunas. Na luz difusa, ela viu a mulher, cujas rugas aprofundavam as sombras no rosto. O brilho verdejante das lâmpadas fez Francesca parecer doente. Ela espalmou as mãos, como se mostrasse para Allesandra que não estava armada. — Eu sei — disse Francesca. — Eu sempre soube.

— O que é que você sabe, Francesca?

Ela gargalhou. O som assustou os estorninhos negros que pousavam nas árvores frutíferas do pátio para passar a noite. Eles levantaram voo e esvoaçaram agitados. Allesandra sentiu um cheiro de álcool no hálito forte da mulher. — Não deveríamos brincar de joguinhos, você e eu — falou a mulher. — Não há nada entre mim e Semini há anos, e se você está disposta a abrir as pernas para que aquele velho aríete soque aí dentro, por que devo me importar?

Allesandra sentiu um calor nas bochechas diante da baixaria e respirou fundo pela boca. — Se você não se importa, por que está falando comigo?

A expressão de quem achava graça sumiu do rosto da mulher. Ela torceu o nariz enquanto encarava Allesandra. — Você é bonita. Semini sempre gostou de você; eu ouvi o carinho na voz dele quando você finalmente voltou de Nessântico. As amantes que ele teve depois... sempre achei parecidas com você. Semini achava também, imagino. Eu sei o rosto de quem ele via quando metia nelas. Ah, isso lhe incomoda, não é? Aposto que ele nunca lhe contou isso. — Francesca aproximou-se de Allesandra, que deu um passo para trás, com a mão ainda no cabo de couro da faca. — Aposto que tem muita coisa que ele não te contou.

— Francesca, você está bêbada e eu não quero ter essa conversa. Agora, deixe-me...

A mulher levantou a mão e torceu a boca com desdém. — Ainda não. Olhe para mim. Olhe... — Francesca abanou as mãos na direção do rosto. — Eu fui linda um dia. Ora, eu era a amante do kraljiki Justi; eu poderia ter sido a esposa dele se o meu vatarh tivesse escolhido o lado certo na guerra. Mas ele não escolheu. E agora... — Por um momento, Allesandra pensou que a mulher não fosse falar novamente. Ela ficou parada ali, o corpo cambaleava levemente. — Você acha que conhece meu marido? Não o conhece. Eu vi você quando chegou a notícia da morte da archigos Ana. Vi o horror e a tristeza no seu rostinho bonito. Você sofreu porque gostava daquela megera frígida. Quanto a mim, eu a odiava. Fiquei feliz por saber que ela morreu. Ri alto. Mas você... a archigos Ana lhe tratou bem, não foi? Ela foi uma matarh para você quando sua própria família lhe abandonou. A archigos Ana... Bá! — Francesca franziu os lábios, virou a cabeça e cuspiu no piso. — Ele sabe quem a matou. Assim como eu.

— Quem? — perguntou Ana. A mão foi parar na garganta. Ela achava que sabia a resposta.

Francesca deu um passo cambaleante para frente, quase caiu e segurou na tashta de Allesandra. — Pergunte a ele — rosnou a mulher, o mau hálito tomou as narinas de Allesandra. — Faça Semini lhe contar, e aí veja o que você sente por ele.

A gargalhada de Francesca provocou outra revoada de pássaros assustados, e ela afastou-se de Allesandra com um empurrão. Foi cambaleante na direção da arcada que levava para a ala norte, sem olhar para trás. — Pergunte a ele. — Allesandra ouviu a mulher repetir, as palavras ecoaram pelo pátio.

Ela viu Francesca abrir com violência as portas e ouviu quando foram fechadas ao sair. Allesandra ficou parada ali por vários instantes, enquanto os estorninhos pousavam nas árvores frutíferas novamente e a lua surgia sobre os domos do templo.

Finalmente, Allesandra deu meia-volta e foi embora do templo, de volta para seus aposentos e para os próprios pensamentos.

 

Nico Morel

AO LONGE, Nico podia ouvir cornetas e zinkes enquanto o cortejo fúnebre do kraljiki Audric prosseguia pela Avi a’Parete a alguns quarteirões de distância. Ele imaginou como seria a procissão — todos os ca’ e co’ em desfile atrás da carruagem funerária, as rodas movidas pela magia dos ténis, a nova kraljica Sigourney seguindo na própria carruagem especial. Seria esplêndido aquele cortejo. Uma maravilha. Audric não era muito mais velho do que ele, e Nico imaginou como seria ser tão jovem e ser também kraljiki. Ele perguntou-se como alguém poderia ter odiado tanto Audric a ponto de matá-lo. Nico não conseguia se imaginar odiando uma pessoa tanto assim.

Ninguém mais na sala parecia notar os sons do funeral — ou talvez tenham escolhido ignorá-los.

— Eu não matei a archigos Ana.

Nico estava sentado no colo da matarh. Ela mal o soltou desde que o viu. Não que ele se importasse; estava bem contente de sentar abraçado a ela, protegido. A sensação fez com que Nico percebesse como sentiu falta da matarh, como esteve com medo por tanto tempo. Ele e a matarh estavam sentados à lareira, e o fogo aquecia a lateral do corpo. Talis estava sentado à mesa no centro da sala; Karl e Varina sentaram-se do outro lado. Nico quase podia ver a tensão entre eles, um arco de fogo quase tão quente quanto aquele às suas costas. Sua matarh sentia também; ele notou o arrepio nos músculos dela e a força com que o abraçava, e Nico sabia que ela tinha medo de que alguma coisa fosse acontecer.

— Eu não a matei — repetiu Talis. — É a verdade.

— Certo — respondeu Karl. — E nós simplesmente devemos acreditar porque você disse que é verdade.

Talis deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Se vocês não quiserem acreditar, tudo bem. Continua sendo verdade. Mas... — Talis lambeu os lábios. — Eu sei como ela foi morta e sei quem deve ter sido, pelo menos parcialmente, o responsável.

— Continue — disse Karl.

— Foi com um... — Talis meteu a mão na bolsa presa ao cinto. Nico viu Varina e Karl ficarem tensos com o gesto, e sua matarh ficou em expectativa. Karl ergueu as mãos subitamente, como se estivesse pronto para lançar um feitiço. Talis levou um susto e falou — Sem magia. Eu não usaria, não com Sera e Nico aqui. Eu não usaria.

Após um instante, Karl pousou as mãos na mesa novamente, e Talis abriu a bolsa. Ele retirou uma pequena bolsinha de pano, desamarrou o nó que a fechava e derramou um montinho de pó negro na mesa. Karl olhou fixamente para o pó e disse — Havia uma poeira negra por toda parte do Alto Púlpito e nas roupas de Ana. Aquilo... aquilo era a mesma coisa?

Talis concordou com a cabeça. — Sim. — Ele recolheu tudo, menos uma pitada do pó, e recolocou na bolsa. — Nós chamamos de bosh lumm em nossa língua. Areia negra, na língua de vocês. Aqui... — Da bolsa, Talis retirou uma tigela de latão rasa e larga, marcada com figuras estranhas na borda. Ele espanou o restante do pó para dentro da tigela e colocou no centro da mesa. — Deixo esta parte com vocês. Lancem um pequeno feitiço de fogo na tigela, apenas uma centelha mínima. — Talis deu um breve sorriso. — E não coloque o rosto muito perto, se quiser manter essa barba.

Karl olhou de relance para Varina, obviamente hesitante. Ela voltou-se para a matarh de Nico e perguntou — Sera? Podemos confiar nele?

Nico mais sentiu do que viu a matarh concordar com a cabeça, mas as mãos dela apertaram o filho com mais força ainda no mesmo momento. Varina fez um rápido gesto com a mão e disse uma palavra em outra língua. A palavra soou como “tihn-eh” aos ouvidos de Nico, e assim que Varina falou, uma centelha apareceu entre os dedos. Ela girou a mão na direção da tigela, e a centelha saiu voando.

Assim que a centelha caiu na tigela, houve um clarão e estrondo simultâneos, como se uma trovoada tivesse ocorrido dentro do objeto. A tigela deu um pulo e retiniu, e uma fumaça branca irrompeu. Alguém gritou; Nico não conseguiu dizer quem foi. A matarh virou-se com o barulho para proteger o filho com o corpo. Ela se virou devagar, e o menino conseguiu ver novamente. Karl esticou a mão sobre a mesa, na direção da tigela, de onde ainda saía fumaça. Havia um odor estranho no ar, como Nico imaginava que o mundo subterrâneo dos moitidis cheirasse.

— Isso foi apenas uma pitada da areia negra — dizia Talis. — Eu diria que vocês podem imaginar o que uma grande quantidade pode fazer, mas eu realmente acho que não conseguiriam.

— Eu posso imaginar — falou Karl, que examinava a tigela. Pela maneira como estava virada, Nico viu que o fundo ficou escurecido, como se tivesse sido queimado. O rosto de Karl estava sério quando ele pousou o objeto. — Eu estava lá quando Ana morreu.

Talis franziu os lábios.

Varina afastou a tigela. Ela ergueu a cabeça e pareceu ouvir o som distante do cortejo fúnebre de Audric pela primeira vez. — O kraljiki. — Seus olhos ficaram arregalados. — Os rumores...

— ... é bem possível que sejam verdadeiros, pelo que eu ouvi — completou Talis. — Mas aquilo também não fui eu que fiz. — Ele gesticulou para Nico. — O menino pode dizer. Eu estava com ele quando aconteceu. Nós ouvimos o toque das trompas, não foi, Nico?

O menino concordou com a cabeça.

— Magia ocidental... — sussurrou Karl. Ele pegou a tigela novamente e olhou fixamente para o interior sujo de fuligem, como se procurasse respostas escritas ali. — Nós estamos apenas começando a entendê-la, e eu posso lhe afirmar, Talis, que ela não vem dos deuses, da mesma forma que a magia dos ténis não vem de Cénzi.

— Então vocês ainda não entendem — disse Talis. — Isso não é magia. Pelo menos não a areia negra em si. É tão magia quanto fazer pão, se a pessoa conhece a receita.

— Você disse que sabe quem é o responsável — falou Karl. — Diga o nome.

Talis respirou fundo. — O nome dele é Uly. Ele tem uma barraca no Mercado do Rio. É um ocidental, mandado para cá na mesma época que eu. É um guerreiro. Seu trabalho é informar o tecuhtli; o tecuhtli é o que o seu kraljiki seria se também fosse o comandante da Garde Civile. Eu vim aqui a mando do nahual, o líder da minha ordem, para ajudar Uly e também para descobrir o que aconteceu com Mahri. E... — Talis respirou fundo novamente. — Eu cometi um erro. Fomos nós, os nahualli, os feiticeiros, que descobrimos como criar a areia negra; é um segredo que nós mantivemos. E sim, se outras pessoas pensavam que a areia era mágica, nós não corrigimos o erro. Mas Uly... nós estávamos aqui há muito tempo, e ele era a única pessoa que eu conhecia que falava minha língua, e até eu encontrar Sera... — ele olhou para a matarh de Nico e sorriu — ... ele era a única pessoa que parecia se importar comigo. Eu fiz o que não deveria ter feito. Ajudei Uly a fazer a areia negra. Tentei evitar que ele conhecesse os detalhes, mas... — Talis pegou a tigela da mesa e guardou novamente na bolsa. — Uly não era idiota. Ele pode facilmente ter visto o suficiente para reproduzir o procedimento. Seu trabalho era apenas me fornecer os ingredientes, afinal de contas.

— Você está dizendo que esse tal de Uly assassinou Ana? — perguntou Karl. — É isso que quer que nós acreditemos agora?

Talis deu de ombros. — Estou dizendo que é possível. Provável. Eu sei que não fui eu. E com certeza foi bosh lumm que matou a archigos. Não magia ocidental, nem magia de numetodo também.

Karl cerrou as mãos sobre a mesa. — Onde está esse tal de Uly?

— Eu não o vejo desde que você me atacou — respondeu Talis. — Eu contei para Uly a respeito do ataque e disse que eu desapareceria por um tempo; desde então, não ouvi mais falar dele. Imagino que o melhor lugar para começar a procurá-lo seria o Mercado do Rio, mas... — Ele começou a falar, mas Nico se agitou nos braços da matarh.

— Uly não está lá — falou o menino. Todos olhavam para ele agora, e a matarh soltou mais os braços ao abaixar o olhar para o filho no colo.

— Nico?

— É verdade, matarh. Uly não está lá. Depois que eu saí da casa da tantzia Alisa e andei até aqui, achei que Uly podia me dizer onde Talis estava, mas quando fui ao Mercado do Rio, a barraca de Uly estava vazia e a vendedora de pimentas falou que ele tinha ido embora.

Talis concordou com a cabeça e disse — Eu imaginei que isso aconteceria. Não sei onde ele está. Ainda na cidade, provavelmente, mas onde...

— A senhora das pimentas disse que ele pode estar no mercado do Velho Distrito — informou Nico.

Karl já estava de pé. Agora Talis levantou-se também e falou — Eu não sei se Uly matou Ana, embaixador. Você também não sabe.

— Eu pretendo descobrir.

— Então eu irei com você.

— Por quê? — perguntou Karl. — Para detê-lo caso Uly me diga que foi você, de fato, ou caso ele não tenha a menor ideia de como fazer essa sua areia negra?

— Uly não falará com você, não importa o que fizer com ele — disse Talis. — Uly é um guerreiro, foi treinado para morrer antes. Ele confia em mim. Você? No primeiro momento em que perguntar algo que gere suspeitas, Uly irá matá-lo e fugir. Ou morrerá feliz tentando.

— Eu estarei com Karl — falou Varina, que estava de pé também, de braço dado com ele. — E nós somos mais fortes do que você pensa.

— Vocês precisarão de mim — insistiu Talis.

— Tudo bem — disse Karl finalmente. — Mas não com isso. — Ele apontou para a bengala de Talis.

O homem fechou a cara. — Eu não posso deixar isto aqui. Não deixarei.

— Então ficará com isso.

Talis pareceu considerar a questão por um momento e falou — Tudo bem. Eu deixarei. Só dessa vez. Eu vou.

— Eu vou também — disse Nico.

Todos os três voltaram-se para o menino, e Nico sentiu a matarh abaixar o olhar para ele também. — Não! — disseram os quatro ao mesmo tempo.

 

Niente

A VISÃO NA TIGELA PREMONITÓRIA perturbou Niente. Ele sentiu que o tecuhtli Zolin examinava seu rosto em busca de qualquer sinal do que as visões indicavam e abaixou a cabeça ainda mais no torvelinho de bruma azul que saía da água.

Uma mulher sentada em um trono brilhante, com o rosto horrivelmente desfigurado e contorcido por dor, sem um olho. Um exército avançava pela bruma atrás dela... Ali, um menino e uma mulher mais velha, e atrás dele também um exército, só que com estandartes pretos e prateados, e não o tom azul e dourado dos Domínios... Um homem que usava o colar de uma concha, e com ele — seria possível? — um nahualli que parecia Talis, embora ele estivesse abraçado a uma mulher e uma criança que não eram tehuantinos, e sim orientais...

As imagens vinham rápido demais, e Niente tentou pará-las com a mente, tentou espaçá-las no tempo para mostrar traços do futuro que poderiam acontecer. Ele rezou para Axat e pediu por clareza, pensou no próprio exército e nos navios que vinham pelo rio ali perto...

Os navios iam de um lado para o outro no meio de uma tempestade de fogo no céu. Exércitos deslocavam-se sobre a terra, havia explosões brilhantes de areia negra, uma densa fumaça pairava sobre os campos pisoteados... Mas a bruma parecia se dividir em duas — como às vezes acontecia quando Axat queria mostrar dois resultados possíveis. Ele viu um campo apinhado de corpos de guerreiros tehuantinos e um único navio de sua frota com velas esfarrapadas, que fugia depressa para oeste, na direção do sol poente, enquanto outras embarcações ardiam em chamas laranjas na água... “Oeste... casa...” Ele quase era capaz de ouvir as palavras no vento.

Mas esta visão foi fechada, e outra surgiu...

Na segunda visão, havia uma batalha intensa e sangrenta nos campos diante da cidade, e o exército de azul e dourado recuou para dentro de suas sólidas muralhas... A mesma cidade, agora com muralhas rachadas, e era difícil enxergar através da fumaça e da bruma da visão, mas ele pensou ter vislumbrado o exército tehuantino entrar aos borbotões pelas brechas...

Havia outra cidade ao longe, ainda maior, e parecia atraí-lo...

E lá estava de novo... a imagem de um guerreiro tehuantino morto, com um nahualli caído ao lado dele...

— O que a Senhora está tentando me mostrar, Axat? — perguntou Niente com a voz hesitante.

— Nahual?

Niente ergueu o olhar; a bruma transbordou da tigela e dissipou-se.

O acampamento tehuantino em volta dos dois homens estava barulhento e agitado enquanto o sol fraco tentava penetrar pelas nuvens ralas e altas. Niente viu-se com saudades do sol intenso e mais quente da própria terra; este lugar era mais frio do que ele gostava, como se sugasse o calor do sangue. O tecuhtli Zolin olhava fixamente para o nahual, o branco dos olhos reluzia em contraste com as linhas negras inscritas em volta das órbitas, a águia vermelha no crânio parecia querer alçar voo. Havia ansiedade no rosto dele. De ambos os lados do tecuhtli, estavam Citlali e Mazatl, e seus olhares não eram menos ansiosos. — O que a visão lhe mostrou? — perguntou Zolin. — O que ela disse?

— Muito pouco — respondeu Niente, e o tecuhtli demonstrou irritação ao mostrar os dentes.

— Muito pouco. — Zolin imitou o tom de Niente. — O tecuhtli Necalli costumava me dizer que suas visões na tigela premonitória forneciam estratégias para ele, guiavam a maneira como Necalli dispunha os guerreiros e avançava pelo terreno. Ele disse que você era o nahual de Axat, que nos mostrava o caminho para a vitória. Mas tudo o que você me dá é “muito pouco”.

— Eu não dou nada ao senhor — disse Niente, e Zolin respondeu com uma cara de desdém. — Assim como também não dei nada ao tecuhtli Necalli. Sou apenas o canal de Axat. Eu posso informar o que Axat me mostra, mas a visão não é minha. É Dela. Tudo o que tenho a dar é o que Axat oferece. Se o senhor quiser reclamar sobre ser pouca coisa, fale com Ela.

— Então me diga essa pouca coisa, nahual — falou Zolin. O tecuhtli apontou para leste, onde os olheiros mais avançados disseram que um exército dos Domínios esperava por eles, fora da cidade, a meio dia de marcha de distância. Niente fora a cavalo com Zolin para ver a cidade, que era bem maior do que a maioria dos vilarejos abandonados por onde eles marcharam nos últimos dias, embora não tão elaborada ou grande quanto aquela que Niente tinha visto na tigela premonitória, essa Nessântico onde o kraljiki vivia. Ainda assim, a cidade aninhada atrás das muralhas, e que se esparramava a partir delas, era pelo menos da metade do tamanho de Tlaxcala ou das outras grandes cidades insulares do império tehuantino, e maior que Munereo ou Karnor.

Parecia que o kraljiki não deixaria que eles avançassem mais sem resistência. Se Zolin quisesse essa cidade, deveria lutar por ela. Niente sabia que isso não incomodava de maneira alguma o tecuhtli.

— Eu vislumbrei uma batalha — disse Niente. Ele fechou os olhos e tentou se lembrar das cenas que lampejaram na tigela premonitória. — Na visão de Axat, o exército dos Domínios lutou, mas depois recuou para trás das muralhas da cidade quando investimos contra eles. Eu vi as muralhas rachadas e os tehuantinos entrando...

— Xatli Ket! — Niente parou quando Zolin soltou o grito de guerra de sua classe; Citlali e Mazatl fizeram o mesmo, e o berro foi repetido, cada vez mais fraco, pelos outros guerreiros presentes. — Então Axat mostrou a nossa vitória para você — falou o tecuhtli. Ele deu um tapa na armadura de bambu que cobria o peito.

— Talvez. — Niente apressou-se a dizer. — Mas Ela também me mostrou nosso exército e frota destruídos, e um navio indo depressa para oeste. Tecuhtli, esse também é um futuro possível; um sinal. Se voltarmos agora, se colocarmos nosso exército nos navios e voltarmos para casa, então esse é um futuro que jamais viveremos. Os orientais temerão para sempre ir à nossa terra novamente. Nós já mostramos a eles as consequências; não há mais nada a provar.

Zolin soltou uma risada sarcástica. Citlali franziu a testa, e Mazatl desviou o olhar, como se estivesse enojado. — Recuar, nahual?

— Recuar, não — insistiu Niente. — Entender que demos uma lição nesses orientais com a ruína de Munereo e Karnor e voltar para casa com a vitória.

— Vitória? — Zolin cuspiu no chão entre eles. — Os orientais pensariam que eles obtiveram a vitória, que corremos assim que vimos seu exército.

— Tecuhtli, se formos derrotados aqui, que bem faria para o nosso povo perder o tecuhtli e tantos guerreiros e nahualli?

— Se formos derrotamos, e não seremos, nahual, se você viu corretamente sua visão, então nosso povo encontrará um novo tecuhtli para liderá-los, e eles treinarão novos nahualli nas tradições do X’in Ka, e nós seremos lembrados quando Sakal nos receber em Seu olho flamejante. Isso é o que será feito, não importa a pouca ajuda que você dê. Está com medo, nahual Niente? Será que a visão do exército oriental faz o mijo escorrer quente por suas pernas?

Citlali e Mazatl riram.

— Eu não estou com medo — disse Niente, e era verdade. Não era medo que revirava seu estômago, mas uma sensação de inevitabilidade. Axat tentava alertá-lo, mas Ela não deixava a mensagem clara o suficiente, ou talvez ele estivesse tão distante Dela que a mensagem estava truncada e difícil de discernir. — Tecuhtli, o que o senhor me pedir, eu farei. Quando me pede para interpretar o que vejo na tigela premonitória, eu também o faço.

Zolin torceu o nariz. — Então isso é o que eu lhe digo para fazer, nahual. Encha seu cajado mágico. Prepare a areia negra. Faça as pazes com Axat e Sakal, e você entrará comigo na cidade dos orientais, e depois iremos até o trono do monarca deles.

Niente ouviu as palavras e abaixou a cabeça para aceitá-las. O único navio que fugia depressa para o sol poente... — Eu farei isso, tecuhtli — falou ele, com pesar. — Eu prepararei os nahualli. Dê-me tempo suficiente, e farei o que acredito que Axat deseja que façamos.


CONTINUA

CONEXÕES

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

Niente

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Nico Morel

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Enéas co’Kinnear

A Pedra Branca


Niente

ELE NUNCA ESTEVE NO MAR antes e não tinha certeza se estava gostando totalmente da experiência.

Niente encontrava-se no castelo de popa do galeão capturado dos Domínios, antigamente chamado de Marguerite e agora rebatizado como Yaoyotl — que significava “guerra” em sua própria língua. O Yaoyotl navegava no meio da frota tehuantina; de sua posição, Niente podia observar as longas ondas azuis decoradas com as velas brancas de mais de uma centena de navios. Atrás deles, perdida no horizonte há dias, estava a costa oriental de sua terra e a fumaça desagradável de Munereo, queimada e saqueada, que agora era a cova da Garde Civile dos Domínios, a não ser para os poucos que recuaram para o último pequeno ponto de resistência dos orientais no continente, a cidade de Tobarro. O exército tehuantino tinha tomado Munereo, recuperado toda a terra ao sul e a oeste de suas muralhas e capturado os navios da frota dos Domínios no porto, ao menos aqueles que escaparam do fogo mágico da frota tehuantina ou que não foram postos a pique pelas próprias tripulações e mandados para o fundo do mar quando a derrota era óbvia. A maior parte dos navios que acompanhavam o Yaoyotl era de embarcações chamadas de acalli: navios de dois mastros e velas latinas com que os tehuantinos cruzavam o Mar Ocidental entre as grandes cidades que os invasores orientais nunca viram. Os acalli não conseguiam levar o número de tripulantes ou soldados que os galeões de velas quadradas de Nessântico eram capazes, nem eram tão rápidos, mas eram mais manobráveis, especialmente nas águas rasas da costa ou quando o vento estava contra eles.

Os ventos do Strettosei, no entanto, sopravam constantemente de oeste para leste nesta latitude, e o vento da passagem da frota assobiava pelos cabos tesos que seguravam as velas enquanto as proas dos navios rasgavam longas linhas brancas pelas ondas, que desciam, subiam e desciam novamente, implacáveis e eternas.

Era um movimento que, após vários dias, ainda embrulhava e fazia arder o estômago de Niente. Os braços e as pernas, contorcidos e arruinados pelos esforços do feitiço que colocara no oriental Enéas, doíam quando ele tentava se manter equilibrado no balanço do navio. Dois dos nahualli subalternos estavam no castelo com ele e o observavam enquanto Niente usava a tigela para realizar um feitiço premonitório; ele não ousaria demonstrar a fraqueza no estômago ou no corpo, ou então a notícia chegaria aos outros nahualli, e com o tempo alcançaria o ouvido do tecuhtli Zolin, que também estava no Yaoyotl. O destino de todo nahual esperava por Niente, o destino que talvez tivesse chegado até mesmo a Mahri, ou talvez a Talis também: como um nahualli, cada uso do X’in Ka tinha seu preço, e quanto maior o feitiço, mais caro o preço que os deuses cobravam.

Com o tempo, o preço seria a morte.

O balanço do navio sacudia a água na tigela premonitória e turvava as visões do futuro: aquilo incomodava Niente mais do que a náusea. Ele espiou dentro da água, que espirrava até a borda da tigela de latão. Os olhos não queriam entrar em foco; o esquerdo, turvo desde o encantamento de Enéas, tinha piorado desde o ataque a Munereo. Niente piscou, mas as cenas na tigela recusaram-se a ficar nítidas. Ele resmungou, fechou a cara e jogou fora a água sobre a amurada da popa, enojado. Os outros nahualli ergueram as sobrancelhas, mas não disseram nada. — Eu preciso falar com o tecuhtli — disse Niente. — Levem a tigela para o meu alojamento e limpem-na.

Eles abaixaram a cabeça obedientemente enquanto Niente passava pelos dois, arrastando os pés.

O nahual discutira com o tecuhtli Zolin que a estratégia era idiota, embora não tivesse ousado usar esta palavra. Ele queria desesperadamente voltar para casa, para trás das Montanhas Afiadas, para as grandes cidades em volta do lago. Para Xaria, sua esposa; para os filhos. Para a familiaridade de casa.

Niente não estava sozinho. O guerreiro supremo Citlali tomara a mesma posição, assim como vários dos guerreiros subalternos. — Por que devemos navegar até a terra dos orientais? Tomemos a última cidade que eles mantêm aqui e joguemos seus corpos na grande água. Voltemos para nossas casas e famílias, e se os orientais retornarem para incomodar nossos primos novamente, nós os afugentaremos mais uma vez.

Mas Zolin foi inflexível e declarou — Sakal exige mais de nós. É hora de mostrarmos a estes orientais que podemos machucá-los assim como eles nos machucam. Se alguém é atacado por um lobo, espantá-lo apenas poupa o lobo para um novo ataque, talvez quando ele estiver mais forte ou a pessoa estiver mais fraca. Matar o lobo é a única maneira de estar realmente a salvo.

— Isso não é um lobo — insistiu Niente. — É um monstro de várias cabeças, com um pequeno rosto que nós vimos, e estamos indo para sua toca. Pode ser que ele nos devore completamente.

Zolin resmungou ao ouvir isso. — Fugir do lobo porque se está com medo é a pior estratégia de todas. Isso só oferece ao lobo as costas desprotegidas.

No fim das contas, Zolin convenceu os guerreiros supremos, e Niente não teve escolha a não ser informar os nahualli que a tarefa deles ainda não havia acabado. Ele quase ficou surpreso ao ver que nenhum dos nahualli resolveu desafiá-lo pelo posto de nahual, como consequência.

Os alojamentos do antigo capitão ficavam embaixo do castelo de popa, e era ali que o tecuhtli Zolin tinha se instalado. A mobília oriental fora jogada ao mar e substituída pelas linhas geométricas mais familiares e os desenhos do estilo tehuantino. O aposento estava animado por tons vermelhos e marrons, as cores do sangue e da terra. O cheiro de incenso fez Niente franzir o nariz ao entrar, os criados do tecuhtli prostraram-se nos tapetes jogados sobre as tábuas de madeira.

O tecuhtli Zolin estava reclinado em uma cadeira entalhada em um único bloco de pedra verde, amaciada por travesseiros e cobertores. O rosto e o torso, como os de todos os soldados, eram tatuados com redemoinhos de traços e linhas curvas: um registro do talento em combate e da patente. A cabeça estava raspada, como sempre, e agora era decorada pela tatuagem vermelha da águia de asas abertas. Os guerreiros supremos Citlali e Mazatl estavam falando com ele em voz baixa, mas interromperam a conversa quando Niente entrou. Os rostos tatuados e carrancudos se voltaram para o nahual.

— Ah, nahual Niente — falou o tecuhtli Zolin, gesticulando. Niente cruzou o aposento até o trono e ficou de joelhos. — Levante-se, levante-se. Diga-me, o que os deuses falaram?

Niente balançou a cabeça ao ficar de pé. Ele sentiu o olhar avaliador dos guerreiros supremos. — Sinto muito, tecuhtli, mas o balanço do navio... perturba as águas. Eu vi uma batalha e uma cidade em chamas à beira de um mar, seu estandarte tremulava sobre ela, mas de resto... eu não vi nada do oriental que mandei para seu kraljiki. Não vi nada da grande cidade deles.

— Ah, mas o estandarte e a cidade em chamas... isto só pode indicar vitória. Quanto ao seu oriental... — Zolin fungou e cuspiu no chão — ... essa era a estratégia do velho Necalli, e nem mesmo o grande Mahri teria sido capaz de fazer com que funcionasse.

Niente ficou vermelho com a indireta e irritado com o menosprezo que Zolin demonstrou por Mahri, cuja habilidade com o X’in Ka era lendária. Mahri evidentemente havia falhado, sim, mas isso só podia ter acontecido porque alguma força dos orientais tinha sido ainda mais forte. Niente abaixou a cabeça, mais para esconder o rosto do que por submissão. — Deve ser como o senhor diz, tecuhtli.

Zolin riu ao ouvir isso. — Ora, vamos, Niente, não seja tão modesto. Ora, você é um vidente e um nahualli de um nível que não vemos desde Mahri. Melhor até, pois Mahri não conseguiu impedir que os orientais invadissem nossas terras e as de nossos primos. Necalli era um tolo que desperdiçava recursos valiosos. Ele desperdiçou você também; todo aquele esforço que você concentrou naquele oriental. Mas agora... — Zolin abriu um largo sorriso. — Eu fiz os orientais recuarem para uma cidade sem importância na terra de nossos primos, com a ajuda de seus conselhos e habilidades, e agora temos a oportunidade de pilhar os orientais como eles um dia pilharam nossos primos do Mar Oriental. — O tecuhtli abanou a mão. — Eu mesmo arrancarei a cabeça dessa serpente oriental e tomarei providências para que nunca cresça outra. — Ele abaixou a mão e deu um sorriso cruel, mas a expressão dos dois guerreiros supremos era séria e impassível.

Niente perguntou-se qual dos dois poderia um dia desafiar Zolin, caso esta expedição falhasse, como ele temia que aconteceria.

O nahual compartilhava da atitude azeda de Citlali e Mazatl. Zolin não era diferente de muitas pessoas fora do círculo dos nahualli. Todas elas pensavam que seu dom era uma coisa simples: bastava olhar na água e deixar a deusa-lua Axat girar o futuro diante dos seus olhos. As pessoas não entendiam que as visões de Axat eram confusas e às vezes opacas, que o que nadava na água sagrada eram apenas possibilidades, e que essas possibilidades podiam ser alteradas, mudadas e até mesmo evitadas pelas habilidades de outras pessoas. Mahri — cujas habilidades, diziam, superaram a de qualquer nahualli — descobrira como Axat podia ser volúvel: a morte de Mahri foi um das primeiras visões que Niente viu em uma tigela premonitória; foi aquela visão que demonstrou para os mentores de Niente como ele tinha sido abençoado por Axat e Sakal. Talis, que fora mandado pelo tecuhtli Necalli para Nessântico, confirmou a visão de Niente: Mahri tinha falhado e tinha sido morto.

Aqueles sem o dom pensavam que devia ser maravilhoso ter o poder de Axat e Sakal, da lua e do sol. Não viam como usar o dom roubava força e vitalidade; como desfigurava e distorcia quem usava o poder. Agora mesmo, Niente podia olhar no espelho de bronze do alojamento e ver as rugas fundas no rosto, rugas que ninguém de sua idade já deveria ter. Notou a boca murcha, que o olho esquerdo chorava constantemente e agora estava esbranquiçado por uma nuvem mágica, que o cabelo ficava mais ralo e com mechas grisalhas. Ele sentia uma dor constante nas juntas que um dia viraria facas cruéis de agonia. Niente jamais conheceu Mahri, mas tinha vislumbrado o rosto do homem na tigela premonitória, e temia que um dia ele também visse as pessoas desviarem o olhar em vez de encará-lo e que ouviria os gritos de crianças assustadas quando passasse.

E Niente sabia que o tecuhtli Zolin podia estar satisfeito com ele agora, mas que o prazer do tecuhtli era frágil e podia desaparecer tão rápido quanto a bruma na luz do sol. Uma batalha perdida... Era tudo o que bastava, e tecuhtli Zolin procuraria por um novo nahual para estar ao lado dele.

— Eu rezo para Axat para que o senhor mate a serpente oriental — disse Niente para Zolin. — Mas eu...

Ele parou ao ouvir um chamado vindo do convés. — Terra... — gritou alguém. — A costa oriental...

Zolin sorriu ainda mais e falou — Ótimo. É chegado o momento de ver uma cidade queimar e nossos estandartes tremularem sobre a terra deles. — Ele ficou de pé e espantou os criados que correram para ajudar. — Venham, vamos ver esta terra juntos, com nossos próprios olhos, antes de tomá-la.

 

Karl ca’Vliomani

— BEM? — PERGUNTOU KARL PARA VARINA quando ela voltou para o quarto. Varina tirou a capa dos ombros e desmoronou em uma cadeira.

— Ela é a matarh de Nico, com certeza — respondeu Varina. — Eu contei que soube que o filho dela tinha fugido, e que quando nós estivemos em Nessântico, eu vi um menino na rua Crescente. A mulher arregalou os olhos quando ouviu isso e me disse que aquela era a rua onde ela morou até o mês passado. Quando descrevi o menino e a casa, a mulher começou a soluçar. Fiz o possível para evitar que ela voltasse correndo para Nessântico hoje à noite.

— E Talis?

— Talis é o vatarh do menino, e ela é apaixonada por ele, Karl. Isso também era óbvio; na verdade, eu suspeito que a mulher esteja grávida de Talis novamente, pelo jeito que segura o corpo quando fala sobre ele. Seu encontro com Talis o assustou tanto que ele despachou a esposa e Nico para fora da cidade; acho que Talis pensou que você mandaria a Garde Kralji atrás dele. Ela está esperando que Talis venha e que Nico retorne também. — Varina recostou a cabeça, fechou os olhos e suspirou. — Ela não trairá Talis para recuperar Nico, Karl. Honestamente, eu nem abordei essa possibilidade com a mulher. Na verdade, eu tenho certeza de que ela está no quarto agora fazendo as malas e se aprontando para ir embora amanhã para Nessântico, na esperança de encontrar Nico lá. A mulher está agitada e sofrendo desde que o menino foi embora. — Ela abriu os olhos novamente e encarou Karl. — É o que eu faria, no lugar dela. Sinto muito... Eu sei que você queria que eu fizesse, mas... não consegui levar adiante. Não consegui manter o filho da mulher como refém em troca de ela entregar Talis para nós, não quando não sabemos onde Nico está, na verdade. Sinto muito. Eu sei que você suspeita que Talis seja o assassino de Ana, e você tem bons motivos para ter essas suspeitas, mas isso...

Outro suspiro. Varina espalmou as mãos. — Eu não consegui fazer.

Não havia arrependimento na voz ou no olhar de Varina. E Karl descobriu que não conseguia ficar com raiva dela — o embaixador sabia como teria sido a situação com os próprios filhos. Karl podia ter sido um vatarh ruim e ausente para eles, mas se tivesse chegado a esse ponto, ele teria feito o que fosse necessário pelos filhos.

Ao menos era o que ele dizia para si mesmo. Ele se perguntou se era verdade. E se Kaitlin tivesse mandado chamá-lo enquanto Karl estava em Nessântico, enquanto Ana estava viva? E se ela tivesse chamado Karl de volta, pelo bem dos filhos? Será que ele teria ido? Ou teria dado alguma desculpa, teria descoberto alguma razão irresistível para permanecer aqui com Ana.

— Karl? — perguntou Varina. — Você está irritado comigo?

Ele balançou a cabeça e disse — Não se preocupe. Eu compreendo. — Os dedos roçaram os pelos da barba. Ele se sentia velho na noite de hoje. Os ossos estavam frios, e o fogo da lareira não ajudava a aquecê-los. — Eu voltarei com a mulher — falou Karl finalmente, quando o silêncio ameaçou durar tempo demais. — Talvez Talis venha atrás dela. Talvez a mulher saiba onde Talis está escondido.

— Se voltar, a Garde Kralji irá encontrar você, e o kraljiki mandará que seja torturado e executado. Seu corpo balançará em uma das jaulas da Pontica Kralji, com corvos arrancando a carne dos seus ossos.

Karl sentiu um arrepio e envolveu o próprio corpo com braços, que pareciam cansados e fracos. — Você pode ter razão. Mas do que eu estou correndo atrás, Varina? O que eu realmente ganhei por sair de Nessântico? Como encontrarei quem matou Ana em outro lugar? — Ele balançou a cabeça. — Não, eu preciso voltar. Esse não é o método numetodo? Para aprender, é preciso examinar; para compreender, é preciso experimentar. É necessário ter fatos. Ter encontrado a matarh de Nico... — Ele sentiu um arrepio novamente. — É quase como se o fantasma de Ana tivesse me conduzido aqui.

— Você não acredita em fantasmas nem deuses, Karl. Só acredita no que consegue ver, tocar e examinar. Não é este o método numetodo?

Ele deu um leve sorriso ao ouvir isso e falou — Não, eu não acredito em fantasmas, mas é estranho como um pensamento assim é confortante, não é? Quase faz entender o apelo que a religião tem para as pessoas. — Karl respirou fundo. — Ainda assim, eu voltarei.

— Então eu voltarei com você — disse Varina. — Assim como você, não há nada que eu esteja correndo atrás. E você precisará de ajuda.

— Você não precisa fazer isso. O kraljiki fará com você o mesmo que faria comigo... ou pior. Não há motivo para você voltar, afinal... — A voz de Karl foi sumindo.

Varina não respondeu, mas Karl notou o jeito dos lábios, a postura do corpo, viu a maneira com que ela olhava com raiva para ele, e subitamente Karl soube, e a revelação foi dolorosa. — Ah — falou o embaixador. Ele se perguntou como podia ter sido tão cego. Ficou de pé e andou até onde Varina estava sentada. Ele começou a colocar a mão no ombro dela, mas Varina franziu os olhos e ele recolheu a mão. — Varina...

Ela sustentou o olhar de Karl, os olhos castanhos de Varina vasculharam os dele. — Você amava Ana, embora ela nunca tenha correspondido exatamente com o mesmo amor. Ana estava muito envolvida com o que enxergava como a única tarefa da vida dela — falou Varina, baixinho. Ela acenou com a cabeça. Os lábios tremeram, como se quisesse sorrir, depois voltou a fechar a cara. — Bem, eu entendo essa situação, Karl. Entendo muito bem.

— Eu não sei o que dizer.

Varina sorriu então, a expressão tinha o toque de uma emoção escondida que Karl não conseguiu decifrar. — Então você não deve dizer nada. Eu não disse nada que exija uma resposta, a não ser que voltarei com você, não importa o que diga.

Varina sustentou o olhar de Karl sem piscar, até ele concordar com a cabeça. — Tudo bem — falou Karl. Ela concordou com a cabeça, mas não falou nada. O silêncio durou muito tempo e ficou cada vez mais incômodo, os dois olhavam fixamente para o pequeno fogo na lareira. Os pensamentos rolavam na cabeça de Karl: todas as vezes que ele e Varina estavam juntos, os comentários que ela fazia, os olhares, os toques ocasionais, a maneira como ela sempre se desviava de perguntas sobre interesses românticos que pudesse ter, a forma como Varina se atirou no trabalho dos numetodos.

Ele deveria ter sabido. Deveria ter percebido. Mas o silêncio já havia tornado mais difíceis as perguntas que Karl deveria ter feito. Ele pigarreou. — Se... se você voltar comigo para Nessântico, então talvez precise começar a me mostrar mais sobre esse modo ocidental de fazer magia.

Abrigar-se no trabalho para evitar intimidade: era o que Ana sempre fazia, afinal de contas.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA ACHOU A HISTÓRIA DE SERGEI fascinante, embora conhecesse bem o homem a ponto de saber que havia detalhes que ele escondia. Allesandra não se importou com isso; ela teria feito o mesmo no lugar dele. Ela fez o mesmo, durante os longos anos que ficou presa em Nessântico. Allesandra gostava da archigos Ana, que a tratou de maneira correta e respeitosa, e era fascinada por Sergei, primeiro pela reputação e pelo nariz de prata, depois — quando passou a conhecê-lo — pela inteligência e personalidade sombria e intrigante.

— Ca’Rudka é um homem interessante e habilidoso, e eu não estaria onde estou agora se não fosse por ele — disse a archigos Ana certa vez para ela, quando se passaram alguns anos de exílio e Allesandra virava uma jovem moça. — Mas você não pode confiar inteiramente nele. Ah, ca’Rudka honra a palavra, mas ele dá esta palavra com cuidado e a contragosto. E manterá a palavra ao pé da letra, mas talvez não fiel ao espírito. Sua verdadeira lealdade é a Nessântico, não a qualquer pessoa dentro dela. Eu não acho que ele ame alguém, não acho que jamais tenha amado. Seus verdadeiros amores são a cidade e os próprios Domínios. E alguns de seus gostos, o que ele tem prazer em fazer... — Ana fez uma careta ao dizer isso. — Eu espero que sejam apenas histórias terríveis, que não sejam verdadeiras.

Allesandra lembrou-se dessa conversa enquanto observava Sergei, agora vestido na moda e cores atuais de Firenzcia. Ele veio a convite de Allesandra para almoçar nos aposentos da a’hïrzg no Palácio de Brezno, e se ficou ofendido com a cuidadosa revista corporal antes que fosse permitido entrar, ou se notou os dois gardai armados que o observavam atentamente de seus postos no cômodo, Sergei não disse nada. Ele sorriu para Allesandra como teria feito para qualquer ca’ em Nessântico e elogiou a apresentação e o gosto da refeição enquanto os criados entravam e saíam, recostou-se na cadeira segurando uma xícara de chá como se estivesse relaxado e à vontade. Sergei contou como foi aprisionado na Bastida e como escapou. Allesandra observou o rosto do homem, as mãos — nenhum deles revelava emoção alguma; ele poderia estar contando uma história que aconteceu com algum parente distante, alguma certa vez.

— Então o embaixador numetodo ajudou você? — Allesandra também se lembrava de Karl ca’Vliomani, que era tão obviamente apaixonado pela archigos Ana, embora ela parecesse tratá-lo apenas como um bom amigo. Allesandra não se importava muito com ele ou com os numetodos, que desdenhavam e debochavam de sua própria crença, que não acreditavam em nenhum deus. Os numetodos acreditavam que o mundo sempre existiu, que era velho de uma maneira impossível, que os processos naturais podiam explicar tudo dentro do mundo; o absurdo e a arrogância da filosofia deles incomodavam Allesandra. — Isso não vai deixar o archigos Semini satisfeito... nem o archigos Kenne, imagino.

— Foi um ato de amizade e nada mais.

— Uma vez, a archigos Ana me disse que todo ato reflete a fé da pessoa que o comete — falou Allesandra. — Você é um numetodo agora, Sergei?

Ele balançou a cabeça. — Não. Eu acredito tão piamente em Cénzi quanto sempre acreditei.

A a’hïrzg perguntou-se se a declaração era uma mera falsidade engenhosa, mas deixou para lá. — Será que o kraljiki Audric pode realmente governar os Domínios? Será que o archigos Kenne pode unir os a’ténis como Ana fazia?

— Só o tempo pode lhe dar essa resposta, a’hïrzg.

— Então me conceda uma especulação.

Sergei deu de ombros. — O archigos Kenne é... fraco. Não apenas fisicamente, mas também quando se trata de confrontar. Ele é um homem bom, moral e fiel, mas é um seguidor, não um líder. É louvável que ele conheça e reconheça este defeito. O Colégio A’téni o elegeu como archigos por causa disso: eles não queriam outro líder forte como Ana. Quanto ao kraljiki Audric... bem, ele é só um menino e tem péssima saúde. Tenho certeza de que a senhora tem seus próprios agentes, que passam relatórios, mas suspeito que eles não contaram toda a história.

Sergei inclinou-se para a frente e pousou a xícara de chá e o pires silenciosamente sobre a mesa. Allesandra viu o próprio reflexo distorcido no nariz dele. — Audric enlouqueceu — falou Sergei, baixinho, e bateu com o indicador na testa. — O quanto ele enlouqueceu, eu não sei. Eu mesmo notei antes de Audric me mandar para a Bastida, e depois meus amigos na corte e na Fé me mandaram notícias. O kraljiki conversa com o quadro de sua mamatarh Marguerite; ele coloca a pintura ao seu lado direito na corte como se ela fosse sua conselheira.

— Sério? — Allesandra gesticulou, e um dos criados correu para encher as xícaras novamente. Ela viu o líquido dourado soltar fumaça em sua xícara. — E ninguém diz nada?

— Os kralji às vezes agem de modo esquisito e às vezes punem aqueles que apontam sua esquisitice. Isso aconteceu muitas vezes na longa história de Nessântico; nós dois podemos citar nomes, tenho certeza. E se o problema não parece afetar os Domínios diretamente... — ele deu de ombros — ... então é melhor não comentar nada... e tomar cuidado. Tenho certeza de que é o que Sigourney ca’Ludovici está fazendo: ela quer o trono e espera a oportunidade para tomá-lo. A maior parte do Conselho dos Ca’ apoiaria Sigourney; o Trono do Sol será dela se Audric morrer ou tiver que ser... removido. Qualquer uma dessas duas é uma possibilidade bem provável nos próximos meses, eu suspeito.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela ergueu a xícara, soprou a superfície aromática e tomou um gole com cuidado. Nenhum dos dois falou alguma coisa por vários instantes. — Por que você veio para cá, regente? — perguntou a a’hïrzg, finalmente. — Eu sei o que você disse para meu filho e para o archigos, mas eu acho que tem mais alguma coisa.

Sergei olhou para trás, para os gardai, e não disse nada. — Eles são homens de minha confiança — falou Allesandra. — Meus gardai escolhidos a dedo, estão comigo desde que voltei para Firenzcia. Eu confio totalmente neles. Tenho certeza de que você teve homens sob seu comando em cuja integridade você confiava dessa maneira.

— Pela minha experiência, quase todo mundo tem um defeito que pode ser explorado. Eu aprendi que, quanto menos ouvidos escutam alguma coisa, mais chances há de que as declarações não sejam repetidas.

Allesandra esperou enquanto tomava o chá; Sergei esfregou o nariz e turvou o reflexo da a’hïrzg.

— Como queira — disse ele, finalmente. — Nessântico e os Domínios têm sido a minha vida, a’hïrzg. Esta é uma lealdade a qual não posso e nem irei abrir mão. Meu desejo mais sincero é ver os Domínios restaurados ao que eram na época em que a kraljica Marguerite estava no trono. Eu gostaria de ver a senhora em Nessântico, como a kraljica Allesandra. A senhora pode ser a kraljica que Nessântico precisa agora.

Embora estivesse esperando estas palavras, Allesandra ainda se viu um pouco nervosa. Viu só, vatarh? Viu só? Esse é o legado que o senhor queria, e essa é a promessa que o senhor abriu mão quando me abandonou por Fynn. A emoção de sua resposta interior surpreendeu Allesandra; ela sentiu o calor subir do peito para o rosto. Fez um esforço para não demonstrar nada disso para ca’Rudka. — Sonhar não custa nada — disse a a’hïrzg. — Nós podemos sonhar à vontade. Poder realizar o sonho é uma coisa completamente diferente.

— No entanto, se duas pessoas tiverem o mesmo sonho, e ele coincidir com o de outras pessoas, e se estas pessoas forem poderosas o suficiente... — Sergei sorriu e fechou os dedos sobre a toalha de mesa de renda, como se estivesse rezando. — Este seria o seu sonho também, a’hïrzg? A senhora consegue ver um ca’Vörl no Trono do Sol? Eu sei que seu vatarh tinha essa visão.

Ele sabe. — Vamos deixar este assunto de lado por um momento, regente. Há outras questões envolvidas caso perseguíssemos esse objetivo... e não estou dizendo que estamos. E quanto à fé concénziana? Quem seria o archigos nestes Domínios restaurados que você imagina: Semini ou Kenne?

— Apesar do que eu disse sobre os defeitos dele, eu gosto do archigos Kenne. Ele é meu amigo, sua fé é verdadeira, e, como eu disse, ele é um bom homem.

— Ele pode ser tudo isso, mas Kenne não é um amigo de Firenzcia e, como Ana, ele passaria a mão na cabeça dos hereges. E Semini é meu amigo.

Sergei fez um som contemplativo no fundo da garganta. — Há rumores, a’hïrzg, de que ele talvez seja mais do que isso.

Allesandra ficou vermelha ao ouvir isso. O garda atrás do regente levou a mão ao cabo da espada, mas ela fez que não com a cabeça para o homem. — Você fala abertamente demais sobre rumores e mentiras, regente. Você não pode mais me tratar como uma menina ou uma refém da realeza. Você está em minha terra, e é a sua vida que está em jogo, não a minha. Se essa é a maneira como falava com Audric, então não é de admirar que ele não quisesse mais que você fosse regente.

Sergei abaixou a cabeça, mas não havia desculpas no olhar implacável. — Minhas desculpas, a’hïrzg. Minha estada na Bastida acabou, infelizmente, com minha diplomacia e paciência. Mas esses rumores e mentiras me preocupam de verdade, se formos trabalhar juntos.

— O archigos já tem uma esposa. É tudo o que precisa ser dito, e toda a resposta que você receberá. Quanto ao archigos Kenne... — Allesandra também se lembrava de Kenne ca’Fionta: um homem gentil, quieto, que sempre foi um eficiente subcomandante, mas que nunca questionava o que lhe era pedido ou dizia o que pensava. A a’hïrzg não conseguia imaginá-lo como archigos. Ana também podia ser gentil e carinhosa, mas havia ossos duros e aço sob o veludo, e ninguém gostaria de ser inimigo dela. Allesandra não tinha certeza do que havia sob o exterior de ca’Fionta, mas suspeitava que a avaliação de Sergei era correta.

Mas Semini... Semini podia ser tão inflexível e forte quanto Ana. — Se você quiser a ajuda de Firenzcia — continuou ela —, se quiser a ajuda de nossos ténis-guerreiros, então será o archigos Semini, e não o archigos Kenne, quem reunirá a fé concénziana. Kenne não precisa ser morto; se puder ser convencido a renunciar ao título pelo bem da Fé, talvez até mesmo para se tornar o a’téni de uma das cidades. Eu desconfio que um amigo poderia convencer outro amigo da sensatez desse rumo. Eu espero, pelo bem de Kenne.

Allesandra recostou-se na cadeira. Sergei, pela primeira vez, tinha uma expressão de incerteza no rosto, e ela ficou surpresa com a intensidade da alegria que esta reação lhe proporcionou. A a’hïrzg perguntou-se se era assim que uma kraljica ou hïrzgin geralmente se sentiam, se era uma das dádivas do poder. Uma dádiva ou talvez uma armadilha para aqueles que cediam ao domínio daquela sensação. — Eu sei o que eu trago para você, regente. Eu trago meu nome e minha genealogia. Trago o inigualável exército de Firenzcia, através do meu filho. Trago os temíveis ténis-guerreiros da verdadeira fé concénziana através do archigos Semini. Trago Miscoli, Sesemora e as Magyarias, que obedecem a Firenzcia. Eu trago tudo isso à mesa. O que você traz para nós, regente?

Sergei não respondeu imediatamente. O indicador direito roçou a borda da xícara diante dele, e o regente pareceu observar o desenho das folhas no fundo. — Eu trago conhecimento. Eu conheço a Garde Kralji e a Garde Civile e as forças e fraquezas de seus comandantes. Conheço Nessântico; conheço todos os seus caminhos e segredos. Há aqueles na Garde Civile e na Garde Kralji que responderão se eu chamá-los. Há aqueles entre os ca’ e co’ que farão a mesma coisa. Há chevarittai que virão a mim se eu convocá-los. Pode ser, a’hïrzg, que eu consiga lhe entregar o Trono do Sol com o mínimo de vidas perdidas possível.

— Ora, se é capaz de fazer tudo isso, por que você não é o próprio kraljiki em vez de um refugiado? — perguntou Allesandra, mas ela não deu tempo para Sergei responder. — Se é capaz de fazer tudo isso, o que você quer em troca?

— Nada — respondeu Sergei, e Allesandra ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Dê-me a recompensa que a senhora achar condizente. Eu faço isso apenas por Nessântico, por que sempre empenhei a vida. Uma vez, eu protegi Nessântico da agressão de Firenzcia; agora, eu entregarei Nessântico a Firenzcia livremente. A kraljica Marguerite acreditava no casamento como uma forma de conciliar forças opostas, e eu acredito na mesma coisa, porque o casamento de Nessântico com Firenzcia é tudo que ela precisa agora para sobreviver.

Belas palavras, Allesandra queria dizer, com desdém. A a’hïrzg não tinha certeza se acreditava realmente no homem, mas Cénzi tinha trazido o regente até ela, de maneira totalmente inesperada, um presente irrecusável. — Você é uma jovem inteligente, talentosa e atraente — disse a archigos Ana para ela quando chegou a Nessântico a notícia de que seu vatarh nomeara o menino Fynn como a’hïrzg e se recusara a pagar o resgate exigido pelo kraljiki Justi para sua libertação. Aconteceu em menos de um ano dentro do período de sua prisão cheia de confortos e luxos, e Allesandra chorou de perplexidade e medo. Ana, a inimiga, abraçou e confortou Allesandra, fez carinho em seu cabelo e acalmou a menina novamente. — Eu sei que Cénzi tem um plano para você. Eu sinto isso, Allesandra. Há um grande papel para você cumprir ainda na vida...

Allesandra cumpriria esse papel. Ela teria aquilo que um dia seu vatarh lhe prometeu: o colar reluzente de Nessântico. Aquele era o motivo pelo qual Sergei ca’Rudka tinha aparecido neste momento.

— Veremos, regente ca’Rudka — foi tudo que Allesandra disse para ele agora. — No fim, será como Cénzi quiser...

 

Niente

NIENTE ESTAVA NA ENCOSTA de Karnor com o tecuhtli Zolin e seus guerreiros supremos, com a cidade estendida embaixo, e ele viu a cena que tinha vislumbrado na tigela.

As janelas do templo logo abaixo de Niente estavam quebradas, pareciam olhos arrancados no crânio de um prédio em ruínas. A fuligem escurecia as pedras em volta, uma fumaça imunda ainda subia entre elas. O meio domo de ouro estava quebrado, a alvenaria dourada, desmoronada. Chamas disparavam para o alto em uma dezena de pontos da cidade, mais intensas do que o sol do poente.

O ataque ocorreu facilmente e com rapidez. Assim que eles viram as encostas da grande ilha de Karnmor dos orientais, Niente reuniu os nahualli que podiam controlar o vento e o céu, e eles conjuraram uma muralha de bruma espessa para esconder a frota tehuantina enquanto ela se aproximava. A neblina envolveu os tehuantinos em um ar branco acinzentado e abafou os barulhos dos preparativos. Quando a bruma mágica acabou e foi soprada pelo vento, o Yaoyotl — com a bandeira da águia dos tehuantinos — já estava na boca do porto de Karnor, com os navios coirmãos espalhados em duas grandes alas de ambos os lado. O porto de Karnor era extenso e fundo, aninhado em penhascos de braços rochosos com a cidade empoleirada bem ao longe, a quilômetros de distância.

Um punhado de navios da marinha dos Domínios estava ancorado ali, e eles foram manobrados para encarar o ataque enquanto as embarcações pesqueiras e de lazer fugiam para um lugar seguro. Niente teve que admirar a bravura dos capitães dos Domínios: diante de uma força imensamente superior, eles não fugiram, mas se voltaram para confrontá-la diretamente, com suas bandeiras azuis e douradas tremulando no topo dos mastros. Ainda assim, foi um massacre. O vento do mar veio atrás da frota tehuantina, e os navios dos Domínios tiveram que avançar lentamente contra o vento. Os ténis-guerreiros a bordo dos galeões dos Domínios tiveram pouco tempo para preparar os feitiços — talvez mais poderosos que aqueles dos nahualli, mas lentos de serem criados, e Niente tinha passado o dia exigindo de seus nahualli. Os cajados mágicos estavam cheios, as areias negras já preparadas. Os feitiços dos nahualli foram capazes de desviar a maior parte do fogo disparado pelos ténis-guerreiros para longe dos navios tehuantinos, embora a embarcação ao lado do Yaoyotl tivesse levado um tiro em cheio que se espalhou como uma monstruosa onda de fogo e destruição pelos conveses e fez dezenas de homens pularem aos gritos nas vagas frias. O disparo fez o navio pegar fogo e encalhar, de maneira que as embarcações atrás tiveram que se virar de repente para evitá-lo.

O tecuhtli Zolin estava no convés e berrava ordens do castelo de popa; os navios tehuantinos responderam com enormes dardos com cápsulas de areia negra na ponta lançados dos conveses: as catapultas dispararam os projéteis faiscantes na direção dos defensores de Karnmor; as cápsulas, encantadas com feitiços de fogo, explodiram com o impacto, o que estilhaçou tábuas e arrancou braços e pernas ensanguentados de marinheiros azarados. Os navios de Nessântico fracassaram, as velas estavam em chamas ou penderam quando perderam o vento sob o ataque. O tecuhtli Zolin gritou ordens e um segundo bombardeiro de projéteis de fogo varreu os inimigos.

Eles deixaram os defensores na retaguarda como nada mais do que carcaças consumidas pelo fogo até a linha-d’água, e a frota tehuantina avançou para o porto interno da cidade. Os soldados de Karnor estavam reunidos ali sob o comando de uns poucos chevarittai a cavalo, mas o tecuhtli Zolin berrou ordens mais uma vez, e as catapultas dispararam seus terríveis mensageiros em meio aos inimigos, as explosões fizeram tremer os morros íngremes onde Karnor foi construída e atearam fogo entre os prédios. Os soldados e os nahualli deram gritos de vitória quando se aproximaram do porto, o som dos homens batendo os cajados mágicos e as espadas nos escudos era aterrorizante. Niente gritou ao lado deles, a própria garganta estava rouca por causa dos berros e da fumaça da batalha. Ele viu moradores fugirem pelas ruas em turbas desorganizadas que subiam e se afastavam do repentino conflito da batalha no porto, enquanto pranchas eram descidas e expeliam soldados tehuantinos. Eles avançaram aos gritos, os rostos tatuados estavam furiosos e alegres ao mesmo tempo. O tecuhtli Zolin liderava os homens, a escada curva reluzia à luz do sol e a voz desafiava o inimigo à espera. Niente e seus nahualli correram atrás dos soldados, seus cajados mágicos emitiam um brilho branco ao disparar raios nas fileiras dos soldados. O próprio cajado de Niente se esgotou rapidamente, ele pegou o conjunto de garras de águia que estava amarrado nas costas, girou o tubo de marfim para ativar o feitiço de fogo por contato e jogou os artefatos sobre as primeiras fileiras de soldados para que explodissem no meio dos inimigos. Em um momento, um soldado ferido de Nessântico levantou-se do chão quando Niente passou por cima dele. Por sorte, o homem estava fraco por conta dos ferimentos, e o nahual conseguiu se desviar da estocada vacilante da espada. Ele sacou a faca do cinto e passou o gume afiado na garganta exposta do sujeito antes que o soldado pudesse se recuperar. O sangue quente jorrou sobre a mão de Niente, e o homem soltou um grito gorgolejante ao desmoronar pela última vez. Uma facada forte na lateral do pescoço do soldado acabou com ele, e Niente levantou-se para descobrir que a batalha estava praticamente encerrada, os defensores recuando para o interior da cidade e sendo perseguidos pelos tehuantinos.

No momento em que o sol se pôs — vermelho e melancólico em meio à fumaça da cidade em chamas —, Karnor era dos tehuantinos, ou o que tinha sobrado da cidade. Embaixo dele, Niente ouviu gritos e gemidos fracos enquanto os tehuantinos saqueavam a cidade e matavam quem encontrassem por lá. Mais embaixo ainda, no porto, os porões dos navios tehuantinos estavam sendo preenchidos com a riqueza da cidade.

Niente estava com o tecuhtli Zolin e os guerreiros supremos tehuantinos Citlali e Mazatl. Ali perto, vigiados por guerreiros tatuados, o comandante e três offiziers superiores dos defensores estavam ajoelhados, amarrados e amordaçados. Os prisioneiros encaravam a fogueira armada pelos nahualli sob orientação de Niente e olhavam para o altar plano de pedra do Templo de Karnmor, que Niente tinha ordenado que fosse arrastado até o cume do monte Karnmor.

Quatro garras de águia, com os chifres cheios de areia negra, foram colocadas no centro do altar de pedra. Os prisioneiros olhavam fixamente, sobretudo para elas.

— Esses orientais — comentou o tecuhtli Zolin — são péssimos guerreiros. Eles correram como crianças assustadas. — Ele olhou novamente para os prisioneiros com uma expressão de desdém. O tecuhtli usava sua armadura de couro e bambu, com um talho aqui e ali de uma lâmina inimiga, e os tubos roliços chacoalhavam baixinho enquanto ele se mexia. A armadura estava respingada e manchada de sangue, embora pouco parecesse ser de Zolin. O sol tinha se posto completamente agora, e a lua surgiu a leste...

Zolin olhou na direção da lua. — Axat sequer aceita a oferta desses incompetentes.

Niente lembrou-se das batalhas em volta do lago Malik e balançou a cabeça. — Tecuhtli, eles foram pegos de surpresa e não estavam preparados para nós. Isso não acontecerá novamente. Os rumores do que aconteceu aqui chegarão ao kraljiki e aos comandantes do exército oriental. Talvez... — Ele hesitou, não queria dizer as próximas palavras. — Talvez seja melhor pegarmos o que conseguimos aqui e voltarmos para casa.

O tecuhtli Zolin deu uma gargalhada debochada. — Voltar? Agora? Quando estamos aqui, na fumaça da vitória, exatamente como você previu? Nahual Niente, você me desaponta. Eu vim aqui desafiar esse kraljiki que manda seu povo roubar a terra de nossos primos, mas sequer lidera o próprio exército. Citlali, Mazatl, o que vocês me dizem?

Mazatl já estava de cara amarrada, a luz da fogueira banhava o rosto marcado. Assim como Zolin, ele ainda usava a armadura surrada e ensanguentada. — Eu digo que estou contente por estar em terra firme, mesmo aqui. Voltar para o mar? — O supremo guerreiro cuspiu nas pedras aos pés. — Eu vim para lutar, não velejar. Eu digo para darmos a Axat o que Ela ganhou aqui e depois seguirmos em frente. — Citlali concordou com um murmúrio, mas parecia estar menos convicto.

Os nahualli e guerreiros reunidos perto do fogo já haviam começado o cântico baixo e assustador da prece à Axat. O luar brilhou forte sobre o altar de pedra e reluziu nas pontas grossas de vidro das garras de águia. Niente acenou com a cabeça para Zolin.

Dois nahualli agarraram um dos prisioneiros e arrastaram o homem para frente. O offizier choramingava de medo e invocava Cénzi. Os nahualli colocaram o homem sobre o altar de pedra, de joelhos. Ele ergueu os olhos para Niente, aterrorizado. — Vá bravamente para sua morte — disse o nahual para o oriental em sua própria língua ao pegar uma garra de águia. Ele girou a ponta do chifre, e o fatídico clique soou alto quando o feitiço foi ativado. — Reze para o seu deus. A morte será rápida. Eu lhe prometo ao menos isso. — Niente acenou novamente com a cabeça, e os nahualli seguraram firmemente os braços do homem, que fechou os olhos e moveu os lábios em uma prece silenciosa.

O nahual abriu a própria mente para Axat e para o brilho da lua, depois pressionou a boca ossuda da arma no estômago do homem. O som do disparo da garra de águia ecoou pela cidade.

 

Allesandra ca’Vörl

JAN QUASE PARECIA ASSUSTADO, os olhos tão arregalados que era possível ver o branco em volta da íris. — Matarh... levar o exército contra os Domínios... eu não sei.

— Eu compreendo o perigo — falou Allesandra. — Sim, é um grande passo para ser dado assim tão cedo no seu período como hïrzg, e entendo como deve estar se sentindo. Você precisaria confiar na capacidade do starkkapitän ca’Damont; mesmo assim, isso seria um teste maior do que tudo o que você já fez na vida. Mas, Jan, eu sei que é algo que você é capaz de fazer. Levar o exército à guerra é algo que você terá que fazer eventualmente, como quase todo hïrzg de Firenzcia já fez. Até mesmo seu vatarh lhe diria isso. Fynn tinha 18 anos, era apenas dois anos mais velho do que você, quando levou o exército à guerra pela primeira vez. — Ela acenou a cabeça para Semini, que estava sentado em silêncio na própria cadeira. Os três estavam nos aposentos de Allesandra. Os criados foram dispensados após servirem o jantar, cujas sobras ainda decoravam a mesa entre eles. — Semini sabe — disse Allesandra. — Ele comandava os ténis-guerreiros quando seu vavatarh Jan quase tomou Nessântico.

— E ele teria conseguido se aquela archigos herege desprezível não tivesse usado sua magia dos numetodos contra nós — resmungou Semini. O archigos pareceu um urso mais do que nunca, curvado na cadeira. Ele bateu de leve no prato, mas teve o cuidado de desviar o olhar de Allesandra.

A a’hïrzg ainda se lembrava do choque daquela noite: ela estava na tenda, sentada no colo do seu vatarh. — Você é meu passarinho — dizia Jan — e eu amo... — Então a voz foi interrompida e, impossivelmente, ela estava do lado de fora, longe do acampamento, esparramada no chão molhado de chuva, à noite, enquanto a archigos Ana e um homem estranho qualquer lutavam um contra o outro com uma magia do Ilmodo que Allesandra pensava ser impossível. Sim, ela lembrava-se muito bem daquilo e sabia que sua captura foi a razão do fracasso de seu vatarh, e que Jan culpava Allesandra por isso.

— Ah, os Domínios ainda têm que responder por muita coisa — continuou o archigos, que olhava apenas para Jan. Ele bateu de leve na toalha de mesa com o punho. — Eu aguardo ansiosamente para cobrar o pagamento. Hïrzg Jan, estou pronto para ser seu braço direito, com todos os ténis-guerreiros da fé concénziana comigo.

Jan ainda parecia inseguro, e Allesandra esticou o braço para afagar a mão do filho. — Jan, no fim esta deve ser uma decisão sua, não minha. Eu não sou o hïrzg, você é.

— A senhora não quis isto quando podia tê-la — disse Jan ao tocar na coroa dourada de hïrzg na cabeça. — E, no entanto, agora a senhora quer... — Ele parou abruptamente. Pestanejou. — Ah. — Franziu os olhos.

Allesandra ficou preocupada com a expressão no rosto do filho. — Pense no que podemos conseguir juntos, Jan — falou ela, às pressas —, com a mesma família no Trono do Sol e no trono de Firenzcia. Nós podemos unificar os Domínios e criar um império maior e mais pacífico do que o de Marguerite.

Jan não disse nada. Ele olhou de Semini para Allesandra, depois ficou de pé e andou rapidamente até a porta. — Jan? — chamou Allesandra, e o hïrzg parou ali. Ele falou sem se virar para a matarh.

— Eu começo a entender um pouco o que o vatarh falou sobre a senhora antes de ir embora, matarh. Ele me disse que a senhora usava as pessoas para seus próprios objetivos; disse que este era exatamente o mesmo jeito do seu próprio vatarh, e que isso não era assim tão surpreendente. Ele disse que esse comportamento foi que tornou o vavatarh um hïrzg competente, mas um amigo perigoso. Eu me pergunto se um dia poderei ser um hïrzg assim tão bom. Eu me pergunto se um dia terei vontade de ser. — Jan bateu na porta, que foi aberta pelos criados do corredor.

Allesandra ficou de pé e afastou-se da mesa; começou a ir atrás dele enquanto os pratos batiam e as taças tremiam. — Jan, fique. Por favor. Fale comigo.

Jan balançou a cabeça e saiu sem dizer outra palavra, a porta foi fechada.

Allesandra ficou parada no centro da sala de jantar e não conseguiu conter o soluço. Eu nunca tive a intenção de magoá-lo. Eu não quero magoá-lo. Ao mesmo tempo, a a’hïrzg considerou a declaração do filho: será que ela cometeu um erro ao colocá-lo no trono do hïrzg? Será que enxergava Jan com os olhos de uma matarh e não com os olhos da verdade? Allesandra sentiu as mãos de Semini em seus ombros e percebeu que ele havia se levantado para ficar atrás dela. — Não se preocupe, Allesandra. — As palavras do archigos eram um rugido baixo no ouvido. — Deixe o menino sozinho por um tempo e lembre-se que, em muitos aspectos, ele ainda é um menino. Jan sabe que você está certa, mas neste momento ele acha que você lhe deu a coroa de hïrzg como um prêmio de consolação.

— Não foi assim, de verdade. — As lágrimas ameaçaram cair, e Allesandra fungou e piscou para contê-las. — Eu amo Jan, Semini. Amo mesmo. Ele não faz noção do quanto. Eu fico magoada de vê-lo com raiva de mim. Não era o que eu pretendia.

— Eu sei — sussurrou o archigos. — Eu falarei com ele. Posso convencê-lo de que você está certa.

Ela meneou a cabeça enquanto olhava fixamente para a porta. — Eu preciso ir atrás dele.

— Se fizer isso, vocês dois apenas acabarão tendo uma discussão ainda pior. Vocês dois são muito parecidos. Dê um tempo para Jan se acalmar e pensar sobre a situação, e ele perceberá que exagerou na reação. Pode até ser que se desculpe. Dê um tempo. Deixe que ele fique com raiva agora.

As mãos de Semini massagearam os ombros de Allesandra. Ela sentiu os lábios do archigos roçarem o cabelo na nuca e deixou a cabeça pender para frente em resposta. — Ele é meu filho. Eu fico magoada quando ele está magoado.

— Se você conseguir o que quer, então essa é uma situação que poderá vir a ter que aceitar. Os kralji de Nessântico e os hïrzgai de Firenzcia sempre tiveram suas diferenças e seus interesses separados. Se não quiser um conflito entre você dois, é melhor abandonar essa ideia.

Allesandra ficou tensa sob as mãos que a massageavam, e Semini riu. — Pronto, viu só. Jan não é o único que se irrita quando alguém lhe diz o que fazer. — Ele continuou a trabalhar os músculos dos ombros da a’hïrzg. — Eu estou com você, meu amor, mas também tenho ambição. Eu quero ser o archigos da fé concénziana unificada e quero me sentar no Trono de Cénzi no Templo do Archigos e ser a sua Mão da Verdade. E quero ser mais do que isso, Allesandra. Quero ser o archigos ca’Vörl.

Ela virou-se para Semini e encontrou o rosto dele perto do seu. Allesandra beijou os lábios do archigos sem paixão. — Semini...

— Você disse para Jan pensar no que vocês dois poderiam conseguir juntos como a mesma família nos dois tronos. Eu lhe peço que considere o que poderia ser feito se a mesma família não só controlasse os tronos políticos, mas também o da fé concénziana.

— O que você sugere não é possível — falou Allesandra. — Tem o Pauli. E Francesca. Sim, eu adoro os momentos secretos que passamos juntos e gostaria que fosse de outra forma, mas não é. Semini, o que pareceria se o archigos dissolvesse o próprio casamento e o matrimônio da a’hïrzg em nome do próprio interesse? O que diriam os ca’ e co’, mesmo que em segredo? Que mal isso faria à Fé e ao Trono do Sol?

— Eu sei. — Semini rosnou e deu um passo para trás. — Eu sei. Mas meu casamento com Francesca foi político desde o início; nunca houve amor entre nós, nem muita intimidade realmente, depois dos primeiros anos e os abortos. Orlandi insistiu que eu tinha que casar com sua filha, e ele era o archigos, e seu vatarh pensou que seria bom também, e você era... — Semini fez uma pausa. — Sei que sou muito mais velho do que Pauli, Allesandra, mas eu pensei...

— A nossa diferença de idade não significa nada. — Allesandra esticou a mão para tocar no rosto do archigos, a barba grisalha sob os dedos era surpreendente. — Semini... Eu gosto mesmo de você. Eu adoro o que nós temos, mas isso tem que bastar. O que você sugere... seria um erro terrível.

— Seria? Eu não acredito nisso, Allesandra. Se você soubesse o quanto eu lutei com essa ideia, se soubesse como rezei para Cénzi... — Semini balançou a cabeça sob os dedos dela e disse — Não seria um erro. Como poderia ser, se existem sentimentos verdadeiros entre nós? Você pode me dizer que esses sentimentos são unilaterais e que nosso caso é simplesmente uma questão de conveniência para você? É assim, Allesandra? Diga-me. Diga-me a verdade.

Allesandra encarou Semini, que ainda tinha o rosto nas mãos dela, e sussurrou — Unilaterais? Não.

Ele soltou um longo suspiro de alívio, praticamente uma palavra ou soluço, e depois beijou Allesandra, que devolveu o beijo. Ela abandonou a si mesma e as preocupações sobre Jan e o que poderia acontecer na paixão que a envolveu.

 

Jan ca’Vörl

JAN DEIXOU O SUOR PINGAR enquanto estocava e defendia com a espada contra um oponente invisível. Às vezes era Semini, às vezes era sua matarh, às vezes era o fantasma de Fynn ou do vavatarh. Jan colocou toda a raiva para fora no treino. Golpeou, girou o corpo e estocou até todos os fantasmas estarem mortos e os músculos arderem.

Finalmente, Jan embainhou a espada e parou com as mãos nos joelhos, ofegante. Ele ouviu um aplauso baixo e irônico atrás de si e se virou. Gotas de suor voaram do cabelo molhado. O hïrzg viu Sergei ca’Rudka parado à porta da sala de treino, com dois gardai atrás dele. — Como...? — Jan começou a perguntar quando ca’Rudka sorriu.

— Eu perguntei ao assistente Roderigo onde o senhor estaria. Não deixaram que eu viesse sem meus amigos, de qualquer forma — acrescentou Sergei ao gesticular para os gardai solenes e carrancudos que o acompanhavam. Ele entrou na sala comprida e apertada, com paredes de bronze lustroso, uma estreita fileira de bancos ao longo do outro lado e espadas de madeira para treino expostas em suportes em um canto. — O senhor teve um bom professor de armas, embora isso valha menos do que imagina.

Jan pegou uma toalha de um cabide perto das espadas e secou o suor da testa. — O que você quer dizer, regente?

— O senhor pode ter todas as habilidades técnicas, e o senhor possui, de fato, mas elas valem pouco ao se enfrentar um oponente de verdade, que queira lhe matar.

O jeito com que ca’Rudka fez o comentário, em um tom superior e professoral, reacendeu a raiva de Jan. Todos agiam de maneira superior a ele. Todos lhe diziam o que fazer, como se ele fosse estúpido para entender qualquer coisa sozinho. Jan torceu o nariz e jogou a toalha no canto. — Mostre-me — falou ele para Sergei. — Prove.

— Hïrzg... — alertou um dos gardai, mas Jan olhou com ódio para o homem.

— Cale-se — disse Jan. — Eu sei o que estou fazendo. — Ele indicou o suporte de espadas de madeira com a cabeça. — Mostre-me, regente. É fácil dizer banalidades.

Sergei fez uma mesura, como se cumprimentasse um parceiro de dança. Ele deu uma olhadela para os gardai e foi até o suporte. Jan observou o regente: o homem tinha a postura de um velho e fez uma careta ao se abaixar para puxar uma das espadas de treino e examiná-la. — Certa vez, o grande espadachim co’Musa disse que a experiência é geralmente melhor do que a habilidade crua — falou Sergei. — Há uma história que, em um duelo, co’Musa matou seu oponente apenas com uma espada de madeira. Assim como o senhor, o adversário estava armado com aço.

Ambos os gardai avançaram, meteram as mãos nas próprias armas e colocaram-se entre o hïrzg e ca’Rudka, mas Jan fez um gesto para que se afastassem e disse — Você não é co’Musa.

— Não sou — respondeu ca’Rudka. Ele deu um leve golpe no ar com a lâmina de madeira. Foi uma estocada desajeitada, e Jan notou como ca’Rudka pegava no cabo com a mão um pouco virada embaixo; seu antigo professor, lá em Malacki, teria corrigido o homem imediatamente, se tivesse visto aquilo. “Com a mão desse jeito, o senhor não tem alcance”, teria dito ele. Mas Sergei já havia assumido uma postura, com a espada abaixada e as pernas juntas demais. — Quando o senhor estiver pronto, hïrzg Jan — falou ca’Rudka.

— Comece — disse Jan.

Dito isso, Sergei começou a erguer a espada: devagar, quase desajeitado; o movimento de um amador. Jan torceu o nariz e afastou desdenhosamente a arma do homem com sua própria. Mas a esperada resistência de lâmina contra lâmina não ocorreu: ca’Rudka abrira a mão. Jan ouviu a espada de madeira bater nos ladrilhos do piso, viu quando ela escorregou até acertar a parede revestida de bronze. O golpe de Jan arrancou a arma do regente, sim, mas sem a resistência, o ataque se lançou mais para a esquerda do que deveria, e o hïrzg viu um movimento de roupa escura e sentiu as mãos de ca’Rudka baterem de leve nos dois lados do pescoço antes que pudesse reagir. O homem estava diretamente à sua frente, com o nariz de metal tão próximo que o rosto do hïrzg preencheu a superfície refletora. Ca’Rudka agarrou a gola da tashta de Jan com as duas mãos, deu um passo e imprensou o hïrzg contra a parede. A espada de Jan era inútil em sua mão: o regente estava próximo demais.

— Viu só, hïrzg Jan — ca’Rudka quase sussurrou —, alguém que queira matar o senhor não se preocupará com regras e educação, apenas resultados. — O hálito era quente e cheirava à menta. — Eu poderia ter esmagado sua traqueia com aquele primeiro golpe ou poderia ter uma faca na outra mão. De um jeito ou de outro, o senhor já estaria nos últimos suspiros.

Sergei afastou-se e soltou Jan quando foi agarrado por trás pelos gardai, com violência. Um deles socou ca’Rudka com a manopla, e o velho regente desmoronou sobre um joelho, ofegante. — Mas o senhor é um espadachim melhor do que eu, hïrzg. — Ele terminou de dizer, no chão. — Eu admito livremente. — O garda preparou o punho para dar outro soco, mas Jan ergueu a mão.

— Não! — disparou o hïrzg. — Vão embora! Vocês dois!

Os gardai olharam para ele, assustados. Os dois começaram a protestar, mas Jan gesticulou novamente para a porta. Depois que se curvaram e saíram, Jan foi até ca’Rudka e ajudou o homem a se levantar. — Você é realmente um espadachim tão ruim assim, regente?

Ca’Rudka conseguiu sorrir ao colocar a mão na lateral do corpo, inclinado para frente enquanto tentava recuperar o fôlego, e respondeu — Não, mas fiz o senhor pensar que eu era. — Ele respirou fundo pela boca e gemeu. — Por Cénzi, essa doeu. Acredito que minha lição tenha ficado bem clara?

— Que as pessoas podem mentir e me enganar para conseguir o que querem? — Jan deu uma risada amarga. — Você não é o único que está tentando me ensinar essa lição.

— Ah. — Ca’Rudka pareceu considerar a informação. Ele não disse nada e esperou.

— Minha matarh e o archigos parecem achar que agora é o momento de atacar Nessântico.

Ca’Rudka deu de ombros, depois fez outra careta. — O senhor quer admitir isso para um espião em potencial que está entre vocês, hïrzg? Ora, eu poderia mandar uma mensagem para o kraljiki.

— Você não mandará.

Sergei ficou com o rosto impassível ao ouvir isso. Ele piscou sobre o nariz de prata. — O senhor já considerou que sua matarh e o archigos podem estar certos?

— Você concorda com eles?

— Honestamente, eu preferia que não houvesse guerra de maneira alguma, que nós resolvêssemos as diferenças de outra forma. Mas se eu fosse a sua matarh... — Ele deu de ombros. — Talvez pensasse a mesma coisa.

— Então você acha que eu devo dar ouvidos a eles?

— Eu acho que o senhor é o hïrzg, e, portanto, deve tomar a própria decisão. Mas também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.

Jan desviou o olhar do homem. Ele podia se ver nos espelhos de bronze da sala, a imagem era ligeiramente distorcida nas ondas do metal fino. Jan ainda segurava a espada. Ele foi até a parede onde a arma de ca’Rudka tinha ido parar. Abaixou-se e pegou a espada de treino, depois jogou para o homem.

— Mostre-me outra coisa — disse o hïrzg. — Mostre-me como a experiência é capaz de vencer a habilidade crua.

Ca’Rudka sorriu. Ele pegou a espada, e dessa vez seus movimentos foram ágeis e graciosos. — Tudo bem. Fique em posição...

 

Nico Morel

APÓS PASSAR VÁRIOS DIAS com a mulher, Nico decidiu que ela era muito esquisita, mas também fascinante. A mulher era boa com ele. Ela alimentava bem o menino, conversava com ele — longas conversas em que Nico se viu contando tudo sobre sua matarh e Talis, que ele e a matarh fugiram de Nessântico, que ele odiava seu onczio e os primos, como fugiu do vilarejo e foi ajudado pelo regente e Varina...

A mulher passeava com Nico durante o dia pela velha vizinhança, e ele torcia para que visse Talis ou sua matarh.

Mas não viu. — O nome de seu vatarh é Talis Posti? — perguntou a mulher na primeira noite, e o menino contou sua história. — Tem certeza disso? E ele está aqui na cidade? — Nico concordou com a cabeça, e ela não falou mais nada.

A mulher disse que seu nome era Elle, mas às vezes parecia não notar quando Nico a chamava pelo nome. Às vezes, no meio de uma conversa, ela respondia a um comentário inaudível ou se dirigia ao vento como se falasse com ele. Em público, Elle dava a impressão de se encolher e parecer velha e frágil, mas na privacidade dos aposentos, a mulher era completamente outra pessoa: mais jovem, forte, atlética e cheia de vida. Ela mantinha armas no quarto: uma espada encostada em um canto perto da porta e outra ao lado da cama, e havia várias facas com gumes cruelmente afiados — a mulher quase sempre tinha duas ou mais com ela. Nico observava Elle afiar as armas à noite com uma pedra de amolar. Observava o rosto e a concentração apaixonada enquanto afiava os gumes, que provocavam arrepios em Nico.

Elle tinha uma bolsinha de couro no pescoço que não tirava nunca. Estava sempre debaixo da roupa, e à noite ela a pegava firme com a mão, como se tivesse medo de que alguém a roubasse. Nico imaginava se a mulher também não tirava a bolsinha quando tomava seu banho diário na banheira de cobre da sala de estar. O banho em si era estranho, pois o menino jamais tinha visto alguém tomar banho mais do que uma vez por semana, nem mais que uma vez por mês. Sua matarh sempre dizia que tomar banho demais deixava a pessoa doente. Talvez, pensou Nico, fosse isso que havia de errado com Elle.

De vez em quando, a mulher mandava que ele ficasse no apartamento alugado e saía sozinha — geralmente à noite. Ela ficava ausente por várias viradas da ampulheta, e geralmente Nico dormia enquanto esperava que ela voltasse. O que quer que Elle fazia naquelas noites, ela nunca contava para ele.

A noite de hoje tinha sido uma dessas. — Nico... — O menino sentiu a mão dela sacudindo seu corpo e pestanejou ao olhar para o rosto da mulher, iluminado pelas velas contra a escuridão do quarto. — Levante-se.

— Por que, Elle? — resmungou Nico com sono. Estava gostoso e quentinho debaixo das cobertas. Ela não respondeu; já tinha ido na direção da porta do quarto.

— Eu quero que você venha comigo — falou ela. De má vontade, Nico empurrou as cobertas para o lado e saiu do colchão de palha. — Sapatos — disse Elle quando ele começou a ir em sua direção descalço. Nico calçou as botas gastas, e a mulher abriu a porta. — Fique comigo. — Ela deu a ordem ao pegar sua mão, e os dois saíram noite afora.

Nico sabia que Nessântico nunca dormia, não completamente. Não importava a hora do dia ou da noite, havia pessoas pelas ruas do Velho Distrito. Mas à noite os cidadãos eram mais perigosos do que de dia, como sua matarh lhe dissera. — Você vai entender melhor quando crescer — falara ela, mais de uma vez. — A noite é uma máscara que a cidade coloca quando quer fazer coisas que não deveria. O que as pessoas fazem à noite... bem, às vezes elas precisam da escuridão para esconder. — Nico vislumbrou um pouco disso recentemente, sozinho no Velho Distrito, antes de ser encontrado por Elle. Testemunhou a fala pastosa e o passo vacilante dos frequentadores de tavernas; viu os encontros acompanhados por gemidos nos becos escuros; vislumbrou ataques rápidos e violentos; testemunhou as trocas furtivas de moedas tilintantes por embrulhos. Nico ficou próximo de Elle enquanto andavam pelas ruas, que estavam animadas por aqueles que usavam a máscara da noite.

Ela andava rapidamente, tão rápido que o menino teve que correr um pouco para acompanhá-la. Os dois cruzaram uma esquina do centro do Velho Distrito e entraram no emaranhado de vielas que iam para sudoeste, na direção do rio, e os prédios de cada lado ficaram cada vez mais velhos, próximos e menores, como se quisessem permanecer juntinhos à noite para se esquentar. Nico ficou rapidamente perdido. Não havia luzes mágicas aqui, apenas algumas lâmpadas ocasionais colocadas nas janelas de tavernas e bordéis. Duas vezes os dois passaram por um utilino, e Elle encolheu o corpo, fez com que parecesse menor e mais velha, e o cumprimentou com uma voz rouca que não parecia de forma alguma com a própria.

Finalmente, Elle puxou o menino para a escuridão de um beco e ajoelhou-se ao lado dele. — Escute, Nico. Preciso que você fique muito, muito quietinho agora. Tem que tomar cuidado ao andar para que ninguém escute seus passos, e não pode falar. Não importa o que você veja ou aconteça. Entendeu? — Na luz fraca do luar, ele enxergou o branco dos olhos, e o olhar de Elle sério e solene.

Nico concordou com a cabeça. Ela pegou a mão do menino e apertou uma vez, com delicadeza. — Muito bem, vamos.

Os dois prosseguiram mais adiante pelo beco até uma portinha meio empenada nas dobradiças enferrujadas. Elle meteu a mão debaixo do manto; quando a mão surgiu novamente, os dedos tinham um bocado de uma substância escura que ela passou nas dobradiças. A mulher empurrou a porta, que abriu relutantemente, porém em silêncio. Elle entrou e fez um gesto para Nico segui-la.

O cheiro no interior provocou ânsia de vômito no menino: havia algo morto e apodrecendo por perto, e pelo menos uma vez ele ficou contente por estar escuro demais para ser capaz de enxergar direito, embora sentisse medo de tropeçar no que estivesse morto ali. Elle pegou Nico pela mão novamente, e ele seguiu de perto a mulher até uma escada que mal conseguiu ver. Os dois subiram e chegaram a uma porta; o menino viu Elle inclinar-se ao seu lado e mexer por alguns momentos com uns pedaços de arame dentro da fechadura. Houve um clique baixinho, e Elle empurrou a porta devagar. Nico viu-se andando rápido atrás dela por um corredor estreito e escuro até parar diante de uma porta. — Quando eu abrir estar porta — sussurrou a mulher com voz rouca —, eu preciso que você fique aqui no corredor. Não se mova, não importa o que aconteça. Não diga nada. Apenas escute. Escute. Entendeu?

Nico concordou com a cabeça, calado. Elle novamente se agachou ao lado da porta com os arames; outra vez houve um clique. Ela abriu e entrou de mansinho, deixou a porta aberta. O menino não conseguiu ver nada lá dentro, embora tivesse apertado os olhos com força. Alguém no cômodo respirava alto, como se estivesse dormindo. A própria respiração de Nico parecia terrivelmente alta, e se Elle estivesse fazendo algum barulho ao andar pelo aposento, ele não foi capaz de escutar. O menino segurou o batente assustado e com vontade de desobedecer Elle e chamá-la, mas o medo sufocou a garganta.

Houve um barulhinho, um grunhido de susto, e depois a voz de Elle. — Isso mesmo. — Nico ouviu alguém falar baixinho, parecia um pouco com Elle, mas o tom de voz era grave e baixo. — Isso é uma faca no seu pescoço, e se gritar, ou sequer mexer as mãos, você morre. Faça o que eu disser e talvez você viva. Se entendeu, balance a cabeça. — Houve outra pausa, e então: — Ótimo. Eu sei quem e o que você é. Andei de olho em você. Agora, eu quero saber outra coisa. Conhece um menino chamado Nico Morel? Responda: sim ou não. E baixinho.

Nico arfou ao ouvir o próprio nome. Ele escutou a pessoa meio que sussurrar uma resposta: — Sim.

Com aquela única palavra, o menino reconheceu a voz: Talis. Ele quase pulou dentro do quarto, mas se lembrou do aviso de Elle e permaneceu agachado ao lado da porta.

— Ótimo. Você ainda continuará vivo — sussurrou a mulher para Talis. — Ah! Não se mexa; lembre-se do que eu disse. Eu odiaria que você se cortasse acidentalmente. Você dividiu a cama com a matarh do menino?

— Sim.

— Você a ama? Responda de verdade agora.

Houve uma hesitação, e Nico ficou nervoso. Depois: — Amo.

— E o garoto? Você se importa com ele?

A resposta foi mais rápida e enfática. — Sim. O garoto é... — A voz foi sumindo até um longo silêncio.

— O garoto é o quê?

— Meu filho. E sim, eu me importo com ele. Foi por isso que mandei Nico e Serafina embora, para que ficassem a salvo.

— Mas ele voltou aqui, para esta cidade. Você descobriu que Nico retornou após o numetodo pegá-lo. Sabia que o embaixador ca’Vliomani queria falar com você, mas não respondeu. Você abandonou o menino para salvar a própria pele. — Nico percebeu que Elle falava mais por causa dele mesmo, para que ouvisse a resposta de Talis.

O menino ouviu o farfalhar de pano e palha quando, apesar do aviso de Elle, Talis se mexeu. — Opa! Não. Isso não é verdade. Opa! Calma! Você está certa, eu sei que Nico estava aqui e não respondi ao embaixador, mas não pelas razões que disse, e sim porque...

— Por quê?

— Eu percebi as consequências de tentar fazer isso. Percebi que, se fosse até o numetodo, coisas piores teriam acontecido: para Nico, para mim, para todos nós. Se eu pudesse ter recuperado Nico com segurança, eu teria feito isso. Eu sabia que o embaixador trataria bem o menino. Sabia que Nico não seria maltratado se eu permanecesse escondido; mas se eu fosse atrás dele, se tentasse resgatá-lo, eu não sabia o que aconteceria. Nico poderia se machucar ou coisa pior. Poderia ter havido consequências terríveis.

— Você sabe disso por causa de magia. Magia ocidental. — Nico quase foi capaz de ver Talis fazer que sim com a cabeça. Era difícil ficar parado em silêncio e escutar. O menino queria ir até Talis, até Elle, mas também queria escutar o que ele diria. — E você viu este momento em seus feitiços? Você me viu? — perguntou Elle na voz estranha e rouca.

— Não. Eu continuei a ver Nico na tigela premonitória, como se ele estivesse próximo, mas havia algo ao redor, algo que o protegia.

— Então você me viu sim. Eu protejo Nico. E continuarei a proteger.

— Onde está ele? — perguntou Talis. — Leve-me até Nico!

— Por quê? Por que eu deveria fazer isso?

— Porque... — Nico ouviu Talis engolir em seco. — ... Porque Nico deve ficar com pessoas que conhece. Eu posso levá-lo de volta à matarh dele.

— Você faria isso?

— Sim.

— Então eu torço, pelo seu bem, que você cumpra promessas.

Após a resposta de Elle, ninguém disse nada, embora Nico tenha pensado que ouviu movimentos rápidos e furtivos. Ele espiou na escuridão até que manchas de cores nadaram diante de seus olhos, enquanto tentava ver. Ouviu Talis se remexer, ouviu o homem falar uma palavra em outra língua, e Nico sentiu um arrepio, como se fosse tocado por uma brisa fria e invisível. De repente, houve uma luz intensa, que parecia emanar do próprio Talis. Ele estava sentado na cama, com os cobertores reunidos em volta da cintura e dois pequenos filetes de sangue que escorriam do pescoço para o peito, e a luz vinha de um pequeno foco que brilhava na palma da mão, virada para cima. Elle não estava mais no quarto, embora as cortinas tremulassem em frente a uma janela aberta, perto da cama. Talis viu Nico no corredor e ficou boquiaberto. — Nico!

Nico correu para ele, chorando.

 

Audric ca’Dakwi

O PAPEL FARFALHOU na mão de Audric enquanto ele o segurava de forma que sua mamatarh Marguerite também lesse. Ouviu a kraljica respirar fundo, irritada. — Confirmamos que o selo nesta mensagem é genuinamente de Francesca ca’Cellibrecca — dizia Sigourney enquanto ele lia a missiva. — E também recebemos uma confirmação independente de que o antigo regente ca’Rudka... perdão, Rudka... realmente está em Brezno e teve uma reunião com o hïrzg, a a’hïrzg e o archigos. Quanto ao caso amoroso que ela alega haver entre o archigos e a a’hïrzg Allesandra... bem, quanto a isso só podemos especular.

O papel tremeu na mão de Audric. A mamatarh encarava o neto com um olhar furioso. — A senhora acredita nisso? — Ele perguntou para Marguerite, mas foi Sigourney quem respondeu.

— Não temos motivo para não acreditar.

— Bem, eu tenho uma razão: o mestre ci’Blaylock martelou muito bem essa história na minha cabeça. O vatarh de Francesca ca’Cellibrecca traiu o meu vatarh e todos os Domínios em Passe a’Fiume. — Seu dedo bateu no pergaminho. — Agora ela quer se aliar a nós? Quer uma recompensa?

— Se ela estiver certa, kraljiki, acho que devemos agradecê-la pelo aviso. Francesca pode nos ajudar, sendo tão íntima dos círculos de poder de Brezno.

— A senhora realmente acha que haverá guerra? — perguntou Audric, que odiou o jeito que soou: como uma criança preocupada.

— Você não é uma criança. Não é mais. Agora você deve ser o kraljiki — disse Marguerite para o neto, e ele concordou com a cabeça.

Audric falou com a voz mais grave e séria possível. — O novo hïrzg é um tolo se pensa que pode fazer isso. Nós iremos esmagá-lo. Mandaremos o hïrzg de volta para Firenzcia, sangrando e derrotado.

— Estas são bravas palavras, kraljiki Audric — disse Sigourney ao concordar com a cabeça, embora Audric tenha achado que ela não parecesse convencida, pela expressão no rosto. — Tenho certeza de que o senhor está certo, mas também devemos torcer para que a situação não chegue a esse ponto. — A conselheira inclinou a cabeça na direção do quadro, no cavalete ao lado dele. — Com a ajuda da vajica ca’Cellibrecca, talvez possamos impor diplomacia a Firenzcia. Sua mamatarh sabia disso; ela não usava força a não ser que fosse necessário.

— Não diga para mim o que ela faria — disparou Audric. Ele tossiu com a ferocidade das palavras e teve que apertar o lenço contra os lábios até o espasmo passar. Quando terminou, o kraljiki continuou, com menos volume na voz e a garganta dolorida pelo acesso. — Eu conheço melhor a minha mamatarh. Sou eu quem a compreende. É comigo que ela fala. Não com a senhora.

Sigourney ergueu as mãos e arregalou os olhos pela explosão de Audric. — Eu não quis sugerir outra coisa, kraljiki. É apenas que... — A conselheira falou mais baixo e inclinou-se na direção de Audric, como se temesse que alguém pudesse escutar, embora só houvesse os três na sala. — Precisamos tomar cuidado aqui. É possível que isso não seja nada ou que sejam as suspeitas de uma esposa que acha que perdeu a confiança do marido, especialmente se os rumores que envolvem o archigos ca’Cellibrecca e Allesandra forem verdade. Temos que levar em consideração os motivos da vajica ca’Cellibrecca.

— Sergei Rudka está em Brezno — disparou Audric. — Eu quero Rudka aqui. Quero Rudka na Bastida novamente, e dessa vez vou garantir que ele vivencie todos os prazeres das celas subterrâneas.

— Sim, sim — dizia Sigourney, mas Audric mal ouviu a conselheira, que tagarelava como se tentasse acalmar uma criança à beira de um ataque. Ela continuava falando, mas o kraljiki não ouvia nada. Sigourney começou a lembrá-lo de Sergei, a agir como se ela estivesse no Trono do Sol, e não ele. Talvez Audric tivesse que jogá-la na Bastida também. Agora que ele foi reconhecido como kraljiki, talvez jogasse todo o Conselho dos Ca’ lá dentro. Deixe que eles se reúnam e tramem nas pedras da torre principal e vejam se gostam disso. Sergei provou que era um traidor e pagaria por isso; Audric jurou que veria o sofrimento do homem em pessoa, talvez até ajudasse o torturador. Assistiria a Sergei se contorcer de sofrimento na mesa, e depois adoraria ver os corvos arrancando a carne de seus ossos enquanto o corpo balançaria na jaula na Pontica Kralji.

— Sim, você terá tudo isso — falou Marguerite. A boca contorceu-se em um sorriso momentâneo. — Você é o kraljiki agora, e eles não podem lhe negar nada. Você fincará a bandeira dos Domínios na própria cova do hïrzg. Da sua espada escorregará o sangue daqueles que tentarem impedi-lo.

— Sim — disse Audric para a mamatarh. — Eu prometo.

— O quê? — perguntou Sigourney. Ela parecia assustada ao ser interrompida. — O que o senhor promete, kraljiki?

Audric queria tossir, podia sentir a vontade na garganta e nos pulmões, mas se conteve. — Eu prometo que aqueles que tentarem me impedirem serão destruídos. É isso o que prometo. — Ele encarou os olhos da conselheira fixamente. Audric esperava ver medo ali, queria ver, mas não foi o que percebeu no rosto de Sigourney. Havia apenas uma avaliação silenciosa, e talvez pena. Isso deixou o kraljiki irritado, e a emoção provocou espasmos de tosse novamente. Ele sentiu dificuldade para respirar, sentiu a borda da visão escurecer, e pensou que fosse desmaiar completamente.

Enquanto tossia seco no lenço, praticamente com o corpo dobrado, Audric de repente sentiu a mão de Sigourney afagar seu cabelo.

— Eu sei como essa doença deve incomodar, kraljiki. Audric. Eu sei. — Sigourney puxou Audric, que resistiu por um momento.

— Você tem que ser forte. Não pode deixar que vejam sua fraqueza, ou eles a explorarão.

Mas Audric descobriu que queria esse toque de matarh e se permitiu ser aninhado por Sigourney, como se ela abraçasse um dos próprios filhos. O calor da conselheira era um alívio, e Audric ouviu um soluço que percebeu com um susto que era dele. Sigourney ouviu também, evidentemente. — Shh... tudo bem. Estamos só nós dois aqui. Só nós dois. Se precisa chorar, eu compreendo. Compreendo sim... Eu chamarei o archigos e mandarei que ele traga aquela téni de volta aqui.

Os dedos da conselheira afastaram o cabelo da testa do kraljiki. — Seja forte... — Mas era difícil ser forte o tempo todo, e ele nunca teve o carinho de matarh, e seu vatarh sempre esteve cercado por chevarittai, pelos ca’ e co’ e pelos criados. Enquanto Sigourney o abraçava, Audric abriu os olhos e viu o retrato de Marguerite. Ela olhava o neto com seriedade, frieza e reprovação. A kraljica balançou a cabeça lentamente. — Meu verdadeiro herdeiro não faria isso. Isso é fraqueza. Meu verdadeiro herdeiro saberia como deve agir. — A reprovação ardeu dentro de Audric.

Ele afastou-se de Sigourney, com tanta força que a mulher cambaleou para trás e quase caiu.

— Não! — berrou Audric. — Não. Faremos como eu quero quanto a esta questão. Mandaremos uma exigência ao hïrzg: ele tem que devolver Sergei para nós, ou eu irei pegá-lo. A senhora me escutou? Eu mesmo irei lá, à frente da Garde Civile, e arrancarei Rudka das mãos deles. — A força de Marguerite preencheu o neto neste momento, e ele ficou de pé, sem tossir. — Mande o comandante vir até mim, para que ele comece a reunir as tropas. Quero que a senhora escreva as exigências; mandaremos por mensagem rápida hoje. Daremos um mês para eles devolverem Sergei. Não mais do que isso.

— Kraljiki, o senhor está agindo rápido demais. Precisamos estudar mais essa situação, esperar...

— Esperar? — A palavra foi dita por ele e pela mamatarh ao mesmo tempo. — Não podemos esperar, vajica. E aqueles que se opuserem a mim ou se recusarem a ir comigo, eu considerarei nada mais do que traidores. Espero ver um rascunho da exigência à Terceira Chamada. Fui claro?

A conselheira encarou o kraljiki.

— Ah, finalmente você vê medo nos traços do rosto dela. Você agiu bem, Audric.

— Claríssimo, kraljiki — respondeu Sigourney. — Claríssimo.

 

Varina ci’Pallo

— ISSO MESMO... Com o cântico, pense nas fibras da madeira sendo abertas como se você afastasse uma cortina.

Varina falou baixinho para encorajar Karl, enquanto ele entoava as palavras mágicas e olhava fixamente para a bengala na mão direita, enquanto a esquerda executava o gestual necessário. Ela viu a fibra da madeira tremer e se separar, com uma flexibilidade estranha e desconcertante. Viu o esforço que Karl usou para criar o feitiço; ele ofegava e suava intensamente, como se tivesse corrido o circuito inteiro da Avi a’Parete.

— Agora, essa parte é mais complicada: mantenha a madeira separada enquanto coloca dentro o feitiço que você já preparou — disse Varina. Ele não olhou de volta para ela; Varina sabia que Karl não ousaria desviar o olhar do cajado: ou a madeira se juntaria outra vez e a bengala se estilhaçaria completamente. Ainda havia farpas nos dedos de Karl das últimas tentativas. — Vá em frente — continuou ela. — Você deve ser capaz de sentir o feitiço de luz que preparou. Eu sempre sinto como se fosse uma pequenina bola de energia na cabeça, pronta para estourar. Imagine a bola saindo de sua mente e entrando no espaço que você acabou de criar na bengala. Imagine a bola se aninhando ali. Com cuidado. Ótimo. Ótimo. E... solte tudo!

Karl encerrou o cântico e deixou a mão cair ao lado do corpo. A fenda na madeira fechou-se novamente, fazendo um som como duas tábuas batendo juntas, e a bengala estava inteira e intacta em sua mão, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Karl desmoronou na cadeira onde estava sentado. Ele secou a testa com a manga da bashta enquanto Varina ria, batendo as palmas uma vez. Karl ficou sentado ali pelo que pareceu ser várias marcas da ampulheta, enquanto tentava recuperar o fôlego.

— Você conseguiu dessa vez — falou Varina.

— Tomara que sim.

— Quer testar para ter certeza? Basta segurar a bengala e falar a palavra de ativação.

— Depois de todo aquele transtorno? — disse Karl. — Acho que simplesmente vou acreditar em você, por enquanto. — Ele suspirou, deixou a cabeça pender e fechou os olhos. — Por Cénzi, isso foi difícil. Não admira que Mahri tivesse aquela aparência.

Varina riu novamente ao ouvir isso, mas ouviu uma certa amargura involuntária no som. Ela tocou o próprio rosto e acompanhou o traçado das rugas que não eram visíveis há um ano. Enterrou a preocupação nas palavras: — É uma questão de encontrar a palavra e os gestos corretos para mover a energia, só que você deve conter o feitiço e segurar o objeto a ser enfeitiçado ao mesmo tempo; isso é o que torna difícil. Pelo que sabemos dos ocidentais, eles atribuem o poder a um de seus deuses, assim como os ténis fazem aqui, mas é apenas uma questão do cântico certo, dos movimentos corretos. Questão de ciência, não de fé. A vantagem é que, assim que a tarefa é cumprida, é o objeto que contém o feitiço, não o feiticeiro, e desde que, antes de mais nada, o objeto seja de qualidade e não se quebre depois, é concebível que ele consiga conter o feitiço indefinidamente, desconfio eu. Ainda assim... — Os dedos passaram novamente sobre as rugas do rosto e pentearam o cabelo grisalho e seco para trás. — É um jeito caro demais de fazer as coisas, se quer saber.

— Eu entendo — falou Karl. — Eu me sinto completamente exaurido.

Karl não entendia. Não poderia entender. Não ainda. Varina sorriu novamente. Esticou o braço como se fosse dar um tapinha em sua mão, mas recuou no último instante. Isto fazia parte da dança incômoda que os dois faziam há dias agora.

Eles tinham voltado a Nessântico há dez dias. Os dois retornaram à cidade com Serafina, que voltou a morar na antiga casa. A mulher convidou Varina e Karl para ficar com ela, uma oferta que eles aceitaram — os antigos locais frequentados pelos numetodos sem dúvida estavam sendo vigiados pela Garde Kralji, e os dois não viram absolutamente nenhum numetodo no Velho Distrito. Eles vasculharam a vizinhança com Serafina, perguntaram sobre Nico, mas ninguém se lembrava de ter visto o menino, certamente não depois do dia em que Varina e Karl ajudaram o regente a escapar da Bastida. Se Nico realmente retornou a Nessântico, como Varina sabia, ele parecia ter desaparecido de alguma forma; se Talis ainda estava na cidade, ele também permanecia escondido.

E quanto a Varina... após a incômoda conversa em Ville Paisli, ela não parecia saber exatamente como agir perto de Karl. Ter admitido que queria mais do que sua amizade. . . Por que ela disse aquilo para ele? Karl olhava Varina de um jeito esquisito agora, como se lembrasse de todas as conversas que tiveram ao longo dos anos e reinterpretasse os diálogos, como se encarasse as conversas à luz dessa revelação e ficasse pensando.

Por que você contou para ele? Por que admitiu?

Ela afastou a mão da mão de Karl. Ele começou a esticar o braço na direção dela. — Varina...

— Voltei! — O chamado soou assim que a porta da sala foi aberta e Serafina entrou. Ela carregava uma sacola de pano com uma bisnaga de pão protuberante. Varina viu que a mulher olhou esquisito para os dois antes de andar até a mesa e pousar a sacola ali. Serafina tirou a bisnaga de pão, depois meia rodela de queijo e um saco de papel com amoras-do-brejo. Sem falar nada, Karl e Varina observaram Serafina, que suspirou e balançou a cabeça.

— O que está acontecendo? — perguntou ela.

— Eu não sei do que você está falando — falou Varina. Ela perguntou-se se Serafina tinha visto os dois trabalhando no feitiço, mas a mulher balançava a cabeça com um sorriso irônico.

— Vocês dois — disse Serafina enquanto olhava de Varina para Karl. — É óbvio que não são casados, não importa o que tenham dito para minha irmã, lá em Ville Paisli. Mas também é óbvio que existe algo entre vocês, e que nenhum dos dois sabe o que fazer a respeito disso. Eu entendo: foi assim comigo e Talis, a princípio. Eu fui muito magoada por um antigo amor que não se importava comigo, apenas com ele mesmo, e pensei que seria assim com todo mundo. Mas Talis... é um bom homem. Ele se importava comigo, e quando Nico nasceu, ele foi um bom vatarh também. Mas aquele maldito numetodo... — Ela mordeu o lábio inferior, enquanto Varina olhava para Karl, erguendo uma sobrancelha.

— O numetodo? — perguntou Karl.

— Talis disse que o embaixador tentou matá-lo; é por isso que ele mandou a mim e a Nico embora, porque pensava que os numetodos viriam atrás dele, e, uma vez que o embaixador era amigo do regente ca’Rudka, que a Garde Kralji viria atrás dele também. Eu acho que isso é algo que ele não tem mais com que se preocupar... — acrescentou Serafina com um sorriso irônico. — O kraljiki parece gostar do regente e do embaixador ainda menos do que Talis.

— Talis não entrou em contato com você? — insistiu Karl.

Serafina negou com a cabeça. — Ele entrará em contato quando achar que é seguro. Talis saberá que estou aqui em breve, se já não souber. Talvez tenha encontrado Nico também. — Ela suspirou, e Varina viu a mulher pestanejar para conter as lágrimas. — De qualquer forma, eu estava dizendo que vejo vocês dois darem voltas um ao redor do outro como se estivessem passeando pela Avi a’Parete e... bem, eu fiquei contente por finalmente admitir que estava apaixonada por Talis. Foi a melhor coisa que fiz em muito tempo. É isso.

Serafina sorriu e deu tapinhas na mão de Varina, que ainda estava em seu ombro. — Eu irei ao açougueiro para ver o que ele tem. Depois vou procurar por Nico em volta do Parque do Templo; ele sempre gostou de ir lá.

— Eu irei com você — falou Varina, mas Serafina balançou a cabeça.

— Não. Eu gostaria de ficar um pouco sozinha. Voltarei para casa antes da Terceira Chamada, e podemos preparar o jantar então.

Serafina sorriu para os dois novamente, pegou a sacola de pano e saiu dos aposentos outra vez. Eles ouviram o barulho da fechadura quando a mulher saiu; Varina sentiu o olhar de Karl e perguntou — O que faremos se encontrarmos Talis, Karl? Ou se ela encontrar Nico? Serafina ama Talis, e Nico nos reconheceria. O que faremos então?

— Eu não sei. Eu não sei de mais nada.

Varina balançou ao ouvir isso, e o silêncio entre eles, aos poucos, cresceu. Ela sentiu seu peso, o silêncio envolveu os dois como as correntes sujas de uma cela da Bastida. Varina ocupou-se ao colocar o pão e o queixo em uma cesta de vime.

— Varina — disse Karl finalmente, e ela parou. — Serafina está certa. É que... — Os dedos bateram na bengala. — Ainda dói sempre que penso em Ana. Ela...

— Eu sei. Eu vi... — Varina começou a falar, depois abaixou o olhar para a mesa. — Algumas vezes, na rua, eu vi as grandes horizontales que você contratava para... — Ela ergueu o olhar novamente. — Para mim, todas pareciam com ela: o mesmo tom de pele; a mesma compleição física.

Karl abaixou o olhar, culpado. — Varina...

— Não. — Ela interrompeu. — Eu entendia. Entendia mesmo. Mas ainda assim doía, porque você não me enxergava, quando era... — Varina fechou a boca e apertou os lábios. Ela não diria o resto. Não diria.

Karl ergueu as mãos e deixou que caíssem de volta na mesa. — Serafina está certa. Por causa da minha obsessão, eu deixei de ver o que estava bem na frente do meu nariz. Fui estúpido. Pior, fui cruel, e isso é algo que nunca quis ser. Não com você, Varina. Jamais com você. Você sempre foi alguém que eu admirava e em quem confiava. E agora... eu não sei se...

— Eu também não sei — disse ela. Vamos, Varina ouviu uma voz interna. Vamos. Diga. — Karl, nós dois podemos continuar a imaginar ou...

Ela deixou a palavra no ar, tão intensa na mente de Karl como fogo mágico.

Ele estendeu a mão para Varina.

Ela pegou.

 

Enéas co’Kinnear

O SEGUNDO CÉNZIDI. O dia em que ele deveria se encontrar com o kraljiki.

Este é o seu momento. Hoje, eu o tomarei em Meus braços, e você ficará eternamente feliz e em paz. Hoje...

— Obrigado, Cénzi — sussurrou Enéas agradecido. — Obrigado. Eu sou Seu criado, Seu instrumento.

Ele pegou o nitro em pó, o carvão e o enxofre; misturou todos cuidadosamente com urina velha, como Cénzi instruiu, até criar a areia negra dos ocidentais. Enfiou bolos da areia negra em uma bolsa de couro a tiracolo, que depois colocou sobre o uniforme. Ensaiou na mente o feitiço de fogo dado por Cénzi até saber os gestos e o cântico e ser capaz de executar o encantamento simples em poucos instantes. Sim, isso demonstraria ao kralji o que os ocidentais podiam fazer. Faria Nessântico se dar conta de como essa guerra ficou importante e perigosa.

Então, finalmente, Enéas arrumou o quarto, para que o local parecesse organizado quando viessem investigá-lo depois.

Ao caminhar para sua audiência no palácio do kraljiki, ele permitiu-se apreciar os locais interessantes de Nessântico, absorveu tudo que a cidade que tanto amava tinha para oferecer. Enéas passeou pela margem norte da Ilha A’Kralji ao sair do apartamento, olhou com carinho para as torres com portões da Pontica Mordei e viu uma barcaça cheia de caixotes passar sob a travessia de pedra trabalhada. O A’Sele reluzia à luz do sol, com ondinhas que brilhavam e dançavam. Casais estavam sentados de braços dados na grama da margem, perdidos na presença uns dos outros. Um quarteto de e’ténis passou correndo por Enéas a caminho de alguma tarefa, os robes verdes tremulavam em volta dos tornozelos, um leve rastro de incenso ficou para trás. Ele ouviu a voz eterna e caótica da cidade, o som de milhares de vozes que falavam ao mesmo tempo.

Enéas passou pelo Velho Templo e ergueu o olhar para o domo inacreditável que o artesão co’Brunelli construía, o maior do mundo — se não entrasse em colapso sob o terrível peso da alvenaria. Ele fechou a cara uma vez, ao ver um artista de rua que equilibrava bolas acesas pelo próprio malabarista através de um feitiço — aquilo era serviço de numetodo, não foi feito pelas preces de um téni, e incomodava Enéas ver tal coisa feita publicamente, sem que qualquer espectador ficasse incomodado com a cena.

A archigos Ana permitiu que as pessoas perdessem a noção da verdade e da fé. Ela passava a mão na cabeça dos numetodos e permitia que sua heresia se espalhasse — e é por isso que os Domínios e a Fé estão partidos em dois e quebrados. Eu mandei os ocidentais como um sinal e um aviso. Hoje, você levará a eles o Meu alerta final.

A voz falou em tom baixo e sinistro na cabeça de Enéas. Ele fez o sinal de Cénzi com uma cara feia para o malabarista e para o público em volta antes de ir embora.

O Palácio do Kraljiki era branco e dourado contra um céu que parecia pintado. Enéas esteve uma vez anteriormente no palácio, como um e’offizier ajudante de ordens que acompanhava seu a’offizier em uma reunião do Conselho dos Ca’, mas essa seria a primeira vez que ele estaria realmente diante do Trono do Sol. Enéas deu sua Lettre a’Approche ao garda nos portões laterais, que a verificou, passou um dedo pelo selo em alto relevo e prestou continência a ele. — O senhor é aguardado, o’offizier co’Kinnear — disse o homem, gesticulando. Um criado jovem veio correndo, com o uniforme dourado e azul da equipe do kraljiki. Enéas seguiu o garoto pelos jardins podados e esculpidos com topiarias e arranjos de flores, com vários cortesãos ca’ e co’ passeando pelos caminhos de seixos brancos. Ele foi conduzido pelo guia por uma porta lateral para o interior do palácio em si, depois por um corredor de mármore rosa-claro, com um piso lustradíssimo e lâmpadas mágicas, dispostas poucos passos umas das outras, que não estavam acesas, pois havia luz suficiente que entrava pelas janelas nas duas pontas do corredor. — Espere aqui, o’offizier — disse o menino ao parar diante de uma porta com dois gardai em posição de sentido. — A recepção pública está praticamente encerrada. Verei se o kraljiki está pronto para receber o senhor. — Os gardai abriram a porta e o criado entrou. Enéas vislumbrou um grupo de suplicantes e ouviu o burburinho baixo de conversas sussurradas; ao longe, alguém falava mais alto: a voz de um menino, rouca e interrompida por tosses. Ele pensou ter visto o Trono do Sol, reluzente em contraste com a meia penumbra das janelas fechadas do resto do salão. A porta foi fechada novamente antes que Enéas pudesse ver mais.

— Como está a guerra, o’offizier? — perguntou um garda da porta. — Todo mundo está esperando um navio expresso dos Hellins, mas ele não chega.

— Ele não chegará — disse Enéas.

Os dois gardai entreolharam-se. — O’offizier?

— Ele não chegará — repetiu Enéas. — Cénzi já me disse isso.

Os gardai entreolharam-se novamente. Enéas viu uma rápida revirada de olhos. — Ah, Cénzi disse para o senhor. Entendi.

— O senhor não fala com Cénzi, e’offizier? — perguntou Éneas para o homem. — Então tenho pena do senhor.

A porta foi aberta novamente e interrompeu qualquer réplica que o garda viesse a dar. Não surgiu o garoto, mas sim um homem mais velho, com a insígnia do kraljiki no uniforme. — Sou Marlon — disse ele. — O kraljiki está pronto para o senhor. Siga-me.

Os gardai mantiveram a porta aberta para Enéas passar. O salão ainda estava lotado, com grupos de ca’ e co’ e por quem teve a sorte de ter o nome incluído na lista de suplicantes do segundo cénzidi. Eles viram Enéas entrar atrás de Marlon, com um misto de curiosidade e rancor quando ficou claro que o o’offizier estava sendo levado diretamente para o Trono do Sol.

As janelas do salão estavam parcialmente fechadas, de maneira que o aposento estava escuro e abafado. No fundo do salão, o Trono do Sol reluzia com seu brilho amarelo solar e destacava a silhueta de um rapaz. Enéas sabia que o kraljiki Audric era jovem, mas mesmo assim se assustou com sua aparência. Ele parecia pequeno para a idade, com peitoral largo, porém magro, e tinha um rosto encovado e olheiras. A testa suava, mas o menino parecia mais febril do que encalorado.

Havia um integrante do Conselho dos Ca’ à esquerda do kraljiki: uma mulher mais velha, com cabelo obviamente tingido de preto, que olhava fixamente para Enéas, com o olhar predatório de um falcão, embora ele não a reconhecesse. Um retrato da kraljica Marguerite estava à direita de Audric. O impacto da pintura era impressionante: Enéas nunca tinha visto algo tão realista e sólido — tinha mais presença do que a mulher do outro lado do trono. Enéas pensou que estava sendo observado pela kraljica ao se aproximar, e a sensação não foi agradável. Isso fez com que ele quisesse abraçar a bolsa que carregava; fez com que quisesse dar meia volta e fugir.

Você não pode. Eu não permitirei. Cénzi rugiu em sua mente, e Enéas balançou a cabeça como um cachorro tentando se livrar de pulgas.

O kraljiki pigarreou quando o o’offizier se aproximou, um som líquido. Ele tossiu uma vez, e Enéas ouviu o barulho de catarro nos pulmões do menino. Audric estava com a boca semiaberta e segurava um lenço de renda com manchas de sangue na mão direita. — O’offizier co’Kinnear — falou o kraljiki quando Enéas se aproximou do tablado e se curvou. — O archigos Kenne me disse que o senhor veio da guerra dos Hellins com notícias para nós. — O kraljiki falava pausadamente e devagar, parava muitas vezes para tomar fôlego e, ocasionalmente, para conter uma tosse com o lenço. — Ouvimos falar de seu belo desempenho na Garde Civile e saudamos o senhor por servir ao trono. Fico contente em lhe informar que assinei sua Lettre a’Chevaritt para que entre em vigor imediatamente.

Enéas curvou-se novamente. — Kraljiki, sinto-me honrado, e louvado seja Cénzi, que torna tudo possível.

— Sim — respondeu Audric. — Também ouvimos falar de sua grande devoção à fé concénziana, e que um dia o senhor considerou seguir carreira como téni. Os Domínios estão felizes que tenha escolhido uma carreira marcial em vez disso.

— Eu continuo servindo a Cénzi, de uma forma ou de outra — falou Enéas e inclinou a cabeça.

O kraljiki, com uma aparência entediada, dava a impressão de estar ouvindo outra pessoa. O menino deu uma olhadela para o quadro de Marguerite, concordou com a cabeça e disse — Sim, acho que sim. — Enéas não tinha certeza se Audric se dirigiu a ele ou não. Ele hesitou, e o kraljiki voltou sua atenção para Enéas. — Suas notícias, o’offizier? E quanto aos Hellins? Nós não sabemos de nada há mais de um mês.

— Eu trouxe algo para o senhor — disse Enéas. Ele deu um tapinha na bolsa de couro, com cuidado, quase um afago. Tirou a alça pela cabeça e esticou a bolsa na direção de Audric. — Se eu puder me aproximar?

O kraljiki fez que sim com a cabeça, e Enéas subiu na plataforma do Trono do Sol. Agora, mais de perto, ele sentiu o cheiro de doença em volta de Audric: o odor de putrefação, o mau hálito. O o’offizier fingiu não notar e entregou a bolsa para Audric, que a colocou no colo. O kraljiki espiou o interior e enfiou a mão para sentir o que havia ali dentro. — Tijolos de areia? — perguntou ele com a testa franzida, intrigado. Audric contraiu o nariz ao sentir o cheiro. — Terra negra?

— Não — falou Enéas baixinho. — Deixe-me mostrar para o senhor...

Com o chamado da Voz de Cénzi dentro de sua cabeça, ele começou o cântico rapidamente, com gestos bruscos. Pelo rabo do olho, Enéas viu a mulher à esquerda do kraljiki levar um susto, depois se afastar do trono. Ouviu alguém atrás dele na plateia gritar. Audric abriu a boca como se estivesse prestes a falar.

Um fogo intenso surgiu entre as mãos de Enéas. Ele inclinou-se para frente, segurou o fogo sobre a boca aberta da bolsa e deixou cair.

Cénzi rugiu Sua satisfação. O mundo explodiu em som e luz eternos.

 

A Pedra Branca

ELA VIGIOU Talis nos dias que se seguiram.

A Pedra Branca descobriu que não podia simplesmente devolver Nico ao homem e deixar o menino de lado. As vozes da pedra debocharam de sua preocupação. Fynn foi especialmente sarcástico e cruel. — Você quer uma família? Então agora a assassina vai se preocupar com as outras pessoas? A assassina descobriu o amor, agora que tem um bastardo no útero? — Ele gargalhou de felicidade. — Você virou uma tola, mulher. Olhe o que minha família fez comigo! A criança que você carrega irá traí-la alegremente da mesma forma, um dia. Família! — Fynn riu novamente, os demais se juntaram a ele em um coro debochado.

— Calem-se! — disse ela para todas as vozes, o que atraiu os olhares das pessoas à sua volta na rua. A Pedra Branca devolveu a atenção com uma cara feia. Ela abraçou o estômago em um gesto protetor e ficou assustada, como sempre, com a curva inchada onde antes havia um abdômen atlético e reto. Já sentia um leve movimento ali: a filha de Jan. Sua filha. — Vocês não sabem. Não têm como saber.

Quando pensava na criança, nascida e viva, era sempre uma menina, mas com algumas feições de Nico também, como se fossem irmãos estranhos. — Eu abriguei o menino quando ele precisava de alguém — falou ela para as vozes. — Sou responsável por ele agora. Eu fiz essa escolha.

As vozes debocharam dela. Gargalharam.

A Pedra Branca vinha observando o apartamento de Talis desde que deixou Nico lá. Ela abandonou o próprio apartamento e alugou um quarto em cima do de Talis, embora tomasse cuidado para que o menino não a visse entrar ou sair do prédio. Fez um buraco no chão para que pudesse vigiá-los e ouvi-los lá embaixo. E era o que fazia, pronta para agir caso ouvisse Talis maltratar Nico de qualquer maneira, pronta para surgir como a Pedra Branca para tirar a vida do homem, furiosa e vingativa. Mas ela não ouviu nada que a fizesse temer pelo menino.

Não diretamente, de qualquer forma.

Através de Nico, ela já sabia que os numetodos andaram caçando Talis. Sabia que ele era um ocidental e usuário da magia daquele povo, e que os Domínios estavam em guerra com os ocidentais nos Hellins. Por si só, isso já seria um perigo para Nico. Portanto, a Pedra Branca observava.

No segundo cénzidi do mês, ela seguiu os dois quando Nico levou Talis ao antigo apartamento da Pedra Branca, ela os observou das sombras do beco à frente quando eles surgiram novamente. O menino balançou a cabeça, confuso, e gesticulou com os braços enquanto falava com o vatarh. Naquela tarde, pelo buraquinho, ela ouviu a conversa dos dois lá embaixo. — Eu não entendo — disse Nico. — Era lá que Elle morava, Talis. De verdade. Eu estive lá.

— Eu acredito em você, Nico, mas ela não está mais lá — respondeu Talis. A Pedra Branca notou a preocupação na voz do homem e foi capaz de imaginá-lo esfregando os cortes em cicatrização no pescoço enquanto falava. Ela ouviu o comentário implícito nas palavras: ela é perigosa. Ela poderia ter me matado.

— Eu gosto de Elle — disse Nico. — Ela foi boazinha comigo.

— Fico feliz que Elle tenha sido boazinha. Fico feliz que ela tenha trazido você até mim, mas...

Qualquer que fosse a objeção, Talis não disse. A Pedra Branca sorriu diante dessa atitude. — Mas ela é louca — falaram as vozes. — E a loucura está crescendo.

Ela pegou a pedra na bolsinha com força, como se pudesse estrangular as vozes com os dedos, que ficaram brancos com a pressão.

A Pedra Branca não queria ouvir mais. Continuaria a vigiar, sim, mas por enquanto parecia que Nico estava a salvo com Talis. Ela saiu de mansinho do quarto, desceu correndo as escadas e saiu pela porta dos fundos do prédio. Cruzou rapidamente as ruas do Velho Distrito, distanciou-se das áreas principais e entrou nas profundezas tortuosas onde ruas estreitas faziam curvas e se enroscavam e os prédios eram escuros, antigos e pequenos. Ela ouviu os próprios pensamentos, as vozes dentro da cabeça, a conversa ao redor. — Matarh! — ela ouviu o grito de uma criança, e por um momento pensou que fosse Nico. Ela virou-se com um sorriso e os braços abertos para abraçá-lo.

Não era Nico. Era alguma outra criança, quase da mesma idade. — Matarh! — berrou o menino novamente, e uma jovem veio correndo da porta de um prédio próximo e pegou a criança nos braços. Os pés do menino balançaram quando ele foi abraçado por ela.

A Pedra Branca viu a cena e abraçou a si mesma, involuntariamente, em solidariedade. Ela queria sentir prazer com essa cena, que deveria ser bastante comum, mas o que sentiu foi uma onda forte de inveja. — Sim, isso aí é o que você nunca terá — vociferou Fynn dentro dela, os outros se juntaram a ele. — Jamais poderá ter esse amor. Ninguém jamais amará você desta maneira. Nem mesmo a criança que carrega. Jamais.

— Não é verdade — disse ela para as vozes e sentiu lágrimas escorrerem pelas bochechas. — Não, não é verdade.

— É sim. É sim. — Um coro de negativa. — É sim.

A Pedra Branca deu meia-volta e fugiu da cena, perseguida pelas vozes. Andou às pressas, sem saber sequer aonde ia, correu pelas feiras lotadas e por avenidas meio desertas, passou por lojas e comércios. Ela finalmente foi parar na margem norte do A’Sele, perto da Pontica Kralji. Lá, sem se importar com a lama e o cheiro fétido, ela se sentou e abraçou os joelhos, tentou ignorar as vozes que gritavam na cabeça enquanto balançava para frente e para trás. Se alguém a visse, pensaria que era louca e a deixaria em paz. Ficou sentada ali por um bom tempo, os pensamentos eram frenéticos e caóticos, até ser acalmada pela exaustão e as vozes sumirem. Ficou sentada, ofegante, enquanto esfregava a barriga inchada e imaginava a vida ali dentro.

— Eu vou proteger você. Vou mantê-la a salvo — falou ela para a filha.

Em algum lugar do outro lado do A’Sele, na Ilha A’Kralji, quase que como uma resposta, veio o som repentino de um trovão, e a Pedra Branca viu uma fumaça negra subir de algum ponto entre o amontoado de prédios da ilha. Não muito tempo depois, as trompas da cidade começaram a ecoar, embora já passasse da Segunda Chamada.

Ela se perguntou o que teria acontecido.


??? COMBATE ???

Audric ca’Dakwi

Niente

Kenne ca’Fionta

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ALGUÉM ESTAVA GRITANDO. Sem parar.

Quando Audric abriu os olhos, tudo estava tingido de vermelho, como se o mundo tivesse sido pintado com sangue. Coágulos nadavam sobre a sua visão. Sua respiração era fraca e estridente, ele mal conseguia aspirar. Audric parecia estar nos próprios aposentos, na própria cama, mas não conseguia mexer o corpo de forma alguma. O rosto coçava, e ele queria erguer a mão para coçar, mas não conseguia erguer nenhuma das mãos ou mexer os pés. Tinha medo de levantar a cabeça e olhar para baixo, medo do que poderia ver.

E a dor... Havia tanta dor, e Audric queria gritar, mas só conseguia gemer, um lamento fraco e eterno. Sentiu lágrimas quentes escorrerem pelo rosto.

— Você não pode morrer. Não pode... — A voz dela estava tão rouca e hesitante quanto a dele, um mero sussurro.

— Mamatarh? — perguntou Audric. — Onde a senhora está? Marlon? Seaton? Onde está a kraljica Marguerite?

A voz veio de uma distância irreal. Os ouvidos estavam tomados por um rugido contínuo, como se a cidade estivesse caindo em volta dele. — Marlon? Seaton? — chamou Audric de novo. A dor agigantou-se, como uma enorme onda na arrebentação. O kraljiki tentou gritar, mas não saiu nada da boca aberta.

Um rosto surgiu sobre Audric, que piscou. Ele pensou ter reconhecido o archigos Kenne. Cânticos de ténis misturaram-se ao rugido nos ouvidos. — Archigos?

— Sim, kraljiki. Eu vim assim que soube. — Audric mal conseguia ouvir o archigos, as palavras ficaram perdidas no rugido nos ouvidos.

— O que aconteceu? — Cada uma das três palavras pesava tanto quanto os grandes blocos de mármore da fachada do palácio. Audric mal conseguiu colocá-las para fora. Ele fechou os olhos.

— Ainda não temos certeza, kraljiki. O o’offizier co’Kinnear... ele talvez fosse um numetodo ou... — A voz do archigos sumiu. Audric abriu os olhos novamente; a boca de Kenne se movia como se ele ainda estivesse falando, mas o kraljiki só conseguia ouvir o rugido vermelho, que aumentou, e com o ruído veio a dor novamente, ele tentou gritar junto com o rugido, mas saiu apenas um arquejar. — ... jamais saberemos como... a conselheira ca’Ludovici está gravemente ferida... Marlon e Seaton, mortos... — dizia o archigos, mas Audric já não ouvia.

Ele vislumbrou o quadro da mamatarh. Estava apoiado contra a parede perto da cama. A moldura grossa tinha sido quebrada do lado esquerdo, e havia grandes rasgos desfiados na tela, as feridas cruzavam o rosto de Marguerite. Audric gemeu de novo. — Não! — Ele tentou gritar, como se a negação pudesse afastar e mudar tudo.

O kraljiki lembrou. Não tinha certeza. O o’offizier que se aproximou do Trono do Sol, um clarão... depois nada, até agora.

— Você não pode morrer...!

A dor entrou correndo novamente, desta vez ele sentiu o corpo inteiro tremer e sacudir, o corpo arqueou-se, e o archigos pressionou Audric para baixo, berrando com urgência com outra pessoa no quarto. — ... o que você puder fazer... o Ilmodo... Cénzi perdoará...

A dor ameaçou parti-lo ao meio, quebrá-lo como um galho no inverno, mas de repente foi embora. Sumiu. Os olhos estavam abertos, ele viu o archigos Kenne gritar com o curandeiro do palácio e a téni de robe verde, havia outras pessoas no quarto, todas gritavam, mas Audric não conseguia escutar nada, nada além do rugido cada vez mais alto. — Você não pode morrer. — E a dor finalmente foi embora. Audric quis erguer a mão até a mamatarh, mas o corpo ainda não se movia, ele sequer conseguia respirar, embora os pulmões doessem, o kraljiki tentou... tentou... e...

 

Niente

ELE TORCEU PARA que a tomada da ilha de Karnmor fosse o suficiente, que o tecuhtli Zolin ficasse satisfeito com a demonstração do poder dos tehuantinos, e que eles pegassem os navios e voltassem para casa. Mas Zolin olhou para o leste, em vez disso. — Nós ferimos o corpo — disse ele —, mas a cabeça permanece, e o corpo se cicatrizará, a não ser que ataquemos. Eu sei o que você dirá, nahual, mas agora é o momento de atacar. Eu sinto isso. Pergunte a Axat. Ela lhe dirá.

Niente olhou na tigela premonitória e polvilhou as ervas sobre a água. Talvez porque a água daqui fosse menos pura, ou talvez porque a terra de seus deuses estivesse distante, ou talvez porque sua habilidade tivesse diminuído, mas novamente as imagens que ele viu refletidas ali eram confusas ou passageiras demais, e Niente ficou incomodado com elas.

... Um menino em um trono brilhante, mas o rosto era um crânio descarnado, e ali: seria o ocidental que ele enfeitiçou? Uma mulher à espreita no fundo da cena, difícil de ver... Mas a água fez um redemoinho e, quando parou novamente, Niente viu outro garoto em outro trono, e também uma mulher atrás dele, com um téni de robe verde e cabelo escuro ao lado dela... Exércitos passavam por uma terra devastada com estandartes que tremulavam, marchavam sobre um solo cheio de corpos... Fogo e um templo, e fileiras de pessoas em robes verdes rezando... Uma grande cidade com um rio que corria no meio, e fumaça que saía dos grandes prédios... Um guerreiro tehuantino no chão, trespassado por uma lança, e o corpo de um nahualli ao lado de um cajado mágico quebrado, mas a água ficou turva agora, e Niente não conseguiu ver os rostos dos que estavam caídos ali para saber quem eram, embora o estômago tenha ficado embrulhado, e de repente ele não quis ver...

— Então? — perguntou Zolin, e Niente tirou os olhos da tigela. O tecuhtli havia entrado na tenda e observava o nahual. A águia de sua patente espalhava asas com penas vermelhas até as bochechas, enquanto o bico se abria na testa como se para dar um grito feroz.

Eles estavam acampados à beira de um grande rio largo que um dos orientais capturados disse se chamar A’Sele. Segundo informaram, bem longe, rio acima, estava Nessântico, a capital dos Domínios. A frota tehuantina estava ancorada nas proximidades, perto do ponto onde o A’Sele desembocava no Mar Médio, com os cascos baixos na linha d’água com a pilhagem de Karnmor.

Eles deixaram a cidade de Karnor em ruínas há um punhado de dias. A cidade foi violada e saqueada, mas não tomada; o resto da grande ilha foi deixado completamente incólume. Ao contrário, Zolin levou o exército de volta para os navios, saiu do porto de Karnor e contornou Karnmor até a boca do A’Sele, onde o exército seguiu para terra firme mais uma vez. Eles encontraram pouca resistência. O povo dos Domínios desapareceu diante dos tehuantinos como neve na primavera, as pessoas recuaram e sumiram nas florestas e estradas remotas do terreno, abandonaram os vilarejos com seus prédios e casas de formato estranho. Essa era uma terra que tinha sido domada há gerações: com campos e fazendas abundantes, com estradas largas, pavimentadas por paralelepípedos dentro dos vilarejos e cercadas por muretas de pedra do lado de fora. Era uma terra domesticada, diferente das encostas das Montanhas Escudo, mais parecida com as fazendas das grandes cidades em volta do Mar Interior ou dos canais de Tlaxcala, a capital construída no próprio mar.

— Nahual Niente?

Ele levou um susto e percebeu que ainda olhava para a tigela, embora visse apenas seu reflexo confuso e arruinado pela magia, com o olho esquerdo opaco que estava branco de uma maneira assustadora. Uma gota de suor caiu da testa e pingou na água, o que fez tremer a imagem de Niente. Ele ergueu a cabeça e falou — Eu vi uma batalha. E um rei-menino no trono. O rosto era um crânio.

— Ah, então talvez seu oriental tenha cumprido a tarefa?

Niente deu de ombros.

— A batalha, quem ganhou?

— Eu não sei. Eu vi... vi um guerreiro morto e um nahualli morto.

Zolin olhou com desdém e disse — Guerreiros sempre morrem. Nahualli também. É como são as coisas. — ele parou e franziu os olhos, o que movimentou as asas da águia. — Fui eu quem você viu?

Niente balançou a cabeça. — Não sei — respondeu, mas não explicou mais.

— Você nos viu voltando para casa de navio? — perguntou o tecuhtli.

— Não. — Outra resposta curta, Zolin concordou com a cabeça.

— Você não quer estar aqui, não é? Pensa que estou cometendo um erro.

Niente jogou fora a água da tigela premonitória. Ele a secou com a borda da camisa e perguntou-se se deveria dar uma resposta direta para Zolin. O nahual jamais tinha sido senão honesto com Necalli, mas Necalli não tinha o temperamento perigoso de Zolin. — Estamos muito longe de casa, em uma terra estranha.

— Uma terra que não ofereceu quase resistência alguma — falou Zolin. Ele gesticulou com os braços para leste. — Essa grande cidade dos orientais já deve saber que estamos aqui, mas não vejo exército algum diante de nós.

— O senhor verá. E não temos reforços atrás de nós, nenhum guerreiro ou nahualli novos para substituir os caídos. Eu vi os castelos e as fortificações dos orientais na tigela premonitória, tecuhtli. Nós tivemos a vantagem do elemento surpresa em Karnor; isso não existe mais. Eles estarão preparados para nós.

— E sua areia negra irá demolir as muralhas e reduzir as torres a ruínas.

— Eu vi o fogo das forjas e a reza de seus ténis-guerreiros. Vi os exércitos, e eles eram enormes, espalhados sobre a terra como uma floresta de aço. Somos apenas alguns milhares aqui, tecuhtli, e os orientais têm muito mais. Agora nós nos encontramos como eles em nossa terra, longe de nossos recursos. Duvido que nós nos saiamos melhor do que eles lá.

— É isso o que Axat mostra para você? — Zolin apontou para a tigela nas mãos de Niente, inscrita com os símbolos da lua da deusa. — Você vê, inegavelmente, a minha derrota na água?

Niente balançou a cabeça negativamente.

— Ótimo. — Zolin mexeu os músculos do maxilar e flexionou as asas da águia. — Eu sei que você preferiria que voltássemos para casa, nahual. Eu compreendo, e você não é o único a ter essa opinião. Eu escuto vocês, todos vocês. Todos nós sentimos saudade de casa e das nossas famílias, eu mesmo não menos do que qualquer outra pessoa. Mas meu dever é nos proteger da melhor maneira possível, e essa... essa me parece a melhor maneira. Eu gostaria que você não mentisse e me dissesse se os deuses insistem que a retirada é a atitude mais prudente.

— Eu digo o que eu vejo, tecuhtli. Sempre. Nada mais. Nada menos. Eu jurei a Axat que seguiria e serviria ao tecuhtli, não importa quem seja ele ou o que ele nos mande fazer.

Zolin deu um riso meio debochado. Ele esfregou o topo da cabeça, como se fizesse carinho na águia pintada na pele. — Você jurou a Necalli, não a mim. Niente, se você quiser ser liberado do juramento agora... — ele deu de ombros. — Um dos outros nahualli pode me servir.

A ameaça pairou no ar úmido. Niente sabia o que Zolin estava oferecendo: nenhum nahual abria mão do título e sobrevivia; Niente perguntou-se qual dos nahualli sussurrava no ouvido de Zolin. Certamente havia alguns que achavam que podiam ser o nahual. — Se o tecuhtli acha que outro nahualli é mais adequado para servi-lo, então este nahualli deve trazer seu cajado mágico aqui, e veremos qual de nós dois Axat prefere.

Zolin riu, mas havia um constrangimento na reação, o que indicou para Niente que o homem estava tentado. — Por enquanto, eu deixarei que você me sirva, nahual Niente. E você verá que estou certo. Eu irei até essa grande cidade dos orientais, vou destruí-la e deixá-la queimando, como fiz com Munereo e Karnor. Sou uma grande lança lenta, que irá varar a armadura, a carne, os órgãos dos orientais até trespassar o coração deles. O povo dos Domínios entenderá que seu deus é fraco e errado. Eles abandonarão a nossa terra e a de nossos primos para sempre. Pagarão tributos para nós, com medo de que um tecuhtli traga outro exército aqui novamente. É o que farei, e é isso que você verá na sua tigela premonitória, nahual. Você verá.

Niente abaixou a cabeça. — Como eu disse, tecuhtli, eu olharei e direi tudo que Axat me permitir ver, para que o senhor conheça os futuros possíveis para as escolhas que fizer. Isso é tudo o que qualquer nahualli pode fazer.

Zolin torceu o nariz. Ele lançou um olhar confiante para Niente, com os olhos cercados pelas penas das asas da águia. — Você verá — repetiu o tecuhtli. — Isso é o que eu lhe digo.

 

Kenne ca’Fionta

A CULPA REMOÍA O ESTÔMAGO e fez com que ele afastasse o prato.

— Kenne, você precisa comer. — Seu velho companheiro e amante, Petros co’Magnaoi, u’téni da fé concénziana, esticou o braço sobre a toalha de mesa branca para pegar a mão de Kenne. — Você foi apenas um peão no plano de Cénzi. Não tinha como saber.

O archigos balançou a cabeça. A culpa não é sua... Você não tinha como saber... Era o que todo mundo dizia para ele nos últimos dias. Às vezes, as palavras eram ditas com genuína sinceridade; em outras — como na ocasião em que ele foi visitar Sigourney ca’Ludovici em seu leito, enquanto a conselheira se recuperava dos ferimentos —, Kenne pensava ter ouvido um mero verniz de educação sobre um profundo rancor.

— Eu mandei o homem para o kraljiki, Petros. Mandei. Ninguém mais, e...

— Kenne — interrompeu Petros. Ele balançou a cabeça magra e aquilina, o movimento mexeu o cabelo comprido até o queixo que Kenne gostava tanto, que há muito tempo ficou branco, mas que era tão farto na cabeça do homem quanto escasso na do próprio archigos. Olhos azul-claros, ainda afiados e inteligentes, sustentaram o olhar de Kenne e recusaram-se a deixar que o archigos virasse o rosto. — Pare com isso. Você pode continuar repetindo sem parar as mesmas palavras, mas nenhuma irá mudar o que aconteceu. Você fez o que qualquer um de nós teria feito. A reputação desse Enéas co’Kinnear era sólida, e ele disse que tinha notícias dos Hellins, algo que o kraljiki precisava saber desesperadamente. Se eu estivesse no seu lugar, teria feito a mesma coisa.

— Mas você não fez. Ele veio a mim.

— Ele foi, e você não tinha como saber o que Enéas era ou o que faria, assim como seus offiziers superiores não sabiam. O que precisamos fazer agora é garantir que a fúria da população não vire um banho de sangue. Já há vozes no Velho Templo que pedem por um novo expurgo dos numetodos, e a mesma coisa também pode ser ouvida no Conselho dos Ca’. Sua voz é necessária como o líder da Fé, Kenne. A voz da sanidade.

Kenne sentiu o aperto dos dedos de Petros na mão quando não respondeu. — Kenne, meu amor, Cénzi lhe deu um teste agora. Você sabe que a archigos não foi morta pelos numetodos, não com Karl amando-a tanto. Esse Enéas, e o que ele fez com o kraljiki... Parece a mesma coisa que fizeram com Ana. Essa poeira negra que achamos no templo depois; ouvi dizer que também encontraram sobre os pedaços do Trono do Sol...

— Eu matei Audric — murmurou Kenne. — Matei seus camareiros, os suplicantes que estavam próximos. E quanto à pobre Sigourney... — O rosto de Sigourney surgiu diante dele, estraçalhado pelas lascas do Trono do Sol, com o olho direito enfaixado (e perdido, de acordo com o que o curandeiro sussurrou para Kenne depois), a mão direita em bandagens, com dois dedos visivelmente faltando, o jeito horrível como o lençol ficava plano na altura do joelho direito.

A culpa era dele, não importa o que Sigourney possa ter sussurrado com sua voz arruinada. Isso era mais terrível do que o assassinato de Ana, embora este tenha sido bem horrível.

Culpa dele.

Kenne começou a falar com Petros, mas não conseguiu, a voz embargou. Petros apertou a mão de Kenne, levantou-a e deu um beijo.

Alguém bateu na porta. — Archigos? — O chamado veio baixo entre as tábuas entalhadas e envernizadas. Petros afastou a mão rapidamente e recostou-se na cadeira.

— Entre — falou Kenne.

Era uma das integrantes da equipe de o’ténis do archigos: Sara ce’Fallin, sua assistente. Ela deu uma olhadela para Petros, cumprimentou-o com um aceno e fez o sinal de Cénzi para Kenne. — Sinto incomodar seu jantar, archigos, u’téni, mas... — Ela mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça.

— O que foi? — perguntou Kenne com delicadeza.

— Há novidades — respondeu Sara. — Um mensageiro chegou do Conselho dos Ca’; o senhor deve ir ao palácio imediatamente.

— O que foi? — perguntou ele. — Firenzcia?

Ela balançou a cabeça e disse — Não. O mensageiro não disse mais nada além de que era sobre Karnmor.


Ele esperava ser informado de que o vulcão há muito tempo adormecido que abrigava a cidade de Karnor havia despertado novamente. Mas as notícias eram bem piores.

Kenne mal conseguiu acreditar nas palavras do mensageiro, que estava diante dos conselheiros na câmara do Conselho dentro do palácio, mas o cansaço, o rosto sujo de terra e a fuligem, o horror nos olhos e na voz... Estes elementos ele não podia negar.

A cidade de Karnor era uma ruína fumegante, de acordo com o homem, com milhares de mortos, especialmente por causa do ataque dos ténis-guerreiros ocidentais. Pior ainda, o exército ocidental estava agora no continente e avançava lentamente A’Sele acima. A cidade de Villembouchure era a próxima no caminho deles.

— Muitos dos navios em que eles vieram — disse o mensageiro — eram nossos. Eu reconheci os traços do Marguerite quando ele saiu do porto de Karnor para ir aos Hellins há um ano, mas agora ele carrega a bandeira de águia dos ocidentais e foi pintado com cores berrantes. É por isso que não têm vindo navios expressos dos Hellins; os ocidentais devem ter destruído nossas forças lá.

— Não há provas disso — disparou Aleron ca’Gerodi, que olhou feio para o homem, como se o desafiasse a contradizer a afirmação. — Nenhuma.

O mensageiro deu de ombros e falou — Eu vi o que vi, conselheiro. Fui um dos que fugiu de Karnor quando a cidade foi tomada e queimada. Eu encontrei um barco na margem leste da ilha; vi as velas da frota ocidental entrarem na boca do A’Sele e fogueiras na margem norte.

— Ele não mente — disse uma voz assim que as portas da câmara foram abertas. Kenne virou-se e viu Sigourney entrar, sendo carregada em uma liteira. Ela estava sentada com a coluna reta apoiada em travesseiros; o rosto era um horror de linhas vermelhas; o cabelo, sem a tintura negra, tinha agora espessas mechas grisalhas. Seu único olho encarava fixamente os presentes; o esquerdo estava coberto por um tapa-olho acolchoado. — Há outros mensageiros chegando à cidade neste mesmo instante. Eu falei com um deles: um homem dos promontórios da costa. Ele disse a mesma coisa: o exército ocidental está aqui nos Domínios e marcha pela margem norte do A’Sele.

— Conselheira ca’Ludovici — falou Kenne preocupado. — A senhora não deveria estar aqui. Seus ferimentos...

— Meus ferimentos não são importantes — respondeu ela ao abanar uma mão enfaixada e com poucos dedos. — O ervanário me deu extrato de cuore della volpe, que aliviou grande parte da dor. Nós perdemos nosso kraljiki, o regente traidor conspira com Firenzcia, e os ocidentais ousaram vir aqui. Meus ferimentos? — Ela cuspiu. Kenne e os demais viram o arco da cusparada, que foi cair nas lajotas de pedra. — Eles não são nada — vociferou a conselheira com a voz rouca e hesitante. — Não podemos esperar e vacilar aqui. Temos que agir. — Ela fez uma pausa para tomar fôlego. — E a primeira coisa que temos que fazer é nomear um kralji, uma vez que Audric não indicou seu sucessor.

Kenne soube então o que fez Sigourney ignorar os ferimentos e sair do leito.

Ao olhar em volta da câmara para os demais integrantes do Conselho, ficou óbvio que o mesmo pensamento ocorreu a eles. Também ficou óbvio para Kenne quem os conselheiros escolheriam. Aleron concordou com a cabeça, assim como Odil ca’Mazzak; os outros olhavam intensamente para a mesa, como se algo importante tivesse sido rabiscado ali. Foi Odil quem finalmente falou.

— A senhora é a Téte do Conselho dos Ca’, conselheira ca’Ludovici, e a pessoa em quem o kraljiki Audric mais confiava. Eu concordo, um novo kralji deve ser nomeado imediatamente... e eu acredito que deva ser uma kraljica. — Ele olhou em volta da câmara. — Eu proponho que a vajica Sigourney ca’Ludovici seja nomeada kraljica Sigourney. Ela tem o sobrenome, é a parente mais próxima aqui e tem demonstrado amplamente as qualidades de liderança de que precisamos.

— Eu concordo — falou Aleron imediatamente ao se levantar, e então todos ficaram de pé, e Sigourney sorriu, apesar da dor e dos ferimentos em cicatrização, e ergueu as mãos para eles em sinal de falsa humildade, e estava feito; antes que Kenne pudesse dizer qualquer coisa. Não que os conselheiros fossem dar ouvidos a ele, pensou o archigos, com tristeza.

Sua voz não era uma em que o Conselho prestasse atenção.

O olhar caolho de Sigourney percorreu a sala, e quando encontrou o archigos, ela franziu a testa momentaneamente. Kenne notou a acusação e a culpa no rosto da mulher e soube de mais uma coisa.

Ele não seria archigos por muito tempo. A nova kraljica encontraria uma forma de derrubá-lo.

 

Karl ca’Vliomani

SERAFINA SORRIU PARA ELES no momento em que os dois entraram na cozinha do pequeno apartamento, embora Karl pudesse ver uma tristeza, quase inveja, quando ela ergueu os lábios. Serafina penteou o cabelo para trás com as costas da mão, ainda segurando a faca com que cortava as verduras. Karl sentiu o cheiro do guisado que borbulhava na panela preta sobre o fogo. — Bom dia — disse Serafina. — É bom ver vocês dois juntos.

Varina deu o braço a Karl e aconchegou-se nele. — É, sim. Bem mais do que eu esperava.

Karl também sorriu e perguntou-se se alguma das duas mulheres era capaz de ver as emoções misturadas em sua própria felicidade: a pequena sensação incômoda de que, de alguma forma, estava traindo Ana, embora ele e a archigos jamais tenham tido intimidade física. Ana também teria sorrido para você. Também teria dito para ir em frente. Teria ficado feliz por você. Era o que ele dizia para si mesmo, mas não aliviava a semente de culpa.

— Eu fui traída muitas vezes e magoada muitas vezes — disse Ana uma vez para ele, não muito depois de Karl retornar da Ilha de Paeti, após descobrir que Kaitlin não o amava mais, que não queria mais que ele fizesse parte da vida dela ou de seus filhos. — Eu não posso lhe dar essa parte de mim, Karl. Ela simplesmente não está mais lá: existem muitas cicatrizes e muita dor. Eu posso ser sua amiga, se isso for o bastante para você. Mas nada mais. Nada mais.

— Você não me ama... — Ele começou a dizer, e Ana balançou a cabeça.

— Eu amo você, sim, mas não dessa maneira. Se você precisa disso, então encontre outra pessoa. Eu entenderia, Karl. De verdade. Sinto muito... — E ele encontrou alívio em outro lugar, nas grandes horizontales que Varina tinha visto. Mas, de alguma forma, Karl não percebeu a pessoa diante de si que também estava interessada nele mais do que um amigo, e de quem ele também gostava...

Agora Varina abraçou Karl novamente. Ele se inclinou e ela virou o rosto para o embaixador. O beijo foi delicado e doce, e a culpa sumiu um pouco novamente. “Se você precisa disso, então encontre outra pessoa...” Talvez um dia, em breve, até mesmo este sussurro fosse embora.

Karl não sabia que precisava tanto disso e desejou ter percebido antes.

— Deixe-me ajudar você, Sera — falou Varina, e seu calor deixou o corpo do embaixador. — Karl, por que não pega uma chaleira para o chá? — Ele observou as duas mulheres por um instante, depois pegou a chaleira, colocou água dentro da jarra e pendurou no suporte sobre o fogo, ao lado do guisado. Encontrou a hortelã e as ervas, colocou no saquinho de linho e amarrou.

— Vou ao mercado comprar um pouco de mel e talvez croissants — disse Karl. — Com o cortejo fúnebre de Audric hoje, aposto que os mercados...

Ele parou.

Uma sombra passou pelas persianas da janela. Karl ouviu passos do lado de fora da porta. Alguém bateu. — Serafina? Serafina, você está aí?

Ele conhecia a voz. Lembrou-se dela.

Serafina deixou cair a faca que segurava. O objeto bateu na mesa e depois no chão, mas Serafina não notou, pois corria para a porta. — Talis!

Ela escancarou a porta; Karl viu o homem parado ali sobre o ombro de Serafina, então a mulher ficou de joelhos, soltando um grito. — Nico! Ó, Nico! — O menino também estava ali e deu um abraço forte na matarh. Ambos choraram.

— Matarh! Eu sabia que a senhora viria procurar por mim. Eu sabia... — Nico viu os dois ao mesmo tempo. — Varina — falou o menino. — Ah. — De repente, ele soltou a matarh. — Talis...

— Eu vi os dois — disse Talis, que encarava Karl. — Serafina, pegue Nico e saia. Agora.

Serafina olhava de Talis para Karl. O homem ergueu a bengala, e Karl percebeu o que aquilo significava, percebeu agora melhor do que nunca. Ele levantou a mão, pronto para lançar o próprio ataque. — O que... — dizia Serafina.

— Apenas saia! — falou Talis. — Agora!

— Não — disse Serafina enquanto segurava Nico com força, e embora parecesse que ela não quisesse outra coisa senão seguir o conselho de Talis, a mulher permaneceu entre os dois. — Eu não vou sair até entender o que está acontecendo.

Talis gesticulou para Karl com a mão livre e falou — Esse desgraçado é o embaixador numetodo, Serafina. Esse é o homem que tentou me matar e a razão pela qual você teve que ir embora da cidade. Ele sequestrou Nico quando voltou aqui e usou o menino como isca para me pegar.

Serafina olhava fixamente para Karl, com a expressão chocada de quem tinha sido traída.

— Isso é verdade? — perguntou ela. — Diga-me.

Karl deu uma olhadela para Varina, que confirmou com a cabeça. — É verdade, em grande parte — respondeu Karl. — Eu sou o embaixador ca’Vliomani. Sou um numetodo, assim como Varina. Nós encontramos Nico aqui enquanto procurávamos por Talis, e, sim, ficamos com ele; embora eu deva chamar a atenção para o fato de que Nico estava sozinho nas ruas quando Varina o encontrou, e nós cuidamos dele, mantivemos o menino alimentado, aquecido e a salvo. Dissemos para as pessoas na vizinhança que o encontramos... e, sim, fizemos isso na esperança de que Talis viesse atrás de Nico, mas ele nunca veio. Quanto a Talis, eu acredito que ele seja o homem que matou a archigos Ana. — Serafina abraçou forte Nico. A confusão lutava com o medo em seu rosto, enquanto ela escutava Karl, o olhar ia de um para o outro. — Agora, pergunte a ele uma coisa para mim — disse Karl. — A verdade. Pergunte a ele quem matou a archigos.

Serafina olhou para Talis, que balançava a cabeça ao dizer — Não, não fui eu. — Mas o rosto da mulher ficou vermelho.

— Você sabia onde Nico estava e não foi até ele? — Serafina berrou baixo para Talis. — Não tentou ajudá-lo? Não me mandou notícias enquanto eu morria de preocupação por ele?

— Eles teriam me matado se eu tivesse ido até ele, Serafina. E talvez Nico também.

— Não. — Varina aproximou-se de Karl. — Você está errado, Talis. Nós só queríamos saber a verdade. Os numetodos estavam sendo culpados pela morte da archigos Ana; nós mesmos corríamos perigo. Eu... nós... jamais teríamos feito qualquer coisa para prejudicar Nico. Jamais. Você sabe disso, não sabe, Nico?

Nico balançou a cabeça enfaticamente sobre o ombro da matarh e disse — Eu sei. Varina foi boa comigo, matarh. Ela disse que tentaria encontrar a senhora... e olhe só, ela conseguiu.

— Talis é um feiticeiro ocidental, Serafina — falou Karl. — O último ocidental parecido com ele que eu conheci foi Mahri, o Maluco, e ele também tentou matar Ana.

À menção do nome de Mahri, a bengala tremeu nas mãos de Talis e os músculos em seu maxilar ficaram retesados. — Você conheceu Mahri?

— Conheci. E conheci Mahri muito bem. E sei que ele não estava aqui pelo bem de Nessântico. E nem você. Sera, sinto muito. Eu sei que você ama este homem, mas você precisa entender o que ele é. Talis é um inimigo dos Domínios, bem mais do que qualquer numetodo.

— Ela sabe o que eu sou — resmungou Talis. — Sera, eu não mudei. Eu amo você de verdade; amo Nico também. Eu o encontrei e vim trazê-lo para você. Se você não estivesse aqui, eu iria para Ville Paisli a seguir para encontrar você. Não sou o monstro que eles estão pintando. — Ele fez uma cara feia para Karl e Varina. — Se eu fosse, não teria esperado; eu teria atacado o embaixador sem me preocupar se você e Nico estavam no caminho. Sera, por favor. Afaste-se.

Em vez disso, ainda com Nico nos braços, ela voltou-se para Karl e Varina e ficou entre os dois e Talis. — Eu conheço Talis. Eu acredito quando ele diz que não matou a archigos. Se vocês querem conversar com ele, bem, aqui está ele. — Serafina fez uma pausa e um carinho na cabeça de Nico. — Eu confiei em vocês dois. Agora peço que confiem em mim.

Karl deu uma nova olhadela para Varina. Ela tinha abaixado as mãos e deu um discreto aceno de cabeça, e Karl também deixou as mãos caírem.

— Tudo bem — falou ele. — Diga para Talis colocar aquela bengala de lado, e nós podemos conversar.

 

Jan ca’Vörl

O TEMPLO EM BREZNO era menor do que o Templo do Archigos em Nessântico, e não tão venerável e sagrado quanto o Velho Templo na Ilha A’Kralji (ou com um domo tão impressionante). Mas o domo de Brezno e vários de seus famosos afrescos foram pintados pelo grande artista firenzciano co’Goslar, e eram impressionantes. As figuras compridas e estranhas de co’Goslar agigantavam-se e contorciam-se sobre os suplicantes no templo, vestidas com roupas transparentes ou peladas: Cénzi, sim, estava em destaque, mas também estavam representadas pessoas em Firenzcia que foram importantes para a fé concénziana. Havia Gareth ca’Lang, o primeiro a’téni de Brezno, com a espada amarrada ao braço sem mão enquanto lutava uma batalha perdida contra os hereges da seita de Karinthia; havia Pewitt, o Desgraçado, sendo atacado pelos moitidis, que devoravam e arrancavam a carne do seu corpo vivo, que debochavam do homem ao consumir seu corpo enquanto ele observava em sofrimento; havia Ursanne ca’Sankt, a grande mártir que muitos imaginavam que seria archigos enquanto viveu, que tentava desesperadamente afastar os estupradores de Tennshah, de cuja união indesejada nasceria o grande starkkapitän firenzciano Adalwulf, que mais tarde expulsaria os tennshas de seus povoados em volta do lago Firenz.

Jan estava cercado por história e tomado por uma fúria movida pela fé. Parecia apropriado. Aos olhos dele, sua reconciliação com a noção de que a matarh tinha a intenção de disputar o Trono do Sol fora uma luta tão titânica quanto qualquer uma das representadas aqui. Jan confrontou Allesandra após a longa conversa com Sergei ca’Rudka, mas, no fim, ele disse que compreendia, mesmo que não aprovasse. Jan não tinha certeza se isso era verdade ou se, depois de várias viradas da ampulheta de discussão, a declaração pelo menos deixou que ele dormisse um pouco, mas a matarh aceitou o que Jan falou.

O hïrzg acompanhou Allesandra ao templo a pedido do archigos e olhava para o domo enquanto os dois aguardavam Semini. — Eu me lembro da primeira vez que vi essas pinturas — falou Jan para tentar quebrar o silêncio incômodo. — Elas me assustavam; pensei que fossem fantasmas. Imaginei que as figuras se mexiam e saíam da pintura para me perseguir... — Jan riu; ele parecia rir muito pouco desde os eventos que culminaram em sua sagração como hïrzg. — Agora apenas acho que são dramáticas demais e nem tão bem pintadas assim.

— Não diga isso para Semini — falou a matarh. — Ele adora co’Goslar... Ah, lá está ele.

Semini veio a passos largos na direção dos dois, saindo detrás do Alto Púlpito no coro. Entre a Segunda e a Terceira Chamadas, o templo ficava geralmente deserto, e os gardai que entraram antes de Jan e Allesandra agora estavam a vários passos de distância, em silêncio, após terem retirado visitantes desgarrados da câmara principal. Os três estavam tão sozinhos quanto parecia possível para Jan ultimamente.

— Meu hïrzg — trovejou Semini, a voz reverberou no domo enquanto ele fazia o sinal de Cénzi para Jan. — E a’hïrzg. — Jan viu o archigos sorrir para ela; Semini parecia prestes a pegar a mão de Allesandra, embora o gesto tivesse sido uma terrível quebra de protocolo. Mas o homem parou a alguns passos cautelosos, mais perto talvez do que deveria estar, mas não tão próximo a ponto de ser extraordinariamente óbvio. Jan sentiu um pouco da irritação voltar; ele nem podia culpar a matarh por arrumar um caso quando o vatarh traiu a esposa tantas vezes. No entanto, ficava incomodado ao saber. A visão dos dois juntos, dos corpos enroscados como o dele esteve com Elissa... Não, Jan sentiu um arrepio e balançou a cabeça para afastar a cena.

— Obrigado por virem — continuou Semini, que ainda olhava mais para Allesandra do que para Jan. — Como eu disse, recebi uma mensagem com, segundo me disseram, uma mensagem idêntica para o hïrzg. Ela está aqui comigo.

Semini entregou um pergaminho enrolado e selado para Jan e observou o hïrzg examinar o selo na cera azul — um punho em uma manopla, o selo de Nessântico desde a época do kraljiki Justi. Jan desenrolou o papel e vasculhou as letras escritas à tinta com uma fúria crescente. Quase ouviu a voz do onczio Fynn crescer dentro dele — Jan sabia como Fynn teria reagido a esta mensagem. Em silêncio, com a boca franzida, ele entregou o pergaminho para Allesandra e ouviu a matarh tomar fôlego quase que imediatamente. Sem dizer uma palavra, ela devolveu a mensagem de volta para o filho.

— Como ele ousa falar conosco dessa maneira? — disparou Jan. Ele abriu as mãos e deixou o papel cair no piso de mármore. A palavra “ousa” ecoou na câmara por muito tempo depois de tê-la dito. O som pareceu agitar os gardai, que se remexeram de um jeito nervoso. — Ele fala conosco como se Nessântico ainda governasse Firenzcia. “Devolvam o antigo regente para nós em um mês ou tomaremos medidas efetivas para recuperá-lo”. Como ele ousa fazer ameaças assim? — Outro eco. — Deixe que ele tente; nós iremos esmagá-lo.

Jan ergueu os olhos para o domo. Fantasmas... Nenhum deles toleraria essa situação; eu também não posso. Isso é um tapa na cara.

— Jan, eu compreendo o que você sente; acredite em mim, eu tive a mesma reação — disse Allesandra.

— “Mas...?” — disparou Jan com raiva ao se voltar para ela. — É isso o que a senhora ia dizer, matarh? “Mas...” que “mas” seria esse?

Em uma reação estranha, ela sorriu. — Meu querido, você soou igualzinho a Fynn, ou talvez ao meu vatarh. Eu já vi os dois rugirem desse mesmo jeito quando se consideravam insultados.

Allesandra ter achado graça só serviu para aumentar a irritação de Jan. Ele olhou atrás de Semini, para o mural depois do Alto Púlpito, para as tiras ensanguentadas da carne de Pewitt presas às garras dos moitidis, e tentou conter a irritação.

— O “mas”, meu filho, é o que vínhamos considerando — continuou ela. — Talvez essa seja simplesmente a oportunidade de que precisávamos. A desculpa para agir.

— A desculpa? — Jan começou a falar, e, por um momento, sentiu-se bem mais novo, uma criança novamente. — Ah. — Essa palavra não produziu eco algum. Flutuou no ar entre eles, perdida na imensidão do templo. Jan abaixou o olhar para o papel meio enrolado sobre o piso de mármore, e a suspeita cresceu dentro dele. — Estranho que uma mensagem como essa levasse exatamente à situação que a senhora queria, matarh. Uma provocação deslavada de Nessântico contra nós. Que maravilhoso senso de oportunidade. — Jan ergueu as sobrancelhas para ela.

Allesandra balançou a cabeça. — Eu não sabia nada sobre essa situação até agora. Não tive nada a ver com isso. Pergunte ao archigos.

Semini concordou com a cabeça rapidamente. — As cartas chegaram seladas através de vias diplomáticas. Se o hïrzg duvida, posso mandar o mensageiro ser trazido aqui.

Jan abanou a mão e desviou os olhos dos dois para os murais no domo. — Não, não há necessidade. É que... — O olhar retornou para a matarh. — Parece que Cénzi quer o que a senhora quer, matarh. — Talvez fosse coincidência. Allesandra parecia genuinamente chocada. Talvez fosse um sinal. Ele não estava contente com essa perspectiva.

— Ah, certamente — respondeu Semini. — Sem saber, o kraljiki agiu como queríamos, ou Cénzi fez com que ele agisse assim. O kraljiki ameaçou a Coalizão e nossa Fé diretamente, e não temos escolha a não ser responder para proteger nossos interesses e fronteiras. Este é o momento, hïrzg. Esta é a ocasião. A maior parte da Garde Civile de Nessântico foi mandada para oeste, para os Hellins; eles levarão tempo para reunir os chevarittai e o restante da Garde Civile, para preparar os ténis-guerreiros que estiverem disponíveis, e para alistar os soldados de infantaria necessários para honrar essa ameaça. — O archigos sorriu e acenou com a cabeça para Allesandra. — Sua matarh sabe disso. É o momento de o senhor demonstrar sua liderança e levar a Garde Civile e os chevarittai de Firenzcia à guerra. O senhor reunificará os Domínios como eles eram antes, hïrzg Jan, e seu nome será lembrado eternamente por isso.

— Eu não sei...

— Eu sei — disse Allesandra com uma voz firme e orgulhosa. — Você está pronto para isso, Jan.

Ele hesitou. Jan ainda estava incomodado por ser usado pela matarh para os objetivos dela; também estava atormentado pela própria incerteza se poderia ser o hïrzg que ele queria ser. “Também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.” Palavras de Sergei. Elas acalmaram Jan. Elas fizeram Jan decidir.

Um instante depois, o hïrzg concordou com a cabeça. — A senhora estava certa naquela noite. Preciso consultar o starkkapitän ca’Damont e os chevarittai. É o que a senhora queria, não é, matarh?

Se Allesandra ouviu um leve deboche na voz do filho, ela não reagiu. — Eu irei com você, Jan. Eu conheço o starkkapitän e conheço a Garde Civile. Posso ser sua mentora nesta situação. Vá e mande Roderigo convocá-los. Eu irei atrás em um instante.

Jan ergueu as sobrancelhas, incomodado por ter sido obviamente dispensado, mas fez o sinal de Cénzi para Semini e uma leve mesura para a matarh. — Obrigado por passar essa informação, archigos. Nós precisaremos de sua força e orientação. Matarh, eu falo com a senhora mais tarde.

Ele foi embora então, com quase todos os gardai à sua volta ao sair do templo. — Seu filho será um belo hïrzg. — Jan ouviu Semini rosnar com sua voz baixa ao chegar às portas. Ele presumiu que o elogio foi calculado para que fosse ouvido e considerado genuíno.

Jan sorriu para si mesmo. Ele seria um belo hïrzg. Ele surpreenderia os dois com o tamanho da competência de sua liderança.

Jan suspeitava que eles poderiam não gostar do resultado.

 

Allesandra ca’Vörl

A PASSAGEM NOS FUNDOS do templo era escura, iluminada apenas eventualmente por lâmpadas com tampas verdes, penduradas em ganchos cimentados na parede. As colunas estriadas ao longo da passagem não deixavam que o caminho fosse visto dos jardins do pátio, localizado entre a asa norte do complexo do templo e o templo em si. As grandes janelas de vitral agigantavam-se escuras sobre Allesandra. Ela quase corria pela passagem, pois não queria ser vista, apesar de ter recebido a garantia de que não haveria ténis na área; suas sandálias de sola de couro macio pisaram silenciosas no granito encerado. Foi fácil sair de mansinho dos próprios aposentos no palácio pelo corredor de serviço, esperar até que não houvesse ninguém de olho para abrir a porta, atravessar a praça correndo e entrar nas ruas de Brezno. Allesandra usava um capuz sobre o cabelo que encobria o rosto, e a tashta era simplória. Ela podia se passar por uma mulher simples correndo para chegar em casa à noite. Semini disse que a porta estaria aberta e informou quais os lugares que os ténis geralmente evitavam. As cerimônias da Terceira Chamada haviam acabado há uma virada da ampulheta.

A a’hïrzg estava quase lá. A uma curva à esquerda na próxima passagem, depois uma subida pela escada até o quarto que Semini mantinha no complexo do templo quando não queria retornar aos próprios aposentos na ala norte.

— Allesandra.

Ela levou um susto diante da voz sibilante. A mão alcançou a faca escondida na faixa da tashta.

— Francesca — disse a a’hïrzg.

Uma silhueta surgiu ao lado de uma das colunas. Na luz difusa, ela viu a mulher, cujas rugas aprofundavam as sombras no rosto. O brilho verdejante das lâmpadas fez Francesca parecer doente. Ela espalmou as mãos, como se mostrasse para Allesandra que não estava armada. — Eu sei — disse Francesca. — Eu sempre soube.

— O que é que você sabe, Francesca?

Ela gargalhou. O som assustou os estorninhos negros que pousavam nas árvores frutíferas do pátio para passar a noite. Eles levantaram voo e esvoaçaram agitados. Allesandra sentiu um cheiro de álcool no hálito forte da mulher. — Não deveríamos brincar de joguinhos, você e eu — falou a mulher. — Não há nada entre mim e Semini há anos, e se você está disposta a abrir as pernas para que aquele velho aríete soque aí dentro, por que devo me importar?

Allesandra sentiu um calor nas bochechas diante da baixaria e respirou fundo pela boca. — Se você não se importa, por que está falando comigo?

A expressão de quem achava graça sumiu do rosto da mulher. Ela torceu o nariz enquanto encarava Allesandra. — Você é bonita. Semini sempre gostou de você; eu ouvi o carinho na voz dele quando você finalmente voltou de Nessântico. As amantes que ele teve depois... sempre achei parecidas com você. Semini achava também, imagino. Eu sei o rosto de quem ele via quando metia nelas. Ah, isso lhe incomoda, não é? Aposto que ele nunca lhe contou isso. — Francesca aproximou-se de Allesandra, que deu um passo para trás, com a mão ainda no cabo de couro da faca. — Aposto que tem muita coisa que ele não te contou.

— Francesca, você está bêbada e eu não quero ter essa conversa. Agora, deixe-me...

A mulher levantou a mão e torceu a boca com desdém. — Ainda não. Olhe para mim. Olhe... — Francesca abanou as mãos na direção do rosto. — Eu fui linda um dia. Ora, eu era a amante do kraljiki Justi; eu poderia ter sido a esposa dele se o meu vatarh tivesse escolhido o lado certo na guerra. Mas ele não escolheu. E agora... — Por um momento, Allesandra pensou que a mulher não fosse falar novamente. Ela ficou parada ali, o corpo cambaleava levemente. — Você acha que conhece meu marido? Não o conhece. Eu vi você quando chegou a notícia da morte da archigos Ana. Vi o horror e a tristeza no seu rostinho bonito. Você sofreu porque gostava daquela megera frígida. Quanto a mim, eu a odiava. Fiquei feliz por saber que ela morreu. Ri alto. Mas você... a archigos Ana lhe tratou bem, não foi? Ela foi uma matarh para você quando sua própria família lhe abandonou. A archigos Ana... Bá! — Francesca franziu os lábios, virou a cabeça e cuspiu no piso. — Ele sabe quem a matou. Assim como eu.

— Quem? — perguntou Ana. A mão foi parar na garganta. Ela achava que sabia a resposta.

Francesca deu um passo cambaleante para frente, quase caiu e segurou na tashta de Allesandra. — Pergunte a ele — rosnou a mulher, o mau hálito tomou as narinas de Allesandra. — Faça Semini lhe contar, e aí veja o que você sente por ele.

A gargalhada de Francesca provocou outra revoada de pássaros assustados, e ela afastou-se de Allesandra com um empurrão. Foi cambaleante na direção da arcada que levava para a ala norte, sem olhar para trás. — Pergunte a ele. — Allesandra ouviu a mulher repetir, as palavras ecoaram pelo pátio.

Ela viu Francesca abrir com violência as portas e ouviu quando foram fechadas ao sair. Allesandra ficou parada ali por vários instantes, enquanto os estorninhos pousavam nas árvores frutíferas novamente e a lua surgia sobre os domos do templo.

Finalmente, Allesandra deu meia-volta e foi embora do templo, de volta para seus aposentos e para os próprios pensamentos.

 

Nico Morel

AO LONGE, Nico podia ouvir cornetas e zinkes enquanto o cortejo fúnebre do kraljiki Audric prosseguia pela Avi a’Parete a alguns quarteirões de distância. Ele imaginou como seria a procissão — todos os ca’ e co’ em desfile atrás da carruagem funerária, as rodas movidas pela magia dos ténis, a nova kraljica Sigourney seguindo na própria carruagem especial. Seria esplêndido aquele cortejo. Uma maravilha. Audric não era muito mais velho do que ele, e Nico imaginou como seria ser tão jovem e ser também kraljiki. Ele perguntou-se como alguém poderia ter odiado tanto Audric a ponto de matá-lo. Nico não conseguia se imaginar odiando uma pessoa tanto assim.

Ninguém mais na sala parecia notar os sons do funeral — ou talvez tenham escolhido ignorá-los.

— Eu não matei a archigos Ana.

Nico estava sentado no colo da matarh. Ela mal o soltou desde que o viu. Não que ele se importasse; estava bem contente de sentar abraçado a ela, protegido. A sensação fez com que Nico percebesse como sentiu falta da matarh, como esteve com medo por tanto tempo. Ele e a matarh estavam sentados à lareira, e o fogo aquecia a lateral do corpo. Talis estava sentado à mesa no centro da sala; Karl e Varina sentaram-se do outro lado. Nico quase podia ver a tensão entre eles, um arco de fogo quase tão quente quanto aquele às suas costas. Sua matarh sentia também; ele notou o arrepio nos músculos dela e a força com que o abraçava, e Nico sabia que ela tinha medo de que alguma coisa fosse acontecer.

— Eu não a matei — repetiu Talis. — É a verdade.

— Certo — respondeu Karl. — E nós simplesmente devemos acreditar porque você disse que é verdade.

Talis deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Se vocês não quiserem acreditar, tudo bem. Continua sendo verdade. Mas... — Talis lambeu os lábios. — Eu sei como ela foi morta e sei quem deve ter sido, pelo menos parcialmente, o responsável.

— Continue — disse Karl.

— Foi com um... — Talis meteu a mão na bolsa presa ao cinto. Nico viu Varina e Karl ficarem tensos com o gesto, e sua matarh ficou em expectativa. Karl ergueu as mãos subitamente, como se estivesse pronto para lançar um feitiço. Talis levou um susto e falou — Sem magia. Eu não usaria, não com Sera e Nico aqui. Eu não usaria.

Após um instante, Karl pousou as mãos na mesa novamente, e Talis abriu a bolsa. Ele retirou uma pequena bolsinha de pano, desamarrou o nó que a fechava e derramou um montinho de pó negro na mesa. Karl olhou fixamente para o pó e disse — Havia uma poeira negra por toda parte do Alto Púlpito e nas roupas de Ana. Aquilo... aquilo era a mesma coisa?

Talis concordou com a cabeça. — Sim. — Ele recolheu tudo, menos uma pitada do pó, e recolocou na bolsa. — Nós chamamos de bosh lumm em nossa língua. Areia negra, na língua de vocês. Aqui... — Da bolsa, Talis retirou uma tigela de latão rasa e larga, marcada com figuras estranhas na borda. Ele espanou o restante do pó para dentro da tigela e colocou no centro da mesa. — Deixo esta parte com vocês. Lancem um pequeno feitiço de fogo na tigela, apenas uma centelha mínima. — Talis deu um breve sorriso. — E não coloque o rosto muito perto, se quiser manter essa barba.

Karl olhou de relance para Varina, obviamente hesitante. Ela voltou-se para a matarh de Nico e perguntou — Sera? Podemos confiar nele?

Nico mais sentiu do que viu a matarh concordar com a cabeça, mas as mãos dela apertaram o filho com mais força ainda no mesmo momento. Varina fez um rápido gesto com a mão e disse uma palavra em outra língua. A palavra soou como “tihn-eh” aos ouvidos de Nico, e assim que Varina falou, uma centelha apareceu entre os dedos. Ela girou a mão na direção da tigela, e a centelha saiu voando.

Assim que a centelha caiu na tigela, houve um clarão e estrondo simultâneos, como se uma trovoada tivesse ocorrido dentro do objeto. A tigela deu um pulo e retiniu, e uma fumaça branca irrompeu. Alguém gritou; Nico não conseguiu dizer quem foi. A matarh virou-se com o barulho para proteger o filho com o corpo. Ela se virou devagar, e o menino conseguiu ver novamente. Karl esticou a mão sobre a mesa, na direção da tigela, de onde ainda saía fumaça. Havia um odor estranho no ar, como Nico imaginava que o mundo subterrâneo dos moitidis cheirasse.

— Isso foi apenas uma pitada da areia negra — dizia Talis. — Eu diria que vocês podem imaginar o que uma grande quantidade pode fazer, mas eu realmente acho que não conseguiriam.

— Eu posso imaginar — falou Karl, que examinava a tigela. Pela maneira como estava virada, Nico viu que o fundo ficou escurecido, como se tivesse sido queimado. O rosto de Karl estava sério quando ele pousou o objeto. — Eu estava lá quando Ana morreu.

Talis franziu os lábios.

Varina afastou a tigela. Ela ergueu a cabeça e pareceu ouvir o som distante do cortejo fúnebre de Audric pela primeira vez. — O kraljiki. — Seus olhos ficaram arregalados. — Os rumores...

— ... é bem possível que sejam verdadeiros, pelo que eu ouvi — completou Talis. — Mas aquilo também não fui eu que fiz. — Ele gesticulou para Nico. — O menino pode dizer. Eu estava com ele quando aconteceu. Nós ouvimos o toque das trompas, não foi, Nico?

O menino concordou com a cabeça.

— Magia ocidental... — sussurrou Karl. Ele pegou a tigela novamente e olhou fixamente para o interior sujo de fuligem, como se procurasse respostas escritas ali. — Nós estamos apenas começando a entendê-la, e eu posso lhe afirmar, Talis, que ela não vem dos deuses, da mesma forma que a magia dos ténis não vem de Cénzi.

— Então vocês ainda não entendem — disse Talis. — Isso não é magia. Pelo menos não a areia negra em si. É tão magia quanto fazer pão, se a pessoa conhece a receita.

— Você disse que sabe quem é o responsável — falou Karl. — Diga o nome.

Talis respirou fundo. — O nome dele é Uly. Ele tem uma barraca no Mercado do Rio. É um ocidental, mandado para cá na mesma época que eu. É um guerreiro. Seu trabalho é informar o tecuhtli; o tecuhtli é o que o seu kraljiki seria se também fosse o comandante da Garde Civile. Eu vim aqui a mando do nahual, o líder da minha ordem, para ajudar Uly e também para descobrir o que aconteceu com Mahri. E... — Talis respirou fundo novamente. — Eu cometi um erro. Fomos nós, os nahualli, os feiticeiros, que descobrimos como criar a areia negra; é um segredo que nós mantivemos. E sim, se outras pessoas pensavam que a areia era mágica, nós não corrigimos o erro. Mas Uly... nós estávamos aqui há muito tempo, e ele era a única pessoa que eu conhecia que falava minha língua, e até eu encontrar Sera... — ele olhou para a matarh de Nico e sorriu — ... ele era a única pessoa que parecia se importar comigo. Eu fiz o que não deveria ter feito. Ajudei Uly a fazer a areia negra. Tentei evitar que ele conhecesse os detalhes, mas... — Talis pegou a tigela da mesa e guardou novamente na bolsa. — Uly não era idiota. Ele pode facilmente ter visto o suficiente para reproduzir o procedimento. Seu trabalho era apenas me fornecer os ingredientes, afinal de contas.

— Você está dizendo que esse tal de Uly assassinou Ana? — perguntou Karl. — É isso que quer que nós acreditemos agora?

Talis deu de ombros. — Estou dizendo que é possível. Provável. Eu sei que não fui eu. E com certeza foi bosh lumm que matou a archigos. Não magia ocidental, nem magia de numetodo também.

Karl cerrou as mãos sobre a mesa. — Onde está esse tal de Uly?

— Eu não o vejo desde que você me atacou — respondeu Talis. — Eu contei para Uly a respeito do ataque e disse que eu desapareceria por um tempo; desde então, não ouvi mais falar dele. Imagino que o melhor lugar para começar a procurá-lo seria o Mercado do Rio, mas... — Ele começou a falar, mas Nico se agitou nos braços da matarh.

— Uly não está lá — falou o menino. Todos olhavam para ele agora, e a matarh soltou mais os braços ao abaixar o olhar para o filho no colo.

— Nico?

— É verdade, matarh. Uly não está lá. Depois que eu saí da casa da tantzia Alisa e andei até aqui, achei que Uly podia me dizer onde Talis estava, mas quando fui ao Mercado do Rio, a barraca de Uly estava vazia e a vendedora de pimentas falou que ele tinha ido embora.

Talis concordou com a cabeça e disse — Eu imaginei que isso aconteceria. Não sei onde ele está. Ainda na cidade, provavelmente, mas onde...

— A senhora das pimentas disse que ele pode estar no mercado do Velho Distrito — informou Nico.

Karl já estava de pé. Agora Talis levantou-se também e falou — Eu não sei se Uly matou Ana, embaixador. Você também não sabe.

— Eu pretendo descobrir.

— Então eu irei com você.

— Por quê? — perguntou Karl. — Para detê-lo caso Uly me diga que foi você, de fato, ou caso ele não tenha a menor ideia de como fazer essa sua areia negra?

— Uly não falará com você, não importa o que fizer com ele — disse Talis. — Uly é um guerreiro, foi treinado para morrer antes. Ele confia em mim. Você? No primeiro momento em que perguntar algo que gere suspeitas, Uly irá matá-lo e fugir. Ou morrerá feliz tentando.

— Eu estarei com Karl — falou Varina, que estava de pé também, de braço dado com ele. — E nós somos mais fortes do que você pensa.

— Vocês precisarão de mim — insistiu Talis.

— Tudo bem — disse Karl finalmente. — Mas não com isso. — Ele apontou para a bengala de Talis.

O homem fechou a cara. — Eu não posso deixar isto aqui. Não deixarei.

— Então ficará com isso.

Talis pareceu considerar a questão por um momento e falou — Tudo bem. Eu deixarei. Só dessa vez. Eu vou.

— Eu vou também — disse Nico.

Todos os três voltaram-se para o menino, e Nico sentiu a matarh abaixar o olhar para ele também. — Não! — disseram os quatro ao mesmo tempo.

 

Niente

A VISÃO NA TIGELA PREMONITÓRIA perturbou Niente. Ele sentiu que o tecuhtli Zolin examinava seu rosto em busca de qualquer sinal do que as visões indicavam e abaixou a cabeça ainda mais no torvelinho de bruma azul que saía da água.

Uma mulher sentada em um trono brilhante, com o rosto horrivelmente desfigurado e contorcido por dor, sem um olho. Um exército avançava pela bruma atrás dela... Ali, um menino e uma mulher mais velha, e atrás dele também um exército, só que com estandartes pretos e prateados, e não o tom azul e dourado dos Domínios... Um homem que usava o colar de uma concha, e com ele — seria possível? — um nahualli que parecia Talis, embora ele estivesse abraçado a uma mulher e uma criança que não eram tehuantinos, e sim orientais...

As imagens vinham rápido demais, e Niente tentou pará-las com a mente, tentou espaçá-las no tempo para mostrar traços do futuro que poderiam acontecer. Ele rezou para Axat e pediu por clareza, pensou no próprio exército e nos navios que vinham pelo rio ali perto...

Os navios iam de um lado para o outro no meio de uma tempestade de fogo no céu. Exércitos deslocavam-se sobre a terra, havia explosões brilhantes de areia negra, uma densa fumaça pairava sobre os campos pisoteados... Mas a bruma parecia se dividir em duas — como às vezes acontecia quando Axat queria mostrar dois resultados possíveis. Ele viu um campo apinhado de corpos de guerreiros tehuantinos e um único navio de sua frota com velas esfarrapadas, que fugia depressa para oeste, na direção do sol poente, enquanto outras embarcações ardiam em chamas laranjas na água... “Oeste... casa...” Ele quase era capaz de ouvir as palavras no vento.

Mas esta visão foi fechada, e outra surgiu...

Na segunda visão, havia uma batalha intensa e sangrenta nos campos diante da cidade, e o exército de azul e dourado recuou para dentro de suas sólidas muralhas... A mesma cidade, agora com muralhas rachadas, e era difícil enxergar através da fumaça e da bruma da visão, mas ele pensou ter vislumbrado o exército tehuantino entrar aos borbotões pelas brechas...

Havia outra cidade ao longe, ainda maior, e parecia atraí-lo...

E lá estava de novo... a imagem de um guerreiro tehuantino morto, com um nahualli caído ao lado dele...

— O que a Senhora está tentando me mostrar, Axat? — perguntou Niente com a voz hesitante.

— Nahual?

Niente ergueu o olhar; a bruma transbordou da tigela e dissipou-se.

O acampamento tehuantino em volta dos dois homens estava barulhento e agitado enquanto o sol fraco tentava penetrar pelas nuvens ralas e altas. Niente viu-se com saudades do sol intenso e mais quente da própria terra; este lugar era mais frio do que ele gostava, como se sugasse o calor do sangue. O tecuhtli Zolin olhava fixamente para o nahual, o branco dos olhos reluzia em contraste com as linhas negras inscritas em volta das órbitas, a águia vermelha no crânio parecia querer alçar voo. Havia ansiedade no rosto dele. De ambos os lados do tecuhtli, estavam Citlali e Mazatl, e seus olhares não eram menos ansiosos. — O que a visão lhe mostrou? — perguntou Zolin. — O que ela disse?

— Muito pouco — respondeu Niente, e o tecuhtli demonstrou irritação ao mostrar os dentes.

— Muito pouco. — Zolin imitou o tom de Niente. — O tecuhtli Necalli costumava me dizer que suas visões na tigela premonitória forneciam estratégias para ele, guiavam a maneira como Necalli dispunha os guerreiros e avançava pelo terreno. Ele disse que você era o nahual de Axat, que nos mostrava o caminho para a vitória. Mas tudo o que você me dá é “muito pouco”.

— Eu não dou nada ao senhor — disse Niente, e Zolin respondeu com uma cara de desdém. — Assim como também não dei nada ao tecuhtli Necalli. Sou apenas o canal de Axat. Eu posso informar o que Axat me mostra, mas a visão não é minha. É Dela. Tudo o que tenho a dar é o que Axat oferece. Se o senhor quiser reclamar sobre ser pouca coisa, fale com Ela.

— Então me diga essa pouca coisa, nahual — falou Zolin. O tecuhtli apontou para leste, onde os olheiros mais avançados disseram que um exército dos Domínios esperava por eles, fora da cidade, a meio dia de marcha de distância. Niente fora a cavalo com Zolin para ver a cidade, que era bem maior do que a maioria dos vilarejos abandonados por onde eles marcharam nos últimos dias, embora não tão elaborada ou grande quanto aquela que Niente tinha visto na tigela premonitória, essa Nessântico onde o kraljiki vivia. Ainda assim, a cidade aninhada atrás das muralhas, e que se esparramava a partir delas, era pelo menos da metade do tamanho de Tlaxcala ou das outras grandes cidades insulares do império tehuantino, e maior que Munereo ou Karnor.

Parecia que o kraljiki não deixaria que eles avançassem mais sem resistência. Se Zolin quisesse essa cidade, deveria lutar por ela. Niente sabia que isso não incomodava de maneira alguma o tecuhtli.

— Eu vislumbrei uma batalha — disse Niente. Ele fechou os olhos e tentou se lembrar das cenas que lampejaram na tigela premonitória. — Na visão de Axat, o exército dos Domínios lutou, mas depois recuou para trás das muralhas da cidade quando investimos contra eles. Eu vi as muralhas rachadas e os tehuantinos entrando...

— Xatli Ket! — Niente parou quando Zolin soltou o grito de guerra de sua classe; Citlali e Mazatl fizeram o mesmo, e o berro foi repetido, cada vez mais fraco, pelos outros guerreiros presentes. — Então Axat mostrou a nossa vitória para você — falou o tecuhtli. Ele deu um tapa na armadura de bambu que cobria o peito.

— Talvez. — Niente apressou-se a dizer. — Mas Ela também me mostrou nosso exército e frota destruídos, e um navio indo depressa para oeste. Tecuhtli, esse também é um futuro possível; um sinal. Se voltarmos agora, se colocarmos nosso exército nos navios e voltarmos para casa, então esse é um futuro que jamais viveremos. Os orientais temerão para sempre ir à nossa terra novamente. Nós já mostramos a eles as consequências; não há mais nada a provar.

Zolin soltou uma risada sarcástica. Citlali franziu a testa, e Mazatl desviou o olhar, como se estivesse enojado. — Recuar, nahual?

— Recuar, não — insistiu Niente. — Entender que demos uma lição nesses orientais com a ruína de Munereo e Karnor e voltar para casa com a vitória.

— Vitória? — Zolin cuspiu no chão entre eles. — Os orientais pensariam que eles obtiveram a vitória, que corremos assim que vimos seu exército.

— Tecuhtli, se formos derrotados aqui, que bem faria para o nosso povo perder o tecuhtli e tantos guerreiros e nahualli?

— Se formos derrotamos, e não seremos, nahual, se você viu corretamente sua visão, então nosso povo encontrará um novo tecuhtli para liderá-los, e eles treinarão novos nahualli nas tradições do X’in Ka, e nós seremos lembrados quando Sakal nos receber em Seu olho flamejante. Isso é o que será feito, não importa a pouca ajuda que você dê. Está com medo, nahual Niente? Será que a visão do exército oriental faz o mijo escorrer quente por suas pernas?

Citlali e Mazatl riram.

— Eu não estou com medo — disse Niente, e era verdade. Não era medo que revirava seu estômago, mas uma sensação de inevitabilidade. Axat tentava alertá-lo, mas Ela não deixava a mensagem clara o suficiente, ou talvez ele estivesse tão distante Dela que a mensagem estava truncada e difícil de discernir. — Tecuhtli, o que o senhor me pedir, eu farei. Quando me pede para interpretar o que vejo na tigela premonitória, eu também o faço.

Zolin torceu o nariz. — Então isso é o que eu lhe digo para fazer, nahual. Encha seu cajado mágico. Prepare a areia negra. Faça as pazes com Axat e Sakal, e você entrará comigo na cidade dos orientais, e depois iremos até o trono do monarca deles.

Niente ouviu as palavras e abaixou a cabeça para aceitá-las. O único navio que fugia depressa para o sol poente... — Eu farei isso, tecuhtli — falou ele, com pesar. — Eu prepararei os nahualli. Dê-me tempo suficiente, e farei o que acredito que Axat deseja que façamos.


CONTINUA

CONEXÕES

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

Niente

Allesandra ca’Vörl

Jan ca’Vörl

Nico Morel

Audric ca’Dakwi

Varina ci’Pallo

Enéas co’Kinnear

A Pedra Branca


Niente

ELE NUNCA ESTEVE NO MAR antes e não tinha certeza se estava gostando totalmente da experiência.

Niente encontrava-se no castelo de popa do galeão capturado dos Domínios, antigamente chamado de Marguerite e agora rebatizado como Yaoyotl — que significava “guerra” em sua própria língua. O Yaoyotl navegava no meio da frota tehuantina; de sua posição, Niente podia observar as longas ondas azuis decoradas com as velas brancas de mais de uma centena de navios. Atrás deles, perdida no horizonte há dias, estava a costa oriental de sua terra e a fumaça desagradável de Munereo, queimada e saqueada, que agora era a cova da Garde Civile dos Domínios, a não ser para os poucos que recuaram para o último pequeno ponto de resistência dos orientais no continente, a cidade de Tobarro. O exército tehuantino tinha tomado Munereo, recuperado toda a terra ao sul e a oeste de suas muralhas e capturado os navios da frota dos Domínios no porto, ao menos aqueles que escaparam do fogo mágico da frota tehuantina ou que não foram postos a pique pelas próprias tripulações e mandados para o fundo do mar quando a derrota era óbvia. A maior parte dos navios que acompanhavam o Yaoyotl era de embarcações chamadas de acalli: navios de dois mastros e velas latinas com que os tehuantinos cruzavam o Mar Ocidental entre as grandes cidades que os invasores orientais nunca viram. Os acalli não conseguiam levar o número de tripulantes ou soldados que os galeões de velas quadradas de Nessântico eram capazes, nem eram tão rápidos, mas eram mais manobráveis, especialmente nas águas rasas da costa ou quando o vento estava contra eles.

Os ventos do Strettosei, no entanto, sopravam constantemente de oeste para leste nesta latitude, e o vento da passagem da frota assobiava pelos cabos tesos que seguravam as velas enquanto as proas dos navios rasgavam longas linhas brancas pelas ondas, que desciam, subiam e desciam novamente, implacáveis e eternas.

Era um movimento que, após vários dias, ainda embrulhava e fazia arder o estômago de Niente. Os braços e as pernas, contorcidos e arruinados pelos esforços do feitiço que colocara no oriental Enéas, doíam quando ele tentava se manter equilibrado no balanço do navio. Dois dos nahualli subalternos estavam no castelo com ele e o observavam enquanto Niente usava a tigela para realizar um feitiço premonitório; ele não ousaria demonstrar a fraqueza no estômago ou no corpo, ou então a notícia chegaria aos outros nahualli, e com o tempo alcançaria o ouvido do tecuhtli Zolin, que também estava no Yaoyotl. O destino de todo nahual esperava por Niente, o destino que talvez tivesse chegado até mesmo a Mahri, ou talvez a Talis também: como um nahualli, cada uso do X’in Ka tinha seu preço, e quanto maior o feitiço, mais caro o preço que os deuses cobravam.

Com o tempo, o preço seria a morte.

O balanço do navio sacudia a água na tigela premonitória e turvava as visões do futuro: aquilo incomodava Niente mais do que a náusea. Ele espiou dentro da água, que espirrava até a borda da tigela de latão. Os olhos não queriam entrar em foco; o esquerdo, turvo desde o encantamento de Enéas, tinha piorado desde o ataque a Munereo. Niente piscou, mas as cenas na tigela recusaram-se a ficar nítidas. Ele resmungou, fechou a cara e jogou fora a água sobre a amurada da popa, enojado. Os outros nahualli ergueram as sobrancelhas, mas não disseram nada. — Eu preciso falar com o tecuhtli — disse Niente. — Levem a tigela para o meu alojamento e limpem-na.

Eles abaixaram a cabeça obedientemente enquanto Niente passava pelos dois, arrastando os pés.

O nahual discutira com o tecuhtli Zolin que a estratégia era idiota, embora não tivesse ousado usar esta palavra. Ele queria desesperadamente voltar para casa, para trás das Montanhas Afiadas, para as grandes cidades em volta do lago. Para Xaria, sua esposa; para os filhos. Para a familiaridade de casa.

Niente não estava sozinho. O guerreiro supremo Citlali tomara a mesma posição, assim como vários dos guerreiros subalternos. — Por que devemos navegar até a terra dos orientais? Tomemos a última cidade que eles mantêm aqui e joguemos seus corpos na grande água. Voltemos para nossas casas e famílias, e se os orientais retornarem para incomodar nossos primos novamente, nós os afugentaremos mais uma vez.

Mas Zolin foi inflexível e declarou — Sakal exige mais de nós. É hora de mostrarmos a estes orientais que podemos machucá-los assim como eles nos machucam. Se alguém é atacado por um lobo, espantá-lo apenas poupa o lobo para um novo ataque, talvez quando ele estiver mais forte ou a pessoa estiver mais fraca. Matar o lobo é a única maneira de estar realmente a salvo.

— Isso não é um lobo — insistiu Niente. — É um monstro de várias cabeças, com um pequeno rosto que nós vimos, e estamos indo para sua toca. Pode ser que ele nos devore completamente.

Zolin resmungou ao ouvir isso. — Fugir do lobo porque se está com medo é a pior estratégia de todas. Isso só oferece ao lobo as costas desprotegidas.

No fim das contas, Zolin convenceu os guerreiros supremos, e Niente não teve escolha a não ser informar os nahualli que a tarefa deles ainda não havia acabado. Ele quase ficou surpreso ao ver que nenhum dos nahualli resolveu desafiá-lo pelo posto de nahual, como consequência.

Os alojamentos do antigo capitão ficavam embaixo do castelo de popa, e era ali que o tecuhtli Zolin tinha se instalado. A mobília oriental fora jogada ao mar e substituída pelas linhas geométricas mais familiares e os desenhos do estilo tehuantino. O aposento estava animado por tons vermelhos e marrons, as cores do sangue e da terra. O cheiro de incenso fez Niente franzir o nariz ao entrar, os criados do tecuhtli prostraram-se nos tapetes jogados sobre as tábuas de madeira.

O tecuhtli Zolin estava reclinado em uma cadeira entalhada em um único bloco de pedra verde, amaciada por travesseiros e cobertores. O rosto e o torso, como os de todos os soldados, eram tatuados com redemoinhos de traços e linhas curvas: um registro do talento em combate e da patente. A cabeça estava raspada, como sempre, e agora era decorada pela tatuagem vermelha da águia de asas abertas. Os guerreiros supremos Citlali e Mazatl estavam falando com ele em voz baixa, mas interromperam a conversa quando Niente entrou. Os rostos tatuados e carrancudos se voltaram para o nahual.

— Ah, nahual Niente — falou o tecuhtli Zolin, gesticulando. Niente cruzou o aposento até o trono e ficou de joelhos. — Levante-se, levante-se. Diga-me, o que os deuses falaram?

Niente balançou a cabeça ao ficar de pé. Ele sentiu o olhar avaliador dos guerreiros supremos. — Sinto muito, tecuhtli, mas o balanço do navio... perturba as águas. Eu vi uma batalha e uma cidade em chamas à beira de um mar, seu estandarte tremulava sobre ela, mas de resto... eu não vi nada do oriental que mandei para seu kraljiki. Não vi nada da grande cidade deles.

— Ah, mas o estandarte e a cidade em chamas... isto só pode indicar vitória. Quanto ao seu oriental... — Zolin fungou e cuspiu no chão — ... essa era a estratégia do velho Necalli, e nem mesmo o grande Mahri teria sido capaz de fazer com que funcionasse.

Niente ficou vermelho com a indireta e irritado com o menosprezo que Zolin demonstrou por Mahri, cuja habilidade com o X’in Ka era lendária. Mahri evidentemente havia falhado, sim, mas isso só podia ter acontecido porque alguma força dos orientais tinha sido ainda mais forte. Niente abaixou a cabeça, mais para esconder o rosto do que por submissão. — Deve ser como o senhor diz, tecuhtli.

Zolin riu ao ouvir isso. — Ora, vamos, Niente, não seja tão modesto. Ora, você é um vidente e um nahualli de um nível que não vemos desde Mahri. Melhor até, pois Mahri não conseguiu impedir que os orientais invadissem nossas terras e as de nossos primos. Necalli era um tolo que desperdiçava recursos valiosos. Ele desperdiçou você também; todo aquele esforço que você concentrou naquele oriental. Mas agora... — Zolin abriu um largo sorriso. — Eu fiz os orientais recuarem para uma cidade sem importância na terra de nossos primos, com a ajuda de seus conselhos e habilidades, e agora temos a oportunidade de pilhar os orientais como eles um dia pilharam nossos primos do Mar Oriental. — O tecuhtli abanou a mão. — Eu mesmo arrancarei a cabeça dessa serpente oriental e tomarei providências para que nunca cresça outra. — Ele abaixou a mão e deu um sorriso cruel, mas a expressão dos dois guerreiros supremos era séria e impassível.

Niente perguntou-se qual dos dois poderia um dia desafiar Zolin, caso esta expedição falhasse, como ele temia que aconteceria.

O nahual compartilhava da atitude azeda de Citlali e Mazatl. Zolin não era diferente de muitas pessoas fora do círculo dos nahualli. Todas elas pensavam que seu dom era uma coisa simples: bastava olhar na água e deixar a deusa-lua Axat girar o futuro diante dos seus olhos. As pessoas não entendiam que as visões de Axat eram confusas e às vezes opacas, que o que nadava na água sagrada eram apenas possibilidades, e que essas possibilidades podiam ser alteradas, mudadas e até mesmo evitadas pelas habilidades de outras pessoas. Mahri — cujas habilidades, diziam, superaram a de qualquer nahualli — descobrira como Axat podia ser volúvel: a morte de Mahri foi um das primeiras visões que Niente viu em uma tigela premonitória; foi aquela visão que demonstrou para os mentores de Niente como ele tinha sido abençoado por Axat e Sakal. Talis, que fora mandado pelo tecuhtli Necalli para Nessântico, confirmou a visão de Niente: Mahri tinha falhado e tinha sido morto.

Aqueles sem o dom pensavam que devia ser maravilhoso ter o poder de Axat e Sakal, da lua e do sol. Não viam como usar o dom roubava força e vitalidade; como desfigurava e distorcia quem usava o poder. Agora mesmo, Niente podia olhar no espelho de bronze do alojamento e ver as rugas fundas no rosto, rugas que ninguém de sua idade já deveria ter. Notou a boca murcha, que o olho esquerdo chorava constantemente e agora estava esbranquiçado por uma nuvem mágica, que o cabelo ficava mais ralo e com mechas grisalhas. Ele sentia uma dor constante nas juntas que um dia viraria facas cruéis de agonia. Niente jamais conheceu Mahri, mas tinha vislumbrado o rosto do homem na tigela premonitória, e temia que um dia ele também visse as pessoas desviarem o olhar em vez de encará-lo e que ouviria os gritos de crianças assustadas quando passasse.

E Niente sabia que o tecuhtli Zolin podia estar satisfeito com ele agora, mas que o prazer do tecuhtli era frágil e podia desaparecer tão rápido quanto a bruma na luz do sol. Uma batalha perdida... Era tudo o que bastava, e tecuhtli Zolin procuraria por um novo nahual para estar ao lado dele.

— Eu rezo para Axat para que o senhor mate a serpente oriental — disse Niente para Zolin. — Mas eu...

Ele parou ao ouvir um chamado vindo do convés. — Terra... — gritou alguém. — A costa oriental...

Zolin sorriu ainda mais e falou — Ótimo. É chegado o momento de ver uma cidade queimar e nossos estandartes tremularem sobre a terra deles. — Ele ficou de pé e espantou os criados que correram para ajudar. — Venham, vamos ver esta terra juntos, com nossos próprios olhos, antes de tomá-la.

 

Karl ca’Vliomani

— BEM? — PERGUNTOU KARL PARA VARINA quando ela voltou para o quarto. Varina tirou a capa dos ombros e desmoronou em uma cadeira.

— Ela é a matarh de Nico, com certeza — respondeu Varina. — Eu contei que soube que o filho dela tinha fugido, e que quando nós estivemos em Nessântico, eu vi um menino na rua Crescente. A mulher arregalou os olhos quando ouviu isso e me disse que aquela era a rua onde ela morou até o mês passado. Quando descrevi o menino e a casa, a mulher começou a soluçar. Fiz o possível para evitar que ela voltasse correndo para Nessântico hoje à noite.

— E Talis?

— Talis é o vatarh do menino, e ela é apaixonada por ele, Karl. Isso também era óbvio; na verdade, eu suspeito que a mulher esteja grávida de Talis novamente, pelo jeito que segura o corpo quando fala sobre ele. Seu encontro com Talis o assustou tanto que ele despachou a esposa e Nico para fora da cidade; acho que Talis pensou que você mandaria a Garde Kralji atrás dele. Ela está esperando que Talis venha e que Nico retorne também. — Varina recostou a cabeça, fechou os olhos e suspirou. — Ela não trairá Talis para recuperar Nico, Karl. Honestamente, eu nem abordei essa possibilidade com a mulher. Na verdade, eu tenho certeza de que ela está no quarto agora fazendo as malas e se aprontando para ir embora amanhã para Nessântico, na esperança de encontrar Nico lá. A mulher está agitada e sofrendo desde que o menino foi embora. — Ela abriu os olhos novamente e encarou Karl. — É o que eu faria, no lugar dela. Sinto muito... Eu sei que você queria que eu fizesse, mas... não consegui levar adiante. Não consegui manter o filho da mulher como refém em troca de ela entregar Talis para nós, não quando não sabemos onde Nico está, na verdade. Sinto muito. Eu sei que você suspeita que Talis seja o assassino de Ana, e você tem bons motivos para ter essas suspeitas, mas isso...

Outro suspiro. Varina espalmou as mãos. — Eu não consegui fazer.

Não havia arrependimento na voz ou no olhar de Varina. E Karl descobriu que não conseguia ficar com raiva dela — o embaixador sabia como teria sido a situação com os próprios filhos. Karl podia ter sido um vatarh ruim e ausente para eles, mas se tivesse chegado a esse ponto, ele teria feito o que fosse necessário pelos filhos.

Ao menos era o que ele dizia para si mesmo. Ele se perguntou se era verdade. E se Kaitlin tivesse mandado chamá-lo enquanto Karl estava em Nessântico, enquanto Ana estava viva? E se ela tivesse chamado Karl de volta, pelo bem dos filhos? Será que ele teria ido? Ou teria dado alguma desculpa, teria descoberto alguma razão irresistível para permanecer aqui com Ana.

— Karl? — perguntou Varina. — Você está irritado comigo?

Ele balançou a cabeça e disse — Não se preocupe. Eu compreendo. — Os dedos roçaram os pelos da barba. Ele se sentia velho na noite de hoje. Os ossos estavam frios, e o fogo da lareira não ajudava a aquecê-los. — Eu voltarei com a mulher — falou Karl finalmente, quando o silêncio ameaçou durar tempo demais. — Talvez Talis venha atrás dela. Talvez a mulher saiba onde Talis está escondido.

— Se voltar, a Garde Kralji irá encontrar você, e o kraljiki mandará que seja torturado e executado. Seu corpo balançará em uma das jaulas da Pontica Kralji, com corvos arrancando a carne dos seus ossos.

Karl sentiu um arrepio e envolveu o próprio corpo com braços, que pareciam cansados e fracos. — Você pode ter razão. Mas do que eu estou correndo atrás, Varina? O que eu realmente ganhei por sair de Nessântico? Como encontrarei quem matou Ana em outro lugar? — Ele balançou a cabeça. — Não, eu preciso voltar. Esse não é o método numetodo? Para aprender, é preciso examinar; para compreender, é preciso experimentar. É necessário ter fatos. Ter encontrado a matarh de Nico... — Ele sentiu um arrepio novamente. — É quase como se o fantasma de Ana tivesse me conduzido aqui.

— Você não acredita em fantasmas nem deuses, Karl. Só acredita no que consegue ver, tocar e examinar. Não é este o método numetodo?

Ele deu um leve sorriso ao ouvir isso e falou — Não, eu não acredito em fantasmas, mas é estranho como um pensamento assim é confortante, não é? Quase faz entender o apelo que a religião tem para as pessoas. — Karl respirou fundo. — Ainda assim, eu voltarei.

— Então eu voltarei com você — disse Varina. — Assim como você, não há nada que eu esteja correndo atrás. E você precisará de ajuda.

— Você não precisa fazer isso. O kraljiki fará com você o mesmo que faria comigo... ou pior. Não há motivo para você voltar, afinal... — A voz de Karl foi sumindo.

Varina não respondeu, mas Karl notou o jeito dos lábios, a postura do corpo, viu a maneira com que ela olhava com raiva para ele, e subitamente Karl soube, e a revelação foi dolorosa. — Ah — falou o embaixador. Ele se perguntou como podia ter sido tão cego. Ficou de pé e andou até onde Varina estava sentada. Ele começou a colocar a mão no ombro dela, mas Varina franziu os olhos e ele recolheu a mão. — Varina...

Ela sustentou o olhar de Karl, os olhos castanhos de Varina vasculharam os dele. — Você amava Ana, embora ela nunca tenha correspondido exatamente com o mesmo amor. Ana estava muito envolvida com o que enxergava como a única tarefa da vida dela — falou Varina, baixinho. Ela acenou com a cabeça. Os lábios tremeram, como se quisesse sorrir, depois voltou a fechar a cara. — Bem, eu entendo essa situação, Karl. Entendo muito bem.

— Eu não sei o que dizer.

Varina sorriu então, a expressão tinha o toque de uma emoção escondida que Karl não conseguiu decifrar. — Então você não deve dizer nada. Eu não disse nada que exija uma resposta, a não ser que voltarei com você, não importa o que diga.

Varina sustentou o olhar de Karl sem piscar, até ele concordar com a cabeça. — Tudo bem — falou Karl. Ela concordou com a cabeça, mas não falou nada. O silêncio durou muito tempo e ficou cada vez mais incômodo, os dois olhavam fixamente para o pequeno fogo na lareira. Os pensamentos rolavam na cabeça de Karl: todas as vezes que ele e Varina estavam juntos, os comentários que ela fazia, os olhares, os toques ocasionais, a maneira como ela sempre se desviava de perguntas sobre interesses românticos que pudesse ter, a forma como Varina se atirou no trabalho dos numetodos.

Ele deveria ter sabido. Deveria ter percebido. Mas o silêncio já havia tornado mais difíceis as perguntas que Karl deveria ter feito. Ele pigarreou. — Se... se você voltar comigo para Nessântico, então talvez precise começar a me mostrar mais sobre esse modo ocidental de fazer magia.

Abrigar-se no trabalho para evitar intimidade: era o que Ana sempre fazia, afinal de contas.

 

Allesandra ca’Vörl

ELA ACHOU A HISTÓRIA DE SERGEI fascinante, embora conhecesse bem o homem a ponto de saber que havia detalhes que ele escondia. Allesandra não se importou com isso; ela teria feito o mesmo no lugar dele. Ela fez o mesmo, durante os longos anos que ficou presa em Nessântico. Allesandra gostava da archigos Ana, que a tratou de maneira correta e respeitosa, e era fascinada por Sergei, primeiro pela reputação e pelo nariz de prata, depois — quando passou a conhecê-lo — pela inteligência e personalidade sombria e intrigante.

— Ca’Rudka é um homem interessante e habilidoso, e eu não estaria onde estou agora se não fosse por ele — disse a archigos Ana certa vez para ela, quando se passaram alguns anos de exílio e Allesandra virava uma jovem moça. — Mas você não pode confiar inteiramente nele. Ah, ca’Rudka honra a palavra, mas ele dá esta palavra com cuidado e a contragosto. E manterá a palavra ao pé da letra, mas talvez não fiel ao espírito. Sua verdadeira lealdade é a Nessântico, não a qualquer pessoa dentro dela. Eu não acho que ele ame alguém, não acho que jamais tenha amado. Seus verdadeiros amores são a cidade e os próprios Domínios. E alguns de seus gostos, o que ele tem prazer em fazer... — Ana fez uma careta ao dizer isso. — Eu espero que sejam apenas histórias terríveis, que não sejam verdadeiras.

Allesandra lembrou-se dessa conversa enquanto observava Sergei, agora vestido na moda e cores atuais de Firenzcia. Ele veio a convite de Allesandra para almoçar nos aposentos da a’hïrzg no Palácio de Brezno, e se ficou ofendido com a cuidadosa revista corporal antes que fosse permitido entrar, ou se notou os dois gardai armados que o observavam atentamente de seus postos no cômodo, Sergei não disse nada. Ele sorriu para Allesandra como teria feito para qualquer ca’ em Nessântico e elogiou a apresentação e o gosto da refeição enquanto os criados entravam e saíam, recostou-se na cadeira segurando uma xícara de chá como se estivesse relaxado e à vontade. Sergei contou como foi aprisionado na Bastida e como escapou. Allesandra observou o rosto do homem, as mãos — nenhum deles revelava emoção alguma; ele poderia estar contando uma história que aconteceu com algum parente distante, alguma certa vez.

— Então o embaixador numetodo ajudou você? — Allesandra também se lembrava de Karl ca’Vliomani, que era tão obviamente apaixonado pela archigos Ana, embora ela parecesse tratá-lo apenas como um bom amigo. Allesandra não se importava muito com ele ou com os numetodos, que desdenhavam e debochavam de sua própria crença, que não acreditavam em nenhum deus. Os numetodos acreditavam que o mundo sempre existiu, que era velho de uma maneira impossível, que os processos naturais podiam explicar tudo dentro do mundo; o absurdo e a arrogância da filosofia deles incomodavam Allesandra. — Isso não vai deixar o archigos Semini satisfeito... nem o archigos Kenne, imagino.

— Foi um ato de amizade e nada mais.

— Uma vez, a archigos Ana me disse que todo ato reflete a fé da pessoa que o comete — falou Allesandra. — Você é um numetodo agora, Sergei?

Ele balançou a cabeça. — Não. Eu acredito tão piamente em Cénzi quanto sempre acreditei.

A a’hïrzg perguntou-se se a declaração era uma mera falsidade engenhosa, mas deixou para lá. — Será que o kraljiki Audric pode realmente governar os Domínios? Será que o archigos Kenne pode unir os a’ténis como Ana fazia?

— Só o tempo pode lhe dar essa resposta, a’hïrzg.

— Então me conceda uma especulação.

Sergei deu de ombros. — O archigos Kenne é... fraco. Não apenas fisicamente, mas também quando se trata de confrontar. Ele é um homem bom, moral e fiel, mas é um seguidor, não um líder. É louvável que ele conheça e reconheça este defeito. O Colégio A’téni o elegeu como archigos por causa disso: eles não queriam outro líder forte como Ana. Quanto ao kraljiki Audric... bem, ele é só um menino e tem péssima saúde. Tenho certeza de que a senhora tem seus próprios agentes, que passam relatórios, mas suspeito que eles não contaram toda a história.

Sergei inclinou-se para a frente e pousou a xícara de chá e o pires silenciosamente sobre a mesa. Allesandra viu o próprio reflexo distorcido no nariz dele. — Audric enlouqueceu — falou Sergei, baixinho, e bateu com o indicador na testa. — O quanto ele enlouqueceu, eu não sei. Eu mesmo notei antes de Audric me mandar para a Bastida, e depois meus amigos na corte e na Fé me mandaram notícias. O kraljiki conversa com o quadro de sua mamatarh Marguerite; ele coloca a pintura ao seu lado direito na corte como se ela fosse sua conselheira.

— Sério? — Allesandra gesticulou, e um dos criados correu para encher as xícaras novamente. Ela viu o líquido dourado soltar fumaça em sua xícara. — E ninguém diz nada?

— Os kralji às vezes agem de modo esquisito e às vezes punem aqueles que apontam sua esquisitice. Isso aconteceu muitas vezes na longa história de Nessântico; nós dois podemos citar nomes, tenho certeza. E se o problema não parece afetar os Domínios diretamente... — ele deu de ombros — ... então é melhor não comentar nada... e tomar cuidado. Tenho certeza de que é o que Sigourney ca’Ludovici está fazendo: ela quer o trono e espera a oportunidade para tomá-lo. A maior parte do Conselho dos Ca’ apoiaria Sigourney; o Trono do Sol será dela se Audric morrer ou tiver que ser... removido. Qualquer uma dessas duas é uma possibilidade bem provável nos próximos meses, eu suspeito.

Allesandra concordou com a cabeça. Ela ergueu a xícara, soprou a superfície aromática e tomou um gole com cuidado. Nenhum dos dois falou alguma coisa por vários instantes. — Por que você veio para cá, regente? — perguntou a a’hïrzg, finalmente. — Eu sei o que você disse para meu filho e para o archigos, mas eu acho que tem mais alguma coisa.

Sergei olhou para trás, para os gardai, e não disse nada. — Eles são homens de minha confiança — falou Allesandra. — Meus gardai escolhidos a dedo, estão comigo desde que voltei para Firenzcia. Eu confio totalmente neles. Tenho certeza de que você teve homens sob seu comando em cuja integridade você confiava dessa maneira.

— Pela minha experiência, quase todo mundo tem um defeito que pode ser explorado. Eu aprendi que, quanto menos ouvidos escutam alguma coisa, mais chances há de que as declarações não sejam repetidas.

Allesandra esperou enquanto tomava o chá; Sergei esfregou o nariz e turvou o reflexo da a’hïrzg.

— Como queira — disse ele, finalmente. — Nessântico e os Domínios têm sido a minha vida, a’hïrzg. Esta é uma lealdade a qual não posso e nem irei abrir mão. Meu desejo mais sincero é ver os Domínios restaurados ao que eram na época em que a kraljica Marguerite estava no trono. Eu gostaria de ver a senhora em Nessântico, como a kraljica Allesandra. A senhora pode ser a kraljica que Nessântico precisa agora.

Embora estivesse esperando estas palavras, Allesandra ainda se viu um pouco nervosa. Viu só, vatarh? Viu só? Esse é o legado que o senhor queria, e essa é a promessa que o senhor abriu mão quando me abandonou por Fynn. A emoção de sua resposta interior surpreendeu Allesandra; ela sentiu o calor subir do peito para o rosto. Fez um esforço para não demonstrar nada disso para ca’Rudka. — Sonhar não custa nada — disse a a’hïrzg. — Nós podemos sonhar à vontade. Poder realizar o sonho é uma coisa completamente diferente.

— No entanto, se duas pessoas tiverem o mesmo sonho, e ele coincidir com o de outras pessoas, e se estas pessoas forem poderosas o suficiente... — Sergei sorriu e fechou os dedos sobre a toalha de mesa de renda, como se estivesse rezando. — Este seria o seu sonho também, a’hïrzg? A senhora consegue ver um ca’Vörl no Trono do Sol? Eu sei que seu vatarh tinha essa visão.

Ele sabe. — Vamos deixar este assunto de lado por um momento, regente. Há outras questões envolvidas caso perseguíssemos esse objetivo... e não estou dizendo que estamos. E quanto à fé concénziana? Quem seria o archigos nestes Domínios restaurados que você imagina: Semini ou Kenne?

— Apesar do que eu disse sobre os defeitos dele, eu gosto do archigos Kenne. Ele é meu amigo, sua fé é verdadeira, e, como eu disse, ele é um bom homem.

— Ele pode ser tudo isso, mas Kenne não é um amigo de Firenzcia e, como Ana, ele passaria a mão na cabeça dos hereges. E Semini é meu amigo.

Sergei fez um som contemplativo no fundo da garganta. — Há rumores, a’hïrzg, de que ele talvez seja mais do que isso.

Allesandra ficou vermelha ao ouvir isso. O garda atrás do regente levou a mão ao cabo da espada, mas ela fez que não com a cabeça para o homem. — Você fala abertamente demais sobre rumores e mentiras, regente. Você não pode mais me tratar como uma menina ou uma refém da realeza. Você está em minha terra, e é a sua vida que está em jogo, não a minha. Se essa é a maneira como falava com Audric, então não é de admirar que ele não quisesse mais que você fosse regente.

Sergei abaixou a cabeça, mas não havia desculpas no olhar implacável. — Minhas desculpas, a’hïrzg. Minha estada na Bastida acabou, infelizmente, com minha diplomacia e paciência. Mas esses rumores e mentiras me preocupam de verdade, se formos trabalhar juntos.

— O archigos já tem uma esposa. É tudo o que precisa ser dito, e toda a resposta que você receberá. Quanto ao archigos Kenne... — Allesandra também se lembrava de Kenne ca’Fionta: um homem gentil, quieto, que sempre foi um eficiente subcomandante, mas que nunca questionava o que lhe era pedido ou dizia o que pensava. A a’hïrzg não conseguia imaginá-lo como archigos. Ana também podia ser gentil e carinhosa, mas havia ossos duros e aço sob o veludo, e ninguém gostaria de ser inimigo dela. Allesandra não tinha certeza do que havia sob o exterior de ca’Fionta, mas suspeitava que a avaliação de Sergei era correta.

Mas Semini... Semini podia ser tão inflexível e forte quanto Ana. — Se você quiser a ajuda de Firenzcia — continuou ela —, se quiser a ajuda de nossos ténis-guerreiros, então será o archigos Semini, e não o archigos Kenne, quem reunirá a fé concénziana. Kenne não precisa ser morto; se puder ser convencido a renunciar ao título pelo bem da Fé, talvez até mesmo para se tornar o a’téni de uma das cidades. Eu desconfio que um amigo poderia convencer outro amigo da sensatez desse rumo. Eu espero, pelo bem de Kenne.

Allesandra recostou-se na cadeira. Sergei, pela primeira vez, tinha uma expressão de incerteza no rosto, e ela ficou surpresa com a intensidade da alegria que esta reação lhe proporcionou. A a’hïrzg perguntou-se se era assim que uma kraljica ou hïrzgin geralmente se sentiam, se era uma das dádivas do poder. Uma dádiva ou talvez uma armadilha para aqueles que cediam ao domínio daquela sensação. — Eu sei o que eu trago para você, regente. Eu trago meu nome e minha genealogia. Trago o inigualável exército de Firenzcia, através do meu filho. Trago os temíveis ténis-guerreiros da verdadeira fé concénziana através do archigos Semini. Trago Miscoli, Sesemora e as Magyarias, que obedecem a Firenzcia. Eu trago tudo isso à mesa. O que você traz para nós, regente?

Sergei não respondeu imediatamente. O indicador direito roçou a borda da xícara diante dele, e o regente pareceu observar o desenho das folhas no fundo. — Eu trago conhecimento. Eu conheço a Garde Kralji e a Garde Civile e as forças e fraquezas de seus comandantes. Conheço Nessântico; conheço todos os seus caminhos e segredos. Há aqueles na Garde Civile e na Garde Kralji que responderão se eu chamá-los. Há aqueles entre os ca’ e co’ que farão a mesma coisa. Há chevarittai que virão a mim se eu convocá-los. Pode ser, a’hïrzg, que eu consiga lhe entregar o Trono do Sol com o mínimo de vidas perdidas possível.

— Ora, se é capaz de fazer tudo isso, por que você não é o próprio kraljiki em vez de um refugiado? — perguntou Allesandra, mas ela não deu tempo para Sergei responder. — Se é capaz de fazer tudo isso, o que você quer em troca?

— Nada — respondeu Sergei, e Allesandra ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Dê-me a recompensa que a senhora achar condizente. Eu faço isso apenas por Nessântico, por que sempre empenhei a vida. Uma vez, eu protegi Nessântico da agressão de Firenzcia; agora, eu entregarei Nessântico a Firenzcia livremente. A kraljica Marguerite acreditava no casamento como uma forma de conciliar forças opostas, e eu acredito na mesma coisa, porque o casamento de Nessântico com Firenzcia é tudo que ela precisa agora para sobreviver.

Belas palavras, Allesandra queria dizer, com desdém. A a’hïrzg não tinha certeza se acreditava realmente no homem, mas Cénzi tinha trazido o regente até ela, de maneira totalmente inesperada, um presente irrecusável. — Você é uma jovem inteligente, talentosa e atraente — disse a archigos Ana para ela quando chegou a Nessântico a notícia de que seu vatarh nomeara o menino Fynn como a’hïrzg e se recusara a pagar o resgate exigido pelo kraljiki Justi para sua libertação. Aconteceu em menos de um ano dentro do período de sua prisão cheia de confortos e luxos, e Allesandra chorou de perplexidade e medo. Ana, a inimiga, abraçou e confortou Allesandra, fez carinho em seu cabelo e acalmou a menina novamente. — Eu sei que Cénzi tem um plano para você. Eu sinto isso, Allesandra. Há um grande papel para você cumprir ainda na vida...

Allesandra cumpriria esse papel. Ela teria aquilo que um dia seu vatarh lhe prometeu: o colar reluzente de Nessântico. Aquele era o motivo pelo qual Sergei ca’Rudka tinha aparecido neste momento.

— Veremos, regente ca’Rudka — foi tudo que Allesandra disse para ele agora. — No fim, será como Cénzi quiser...

 

Niente

NIENTE ESTAVA NA ENCOSTA de Karnor com o tecuhtli Zolin e seus guerreiros supremos, com a cidade estendida embaixo, e ele viu a cena que tinha vislumbrado na tigela.

As janelas do templo logo abaixo de Niente estavam quebradas, pareciam olhos arrancados no crânio de um prédio em ruínas. A fuligem escurecia as pedras em volta, uma fumaça imunda ainda subia entre elas. O meio domo de ouro estava quebrado, a alvenaria dourada, desmoronada. Chamas disparavam para o alto em uma dezena de pontos da cidade, mais intensas do que o sol do poente.

O ataque ocorreu facilmente e com rapidez. Assim que eles viram as encostas da grande ilha de Karnmor dos orientais, Niente reuniu os nahualli que podiam controlar o vento e o céu, e eles conjuraram uma muralha de bruma espessa para esconder a frota tehuantina enquanto ela se aproximava. A neblina envolveu os tehuantinos em um ar branco acinzentado e abafou os barulhos dos preparativos. Quando a bruma mágica acabou e foi soprada pelo vento, o Yaoyotl — com a bandeira da águia dos tehuantinos — já estava na boca do porto de Karnor, com os navios coirmãos espalhados em duas grandes alas de ambos os lado. O porto de Karnor era extenso e fundo, aninhado em penhascos de braços rochosos com a cidade empoleirada bem ao longe, a quilômetros de distância.

Um punhado de navios da marinha dos Domínios estava ancorado ali, e eles foram manobrados para encarar o ataque enquanto as embarcações pesqueiras e de lazer fugiam para um lugar seguro. Niente teve que admirar a bravura dos capitães dos Domínios: diante de uma força imensamente superior, eles não fugiram, mas se voltaram para confrontá-la diretamente, com suas bandeiras azuis e douradas tremulando no topo dos mastros. Ainda assim, foi um massacre. O vento do mar veio atrás da frota tehuantina, e os navios dos Domínios tiveram que avançar lentamente contra o vento. Os ténis-guerreiros a bordo dos galeões dos Domínios tiveram pouco tempo para preparar os feitiços — talvez mais poderosos que aqueles dos nahualli, mas lentos de serem criados, e Niente tinha passado o dia exigindo de seus nahualli. Os cajados mágicos estavam cheios, as areias negras já preparadas. Os feitiços dos nahualli foram capazes de desviar a maior parte do fogo disparado pelos ténis-guerreiros para longe dos navios tehuantinos, embora a embarcação ao lado do Yaoyotl tivesse levado um tiro em cheio que se espalhou como uma monstruosa onda de fogo e destruição pelos conveses e fez dezenas de homens pularem aos gritos nas vagas frias. O disparo fez o navio pegar fogo e encalhar, de maneira que as embarcações atrás tiveram que se virar de repente para evitá-lo.

O tecuhtli Zolin estava no convés e berrava ordens do castelo de popa; os navios tehuantinos responderam com enormes dardos com cápsulas de areia negra na ponta lançados dos conveses: as catapultas dispararam os projéteis faiscantes na direção dos defensores de Karnmor; as cápsulas, encantadas com feitiços de fogo, explodiram com o impacto, o que estilhaçou tábuas e arrancou braços e pernas ensanguentados de marinheiros azarados. Os navios de Nessântico fracassaram, as velas estavam em chamas ou penderam quando perderam o vento sob o ataque. O tecuhtli Zolin gritou ordens e um segundo bombardeiro de projéteis de fogo varreu os inimigos.

Eles deixaram os defensores na retaguarda como nada mais do que carcaças consumidas pelo fogo até a linha-d’água, e a frota tehuantina avançou para o porto interno da cidade. Os soldados de Karnor estavam reunidos ali sob o comando de uns poucos chevarittai a cavalo, mas o tecuhtli Zolin berrou ordens mais uma vez, e as catapultas dispararam seus terríveis mensageiros em meio aos inimigos, as explosões fizeram tremer os morros íngremes onde Karnor foi construída e atearam fogo entre os prédios. Os soldados e os nahualli deram gritos de vitória quando se aproximaram do porto, o som dos homens batendo os cajados mágicos e as espadas nos escudos era aterrorizante. Niente gritou ao lado deles, a própria garganta estava rouca por causa dos berros e da fumaça da batalha. Ele viu moradores fugirem pelas ruas em turbas desorganizadas que subiam e se afastavam do repentino conflito da batalha no porto, enquanto pranchas eram descidas e expeliam soldados tehuantinos. Eles avançaram aos gritos, os rostos tatuados estavam furiosos e alegres ao mesmo tempo. O tecuhtli Zolin liderava os homens, a escada curva reluzia à luz do sol e a voz desafiava o inimigo à espera. Niente e seus nahualli correram atrás dos soldados, seus cajados mágicos emitiam um brilho branco ao disparar raios nas fileiras dos soldados. O próprio cajado de Niente se esgotou rapidamente, ele pegou o conjunto de garras de águia que estava amarrado nas costas, girou o tubo de marfim para ativar o feitiço de fogo por contato e jogou os artefatos sobre as primeiras fileiras de soldados para que explodissem no meio dos inimigos. Em um momento, um soldado ferido de Nessântico levantou-se do chão quando Niente passou por cima dele. Por sorte, o homem estava fraco por conta dos ferimentos, e o nahual conseguiu se desviar da estocada vacilante da espada. Ele sacou a faca do cinto e passou o gume afiado na garganta exposta do sujeito antes que o soldado pudesse se recuperar. O sangue quente jorrou sobre a mão de Niente, e o homem soltou um grito gorgolejante ao desmoronar pela última vez. Uma facada forte na lateral do pescoço do soldado acabou com ele, e Niente levantou-se para descobrir que a batalha estava praticamente encerrada, os defensores recuando para o interior da cidade e sendo perseguidos pelos tehuantinos.

No momento em que o sol se pôs — vermelho e melancólico em meio à fumaça da cidade em chamas —, Karnor era dos tehuantinos, ou o que tinha sobrado da cidade. Embaixo dele, Niente ouviu gritos e gemidos fracos enquanto os tehuantinos saqueavam a cidade e matavam quem encontrassem por lá. Mais embaixo ainda, no porto, os porões dos navios tehuantinos estavam sendo preenchidos com a riqueza da cidade.

Niente estava com o tecuhtli Zolin e os guerreiros supremos tehuantinos Citlali e Mazatl. Ali perto, vigiados por guerreiros tatuados, o comandante e três offiziers superiores dos defensores estavam ajoelhados, amarrados e amordaçados. Os prisioneiros encaravam a fogueira armada pelos nahualli sob orientação de Niente e olhavam para o altar plano de pedra do Templo de Karnmor, que Niente tinha ordenado que fosse arrastado até o cume do monte Karnmor.

Quatro garras de águia, com os chifres cheios de areia negra, foram colocadas no centro do altar de pedra. Os prisioneiros olhavam fixamente, sobretudo para elas.

— Esses orientais — comentou o tecuhtli Zolin — são péssimos guerreiros. Eles correram como crianças assustadas. — Ele olhou novamente para os prisioneiros com uma expressão de desdém. O tecuhtli usava sua armadura de couro e bambu, com um talho aqui e ali de uma lâmina inimiga, e os tubos roliços chacoalhavam baixinho enquanto ele se mexia. A armadura estava respingada e manchada de sangue, embora pouco parecesse ser de Zolin. O sol tinha se posto completamente agora, e a lua surgiu a leste...

Zolin olhou na direção da lua. — Axat sequer aceita a oferta desses incompetentes.

Niente lembrou-se das batalhas em volta do lago Malik e balançou a cabeça. — Tecuhtli, eles foram pegos de surpresa e não estavam preparados para nós. Isso não acontecerá novamente. Os rumores do que aconteceu aqui chegarão ao kraljiki e aos comandantes do exército oriental. Talvez... — Ele hesitou, não queria dizer as próximas palavras. — Talvez seja melhor pegarmos o que conseguimos aqui e voltarmos para casa.

O tecuhtli Zolin deu uma gargalhada debochada. — Voltar? Agora? Quando estamos aqui, na fumaça da vitória, exatamente como você previu? Nahual Niente, você me desaponta. Eu vim aqui desafiar esse kraljiki que manda seu povo roubar a terra de nossos primos, mas sequer lidera o próprio exército. Citlali, Mazatl, o que vocês me dizem?

Mazatl já estava de cara amarrada, a luz da fogueira banhava o rosto marcado. Assim como Zolin, ele ainda usava a armadura surrada e ensanguentada. — Eu digo que estou contente por estar em terra firme, mesmo aqui. Voltar para o mar? — O supremo guerreiro cuspiu nas pedras aos pés. — Eu vim para lutar, não velejar. Eu digo para darmos a Axat o que Ela ganhou aqui e depois seguirmos em frente. — Citlali concordou com um murmúrio, mas parecia estar menos convicto.

Os nahualli e guerreiros reunidos perto do fogo já haviam começado o cântico baixo e assustador da prece à Axat. O luar brilhou forte sobre o altar de pedra e reluziu nas pontas grossas de vidro das garras de águia. Niente acenou com a cabeça para Zolin.

Dois nahualli agarraram um dos prisioneiros e arrastaram o homem para frente. O offizier choramingava de medo e invocava Cénzi. Os nahualli colocaram o homem sobre o altar de pedra, de joelhos. Ele ergueu os olhos para Niente, aterrorizado. — Vá bravamente para sua morte — disse o nahual para o oriental em sua própria língua ao pegar uma garra de águia. Ele girou a ponta do chifre, e o fatídico clique soou alto quando o feitiço foi ativado. — Reze para o seu deus. A morte será rápida. Eu lhe prometo ao menos isso. — Niente acenou novamente com a cabeça, e os nahualli seguraram firmemente os braços do homem, que fechou os olhos e moveu os lábios em uma prece silenciosa.

O nahual abriu a própria mente para Axat e para o brilho da lua, depois pressionou a boca ossuda da arma no estômago do homem. O som do disparo da garra de águia ecoou pela cidade.

 

Allesandra ca’Vörl

JAN QUASE PARECIA ASSUSTADO, os olhos tão arregalados que era possível ver o branco em volta da íris. — Matarh... levar o exército contra os Domínios... eu não sei.

— Eu compreendo o perigo — falou Allesandra. — Sim, é um grande passo para ser dado assim tão cedo no seu período como hïrzg, e entendo como deve estar se sentindo. Você precisaria confiar na capacidade do starkkapitän ca’Damont; mesmo assim, isso seria um teste maior do que tudo o que você já fez na vida. Mas, Jan, eu sei que é algo que você é capaz de fazer. Levar o exército à guerra é algo que você terá que fazer eventualmente, como quase todo hïrzg de Firenzcia já fez. Até mesmo seu vatarh lhe diria isso. Fynn tinha 18 anos, era apenas dois anos mais velho do que você, quando levou o exército à guerra pela primeira vez. — Ela acenou a cabeça para Semini, que estava sentado em silêncio na própria cadeira. Os três estavam nos aposentos de Allesandra. Os criados foram dispensados após servirem o jantar, cujas sobras ainda decoravam a mesa entre eles. — Semini sabe — disse Allesandra. — Ele comandava os ténis-guerreiros quando seu vavatarh Jan quase tomou Nessântico.

— E ele teria conseguido se aquela archigos herege desprezível não tivesse usado sua magia dos numetodos contra nós — resmungou Semini. O archigos pareceu um urso mais do que nunca, curvado na cadeira. Ele bateu de leve no prato, mas teve o cuidado de desviar o olhar de Allesandra.

A a’hïrzg ainda se lembrava do choque daquela noite: ela estava na tenda, sentada no colo do seu vatarh. — Você é meu passarinho — dizia Jan — e eu amo... — Então a voz foi interrompida e, impossivelmente, ela estava do lado de fora, longe do acampamento, esparramada no chão molhado de chuva, à noite, enquanto a archigos Ana e um homem estranho qualquer lutavam um contra o outro com uma magia do Ilmodo que Allesandra pensava ser impossível. Sim, ela lembrava-se muito bem daquilo e sabia que sua captura foi a razão do fracasso de seu vatarh, e que Jan culpava Allesandra por isso.

— Ah, os Domínios ainda têm que responder por muita coisa — continuou o archigos, que olhava apenas para Jan. Ele bateu de leve na toalha de mesa com o punho. — Eu aguardo ansiosamente para cobrar o pagamento. Hïrzg Jan, estou pronto para ser seu braço direito, com todos os ténis-guerreiros da fé concénziana comigo.

Jan ainda parecia inseguro, e Allesandra esticou o braço para afagar a mão do filho. — Jan, no fim esta deve ser uma decisão sua, não minha. Eu não sou o hïrzg, você é.

— A senhora não quis isto quando podia tê-la — disse Jan ao tocar na coroa dourada de hïrzg na cabeça. — E, no entanto, agora a senhora quer... — Ele parou abruptamente. Pestanejou. — Ah. — Franziu os olhos.

Allesandra ficou preocupada com a expressão no rosto do filho. — Pense no que podemos conseguir juntos, Jan — falou ela, às pressas —, com a mesma família no Trono do Sol e no trono de Firenzcia. Nós podemos unificar os Domínios e criar um império maior e mais pacífico do que o de Marguerite.

Jan não disse nada. Ele olhou de Semini para Allesandra, depois ficou de pé e andou rapidamente até a porta. — Jan? — chamou Allesandra, e o hïrzg parou ali. Ele falou sem se virar para a matarh.

— Eu começo a entender um pouco o que o vatarh falou sobre a senhora antes de ir embora, matarh. Ele me disse que a senhora usava as pessoas para seus próprios objetivos; disse que este era exatamente o mesmo jeito do seu próprio vatarh, e que isso não era assim tão surpreendente. Ele disse que esse comportamento foi que tornou o vavatarh um hïrzg competente, mas um amigo perigoso. Eu me pergunto se um dia poderei ser um hïrzg assim tão bom. Eu me pergunto se um dia terei vontade de ser. — Jan bateu na porta, que foi aberta pelos criados do corredor.

Allesandra ficou de pé e afastou-se da mesa; começou a ir atrás dele enquanto os pratos batiam e as taças tremiam. — Jan, fique. Por favor. Fale comigo.

Jan balançou a cabeça e saiu sem dizer outra palavra, a porta foi fechada.

Allesandra ficou parada no centro da sala de jantar e não conseguiu conter o soluço. Eu nunca tive a intenção de magoá-lo. Eu não quero magoá-lo. Ao mesmo tempo, a a’hïrzg considerou a declaração do filho: será que ela cometeu um erro ao colocá-lo no trono do hïrzg? Será que enxergava Jan com os olhos de uma matarh e não com os olhos da verdade? Allesandra sentiu as mãos de Semini em seus ombros e percebeu que ele havia se levantado para ficar atrás dela. — Não se preocupe, Allesandra. — As palavras do archigos eram um rugido baixo no ouvido. — Deixe o menino sozinho por um tempo e lembre-se que, em muitos aspectos, ele ainda é um menino. Jan sabe que você está certa, mas neste momento ele acha que você lhe deu a coroa de hïrzg como um prêmio de consolação.

— Não foi assim, de verdade. — As lágrimas ameaçaram cair, e Allesandra fungou e piscou para contê-las. — Eu amo Jan, Semini. Amo mesmo. Ele não faz noção do quanto. Eu fico magoada de vê-lo com raiva de mim. Não era o que eu pretendia.

— Eu sei — sussurrou o archigos. — Eu falarei com ele. Posso convencê-lo de que você está certa.

Ela meneou a cabeça enquanto olhava fixamente para a porta. — Eu preciso ir atrás dele.

— Se fizer isso, vocês dois apenas acabarão tendo uma discussão ainda pior. Vocês dois são muito parecidos. Dê um tempo para Jan se acalmar e pensar sobre a situação, e ele perceberá que exagerou na reação. Pode até ser que se desculpe. Dê um tempo. Deixe que ele fique com raiva agora.

As mãos de Semini massagearam os ombros de Allesandra. Ela sentiu os lábios do archigos roçarem o cabelo na nuca e deixou a cabeça pender para frente em resposta. — Ele é meu filho. Eu fico magoada quando ele está magoado.

— Se você conseguir o que quer, então essa é uma situação que poderá vir a ter que aceitar. Os kralji de Nessântico e os hïrzgai de Firenzcia sempre tiveram suas diferenças e seus interesses separados. Se não quiser um conflito entre você dois, é melhor abandonar essa ideia.

Allesandra ficou tensa sob as mãos que a massageavam, e Semini riu. — Pronto, viu só. Jan não é o único que se irrita quando alguém lhe diz o que fazer. — Ele continuou a trabalhar os músculos dos ombros da a’hïrzg. — Eu estou com você, meu amor, mas também tenho ambição. Eu quero ser o archigos da fé concénziana unificada e quero me sentar no Trono de Cénzi no Templo do Archigos e ser a sua Mão da Verdade. E quero ser mais do que isso, Allesandra. Quero ser o archigos ca’Vörl.

Ela virou-se para Semini e encontrou o rosto dele perto do seu. Allesandra beijou os lábios do archigos sem paixão. — Semini...

— Você disse para Jan pensar no que vocês dois poderiam conseguir juntos como a mesma família nos dois tronos. Eu lhe peço que considere o que poderia ser feito se a mesma família não só controlasse os tronos políticos, mas também o da fé concénziana.

— O que você sugere não é possível — falou Allesandra. — Tem o Pauli. E Francesca. Sim, eu adoro os momentos secretos que passamos juntos e gostaria que fosse de outra forma, mas não é. Semini, o que pareceria se o archigos dissolvesse o próprio casamento e o matrimônio da a’hïrzg em nome do próprio interesse? O que diriam os ca’ e co’, mesmo que em segredo? Que mal isso faria à Fé e ao Trono do Sol?

— Eu sei. — Semini rosnou e deu um passo para trás. — Eu sei. Mas meu casamento com Francesca foi político desde o início; nunca houve amor entre nós, nem muita intimidade realmente, depois dos primeiros anos e os abortos. Orlandi insistiu que eu tinha que casar com sua filha, e ele era o archigos, e seu vatarh pensou que seria bom também, e você era... — Semini fez uma pausa. — Sei que sou muito mais velho do que Pauli, Allesandra, mas eu pensei...

— A nossa diferença de idade não significa nada. — Allesandra esticou a mão para tocar no rosto do archigos, a barba grisalha sob os dedos era surpreendente. — Semini... Eu gosto mesmo de você. Eu adoro o que nós temos, mas isso tem que bastar. O que você sugere... seria um erro terrível.

— Seria? Eu não acredito nisso, Allesandra. Se você soubesse o quanto eu lutei com essa ideia, se soubesse como rezei para Cénzi... — Semini balançou a cabeça sob os dedos dela e disse — Não seria um erro. Como poderia ser, se existem sentimentos verdadeiros entre nós? Você pode me dizer que esses sentimentos são unilaterais e que nosso caso é simplesmente uma questão de conveniência para você? É assim, Allesandra? Diga-me. Diga-me a verdade.

Allesandra encarou Semini, que ainda tinha o rosto nas mãos dela, e sussurrou — Unilaterais? Não.

Ele soltou um longo suspiro de alívio, praticamente uma palavra ou soluço, e depois beijou Allesandra, que devolveu o beijo. Ela abandonou a si mesma e as preocupações sobre Jan e o que poderia acontecer na paixão que a envolveu.

 

Jan ca’Vörl

JAN DEIXOU O SUOR PINGAR enquanto estocava e defendia com a espada contra um oponente invisível. Às vezes era Semini, às vezes era sua matarh, às vezes era o fantasma de Fynn ou do vavatarh. Jan colocou toda a raiva para fora no treino. Golpeou, girou o corpo e estocou até todos os fantasmas estarem mortos e os músculos arderem.

Finalmente, Jan embainhou a espada e parou com as mãos nos joelhos, ofegante. Ele ouviu um aplauso baixo e irônico atrás de si e se virou. Gotas de suor voaram do cabelo molhado. O hïrzg viu Sergei ca’Rudka parado à porta da sala de treino, com dois gardai atrás dele. — Como...? — Jan começou a perguntar quando ca’Rudka sorriu.

— Eu perguntei ao assistente Roderigo onde o senhor estaria. Não deixaram que eu viesse sem meus amigos, de qualquer forma — acrescentou Sergei ao gesticular para os gardai solenes e carrancudos que o acompanhavam. Ele entrou na sala comprida e apertada, com paredes de bronze lustroso, uma estreita fileira de bancos ao longo do outro lado e espadas de madeira para treino expostas em suportes em um canto. — O senhor teve um bom professor de armas, embora isso valha menos do que imagina.

Jan pegou uma toalha de um cabide perto das espadas e secou o suor da testa. — O que você quer dizer, regente?

— O senhor pode ter todas as habilidades técnicas, e o senhor possui, de fato, mas elas valem pouco ao se enfrentar um oponente de verdade, que queira lhe matar.

O jeito com que ca’Rudka fez o comentário, em um tom superior e professoral, reacendeu a raiva de Jan. Todos agiam de maneira superior a ele. Todos lhe diziam o que fazer, como se ele fosse estúpido para entender qualquer coisa sozinho. Jan torceu o nariz e jogou a toalha no canto. — Mostre-me — falou ele para Sergei. — Prove.

— Hïrzg... — alertou um dos gardai, mas Jan olhou com ódio para o homem.

— Cale-se — disse Jan. — Eu sei o que estou fazendo. — Ele indicou o suporte de espadas de madeira com a cabeça. — Mostre-me, regente. É fácil dizer banalidades.

Sergei fez uma mesura, como se cumprimentasse um parceiro de dança. Ele deu uma olhadela para os gardai e foi até o suporte. Jan observou o regente: o homem tinha a postura de um velho e fez uma careta ao se abaixar para puxar uma das espadas de treino e examiná-la. — Certa vez, o grande espadachim co’Musa disse que a experiência é geralmente melhor do que a habilidade crua — falou Sergei. — Há uma história que, em um duelo, co’Musa matou seu oponente apenas com uma espada de madeira. Assim como o senhor, o adversário estava armado com aço.

Ambos os gardai avançaram, meteram as mãos nas próprias armas e colocaram-se entre o hïrzg e ca’Rudka, mas Jan fez um gesto para que se afastassem e disse — Você não é co’Musa.

— Não sou — respondeu ca’Rudka. Ele deu um leve golpe no ar com a lâmina de madeira. Foi uma estocada desajeitada, e Jan notou como ca’Rudka pegava no cabo com a mão um pouco virada embaixo; seu antigo professor, lá em Malacki, teria corrigido o homem imediatamente, se tivesse visto aquilo. “Com a mão desse jeito, o senhor não tem alcance”, teria dito ele. Mas Sergei já havia assumido uma postura, com a espada abaixada e as pernas juntas demais. — Quando o senhor estiver pronto, hïrzg Jan — falou ca’Rudka.

— Comece — disse Jan.

Dito isso, Sergei começou a erguer a espada: devagar, quase desajeitado; o movimento de um amador. Jan torceu o nariz e afastou desdenhosamente a arma do homem com sua própria. Mas a esperada resistência de lâmina contra lâmina não ocorreu: ca’Rudka abrira a mão. Jan ouviu a espada de madeira bater nos ladrilhos do piso, viu quando ela escorregou até acertar a parede revestida de bronze. O golpe de Jan arrancou a arma do regente, sim, mas sem a resistência, o ataque se lançou mais para a esquerda do que deveria, e o hïrzg viu um movimento de roupa escura e sentiu as mãos de ca’Rudka baterem de leve nos dois lados do pescoço antes que pudesse reagir. O homem estava diretamente à sua frente, com o nariz de metal tão próximo que o rosto do hïrzg preencheu a superfície refletora. Ca’Rudka agarrou a gola da tashta de Jan com as duas mãos, deu um passo e imprensou o hïrzg contra a parede. A espada de Jan era inútil em sua mão: o regente estava próximo demais.

— Viu só, hïrzg Jan — ca’Rudka quase sussurrou —, alguém que queira matar o senhor não se preocupará com regras e educação, apenas resultados. — O hálito era quente e cheirava à menta. — Eu poderia ter esmagado sua traqueia com aquele primeiro golpe ou poderia ter uma faca na outra mão. De um jeito ou de outro, o senhor já estaria nos últimos suspiros.

Sergei afastou-se e soltou Jan quando foi agarrado por trás pelos gardai, com violência. Um deles socou ca’Rudka com a manopla, e o velho regente desmoronou sobre um joelho, ofegante. — Mas o senhor é um espadachim melhor do que eu, hïrzg. — Ele terminou de dizer, no chão. — Eu admito livremente. — O garda preparou o punho para dar outro soco, mas Jan ergueu a mão.

— Não! — disparou o hïrzg. — Vão embora! Vocês dois!

Os gardai olharam para ele, assustados. Os dois começaram a protestar, mas Jan gesticulou novamente para a porta. Depois que se curvaram e saíram, Jan foi até ca’Rudka e ajudou o homem a se levantar. — Você é realmente um espadachim tão ruim assim, regente?

Ca’Rudka conseguiu sorrir ao colocar a mão na lateral do corpo, inclinado para frente enquanto tentava recuperar o fôlego, e respondeu — Não, mas fiz o senhor pensar que eu era. — Ele respirou fundo pela boca e gemeu. — Por Cénzi, essa doeu. Acredito que minha lição tenha ficado bem clara?

— Que as pessoas podem mentir e me enganar para conseguir o que querem? — Jan deu uma risada amarga. — Você não é o único que está tentando me ensinar essa lição.

— Ah. — Ca’Rudka pareceu considerar a informação. Ele não disse nada e esperou.

— Minha matarh e o archigos parecem achar que agora é o momento de atacar Nessântico.

Ca’Rudka deu de ombros, depois fez outra careta. — O senhor quer admitir isso para um espião em potencial que está entre vocês, hïrzg? Ora, eu poderia mandar uma mensagem para o kraljiki.

— Você não mandará.

Sergei ficou com o rosto impassível ao ouvir isso. Ele piscou sobre o nariz de prata. — O senhor já considerou que sua matarh e o archigos podem estar certos?

— Você concorda com eles?

— Honestamente, eu preferia que não houvesse guerra de maneira alguma, que nós resolvêssemos as diferenças de outra forma. Mas se eu fosse a sua matarh... — Ele deu de ombros. — Talvez pensasse a mesma coisa.

— Então você acha que eu devo dar ouvidos a eles?

— Eu acho que o senhor é o hïrzg, e, portanto, deve tomar a própria decisão. Mas também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.

Jan desviou o olhar do homem. Ele podia se ver nos espelhos de bronze da sala, a imagem era ligeiramente distorcida nas ondas do metal fino. Jan ainda segurava a espada. Ele foi até a parede onde a arma de ca’Rudka tinha ido parar. Abaixou-se e pegou a espada de treino, depois jogou para o homem.

— Mostre-me outra coisa — disse o hïrzg. — Mostre-me como a experiência é capaz de vencer a habilidade crua.

Ca’Rudka sorriu. Ele pegou a espada, e dessa vez seus movimentos foram ágeis e graciosos. — Tudo bem. Fique em posição...

 

Nico Morel

APÓS PASSAR VÁRIOS DIAS com a mulher, Nico decidiu que ela era muito esquisita, mas também fascinante. A mulher era boa com ele. Ela alimentava bem o menino, conversava com ele — longas conversas em que Nico se viu contando tudo sobre sua matarh e Talis, que ele e a matarh fugiram de Nessântico, que ele odiava seu onczio e os primos, como fugiu do vilarejo e foi ajudado pelo regente e Varina...

A mulher passeava com Nico durante o dia pela velha vizinhança, e ele torcia para que visse Talis ou sua matarh.

Mas não viu. — O nome de seu vatarh é Talis Posti? — perguntou a mulher na primeira noite, e o menino contou sua história. — Tem certeza disso? E ele está aqui na cidade? — Nico concordou com a cabeça, e ela não falou mais nada.

A mulher disse que seu nome era Elle, mas às vezes parecia não notar quando Nico a chamava pelo nome. Às vezes, no meio de uma conversa, ela respondia a um comentário inaudível ou se dirigia ao vento como se falasse com ele. Em público, Elle dava a impressão de se encolher e parecer velha e frágil, mas na privacidade dos aposentos, a mulher era completamente outra pessoa: mais jovem, forte, atlética e cheia de vida. Ela mantinha armas no quarto: uma espada encostada em um canto perto da porta e outra ao lado da cama, e havia várias facas com gumes cruelmente afiados — a mulher quase sempre tinha duas ou mais com ela. Nico observava Elle afiar as armas à noite com uma pedra de amolar. Observava o rosto e a concentração apaixonada enquanto afiava os gumes, que provocavam arrepios em Nico.

Elle tinha uma bolsinha de couro no pescoço que não tirava nunca. Estava sempre debaixo da roupa, e à noite ela a pegava firme com a mão, como se tivesse medo de que alguém a roubasse. Nico imaginava se a mulher também não tirava a bolsinha quando tomava seu banho diário na banheira de cobre da sala de estar. O banho em si era estranho, pois o menino jamais tinha visto alguém tomar banho mais do que uma vez por semana, nem mais que uma vez por mês. Sua matarh sempre dizia que tomar banho demais deixava a pessoa doente. Talvez, pensou Nico, fosse isso que havia de errado com Elle.

De vez em quando, a mulher mandava que ele ficasse no apartamento alugado e saía sozinha — geralmente à noite. Ela ficava ausente por várias viradas da ampulheta, e geralmente Nico dormia enquanto esperava que ela voltasse. O que quer que Elle fazia naquelas noites, ela nunca contava para ele.

A noite de hoje tinha sido uma dessas. — Nico... — O menino sentiu a mão dela sacudindo seu corpo e pestanejou ao olhar para o rosto da mulher, iluminado pelas velas contra a escuridão do quarto. — Levante-se.

— Por que, Elle? — resmungou Nico com sono. Estava gostoso e quentinho debaixo das cobertas. Ela não respondeu; já tinha ido na direção da porta do quarto.

— Eu quero que você venha comigo — falou ela. De má vontade, Nico empurrou as cobertas para o lado e saiu do colchão de palha. — Sapatos — disse Elle quando ele começou a ir em sua direção descalço. Nico calçou as botas gastas, e a mulher abriu a porta. — Fique comigo. — Ela deu a ordem ao pegar sua mão, e os dois saíram noite afora.

Nico sabia que Nessântico nunca dormia, não completamente. Não importava a hora do dia ou da noite, havia pessoas pelas ruas do Velho Distrito. Mas à noite os cidadãos eram mais perigosos do que de dia, como sua matarh lhe dissera. — Você vai entender melhor quando crescer — falara ela, mais de uma vez. — A noite é uma máscara que a cidade coloca quando quer fazer coisas que não deveria. O que as pessoas fazem à noite... bem, às vezes elas precisam da escuridão para esconder. — Nico vislumbrou um pouco disso recentemente, sozinho no Velho Distrito, antes de ser encontrado por Elle. Testemunhou a fala pastosa e o passo vacilante dos frequentadores de tavernas; viu os encontros acompanhados por gemidos nos becos escuros; vislumbrou ataques rápidos e violentos; testemunhou as trocas furtivas de moedas tilintantes por embrulhos. Nico ficou próximo de Elle enquanto andavam pelas ruas, que estavam animadas por aqueles que usavam a máscara da noite.

Ela andava rapidamente, tão rápido que o menino teve que correr um pouco para acompanhá-la. Os dois cruzaram uma esquina do centro do Velho Distrito e entraram no emaranhado de vielas que iam para sudoeste, na direção do rio, e os prédios de cada lado ficaram cada vez mais velhos, próximos e menores, como se quisessem permanecer juntinhos à noite para se esquentar. Nico ficou rapidamente perdido. Não havia luzes mágicas aqui, apenas algumas lâmpadas ocasionais colocadas nas janelas de tavernas e bordéis. Duas vezes os dois passaram por um utilino, e Elle encolheu o corpo, fez com que parecesse menor e mais velha, e o cumprimentou com uma voz rouca que não parecia de forma alguma com a própria.

Finalmente, Elle puxou o menino para a escuridão de um beco e ajoelhou-se ao lado dele. — Escute, Nico. Preciso que você fique muito, muito quietinho agora. Tem que tomar cuidado ao andar para que ninguém escute seus passos, e não pode falar. Não importa o que você veja ou aconteça. Entendeu? — Na luz fraca do luar, ele enxergou o branco dos olhos, e o olhar de Elle sério e solene.

Nico concordou com a cabeça. Ela pegou a mão do menino e apertou uma vez, com delicadeza. — Muito bem, vamos.

Os dois prosseguiram mais adiante pelo beco até uma portinha meio empenada nas dobradiças enferrujadas. Elle meteu a mão debaixo do manto; quando a mão surgiu novamente, os dedos tinham um bocado de uma substância escura que ela passou nas dobradiças. A mulher empurrou a porta, que abriu relutantemente, porém em silêncio. Elle entrou e fez um gesto para Nico segui-la.

O cheiro no interior provocou ânsia de vômito no menino: havia algo morto e apodrecendo por perto, e pelo menos uma vez ele ficou contente por estar escuro demais para ser capaz de enxergar direito, embora sentisse medo de tropeçar no que estivesse morto ali. Elle pegou Nico pela mão novamente, e ele seguiu de perto a mulher até uma escada que mal conseguiu ver. Os dois subiram e chegaram a uma porta; o menino viu Elle inclinar-se ao seu lado e mexer por alguns momentos com uns pedaços de arame dentro da fechadura. Houve um clique baixinho, e Elle empurrou a porta devagar. Nico viu-se andando rápido atrás dela por um corredor estreito e escuro até parar diante de uma porta. — Quando eu abrir estar porta — sussurrou a mulher com voz rouca —, eu preciso que você fique aqui no corredor. Não se mova, não importa o que aconteça. Não diga nada. Apenas escute. Escute. Entendeu?

Nico concordou com a cabeça, calado. Elle novamente se agachou ao lado da porta com os arames; outra vez houve um clique. Ela abriu e entrou de mansinho, deixou a porta aberta. O menino não conseguiu ver nada lá dentro, embora tivesse apertado os olhos com força. Alguém no cômodo respirava alto, como se estivesse dormindo. A própria respiração de Nico parecia terrivelmente alta, e se Elle estivesse fazendo algum barulho ao andar pelo aposento, ele não foi capaz de escutar. O menino segurou o batente assustado e com vontade de desobedecer Elle e chamá-la, mas o medo sufocou a garganta.

Houve um barulhinho, um grunhido de susto, e depois a voz de Elle. — Isso mesmo. — Nico ouviu alguém falar baixinho, parecia um pouco com Elle, mas o tom de voz era grave e baixo. — Isso é uma faca no seu pescoço, e se gritar, ou sequer mexer as mãos, você morre. Faça o que eu disser e talvez você viva. Se entendeu, balance a cabeça. — Houve outra pausa, e então: — Ótimo. Eu sei quem e o que você é. Andei de olho em você. Agora, eu quero saber outra coisa. Conhece um menino chamado Nico Morel? Responda: sim ou não. E baixinho.

Nico arfou ao ouvir o próprio nome. Ele escutou a pessoa meio que sussurrar uma resposta: — Sim.

Com aquela única palavra, o menino reconheceu a voz: Talis. Ele quase pulou dentro do quarto, mas se lembrou do aviso de Elle e permaneceu agachado ao lado da porta.

— Ótimo. Você ainda continuará vivo — sussurrou a mulher para Talis. — Ah! Não se mexa; lembre-se do que eu disse. Eu odiaria que você se cortasse acidentalmente. Você dividiu a cama com a matarh do menino?

— Sim.

— Você a ama? Responda de verdade agora.

Houve uma hesitação, e Nico ficou nervoso. Depois: — Amo.

— E o garoto? Você se importa com ele?

A resposta foi mais rápida e enfática. — Sim. O garoto é... — A voz foi sumindo até um longo silêncio.

— O garoto é o quê?

— Meu filho. E sim, eu me importo com ele. Foi por isso que mandei Nico e Serafina embora, para que ficassem a salvo.

— Mas ele voltou aqui, para esta cidade. Você descobriu que Nico retornou após o numetodo pegá-lo. Sabia que o embaixador ca’Vliomani queria falar com você, mas não respondeu. Você abandonou o menino para salvar a própria pele. — Nico percebeu que Elle falava mais por causa dele mesmo, para que ouvisse a resposta de Talis.

O menino ouviu o farfalhar de pano e palha quando, apesar do aviso de Elle, Talis se mexeu. — Opa! Não. Isso não é verdade. Opa! Calma! Você está certa, eu sei que Nico estava aqui e não respondi ao embaixador, mas não pelas razões que disse, e sim porque...

— Por quê?

— Eu percebi as consequências de tentar fazer isso. Percebi que, se fosse até o numetodo, coisas piores teriam acontecido: para Nico, para mim, para todos nós. Se eu pudesse ter recuperado Nico com segurança, eu teria feito isso. Eu sabia que o embaixador trataria bem o menino. Sabia que Nico não seria maltratado se eu permanecesse escondido; mas se eu fosse atrás dele, se tentasse resgatá-lo, eu não sabia o que aconteceria. Nico poderia se machucar ou coisa pior. Poderia ter havido consequências terríveis.

— Você sabe disso por causa de magia. Magia ocidental. — Nico quase foi capaz de ver Talis fazer que sim com a cabeça. Era difícil ficar parado em silêncio e escutar. O menino queria ir até Talis, até Elle, mas também queria escutar o que ele diria. — E você viu este momento em seus feitiços? Você me viu? — perguntou Elle na voz estranha e rouca.

— Não. Eu continuei a ver Nico na tigela premonitória, como se ele estivesse próximo, mas havia algo ao redor, algo que o protegia.

— Então você me viu sim. Eu protejo Nico. E continuarei a proteger.

— Onde está ele? — perguntou Talis. — Leve-me até Nico!

— Por quê? Por que eu deveria fazer isso?

— Porque... — Nico ouviu Talis engolir em seco. — ... Porque Nico deve ficar com pessoas que conhece. Eu posso levá-lo de volta à matarh dele.

— Você faria isso?

— Sim.

— Então eu torço, pelo seu bem, que você cumpra promessas.

Após a resposta de Elle, ninguém disse nada, embora Nico tenha pensado que ouviu movimentos rápidos e furtivos. Ele espiou na escuridão até que manchas de cores nadaram diante de seus olhos, enquanto tentava ver. Ouviu Talis se remexer, ouviu o homem falar uma palavra em outra língua, e Nico sentiu um arrepio, como se fosse tocado por uma brisa fria e invisível. De repente, houve uma luz intensa, que parecia emanar do próprio Talis. Ele estava sentado na cama, com os cobertores reunidos em volta da cintura e dois pequenos filetes de sangue que escorriam do pescoço para o peito, e a luz vinha de um pequeno foco que brilhava na palma da mão, virada para cima. Elle não estava mais no quarto, embora as cortinas tremulassem em frente a uma janela aberta, perto da cama. Talis viu Nico no corredor e ficou boquiaberto. — Nico!

Nico correu para ele, chorando.

 

Audric ca’Dakwi

O PAPEL FARFALHOU na mão de Audric enquanto ele o segurava de forma que sua mamatarh Marguerite também lesse. Ouviu a kraljica respirar fundo, irritada. — Confirmamos que o selo nesta mensagem é genuinamente de Francesca ca’Cellibrecca — dizia Sigourney enquanto ele lia a missiva. — E também recebemos uma confirmação independente de que o antigo regente ca’Rudka... perdão, Rudka... realmente está em Brezno e teve uma reunião com o hïrzg, a a’hïrzg e o archigos. Quanto ao caso amoroso que ela alega haver entre o archigos e a a’hïrzg Allesandra... bem, quanto a isso só podemos especular.

O papel tremeu na mão de Audric. A mamatarh encarava o neto com um olhar furioso. — A senhora acredita nisso? — Ele perguntou para Marguerite, mas foi Sigourney quem respondeu.

— Não temos motivo para não acreditar.

— Bem, eu tenho uma razão: o mestre ci’Blaylock martelou muito bem essa história na minha cabeça. O vatarh de Francesca ca’Cellibrecca traiu o meu vatarh e todos os Domínios em Passe a’Fiume. — Seu dedo bateu no pergaminho. — Agora ela quer se aliar a nós? Quer uma recompensa?

— Se ela estiver certa, kraljiki, acho que devemos agradecê-la pelo aviso. Francesca pode nos ajudar, sendo tão íntima dos círculos de poder de Brezno.

— A senhora realmente acha que haverá guerra? — perguntou Audric, que odiou o jeito que soou: como uma criança preocupada.

— Você não é uma criança. Não é mais. Agora você deve ser o kraljiki — disse Marguerite para o neto, e ele concordou com a cabeça.

Audric falou com a voz mais grave e séria possível. — O novo hïrzg é um tolo se pensa que pode fazer isso. Nós iremos esmagá-lo. Mandaremos o hïrzg de volta para Firenzcia, sangrando e derrotado.

— Estas são bravas palavras, kraljiki Audric — disse Sigourney ao concordar com a cabeça, embora Audric tenha achado que ela não parecesse convencida, pela expressão no rosto. — Tenho certeza de que o senhor está certo, mas também devemos torcer para que a situação não chegue a esse ponto. — A conselheira inclinou a cabeça na direção do quadro, no cavalete ao lado dele. — Com a ajuda da vajica ca’Cellibrecca, talvez possamos impor diplomacia a Firenzcia. Sua mamatarh sabia disso; ela não usava força a não ser que fosse necessário.

— Não diga para mim o que ela faria — disparou Audric. Ele tossiu com a ferocidade das palavras e teve que apertar o lenço contra os lábios até o espasmo passar. Quando terminou, o kraljiki continuou, com menos volume na voz e a garganta dolorida pelo acesso. — Eu conheço melhor a minha mamatarh. Sou eu quem a compreende. É comigo que ela fala. Não com a senhora.

Sigourney ergueu as mãos e arregalou os olhos pela explosão de Audric. — Eu não quis sugerir outra coisa, kraljiki. É apenas que... — A conselheira falou mais baixo e inclinou-se na direção de Audric, como se temesse que alguém pudesse escutar, embora só houvesse os três na sala. — Precisamos tomar cuidado aqui. É possível que isso não seja nada ou que sejam as suspeitas de uma esposa que acha que perdeu a confiança do marido, especialmente se os rumores que envolvem o archigos ca’Cellibrecca e Allesandra forem verdade. Temos que levar em consideração os motivos da vajica ca’Cellibrecca.

— Sergei Rudka está em Brezno — disparou Audric. — Eu quero Rudka aqui. Quero Rudka na Bastida novamente, e dessa vez vou garantir que ele vivencie todos os prazeres das celas subterrâneas.

— Sim, sim — dizia Sigourney, mas Audric mal ouviu a conselheira, que tagarelava como se tentasse acalmar uma criança à beira de um ataque. Ela continuava falando, mas o kraljiki não ouvia nada. Sigourney começou a lembrá-lo de Sergei, a agir como se ela estivesse no Trono do Sol, e não ele. Talvez Audric tivesse que jogá-la na Bastida também. Agora que ele foi reconhecido como kraljiki, talvez jogasse todo o Conselho dos Ca’ lá dentro. Deixe que eles se reúnam e tramem nas pedras da torre principal e vejam se gostam disso. Sergei provou que era um traidor e pagaria por isso; Audric jurou que veria o sofrimento do homem em pessoa, talvez até ajudasse o torturador. Assistiria a Sergei se contorcer de sofrimento na mesa, e depois adoraria ver os corvos arrancando a carne de seus ossos enquanto o corpo balançaria na jaula na Pontica Kralji.

— Sim, você terá tudo isso — falou Marguerite. A boca contorceu-se em um sorriso momentâneo. — Você é o kraljiki agora, e eles não podem lhe negar nada. Você fincará a bandeira dos Domínios na própria cova do hïrzg. Da sua espada escorregará o sangue daqueles que tentarem impedi-lo.

— Sim — disse Audric para a mamatarh. — Eu prometo.

— O quê? — perguntou Sigourney. Ela parecia assustada ao ser interrompida. — O que o senhor promete, kraljiki?

Audric queria tossir, podia sentir a vontade na garganta e nos pulmões, mas se conteve. — Eu prometo que aqueles que tentarem me impedirem serão destruídos. É isso o que prometo. — Ele encarou os olhos da conselheira fixamente. Audric esperava ver medo ali, queria ver, mas não foi o que percebeu no rosto de Sigourney. Havia apenas uma avaliação silenciosa, e talvez pena. Isso deixou o kraljiki irritado, e a emoção provocou espasmos de tosse novamente. Ele sentiu dificuldade para respirar, sentiu a borda da visão escurecer, e pensou que fosse desmaiar completamente.

Enquanto tossia seco no lenço, praticamente com o corpo dobrado, Audric de repente sentiu a mão de Sigourney afagar seu cabelo.

— Eu sei como essa doença deve incomodar, kraljiki. Audric. Eu sei. — Sigourney puxou Audric, que resistiu por um momento.

— Você tem que ser forte. Não pode deixar que vejam sua fraqueza, ou eles a explorarão.

Mas Audric descobriu que queria esse toque de matarh e se permitiu ser aninhado por Sigourney, como se ela abraçasse um dos próprios filhos. O calor da conselheira era um alívio, e Audric ouviu um soluço que percebeu com um susto que era dele. Sigourney ouviu também, evidentemente. — Shh... tudo bem. Estamos só nós dois aqui. Só nós dois. Se precisa chorar, eu compreendo. Compreendo sim... Eu chamarei o archigos e mandarei que ele traga aquela téni de volta aqui.

Os dedos da conselheira afastaram o cabelo da testa do kraljiki. — Seja forte... — Mas era difícil ser forte o tempo todo, e ele nunca teve o carinho de matarh, e seu vatarh sempre esteve cercado por chevarittai, pelos ca’ e co’ e pelos criados. Enquanto Sigourney o abraçava, Audric abriu os olhos e viu o retrato de Marguerite. Ela olhava o neto com seriedade, frieza e reprovação. A kraljica balançou a cabeça lentamente. — Meu verdadeiro herdeiro não faria isso. Isso é fraqueza. Meu verdadeiro herdeiro saberia como deve agir. — A reprovação ardeu dentro de Audric.

Ele afastou-se de Sigourney, com tanta força que a mulher cambaleou para trás e quase caiu.

— Não! — berrou Audric. — Não. Faremos como eu quero quanto a esta questão. Mandaremos uma exigência ao hïrzg: ele tem que devolver Sergei para nós, ou eu irei pegá-lo. A senhora me escutou? Eu mesmo irei lá, à frente da Garde Civile, e arrancarei Rudka das mãos deles. — A força de Marguerite preencheu o neto neste momento, e ele ficou de pé, sem tossir. — Mande o comandante vir até mim, para que ele comece a reunir as tropas. Quero que a senhora escreva as exigências; mandaremos por mensagem rápida hoje. Daremos um mês para eles devolverem Sergei. Não mais do que isso.

— Kraljiki, o senhor está agindo rápido demais. Precisamos estudar mais essa situação, esperar...

— Esperar? — A palavra foi dita por ele e pela mamatarh ao mesmo tempo. — Não podemos esperar, vajica. E aqueles que se opuserem a mim ou se recusarem a ir comigo, eu considerarei nada mais do que traidores. Espero ver um rascunho da exigência à Terceira Chamada. Fui claro?

A conselheira encarou o kraljiki.

— Ah, finalmente você vê medo nos traços do rosto dela. Você agiu bem, Audric.

— Claríssimo, kraljiki — respondeu Sigourney. — Claríssimo.

 

Varina ci’Pallo

— ISSO MESMO... Com o cântico, pense nas fibras da madeira sendo abertas como se você afastasse uma cortina.

Varina falou baixinho para encorajar Karl, enquanto ele entoava as palavras mágicas e olhava fixamente para a bengala na mão direita, enquanto a esquerda executava o gestual necessário. Ela viu a fibra da madeira tremer e se separar, com uma flexibilidade estranha e desconcertante. Viu o esforço que Karl usou para criar o feitiço; ele ofegava e suava intensamente, como se tivesse corrido o circuito inteiro da Avi a’Parete.

— Agora, essa parte é mais complicada: mantenha a madeira separada enquanto coloca dentro o feitiço que você já preparou — disse Varina. Ele não olhou de volta para ela; Varina sabia que Karl não ousaria desviar o olhar do cajado: ou a madeira se juntaria outra vez e a bengala se estilhaçaria completamente. Ainda havia farpas nos dedos de Karl das últimas tentativas. — Vá em frente — continuou ela. — Você deve ser capaz de sentir o feitiço de luz que preparou. Eu sempre sinto como se fosse uma pequenina bola de energia na cabeça, pronta para estourar. Imagine a bola saindo de sua mente e entrando no espaço que você acabou de criar na bengala. Imagine a bola se aninhando ali. Com cuidado. Ótimo. Ótimo. E... solte tudo!

Karl encerrou o cântico e deixou a mão cair ao lado do corpo. A fenda na madeira fechou-se novamente, fazendo um som como duas tábuas batendo juntas, e a bengala estava inteira e intacta em sua mão, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Karl desmoronou na cadeira onde estava sentado. Ele secou a testa com a manga da bashta enquanto Varina ria, batendo as palmas uma vez. Karl ficou sentado ali pelo que pareceu ser várias marcas da ampulheta, enquanto tentava recuperar o fôlego.

— Você conseguiu dessa vez — falou Varina.

— Tomara que sim.

— Quer testar para ter certeza? Basta segurar a bengala e falar a palavra de ativação.

— Depois de todo aquele transtorno? — disse Karl. — Acho que simplesmente vou acreditar em você, por enquanto. — Ele suspirou, deixou a cabeça pender e fechou os olhos. — Por Cénzi, isso foi difícil. Não admira que Mahri tivesse aquela aparência.

Varina riu novamente ao ouvir isso, mas ouviu uma certa amargura involuntária no som. Ela tocou o próprio rosto e acompanhou o traçado das rugas que não eram visíveis há um ano. Enterrou a preocupação nas palavras: — É uma questão de encontrar a palavra e os gestos corretos para mover a energia, só que você deve conter o feitiço e segurar o objeto a ser enfeitiçado ao mesmo tempo; isso é o que torna difícil. Pelo que sabemos dos ocidentais, eles atribuem o poder a um de seus deuses, assim como os ténis fazem aqui, mas é apenas uma questão do cântico certo, dos movimentos corretos. Questão de ciência, não de fé. A vantagem é que, assim que a tarefa é cumprida, é o objeto que contém o feitiço, não o feiticeiro, e desde que, antes de mais nada, o objeto seja de qualidade e não se quebre depois, é concebível que ele consiga conter o feitiço indefinidamente, desconfio eu. Ainda assim... — Os dedos passaram novamente sobre as rugas do rosto e pentearam o cabelo grisalho e seco para trás. — É um jeito caro demais de fazer as coisas, se quer saber.

— Eu entendo — falou Karl. — Eu me sinto completamente exaurido.

Karl não entendia. Não poderia entender. Não ainda. Varina sorriu novamente. Esticou o braço como se fosse dar um tapinha em sua mão, mas recuou no último instante. Isto fazia parte da dança incômoda que os dois faziam há dias agora.

Eles tinham voltado a Nessântico há dez dias. Os dois retornaram à cidade com Serafina, que voltou a morar na antiga casa. A mulher convidou Varina e Karl para ficar com ela, uma oferta que eles aceitaram — os antigos locais frequentados pelos numetodos sem dúvida estavam sendo vigiados pela Garde Kralji, e os dois não viram absolutamente nenhum numetodo no Velho Distrito. Eles vasculharam a vizinhança com Serafina, perguntaram sobre Nico, mas ninguém se lembrava de ter visto o menino, certamente não depois do dia em que Varina e Karl ajudaram o regente a escapar da Bastida. Se Nico realmente retornou a Nessântico, como Varina sabia, ele parecia ter desaparecido de alguma forma; se Talis ainda estava na cidade, ele também permanecia escondido.

E quanto a Varina... após a incômoda conversa em Ville Paisli, ela não parecia saber exatamente como agir perto de Karl. Ter admitido que queria mais do que sua amizade. . . Por que ela disse aquilo para ele? Karl olhava Varina de um jeito esquisito agora, como se lembrasse de todas as conversas que tiveram ao longo dos anos e reinterpretasse os diálogos, como se encarasse as conversas à luz dessa revelação e ficasse pensando.

Por que você contou para ele? Por que admitiu?

Ela afastou a mão da mão de Karl. Ele começou a esticar o braço na direção dela. — Varina...

— Voltei! — O chamado soou assim que a porta da sala foi aberta e Serafina entrou. Ela carregava uma sacola de pano com uma bisnaga de pão protuberante. Varina viu que a mulher olhou esquisito para os dois antes de andar até a mesa e pousar a sacola ali. Serafina tirou a bisnaga de pão, depois meia rodela de queijo e um saco de papel com amoras-do-brejo. Sem falar nada, Karl e Varina observaram Serafina, que suspirou e balançou a cabeça.

— O que está acontecendo? — perguntou ela.

— Eu não sei do que você está falando — falou Varina. Ela perguntou-se se Serafina tinha visto os dois trabalhando no feitiço, mas a mulher balançava a cabeça com um sorriso irônico.

— Vocês dois — disse Serafina enquanto olhava de Varina para Karl. — É óbvio que não são casados, não importa o que tenham dito para minha irmã, lá em Ville Paisli. Mas também é óbvio que existe algo entre vocês, e que nenhum dos dois sabe o que fazer a respeito disso. Eu entendo: foi assim comigo e Talis, a princípio. Eu fui muito magoada por um antigo amor que não se importava comigo, apenas com ele mesmo, e pensei que seria assim com todo mundo. Mas Talis... é um bom homem. Ele se importava comigo, e quando Nico nasceu, ele foi um bom vatarh também. Mas aquele maldito numetodo... — Ela mordeu o lábio inferior, enquanto Varina olhava para Karl, erguendo uma sobrancelha.

— O numetodo? — perguntou Karl.

— Talis disse que o embaixador tentou matá-lo; é por isso que ele mandou a mim e a Nico embora, porque pensava que os numetodos viriam atrás dele, e, uma vez que o embaixador era amigo do regente ca’Rudka, que a Garde Kralji viria atrás dele também. Eu acho que isso é algo que ele não tem mais com que se preocupar... — acrescentou Serafina com um sorriso irônico. — O kraljiki parece gostar do regente e do embaixador ainda menos do que Talis.

— Talis não entrou em contato com você? — insistiu Karl.

Serafina negou com a cabeça. — Ele entrará em contato quando achar que é seguro. Talis saberá que estou aqui em breve, se já não souber. Talvez tenha encontrado Nico também. — Ela suspirou, e Varina viu a mulher pestanejar para conter as lágrimas. — De qualquer forma, eu estava dizendo que vejo vocês dois darem voltas um ao redor do outro como se estivessem passeando pela Avi a’Parete e... bem, eu fiquei contente por finalmente admitir que estava apaixonada por Talis. Foi a melhor coisa que fiz em muito tempo. É isso.

Serafina sorriu e deu tapinhas na mão de Varina, que ainda estava em seu ombro. — Eu irei ao açougueiro para ver o que ele tem. Depois vou procurar por Nico em volta do Parque do Templo; ele sempre gostou de ir lá.

— Eu irei com você — falou Varina, mas Serafina balançou a cabeça.

— Não. Eu gostaria de ficar um pouco sozinha. Voltarei para casa antes da Terceira Chamada, e podemos preparar o jantar então.

Serafina sorriu para os dois novamente, pegou a sacola de pano e saiu dos aposentos outra vez. Eles ouviram o barulho da fechadura quando a mulher saiu; Varina sentiu o olhar de Karl e perguntou — O que faremos se encontrarmos Talis, Karl? Ou se ela encontrar Nico? Serafina ama Talis, e Nico nos reconheceria. O que faremos então?

— Eu não sei. Eu não sei de mais nada.

Varina balançou ao ouvir isso, e o silêncio entre eles, aos poucos, cresceu. Ela sentiu seu peso, o silêncio envolveu os dois como as correntes sujas de uma cela da Bastida. Varina ocupou-se ao colocar o pão e o queixo em uma cesta de vime.

— Varina — disse Karl finalmente, e ela parou. — Serafina está certa. É que... — Os dedos bateram na bengala. — Ainda dói sempre que penso em Ana. Ela...

— Eu sei. Eu vi... — Varina começou a falar, depois abaixou o olhar para a mesa. — Algumas vezes, na rua, eu vi as grandes horizontales que você contratava para... — Ela ergueu o olhar novamente. — Para mim, todas pareciam com ela: o mesmo tom de pele; a mesma compleição física.

Karl abaixou o olhar, culpado. — Varina...

— Não. — Ela interrompeu. — Eu entendia. Entendia mesmo. Mas ainda assim doía, porque você não me enxergava, quando era... — Varina fechou a boca e apertou os lábios. Ela não diria o resto. Não diria.

Karl ergueu as mãos e deixou que caíssem de volta na mesa. — Serafina está certa. Por causa da minha obsessão, eu deixei de ver o que estava bem na frente do meu nariz. Fui estúpido. Pior, fui cruel, e isso é algo que nunca quis ser. Não com você, Varina. Jamais com você. Você sempre foi alguém que eu admirava e em quem confiava. E agora... eu não sei se...

— Eu também não sei — disse ela. Vamos, Varina ouviu uma voz interna. Vamos. Diga. — Karl, nós dois podemos continuar a imaginar ou...

Ela deixou a palavra no ar, tão intensa na mente de Karl como fogo mágico.

Ele estendeu a mão para Varina.

Ela pegou.

 

Enéas co’Kinnear

O SEGUNDO CÉNZIDI. O dia em que ele deveria se encontrar com o kraljiki.

Este é o seu momento. Hoje, eu o tomarei em Meus braços, e você ficará eternamente feliz e em paz. Hoje...

— Obrigado, Cénzi — sussurrou Enéas agradecido. — Obrigado. Eu sou Seu criado, Seu instrumento.

Ele pegou o nitro em pó, o carvão e o enxofre; misturou todos cuidadosamente com urina velha, como Cénzi instruiu, até criar a areia negra dos ocidentais. Enfiou bolos da areia negra em uma bolsa de couro a tiracolo, que depois colocou sobre o uniforme. Ensaiou na mente o feitiço de fogo dado por Cénzi até saber os gestos e o cântico e ser capaz de executar o encantamento simples em poucos instantes. Sim, isso demonstraria ao kralji o que os ocidentais podiam fazer. Faria Nessântico se dar conta de como essa guerra ficou importante e perigosa.

Então, finalmente, Enéas arrumou o quarto, para que o local parecesse organizado quando viessem investigá-lo depois.

Ao caminhar para sua audiência no palácio do kraljiki, ele permitiu-se apreciar os locais interessantes de Nessântico, absorveu tudo que a cidade que tanto amava tinha para oferecer. Enéas passeou pela margem norte da Ilha A’Kralji ao sair do apartamento, olhou com carinho para as torres com portões da Pontica Mordei e viu uma barcaça cheia de caixotes passar sob a travessia de pedra trabalhada. O A’Sele reluzia à luz do sol, com ondinhas que brilhavam e dançavam. Casais estavam sentados de braços dados na grama da margem, perdidos na presença uns dos outros. Um quarteto de e’ténis passou correndo por Enéas a caminho de alguma tarefa, os robes verdes tremulavam em volta dos tornozelos, um leve rastro de incenso ficou para trás. Ele ouviu a voz eterna e caótica da cidade, o som de milhares de vozes que falavam ao mesmo tempo.

Enéas passou pelo Velho Templo e ergueu o olhar para o domo inacreditável que o artesão co’Brunelli construía, o maior do mundo — se não entrasse em colapso sob o terrível peso da alvenaria. Ele fechou a cara uma vez, ao ver um artista de rua que equilibrava bolas acesas pelo próprio malabarista através de um feitiço — aquilo era serviço de numetodo, não foi feito pelas preces de um téni, e incomodava Enéas ver tal coisa feita publicamente, sem que qualquer espectador ficasse incomodado com a cena.

A archigos Ana permitiu que as pessoas perdessem a noção da verdade e da fé. Ela passava a mão na cabeça dos numetodos e permitia que sua heresia se espalhasse — e é por isso que os Domínios e a Fé estão partidos em dois e quebrados. Eu mandei os ocidentais como um sinal e um aviso. Hoje, você levará a eles o Meu alerta final.

A voz falou em tom baixo e sinistro na cabeça de Enéas. Ele fez o sinal de Cénzi com uma cara feia para o malabarista e para o público em volta antes de ir embora.

O Palácio do Kraljiki era branco e dourado contra um céu que parecia pintado. Enéas esteve uma vez anteriormente no palácio, como um e’offizier ajudante de ordens que acompanhava seu a’offizier em uma reunião do Conselho dos Ca’, mas essa seria a primeira vez que ele estaria realmente diante do Trono do Sol. Enéas deu sua Lettre a’Approche ao garda nos portões laterais, que a verificou, passou um dedo pelo selo em alto relevo e prestou continência a ele. — O senhor é aguardado, o’offizier co’Kinnear — disse o homem, gesticulando. Um criado jovem veio correndo, com o uniforme dourado e azul da equipe do kraljiki. Enéas seguiu o garoto pelos jardins podados e esculpidos com topiarias e arranjos de flores, com vários cortesãos ca’ e co’ passeando pelos caminhos de seixos brancos. Ele foi conduzido pelo guia por uma porta lateral para o interior do palácio em si, depois por um corredor de mármore rosa-claro, com um piso lustradíssimo e lâmpadas mágicas, dispostas poucos passos umas das outras, que não estavam acesas, pois havia luz suficiente que entrava pelas janelas nas duas pontas do corredor. — Espere aqui, o’offizier — disse o menino ao parar diante de uma porta com dois gardai em posição de sentido. — A recepção pública está praticamente encerrada. Verei se o kraljiki está pronto para receber o senhor. — Os gardai abriram a porta e o criado entrou. Enéas vislumbrou um grupo de suplicantes e ouviu o burburinho baixo de conversas sussurradas; ao longe, alguém falava mais alto: a voz de um menino, rouca e interrompida por tosses. Ele pensou ter visto o Trono do Sol, reluzente em contraste com a meia penumbra das janelas fechadas do resto do salão. A porta foi fechada novamente antes que Enéas pudesse ver mais.

— Como está a guerra, o’offizier? — perguntou um garda da porta. — Todo mundo está esperando um navio expresso dos Hellins, mas ele não chega.

— Ele não chegará — disse Enéas.

Os dois gardai entreolharam-se. — O’offizier?

— Ele não chegará — repetiu Enéas. — Cénzi já me disse isso.

Os gardai entreolharam-se novamente. Enéas viu uma rápida revirada de olhos. — Ah, Cénzi disse para o senhor. Entendi.

— O senhor não fala com Cénzi, e’offizier? — perguntou Éneas para o homem. — Então tenho pena do senhor.

A porta foi aberta novamente e interrompeu qualquer réplica que o garda viesse a dar. Não surgiu o garoto, mas sim um homem mais velho, com a insígnia do kraljiki no uniforme. — Sou Marlon — disse ele. — O kraljiki está pronto para o senhor. Siga-me.

Os gardai mantiveram a porta aberta para Enéas passar. O salão ainda estava lotado, com grupos de ca’ e co’ e por quem teve a sorte de ter o nome incluído na lista de suplicantes do segundo cénzidi. Eles viram Enéas entrar atrás de Marlon, com um misto de curiosidade e rancor quando ficou claro que o o’offizier estava sendo levado diretamente para o Trono do Sol.

As janelas do salão estavam parcialmente fechadas, de maneira que o aposento estava escuro e abafado. No fundo do salão, o Trono do Sol reluzia com seu brilho amarelo solar e destacava a silhueta de um rapaz. Enéas sabia que o kraljiki Audric era jovem, mas mesmo assim se assustou com sua aparência. Ele parecia pequeno para a idade, com peitoral largo, porém magro, e tinha um rosto encovado e olheiras. A testa suava, mas o menino parecia mais febril do que encalorado.

Havia um integrante do Conselho dos Ca’ à esquerda do kraljiki: uma mulher mais velha, com cabelo obviamente tingido de preto, que olhava fixamente para Enéas, com o olhar predatório de um falcão, embora ele não a reconhecesse. Um retrato da kraljica Marguerite estava à direita de Audric. O impacto da pintura era impressionante: Enéas nunca tinha visto algo tão realista e sólido — tinha mais presença do que a mulher do outro lado do trono. Enéas pensou que estava sendo observado pela kraljica ao se aproximar, e a sensação não foi agradável. Isso fez com que ele quisesse abraçar a bolsa que carregava; fez com que quisesse dar meia volta e fugir.

Você não pode. Eu não permitirei. Cénzi rugiu em sua mente, e Enéas balançou a cabeça como um cachorro tentando se livrar de pulgas.

O kraljiki pigarreou quando o o’offizier se aproximou, um som líquido. Ele tossiu uma vez, e Enéas ouviu o barulho de catarro nos pulmões do menino. Audric estava com a boca semiaberta e segurava um lenço de renda com manchas de sangue na mão direita. — O’offizier co’Kinnear — falou o kraljiki quando Enéas se aproximou do tablado e se curvou. — O archigos Kenne me disse que o senhor veio da guerra dos Hellins com notícias para nós. — O kraljiki falava pausadamente e devagar, parava muitas vezes para tomar fôlego e, ocasionalmente, para conter uma tosse com o lenço. — Ouvimos falar de seu belo desempenho na Garde Civile e saudamos o senhor por servir ao trono. Fico contente em lhe informar que assinei sua Lettre a’Chevaritt para que entre em vigor imediatamente.

Enéas curvou-se novamente. — Kraljiki, sinto-me honrado, e louvado seja Cénzi, que torna tudo possível.

— Sim — respondeu Audric. — Também ouvimos falar de sua grande devoção à fé concénziana, e que um dia o senhor considerou seguir carreira como téni. Os Domínios estão felizes que tenha escolhido uma carreira marcial em vez disso.

— Eu continuo servindo a Cénzi, de uma forma ou de outra — falou Enéas e inclinou a cabeça.

O kraljiki, com uma aparência entediada, dava a impressão de estar ouvindo outra pessoa. O menino deu uma olhadela para o quadro de Marguerite, concordou com a cabeça e disse — Sim, acho que sim. — Enéas não tinha certeza se Audric se dirigiu a ele ou não. Ele hesitou, e o kraljiki voltou sua atenção para Enéas. — Suas notícias, o’offizier? E quanto aos Hellins? Nós não sabemos de nada há mais de um mês.

— Eu trouxe algo para o senhor — disse Enéas. Ele deu um tapinha na bolsa de couro, com cuidado, quase um afago. Tirou a alça pela cabeça e esticou a bolsa na direção de Audric. — Se eu puder me aproximar?

O kraljiki fez que sim com a cabeça, e Enéas subiu na plataforma do Trono do Sol. Agora, mais de perto, ele sentiu o cheiro de doença em volta de Audric: o odor de putrefação, o mau hálito. O o’offizier fingiu não notar e entregou a bolsa para Audric, que a colocou no colo. O kraljiki espiou o interior e enfiou a mão para sentir o que havia ali dentro. — Tijolos de areia? — perguntou ele com a testa franzida, intrigado. Audric contraiu o nariz ao sentir o cheiro. — Terra negra?

— Não — falou Enéas baixinho. — Deixe-me mostrar para o senhor...

Com o chamado da Voz de Cénzi dentro de sua cabeça, ele começou o cântico rapidamente, com gestos bruscos. Pelo rabo do olho, Enéas viu a mulher à esquerda do kraljiki levar um susto, depois se afastar do trono. Ouviu alguém atrás dele na plateia gritar. Audric abriu a boca como se estivesse prestes a falar.

Um fogo intenso surgiu entre as mãos de Enéas. Ele inclinou-se para frente, segurou o fogo sobre a boca aberta da bolsa e deixou cair.

Cénzi rugiu Sua satisfação. O mundo explodiu em som e luz eternos.

 

A Pedra Branca

ELA VIGIOU Talis nos dias que se seguiram.

A Pedra Branca descobriu que não podia simplesmente devolver Nico ao homem e deixar o menino de lado. As vozes da pedra debocharam de sua preocupação. Fynn foi especialmente sarcástico e cruel. — Você quer uma família? Então agora a assassina vai se preocupar com as outras pessoas? A assassina descobriu o amor, agora que tem um bastardo no útero? — Ele gargalhou de felicidade. — Você virou uma tola, mulher. Olhe o que minha família fez comigo! A criança que você carrega irá traí-la alegremente da mesma forma, um dia. Família! — Fynn riu novamente, os demais se juntaram a ele em um coro debochado.

— Calem-se! — disse ela para todas as vozes, o que atraiu os olhares das pessoas à sua volta na rua. A Pedra Branca devolveu a atenção com uma cara feia. Ela abraçou o estômago em um gesto protetor e ficou assustada, como sempre, com a curva inchada onde antes havia um abdômen atlético e reto. Já sentia um leve movimento ali: a filha de Jan. Sua filha. — Vocês não sabem. Não têm como saber.

Quando pensava na criança, nascida e viva, era sempre uma menina, mas com algumas feições de Nico também, como se fossem irmãos estranhos. — Eu abriguei o menino quando ele precisava de alguém — falou ela para as vozes. — Sou responsável por ele agora. Eu fiz essa escolha.

As vozes debocharam dela. Gargalharam.

A Pedra Branca vinha observando o apartamento de Talis desde que deixou Nico lá. Ela abandonou o próprio apartamento e alugou um quarto em cima do de Talis, embora tomasse cuidado para que o menino não a visse entrar ou sair do prédio. Fez um buraco no chão para que pudesse vigiá-los e ouvi-los lá embaixo. E era o que fazia, pronta para agir caso ouvisse Talis maltratar Nico de qualquer maneira, pronta para surgir como a Pedra Branca para tirar a vida do homem, furiosa e vingativa. Mas ela não ouviu nada que a fizesse temer pelo menino.

Não diretamente, de qualquer forma.

Através de Nico, ela já sabia que os numetodos andaram caçando Talis. Sabia que ele era um ocidental e usuário da magia daquele povo, e que os Domínios estavam em guerra com os ocidentais nos Hellins. Por si só, isso já seria um perigo para Nico. Portanto, a Pedra Branca observava.

No segundo cénzidi do mês, ela seguiu os dois quando Nico levou Talis ao antigo apartamento da Pedra Branca, ela os observou das sombras do beco à frente quando eles surgiram novamente. O menino balançou a cabeça, confuso, e gesticulou com os braços enquanto falava com o vatarh. Naquela tarde, pelo buraquinho, ela ouviu a conversa dos dois lá embaixo. — Eu não entendo — disse Nico. — Era lá que Elle morava, Talis. De verdade. Eu estive lá.

— Eu acredito em você, Nico, mas ela não está mais lá — respondeu Talis. A Pedra Branca notou a preocupação na voz do homem e foi capaz de imaginá-lo esfregando os cortes em cicatrização no pescoço enquanto falava. Ela ouviu o comentário implícito nas palavras: ela é perigosa. Ela poderia ter me matado.

— Eu gosto de Elle — disse Nico. — Ela foi boazinha comigo.

— Fico feliz que Elle tenha sido boazinha. Fico feliz que ela tenha trazido você até mim, mas...

Qualquer que fosse a objeção, Talis não disse. A Pedra Branca sorriu diante dessa atitude. — Mas ela é louca — falaram as vozes. — E a loucura está crescendo.

Ela pegou a pedra na bolsinha com força, como se pudesse estrangular as vozes com os dedos, que ficaram brancos com a pressão.

A Pedra Branca não queria ouvir mais. Continuaria a vigiar, sim, mas por enquanto parecia que Nico estava a salvo com Talis. Ela saiu de mansinho do quarto, desceu correndo as escadas e saiu pela porta dos fundos do prédio. Cruzou rapidamente as ruas do Velho Distrito, distanciou-se das áreas principais e entrou nas profundezas tortuosas onde ruas estreitas faziam curvas e se enroscavam e os prédios eram escuros, antigos e pequenos. Ela ouviu os próprios pensamentos, as vozes dentro da cabeça, a conversa ao redor. — Matarh! — ela ouviu o grito de uma criança, e por um momento pensou que fosse Nico. Ela virou-se com um sorriso e os braços abertos para abraçá-lo.

Não era Nico. Era alguma outra criança, quase da mesma idade. — Matarh! — berrou o menino novamente, e uma jovem veio correndo da porta de um prédio próximo e pegou a criança nos braços. Os pés do menino balançaram quando ele foi abraçado por ela.

A Pedra Branca viu a cena e abraçou a si mesma, involuntariamente, em solidariedade. Ela queria sentir prazer com essa cena, que deveria ser bastante comum, mas o que sentiu foi uma onda forte de inveja. — Sim, isso aí é o que você nunca terá — vociferou Fynn dentro dela, os outros se juntaram a ele. — Jamais poderá ter esse amor. Ninguém jamais amará você desta maneira. Nem mesmo a criança que carrega. Jamais.

— Não é verdade — disse ela para as vozes e sentiu lágrimas escorrerem pelas bochechas. — Não, não é verdade.

— É sim. É sim. — Um coro de negativa. — É sim.

A Pedra Branca deu meia-volta e fugiu da cena, perseguida pelas vozes. Andou às pressas, sem saber sequer aonde ia, correu pelas feiras lotadas e por avenidas meio desertas, passou por lojas e comércios. Ela finalmente foi parar na margem norte do A’Sele, perto da Pontica Kralji. Lá, sem se importar com a lama e o cheiro fétido, ela se sentou e abraçou os joelhos, tentou ignorar as vozes que gritavam na cabeça enquanto balançava para frente e para trás. Se alguém a visse, pensaria que era louca e a deixaria em paz. Ficou sentada ali por um bom tempo, os pensamentos eram frenéticos e caóticos, até ser acalmada pela exaustão e as vozes sumirem. Ficou sentada, ofegante, enquanto esfregava a barriga inchada e imaginava a vida ali dentro.

— Eu vou proteger você. Vou mantê-la a salvo — falou ela para a filha.

Em algum lugar do outro lado do A’Sele, na Ilha A’Kralji, quase que como uma resposta, veio o som repentino de um trovão, e a Pedra Branca viu uma fumaça negra subir de algum ponto entre o amontoado de prédios da ilha. Não muito tempo depois, as trompas da cidade começaram a ecoar, embora já passasse da Segunda Chamada.

Ela se perguntou o que teria acontecido.


??? COMBATE ???

Audric ca’Dakwi

Niente

Kenne ca’Fionta

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Allesandra ca’Vörl

Nico Morel

Niente

Karl ca’Vliomani

Allesandra ca’Vörl

A Pedra Branca


Audric ca’Dakwi

ALGUÉM ESTAVA GRITANDO. Sem parar.

Quando Audric abriu os olhos, tudo estava tingido de vermelho, como se o mundo tivesse sido pintado com sangue. Coágulos nadavam sobre a sua visão. Sua respiração era fraca e estridente, ele mal conseguia aspirar. Audric parecia estar nos próprios aposentos, na própria cama, mas não conseguia mexer o corpo de forma alguma. O rosto coçava, e ele queria erguer a mão para coçar, mas não conseguia erguer nenhuma das mãos ou mexer os pés. Tinha medo de levantar a cabeça e olhar para baixo, medo do que poderia ver.

E a dor... Havia tanta dor, e Audric queria gritar, mas só conseguia gemer, um lamento fraco e eterno. Sentiu lágrimas quentes escorrerem pelo rosto.

— Você não pode morrer. Não pode... — A voz dela estava tão rouca e hesitante quanto a dele, um mero sussurro.

— Mamatarh? — perguntou Audric. — Onde a senhora está? Marlon? Seaton? Onde está a kraljica Marguerite?

A voz veio de uma distância irreal. Os ouvidos estavam tomados por um rugido contínuo, como se a cidade estivesse caindo em volta dele. — Marlon? Seaton? — chamou Audric de novo. A dor agigantou-se, como uma enorme onda na arrebentação. O kraljiki tentou gritar, mas não saiu nada da boca aberta.

Um rosto surgiu sobre Audric, que piscou. Ele pensou ter reconhecido o archigos Kenne. Cânticos de ténis misturaram-se ao rugido nos ouvidos. — Archigos?

— Sim, kraljiki. Eu vim assim que soube. — Audric mal conseguia ouvir o archigos, as palavras ficaram perdidas no rugido nos ouvidos.

— O que aconteceu? — Cada uma das três palavras pesava tanto quanto os grandes blocos de mármore da fachada do palácio. Audric mal conseguiu colocá-las para fora. Ele fechou os olhos.

— Ainda não temos certeza, kraljiki. O o’offizier co’Kinnear... ele talvez fosse um numetodo ou... — A voz do archigos sumiu. Audric abriu os olhos novamente; a boca de Kenne se movia como se ele ainda estivesse falando, mas o kraljiki só conseguia ouvir o rugido vermelho, que aumentou, e com o ruído veio a dor novamente, ele tentou gritar junto com o rugido, mas saiu apenas um arquejar. — ... jamais saberemos como... a conselheira ca’Ludovici está gravemente ferida... Marlon e Seaton, mortos... — dizia o archigos, mas Audric já não ouvia.

Ele vislumbrou o quadro da mamatarh. Estava apoiado contra a parede perto da cama. A moldura grossa tinha sido quebrada do lado esquerdo, e havia grandes rasgos desfiados na tela, as feridas cruzavam o rosto de Marguerite. Audric gemeu de novo. — Não! — Ele tentou gritar, como se a negação pudesse afastar e mudar tudo.

O kraljiki lembrou. Não tinha certeza. O o’offizier que se aproximou do Trono do Sol, um clarão... depois nada, até agora.

— Você não pode morrer...!

A dor entrou correndo novamente, desta vez ele sentiu o corpo inteiro tremer e sacudir, o corpo arqueou-se, e o archigos pressionou Audric para baixo, berrando com urgência com outra pessoa no quarto. — ... o que você puder fazer... o Ilmodo... Cénzi perdoará...

A dor ameaçou parti-lo ao meio, quebrá-lo como um galho no inverno, mas de repente foi embora. Sumiu. Os olhos estavam abertos, ele viu o archigos Kenne gritar com o curandeiro do palácio e a téni de robe verde, havia outras pessoas no quarto, todas gritavam, mas Audric não conseguia escutar nada, nada além do rugido cada vez mais alto. — Você não pode morrer. — E a dor finalmente foi embora. Audric quis erguer a mão até a mamatarh, mas o corpo ainda não se movia, ele sequer conseguia respirar, embora os pulmões doessem, o kraljiki tentou... tentou... e...

 

Niente

ELE TORCEU PARA que a tomada da ilha de Karnmor fosse o suficiente, que o tecuhtli Zolin ficasse satisfeito com a demonstração do poder dos tehuantinos, e que eles pegassem os navios e voltassem para casa. Mas Zolin olhou para o leste, em vez disso. — Nós ferimos o corpo — disse ele —, mas a cabeça permanece, e o corpo se cicatrizará, a não ser que ataquemos. Eu sei o que você dirá, nahual, mas agora é o momento de atacar. Eu sinto isso. Pergunte a Axat. Ela lhe dirá.

Niente olhou na tigela premonitória e polvilhou as ervas sobre a água. Talvez porque a água daqui fosse menos pura, ou talvez porque a terra de seus deuses estivesse distante, ou talvez porque sua habilidade tivesse diminuído, mas novamente as imagens que ele viu refletidas ali eram confusas ou passageiras demais, e Niente ficou incomodado com elas.

... Um menino em um trono brilhante, mas o rosto era um crânio descarnado, e ali: seria o ocidental que ele enfeitiçou? Uma mulher à espreita no fundo da cena, difícil de ver... Mas a água fez um redemoinho e, quando parou novamente, Niente viu outro garoto em outro trono, e também uma mulher atrás dele, com um téni de robe verde e cabelo escuro ao lado dela... Exércitos passavam por uma terra devastada com estandartes que tremulavam, marchavam sobre um solo cheio de corpos... Fogo e um templo, e fileiras de pessoas em robes verdes rezando... Uma grande cidade com um rio que corria no meio, e fumaça que saía dos grandes prédios... Um guerreiro tehuantino no chão, trespassado por uma lança, e o corpo de um nahualli ao lado de um cajado mágico quebrado, mas a água ficou turva agora, e Niente não conseguiu ver os rostos dos que estavam caídos ali para saber quem eram, embora o estômago tenha ficado embrulhado, e de repente ele não quis ver...

— Então? — perguntou Zolin, e Niente tirou os olhos da tigela. O tecuhtli havia entrado na tenda e observava o nahual. A águia de sua patente espalhava asas com penas vermelhas até as bochechas, enquanto o bico se abria na testa como se para dar um grito feroz.

Eles estavam acampados à beira de um grande rio largo que um dos orientais capturados disse se chamar A’Sele. Segundo informaram, bem longe, rio acima, estava Nessântico, a capital dos Domínios. A frota tehuantina estava ancorada nas proximidades, perto do ponto onde o A’Sele desembocava no Mar Médio, com os cascos baixos na linha d’água com a pilhagem de Karnmor.

Eles deixaram a cidade de Karnor em ruínas há um punhado de dias. A cidade foi violada e saqueada, mas não tomada; o resto da grande ilha foi deixado completamente incólume. Ao contrário, Zolin levou o exército de volta para os navios, saiu do porto de Karnor e contornou Karnmor até a boca do A’Sele, onde o exército seguiu para terra firme mais uma vez. Eles encontraram pouca resistência. O povo dos Domínios desapareceu diante dos tehuantinos como neve na primavera, as pessoas recuaram e sumiram nas florestas e estradas remotas do terreno, abandonaram os vilarejos com seus prédios e casas de formato estranho. Essa era uma terra que tinha sido domada há gerações: com campos e fazendas abundantes, com estradas largas, pavimentadas por paralelepípedos dentro dos vilarejos e cercadas por muretas de pedra do lado de fora. Era uma terra domesticada, diferente das encostas das Montanhas Escudo, mais parecida com as fazendas das grandes cidades em volta do Mar Interior ou dos canais de Tlaxcala, a capital construída no próprio mar.

— Nahual Niente?

Ele levou um susto e percebeu que ainda olhava para a tigela, embora visse apenas seu reflexo confuso e arruinado pela magia, com o olho esquerdo opaco que estava branco de uma maneira assustadora. Uma gota de suor caiu da testa e pingou na água, o que fez tremer a imagem de Niente. Ele ergueu a cabeça e falou — Eu vi uma batalha. E um rei-menino no trono. O rosto era um crânio.

— Ah, então talvez seu oriental tenha cumprido a tarefa?

Niente deu de ombros.

— A batalha, quem ganhou?

— Eu não sei. Eu vi... vi um guerreiro morto e um nahualli morto.

Zolin olhou com desdém e disse — Guerreiros sempre morrem. Nahualli também. É como são as coisas. — ele parou e franziu os olhos, o que movimentou as asas da águia. — Fui eu quem você viu?

Niente balançou a cabeça. — Não sei — respondeu, mas não explicou mais.

— Você nos viu voltando para casa de navio? — perguntou o tecuhtli.

— Não. — Outra resposta curta, Zolin concordou com a cabeça.

— Você não quer estar aqui, não é? Pensa que estou cometendo um erro.

Niente jogou fora a água da tigela premonitória. Ele a secou com a borda da camisa e perguntou-se se deveria dar uma resposta direta para Zolin. O nahual jamais tinha sido senão honesto com Necalli, mas Necalli não tinha o temperamento perigoso de Zolin. — Estamos muito longe de casa, em uma terra estranha.

— Uma terra que não ofereceu quase resistência alguma — falou Zolin. Ele gesticulou com os braços para leste. — Essa grande cidade dos orientais já deve saber que estamos aqui, mas não vejo exército algum diante de nós.

— O senhor verá. E não temos reforços atrás de nós, nenhum guerreiro ou nahualli novos para substituir os caídos. Eu vi os castelos e as fortificações dos orientais na tigela premonitória, tecuhtli. Nós tivemos a vantagem do elemento surpresa em Karnor; isso não existe mais. Eles estarão preparados para nós.

— E sua areia negra irá demolir as muralhas e reduzir as torres a ruínas.

— Eu vi o fogo das forjas e a reza de seus ténis-guerreiros. Vi os exércitos, e eles eram enormes, espalhados sobre a terra como uma floresta de aço. Somos apenas alguns milhares aqui, tecuhtli, e os orientais têm muito mais. Agora nós nos encontramos como eles em nossa terra, longe de nossos recursos. Duvido que nós nos saiamos melhor do que eles lá.

— É isso o que Axat mostra para você? — Zolin apontou para a tigela nas mãos de Niente, inscrita com os símbolos da lua da deusa. — Você vê, inegavelmente, a minha derrota na água?

Niente balançou a cabeça negativamente.

— Ótimo. — Zolin mexeu os músculos do maxilar e flexionou as asas da águia. — Eu sei que você preferiria que voltássemos para casa, nahual. Eu compreendo, e você não é o único a ter essa opinião. Eu escuto vocês, todos vocês. Todos nós sentimos saudade de casa e das nossas famílias, eu mesmo não menos do que qualquer outra pessoa. Mas meu dever é nos proteger da melhor maneira possível, e essa... essa me parece a melhor maneira. Eu gostaria que você não mentisse e me dissesse se os deuses insistem que a retirada é a atitude mais prudente.

— Eu digo o que eu vejo, tecuhtli. Sempre. Nada mais. Nada menos. Eu jurei a Axat que seguiria e serviria ao tecuhtli, não importa quem seja ele ou o que ele nos mande fazer.

Zolin deu um riso meio debochado. Ele esfregou o topo da cabeça, como se fizesse carinho na águia pintada na pele. — Você jurou a Necalli, não a mim. Niente, se você quiser ser liberado do juramento agora... — ele deu de ombros. — Um dos outros nahualli pode me servir.

A ameaça pairou no ar úmido. Niente sabia o que Zolin estava oferecendo: nenhum nahual abria mão do título e sobrevivia; Niente perguntou-se qual dos nahualli sussurrava no ouvido de Zolin. Certamente havia alguns que achavam que podiam ser o nahual. — Se o tecuhtli acha que outro nahualli é mais adequado para servi-lo, então este nahualli deve trazer seu cajado mágico aqui, e veremos qual de nós dois Axat prefere.

Zolin riu, mas havia um constrangimento na reação, o que indicou para Niente que o homem estava tentado. — Por enquanto, eu deixarei que você me sirva, nahual Niente. E você verá que estou certo. Eu irei até essa grande cidade dos orientais, vou destruí-la e deixá-la queimando, como fiz com Munereo e Karnor. Sou uma grande lança lenta, que irá varar a armadura, a carne, os órgãos dos orientais até trespassar o coração deles. O povo dos Domínios entenderá que seu deus é fraco e errado. Eles abandonarão a nossa terra e a de nossos primos para sempre. Pagarão tributos para nós, com medo de que um tecuhtli traga outro exército aqui novamente. É o que farei, e é isso que você verá na sua tigela premonitória, nahual. Você verá.

Niente abaixou a cabeça. — Como eu disse, tecuhtli, eu olharei e direi tudo que Axat me permitir ver, para que o senhor conheça os futuros possíveis para as escolhas que fizer. Isso é tudo o que qualquer nahualli pode fazer.

Zolin torceu o nariz. Ele lançou um olhar confiante para Niente, com os olhos cercados pelas penas das asas da águia. — Você verá — repetiu o tecuhtli. — Isso é o que eu lhe digo.

 

Kenne ca’Fionta

A CULPA REMOÍA O ESTÔMAGO e fez com que ele afastasse o prato.

— Kenne, você precisa comer. — Seu velho companheiro e amante, Petros co’Magnaoi, u’téni da fé concénziana, esticou o braço sobre a toalha de mesa branca para pegar a mão de Kenne. — Você foi apenas um peão no plano de Cénzi. Não tinha como saber.

O archigos balançou a cabeça. A culpa não é sua... Você não tinha como saber... Era o que todo mundo dizia para ele nos últimos dias. Às vezes, as palavras eram ditas com genuína sinceridade; em outras — como na ocasião em que ele foi visitar Sigourney ca’Ludovici em seu leito, enquanto a conselheira se recuperava dos ferimentos —, Kenne pensava ter ouvido um mero verniz de educação sobre um profundo rancor.

— Eu mandei o homem para o kraljiki, Petros. Mandei. Ninguém mais, e...

— Kenne — interrompeu Petros. Ele balançou a cabeça magra e aquilina, o movimento mexeu o cabelo comprido até o queixo que Kenne gostava tanto, que há muito tempo ficou branco, mas que era tão farto na cabeça do homem quanto escasso na do próprio archigos. Olhos azul-claros, ainda afiados e inteligentes, sustentaram o olhar de Kenne e recusaram-se a deixar que o archigos virasse o rosto. — Pare com isso. Você pode continuar repetindo sem parar as mesmas palavras, mas nenhuma irá mudar o que aconteceu. Você fez o que qualquer um de nós teria feito. A reputação desse Enéas co’Kinnear era sólida, e ele disse que tinha notícias dos Hellins, algo que o kraljiki precisava saber desesperadamente. Se eu estivesse no seu lugar, teria feito a mesma coisa.

— Mas você não fez. Ele veio a mim.

— Ele foi, e você não tinha como saber o que Enéas era ou o que faria, assim como seus offiziers superiores não sabiam. O que precisamos fazer agora é garantir que a fúria da população não vire um banho de sangue. Já há vozes no Velho Templo que pedem por um novo expurgo dos numetodos, e a mesma coisa também pode ser ouvida no Conselho dos Ca’. Sua voz é necessária como o líder da Fé, Kenne. A voz da sanidade.

Kenne sentiu o aperto dos dedos de Petros na mão quando não respondeu. — Kenne, meu amor, Cénzi lhe deu um teste agora. Você sabe que a archigos não foi morta pelos numetodos, não com Karl amando-a tanto. Esse Enéas, e o que ele fez com o kraljiki... Parece a mesma coisa que fizeram com Ana. Essa poeira negra que achamos no templo depois; ouvi dizer que também encontraram sobre os pedaços do Trono do Sol...

— Eu matei Audric — murmurou Kenne. — Matei seus camareiros, os suplicantes que estavam próximos. E quanto à pobre Sigourney... — O rosto de Sigourney surgiu diante dele, estraçalhado pelas lascas do Trono do Sol, com o olho direito enfaixado (e perdido, de acordo com o que o curandeiro sussurrou para Kenne depois), a mão direita em bandagens, com dois dedos visivelmente faltando, o jeito horrível como o lençol ficava plano na altura do joelho direito.

A culpa era dele, não importa o que Sigourney possa ter sussurrado com sua voz arruinada. Isso era mais terrível do que o assassinato de Ana, embora este tenha sido bem horrível.

Culpa dele.

Kenne começou a falar com Petros, mas não conseguiu, a voz embargou. Petros apertou a mão de Kenne, levantou-a e deu um beijo.

Alguém bateu na porta. — Archigos? — O chamado veio baixo entre as tábuas entalhadas e envernizadas. Petros afastou a mão rapidamente e recostou-se na cadeira.

— Entre — falou Kenne.

Era uma das integrantes da equipe de o’ténis do archigos: Sara ce’Fallin, sua assistente. Ela deu uma olhadela para Petros, cumprimentou-o com um aceno e fez o sinal de Cénzi para Kenne. — Sinto incomodar seu jantar, archigos, u’téni, mas... — Ela mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça.

— O que foi? — perguntou Kenne com delicadeza.

— Há novidades — respondeu Sara. — Um mensageiro chegou do Conselho dos Ca’; o senhor deve ir ao palácio imediatamente.

— O que foi? — perguntou ele. — Firenzcia?

Ela balançou a cabeça e disse — Não. O mensageiro não disse mais nada além de que era sobre Karnmor.


Ele esperava ser informado de que o vulcão há muito tempo adormecido que abrigava a cidade de Karnor havia despertado novamente. Mas as notícias eram bem piores.

Kenne mal conseguiu acreditar nas palavras do mensageiro, que estava diante dos conselheiros na câmara do Conselho dentro do palácio, mas o cansaço, o rosto sujo de terra e a fuligem, o horror nos olhos e na voz... Estes elementos ele não podia negar.

A cidade de Karnor era uma ruína fumegante, de acordo com o homem, com milhares de mortos, especialmente por causa do ataque dos ténis-guerreiros ocidentais. Pior ainda, o exército ocidental estava agora no continente e avançava lentamente A’Sele acima. A cidade de Villembouchure era a próxima no caminho deles.

— Muitos dos navios em que eles vieram — disse o mensageiro — eram nossos. Eu reconheci os traços do Marguerite quando ele saiu do porto de Karnor para ir aos Hellins há um ano, mas agora ele carrega a bandeira de águia dos ocidentais e foi pintado com cores berrantes. É por isso que não têm vindo navios expressos dos Hellins; os ocidentais devem ter destruído nossas forças lá.

— Não há provas disso — disparou Aleron ca’Gerodi, que olhou feio para o homem, como se o desafiasse a contradizer a afirmação. — Nenhuma.

O mensageiro deu de ombros e falou — Eu vi o que vi, conselheiro. Fui um dos que fugiu de Karnor quando a cidade foi tomada e queimada. Eu encontrei um barco na margem leste da ilha; vi as velas da frota ocidental entrarem na boca do A’Sele e fogueiras na margem norte.

— Ele não mente — disse uma voz assim que as portas da câmara foram abertas. Kenne virou-se e viu Sigourney entrar, sendo carregada em uma liteira. Ela estava sentada com a coluna reta apoiada em travesseiros; o rosto era um horror de linhas vermelhas; o cabelo, sem a tintura negra, tinha agora espessas mechas grisalhas. Seu único olho encarava fixamente os presentes; o esquerdo estava coberto por um tapa-olho acolchoado. — Há outros mensageiros chegando à cidade neste mesmo instante. Eu falei com um deles: um homem dos promontórios da costa. Ele disse a mesma coisa: o exército ocidental está aqui nos Domínios e marcha pela margem norte do A’Sele.

— Conselheira ca’Ludovici — falou Kenne preocupado. — A senhora não deveria estar aqui. Seus ferimentos...

— Meus ferimentos não são importantes — respondeu ela ao abanar uma mão enfaixada e com poucos dedos. — O ervanário me deu extrato de cuore della volpe, que aliviou grande parte da dor. Nós perdemos nosso kraljiki, o regente traidor conspira com Firenzcia, e os ocidentais ousaram vir aqui. Meus ferimentos? — Ela cuspiu. Kenne e os demais viram o arco da cusparada, que foi cair nas lajotas de pedra. — Eles não são nada — vociferou a conselheira com a voz rouca e hesitante. — Não podemos esperar e vacilar aqui. Temos que agir. — Ela fez uma pausa para tomar fôlego. — E a primeira coisa que temos que fazer é nomear um kralji, uma vez que Audric não indicou seu sucessor.

Kenne soube então o que fez Sigourney ignorar os ferimentos e sair do leito.

Ao olhar em volta da câmara para os demais integrantes do Conselho, ficou óbvio que o mesmo pensamento ocorreu a eles. Também ficou óbvio para Kenne quem os conselheiros escolheriam. Aleron concordou com a cabeça, assim como Odil ca’Mazzak; os outros olhavam intensamente para a mesa, como se algo importante tivesse sido rabiscado ali. Foi Odil quem finalmente falou.

— A senhora é a Téte do Conselho dos Ca’, conselheira ca’Ludovici, e a pessoa em quem o kraljiki Audric mais confiava. Eu concordo, um novo kralji deve ser nomeado imediatamente... e eu acredito que deva ser uma kraljica. — Ele olhou em volta da câmara. — Eu proponho que a vajica Sigourney ca’Ludovici seja nomeada kraljica Sigourney. Ela tem o sobrenome, é a parente mais próxima aqui e tem demonstrado amplamente as qualidades de liderança de que precisamos.

— Eu concordo — falou Aleron imediatamente ao se levantar, e então todos ficaram de pé, e Sigourney sorriu, apesar da dor e dos ferimentos em cicatrização, e ergueu as mãos para eles em sinal de falsa humildade, e estava feito; antes que Kenne pudesse dizer qualquer coisa. Não que os conselheiros fossem dar ouvidos a ele, pensou o archigos, com tristeza.

Sua voz não era uma em que o Conselho prestasse atenção.

O olhar caolho de Sigourney percorreu a sala, e quando encontrou o archigos, ela franziu a testa momentaneamente. Kenne notou a acusação e a culpa no rosto da mulher e soube de mais uma coisa.

Ele não seria archigos por muito tempo. A nova kraljica encontraria uma forma de derrubá-lo.

 

Karl ca’Vliomani

SERAFINA SORRIU PARA ELES no momento em que os dois entraram na cozinha do pequeno apartamento, embora Karl pudesse ver uma tristeza, quase inveja, quando ela ergueu os lábios. Serafina penteou o cabelo para trás com as costas da mão, ainda segurando a faca com que cortava as verduras. Karl sentiu o cheiro do guisado que borbulhava na panela preta sobre o fogo. — Bom dia — disse Serafina. — É bom ver vocês dois juntos.

Varina deu o braço a Karl e aconchegou-se nele. — É, sim. Bem mais do que eu esperava.

Karl também sorriu e perguntou-se se alguma das duas mulheres era capaz de ver as emoções misturadas em sua própria felicidade: a pequena sensação incômoda de que, de alguma forma, estava traindo Ana, embora ele e a archigos jamais tenham tido intimidade física. Ana também teria sorrido para você. Também teria dito para ir em frente. Teria ficado feliz por você. Era o que ele dizia para si mesmo, mas não aliviava a semente de culpa.

— Eu fui traída muitas vezes e magoada muitas vezes — disse Ana uma vez para ele, não muito depois de Karl retornar da Ilha de Paeti, após descobrir que Kaitlin não o amava mais, que não queria mais que ele fizesse parte da vida dela ou de seus filhos. — Eu não posso lhe dar essa parte de mim, Karl. Ela simplesmente não está mais lá: existem muitas cicatrizes e muita dor. Eu posso ser sua amiga, se isso for o bastante para você. Mas nada mais. Nada mais.

— Você não me ama... — Ele começou a dizer, e Ana balançou a cabeça.

— Eu amo você, sim, mas não dessa maneira. Se você precisa disso, então encontre outra pessoa. Eu entenderia, Karl. De verdade. Sinto muito... — E ele encontrou alívio em outro lugar, nas grandes horizontales que Varina tinha visto. Mas, de alguma forma, Karl não percebeu a pessoa diante de si que também estava interessada nele mais do que um amigo, e de quem ele também gostava...

Agora Varina abraçou Karl novamente. Ele se inclinou e ela virou o rosto para o embaixador. O beijo foi delicado e doce, e a culpa sumiu um pouco novamente. “Se você precisa disso, então encontre outra pessoa...” Talvez um dia, em breve, até mesmo este sussurro fosse embora.

Karl não sabia que precisava tanto disso e desejou ter percebido antes.

— Deixe-me ajudar você, Sera — falou Varina, e seu calor deixou o corpo do embaixador. — Karl, por que não pega uma chaleira para o chá? — Ele observou as duas mulheres por um instante, depois pegou a chaleira, colocou água dentro da jarra e pendurou no suporte sobre o fogo, ao lado do guisado. Encontrou a hortelã e as ervas, colocou no saquinho de linho e amarrou.

— Vou ao mercado comprar um pouco de mel e talvez croissants — disse Karl. — Com o cortejo fúnebre de Audric hoje, aposto que os mercados...

Ele parou.

Uma sombra passou pelas persianas da janela. Karl ouviu passos do lado de fora da porta. Alguém bateu. — Serafina? Serafina, você está aí?

Ele conhecia a voz. Lembrou-se dela.

Serafina deixou cair a faca que segurava. O objeto bateu na mesa e depois no chão, mas Serafina não notou, pois corria para a porta. — Talis!

Ela escancarou a porta; Karl viu o homem parado ali sobre o ombro de Serafina, então a mulher ficou de joelhos, soltando um grito. — Nico! Ó, Nico! — O menino também estava ali e deu um abraço forte na matarh. Ambos choraram.

— Matarh! Eu sabia que a senhora viria procurar por mim. Eu sabia... — Nico viu os dois ao mesmo tempo. — Varina — falou o menino. — Ah. — De repente, ele soltou a matarh. — Talis...

— Eu vi os dois — disse Talis, que encarava Karl. — Serafina, pegue Nico e saia. Agora.

Serafina olhava de Talis para Karl. O homem ergueu a bengala, e Karl percebeu o que aquilo significava, percebeu agora melhor do que nunca. Ele levantou a mão, pronto para lançar o próprio ataque. — O que... — dizia Serafina.

— Apenas saia! — falou Talis. — Agora!

— Não — disse Serafina enquanto segurava Nico com força, e embora parecesse que ela não quisesse outra coisa senão seguir o conselho de Talis, a mulher permaneceu entre os dois. — Eu não vou sair até entender o que está acontecendo.

Talis gesticulou para Karl com a mão livre e falou — Esse desgraçado é o embaixador numetodo, Serafina. Esse é o homem que tentou me matar e a razão pela qual você teve que ir embora da cidade. Ele sequestrou Nico quando voltou aqui e usou o menino como isca para me pegar.

Serafina olhava fixamente para Karl, com a expressão chocada de quem tinha sido traída.

— Isso é verdade? — perguntou ela. — Diga-me.

Karl deu uma olhadela para Varina, que confirmou com a cabeça. — É verdade, em grande parte — respondeu Karl. — Eu sou o embaixador ca’Vliomani. Sou um numetodo, assim como Varina. Nós encontramos Nico aqui enquanto procurávamos por Talis, e, sim, ficamos com ele; embora eu deva chamar a atenção para o fato de que Nico estava sozinho nas ruas quando Varina o encontrou, e nós cuidamos dele, mantivemos o menino alimentado, aquecido e a salvo. Dissemos para as pessoas na vizinhança que o encontramos... e, sim, fizemos isso na esperança de que Talis viesse atrás de Nico, mas ele nunca veio. Quanto a Talis, eu acredito que ele seja o homem que matou a archigos Ana. — Serafina abraçou forte Nico. A confusão lutava com o medo em seu rosto, enquanto ela escutava Karl, o olhar ia de um para o outro. — Agora, pergunte a ele uma coisa para mim — disse Karl. — A verdade. Pergunte a ele quem matou a archigos.

Serafina olhou para Talis, que balançava a cabeça ao dizer — Não, não fui eu. — Mas o rosto da mulher ficou vermelho.

— Você sabia onde Nico estava e não foi até ele? — Serafina berrou baixo para Talis. — Não tentou ajudá-lo? Não me mandou notícias enquanto eu morria de preocupação por ele?

— Eles teriam me matado se eu tivesse ido até ele, Serafina. E talvez Nico também.

— Não. — Varina aproximou-se de Karl. — Você está errado, Talis. Nós só queríamos saber a verdade. Os numetodos estavam sendo culpados pela morte da archigos Ana; nós mesmos corríamos perigo. Eu... nós... jamais teríamos feito qualquer coisa para prejudicar Nico. Jamais. Você sabe disso, não sabe, Nico?

Nico balançou a cabeça enfaticamente sobre o ombro da matarh e disse — Eu sei. Varina foi boa comigo, matarh. Ela disse que tentaria encontrar a senhora... e olhe só, ela conseguiu.

— Talis é um feiticeiro ocidental, Serafina — falou Karl. — O último ocidental parecido com ele que eu conheci foi Mahri, o Maluco, e ele também tentou matar Ana.

À menção do nome de Mahri, a bengala tremeu nas mãos de Talis e os músculos em seu maxilar ficaram retesados. — Você conheceu Mahri?

— Conheci. E conheci Mahri muito bem. E sei que ele não estava aqui pelo bem de Nessântico. E nem você. Sera, sinto muito. Eu sei que você ama este homem, mas você precisa entender o que ele é. Talis é um inimigo dos Domínios, bem mais do que qualquer numetodo.

— Ela sabe o que eu sou — resmungou Talis. — Sera, eu não mudei. Eu amo você de verdade; amo Nico também. Eu o encontrei e vim trazê-lo para você. Se você não estivesse aqui, eu iria para Ville Paisli a seguir para encontrar você. Não sou o monstro que eles estão pintando. — Ele fez uma cara feia para Karl e Varina. — Se eu fosse, não teria esperado; eu teria atacado o embaixador sem me preocupar se você e Nico estavam no caminho. Sera, por favor. Afaste-se.

Em vez disso, ainda com Nico nos braços, ela voltou-se para Karl e Varina e ficou entre os dois e Talis. — Eu conheço Talis. Eu acredito quando ele diz que não matou a archigos. Se vocês querem conversar com ele, bem, aqui está ele. — Serafina fez uma pausa e um carinho na cabeça de Nico. — Eu confiei em vocês dois. Agora peço que confiem em mim.

Karl deu uma nova olhadela para Varina. Ela tinha abaixado as mãos e deu um discreto aceno de cabeça, e Karl também deixou as mãos caírem.

— Tudo bem — falou ele. — Diga para Talis colocar aquela bengala de lado, e nós podemos conversar.

 

Jan ca’Vörl

O TEMPLO EM BREZNO era menor do que o Templo do Archigos em Nessântico, e não tão venerável e sagrado quanto o Velho Templo na Ilha A’Kralji (ou com um domo tão impressionante). Mas o domo de Brezno e vários de seus famosos afrescos foram pintados pelo grande artista firenzciano co’Goslar, e eram impressionantes. As figuras compridas e estranhas de co’Goslar agigantavam-se e contorciam-se sobre os suplicantes no templo, vestidas com roupas transparentes ou peladas: Cénzi, sim, estava em destaque, mas também estavam representadas pessoas em Firenzcia que foram importantes para a fé concénziana. Havia Gareth ca’Lang, o primeiro a’téni de Brezno, com a espada amarrada ao braço sem mão enquanto lutava uma batalha perdida contra os hereges da seita de Karinthia; havia Pewitt, o Desgraçado, sendo atacado pelos moitidis, que devoravam e arrancavam a carne do seu corpo vivo, que debochavam do homem ao consumir seu corpo enquanto ele observava em sofrimento; havia Ursanne ca’Sankt, a grande mártir que muitos imaginavam que seria archigos enquanto viveu, que tentava desesperadamente afastar os estupradores de Tennshah, de cuja união indesejada nasceria o grande starkkapitän firenzciano Adalwulf, que mais tarde expulsaria os tennshas de seus povoados em volta do lago Firenz.

Jan estava cercado por história e tomado por uma fúria movida pela fé. Parecia apropriado. Aos olhos dele, sua reconciliação com a noção de que a matarh tinha a intenção de disputar o Trono do Sol fora uma luta tão titânica quanto qualquer uma das representadas aqui. Jan confrontou Allesandra após a longa conversa com Sergei ca’Rudka, mas, no fim, ele disse que compreendia, mesmo que não aprovasse. Jan não tinha certeza se isso era verdade ou se, depois de várias viradas da ampulheta de discussão, a declaração pelo menos deixou que ele dormisse um pouco, mas a matarh aceitou o que Jan falou.

O hïrzg acompanhou Allesandra ao templo a pedido do archigos e olhava para o domo enquanto os dois aguardavam Semini. — Eu me lembro da primeira vez que vi essas pinturas — falou Jan para tentar quebrar o silêncio incômodo. — Elas me assustavam; pensei que fossem fantasmas. Imaginei que as figuras se mexiam e saíam da pintura para me perseguir... — Jan riu; ele parecia rir muito pouco desde os eventos que culminaram em sua sagração como hïrzg. — Agora apenas acho que são dramáticas demais e nem tão bem pintadas assim.

— Não diga isso para Semini — falou a matarh. — Ele adora co’Goslar... Ah, lá está ele.

Semini veio a passos largos na direção dos dois, saindo detrás do Alto Púlpito no coro. Entre a Segunda e a Terceira Chamadas, o templo ficava geralmente deserto, e os gardai que entraram antes de Jan e Allesandra agora estavam a vários passos de distância, em silêncio, após terem retirado visitantes desgarrados da câmara principal. Os três estavam tão sozinhos quanto parecia possível para Jan ultimamente.

— Meu hïrzg — trovejou Semini, a voz reverberou no domo enquanto ele fazia o sinal de Cénzi para Jan. — E a’hïrzg. — Jan viu o archigos sorrir para ela; Semini parecia prestes a pegar a mão de Allesandra, embora o gesto tivesse sido uma terrível quebra de protocolo. Mas o homem parou a alguns passos cautelosos, mais perto talvez do que deveria estar, mas não tão próximo a ponto de ser extraordinariamente óbvio. Jan sentiu um pouco da irritação voltar; ele nem podia culpar a matarh por arrumar um caso quando o vatarh traiu a esposa tantas vezes. No entanto, ficava incomodado ao saber. A visão dos dois juntos, dos corpos enroscados como o dele esteve com Elissa... Não, Jan sentiu um arrepio e balançou a cabeça para afastar a cena.

— Obrigado por virem — continuou Semini, que ainda olhava mais para Allesandra do que para Jan. — Como eu disse, recebi uma mensagem com, segundo me disseram, uma mensagem idêntica para o hïrzg. Ela está aqui comigo.

Semini entregou um pergaminho enrolado e selado para Jan e observou o hïrzg examinar o selo na cera azul — um punho em uma manopla, o selo de Nessântico desde a época do kraljiki Justi. Jan desenrolou o papel e vasculhou as letras escritas à tinta com uma fúria crescente. Quase ouviu a voz do onczio Fynn crescer dentro dele — Jan sabia como Fynn teria reagido a esta mensagem. Em silêncio, com a boca franzida, ele entregou o pergaminho para Allesandra e ouviu a matarh tomar fôlego quase que imediatamente. Sem dizer uma palavra, ela devolveu a mensagem de volta para o filho.

— Como ele ousa falar conosco dessa maneira? — disparou Jan. Ele abriu as mãos e deixou o papel cair no piso de mármore. A palavra “ousa” ecoou na câmara por muito tempo depois de tê-la dito. O som pareceu agitar os gardai, que se remexeram de um jeito nervoso. — Ele fala conosco como se Nessântico ainda governasse Firenzcia. “Devolvam o antigo regente para nós em um mês ou tomaremos medidas efetivas para recuperá-lo”. Como ele ousa fazer ameaças assim? — Outro eco. — Deixe que ele tente; nós iremos esmagá-lo.

Jan ergueu os olhos para o domo. Fantasmas... Nenhum deles toleraria essa situação; eu também não posso. Isso é um tapa na cara.

— Jan, eu compreendo o que você sente; acredite em mim, eu tive a mesma reação — disse Allesandra.

— “Mas...?” — disparou Jan com raiva ao se voltar para ela. — É isso o que a senhora ia dizer, matarh? “Mas...” que “mas” seria esse?

Em uma reação estranha, ela sorriu. — Meu querido, você soou igualzinho a Fynn, ou talvez ao meu vatarh. Eu já vi os dois rugirem desse mesmo jeito quando se consideravam insultados.

Allesandra ter achado graça só serviu para aumentar a irritação de Jan. Ele olhou atrás de Semini, para o mural depois do Alto Púlpito, para as tiras ensanguentadas da carne de Pewitt presas às garras dos moitidis, e tentou conter a irritação.

— O “mas”, meu filho, é o que vínhamos considerando — continuou ela. — Talvez essa seja simplesmente a oportunidade de que precisávamos. A desculpa para agir.

— A desculpa? — Jan começou a falar, e, por um momento, sentiu-se bem mais novo, uma criança novamente. — Ah. — Essa palavra não produziu eco algum. Flutuou no ar entre eles, perdida na imensidão do templo. Jan abaixou o olhar para o papel meio enrolado sobre o piso de mármore, e a suspeita cresceu dentro dele. — Estranho que uma mensagem como essa levasse exatamente à situação que a senhora queria, matarh. Uma provocação deslavada de Nessântico contra nós. Que maravilhoso senso de oportunidade. — Jan ergueu as sobrancelhas para ela.

Allesandra balançou a cabeça. — Eu não sabia nada sobre essa situação até agora. Não tive nada a ver com isso. Pergunte ao archigos.

Semini concordou com a cabeça rapidamente. — As cartas chegaram seladas através de vias diplomáticas. Se o hïrzg duvida, posso mandar o mensageiro ser trazido aqui.

Jan abanou a mão e desviou os olhos dos dois para os murais no domo. — Não, não há necessidade. É que... — O olhar retornou para a matarh. — Parece que Cénzi quer o que a senhora quer, matarh. — Talvez fosse coincidência. Allesandra parecia genuinamente chocada. Talvez fosse um sinal. Ele não estava contente com essa perspectiva.

— Ah, certamente — respondeu Semini. — Sem saber, o kraljiki agiu como queríamos, ou Cénzi fez com que ele agisse assim. O kraljiki ameaçou a Coalizão e nossa Fé diretamente, e não temos escolha a não ser responder para proteger nossos interesses e fronteiras. Este é o momento, hïrzg. Esta é a ocasião. A maior parte da Garde Civile de Nessântico foi mandada para oeste, para os Hellins; eles levarão tempo para reunir os chevarittai e o restante da Garde Civile, para preparar os ténis-guerreiros que estiverem disponíveis, e para alistar os soldados de infantaria necessários para honrar essa ameaça. — O archigos sorriu e acenou com a cabeça para Allesandra. — Sua matarh sabe disso. É o momento de o senhor demonstrar sua liderança e levar a Garde Civile e os chevarittai de Firenzcia à guerra. O senhor reunificará os Domínios como eles eram antes, hïrzg Jan, e seu nome será lembrado eternamente por isso.

— Eu não sei...

— Eu sei — disse Allesandra com uma voz firme e orgulhosa. — Você está pronto para isso, Jan.

Ele hesitou. Jan ainda estava incomodado por ser usado pela matarh para os objetivos dela; também estava atormentado pela própria incerteza se poderia ser o hïrzg que ele queria ser. “Também acho que um bom hïrzg ouve a mensagem mesmo quando tem problemas com o mensageiro.” Palavras de Sergei. Elas acalmaram Jan. Elas fizeram Jan decidir.

Um instante depois, o hïrzg concordou com a cabeça. — A senhora estava certa naquela noite. Preciso consultar o starkkapitän ca’Damont e os chevarittai. É o que a senhora queria, não é, matarh?

Se Allesandra ouviu um leve deboche na voz do filho, ela não reagiu. — Eu irei com você, Jan. Eu conheço o starkkapitän e conheço a Garde Civile. Posso ser sua mentora nesta situação. Vá e mande Roderigo convocá-los. Eu irei atrás em um instante.

Jan ergueu as sobrancelhas, incomodado por ter sido obviamente dispensado, mas fez o sinal de Cénzi para Semini e uma leve mesura para a matarh. — Obrigado por passar essa informação, archigos. Nós precisaremos de sua força e orientação. Matarh, eu falo com a senhora mais tarde.

Ele foi embora então, com quase todos os gardai à sua volta ao sair do templo. — Seu filho será um belo hïrzg. — Jan ouviu Semini rosnar com sua voz baixa ao chegar às portas. Ele presumiu que o elogio foi calculado para que fosse ouvido e considerado genuíno.

Jan sorriu para si mesmo. Ele seria um belo hïrzg. Ele surpreenderia os dois com o tamanho da competência de sua liderança.

Jan suspeitava que eles poderiam não gostar do resultado.

 

Allesandra ca’Vörl

A PASSAGEM NOS FUNDOS do templo era escura, iluminada apenas eventualmente por lâmpadas com tampas verdes, penduradas em ganchos cimentados na parede. As colunas estriadas ao longo da passagem não deixavam que o caminho fosse visto dos jardins do pátio, localizado entre a asa norte do complexo do templo e o templo em si. As grandes janelas de vitral agigantavam-se escuras sobre Allesandra. Ela quase corria pela passagem, pois não queria ser vista, apesar de ter recebido a garantia de que não haveria ténis na área; suas sandálias de sola de couro macio pisaram silenciosas no granito encerado. Foi fácil sair de mansinho dos próprios aposentos no palácio pelo corredor de serviço, esperar até que não houvesse ninguém de olho para abrir a porta, atravessar a praça correndo e entrar nas ruas de Brezno. Allesandra usava um capuz sobre o cabelo que encobria o rosto, e a tashta era simplória. Ela podia se passar por uma mulher simples correndo para chegar em casa à noite. Semini disse que a porta estaria aberta e informou quais os lugares que os ténis geralmente evitavam. As cerimônias da Terceira Chamada haviam acabado há uma virada da ampulheta.

A a’hïrzg estava quase lá. A uma curva à esquerda na próxima passagem, depois uma subida pela escada até o quarto que Semini mantinha no complexo do templo quando não queria retornar aos próprios aposentos na ala norte.

— Allesandra.

Ela levou um susto diante da voz sibilante. A mão alcançou a faca escondida na faixa da tashta.

— Francesca — disse a a’hïrzg.

Uma silhueta surgiu ao lado de uma das colunas. Na luz difusa, ela viu a mulher, cujas rugas aprofundavam as sombras no rosto. O brilho verdejante das lâmpadas fez Francesca parecer doente. Ela espalmou as mãos, como se mostrasse para Allesandra que não estava armada. — Eu sei — disse Francesca. — Eu sempre soube.

— O que é que você sabe, Francesca?

Ela gargalhou. O som assustou os estorninhos negros que pousavam nas árvores frutíferas do pátio para passar a noite. Eles levantaram voo e esvoaçaram agitados. Allesandra sentiu um cheiro de álcool no hálito forte da mulher. — Não deveríamos brincar de joguinhos, você e eu — falou a mulher. — Não há nada entre mim e Semini há anos, e se você está disposta a abrir as pernas para que aquele velho aríete soque aí dentro, por que devo me importar?

Allesandra sentiu um calor nas bochechas diante da baixaria e respirou fundo pela boca. — Se você não se importa, por que está falando comigo?

A expressão de quem achava graça sumiu do rosto da mulher. Ela torceu o nariz enquanto encarava Allesandra. — Você é bonita. Semini sempre gostou de você; eu ouvi o carinho na voz dele quando você finalmente voltou de Nessântico. As amantes que ele teve depois... sempre achei parecidas com você. Semini achava também, imagino. Eu sei o rosto de quem ele via quando metia nelas. Ah, isso lhe incomoda, não é? Aposto que ele nunca lhe contou isso. — Francesca aproximou-se de Allesandra, que deu um passo para trás, com a mão ainda no cabo de couro da faca. — Aposto que tem muita coisa que ele não te contou.

— Francesca, você está bêbada e eu não quero ter essa conversa. Agora, deixe-me...

A mulher levantou a mão e torceu a boca com desdém. — Ainda não. Olhe para mim. Olhe... — Francesca abanou as mãos na direção do rosto. — Eu fui linda um dia. Ora, eu era a amante do kraljiki Justi; eu poderia ter sido a esposa dele se o meu vatarh tivesse escolhido o lado certo na guerra. Mas ele não escolheu. E agora... — Por um momento, Allesandra pensou que a mulher não fosse falar novamente. Ela ficou parada ali, o corpo cambaleava levemente. — Você acha que conhece meu marido? Não o conhece. Eu vi você quando chegou a notícia da morte da archigos Ana. Vi o horror e a tristeza no seu rostinho bonito. Você sofreu porque gostava daquela megera frígida. Quanto a mim, eu a odiava. Fiquei feliz por saber que ela morreu. Ri alto. Mas você... a archigos Ana lhe tratou bem, não foi? Ela foi uma matarh para você quando sua própria família lhe abandonou. A archigos Ana... Bá! — Francesca franziu os lábios, virou a cabeça e cuspiu no piso. — Ele sabe quem a matou. Assim como eu.

— Quem? — perguntou Ana. A mão foi parar na garganta. Ela achava que sabia a resposta.

Francesca deu um passo cambaleante para frente, quase caiu e segurou na tashta de Allesandra. — Pergunte a ele — rosnou a mulher, o mau hálito tomou as narinas de Allesandra. — Faça Semini lhe contar, e aí veja o que você sente por ele.

A gargalhada de Francesca provocou outra revoada de pássaros assustados, e ela afastou-se de Allesandra com um empurrão. Foi cambaleante na direção da arcada que levava para a ala norte, sem olhar para trás. — Pergunte a ele. — Allesandra ouviu a mulher repetir, as palavras ecoaram pelo pátio.

Ela viu Francesca abrir com violência as portas e ouviu quando foram fechadas ao sair. Allesandra ficou parada ali por vários instantes, enquanto os estorninhos pousavam nas árvores frutíferas novamente e a lua surgia sobre os domos do templo.

Finalmente, Allesandra deu meia-volta e foi embora do templo, de volta para seus aposentos e para os próprios pensamentos.

 

Nico Morel

AO LONGE, Nico podia ouvir cornetas e zinkes enquanto o cortejo fúnebre do kraljiki Audric prosseguia pela Avi a’Parete a alguns quarteirões de distância. Ele imaginou como seria a procissão — todos os ca’ e co’ em desfile atrás da carruagem funerária, as rodas movidas pela magia dos ténis, a nova kraljica Sigourney seguindo na própria carruagem especial. Seria esplêndido aquele cortejo. Uma maravilha. Audric não era muito mais velho do que ele, e Nico imaginou como seria ser tão jovem e ser também kraljiki. Ele perguntou-se como alguém poderia ter odiado tanto Audric a ponto de matá-lo. Nico não conseguia se imaginar odiando uma pessoa tanto assim.

Ninguém mais na sala parecia notar os sons do funeral — ou talvez tenham escolhido ignorá-los.

— Eu não matei a archigos Ana.

Nico estava sentado no colo da matarh. Ela mal o soltou desde que o viu. Não que ele se importasse; estava bem contente de sentar abraçado a ela, protegido. A sensação fez com que Nico percebesse como sentiu falta da matarh, como esteve com medo por tanto tempo. Ele e a matarh estavam sentados à lareira, e o fogo aquecia a lateral do corpo. Talis estava sentado à mesa no centro da sala; Karl e Varina sentaram-se do outro lado. Nico quase podia ver a tensão entre eles, um arco de fogo quase tão quente quanto aquele às suas costas. Sua matarh sentia também; ele notou o arrepio nos músculos dela e a força com que o abraçava, e Nico sabia que ela tinha medo de que alguma coisa fosse acontecer.

— Eu não a matei — repetiu Talis. — É a verdade.

— Certo — respondeu Karl. — E nós simplesmente devemos acreditar porque você disse que é verdade.

Talis deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Se vocês não quiserem acreditar, tudo bem. Continua sendo verdade. Mas... — Talis lambeu os lábios. — Eu sei como ela foi morta e sei quem deve ter sido, pelo menos parcialmente, o responsável.

— Continue — disse Karl.

— Foi com um... — Talis meteu a mão na bolsa presa ao cinto. Nico viu Varina e Karl ficarem tensos com o gesto, e sua matarh ficou em expectativa. Karl ergueu as mãos subitamente, como se estivesse pronto para lançar um feitiço. Talis levou um susto e falou — Sem magia. Eu não usaria, não com Sera e Nico aqui. Eu não usaria.

Após um instante, Karl pousou as mãos na mesa novamente, e Talis abriu a bolsa. Ele retirou uma pequena bolsinha de pano, desamarrou o nó que a fechava e derramou um montinho de pó negro na mesa. Karl olhou fixamente para o pó e disse — Havia uma poeira negra por toda parte do Alto Púlpito e nas roupas de Ana. Aquilo... aquilo era a mesma coisa?

Talis concordou com a cabeça. — Sim. — Ele recolheu tudo, menos uma pitada do pó, e recolocou na bolsa. — Nós chamamos de bosh lumm em nossa língua. Areia negra, na língua de vocês. Aqui... — Da bolsa, Talis retirou uma tigela de latão rasa e larga, marcada com figuras estranhas na borda. Ele espanou o restante do pó para dentro da tigela e colocou no centro da mesa. — Deixo esta parte com vocês. Lancem um pequeno feitiço de fogo na tigela, apenas uma centelha mínima. — Talis deu um breve sorriso. — E não coloque o rosto muito perto, se quiser manter essa barba.

Karl olhou de relance para Varina, obviamente hesitante. Ela voltou-se para a matarh de Nico e perguntou — Sera? Podemos confiar nele?

Nico mais sentiu do que viu a matarh concordar com a cabeça, mas as mãos dela apertaram o filho com mais força ainda no mesmo momento. Varina fez um rápido gesto com a mão e disse uma palavra em outra língua. A palavra soou como “tihn-eh” aos ouvidos de Nico, e assim que Varina falou, uma centelha apareceu entre os dedos. Ela girou a mão na direção da tigela, e a centelha saiu voando.

Assim que a centelha caiu na tigela, houve um clarão e estrondo simultâneos, como se uma trovoada tivesse ocorrido dentro do objeto. A tigela deu um pulo e retiniu, e uma fumaça branca irrompeu. Alguém gritou; Nico não conseguiu dizer quem foi. A matarh virou-se com o barulho para proteger o filho com o corpo. Ela se virou devagar, e o menino conseguiu ver novamente. Karl esticou a mão sobre a mesa, na direção da tigela, de onde ainda saía fumaça. Havia um odor estranho no ar, como Nico imaginava que o mundo subterrâneo dos moitidis cheirasse.

— Isso foi apenas uma pitada da areia negra — dizia Talis. — Eu diria que vocês podem imaginar o que uma grande quantidade pode fazer, mas eu realmente acho que não conseguiriam.

— Eu posso imaginar — falou Karl, que examinava a tigela. Pela maneira como estava virada, Nico viu que o fundo ficou escurecido, como se tivesse sido queimado. O rosto de Karl estava sério quando ele pousou o objeto. — Eu estava lá quando Ana morreu.

Talis franziu os lábios.

Varina afastou a tigela. Ela ergueu a cabeça e pareceu ouvir o som distante do cortejo fúnebre de Audric pela primeira vez. — O kraljiki. — Seus olhos ficaram arregalados. — Os rumores...

— ... é bem possível que sejam verdadeiros, pelo que eu ouvi — completou Talis. — Mas aquilo também não fui eu que fiz. — Ele gesticulou para Nico. — O menino pode dizer. Eu estava com ele quando aconteceu. Nós ouvimos o toque das trompas, não foi, Nico?

O menino concordou com a cabeça.

— Magia ocidental... — sussurrou Karl. Ele pegou a tigela novamente e olhou fixamente para o interior sujo de fuligem, como se procurasse respostas escritas ali. — Nós estamos apenas começando a entendê-la, e eu posso lhe afirmar, Talis, que ela não vem dos deuses, da mesma forma que a magia dos ténis não vem de Cénzi.

— Então vocês ainda não entendem — disse Talis. — Isso não é magia. Pelo menos não a areia negra em si. É tão magia quanto fazer pão, se a pessoa conhece a receita.

— Você disse que sabe quem é o responsável — falou Karl. — Diga o nome.

Talis respirou fundo. — O nome dele é Uly. Ele tem uma barraca no Mercado do Rio. É um ocidental, mandado para cá na mesma época que eu. É um guerreiro. Seu trabalho é informar o tecuhtli; o tecuhtli é o que o seu kraljiki seria se também fosse o comandante da Garde Civile. Eu vim aqui a mando do nahual, o líder da minha ordem, para ajudar Uly e também para descobrir o que aconteceu com Mahri. E... — Talis respirou fundo novamente. — Eu cometi um erro. Fomos nós, os nahualli, os feiticeiros, que descobrimos como criar a areia negra; é um segredo que nós mantivemos. E sim, se outras pessoas pensavam que a areia era mágica, nós não corrigimos o erro. Mas Uly... nós estávamos aqui há muito tempo, e ele era a única pessoa que eu conhecia que falava minha língua, e até eu encontrar Sera... — ele olhou para a matarh de Nico e sorriu — ... ele era a única pessoa que parecia se importar comigo. Eu fiz o que não deveria ter feito. Ajudei Uly a fazer a areia negra. Tentei evitar que ele conhecesse os detalhes, mas... — Talis pegou a tigela da mesa e guardou novamente na bolsa. — Uly não era idiota. Ele pode facilmente ter visto o suficiente para reproduzir o procedimento. Seu trabalho era apenas me fornecer os ingredientes, afinal de contas.

— Você está dizendo que esse tal de Uly assassinou Ana? — perguntou Karl. — É isso que quer que nós acreditemos agora?

Talis deu de ombros. — Estou dizendo que é possível. Provável. Eu sei que não fui eu. E com certeza foi bosh lumm que matou a archigos. Não magia ocidental, nem magia de numetodo também.

Karl cerrou as mãos sobre a mesa. — Onde está esse tal de Uly?

— Eu não o vejo desde que você me atacou — respondeu Talis. — Eu contei para Uly a respeito do ataque e disse que eu desapareceria por um tempo; desde então, não ouvi mais falar dele. Imagino que o melhor lugar para começar a procurá-lo seria o Mercado do Rio, mas... — Ele começou a falar, mas Nico se agitou nos braços da matarh.

— Uly não está lá — falou o menino. Todos olhavam para ele agora, e a matarh soltou mais os braços ao abaixar o olhar para o filho no colo.

— Nico?

— É verdade, matarh. Uly não está lá. Depois que eu saí da casa da tantzia Alisa e andei até aqui, achei que Uly podia me dizer onde Talis estava, mas quando fui ao Mercado do Rio, a barraca de Uly estava vazia e a vendedora de pimentas falou que ele tinha ido embora.

Talis concordou com a cabeça e disse — Eu imaginei que isso aconteceria. Não sei onde ele está. Ainda na cidade, provavelmente, mas onde...

— A senhora das pimentas disse que ele pode estar no mercado do Velho Distrito — informou Nico.

Karl já estava de pé. Agora Talis levantou-se também e falou — Eu não sei se Uly matou Ana, embaixador. Você também não sabe.

— Eu pretendo descobrir.

— Então eu irei com você.

— Por quê? — perguntou Karl. — Para detê-lo caso Uly me diga que foi você, de fato, ou caso ele não tenha a menor ideia de como fazer essa sua areia negra?

— Uly não falará com você, não importa o que fizer com ele — disse Talis. — Uly é um guerreiro, foi treinado para morrer antes. Ele confia em mim. Você? No primeiro momento em que perguntar algo que gere suspeitas, Uly irá matá-lo e fugir. Ou morrerá feliz tentando.

— Eu estarei com Karl — falou Varina, que estava de pé também, de braço dado com ele. — E nós somos mais fortes do que você pensa.

— Vocês precisarão de mim — insistiu Talis.

— Tudo bem — disse Karl finalmente. — Mas não com isso. — Ele apontou para a bengala de Talis.

O homem fechou a cara. — Eu não posso deixar isto aqui. Não deixarei.

— Então ficará com isso.

Talis pareceu considerar a questão por um momento e falou — Tudo bem. Eu deixarei. Só dessa vez. Eu vou.

— Eu vou também — disse Nico.

Todos os três voltaram-se para o menino, e Nico sentiu a matarh abaixar o olhar para ele também. — Não! — disseram os quatro ao mesmo tempo.

 

Niente

A VISÃO NA TIGELA PREMONITÓRIA perturbou Niente. Ele sentiu que o tecuhtli Zolin examinava seu rosto em busca de qualquer sinal do que as visões indicavam e abaixou a cabeça ainda mais no torvelinho de bruma azul que saía da água.

Uma mulher sentada em um trono brilhante, com o rosto horrivelmente desfigurado e contorcido por dor, sem um olho. Um exército avançava pela bruma atrás dela... Ali, um menino e uma mulher mais velha, e atrás dele também um exército, só que com estandartes pretos e prateados, e não o tom azul e dourado dos Domínios... Um homem que usava o colar de uma concha, e com ele — seria possível? — um nahualli que parecia Talis, embora ele estivesse abraçado a uma mulher e uma criança que não eram tehuantinos, e sim orientais...

As imagens vinham rápido demais, e Niente tentou pará-las com a mente, tentou espaçá-las no tempo para mostrar traços do futuro que poderiam acontecer. Ele rezou para Axat e pediu por clareza, pensou no próprio exército e nos navios que vinham pelo rio ali perto...

Os navios iam de um lado para o outro no meio de uma tempestade de fogo no céu. Exércitos deslocavam-se sobre a terra, havia explosões brilhantes de areia negra, uma densa fumaça pairava sobre os campos pisoteados... Mas a bruma parecia se dividir em duas — como às vezes acontecia quando Axat queria mostrar dois resultados possíveis. Ele viu um campo apinhado de corpos de guerreiros tehuantinos e um único navio de sua frota com velas esfarrapadas, que fugia depressa para oeste, na direção do sol poente, enquanto outras embarcações ardiam em chamas laranjas na água... “Oeste... casa...” Ele quase era capaz de ouvir as palavras no vento.

Mas esta visão foi fechada, e outra surgiu...

Na segunda visão, havia uma batalha intensa e sangrenta nos campos diante da cidade, e o exército de azul e dourado recuou para dentro de suas sólidas muralhas... A mesma cidade, agora com muralhas rachadas, e era difícil enxergar através da fumaça e da bruma da visão, mas ele pensou ter vislumbrado o exército tehuantino entrar aos borbotões pelas brechas...

Havia outra cidade ao longe, ainda maior, e parecia atraí-lo...

E lá estava de novo... a imagem de um guerreiro tehuantino morto, com um nahualli caído ao lado dele...

— O que a Senhora está tentando me mostrar, Axat? — perguntou Niente com a voz hesitante.

— Nahual?

Niente ergueu o olhar; a bruma transbordou da tigela e dissipou-se.

O acampamento tehuantino em volta dos dois homens estava barulhento e agitado enquanto o sol fraco tentava penetrar pelas nuvens ralas e altas. Niente viu-se com saudades do sol intenso e mais quente da própria terra; este lugar era mais frio do que ele gostava, como se sugasse o calor do sangue. O tecuhtli Zolin olhava fixamente para o nahual, o branco dos olhos reluzia em contraste com as linhas negras inscritas em volta das órbitas, a águia vermelha no crânio parecia querer alçar voo. Havia ansiedade no rosto dele. De ambos os lados do tecuhtli, estavam Citlali e Mazatl, e seus olhares não eram menos ansiosos. — O que a visão lhe mostrou? — perguntou Zolin. — O que ela disse?

— Muito pouco — respondeu Niente, e o tecuhtli demonstrou irritação ao mostrar os dentes.

— Muito pouco. — Zolin imitou o tom de Niente. — O tecuhtli Necalli costumava me dizer que suas visões na tigela premonitória forneciam estratégias para ele, guiavam a maneira como Necalli dispunha os guerreiros e avançava pelo terreno. Ele disse que você era o nahual de Axat, que nos mostrava o caminho para a vitória. Mas tudo o que você me dá é “muito pouco”.

— Eu não dou nada ao senhor — disse Niente, e Zolin respondeu com uma cara de desdém. — Assim como também não dei nada ao tecuhtli Necalli. Sou apenas o canal de Axat. Eu posso informar o que Axat me mostra, mas a visão não é minha. É Dela. Tudo o que tenho a dar é o que Axat oferece. Se o senhor quiser reclamar sobre ser pouca coisa, fale com Ela.

— Então me diga essa pouca coisa, nahual — falou Zolin. O tecuhtli apontou para leste, onde os olheiros mais avançados disseram que um exército dos Domínios esperava por eles, fora da cidade, a meio dia de marcha de distância. Niente fora a cavalo com Zolin para ver a cidade, que era bem maior do que a maioria dos vilarejos abandonados por onde eles marcharam nos últimos dias, embora não tão elaborada ou grande quanto aquela que Niente tinha visto na tigela premonitória, essa Nessântico onde o kraljiki vivia. Ainda assim, a cidade aninhada atrás das muralhas, e que se esparramava a partir delas, era pelo menos da metade do tamanho de Tlaxcala ou das outras grandes cidades insulares do império tehuantino, e maior que Munereo ou Karnor.

Parecia que o kraljiki não deixaria que eles avançassem mais sem resistência. Se Zolin quisesse essa cidade, deveria lutar por ela. Niente sabia que isso não incomodava de maneira alguma o tecuhtli.

— Eu vislumbrei uma batalha — disse Niente. Ele fechou os olhos e tentou se lembrar das cenas que lampejaram na tigela premonitória. — Na visão de Axat, o exército dos Domínios lutou, mas depois recuou para trás das muralhas da cidade quando investimos contra eles. Eu vi as muralhas rachadas e os tehuantinos entrando...

— Xatli Ket! — Niente parou quando Zolin soltou o grito de guerra de sua classe; Citlali e Mazatl fizeram o mesmo, e o berro foi repetido, cada vez mais fraco, pelos outros guerreiros presentes. — Então Axat mostrou a nossa vitória para você — falou o tecuhtli. Ele deu um tapa na armadura de bambu que cobria o peito.

— Talvez. — Niente apressou-se a dizer. — Mas Ela também me mostrou nosso exército e frota destruídos, e um navio indo depressa para oeste. Tecuhtli, esse também é um futuro possível; um sinal. Se voltarmos agora, se colocarmos nosso exército nos navios e voltarmos para casa, então esse é um futuro que jamais viveremos. Os orientais temerão para sempre ir à nossa terra novamente. Nós já mostramos a eles as consequências; não há mais nada a provar.

Zolin soltou uma risada sarcástica. Citlali franziu a testa, e Mazatl desviou o olhar, como se estivesse enojado. — Recuar, nahual?

— Recuar, não — insistiu Niente. — Entender que demos uma lição nesses orientais com a ruína de Munereo e Karnor e voltar para casa com a vitória.

— Vitória? — Zolin cuspiu no chão entre eles. — Os orientais pensariam que eles obtiveram a vitória, que corremos assim que vimos seu exército.

— Tecuhtli, se formos derrotados aqui, que bem faria para o nosso povo perder o tecuhtli e tantos guerreiros e nahualli?

— Se formos derrotamos, e não seremos, nahual, se você viu corretamente sua visão, então nosso povo encontrará um novo tecuhtli para liderá-los, e eles treinarão novos nahualli nas tradições do X’in Ka, e nós seremos lembrados quando Sakal nos receber em Seu olho flamejante. Isso é o que será feito, não importa a pouca ajuda que você dê. Está com medo, nahual Niente? Será que a visão do exército oriental faz o mijo escorrer quente por suas pernas?

Citlali e Mazatl riram.

— Eu não estou com medo — disse Niente, e era verdade. Não era medo que revirava seu estômago, mas uma sensação de inevitabilidade. Axat tentava alertá-lo, mas Ela não deixava a mensagem clara o suficiente, ou talvez ele estivesse tão distante Dela que a mensagem estava truncada e difícil de discernir. — Tecuhtli, o que o senhor me pedir, eu farei. Quando me pede para interpretar o que vejo na tigela premonitória, eu também o faço.

Zolin torceu o nariz. — Então isso é o que eu lhe digo para fazer, nahual. Encha seu cajado mágico. Prepare a areia negra. Faça as pazes com Axat e Sakal, e você entrará comigo na cidade dos orientais, e depois iremos até o trono do monarca deles.

Niente ouviu as palavras e abaixou a cabeça para aceitá-las. O único navio que fugia depressa para o sol poente... — Eu farei isso, tecuhtli — falou ele, com pesar. — Eu prepararei os nahualli. Dê-me tempo suficiente, e farei o que acredito que Axat deseja que façamos.

 

 


CONTINUA