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A MAGIA DO ANOITECER
A MAGIA DO ANOITECER

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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          Allesandra ca’Vörl

          Enéas co’Kinnear

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          Karl ca’Vliomani

          Varina ci’Pallo

          A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— A PEDRA BRANCA...

— Deve ter sido o kraljiki que contratou o assassino...

— Os numetodos o contrataram...

— Os tennshas o contrataram...

— Eu ouvi dizer que a própria a’hïrzg foi marcada para morrer, e o filho dela...

Allesandra ouviu os rumores. Era impossível escapar, eles sufocavam Firenzcia como a bruma que surgia todas as noites das florestas em volta do palácio da Encosta do Cervo, para onde a família fora levada depois do assassinato, sob ordens do starkkapitän Armen ca’Damont e do comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg. — O comandante e eu podemos protegê-los melhor lá, a’hïrzg — disse ca’Damont. Ela concordou com a cabeça, com a face impassível.

Fingimento... Allesandra tinha que manter a expressão adequada. Tinha que fazer com que os ca’ e co’ acreditassem que ela sofria. Tinha que fazê-los acreditar no que a a’hïrzg pediria para eles.

Em breve. Mesmo que houvesse pouca esperança agora.

A segurança era visível por toda parte do palácio, com gardai aparentemente em todos os cantos. Allesandra estava na sacada mais alta neste momento e olhava para os topos dos abetos lá embaixo, nas encostas íngremes das montanhas, e para os filamentos cinza esbranquiçados da névoa que passavam entre as árvores e que aumentavam conforme o sol se punha. Ela esfregou um seixo claro e chato entre os dedos.

Allesandra ouviu a porta da sacada ser aberta, seguida por um murmúrio de vozes masculinas. Ela virou-se e viu Semini se aproximar como um urso, vestido de verde e com uma expressão soturna. O archigos não disse nada, foi pé ante pé até a a’hïrzg e parou a uma curta distância — havia gardai em ambos os lados dos dois, a vários passos cautelosos de distância. Ele colocou os braços no parapeito da sacada e olhou para a bruma que se enroscava como braços musculosos em volta das árvores, como fantasmas que cuidavam de um jardim e estendiam as mãos para arrancar as ervas daninhas entre as plantas. De vez em quando, um fiapo de névoa chegava ao nível da sacada e, levado pelo ar frio e úmido, passava pelos tornozelos de Allesandra como se tentasse puxá-la para a escuridão cada vez maior.

— Então... — A palavra soou como um vento baixo entre as agulhas dos pinheiros. — Será que a Pedra Branca virá atrás de mim agora? — Ela viu o olhar do archigos se voltar para o seixo em seus dedos.

— Eu não contratei o assassino, Semini — disse Allesandra. O assassino... ela pensou a respeito disso neste momento. Elissa parecia ter desaparecido no mesmo dia em que o hïrzg morreu, o que deixou Jan arrasado com outro golpe emocional forte como um martelo, somado à morte de seu onczio Fynn. Dois dias depois, chegou uma mensagem nervosa de Jablunkov que dizia que Elissa, filha de Elissa e Josef (nome de solteiro ca’Evelii) ca’Karina, morrera há seis anos e que perguntava se a a’hïrzg possivelmente não cometera algum engano.

Allesandra ficou pensativa. Era possível que “Elissa” tivesse fugido apenas porque sabia que a a’hïrzg mandou uma carta para a família ca’Karina. Era possível que não houvesse conexão entre o desaparecimento dela e a morte de Fynn. Ainda assim, ser próxima de Jan significava que Elissa também tinha acesso a Fynn, e segundo a experiência de Allesandra, era perigoso acreditar em coincidência. Ao contrário, era mais seguro ver a faca afiada da conspiração sob o véu da coincidência.

A voz da Pedra Branca... será que podia ser a voz de uma mulher falando grosso?

Semini acenou com a cabeça ao ver o seixo na mão dela. — Isto é...?

Allesandra ergueu o seixo para que ele pudesse vê-lo e falou — Sim, foi isso que a Pedra Branca deixou para trás. O seixo... me faz lembrar de Fynn e me faz lembrar que encontrarei quem contratou a Pedra Branca e que punirei a pessoa.

Outro aceno. Semini olhou novamente para as árvores lá embaixo. — O Conselho dos Ca’ será unânime em nomeá-la como hïrzgin. Parabéns. — O tom de voz não tinha emoção. — Mas você podia ter conseguido isso há semanas, se não tivesse mandado Jan salvar Fynn.

— Fico contente que alguém se lembre disso. Mas... eu não tenho intenção de ser hïrzgin, Semini.

A afirmação fez o archigos encará-la novamente. Uma mão cofiou a barba grisalha enquanto os olhos negros vasculhavam os dela. — Você está falando sério.

— Estou.

— Eu pensei...

— Você pensa demais, Semini. — Ela abrandou a crítica com um sorriso. O garda atrás dela olhava para o outro lado, e o corpo da a’hïrzg bloqueava o homem em sua retaguarda. Allesandra esticou a mão para afagar o braço do archigos. — Eu pretendo renunciar ao título de a’hïrzg. Afinal, muitas pessoas pensarão exatamente como você neste momento. Sempre haveria rumores de que eu mandei matar Fynn para ficar com o trono em Brezno. Se eu renunciar, a fofoca morrerá com minha abdicação. Deixarei que o Conselho dos Ca’ nomeie um novo hïrzg para Firenzcia.

Semini arqueou uma sobrancelha grossa. — Você falou com Pauli?

A menção do nome criou uma barreira gelada entre os dois, ou talvez fosse a bruma. Ela recolheu a mão e falou com rispidez — Essa não é uma decisão que meu marido deva tomar. — Depois sorriu novamente. — Mas será interessante ver a cara dele quando eu estiver diante do Conselho e disser que abdico. E espero que seja uma completa surpresa para ele, Semini. E também espero que Pauli volte correndo com raiva para Magyaria Ocidental no dia seguinte, para reclamar com o gyula Karvella que foi arruinado pela esposa que Karvella e o hïrzg Jan escolheram a dedo para ele.

— Você realmente deixaria a decisão para o Conselho?

— Ah, eu já falei com alguns dos integrantes. Um número suficiente para os meus propósitos, de qualquer maneira. Eu sugeri que, após a devida deliberação, o Conselho possa vir a crer que as recentes ações de meu irmão mostraram quem ele atualmente favorecia como sucessor: alguém que demonstrou amplamente sua lealdade e habilidade. Ora, Jan seria um belo hïrzg quando crescer, você não acha? Um hïrzg que governaria bem e com força por muitos e muitos anos.

Semini riu, baixinho a priori, depois com mais entusiasmo. — Então esta é a sua intenção.

A pedra parecia gelo na mão de Allesandra. — Não inteiramente. Eu penso no futuro, Semini. Talvez quando os Domínios e a Coalizão estiverem unidos novamente e um líder competente esteja sentado no Trono do Sol, e haja um archigos de direito no Templo de Cénzi que também tenha unificado as metades separadas da fé concénziana, então Jan seria o braço direito perfeito do kralji.

Havia um enorme sorriso no rosto de Semini agora. — Allesandra, você me surpreende.

— Eu não deveria surpreendê-lo. Você e eu, Semini, estamos no mesmo lado nessa história. — Allesandra esfregou a pedra entre os dedos e enfiou em um bolso da tashta. Ela mandaria dourá-la e colocaria em uma corrente elegante. Usaria a pedra debaixo da tashta quando falasse com o Conselho, usaria ao lado do globo partido de Cénzi que a archigos Ana lhe dera. Seria um lembrete da culpa, uma lembrança de que agiu precipitadamente e fez pior com o irmão do que o vatarh e ele jamais fizeram com ela. Sinto muito, Fynn. Sinto que nunca nos conhecemos de verdade. Sinto muito...

Ela colocou a mão no parapeito, perto da mão do archigos, e olhou novamente para as brumas. Alguns instantes depois, Allesandra sentiu o calor da mão de Semini cobrir a sua.

Os dois ficaram assim até a escuridão chegar e as primeiras estrelas furarem o azul-escuro do céu.

 

Enéas co’Kinnear

A BOCA DO A’Sele era mais larga neste ponto. A cidade de Fossano ficava na margem sul, os morros ao norte eram minúsculos e tinham uma cerração azul do outro lado, elementos que sumiram quando eles fizeram a curva e entraram no golfo escancarado da baía A’Sele. Dezenas de navios mercantes cortavam as águas marrons cheias de sedimentos para seguir rio acima até Nessântico, ou rio abaixo na direção de Karnmor ou de outros países ao norte e ao sul, ou até mesmo para cruzar o próprio Strettosei. A água da baía A’Sele era colorida pelo solo que o rio A’Sele trazia dos afluentes e serpenteava em seu frescor de água doce, que com o tempo desaparecia nas profundezas azuis das águas salgadas do Nostrosei.

Enéas finalmente estava de volta à Nessântico propriamente dita. De volta aos Domínios. De volta ao continente. O cheiro de água salgada era mais fraco aqui, e ele estava bem longe dela. Daqui, Enéas viajaria pela estrada principal na direção leste para Vouziers, depois seguiria para Nessântico ao norte, finalmente.

Em casa. Ele estava quase em casa. Podia sentir o gostinho.

Em Fossano, tudo era familiar e deixava Enéas à vontade. A arquitetura lembrava os sólidos prédios enfeitados da capital, assim como os templos eram réplicas menores das grandes catedrais da margem sul de Nessântico ou da Ilha A’Kralji, a uns 150 quilômetros de subida pelas águas caudalosas do A’Sele. Não havia nada dos prédios quadrados e lisos dos ocidentais, nem das torres esquisitas e das casas caiadas nas encostas de Karnor.

Os Hellins e as batalhas que Enéas vivenciou pareciam distantes enquanto ele observava do interior de uma taverna nas Colinas do Sul, como se tivessem acontecido com outra pessoa, em outra vida. Ele flutuava separado das memórias; podia vê-las, mas não tocá-las, e não podia ser tocado por elas.

Mas... sempre na cabeça havia esta voz fraca, a voz que ele agora sabia que era de Cénzi. Sim... eu ouço, Senhor de Tudo. Eu ouço...

Enéas ouviu a voz Dele agora, ao tocar na bolsa com o nitro que comprou em Karnor pesando ao fundo. Ele estava parado em frente à janela aberta do quarto na Hospedaria do Velho Chevaritt e sentiu um leve cheiro de queimado por perto, e a Voz mandou que Enéas saísse. Saia. Encontre a fonte. Descubra o que é necessário agora.

Ele obedeceu, como devia. Colocou o uniforme, afivelou a espada na cintura e saiu da estalagem.

As ruas de Fossano subiam e desciam por ladeiras íngremes e espalhavam-se como se tivessem sido projetadas por um bêbado. Esta parte da cidade, do lado de fora das velhas muralhas e longe do centro populoso, tinha sido área de cultivo até recentemente. As casas e os prédios ainda eram bem separados por pequenos campos onde ovelhas, cabras e vacas pastavam ou onde fazendeiros plantavam colheitas. O cheiro intenso de queimado ficava mais forte à medida que Enéas seguia a estrada e afastava-se da cidade, até que as casas sumiram completamente e a estrada virou nada mais que uma trilha cheia de sulcos tomada pelo mato.

Enéas deu a volta por uma saliência de granito cheia de árvores. Era visível o rastro azulado de fumaça que saía de perto de uma cabana caindo aos pedaços, em um campo sem cultivo. O pátio estava cheio de braçadas de lenha, e três homens amontoavam os feixes em uma pilha circular — que já tinha o dobro da altura de um homem e vários passos de diâmetro. Ali perto, outro monte de madeira fora coberto por terra e grama, e saía fumaça dos buracos de ventilação em volta do perímetro do morrinho e da chaminé coberta no topo. Os homens ergueram o olhar quando Enéas se aproximou, e ele jogou a capa de viagem para trás a fim de revelar o brasão da Garde Civile e o cabo da espada: os carvoeiros eram conhecidos por serem um grupo bruto e indigno de confiança que morava em áreas de floresta fora da cidade. Um monte de lenha podia levar duas ou três semanas em combustão lenta até se transformar em puro carvão negro e exigia um cuidado constante, ou os carvoeiros encontrariam apenas cinzas quando tirassem a cobertura de terra. Eles viviam isolados, saíam apenas para vender os sacos de carvão que produziam e iam embora para novas áreas de floresta quando acabavam as árvores adequadas por perto. A reputação ruim dos carvoeiros era piorada pelo fato de que eles geralmente misturavam pedaços de terra e rochas ao carvão, de maneira que a qualidade do produto podia ser menor do que a desejada. Em Nessântico, havia e’ténis cuja tarefa era produzir carvão de qualidade, parecido com gemas, que era usado nas fornalhas da grande cidade e no aquecimento das casas dos ca’ e co’. Aqui, o serviço não era feito através do poder do Ilmodo, mas sim pelo trabalho árduo e sujo de pessoas comuns.

Enéas acenou para os carvoeiros enquanto eles encaravam o offizier com braços cruzados ou mãos na cintura. — Que cê quer, vajiki? — perguntou um deles. O homem tinha um cisto debaixo do olho esquerdo que parecia uma meia uva vermelha grudada na pele, cercado por um tufo de cabelo crespo que combinava com a barba rala; havia um cisto igual meio fora do centro da testa. Ele era muitos anos mais velho do que os outros dois sujeitos; Enéas perguntou-se se o homem não seria o vatarh ou onczio dos mais jovens. — Perdeu sua tropa, hein? — O trio riu da piada ruim do carvoeiro com uma risada tão sombria quanto a fuligem que sujava as mãos e os rostos.

— Eu preciso de carvão — falou Enéas. — Da melhor qualidade que vocês tiverem. Um saco sem impurezas. É isso que Cénzi deseja.

Eles riram novamente. O homem com os cistos esfregou o rosto. — Cénzi, hein? Cê tá dizendo que é Cénzi ou é um téni também, vajiki? Ou talvez seja meio ruim das ideias? — Novamente Enéas foi atacado pelas risadas, enquanto o vento fez a fumaça do fogo envolver os carvoeiros. — Nós estaremos na cidade no próximo mizzkdi, vajiki, com todo carvão que cê quiser. Espere até lá. Tamos ocupados.

— Eu preciso agora — insistiu Enéas. — Amanhã eu vou embora da cidade para Nessântico.

O homem deu uma olhada para os companheiros. — Viajando, hein? Cê não é de Fossano, então? — Enéas fez que não com a cabeça. O velho carvoeiro sorriu. — Ele é elegante, não é, rapazes? Ora, aposto que é da própria Nessântico. E aposto que tem uma bolsa cheia o suficiente para comprar todo o carvão que ele quer e mais um pouco.

O sujeito deu um passo na direção de Enéas, que puxou meia espada da bainha e falou — Eu não quero confusão, vajiki, apenas o seu carvão. Pagarei um bom preço por ele; o dobro do preço, com a benção de Cénzi e sem barganha.

— O dobro do preço e ainda por cima com uma benção. — Outro passo. — A gente tá com sorte, hein, rapazes? — Os dois carvoeiros mais jovens foram lentamente para cada lado de Enéas a fim de cercá-lo. Ele viu uma faca na mão de um homem; o outro segurava um pedaço de lenha como um porrete.

Enéas já tinha visto brigas suficientes na vida; elas eram endêmicas entre as tropas e bem comuns nas tavernas das cidades, à noite. Ele sabia que a bravura do grupo duraria apenas enquanto o líder permanecesse intocado. O homem com os cistos sorria agora ao se abaixar para também pegar um pedaço de lenha. Ele bateu com o pau na palma da mão cheia de calos. — Tô achando que cê vai dar essa bolsa pra gente agora, vajiki, se quiser evitar uma surra — falou o sujeito. — Afinal de contas, três contra um...

Isto foi o máximo até onde o homem chegou. Em um único movimento, Enéas sacou a espada da bainha e atacou, o aço retiniu e reluziu à luz do sol. O porrete improvisado do carvoeiro voou longe, com a mão ainda na madeira. O homem ficou boquiaberto e olhou para o toco que jorrava sangue no braço. Ele gritou enquanto Enéas dava meia-volta, e a espada agora ameaçava a garganta do homem com a faca. O carvoeiro soltou a arma e recuou às pressas; o outro encarou com olhos arregalados o homem com os cistos, que caiu de joelhos e continuou a gritar enquanto a mão remanescente apertava o toco no antebraço. — Amarrem o braço para estancar o sangramento se vocês quiserem que seu amigo viva — falou Enéas. Ele pegou a faca que o homem deixou cair. — Onde está o carvão?

Um deles gesticulou na direção da cabana tosca. Enéas viu uma carroça ali com blocos escuros empilhados em um canto. Havia uma pilha de sacos de aniagem perto de uma das rodas. Ele limpou a lâmina na grama do campo, embainhou a espada, foi a passos largos até a carroça e encheu um dos sacos. O homem, cuja mão Enéas decepou, passou a gemer e lamuriar e caiu de lado enquanto os dois companheiros ficaram ajoelhados ao lado dele. Enéas pendurou o saco no ombro, voltou até os carvoeiros e jogou uma única sola de ouro na grama entre eles — mais dinheiro do que os homens ganhariam por uma carroça cheia de carvão. Eles olharam fixamente para a moeda. O mais jovem tinha amarrado um torniquete em volta do toco do líder, mas o rosto do sujeito estava pálido e os cistos destacavam-se como seixos vermelhos no rosto. Uma ferida como aquela, Enéas sabia, podia ser fatal: pela perda de sangue ou pela gangrena que geralmente acometia braços e pernas feridos.

— Que Cénzi tenha piedade de você — falou Enéas para o carvoeiro. — E que Ele lhe perdoe por impedir Sua vontade.

Dito isso, ele ajeitou o peso do saco no ombro e começou a voltar para a cidade.

 

Nico Morel

— ELE É APENAS UM MENINO, KARL. Uma criança inocente. Não ouse machucá-lo.

Nico ouviu a voz de Varina através da porta trancada ao se aninhar na pilha de lençóis contra a parede de madeira. Ele escutou uma voz de homem responder — imaginou que fosse Karl —, mas o tom era baixo demais, e Nico não conseguiu distinguir todas as palavras com a parede de madeira entre eles, apenas a frase “... o que eu tiver que fazer”. Então a porta foi aberta, e Nico jogou o braço sobre os olhos para se proteger da luz que veio do outro cômodo. Uma sombra surgiu na passagem e se dirigiu até ele, os passos ecoaram alto nas tábuas do piso que rangia. O menino pestanejou ao erguer o olhar para o homem, vislumbrou o cabelo grisalho, a barba bem feita, e os olhos gentis que contrastavam com a boca franzida debaixo do bigode. Sua bashta era elegante e limpa, o tecido reluzia e era macio ao roçar na pele de Nico quando o homem se ajoelhou em frente a ele. Um dos ca’ e co’, decidiu o menino.

— Eu não sei de nada — repetiu Nico, cansado, antes que o homem pudesse falar. Ele já tinha repetido as palavras muitas vezes, em todas as variações que era capaz de tirar da mente cansada. A mulher, Varina, não parou de perguntar sobre Talis: se ele sabia onde Talis morava agora; qual era a conexão entre ele, sua matarh e Talis; se sabia de onde Talis era ou o que fazia; e onde Talis aprendeu a usar o Ilmodo (só que Varina às vezes usava outra palavra para “Ilmodo”, que parecia com “scati” ou alguma coisa assim). Nico não disse nada porque sabia que Talis não queria isso. Eles queriam machucá-lo; o menino tinha certeza disso.

O homem fez uma concha com a mão diante de Nico e falou uma palavra estranha, como aquelas que Talis às vezes entoava quando fazia magia. O menino sentiu o frio do Ilmodo perto dele, os pelos nos antebraços ficaram eriçados quando surgiu uma bola de luz amarela e fraca, como uma bola de chamas na palma virada para cima do homem. Na luz, Nico viu o rosto claramente e conteve um gritinho.

Ele conhecia aquele rosto. Este era o homem que atacou Talis na rua: o embaixador ca’Vliomani, o numetodo. Nico gemeu e encostou-se na parede, como se pudesse atravessar a madeira e sair para a liberdade. Ele queria ser tomado pela fúria gelada novamente, mas estava tão cansado e assustado que não conseguiu invocar o sentimento.

— Ah, então você realmente me reconhece — disse o homem. — Pensei que isso fosse acontecer. Eu certamente reconheço você, Nico. — O menino ouviu o sotaque, mas não era o mesmo que Talis tinha. A fala era cantada, rodopiava e vinha mais do fundo da garganta, em vez do nariz. O “r” era dobrado, ele dizia “rreconheço.” O embaixador desceu a mão para o chão, e a bola de luz rolou preguiçosamente até o assoalho. A sombra comprida do homem se deslocou pelas paredes.

— O senhor vai me machucar? — A voz de Nico soou miúda e quase perdida aos próprios ouvidos: uma casquinha, o sussurro de uma brisa.

O homem não respondeu. Não diretamente. — Da última vez que vi você, Nico, eu quase fui morto pelo homem que estava ao seu lado. Qual era o nome dele? Talis? — Nico balançou a cabeça, mas o embaixador sorriu diante da negativa e continuou — Eu realmente preciso falar com Talis, Nico, e aposto que você também gostaria de falar com ele.

— O senhor está furioso com Talis. Tentará machucá-lo.

— Eu não estou furioso com ele — respondeu o embaixador. — Eu sei que é difícil para você acreditar, mas é verdade. Existem coisas que preciso perguntar para Talis, coisas urgentes e importantes, e ele não me deu uma chance. Só isso. Nós tivemos um... desentendimento.

— O senhor promete?

Karl não respondeu, mas meteu a mão dentro de uma bolsa presa à lateral do corpo, desdobrou alguma coisa em papel de seda, e segurou na direção do menino. Nico recuou um instante, depois inclinou-se para frente novamente quando o embaixador continuou a oferecer a mão: na palma havia uma tâmara roliça, salpicada de mel e de amêndoas picadas. A boca de Nico ficou cheia de água; Varina tinha servido pão, queijo e água, mas ele ainda continuava com um pouco de fome após a longa caminhada de Ville Paisli, e a visão da tâmara deu uma incontrolável água na boca. — Vamos, Nico, pegue — falou o homem. — Eu trouxe só para você.

Hesitante, Nico esticou a mão para o fruto doce. Quando os dedos tocaram o papel barulhento e amassado, ele arrancou a tâmara da mão do embaixador tão rápido quanto foi capaz. Enfiou o doce inteiro na boca, e a leve doçura do mel desceu pela língua e misturou-se ao gosto azedo da tâmara. O homem continuou sorrindo ao encará-lo. O menino achou que o rosto dele não parecia tão furioso neste momento, e havia uma ternura nas rugas em volta dos olhos.

— Sabe, eu tenho netos que têm mais ou menos a sua idade — disse Karl. Um pouco mais novos, mas não muito. Você gostaria deles, creio eu, se os conhecesse. Meus netos vivem na Ilha de Paeti. Você sabe onde ela fica?

Nico concordou com a cabeça. A matarh mostrara para ele um mapa dos Domínios, apontara os países e fizera com que aprendesse.

— Paeti é bem longe daqui — disse o embaixador. — Mas eu gostaria de voltar lá um dia. E você, Nico? Nasceu aqui em Nessântico?

Outro aceno com a cabeça. Nico lambeu os beiços e sentiu o gosto do resto do mel grudento.

— E quanto à sua matarh? De onde ela é?

— Daqui. — A palavra saiu meio abafada. O gosto persistente da tâmara ficou amargo. Nico pigarreou.

— Ah... — O homem pareceu considerar a informação por um momento e afastou momentaneamente o olhar. Ele notou um movimento na porta e viu Varina apoiada ali. O embaixador e ela entreolharam-se, e algo no jeito daquele olhar fez o menino pensar que eles eram um casal, como Talis e sua matarh. — E seu vatarh? Talis é daqui?

O menino começou a balançar a cabeça, depois parou. Talis não iria querer que Nico falasse sobre ele. O que aconteceu tem que ser um segredo... Foi isso que Talis disse. Ele confiava em Nico.

— Ele é das Terras Ocidentais, depois dos Hellins, não é? — insistiu Karl. — Ele é um daqueles que se chamam de tehuantinos. Nico, você sabe que os Domínios estão em guerra com os ocidentais, não sabe? Você compreende isso?

Um aceno de cabeça. Nico não ousava abrir a boca. Ele jamais tinha ouvido aquela palavra: tehuantino. Entretanto, parecia como uma palavra que Talis diria, só pelo som. Ele foi capaz de ouvi-la no sotaque de Talis.

— Onde está sua matarh, Nico? Nós temos que levar você até ela, mas precisa nos dizer onde está sua matarh.

— Ela está com a minha tantzia — disse Nico. — Ela está bem longe daqui. Eu... abandonei minha matarh. — O menino não queria contar ao embaixador sobre os primos e a maneira como foi tratado por eles, mas pensar naquilo trouxe a lembrança da matarh, e de repente Nico queria estar com ela, acima de tudo. Sentiu lágrimas brotarem de seus olhos e os limpou quase com raiva, sem querer que o embaixador visse. Varina saiu da porta e agachou-se ao lado de Nico. Ela abraçou o menino, o que foi quase tão bom quanto um abraço da matarh.

— Talis está com sua matarh? — indagou Karl.

Esta parecia ser uma pergunta inofensiva o suficiente para responder. Nico não queria que o embaixador fosse até a matarh, e se soubesse que Talis não estava lá, bem, ele a deixaria em paz. — Não — falou Nico. Ele fungou o nariz.

— Karl, já chega — disse Varina.

O embaixador ignorou a mulher. — Onde está Talis agora, Nico?

— Eu não sei. — Quando ca’Vliomani ficou ali ajoelhado, sem dizer nada, Nico deu de ombros. — Eu não sei. Não sei mesmo.

Ca’Vliomani inclinou a cabeça de lado ao olhar para Nico. Ele pegou o queixo do menino e levantou sua cabeça até o menino ser forçado a encarar os olhos do embaixador, que não piscava. Nico viu Varina ficar nervosa. — Isso é a verdade?

O menino concordou com a cabeça enfaticamente. O homem olhou fixamente por mais alguns instantes, depois afastou a mão. Ele e Varina entreolharam-se novamente. Para o menino, parecia que os dois falavam sem dizer nada. Os dedos de ca’Vliomani cofiaram a barba, e ele fez uma careta de desdém, como se estivesse insatisfeito. A voz pareceu mais leve e menos sinistra agora. — O que você fazia no Velho Distrito, Nico? Por que não está com sua matarh?

Isso era complicado demais para responder. Nico balançou a cabeça para conter a confusão de respostas possíveis. Ele mesmo não tinha certeza por que estava aqui, neste momento. — Eu pensei que, talvez... — As lágrimas ameaçaram escorrer novamente, e o menino parou para tomar fôlego. — Eu pensei que Talis ainda pudesse estar onde a gente morava.

— Ele não está. — Foi Varina quem respondeu. A mão dela fez carinho nas costas de Nico. — Nós andamos vigiando.

— Bem, então ele viu vocês — falou Nico com confiança. — Talis é esperto. Ele teria visto vocês vigiando e não iria para casa.

— Ele não teria me visto — respondeu Varina, mas o menino não acreditou. Ele limpou os olhos novamente.

— Você tem família aqui? — perguntou ca’Vliomani. — Alguém para cuidar de você?

— Só Talis. Só ele.

Ca’Vliomani suspirou e ficou de pé soltando um gemido, os joelhos estalaram com o esforço. — Então teremos que fazer Talis saber que você está conosco, e talvez nós dois consigamos o que queremos, hein?

 

Jan ca’Vörl

— SINTO MUITO, ONCZIO FYNN — sussurrou Jan. — Isso não deveria ter acontecido, e eu espero... espero que não tenha sido culpa minha. — A voz ecoou na tumba e agitou tênues fantasmas de si mesmo. A luz hesitante da tocha fez as sombras pularem e se sacudirem pelos selos de pedra das catacumbas. Era a segunda vez que ele tinha visto um hïrzg ser sepultado nestas câmaras úmidas e sinistras, rápido demais. Vatarh e filho. Pelo menos o funeral de Fynn não foi acompanhado por presságios e mais mortes. Foi um ritual lento e sombrio, que deixou Jan com uma dor no coração.

Ele procurou por toda parte por Elissa. Mandou batedores partirem de Brezno para vasculhar estradas, estalagens e vilarejos à procura dela, em todas as direções. Roderigo dissera que não havia visto Elissa perto dos aposentos de Fynn. — Mas eu estava longe do hïrzg quando aquilo aconteceu. Ela pode ter conseguido entrar de mansinho, ou talvez tenha sido outra pessoa. Eu não sei, simplesmente não sei.

As palavras tinham gosto de bile e veneno. Jan tentou se convencer de que era tudo coincidência. A matarh mostrou a carta que recebera da família ca’Karina: Elissa era uma impostora que fingia ser uma ca’. Mas talvez fosse só isso: ela fugira porque sabia que a farsa seria revelada. Talvez fosse isso e nada mais. Ou... talvez Elissa tivesse ido até Fynn para defender sua causa, pois sabia que seria exposta como uma fraude, e interrompeu a Pedra Branca durante o serviço. Talvez ela tenha fugido aterrorizada antes de ser vista pelo famoso assassino, tão assustada que sequer ficou na cidade depois do que viu. Ou talvez — pior ainda — a Pedra Branca viu Elissa e levou-a para ser assassinada em outro lugar.

Nada disso convenceu Jan. Ele sabia o que eles pensavam, todos eles, e quando sua intuição passou a aceitar a suspeita, Jan também soube que eles estavam certos. Uma impostora na corte, uma impostora que era a amante de companhia predileta do hïrzg — a conclusão era óbvia. Elissa era a cúmplice da Pedra Branca, ou ela mesma era a Pedra Branca.

Qualquer uma das hipóteses fazia a cabeça de Jan girar. Ele lembrava o tempo que passou com Elissa, as conversas, os flertes, os beijos; a respiração acelerada quando exploravam um ao outro; o calor escorregadio e melado do sexo, as risadas depois... o corpo de Elissa, esbelto e atraente no banho de luz cálida das velas; a curva dos seios com gotas de suor da paixão; o triângulo escuro, macio e atraente na junção das penas...

Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos.

Não podia ser ela. Não podia. No entanto...

Jan colocou a mão no selo de pedra da tumba de Fynn e deixou os dedos percorrerem o baixo-relevo gravado ali. — Sinto muito — disse ele novamente para o cadáver.

Se, de alguma forma, foi Elissa, então a questão ainda sem resposta era quem contratou a Pedra Branca. Ela não mataria sem um contrato. Alguém pagou a Pedra Branca para fazer isso. Se Elissa tinha sido a faca ou simplesmente a ajudante, não importava. Não foi ela que tomou a decisão. Outra pessoa encomendou a morte.

Jan abaixou a cabeça até a testa tocar a pedra fria. — Eu descobrirei quem fez isso — falou ele: para Cénzi, para Fynn, para o ar assombrado. — Eu descobrirei e lhe darei justiça, onczio.

Jan respirou fundo no ar frio e úmido. Ficou de pé com os joelhos rangendo e pegou a tocha no suporte. Depois começou a longa subida em direção ao dia.

 

Sergei ca’Rudka

— HÁ VERDADE NA DOR — disse Sergei. Ele falou o aforismo várias vezes ao longo dos anos, dizia para que a vítima soubesse que deveria confessar o que Sergei queria que ela confessasse. Ele também sabia que era mentira. Não havia “verdade” na dor, não realmente. Pelo contrário, com a agonia que Sergei infligia, vinha a habilidade de fazer a vítima dizer qualquer coisa que ele desejasse que ela dissesse. Vinha a habilidade de tornar “verdade” qualquer coisa que quem estivesse no comando desejasse que fosse verdade. A vítima diria qualquer coisa, concordaria com tudo, confessaria qualquer coisa desde que houvesse a promessa de acabar com o tormento.

Sergei sorriu para o homem acorrentado diante dele. Ele estava em frente aos instrumentos sinistros de tortura em um rolo de couro, mas aí sua percepção mudou: era Sergei quem estava deitado e preso na mesa e olhava para o próprio rosto. As mãos estavam acorrentadas, e ele sentiu um nó nas estranhas por causa do medo gelado. Sergei sabia o que estava prestes a sentir; ele tinha infligido em muitas pessoas. Sabia o que estava prestes a sentir e gritou pela expectativa da agonia...

— Regente?

Sergei deu um pulo ao acordar na cela, as algemas nos pulsos chacoalharam a curta corrente entre elas. Ele rapidamente desceu a mão até a faca que ainda estava na bota e fez questão de pegar o cabo para que, se viessem levá-lo para o interrogatório, conseguisse tirar a própria vida primeiro.

Ele não passaria pelo que forçou outros a passar.

Mas era Aris co’Falla, o comandante da Bastida, que entrou na cela, e Sergei relaxou e tirou os dedos do cabo. Aris prestou continência ao garda que abriu a porta e falou — Pode sair. Tem almoço para o senhor no andar debaixo. Volte aqui em meia virada da ampulheta.

— Obrigado, comandante — disse o garda. Ele prestou continência e foi embora. Aris deixou a porta aberta. Da cama onde estava, Sergei deu uma olhadela para a porta escancarada. O comandante notou o olhar.

— Você não passaria por mim, Sergei. Você sabe disso. Eu sou duas décadas mais novo, afinal de contas, e é meu dever, sem falar minha vida, impedi-lo.

— Você deixou a porta aberta apenas para zombar de mim, então?

Um sorriso surgiu e desapareceu como geada na primavera. — Você prefere que eu feche e tranque?

Sergei soltou um riso amargo, e a risada virou uma tosse cheia de catarro. Aris tocou o ombro dele com preocupação quando Sergei dobrou o corpo. — Quer que eu chame um curandeiro, meu amigo?

— Para quê? Para que eu esteja o mais saudável possível quando o Conselho mandar me matar? — Sergei balançou a cabeça. — É apenas a umidade; meus pulmões não gostam dela. Então me diga, Aris, que notícias você traz?

O comandante puxou a única cadeira na cela até ele, e as pernas fizeram um barulho alto ao serem arrastadas sobre os ladrilhos. — Eu destaquei um garda em quem confio totalmente para o Conselho; para minha própria segurança nestes tempos confusos, para ser franco. Portanto, muito do que sei vem da parte dele.

— Eu não preciso do preâmbulo, Aris; ele não vai mudar sua resposta, e presumo que eu já saiba qual é. Apenas conte.

Aris suspirou. Ele virou a cadeira ao contrário e sentou-se, colocou os braços dobrados sobre o encosto e apoiou o queixo nos braços. — Sigourney ca’Ludovici está forçando o Conselho a dar o poder que o kraljiki pede. Haverá uma reunião final em poucos dias, quando então ocorrerá uma votação.

— Eles realmente darão a Audric o que ele quer?

Um aceno de cabeça franziu o queixo barbado nas mãos de Aris. — Sim, creio que sim.

Sergei fechou os olhos e recostou a cabeça na parede de pedra. Sentiu o frio da rocha através do cabelo que ficava ralo. — Eles destruirão Nessântico em nome do poder. Todos eles, e Sigourney especialmente, pensam que Audric não durará um ano, o que deixará o Trono do Sol vago para um dos conselheiros, considerando que eu esteja morto.

— Sergei. — Ele ouviu Aris falar na escuridão de seus pensamentos. — Eu lhe avisarei. Prometo. Eu darei tempo para que você... — O comandante parou.

— Obrigado, Aris.

— Eu faria mais, se pudesse, mas tenho que pensar na minha família. Se o Conselho dos Ca’ ou o novo kralji descobrir que ajudei você a fugir, bem...

— Eu sei. Eu não pediria isso a você.

— Sinto muito.

— Não sinta. — Sergei abriu os olhos novamente e inclinou-se para frente. Ele tocou o rosto de Aris com a mão, e as algemas chacoalharam com o movimento. — Eu tive uma boa vida, Aris, e servi a três kralji da melhor maneira que pude. Cénzi vai me perdoar pelo que tenho que fazer.

— Ainda há esperança, e não é preciso fazer nada por enquanto. O Conselho pode cair em si e notar que o kraljiki está doente da cabeça assim como do corpo. Os conselheiros ainda podem soltar você; eles soltarão se o esforço do archigos Kenne e dos demais leais a você surtir algum efeito. O archigos Kenne já defendeu sua causa diante do Conselho, e suas palavras ainda têm alguma influência, afinal de contas. Não perca as esperanças, Sergei. Ambos sabemos muito bem a história da Bastida. Ora, a Bastida prendeu Harcourt ca’Denai por três anos antes de ele se tornar kraljiki.

Sergei riu e conteve a tosse que queria vir junto. — Nós somos homens práticos, Aris. Realistas. Não nos enganamos com falsas esperanças.

— É bem verdade. — Aris levantou-se. — Eu mandarei o garda trazer sua comida. E um curandeiro para examinar você, quer você queira ou não. — Ele deu um tapinha no ombro de Sergei e seguiu para a porta, mas parou com a mão na maçaneta. — Se a situação chegar a este ponto, Sergei, mandarei lhe avisar antes que qualquer pessoa venha levar você para os calabouços lá embaixo. — O comandante fez uma pausa e olhou intensamente para Sergei. — Para que possa se preparar. Tem a minha palavra quanto a isso.

Sergei concordou com a cabeça. Aris prestou continência e fechou a porta com um baque metálico. Sergei ouviu o rangido da chave na tranca. Ele recostou a cabeça novamente e escutou o som das botas de co’Falla na escada de caracol da torre.

Sergei lembrou-se do som nítido dos gritos que ecoavam na pedra e das súplicas estridentes daqueles mandados para o interrogatório. Lembrou-se dos rostos contraídos de dor. Havia uma honestidade na agonia, uma pureza de expressão que não podia ser fingida. Às vezes, Sergei pensava que via Cénzi nos interrogados: o Cénzi que Ele tinha sido quando Seus próprios filhos, os moitidis, voltaram-se contra Ele e dilaceraram Seu corpo mortal. Agora, como Cénzi, Sergei poderia encarar a fúria da própria criação.

Mas ele não enfrentaria. Ele prometeu a si mesmo. De uma maneira ou de outra, ele não enfrentaria.

 

Allesandra ca’Vörl

— OS CONSELHEIROS ESTÃO AQUI e já se sentaram, a’hïrzg — disse o assistente. — Eles me pediram para levar a senhora à câmara.

Allesandra estava no corredor do lado de fora da câmara do conselho, com Pauli e Jan de cada lado. A mão tocou a tashta de gola baixa onde — sob o pano — havia uma pedra branca comum cercada por uma filigrana de ouro, ao lado do globo da archigos Ana. Mesmo Pauli — que falava alegremente que a Magyaria Ocidental e Firenzcia juntas solidificariam a Coalizão quando ele fosse o gyula e Allesandra, a hïrzgin — calou a boca quando o assistente acenou com a cabeça para que os criados do corredor abrissem as portas duplas. Os três espiaram a penumbra lá dentro, onde o Conselho dos Ca’ estava sentado a uma grande mesa.

Jan, da parte dele, estava sério e quieto, este era seu estado desde a morte de Fynn e a partida de Elissa. Allesandra passou o braço pelos ombros do filho antes de eles entrarem. Ela inclinou-se na direção de Jan e sussurrou — Quando eu sair daqui, você deve ir para seus aposentos e esperar, entendeu?

Jan olhou estranhamente para a matarh, mas finalmente concordou com um ligeiro aceno de cabeça, confuso.

A câmara do Conselho dos Ca’ em Brezno era escura, com painéis de carvalho tingido nas paredes e um tapete da cor de sangue seco: era uma sala interior do Palácio de Brezno, sem janelas, iluminada apenas pelas velas dos candelabros sobre uma mesa comprida e envernizada (nem mesmo luzes mágicas), e fria por ter apenas uma pequena lareira em uma ponta. A sala era sombria e melancólica. Não era um lugar convidativo para uma longa estadia e conversas sem pressa — e isto era intencional. O hïrzg Karin, vavatarh de Allesandra, separou esta sala de propósito para o Conselho. Ele considerava as sessões do Conselho dos Ca’ tediosas e chatas; a falta de conforto na sala pelo menos garantia que as reuniões fossem curtas.

— Por favor, entre, a’hïrzg — falou Sinclair ca’Egan da cabeceira da mesa. Ca’Egan era velho e careca, um chevaritt de voz trêmula que cavalgou com o vatarh de Allesandra antes mesmo de ele ter sido nomeado a’hïrzg pelo hïrzg Karin. Ca’Egan estava no Conselho dos Ca’ desde que Allesandra o conhecia; como ancião, ele também era o líder titular do conselho. Quatro mulheres (uma delas Francesca), cinco homens: eles ficaram de pé simultaneamente, fizeram uma mesura para a a’hïrzg, uma gentileza que nem mesmo o Conselho dos Ca’ podia ignorar, e sentaram-se novamente. Seis dos nove, em especial, acenaram com a cabeça e sorriram para ela. Allesandra, Pauli e Jan ficaram de pé, como mandava a etiqueta, na outra ponta desocupada da mesa. Ca’Egan remexeu os pergaminhos diante dele e pigarreou. — Obrigado por virem. Nós seremos breves, com certeza. É uma mera formalidade, na verdade. O hïrzg Fynn já havia nomeado Allesandra ca’Vörl como a’hïrzg, portanto precisamos apenas de sua assinatura, a’hïrzg, e a dos conselheiros presentes...

— Vajiki ca’Egan — falou Allesandra, e o velho ergueu a cabeça, curioso com a interrupção. Ao lado direito da esposa, Pauli grunhiu diante da óbvia quebra de protocolo. — Eu tenho uma declaração para fazer antes que o Conselho coloque seu selo neste documento e mande-o para o archigos reconhecer. Venho pensando nesta questão desde que meu querido irmão foi morto e rezei para Cénzi por Sua orientação, e tudo ficou claro para mim. — Ela fez uma pausa. Esta é sua última chance de mudar de ideia... Semini argumentou com ela por uma ou duas longas viradas da ampulheta, quando estavam juntos na cama, mas Allesandra estava convencida de que essa era a estratégia correta. Ela respirou fundo. Sentiu o olhar curioso e impaciente de Pauli. — Eu não quero ser a hïrzgin, e por isso renuncio à minha pretensão ao título.

As sobrancelhas de ca’Egan se levantaram no crânio nu e enrugado, a boca abriu sem emitir sons. Francesca, em choque, recuou no assento, atordoada pelo anúncio, mas a maioria não se abalou. Eles apenas concordaram com a cabeça, com os olhares mais em Jan do que em Allesandra.

— Pelos colhões de Cénzi — berrou Pauli ao lado dela. O palavrão quase pareceu evocar um relâmpago no ar escuro da câmara. — Mulher, você ficou maluca? Sabe o que está fazendo? Você acabou de...

— Cale a boca — falou Allesandra para Pauli, que a olhou com raiva, mas fechou a boca imediatamente. Ela ergueu as mãos para os conselheiros. — Eu disse tudo o que precisava dizer. Deixo com o Conselho dos Ca’ a decisão de quem é o mais indicado para ocupar o trono de Brezno. No entanto, não serei eu. Confio no julgamento dos senhores, conselheiros. Sei que farão o que é melhor para Brezno.

Dito isso, ela fez o sinal de Cénzi para o Conselho e deu meia-volta, abriu as portas tão abruptamente que os criados do corredor, postados do lado de fora, quase foram derrubados. Pauli e Jan, surpresos com a saída repentina, seguiram com atraso. Allesandra ouviu o marido avançar atrás dela. A mão de Pauli pegou seu braço e girou a esposa. O belo rosto estava vermelho e contorcido, ficou feio de raiva. Atrás dele, Allesandra viu Jan parado em frente à porta aberta da câmara enquanto observava o confronto, a própria expressão era de perplexidade e incerteza.

— O que é isso, em nome dos sete infernos? — Pauli estava furioso. — Nós tínhamos tudo que sempre quisemos nas mãos, e você simplesmente jogou fora? Ficou louca, Allesandra? — A mão apertou o bíceps da esposa e amassou a tashta embaixo dos dedos. Allesandra ficaria marcada ali amanhã, ela sabia. — Você vai voltar lá agora e dizer para os conselheiros que foi um erro. Uma brincadeira. Diga o que raios você quiser, mas você não vai fazer isso comigo.

— Com você? — respondeu Allesandra em um tom calmo e debochado. — Como essa questão tem algo a ver com você, Pauli? Eu era a a’hïrzg, não você. Você é apenas um arremedo inútil e deplorável de marido, um erro que pretendo retificar assim que puder, e vai tirar a mão de mim. Agora.

Pauli não tirou. Ele colocou a outra mão para trás, como se fosse bater em Allesandra, e cerrou o punho. — Não! — O grito veio de Jan, que correu na direção deles. — Não, vatarh.

Allesandra deu um sorriso cruel para Pauli, para a mão ainda erguida, e falou — Vá em frente. Bata, se quiser. Eu lhe digo agora que será a última vez na vida que você me tocará.

Pauli deixou o punho cair. Os dedos ficaram frouxos na manga da esposa, que se sacudiu para se soltar dele.

— Cansei de você, Pauli. Você me deu tudo o que eu precisava há muito tempo.

 

Enéas co’Kinnear

VOUZIERS: UMA CIDADE SEM SAÍDA PARA O MAR, a maior em Nessântico do Sul, a encruzilhada das estradas para Namarro e para as longínquas terras ensolaradas de Daritria. Vouziers ficava ao extremo norte das planícies de Nessântico do Sul, uma terra agrícola com extensos campos de grãos ao vento. O povo de Vouziers era como a terra: firme, despretensioso, sério e simples.

De Fossano, a carruagem levou vários dias para chegar a Vouziers. Em um vilarejo ao longo do caminho, Enéas comprou todo o enxofre que o alquimista local tinha na loja; na noite seguinte, ele fez o mesmo na próxima. Em cada uma das paradas noturnas, Enéas hospedava-se em um quarto privativo no vilarejo. Ele arrancava alguns pedaços do carvão e começava, lentamente, a moê-los até virar um pó preto — Enéas ouvia a satisfação de Cénzi quando o carvão alcançava a fineza necessária. Então, com o alerta da Voz de Cénzi para que fosse delicado e cuidadoso, ele misturava o carvão em pó, o enxofre e o nitro para formar a areia negra dos ocidentais, que Enéas embrulhou com cautela em pacotes de papel. Cénzi sussurrou as instruções enquanto ele trabalhava e manteve Enéas a salvo.

Na noite da véspera da chegada a Vouziers, Enéas levou alguns dos pacotes para o campo depois que todos dormiram. Lá, ele depositou o conteúdo em um pequeno buraco raso que cavou no solo — o resultado trouxe a lembrança incômoda das areias negras nos campos de batalha nos Hellins e da própria derrota. Conforme foi instruído pela Voz de Cénzi, Enéas pegou um pedaço de barbante molhado com cera e partículas da areia negra, enterrou uma ponta na areia negra e desenrolou o resto pelo chão ao se afastar do buraco. Mais tarde, ele ouviu Cénzi dizer em sua cabeça, Vou lhe mostrar como criar fogo do jeito que os ténis fazem. Você deveria ter sido um téni, Enéas. Este era Meu desejo para você, mas seu vatarh e matarh não Me ouviram, mas agora posso fazer de você tudo que deveria ter sido. Você tem Minha bênção...

Enéas pegou a lanterna coberta que trouxe e acendeu a ponta do barbante. O pavio assobiou e soltou fumaça e fagulhas que brilharam na escuridão. Enéas afastou-se rapidamente, chegou à estalagem e entrou no salão comunal quando surgiu a erupção: um estrondo mais alto do que um trovão estremeceu as paredes da estalagem e sacudiu o papel de seda, grosso e transparente das janelas, seguido por um clarão momentâneo de luz do dia. Todo mundo no salão ficou assustado e esticou o pescoço. — Pelos colhões de Cénzi! — rugiu o estalajadeiro. — A noite ficou clara como água!

O estalajadeiro irrompeu do lado de fora e foi seguido pelos outros. Eles primeiro olharam para o céu sem nuvens e não viram nada. Lá no campo, porém, ardia um pequeno fogo. Quando se aproximaram, Enéas viu que o pequeno buraco que cavou agora tinha profundidade suficiente para um homem ficar de pé até os joelhos e o diâmetro de quase um braço. Pedras e terra voaram para todos os lados. Era como se o próprio Cénzi tivesse socado a terra com raiva.

O estalajadeiro ergueu os olhos para o céu onde as estrelas brilhavam e aglomeravam-se na escuridão vazia. — Raio que cai sem tempestade — disse o homem enquanto balançava a cabeça. — É um presságio, eu digo para vocês. Os moitidis estão dizendo que perdemos o rumo.

Um presságio. Enéas viu-se rindo das palavras do estalajadeiro, que não tinha noção de como eram proféticas. Isto era realmente um presságio, um presságio do desejo de Cénzi para ele.

No dia seguinte, ele chegou a Vouziers. Durante a longa cavalgada, Enéas rezou com mais fervor do que jamais rezara, e Cénzi respondeu. Ele sabia o que devia fazer ali, o pensamento o incomodava, mas Enéas era um soldado, e soldados sempre cumpriam seus deveres, por mais onerosos que fossem.

Após chegar a Vouziers e arrumar hospedagem para a noite, Enéas vestiu o uniforme e pendurou uma bolsa pesada de couro no ombro. Ele havia enchido um saco comprido de couro com seixos, que foi colocado no bolso interno da bashta. Quando as trompas soaram a Terceira Chamada, Enéas entrou no templo para a missa da noite, que era ministrada pela própria a’téni de Vouziers. Depois da Admoestação e da Bênção, Enéas acompanhou a procissão de ténis do templo para a praça, iluminada por lâmpadas mágicas contra o céu que escurecia. A a’téni conversava com os ca’ e co’ da cidade, e, em vez de falar com ela, Enéas foi até um de seus assistentes, um o’téni pálido cuja boca parecia lutar com o sorriso que deu para ele.

— Boa noite, o’offizier — falou o téni ao fazer o sinal de Cénzi para Enéas. — Perdão, eu deveria conhecer o senhor?

Ele balançou a cabeça ao devolver o gesto. — Não, o’téni, só estou passando pela cidade a caminho de Nessântico. Acabei de retornar dos Hellins e da guerra de lá.

O o’téni arregalou um pouco os olhos e franziu os lábios. — Ah, então devo abençoar o senhor pelo serviço prestado aos Domínios. Como vai a guerra contra os ocidentais pagãos?

— Não vai bem, infelizmente — respondeu Enéas, que olhou com cuidado em volta da praça do templo. — Eu queria que fosse possível dizer o contrário. E aqui... — Ele balançou a cabeça com tristeza e observou o o’téni com atenção. — Eu passei quase 15 anos fora e encontrei muitas mudanças ao voltar. Os numetodos andam pelas ruas abertamente, debocham de Cénzi com seus feitiços e palavras... — Sim, Enéas julgou o homem corretamente: o o’téni apertou os olhos e franziu ainda mais os lábios. Ele inclinou-se para frente de maneira conspiratória e falou quase como um sussurro.

— É realmente uma vergonha que o senhor, que serviu tão fielmente ao seu kraljiki, retorne e veja essa situação. Minha a’téni discorda, mas eu culpo a archigos Ana por esse estado das coisas. E olhe no que isso resultou para ela: os malditos numetodos mataram a archigos assim mesmo. O archigos Kenne... — O o’téni fez um gesto de nojo. — Pfff... Ele é ainda pior, na verdade. Ora, em Nessântico as pessoas desrespeitam a Divolonté abertamente hoje em dia: os numetodos dizem que qualquer um pode usar o Ilmodo, que isso não exige o Dom de Cénzi, e mostram como realizar pequenos feitiços: acender uma lareira ou esfriar o vinho. As pessoas não usam os feitiços às claras, mas nos lares, quando acham que Cénzi não está vendo... — O o’téni balançou a cabeça novamente.

— Os numetodos são uma praga — disse Enéas. — O velho Orlandi ca’Cellibrecca sabia o que fazer com eles.

O o’téni olhou em volta com uma expressão de culpa ao ouvir a menção a Orlandi e falou — Este não é um nome que se deva falar abertamente, o’offizier. Não quando o genro diz ser o archigos de Brezno.

Enéas fez o sinal de Cénzi novamente. — Peço desculpas, o’téni. Este é outro assunto delicado para um soldado como eu, infelizmente. Os Domínios deveriam ser reunificados, assim como a fé concénziana. Sofro por vê-los partidos, assim como sofro ao ver os numetodos tão descarados.

— Eu entendo — disse o o’téni. — Ora, aqui em Vouziers, os numetodos têm o próprio prédio. — O homem apontou para uma das ruas que afluía da praça. — Bem por ali, à vista do próprio templo, com o sinal deles como enfeite na porta. É uma desgraça que Cénzi não permitirá por muito tempo.

— Quanto a isso, o senhor está certo, o’téni — respondeu Enéas. — É exatamente o que Cénzi me diz. — Ao ouvir isso, o o’téni olhou estranhamente para Enéas, mas o offizier não deu chance de ele falar mais nada, apenas fez uma mesura e cruzou a praça rapidamente na direção da rua que o homem indicou. Enéas assobiou uma música enquanto caminhava, uma canção de Darkmavis que sua matarh cantara para ele há muito tempo, quando o mundo ainda fazia sentido e a kraljica Marguerite ainda estava no Trono do Sol.

Ele achou o prédio dos numetodos facilmente — o entalhe no dintel da porta principal era uma concha, o sinal dos numetodos. Havia uma estalagem do outro lado da rua do prédio. Enéas entrou e pediu vinho e uma refeição, sentado a uma das mesas do lado de fora. Ele tomou goles do vinho e comeu devagar, observando o covil dos numetodos enquanto o céu ficava totalmente escuro entre os prédios.

Três vezes Enéas viu gente entrar; duas vezes viu alguém saindo, mas, como em nenhuma das ocasiões Cénzi falou com ele, o offizier continuou comendo e esperando. De vez em quando, Enéas tocava na bolsa de couro no chão ao seu lado para restaurar a confiança. Quase duas viradas da ampulheta depois, quando as ruas estavam quase vazias, antes de ficarem cheias novamente de pessoas que preferiam o anonimato da noite, ele viu um homem sair do prédio dos numetodos, e Cénzi agitou-se dentro de Enéas.

— Aquele ali... — Enéas sentiu o chamado com força, pendurou a bolsa no ombro, deixou um siqil de prata na mesa para pagar a refeição e o vinho, e correu atrás do sujeito. Seu alvo era um homem mais velho: careca no topo da cabeça, com cabelos grisalhos em volta. Ele usava túnica e calças, não uma bashta, e estava sem chapéu; seria difícil perdê-lo de vista mesmo em uma multidão.

Subitamente ficou claro por que Cénzi escolheu este numetodo; ele descia a rua na direção da praça do templo. As luzes mágicas começavam a enfraquecer, e havia poucas pessoas na praça, embora os domos do templo em si ainda estivessem bem acesos, com uma luminosidade dourada contrastando com o céu pontilhado de estrelas. Enéas deu uma olhada rápida à procura de um utilino e não viu nenhum. Ele seguiu em frente apressadamente, e o numetodo virou-se ao ouvir os passos. Enéas viu a palavra do feitiço nos lábios do homem, que ergueu as mãos como se fosse fazer um gesto, e abriu um largo sorriso ao acenar para o homem como se cumprimentasse um amigo que não via há tempos.

O numetodo franziu os olhos, como se não reconhecesse o rosto diante dele. O homem abaixou as mãos e deu um sorriso hesitante como resposta. — Eu conheço...?

Foi o máximo que ele chegou a dizer. Enéas puxou o saco de couro com seixos do bolso e, com um movimento ágil, golpeou com força ao lado da cabeça do homem. O numetodo desabou inconsciente, e Enéas segurou-o com o braço ao desmoronar. Ele apoiou um braço mole sobre o ombro e levantou o sujeito pelo cinto. Riu como se estivesse bêbado, cantou desafinado ao arrastar o numetodo na direção da porta lateral do templo. Quem visse ao longe pensaria que eram dois amigos embriagados que cambaleavam pela praça. Enéas olhou pela última vez para trás ao chegar às portas; ninguém parecia estar observando. Ele puxou a porta pesada com revestimento de bronze e decorada com imagens dos moitidis e sua luta com Cénzi: isso não mudara — as portas dos templos raramente eram trancadas, ficavam abertas para aqueles que desejassem entrar para rezar ou para os indigentes que precisassem de um lugar para dormir à noite, ao custo de ouvir uma Admoestação do téni que os encontrasse de manhã. Enéas entrou de mansinho na escuridão fria do templo, que estava vazio. O som da respiração e dos passos soaram alto enquanto ele arrastava o peso morto do numetodo pela nave principal, e finalmente Enéas largou o homem apoiado no atril em frente ao coro. Ele tirou a bolsa do ombro e colocou no colo do numetodo, depois desenrolou o longo barbante. Enéas foi soltando o pavio com cuidado enquanto recuava pela nave.

Eu vou lhe mostrar seu próprio pequeno Dom, Cénzi dissera para Enéas naquela mesma tarde. Vou lhe mostrar como fazer seu próprio fogo. O cântico e os gestos vieram à mente naquele instante, e embora Enéas soubesse que era contra a Divolonté usar o Ilmodo sem ser um téni, ele sabia que esta era a vontade de Cénzi e que não seria punido por isso. Enéas entoava o cântico agora, perto da entrada do templo, e sentiu o frio do Ilmodo fluir pelas veias e o Segundo Mundo se abrir em sua mente: entre as mãos em movimento, havia um calor e luz impossíveis. Ele deixou que o fogo caísse na ponta do barbante, e o pavio começou a espocar e fumegar.

— Ei! Quem está aí? O que é isso?

Enéas viu um téni surgir de uma arcada que dava para fora do coro; era o o’téni com quem ele falara mais cedo. Enéas abaixou-se rapidamente, embora estivesse estranhamente cansado por causa do feitiço, como se tivesse trabalhado duro o dia inteiro. Ele ouviu o chamado do téni e o eco de outros passos. — Quem é? O que está acontecendo? — disse alguém enquanto o fogo no pavio afastava-se rapidamente de Enéas na direção do atril. Quando a chama estava quase lá, ele ficou de pé e correu para a porta. Viu de relance o o’téni e alguns e’ténis, que se dirigiam rapidamente para o numetodo caído e imóvel, e alguém apontou para Enéas...

... mas já era tarde demais.

Um dragão rugiu e cuspiu fogo, e a concussão alcançou Enéas, jogando-o contra as portas de bronze. Meio inconsciente, ele caiu nas lajotas de pedra e foi fustigado por fragmentos de rocha e mármore. Quando passou a chuva rápida e dura, Enéas ergueu a cabeça. Havia algo vermelho no chão à sua frente: a perna do numetodo, ainda vestida com as calças largas, notou ele com um susto. Perto da entrada do templo, alguém gritava, um longo lamento entrecortado por xingamentos. Gemendo, Enéas tentou se sentar. Ele sangrava por vários cortes e arranhões, o corpo estava dolorido pela colisão com as portas de bronze, mas, tirando isso, havia sido poupado por Cénzi. As portas do templo estavam escancaradas diante dele, e um utilino entrou correndo e passou por Enéas enquanto apitava alto. Ténis entraram correndo das alcovas. O Alto Púlpito havia desmoronado, estava quebrado, caído na nave, e havia sangue e partes de corpos por todos os lados. O numetodo... ele viu a cabeça do homem e a parte de cima do torso, que foram arrancadas e jogadas na nave. O resto dele, onde esteve a bolsa de areia negra... Enéas não conseguiu ver o resto.

Por um momento, ele sentiu náusea: isso era muito parecido com a guerra, e as memórias do que viu nos Hellins ameaçaram sobrepujá-lo. Sentiu um gosto ácido na garganta e um embrulho no estômago, mas a Voz de Cénzi estava em sua cabeça também.

Isso é o que eles merecem, aqueles que Me desafiam. Você, Enéas, será meu moitidi da morte, a arma escolhida por Mim.

Mas eu não desejo isso, Enéas queria dizer, mas assim que pensou nas palavras, sentiu a fúria de Cénzi crescer, um calor no cérebro que fez a cabeça latejar, e ele caiu de joelhos com o crânio entre as mãos.

Tudo era uma confusão. Pessoas empurraram Enéas para passar. Ele ainda ouviu o téni ferido gritar. — ... numetodo... eu o reconheço... — Enéas ouviu a palavra em meio ao caos e sorriu. Quando mais pessoas entraram aos gritos vindas da praça, ele aproveitou a oportunidade para sair de mansinho pelo lado e entrar nas sombras.

Ele saiu para a noite e sentiu-se aquecido pela presença de Cénzi.

Você está apto para a tarefa que lhe dei. Agora, vá para Nessântico, e falarei com você lá...

 

Audric ca’Dakwi

O CONSELHO DOS CA’ DE NESSÂNTICO reunia-se no primeiro andar do Grande Palácio na Ilha A’Kralji, onde os conselheiros tinham vários aposentos e um pequeno contingente de criados do palácio dedicados inteiramente às suas necessidades. O Conselho dos Ca’, durante a maior parte do reinado da kraljica Marguerite, bem como de seu filho, o kraljiki Justi, foi basicamente uma organização social, que vinha ao palácio para assinar documentos entregues a eles pelo kralji e pelo corpo de funcionários do palácio — uma tarefa que eles executavam com pouca reflexão ou discussão, de resto, passavam o tempo relaxando em seus suntuosos gabinetes privativos ou socializando nas salas de jantar e estar bem equipadas da seção do Conselho no Palácio do Kralji. Por muitas décadas, ser um “conselheiro” era, em grande parte, um posto honorário, com deveres cerimoniais e longe de serem muito exigentes, e a retribuição por servir no Conselho era generosa.

Mas com o falecimento do kraljiki Justi, e com Audric sendo menor de idade ao ascender ao Trono do Sol, o Conselho teve que assumir um papel mais ativo no governo. Foi o Conselho dos Ca’ que nomeou Sergei ca’Rudka como regente; era o Conselho que agora criava e aprovava novas legislações (até bem recentemente, com a contribuição do regente também); era o Conselho que controlava o bolso de Nessântico; era o Conselho que o regente tinha a obrigação de consultar em qualquer questão política dentro dos Domínios ou qualquer decisão diplomática que envolvesse a Coalizão, os Hellins ou quaisquer outros países dentro dos Domínios.

O Conselho foi obrigado a acordar do longo e tranquilo sono, e em grande parte acordou. A última eleição para o Conselho, há quatro anos, foi agressiva e implacável; quatro dos sete integrantes foram depostos e substituí-dos por ca’ bem mais ambiciosos.

Audric conhecia a história do Conselho; Sergei reclamava sem parar a respeito dos conselheiros, e o mestre ci’Blaylock falava a mesma coisa nas aulas. Agora sua mamatarh deu os mesmos avisos.

— Você precisa tomar cuidado, Audric. Lembre-se de que cada um dos conselheiros quer estar no seu lugar. Eles querem o anel e o cajado; querem se sentar no Trono do Sol. Os conselheiros têm inveja de você, e é preciso convencê-los de que, ao darem o que você quer, eles estarão mais próximos de seus próprios objetivos.

A mamatarh Marguerite olhava fixamente para ele enquanto Audric percorria o corredor até o salão do Trono do Sol, onde era aguardado pelo Conselho. As rodas do cavalete onde o quadro ficava apoiado estavam silenciosas hoje; ele insistiu que fossem lubrificadas por Marlon com gordura de pato antes da reunião. Os criados empurraram o cavalete pelo corredor interno do palácio na frente de Audric, com cuidado, para acompanhar seu ritmo lento e vacilante, enquanto Marlon e Seaton apoiavam o kraljiki de ambos os lados. Ele teve um péssimo dia; era um dia nublado e frio, e Audric permitiu-se tossir mesmo enquanto ouvia a voz da mamatarh confortá-lo.

— Você pode se permitir tossir, desta vez — disse ela. — Dessa vez, sua fraqueza será sua força. Mas, depois de hoje, você tem que ser mais forte. Você será mais forte.

— Eu serei, mamatarh. Serei forte depois de hoje, e a doença irá embora. — Pelo rabo do olho, Audric notou que Marlon olhava estranhamente para ele, embora o homem não dissesse nada.

Seaton gesticulou para os criados do corredor, que abriram a porta do salão e fizeram uma mesura quando Audric e sua mamatarh entraram. Lá dentro, os integrantes do Conselho levantaram-se das cadeiras diante do Trono do Sol e também fizeram uma mesura, embora a saudação tenha sido apenas uma leve inclinação de cabeças. Audric notou os olhos de Sigourney ca’Ludovici quando ela abaixou a cabeça, embora a conselheira parecesse olhar mais para o quadro de Marguerite do que para o kraljiki. Ele dirigiu-se ao Trono do Sol, foi ajudado por Marlon a subir os três degraus da plataforma, e deixou-se cair no assento estofado. Audric tossiu então — não conseguiu impedir o ataque —, no momento em que a luz brilhou nas profundezas do cristal e banhou o kraljiki de amarelo: como o Trono do Sol fazia há longas gerações sempre que um kralji se sentava ali. Audric limpou a boca na manga da bashta de seda enquanto o Conselho permanecia de pé diante dele, e Seaton empurrou o cavalete para o lado direito do trono, de maneira que Marguerite encarasse com ódio os sete ca’.

— Olhe para eles — falou a kraljica para Audric. — Veja como olham com fome o Trono do Sol. Todos imaginam como conseguirão se sentar onde você está. Comece por ser firme com eles, Audric. Mostre que você está no comando desta reunião, não os conselheiros. Então... então faça o que tem que fazer.

— Eu farei — disse Audric para Marguerite. Os ca’ já começavam a se sentar, e ele ergueu a voz para se dirigir aos conselheiros. — Não há necessidade de se sentar. Nosso assunto aqui deve tomar apenas alguns grãos de areia da ampulheta.

Interrompidos no meio do movimento, os ca’ endireitaram-se em meio a um farfalhar de bashtas e tashtas e lançaram olhares na direção de Audric que oscilavam do questionamento à quase raiva. — Perdoe-me, kraljiki — falou Sigourney ca’Ludovici —, mas as coisas podem não ser tão simples quanto o senhor imagina.

— Mas elas são simples, vajica ca’Ludovici — disse Audric. — O traidor ca’Rudka está na Bastida; o Conselho teve o tempo que a senhora pediu para que os conselheiros consultassem entre si e deliberassem. Os senhores nomearão outro regente ou permitirão que eu reine como kraljiki como deveria? Essas são as duas únicas opções diante dos senhores, que já deveriam ter tomado uma decisão. — A longa fala exigiu esforço, como ele sabia que exigiria. Ele tossiu e dobrou o corpo enquanto a mamatarh ria baixinho em sua cabeça, cobriu a boca com um lenço que rapidamente ficou sujo com manchas vermelhas. Audric amassou o pano de linho na mão, mas não tanto a ponto de eles não conseguirem ver o sangue.

Audric abriu os olhos e viu ca’Ludovici olhando fixamente para sua mão. A conselheira ergueu o olhar abruptamente e sorriu como um gato espiando um rato encurralado, depois olhou uma vez para os demais integrantes do conselho, atrás dela. — Talvez o senhor esteja certo, kraljiki. Afinal de contas, o dia está úmido e nós não deveríamos mantê-lo longe do conforto de seus aposentos.

A vajica ca’Ludovici tomou fôlego, e Audric ouviu Marguerite sussurrar para ele naquele espaço de tempo. — Agora. Diga para a conselheira o que ela quer escutar.

— Eu estou mais forte agora do que estive há anos — falou Audric, mas ele forçou uma tosse e uma pausa, como se tomasse fôlego entre as palavras. Não foi preciso muito encenação. — Mas também estou ciente da minha juventude e inexperiência, e contaria com a orientação do Conselho dos Ca’, e talvez especialmente da senhora, conselheira ca’Ludovici, como minha mentora.

Ela fez uma mesura ao ouvir isso, e era impossível não notar a satisfação no rosto de ca’Ludovici. — O senhor realmente é sábio para a idade que tem, kraljiki, o que significa que é um prazer lhe informar que todos nós deliberamos e chegamos a um acordo. Kraljiki Audric, apesar de sua idade, o Conselho dos Ca’ não nomeará um novo regente.

Ele ouviu a mamatarh rir ao ouvir a notícia, exultante, e o próprio Audric quase riu também, só não o fez porque o riso traria a tosse novamente. O kraljiki contentou-se com um gesto silencioso de agradecimento para os conselheiros. Tão fáceis de manipular. Tão previsíveis. Ele não sabia de quem era o pensamento: seu ou de Marguerite.

— Eu gostaria de agradecer ao Conselho por seus esforços. E vemos uma nova era para Nessântico, uma era em que recuperaremos tudo que perdemos e superaremos até mesmo os sonhos da kraljica Marguerite. — Audric teve que fazer uma pausa para respirar e limpar os pulmões de novo. Marlon esticou a mão para o trono a fim de entregar um novo lenço e levar embora o molhado e manchado. — Quanto ao antigo regente ca’Rudka, acho que está na hora de ele confessar seus pecados, fazer as pazes com Cénzi e pagar pelos erros de sua vida.

A vajica ca’Ludovici fez uma mesura mais uma vez, mas não antes de Audric ver mais uma vez a satisfação na expressão do rosto. Sim, ela encara ca’Rudka como um rival perigoso enquanto permanecer vivo... — Será feito como o kraljiki deseja — disse Sigourney. — Eu cuidarei disso pessoalmente.

 

Karl ca’Vliomani

A NOTÍCIA ESPALHOU-SE RAPIDAMENTE pela cidade, e como embaixador de Paeti, Karl esteve entre os primeiros a ouvi-la: o Conselho dos Ca’ declarou que o kraljiki atingiu a maioridade e que a regência de ca’Rudka chegou ao fim. Karl ouviu a notícia com um desespero desanimador, pois sabia o que ela prenunciava, e imediatamente chamou uma carruagem e mandou que o condutor cruzasse correndo a Pontica Kralji para o Velho Distrito.

Ele torceu para que já não fosse tarde demais. Se Karl fosse um homem religioso, teria rezado. De certo modo, ele tocou a concha no cordão em volta do pescoço como se fosse um talismã, como se a concha pudesse afastar as nuvens tempestuosas que Karl via em seu futuro.

Considerando que Audric conseguisse sobreviver, o menino seria agora um joguete de Sigourney ca’Ludovici e do Conselho dos Ca’. Ana e Sergei foram os escudos dos numetodos contra os elementos conservadores dentro da fé concénziana e da sociedade. Foram apenas os dois que permitiram o crescimento dos numetodos. Agora, rápido demais, os dois se foram.

Haverá corpos de numetodos pendurados para exibição nas Ponticas novamente. Karl viu os cadáveres em sua mente e o próprio rosto em um deles. Torceu para que a visão fosse causada apenas pelo medo, e não por algum presságio.

Não existem deuses. Não existem presságios. O pensamento racional não acalmou sua mente. Ele não se sentia racional; sentia medo.

Mika e Varina concordaram em se encontrar com ele na taverna de sempre no Velho Distrito. Mesmo lá, onde os frequentadores o conheciam e o cumprimentavam pelo nome, Karl imaginou que receberia olhares tortos de quem estivesse nos compartimentos e às mesas. Ele não sabia mais com quem poderia contar, a não ser com os dois. Varina sentou-se ao lado de Karl no compartimento do canto, seu corpo era uma fonte de calor providencial, e Mika ficou do outro lado da mesa.

Amigos. Karl esperava que eles continuassem sendo amigos, depois disso. — Você é o a’morce dos numetodos aqui — disse o embaixador para Mika em uma voz urgente e baixa, para que não fosse ouvido pelos frequentadores do bar. O músico no canto, que tocava um alaúde de cinco cordas e cantava baladas que já eram velhas quando sua mamatarh as ensinou para ele, ajudou a abafar a conversa. — Não peço que se envolvam, mas fiz uma promessa a ca’Rudka que pretendo cumprir. Preciso avisá-los para que... façam preparativos.

Mika deu de ombros, embora sua expressão cansada tenha deixado claro para Karl que ele estava mais preocupado do que admitiria. Mika pegou a cerveja em frente a ele e deu um grande gole, depois limpou a espuma das pontas do bigode. — Se Audric ou o Conselho estão dispostos a matar ca’Rudka, então se voltarão para os numetodos a seguir como bodes expiatórios adicionais, caso você faça ou não alguma coisa, Karl. A culpa de tudo sempre cairá sobre nós, como sempre cai.

— Você tem família aqui. Eu sei. Sinto muito.

— Sali já passou por isso antes — falou Mika. — Ela entenderá. Vou mandá-la com as crianças para sua família em Il Trebbio.

— E quanto ao menino, Nico? — perguntou Varina. — O que fazemos com ele?

— Vocês não ouviram nada de Talis ou da matarh dele? — indagou Karl, e Varina negou com a cabeça. — Então permaneça com o menino por enquanto, se quiser. Se a situação ficar muito perigosa, deixe Nico ir embora. Não tenho interesse que ele se machuque só por estar associado a nós. — Karl soltou um longo suspiro. A própria cerveja permanecia intocada sobre a mesa, e ele olhou fixamente para as bolhas que espumavam na caneca de madeira. Milhares de bolhas, todas surgem ao mesmo tempo, depois estouram e somem. Como eu. Como todos nós. Somem rápido demais e não sobra nada depois. Nada...

— Eu irei com você hoje à noite, Karl, depois que despachar Sali e as crianças — disse Mika. — Você precisará de ajuda com isso.

Karl balançou a cabeça. — Não será necessário.

— Se ca’Rudka for retirado da Bastida por magia, então todos nós sabemos quem será o culpado e quem será caçado — falou Mika. — Pelo menos uma vez, eles terão razão em culpar os numetodos, não é? Mas a reação que que se desencadeará não mudará caso você vá sozinho ou com uma dezena de nós, ou caso seja bem-sucedido ou fracasse: só a tentativa já será suficiente.

— Eu não arriscarei a vida de uma dezena de nós; levarei dois — respondeu Karl. — Eu e mais outro.

Mika deu um sorriso irônico. — Então é melhor eu garantir que você consiga. Enquanto ca’Rudka permanecer vivo, há uma chance de que ele consiga voltar ao poder, o que seria melhor para nós.

— Eu sou mais forte do que qualquer um de vocês com o Scáth Cumhacht — interrompeu Varina. — Eu vou com vocês também.

Com esta declaração, o nó no estômago de Karl ficou mais apertado. Ele imaginou Varina morta, ou pior, capturada. Karl fez uma careta e balançou a cabeça diante da dor dessa ideia. — Não há necessidade. Você tem que tomar conta de Nico.

Ela franziu os lábios e tamborilou na mesa do compartimento. — Mika — falou Varina —, acho que precisamos de mais uma rodada aqui. Importa-se de ir pegar?

Mika pestanejou, confuso. — É só chamar Mara e... — Ele fez uma pausa e arregalou um pouco os olhos. — Ah. — Mika franziu os lábios. — Certamente. Vou pegar.

Ele mal havia deixado o compartimento quando Varina virou-se no banco para encarar Karl. A voz era baixa e ameaçadora. — Karl, eu passei anos, anos, realizando pesquisas e experiências para expandir o catálogo de fórmulas mágicas que agora nós usamos regularmente. Eu me dediquei a entender a magia ocidental, como ela funciona e como podemos dominar seus costumes. Eu abri mão... — Varina parou e mordeu o lábio inferior momentaneamente. — Eu abri mão da vida que poderia ter levado em nome dos numetodos e de uma causa que achei que compartilhávamos. E agora você vai me relegar ao papel de babá? Se fizer isso, Karl, você estará dizendo que desperdicei todo aquele tempo, todo aquele esforço e todos aqueles anos. É o que está me dizendo? É isso?

A acusação de Varina cortou Karl como uma adaga afiada. Ele levantou as mãos da mesa como se estivesse magoado. — Você não entende... — Karl começou a dizer.

— O que eu não entendo? — disparou ela de volta. — Que você acha que eu não tenho utilidade alguma para você? Que eu... não me importo com você o suficiente para querer ajudar?

— Não. — Karl balançou a cabeça incontrolavelmente. — Varina, nossas chances não são boas aqui.

— E são melhores sem mim?

Karl suspirou. — Não, não foi isso o que eu disse. Eu não quero que você se machuque.

— Mas está disposto a deixar Mika se arriscar? Por que, Karl? Por que ele é tão diferente de mim? Por quê? — As perguntas foram marteladas, e Karl pensou que houvesse uma estranha urgência nas questões, como se existisse uma resposta que Varina quisesse que ele desse.

Mas Karl não tinha respostas. Ele abaixou a cabeça, encarou a caneca, as bolhas sumiam na borda, a água no fundo manchava a madeira. — Se quiser ir comigo, Varina, então eu ficarei contente com a sua ajuda. — Karl ergueu a cabeça. Ela encarava o embaixador com uma resistência frágil. — Obrigada.

Varina abriu um pouco a boca, como se fosse dizer mais alguma coisa, mas simplesmente concordou com a cabeça.

Mika voltou com mais cerveja e pousou as canecas no centro da mesa. — Tudo acertado?

— Sim — respondeu Karl. — Tudo acertado. Se isso for realmente o que vocês querem, então vamos terminar as cervejas para podermos ir aos nossos aposentos e preparar os feitiços que precisaremos hoje à noite. Mika, se você puder cuidar de espalhar a mensagem para que todos os numetodos saiam da cidade ou façam planos para ficar escondidos em um futuro próximo... — Ele finalmente pegou sua caneca, e Mika e Varina levantaram as próprias. Os três brindaram. — À sorte — falou Karl. — Vamos precisar dela.

Eles beberam as canecas simultaneamente.

 

Varina ci’Pallo

— VOCÊ PARECE TERRIVELMENTE CANSADA, Varina — disse Nico.

Ela estava mesmo. Estava exausta, tão cansada que os ossos doíam. A tarde tinha sido gasta na preparação dos feitiços, com a moldagem do Scáth Cumhacht até que o feitiço estivesse completo, depois vieram a colocação da palavra de ativação e o gestual para soltá-lo na mente. A exaustão da feitiçaria consumiu Varina — era pior agora do que quando ela era jovem, pior desde que começou a experimentar o método tehuantino. Ela tinha ido ao quartinho onde Nico era mantido a fim de buscá-lo para o jantar e ver como o menino estava.

— Eu ficarei bem em algumas viradas da ampulheta — falou Varina para Nico. — Eu só tenho que dormir um pouco para me recuperar.

— Talis também sempre ficava cansado quando fazia as coisas mágicas, especialmente com aquela tigela. Eu achava que aquilo fazia Talis parecer velho também. Como a senhora.

A honestidade brutal de uma criança. Varina tocou no cabelo cada vez mais grisalho, nas rugas profundas que surgiram no rosto nos últimos anos, e disse — Nós pagamos pela magia desta maneira. Não se consegue nada nesse mundo sem um preço. Você aprenderá isso. — Ela deu um sorriso irônico. — Desculpe. Isso parece algo que uma matarh diria.

Nico sorriu: hesitante, quase tímido. — A matarh fala assim comigo às vezes, como se estivesse falando mais com ela mesma do que comigo. Vou tentar me lembrar disso, porém.

Varina riu. Ela sentou-se na cadeira ao lado da cama do menino e inclinou-se para frente a fim de mexer no cabelo de Nico. Ele franziu a testa e recuou um pouco na cama. — Nico — disse Varina ao recolher a mão —, eu tenho que falar com você. Coisas estão acontecendo lá fora. Coisas ruins. Depois que eu descansar um pouco, terei que sair para fazer algo e, quando voltar, teremos que sair da cidade muito depressa.

— Como eu tive que sair com a matarh? — Ele recolheu ao peito as pernas dobradas quando se sentou na cama e as abraçou. Nico olhou sobre os joelhos para Varina.

— Sim, da mesma forma.

— A senhora está em apuros?

Varina teve que sorrir ao ouvir isso. — Estou prestes a estar.

Ele torceu o nariz. — É por causa daquele homem?

— Karl, você quer dizer? Pode-se dizer que sim.

Nico soltou as pernas e olhou para a comida na bandeja, mas não tocou nela. — A senhora e Karl estão...?

Varina entendeu a pergunta sem palavras. — Não. Por que você achou isso?

— A senhora age como se fossem. Quando vocês dois conversam, parecem minha matarh e Talis.

— Bem, nós não estamos... juntos. Não desta forma.

— Ele gosta da senhora, dá para dizer.

Isso fez Varina sorrir, mas o gosto foi amargo. — Ah, dá para dizer, é? Quando você passou a saber tanto sobre os costumes dos adultos?

Nico deu de ombros e repetiu — Dá para dizer.

— Não vamos falar sobre isso — disse Varina, embora quisesse. Ela perguntou-se o que Karl diria para Nico se o menino tivesse dito a mesma coisa. — Eu preciso que você coma e durma um pouco porque é bem provável que nós tenhamos que sair da cidade hoje à noite. Você precisa estar pronto para isso.

— A senhora vai me levar para a minha matarh?

— Quisera eu, Nico. De verdade. Mas eu ainda não sei para onde iremos. Vou levá-lo a um lugar seguro. Isto eu prometo. Não deixarei nada de mal acontecer com você, e tentaremos devolvê-lo para sua matarh. Entendeu?

Ele concordou com a cabeça.

— Ótimo. Então coma o jantar e tente dormir. Eu mesma vou descansar no quarto ao lado. Se precisar de mim, pode me chamar. Vá agora, prove a sopa antes que ela esfrie.

Varina observou o menino comer por alguns grãos da ampulheta até sentir as pálpebras pesadas. Quando acordou, descobriu que tinha caído no sono na cadeira ao lado da cama, e Nico também dormia, encolhido perto dela com um braço esticado para tocar sua perna. Lá fora, ouviu o ritmo da chuva no telhado e nas persianas da casa.

Varina cobrou Nico e encostou os lábios em sua bochecha. Depois deixou o menino, fechou e trancou a porta ao sair.

Ela torceu para que o visse novamente.

 

A Pedra Branca

NESSÂNTICO...

Ela nunca tinha visto a cidade antes, embora obviamente tivesse ouvido falar muito a seu respeito. Mesmo com os Domínios divididos, mesmo com o antigo kraljiki tendo sido uma pálida imagem de sua famosa matarh, e mesmo com o atual kraljiki sendo um menino frágil que, diziam os rumores, não viveria para chegar à maioridade, Nessântico mantinha o encanto.

A Pedra Branca sempre soube que viria aqui com o tempo, como qualquer pessoa com ambição deveria. A atração da cidade era irresistível, e para alguém de seu ramo de negócios, Nessântico era um campo rico e fértil a ser explorado. Mas ela não esperava vir aqui tão rapidamente ou por estes motivos.

Após o assassinato às pressas e quase malfeito do hïrzg, a Pedra Branca considerou que era perigoso demais ficar na Coalizão. Ela voltou a assumir o papel da mendiga Elzbet, escondeu-se entre os pobres que tão frequentemente eram invisíveis aos ca’ e co’, e foi de Brezno a Montbataille nas montanhas orientais que formavam a fronteira de Nessântico com Firenzcia, depois desceu o rio A’Sele até a grande cidade em si.

Enquanto interpretava o papel, a Pedra Branca instalou-se no Velho Distrito. Esta era a melhor maneira de evitar chamar atenção. Ela era apenas mais um dos pobres anônimos que perambulavam pelas ruas da maior cidade do mundo conhecido, e ninguém iria notar ou se importar muito se ela conversasse com as vozes em sua cabeça enquanto andava. Ela era apenas outra alma louca, uma mulher maluca que balbuciava e murmurava para si mesma, que percorria algum mundo interior em conflito com a realidade à volta dela.

— Você pagará por isso. Não pode me matar e não pagar. Eles encontrarão você. Eles virão ao seu encalço e matarão você.

— Quem? — perguntou ela para a voz estridente de Fynn enquanto os demais dentro da Pedra Branca riam e debochavam dele. Ela levou a mão à tashta, apalpou sob o pano a pequena bolsinha amarrada ao pescoço e, por dentro, a pedra clara que sempre mantinha consigo. — Quem virá me encontrar? Eu contei quem me contratou. Será que ela irá procurar por mim?

— Você está preocupada que outra pessoa descubra. Está preocupada que se espalhe a notícia de que a Pedra Branca também era a mulher que era amante de Jan ca’Vörl. Eles viram seu rosto; eles reconheceriam você, e o rosto da Pedra Branca não pode ser conhecido.

— Cale a boca! — ela quase gritou com Fynn, e o guincho fez cabeças se voltarem para ela. Um utilino de passagem parou no meio da ronda e virou a lanterna de luz mágica em sua direção. Ela protegeu os olhos da luz, curvou o corpo e arreganhou os dentes para o homem, no que torceu que parecesse ser um olhar de louca. O utilino fez um som de nojo e afastou a luz dela; as outras pessoas já tinham virado o rosto e dado as costas para cuidar de suas próprias vidas.

As vozes das vítimas gargalhavam e riam quando ela virou a esquina para entrar no centro do Velho Distrito. As famosas lâmpadas mágicas de Nessântico reluziam e brilhavam nos postes de ferro dispostos em volta da praça aberta. Ela olhou as placas das lojas ao longo da rua. Aqui, na grande praça, as lojas ainda estavam abertas, embora a maioria dos estabelecimentos nas transversais estivesse trancada desde que escureceu totalmente: os ténis podiam acender as lâmpadas do centro do Velho Distrito, mas não iam às ruas antigas e estreitas que afluíam do centro. Eles iluminavam o anel da Avi a’Parete pela cidade inteira, de maneira que Nessântico parecia usar um colar de esplendor amarelo, e as ruas largas da margem sul onde a maioria dos ca’ e co’ morava, mas o Velho Distrito era abandonado à noite.

A lua escondeu-se atrás de uma nuvem, e uma garoa ameaçava virar uma chuva intensa. Ela correu na direção do centro, pois sabia que o tempo mandaria todo mundo para casa e faria os comerciantes fecharem as lojas.

Ali: ela viu o almofariz e o pilão de um boticário mais à frente e arrastou os pés na direção da loja, através da multidão que rapidamente ficava menor. Manteve a cabeça baixa e as costas perto dos tijolos e das pedras dos prédios. Em um momento, um homem que passava tocou seu braço: um velho de barba grisalha, que deu um sorriso malicioso com uma boca banguela e um bafo que cheirava a cerveja e queijo. — Eu tenho dinheiro — disse ele sem preâmbulos, com o rosto molhado de chuva. — Venha comigo.

— Puta! — gritaram as vozes alegremente em deboche. — Por que não? Você aceita pagamento por outros serviços.

A Pedra Branca olhou com raiva para o homem e mostrou o cabo da faca na cintura. — Eu não sou uma puta — disse ela para o sujeito, e para as vozes. A mão agarrou a faca, e gotas de chuva caíram do manto com o movimento. — Afaste-se.

O homem sem dentes riu e espalmou as mãos. — Como quiser, vajica. Sem problemas, hein? — Então ele desviou o olhar e se afastou, os pés chapinharam nas poças. Ela observou o homem ir embora.

A Pedra Branca poderia se livrar dele, mas não dos demais. Os outros estavam sempre com ela.

Ela chegou ao boticário e olhou o interior através das persianas abertas. Não havia ninguém lá dentro, a não ser o proprietário parcialmente careca. Ela entrou, e quando o sino da porta retiniu de forma estridente, o homem ergueu os olhos dos jarros e frascos atrás do balcão.

— Boa noite. Que tempo horrível, eu já estava prestes a fechar. Como posso ajudar, vajica? — As palavras eram agradáveis, mas o tom e o olhar eram menos convidativos. O boticário parecia dividido entre sair detrás do balcão ou retornar aos preparativos interrompidos para fechar. — Uma poção para dores de cabeça? Algo para aliviar uma tosse?

A Pedra Branca teria sido firme, teria sido decidida, mas ela não era a Pedra Branca agora, era apenas uma jovem de aparência comum, sem status, que pingava no chão, uma pessoa que podia ser confundida com uma prostituta comum que andava pelas ruas ou tentava escapar do tempo por um momento.

É isso o que você realmente quer? Não tinha certeza sobre quem fez a pergunta ou se tinha sido ela mesma quem indagou. As vozes ficaram quietas enquanto ela esteve com Jan. De alguma forma, ficar com ele acalmou a confusão dentro de sua mente, e isso ao menos tinha sido parte da atração que ela sentiu por ele, tinha sido o motivo pelo o qual ela se deixou envolver mais do que deveria. Com Jan, naquele pouco tempo, ela se sentiu cicatrizando. Pensou que talvez fosse capaz de se tornar alguém além da Pedra Branca, que pudesse se tornar normal. Jan... Ela se perguntou o que ele estaria pensando agora, se achava que foi feito de bobo ou se sentia arrependimento ao pensar nela. Perguntou-se se Jan sabia quem ela era, que matara seu onczio, ou se pensava que ela fugira apenas porque fingira ser alguém que não era e fora descoberta.

— Vajica?

Ela se perguntou se Jan algum dia saberia como ela se arrependia de tudo.

A Pedra Branca tocou o estômago com delicadeza novamente, como fazia cada vez mais recentemente. Deveria ter ocorrido o sangramento mensal antes mesmo de ter matado Fynn ca’Vörl. Ela pensou que talvez o estresse o tivesse atrasado alguns dias. Mas o sangramento não veio depois da fuga; ainda não tinha ocorrido durante os dias que passou em Nessântico, e agora havia uma estranha náusea quando acordava e sensações estranhas dentro dela.

Isso é tudo o que você terá dele. Quer realmente fazer isso?

Podia ter sido sua própria voz. Podia ter sido a voz de todos eles.

— Vajica? Eu não tenho a noite toda. A chuva...

Ela balançou a cabeça e pestanejou. — Desculpe, eu... — A mão tocou o abdômen outra vez.

O boticário olhou fixamente para a mulher e para o movimento da mão na barriga. Ele empinou e abaixou o queixo, passou a mão na careca como se ajeitasse um cabelo invisível. — Eu acho que tenho o que você quer, vajica — disse o homem, com um tom mais gentil agora. — As moças da sua idade, às vezes, vêm até mim, e, como você, não sabem exatamente o que dizer. Eu tenho uma poção que trará o sangramento. É o que você precisa, não é? Mas devo dizer que não é uma poção fácil de fazer, e, portanto, não é barata.

Ela encarou o homem. Prestou atenção. Colocou a mão na gola da tashta molhada e apalpou a pedra na bolsinha de couro.

As vozes estavam caladas.

Caladas.

— Não. — A Pedra Branca recuou e ouviu o sino da porta quando o calcanhar bateu nela. — Não, não quero sua poção. Não quero.

Ela então deu meia-volta e fugiu para a praça e para o ataque violento da chuva, as luzes mágicas brilhavam à sua volta e refletiam nas ruas molhadas.

Foi quando a Pedra Branca ouviu as trompas darem um alarme por toda a cidade.


??? EVASÕES ???

Karl ca’Vliomani

Niente

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Niente

Sergei ca’Rudka

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Audric ca’Dakwi

A Pedra Branca


Karl ca’Vliomani

O PLANO ERA BEM SIMPLES — tinha que ser. Karl não tinha um exército para atacar a Bastida. Não tinha compatriotas entre os gardai para abrir os portões ou deixá-los desguarnecidos ou para dar cópias das chaves das masmorras. Não tinha a poderosa magia selvagem de Mahri quando este o tirou da Bastida, para simplesmente levar Sergei embora.

Karl tinha a si mesmo. Tinha Varina e Mika. Tinha o que o próprio Sergei lhe contou.

Ele tinha o mau tempo.

A Bastida foi originalmente projetada como um fortaleza, para proteger o A’Sele de invasores que viessem do alto do rio; mais tarde ela foi convertida em prisão. Uma parte de seu legado ainda existia, e ninguém conhecia todos os caminhos secretos, embora poucos a conhecessem melhor do que Sergei ca’Rudka, que passou muito tempo no comando do conjunto irregular e úmido de pedras negras.

O trio pegou emprestado um pequeno bote ancorado a leste da Pontica a’Brezi Nippoli. Eles entraram na embarcação a poucas viradas da ampulheta depois de ter anoitecido completamente, quando a lua e as estrelas ficaram perdidas atrás dos baluartes dos arranha-céus e uma leve chuva começou a cair. — Eu diria graças aos deuses, se acreditasse neles. — Mika deu um sorriso irônico para Karl ao ajudar Varina, e depois o embaixador, a entrar. Com água até o joelho no rio, ele empurrou e afastou o bote da margem. — Vejo vocês dois mais tarde — disse Mika.

Karl torceu para que ele estivesse certo. Ouviu Mika sair do rio chapinhando e correr na direção das casas ao longo da margem sul.

Karl e Varina não usaram os remos por medo de que as pancadas na água alertassem um dos utilinos que faziam ronda ou um transeunte curioso acima deles. Em vez disso, os dois deixaram que a lenta correnteza do A’Sele levasse o bote rio abaixo. Eles estavam vestidos com roupas escuras, os rostos foram encobertos por fuligem e cinzas, embora a chuva tenha limpado rapidamente. Assim que passaram pela Pontica a’Brezi Veste e pelas torres sinistras e melancólicas das torres da Bastida, os dois vislumbraram a luz agitada de vela no alto da torre onde ca’Rudka estava preso — o sinal de que ele ainda estava lá.

Karl conduziu o bote em silêncio até a margem. Ele e Varina saíram e pisaram na lama úmida, ignoraram o cheiro de peixe morto e de água podre e entraram rapidamente nas sombras da Bastida.

Karl encontrou a porta onde Sergei disse que ela estaria: no ponto em que a barragem de terra coberta por grama da margem do rio encontrava os flancos da torre ocidental da Bastida. A barragem foi construída por ordens da kraljica Maria IV, há um século e meio, para evitar que as enchentes do A’Sele, que ocorriam anualmente na primavera, inundassem a margem sul. A porta estava coberta por terra e grama, onde a barragem subia sobre a base de pedra da Bastida, mas a cobertura era fina e as mãos de Karl rapidamente encontraram o anel de ferro debaixo da terra. Ele puxou com cuidado. A porta cedeu de má vontade, a terra empapada de chuva caiu, mas o som das dobradiças rabugentas foi em grande parte abafado pelo barulho da chuva no rio. Karl segurou a porta aberta para Varina entrar, depois ele mesmo entrou e deixou que a porta se fechasse.

O embaixador ouviu Varina falar uma palavra mágica e luz surgiu na lanterna encoberta que os dois trouxeram: a luminosidade amarela e fria do Scáth Cumhacht. O brilho parecia reluzir com uma intensidade impossível na escuridão. Karl viu as pedras lisas de limo e as lajotas quebradas do piso, as paredes infestadas com estranhas colônias de fungos e decoradas com cortinas esfarrapadas de teias de aranha. As silhuetas marrons e sinistras de ratos fugiam da luz e guinchavam em protesto.

— Que lindo — murmurou Varina, e o sussurro pareceu ecoar com um volume impossivelmente alto. Ela chutou um rato que se aproximara demais do pé, e o animal guinchou com raiva antes de fugir.

— Melhor ratos do que gardai — falou Karl. — Venha. Sergei disse que este caminho deve levar à base da torre principal. Mantenha a lanterna bem encoberta, só para garantir.

A caminhada pelo corredor abandonado pareceu levar cerca de meia virada da ampulheta, embora Karl soubesse que não poderia ter levado mais do que algumas centenas de passos. O ar estava gelado, e ele tremia sob a roupa molhada. Os dois chegaram à outra porta, obviamente fechada há muito tempo, e Karl levou um dedo aos lábios: depois daquele ponto, dissera Sergei, eles estariam nos níveis mais baixos da Bastida, onde poderia haver gardai ou prisioneiros trancados em celas meio esquecidas. Varina tirou uma jarra de banha de cozinha da tashta, abriu e besuntou a substância nojenta nas dobradiças da porta e nas bordas. Depois afastou-se e testou puxar a maçaneta, mas a porta não se mexeu. Ela puxou com mais força. Nada. Apoiou o pé na parede. A porta estremeceu uma vez no batente, mas, tirando isso, não houve resposta. Trancada — Varina falou sem emitir som.

Ela espiou pelo buraco da fechadura com o olho direito. Balançou a cabeça, depois se acocorou ao lado do batente. Falou uma única palavra mágica e gesticulou ao mesmo tempo: a madeira estremeceu e virou serragem em volta do buraco da fechadura, o trabalho de milhares de cupins feito em um instante, o mecanismo de metal caiu no novo buraco irregular com um baque surdo. Varina pegou o ferrolho e o soltou devagar e com cuidado, depois puxou a porta mais uma vez. Dessa vez, ela cedeu, relutante, porém silenciosa, e os dois entraram de mansinho em um pavimento gasto e úmido, mal iluminado por tochas presas em anéis dispostos em intervalos compridos ao longo das paredes — pelo menos um terço já havia se apagado e deixado um rastro de fuligem negra que manchava o teto baixo acima delas. O corredor fedia a óleo, fumaça e urina.

Karl fechou a porta outra vez após os dois entrarem e examinou-a rapidamente. Alguém que passasse por acaso talvez não notasse o buraco aberto por magia na penumbra; isso teria que ser suficiente. Em silêncio, ele apontou para a direita, e os dois começaram a seguir na ponta dos pés rapidamente pelo corredor.

Todas as passagens levarão à saída à esquerda. Conte duas e entre na terceira. Foi o que Sergei disse para Karl; agora ele observava cuidadosamente enquanto eles apressavam. Primeira abertura, da qual ouviram o som de alguém gritando: um choramingo longo, estridente e melancólico que não parecia humano — Karl sentiu Varina estremecer ao seu lado. Segunda abertura: uma passagem bem iluminada e o som ao longe de vozes rudes rindo de alguma piada e berrando.

Terceira abertura. Mais à frente, em um pequeno corredor, havia uma escada gasta em caracol, e eles ouviram vozes baixas e sons de um espaço habitado. A torre...

A mão de Varina pegou o braço de Karl; ela chegou perto, o calor do corpo foi providencial ao lado do embaixador. — Devemos esperar por Mika...

— Até onde sabemos, Mika já fez a parte dele ou já foi capturado. De um jeito ou de outro...

Ela soltou o braço de Karl e concordou com a cabeça. Ele e Varina entraram no corredor e começaram a subir, no maior silêncio possível. A escada, segundo Sergei contou, dava uma volta pelo perímetro de cada andar, com um pequeno patamar em cada um deles e uma porta que levava às celas. Haveria gardai a postos em cada andar, que mudavam na Terceira Chamada. Karl já conseguia enxergar o patamar do térreo. Ouviu duas pessoas falando — se eram dois gardai, ou talvez um garda e um dos prisioneiros, ele não sabia. Karl começava a subir a escada, encostado na parede de pedra...

... e foi então que eles sentiram a torre estremecer uma vez, junto com um rugido grave e um breve clarão de luz branca que banhou a superfície das pedras. Karl e Varina encostaram-se na parede quando vozes gritaram, assustadas. Eles ouviram a porta da torre ser aberta, sentiram o toque do ar da noite e o cheiro da chuva. — O que está acontecendo aqui, pelos seis abismos? — berrou uma voz para a noite lá fora. — Aquilo foi um raio?

A resposta foi ininteligível e longa. Karl e Varina ouviram a porta ser fechada, seguida pelo rangido de uma chave em uma fechadura. — Que agitação é essa, Dorcas? — chamou alguém.

— Alguém acabou de tentar entrar pelo portão principal. O desgraçado usou o Ilmodo e derrubou ambas as portas. Eles acham que pode ter sido um numetodo. O comandante mandou interditar a prisão; devo avisar aos demais. Ninguém entra e ninguém sai enquanto co’Falla investiga e chama alguns ténis do templo para cá. Entendeu?

Veio um resmungo como resposta, e Karl ouviu passos na escada, que sumiram rapidamente.

Ele acenou com a cabeça para Varina. Os dois prosseguiram.

Um triângulo de luz amarela brilhou nas pedras do patamar; ele viu uma sombra se mover na luz. Karl fechou os olhos momentaneamente, sentiu na cabeça a agitação dos feitiços que preparara previamente. Ele saiu do patamar com as mãos já em movimento, a palavra de ativação pronta nos lábios quando Varina passou pelo embaixador e subiu correndo os degraus, na direção do próximo patamar. — Ei, o que... — disse o garda, mas Karl já havia dito a palavra, e um raio refulgiu de sua mão e jogou o homem na parede atrás dele. O garda desmoronou, inconsciente, e Karl correu à frente. Ele começou a seguir Varina, mas foi chamado por vozes de um trio de celas ali. — Vajiki! E nós? As chaves, homem, as chaves... — Mãos foram esticadas pelas janelas com barras nas sólidas portas de carvalho.

Karl hesitou, e os chamados continuaram, mais insistentes. — Solte-nos, vajiki! Não pode nos deixar aqui!

Ele balançou a cabeça. Soltar os prisioneiros só complicaria as coisas, tornaria a situação mais caótica do que já estava e possivelmente mais perigosa: nem todos os prisioneiros na Bastida eram políticos, e nem todos eram inocentes.

Karl seguiu Varina escada acima ao som de xingamentos e gritos.

Varina já havia repetido o processo no segundo andar. — Estou quase exausta — disse ela, visivelmente arrasada contra a parede. — Só tenho mais um feitiço; conjurei os encantamentos às pressas como um téni.

Karl concordou com a cabeça; o embaixador sentia a mesma exaustão, e havia pouco poder sobrando dentro dele. — Eu pego o próximo. Precisamos ter o suficiente sobrando quando chegarmos ao regente.

Juntos, os dois foram para o terceiro nível tão rápido quanto puderam. A cela de Sergei, eles sabiam, ficava no quarto nível; mas quando se aproximaram do terceiro, Karl e Varina ouviram vozes. — O comandante pediu que levássemos o senhor até ele — o tal Dorcas dizia.

— Ele disse que viria em pessoa. — Karl ouviu Sergei protestar; a voz do homem parecia assustada.

— O comandante está um tanto quanto ocupado no momento.

— Soltem minhas mãos, pelo menos. Esta escada...

— Não. O comandante disse que o senhor deveria ficar algemado...

Karl viu uma bota aparecer na curva da escada quase à altura de sua cabeça. Sentiu o agito das últimas sobras do Scáth Cumhacht e falou a palavra de ativação ao se afastar da parede; logo abaixo, ele ouviu Varina fazer a mesma coisa. Dois raios foram disparados, e os gardai que seguravam ca’Rudka desmoronaram. Sergei tropeçou, caiu na escada e quase derrubou Karl. O segundo garda — Dorcas, presumiu Karl — permaneceu em pé, no entanto; sua espada saiu sibilando da bainha, e ele protegeu Varina, que agarrou o braço e recuou. Sergei chutou o joelho do homem, que gemeu e começou a cair; o regente chutou de novo, e Dorcas caiu de cabeça pela escada. Ele não se moveu novamente; a cabeça estava dobrada em um ângulo horrível.

— Eu não achei que você viesse — disse Sergei.

— Eu cumpro minhas promessas — falou Karl. — Agora, vamos sair daqui... Varina?

Ela balançou a cabeça. Karl notou o sangue jorrando entre os dedos enquanto Varina segurava o braço. O embaixador rasgou o própria roupa para fazer uma bandagem. — Eu vou atrasar vocês — disse ela. — Vão indo. Eu seguirei o mais rápido possível.

— Eu não vou deixar você aqui. — Karl amarrou com força o ferimento com faixas de pano. O rosto de Varina estava pálido, e havia mais sangue manchando a tashta do que Karl gostaria. — Não tenho mais nada sobrando do Scáth Cumhacht. E você?

Ela fez que não. Quando Karl amarrou com mais força as bandagens, Varina fez uma careta.

Sergei estava agachado ao lado do garda. Karl ouviu o ranger de aço contra aço e o retinir de chaves, ca’Rudka tirou as algemas da mão e jogou na escada. Ele retirou um florete de um dos gardai.

— Pegue a espada do outro garda — disse Varina para Karl. — Podemos precisar.

Karl assentiu e disse — Vamos. — Eles desceram correndo a escada, com Karl ajudando Varina. Ele sentiu o corpo ficando mole e pesado em seus braços, mais lento a cada lance de degraus. Os prisioneiros gritavam e berravam enquanto os três passavam, sacudiam as barras das celas, mas Karl os ignorou. Eles chegaram ao térreo e, mais devagar, começaram a longa curva para o subsolo. Karl começou a achar que conseguiriam. Eles estavam quase lá. Com Varina arrastando os pés atrás e Sergei à frente, os três desceram correndo a pequena passagem até o corredor principal. Dois cruzamentos, outra curva e mais um pequeno corredor, e eles estariam à porta que levaria ao antigo túnel desativado e ao bote à espera.

— Não desmaie, Varina — falou Karl ao olhar para ela. — Estamos quase lá.

Os três deram mais alguns passos até que um grupo de meia dúzia de gardai armados entrou no corredor vindo do cruzamento à frente. — Lá! É o regente! — berrou um garda, e o líder, com as faixas do posto no uniforme, virou-se. Karl conhecia o homem, embora o offizier olhasse mais para Sergei do que para ele.

— Sinto muito, Sergei — disse o comandante co’Falla, então seu olhar se voltou para Karl e Varina. — Embaixador, infelizmente o senhor e sua companheira cometeram um erro muito grave aqui. Cuidarei para que ela receba o tratamento adequado para a ferida. Sergei, abaixe sua arma. Acabou.

— Eu posso dizer o mesmo para você, Aris — falou Karl. — Afinal, todos vocês sabem o que um numetodo é capaz de fazer.

— Se o senhor tivesse algum feitiço sobrando, já teria usado — respondeu co’Falla. — Ou estou errado?

Houve movimento no corredor atrás dos gardai; uma figura na penumbra das tochas. Karl sorriu. Ele espalmou bem as mãos. Notou que alguns gardai atrás do comandante se encolheram, como se esperassem a explosão de um feitiço. — Não — disse ele. — Você não está errado. Não quanto a mim.

Co’Falla acenou com a cabeça e falou — Então eu sugiro que tornemos esta situação mais fácil para todos nós.

— Eu concordo — disse Karl. Ele olhou atrás de co’Falla e dos gardai, e o comandante começou a virar o rosto. O feitiço atingiu o grupo naquele momento: o ar em volta dos gardai reluziu e se contorceu com raios. Com gritos de dor e surpresa, eles desmoronaram no pavimento de pedra, com os raios ainda ondulando, estalando e se contorcendo sobre os corpos. Atrás deles, Mika estava com as mãos estendidas. O corpo esmoreceu quando as mãos caíram.

— Regente — falou ele. — É um prazer conhecer o senhor. Agora, queiram vocês se apressar...

Varina seguiu meio cambaleante à frente. Ela pegou a espada de co’Falla com a mão boa e colocou a ponta na garganta do comandante. Olhou para Karl e disse — Ele conhece você. — Havia uma mancha de sangue na bochecha, onde ela roçou a mão no rosto cansado e pálido. — Ele falou seu nome.

— Não. — A resposta veio de Sergei. Ele se moveu como se fosse pegar o pulso de Varina, mas ela balançou a cabeça e empurrou a espada, que furou a pele e fez aparecer um ponto vermelho. Sergei olhou para Karl. — Ele é meu amigo. Se fizerem isso, eu não irei com vocês. Ficarei aqui. Vocês terão acabado com tudo.

Varina olhou fixamente para Karl, à espera. O embaixador balançou a cabeça. Ela deu de ombros e deixou a espada cair com um baque alto no pavimento. Varina cambaleou, depois se equilibrou e disse — Estamos perdendo tempo, então.

Eles passaram pelos corpos caídos dos gardai e correram.

 

Niente

NECALLI ERA O TECUHTLI desde antes de Niente nascer. Ele sabia os nomes dos antigos tecuhtlis, mas apenas porque seu vatarh e matarh falaram a respeito deles. O nome de Necalli era sempre louvado nas cerimônias do solstício nos Templos do Sol; foi Necalli quem mandou o famoso Mahri para o leste após suas visões profetizarem a ascensão dos orientais dos Domínios. Foi Necalli quem respondeu ao pedido de ajuda dos primos após o comandante dos orientais ter começado represálias contra aqueles que viviam depois das montanhas costeiras. Foi Necalli quem criou Niente para se tornar o novo nahual acima de todos os demais feiticeiros, muitos dos quais eram mais velhos que Niente e sentiam inveja de sua rápida ascensão. Foi Necalli quem concordou em permitir que Niente usasse os encantamentos profundos do X’in Ka para capturar a mente do offizier dos Domínios e mandá-lo de volta para a grande cidade dos orientais como uma arma.

O feitiço custara mais a Niente do que ele havia esperado, debilitou seus músculos de tal forma que ele não conseguia ficar de pé por muito tempo sem precisar se sentar novamente. O esforço o consumiu tanto que o rosto no reflexo da água na tigela premonitória estava enrugado e cansado como o de uma pessoa muitos anos mais velha do que ele. Niente pagou o preço, como Mahri pagou muitas vezes em sua época, mas Niente odiaria ver aquele sacrifício desperdiçado.

Agora ele se perguntava para que serviu o sacrifício. — Ataque a cabeça da fera, e ela não poderá mais feri-lo — dissera Necalli. Era o que tinha mandado Mahri fazer, mas parecia que, ao contrário, a fera havia consumido Mahri. Niente tinha receio de que este pudesse ser seu destino também.

Mais importante, Necalli era o centro do mundo tehuantino na vida da maioria dos presentes ali. Niente não conseguia imaginar seu mundo sem o tecuhtli Necalli. Todos os guerreiros deviam morrer, e com o tecuhtli não era diferente. No entanto, Necalli sobreviveu aos desafios esporádicos ao seu reinado. Niente desejava que fosse capaz de imaginar Necalli sobrevivendo a este desafio também.

Mas ele tinha pouca esperança.

Niente estava no meio da multidão presente nos flancos da cavidade verdejante do vale Amalian, um dos locais sagrados de Sakal e Axat, localizado mais a leste. Suas costas estavam apoiadas em um dos alaques de pedra entalhada do campo de jogo e mantinha as mãos sobre a ponta do cajado mágico. Niente desceu o olhar para o pátio nas sombras. Lá embaixo, o tecuhtli Necalli estava de armadura, empunhando uma reluzente espada curvada na mão velha, mas firme, enquanto encarava Zolin, supremo guerreiro das forças tehuantinas e filho do irmão morto de Necalli. O rosto do tecuhtli Necalli era escuro com as tatuagens de sua patente, que contornavam as feições como uma máscara eterna e cruel, mas ele era um velho agora, as costas estavam curvadas para frente, o cabelo era branco e ralo. Zolin, em comparação, era a imagem esculpida e perfeita de um guerreiro.

O desafio surpreendeu a todos. Citlali, ele mesmo um guerreiro supremo, estava perto de Niente, e bufou diante da cena abaixo dos dois, Necalli e Zolin começaram a se cercar lentamente, enquanto os guerreiros em volta do campo começaram um cântico ritmado, batendo nas pedras com a ponta do cabo das lanças. O som parecia com as marteladas de Sakal quando Ele entalhou o mundo no casco da Grande Tartaruga. — Necalli voltará para os deuses hoje — disse Citlali. — Que Eles estejam prontos para receber o velho abutre.

— Por quê? — perguntou Niente. — Por que Zolin desafiou o tio? O tecuhtli Necalli não perdeu uma batalha para os orientais; na verdade, ele fez com que recuassem para o Mar Interior. A Garde Civile dos Domínios não penetrou ainda nas nossas fronteiras. O tecuhtli pode ser velho, mas ainda é um mestre da estratégia.

— Zolin diz que o tecuhtli ficou tímido com a senilidade — respondeu Citlali. A própria face era cheia de linhas negras pontilhadas por círculos de um azul intenso. — Ele dança com os orientais, mas hesita em destruí-los. Tornou-se cauteloso e cuidadoso demais. Zolin não tem medo. Zolin varrerá completamente os orientais da terra de nossos primos. Ele atacará, em vez de simplesmente se defender.

— Se vencer o desafio — disse Niente.

— Ninguém é mais forte do que Zolin. Necalli certamente não; olhe, os músculos são flácidos como os de uma velha.

— Será que a força deve vencer sempre a experiência? — perguntou Niente, e Citlali riu.

— Você é o nahual — falou Citlali. — Um dia, um de seus nahualli virá até você e exigirá um desafio, e talvez você descubra a resposta por si mesmo. Diga-me, Niente, por ter sido o nahual de Necalli, você está com medo de mudar de status quando Zolin se tornar o tecuhtli?

Niente aprendeu há muito tempo que alguém nunca demonstrava medo para um guerreiro supremo. Os Tatuados já consideravam os nahualli pouco mais do que armas em forma humana e não tinham nada além de desprezo por aqueles que eles consideravam fracos. Niente deu um sorriso forçado. — Não se Zolin tiver um cérebro, além de força.

Citlali riu outra vez e disse — Ah, isso ele tem. Zolin aprendeu com o próprio Necalli. Agora é o momento de o aluno superar o mestre, de o filho substituir o irmão de seu vatarh. — Niente percebeu que o guerreiro supremo o examinava de cima a baixo com o olhar. — Você anda cansado ultimamente, e estas rugas são novas no seu rosto. Você mesmo devia tomar mais cuidado, Niente. Necalli usou você demais, assim como Mahri. É uma pena.

Niente concordou cautelosamente com a cabeça. Era o que ele mesmo pensara, mais de uma vez.

O cântico e as batidas pararam abruptamente. Eles ouviram os pássaros da floresta se acomodarem novamente. O silêncio quase incomodou os ouvidos de Niente. Necalli e Zolin estavam a dois passos um do outro, no centro do campo.

Zolin rugiu. Avançou. A espada reluziu, mas a arma de Necalli se ergueu ao mesmo tempo, e as lâminas fizeram barulho ao colidirem enquanto os guerreiros gritavam em aprovação. Por um momento, os dois homens ficaram travados nessa posição, depois Zolin empurrou Necalli, e o tecuhtli recuou.

— Viu só — falou Citlali. — Eles agem em batalha como agem aqui. Zolin ataca, enquanto Necalli aguarda.

— E se Necalli encontrar uma falha no ataque de Zolin, ou se Zolin for impaciente, então é Necalli que continuará sendo o tecuhtli. Há vantagens em esperar.

— Veremos então quem os deuses favorecem, não é? — Citlali sorriu com ironia. — Quer apostar, nahual? Três cabras que Zolin vencerá.

Niente negou com a cabeça; Citlali riu. Lá embaixo, o guerreiro supremo executou uma finta em nova investida, e Necalli quase cambaleou ao erguer a espada novamente contra o ataque esperado. Zolin foi para a direita, depois rapidamente mudou para a esquerda, e a espada desenhou uma linha reluzente no ar. Desta vez, a resposta de Necalli veio atrasada. A lâmina do guerreiro supremo acertou o corpo de Necalli no ponto onde o peitoral era amarrado às ombreiras, cortou as tiras de couro e penetrou fundo no ombro do braço que segurava a espada do tecuhtli. Necalli, para seu crédito, só fez uma careta quando Zolin arrancou sua espada, e o sangue jorrou nos dois. O guerreiro supremo cercou Necalli quando o tecuhtli cambaleou para trás, sua armadura se agitou quando ele trocou a espada para a mão esquerda. O sangue escorria pelo braço direito de Necalli e pingava dos dedos. Zolin berrou novamente e levantou poeira com as sandálias ao atacar novamente. O tecuhtli ergueu a espada, mas sua defesa era fraca, e a espada do guerreiro supremo continuou descendo, entrou ao lado do crânio desprotegido de Necalli, se enterrando no pescoço abaixo da orelha esquerda. Zolin soltou a espada quando Necalli caiu de joelhos, a arma do tecuhtli tiniu ao cair no chão. Por um longo momento, Necalli cambaleou ali. A mão esquerda apalpou o cabo da espada de Zolin, sem efeito. Os olhos estavam arregalados, como se enxergasse uma visão no céu; a boca abriu-se como se estivesse prestes a falar, mas só o sangue saiu.

Necalli oscilou para a direita e caiu. O rugido de Zolin foi combinado aos milhares de berros dos que assistiam. Ao lado de Niente, Citlali ergueu um punho cerrado no ar e berrou — Tecuhtli Zolin! Tecuhtli Zolin!

Lá embaixo, Zolin arrancou a espada do corpo de Necalli. Ele ergueu a arma no ar, e os gritos foram redobrados quando ele se virou para encarar os que assistiam. Seu olhar triunfante pareceu encontrar cada tehuantino.

Dessa vez, Niente também se juntou aos gritos. — Tecuhtli Zolin! — Ele levantou o cajado mágico para o céu, mas olhou mais para o corpo de Necalli.

 

Nico Morel

NICO ESTAVA CONFUSO e assustado com a agitação. Várias coisas estavam acontecendo rápido demais. Houve batidas furiosas na porta, e o homem que estava tomando conta de Nico fez um gesto estranho com as mãos antes de os dois ouvirem a voz do embaixador do outro lado. A porta foi escancarada, e várias pessoas entraram correndo. Elas meio que carregavam Varina, cuja tashta estava encharcada de sangue. Nico tentou correr até ela, mas alguém o empurrou de volta para a cama com um rosnado. Houve muitos gritos e gente demais na sala pequena. Sob a luz das velas, tudo era uma confusão de sombras. Ele só conseguiu ouvir trechos do que as pessoas diziam.

— ... precisamos de Karina; ela tem o talento de cura... —

— ... não podemos ficar... fomos reconhecidos... —

— ... diga aos demais para ficarem escondidos... —

— ... a Garde Kralji já deve estar à procura... —

— ...torturar e matar qualquer um de nós que encontrarem... —

— ... a criança tem que ir embora...

Nico sentou-se na cama e queria chorar, mas ficou com medo de atrair atenção para si quando não queria nada além de ser invisível. Um rosto saiu do caos e agigantou-se sobre ele: Karl. — Nós temos que sair de Nessântico. Varina lhe disse isso, não foi? Você virá comigo, Nico. Não podemos deixá-lo para trás, não sem ninguém para tomar conta de você.

— Eu posso ficar na minha velha casa — disse Nico com uma confiança que não sentia. — Minha matarh irá me procurar lá, ou Talis. E eu conheço as pessoas que moram nas outras casas. Eu ficarei lá.

— Nós deixamos uma mensagem para Talis na sua casa avisando onde você estava — disse Karl. — Ele não veio.

— Ele virá — insistiu Nico. — Ele virá.

O homem parecia ter tantas dúvidas quanto Nico tinha por dentro. — Sinto muito, Nico, mas temos que ir embora rápido, e você precisa vir conosco.

Nico olhou por cima do ombro de Karl, na direção do tumulto na sala. Havia muitas pessoas ali, e ele não conseguiu ver Varina. — Varina vai morrer? — perguntou Nico.

— Não. — O embaixador balançou a cabeça enfaticamente. — Ela foi ferida, mas não vai morrer. — O menino acenou com a cabeça. — Nico, você terá que ser muito corajoso e ficar muito quieto. Se formos descobertos, Varina vai morrer, e eu, e talvez você, também. Entendeu?

Nico concordou novamente, embora não entendesse. Ele franziu os lábios e engoliu em seco. — Muito bem, bom rapaz — disse Karl ao mexer no cabelo de Nico, como Talis às vezes fazia, e Varina também. Nico perguntou-se por que os adultos sempre faziam isso apesar de ele não gostar. O menino sabia que Karl tinha filhos e netos em Paeti; uma vez sua matarh comentou com Talis que o embaixador e a archigos Ana eram “próximos demais”, então talvez eles fossem filhos da archigos. Nico imaginou como seria uma criança que cresceu no interior escuro e cavernoso do templo, com pinturas dos moitidis em combate nos domos no alto e fogo mágico que ardia em enormes braseiros em volta do coro.

— Nico! Venha cá. — Karl gesticulou, e Nico foi até ele.

— ... os portões da cidade serão fechados a qualquer momento — dissera um homem grisalho, e Nico levou um susto ao perceber que era o regente de Nessântico: tinha que ser ele, com o nariz feito de prata que reluzia à luz das velas. O menino olhou fixamente para o nariz: ele tinha visto o regente algumas vezes em dias de cerimônias, sentado ao lado do kraljiki Audric, quando a carruagem real dava a volta pela Avi a’Parete. Nico não compreendia por que o regente estava ali ou como poderia haver perigo com sua presença. A matarh sentia arrepios quando falava a respeito dele e contou para Nico histórias sobre o regente ter sido antigamente o comandante e ter torturado pessoas na Bastida. O rosto do regente parecia mais cansado do que perigoso neste instante. — O comandante co’Falla conhece a cidade tão bem quanto eu, pois o ensinei, e isso é um problema. Ele sabe que precisamos sair, e mandará pessoas à nossa procura. — O regente bateu com o dedo no nariz. — Alguns de nós somos muitíssimo reconhecíveis.

— Então nós evitaremos os portões — falou Karl. — Se conseguirmos cruzar a Avi perto do Parque do Templo, bem, as velhas muralhas ficam por ali, e se pudermos atravessar a vizinhança ao norte e entrar nos campos agrícolas durante a noite, há uma faixa de terra com muita floresta por lá, mais ou menos cinco quilômetros adiante, onde podemos ficar durante o dia. Talvez possamos prosseguir para Azay e... — O embaixador parou e deu de ombros. — Então faremos o que for necessário. Nesse momento, estamos perdendo tempo.

— Realmente — respondeu o regente. — Varina consegue andar?

— Eu consigo — Nico ouviu Varina responder, embora a voz soasse fraca e trêmula. Ele a viu, então, sentada na cama enquanto balançava os pés na beirada. O sangue na roupa era escuro, e parecia úmido. — Estou pronta. Só me deixem trocar de roupa. — Varina abanou a mão para eles. — Andem, saiam. Esperem por mim aí fora. Só levarei uma marca da ampulheta.

— Venha, Nico. — Karl acenou para a porta com a cabeça, mas Nico fez que não e abraçou o próprio corpo.

— Deixe o menino ficar — disse Varina. — Eu o levarei comigo. Andem.

— Está certo — respondeu o embaixador, mas ele parecia incerto. — Esperaremos na antecâmara. Seja rápida.

Os homens saíram e Varina desmoronou na cama por um momento, a respiração estava acelerada e incômoda. Ela gemeu ao se sentar novamente e ao tentar desfazer os laços da tashta. — Nico, preciso da sua ajuda...

O menino foi até Varina e desfez os laços, atrapalhou-se com os nós enquanto tentava não notar o sangue que sujava os dedos. Ela abaixou a tashta até a cintura, e Nico afastou o rosto rapidamente, um pouco corado, enquanto Varina tomou impulso com uma mão para ficar de pé. Os seios sob a faixa eram menores que os da matarh, e vê-los cobertos apenas por um pano fino provocou uma sensação estranha em Nico. — Há outra tashta no baú ao pé da cama — falou Varina. — Uma azul; pode pegá-la para mim? Bom menino.

Ele vasculhou o baú, o cheiro de ervas doces dentro de sachês de linho penetrou nas narinas do menino, que entregou a tashta azul para Varina. — Vire-se um instante — falou ela, e quando Nico obedeceu, ele escutou a tashta suja deslizar completamente até o chão. Ouviu Varina vestir a nova tashta meio sem jeito com o braço machucado, e quando ela gritou de dor, o menino foi rapidamente ajudá-la, puxou com força a faixa embaixo dos seios, depois amarrou as alças e os laços das costas. — Há bandagens na última gaveta do baú — disse Varina. — Se puder trazer algumas...

Nico correu para pegá-las para ela. Quando se levantou com as faixas brancas de tecido macio nas mãos, viu Varina tirar as bandagens do braço. Ele conteve um gritinho ao ver o corte fundo e irregular, que ainda estava escancarado e vertia sangue. As bordas da ferida abriram enquanto Nico observava, era tão funda que ele pensou ter visto o osso branco no fundo. Ele engoliu em seco e sentiu enjoo. — Eu sei — falou Varina. — O corte parece sério, e preciso encontrar um curandeiro para costurá-lo. Mas, nesse momento, preciso amarrar uma nova bandagem para mantê-lo fechado. Não consigo com uma mão só. Você pode me ajudar?

Nico concordou com a cabeça e engoliu em seco. Enquanto recebia instruções, ele colocou um chumaço de bandagens dobradas em cima da ferida; depois, conforme Varina apertava as bordas do corte da melhor maneira possível, o menino enfaixou a região. — O mais apertado que você conseguir — disse ela. — Não se preocupe, você não irá me machucar. — Varina mostrou a ele como rasgar a ponta da bandagem em duas e depois amarrá-las para ficar no lugar.

Ela chorava no momento em que Nico terminou e olhava para a mão ao tentar mexer os dedos. — Vai melhorar, Varina — falou o menino. — Só precisa de tempo para sarar.

Varina riu entre as lágrimas e puxou Nico em um abraço com a mão boa. — Obrigada — sussurrou ela no cabelo do menino. — Agora, pegue um pouco de água. Eu quero tirar o sangue das minhas mãos e das suas.

Uma marca da ampulheta depois, os dois saíram do quarto, com Varina pálida, mas andando com firmeza.


Estava chovendo, estava frio, estava escuro, e Nico estava péssimo.

O menino manteve-se próximo a Varina enquanto eles atravessaram correndo a Avi a’Parete sob o aparente olhar furioso das famosas lâmpadas mágicas da cidade. O regente estava com Nico, Varina e Karl; o outro numetodo — aquele chamado Mika — deixou o grupo e foi para outra direção pela cidade. Nico viu um esquadrão da Garde Kralji correr pela Avi na direção do Portão Norte, pisando nas poças dos paralelepípedos da avenida; o regente fez o grupo parar à sombra de um prédio — a chuva caía com força das calhas entupidas sobre eles — até os gardai sumirem na curva da Avi, depois Sergei guiou-os por uma corrida no interior do aglomerado de casas ao norte da Avi. Lá, eles rapidamente trocaram as ruas principais por transversais e becos, mantiveram-se longe das poucas pessoas que estavam na rua no tempo ruim e ocasionalmente se escondiam em vielas quando ouviam outros se aproximarem. Em um momento, um trio de utilinos passou pelo grupo, e eles espremeram-se contra as pedras frias e úmidas do prédio mais próximo, prendendo a respiração enquanto os utilinos, que obviamente observavam os rostos dos transeuntes, iam embora. O grupo continuou rumo ao norte; as casas ficaram mais espaçadas, estavam separadas agora por campos e pastoreios; as luzes da cidade tornaram-se apenas um brilho nas nuvens acima deles; as ruas de paralelepípedos deram lugar a estradas enlameadas e cheias de sulcos, que finalmente viraram um caminho estreito e sujo. Quando eles pararam, Nico teve a sensação de que passou a noite correndo. Os pés e as pernas doíam, e ele ofegava pelo esforço de acompanhar os adultos. Varina desmoronou no chão assim que o grupo parou.

— Vamos descansar aqui por alguns minutos — falou o regente. — Se vier alguém, nós devemos vê-los antes que nos notem. — Os quatro estavam bem afastados de qualquer fazenda, e a chuva virou uma garoa inconstante. Nico ficou ao lado de Varina, que estava apoiada em um muro de pedra à beira do caminho. Ela fechou os olhos e segurou o braço ferido com firmeza.

— A floresta fica a mais ou menos um quilômetro e meio estrada acima; devemos alcançá-la em meia virada da ampulheta — continuou o regente. — Talvez nós devêssemos sair da estrada; se eu fosse o comandante, mandaria batedores para todos os vilarejos à nossa procura.

— Para onde? — perguntou Karl.

O regente sacudiu a água do cabelo parcialmente grisalho; gotas pingaram do nariz de prata. — Firenzcia — resmungou ele.

Karl deu uma risada que mais pareceu uma tosse. — Você está brincando, Sergei. Isso é sair do fogo para cair na brasa. Firenzcia? O archigos ca’Cellibrecca não é nada mais que uma versão mais nova de seu vatarh por casamento; eles adorariam ter o embaixador dos numetodos para torturar e pendurar em uma jaula para que todo mundo visse. Firenzcia? Lá pode ser bom para você, mas Varina e eu teremos uma chance melhor de sobreviver se tentarmos nadar pelo Strettosei até Paeti. Era melhor nós simplesmente nos rendermos à Garde Kralji agora.

Varina abriu os olhos, e Nico viu que ela assistia à discussão. O regente fungou. — Firenzcia é inimiga dos kralji. Agora, nós também. Eu conheço Allesandra desde a época que ela passou aqui; você também. Com Fynn assassinado, ela será a hïrzgin; Allesandra nos acolherá.

— A não ser que os numetodos estejam sendo convenientemente culpados pelo assassinato do hïrzg Fynn — falou o embaixador, e Varina concordou enfaticamente com a cabeça.

— Para onde mais vocês iriam? — perguntou o regente.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

— Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

— E Firenzcia não faria o mesmo? — interveio Varina.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — disse o embaixador.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — Sergei fungou novamente.

Nico ouvia a discussão enquanto se encolhia no manto. Ele não queria ir para Firenzcia, Il Trebbio, Paeti ou qualquer um desses lugares. O menino gostava de Varina e sentia muito por ela estar machucada, mas queria estar com sua matarh ou Talis. Os adultos não prestavam atenção nele; estavam muito dedicados à discussão.

Aos poucos, Nico ergueu o corpo até ficar sentado no muro. Ele virou-se, as pernas balançaram do outro lado. Ninguém notou o menino; ninguém disse nada para ele. Nico deixou-se cair na grama alta do campo. Ele ainda podia ouvir a discussão quando começou a se afastar rapidamente do outro lado do muro de pedra — de volta para Nessântico. De volta para o único lar que conhecia.

Quando Nico mal pôde escutar as vozes, ele começou a correr: noite adentro, chuva adentro, na direção do brilho da cidade ao longe.

 

Varina ci’Pallo

— PARA ONDE MAIS VOCÊS IRIAM? — falou o regente, e ela ouviu Karl escarnecer.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

Sergei parecia um professor ensinando um aluno lento. — Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

Varina, que meio que ouvia a discussão, remexeu-se e interrompeu os dois com os olhos semicerrados. — E Firenzcia não faria o mesmo? — disparou para o regente.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — acrescentou Karl; Varina ficou contente por ter o apoio dele.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — A voz de Sergei era quase de deboche.

A discussão apenas minava a pouca força que restava a ela. Deixe Karl lidar com ele; Karl não irá para Firenzcia. Não irá... Conforme a discussão continuava, a atenção de Varina voltou-se para o cansaço do corpo e a dor latejante e insistente no braço, que dava uma pontada toda vez que ela se mexia. Varina apoiou a cabeça no muro de pedra à beira da estrada, sem se importar que o chão embaixo dela estivesse frio e encharcado, e fechou os olhos enquanto os dois continuavam a discutir. Sentia no rosto o espirro gelado ocasional das nuvens insistentes e ouvia o estrondo da voz dos dois homens como um trovão distante em sua mente. Ela estava péssima e com frio.

Varina perguntava-se se a morte não seria na verdade um benefício.

Ela não sabia o que pensar quando olhou para a direita, na direção onde o brilho da cidade pintava as nuvens baixas levadas pelo vento. Ao mesmo tempo, percebeu que o calor tênue que estivera ao seu lado foi embora.

— Nico? — Varina sentou-se e conteve o grito que queria irromper pela garganta com o movimento. Então, falou mais alto — Nico?

Karl e Sergei deixaram a discussão de lado e viraram-se. — Varina? — Karl começou a dizer, depois praguejou. — Merda! O menino sumiu. — Ele olhou sobre o muro, Varina fez o mesmo, enquanto se levantava lentamente. A grama da campina revelava o rastro escuro e pisoteado dos pés de Nico, que voltava na direção da cidade até Varina perdê-lo na escuridão.

— Eu vou atrás dele. O garoto não pode estar longe. — Ela começou a passar por cima do muro para persegui-lo e fez uma careta quando o movimento forçou o braço machucado. Mas Varina sentiu a mão de Karl no braço bom, para contê-la.

— Não — falou Karl. — Você não pode. Ele está voltando para a cidade e chegará lá antes que você o alcance. Você não pode ir lá. Eles não estão procurando por um menino, estão procurando por você.

Varina estava agitada. Ela tentou se soltar de Karl, mas estava muito fraca. Sergei assistiu, impassível, da estrada. — Nico estará sozinho lá. Não posso abandoná-lo assim. Eu prometi.

— Ele estava sozinho quando você o encontrou. O garoto é no mínimo engenhoso. — Karl apontou com o queixo para o brilho da cidade nas nuvens. — Nico acha que sua matarh ou Talis irão encontrá-lo se ficar lá. Ele pode estar certo. Deixe o menino ir, Varina. Deixe-o ir. Nós temos outras questões para nos preocupar.

Varina esmoreceu. Ela sentou-se no muro e olhou para a trilha da fuga de Nico. Karl soltou seu braço, que ela usou para abraçar o ferido. A chuva tinha recomeçado a cair; a garoa escondeu as lágrimas. — É minha culpa — disse Varina. — Minha culpa. Eu devia ter tomado conta dele. Prometi que o levaria a um lugar seguro. Prometi a ele...

— Varina. — Ela virou-se para Karl, que balançou a cabeça. — A culpa é minha. Você está ferida, precisava descansar. Eu devia ter vigiado o menino. Não você. A culpa é minha.

Varina queria poder acreditar em Karl. Fungou. Virou o rosto novamente para o rastro, que sumia. A grama da campina já se levantava e escondia a fuga de Nico.

— Fique a salvo — sussurrou Varina: para a escuridão, para a chuva, para a névoa distante tocada pela luz. — Por favor, fique a salvo.

 

Audric ca’Dakwi

VOCÊ TEM TODO O DIREITO de estar furioso. Na verdade, você tem que estar furioso, para que eles temam você.

Audric ouviu a voz da mamatarh, o espocar das palavras em sua cabeça, a raiva aparente de Marguerite. Ele viu a cara fechada no quadro à direita quando se sentou no Trono do Sol.

Eu fui a Spada Terribile, a Espada Terrível, antes de ser a Généra a’Pace, falou a kraljica em fúria. Você tem que seguir meus passos, Audric. Tem que mostrar para eles o aço, antes de dar a luva de pelica, para que saibam que o aço está sempre dentro. Escondido.

— Eu mostrarei — falou Audric em tom grave, depois se voltou para o comandante co’Falla, que estava diante dele com a cabeça baixa e uma pequena bandagem no pescoço. O Conselho dos Ca’ sussurrava em seus assentos, atrás do comandante. — Comandante? — vociferou o kraljiki, embora a rispidez da palavra tenha provocado um acesso de tosse. Ele ergueu os olhos, com o lenço de renda amassado na mão, e viu que co’Falla o encarava. — Você está me informando que o ex-regente ca’Rudka conseguiu escapar da Bastida e de minha ordem de execução? — Ele teve que parar para tomar fôlego. Ouviu o eco da voz nas pedras do salão. Abaixe a voz. Você soa estridente, como uma criança. Mostre a eles que você está à altura deles. — Eu sei — falou Audric para a mamatarh, depois se deu conta de que todos o observavam, e fingiu que começava outra sentença — ... que o regente não pôde ser encontrado em Nessântico e que provavelmente fugiu da cidade?

— Sim, kraljiki — falou o comandante irritado. Ele retesou o maxilar, os músculos encolheram-se debaixo da barba, e ele franziu os lábios depois da resposta. Co’Falla parecia conter as palavras que queria dizer.

Audric fez um gesto magnânimo na direção ao homem e falou — Prossiga. Esclareça para nós.

— Kraljiki — disse ele, e olhou para trás, para os demais. — Conselheiros. Este foi um ataque à Bastida orquestrado pelos numetodos; por quantos, ainda não temos certeza. Os portões principais foram arrancados com um feitiço, e perdi dois homens quando os suportes do lado norte caíram como resultado. Eu imediatamente mandei interditar a torre onde o regente estava preso, com medo de que um ataque direto pelos portões destruídos viesse a seguir, e despachei um mensageiro ao templo para chamar os ténis, a fim de neutralizar os feitiços numetodos. Mas, ao que parece, o ataque aos portões foi simplesmente um engodo para chamar nossa atenção. Quando não aconteceu ataque algum, eu pessoalmente levei gardai aos corredores do subsolo da Bastida, mas o embaixador ca’Vliomani e seus comparsas já haviam entrado; provavelmente muito antes do ataque ao portão.

— Você tem certeza de que o homem que viu era o embaixador ca’Vliomani? — perguntou Audric.

Co’Falla concordou com a cabeça. — Certeza absoluta, kraljiki. Quando ficou óbvio que não haveria ataque algum aos portões, eu levei um esquadrão aos corredores do subsolo, como disse. Nós confrontamos o embaixador ca’Vliomani e a numetodo Varina ci’Pallo com o prisioneiro; havia pelo menos outro numetodo nos corredores. Eles usaram feitiços contra nós. — Ele engoliu em seco. — Meus homens e eu fomos incapacitados.

Audric ergueu as sobrancelhas. — Incapacitados — falou o kraljiki demoradamente, como se saboreasse a palavra. — Mas não morto, embora, eu noto, tenha sido... ferido. Um arranhão no pescoço, que não foi pior que um cortezinho de navalha? Que sorte para todos nós!

Soaram risadas da parte dos conselheiros, com destaque para o riso debochado de Sigourney ca’Ludovici. O rosto de co’Falla ficou visivelmente vermelho.

— Kraljiki, conselheiros, eu conheço Sergei ca’Rudka desde que entrei para a Garde — disse ele. — Ele foi meu offizier superior e meu mentor. Ele me promoveu e me fez subir de patente; Sergei ca’Rudka, através de seu vatarh, kraljiki, me escalou para meu posto atual como comandante da Garde Kralji. Eu o considerava meu amigo, bem como meu superior. Eu presumo que a amizade dele é o motivo de meus homens e eu ainda estarmos vivos, kraljiki.

Audric não precisou do falatório da mamatarh para se levantar do trono ao ouvir isso. Ele apontou um dedo acusador para o comandante. — Na realidade, seu relacionamento e amizade com ele foram a causa de ca’Rudka ter escapado — rugiu o kraljiki em tom estridente ao conter a tosse. — Que conveniente que você tenha caído inconsciente exatamente na hora certa. Que conveniente que os numetodos conhecessem essa passagem secreta pelo rio. Que conveniente... — Audric não conseguiu prosseguir. Foi sobrepujado pela tosse naquele instante, e encolheu-se no Trono do Sol com o lenço de renda no rosto enquanto o corpo era acometido pelo ataque. Ele mal ouviu a ladainha de desculpas do comandante.

— Meu dever é com o kraljiki e Nessântico — insistiu co’Falla. — Isso suplanta qualquer amizade que eu possa ter com o regente. Eu lhe garanto, kraljiki, que agi exatamente como o senhor ordenou. Eu lhe garanto que teria cumprido a sua ordem de executar o regente, caso o senhor tivesse decidido que esse seria o destino dele. Vários dos meus homens foram feridos ou mortos no ataque; eu jamais, jamais teria permitido que isso acontecesse. Eu não abandonaria meu dever e juramento ao serviço militar pelo bem de uma amizade. Jamais.

Audric ainda recuperava o fôlego enquanto limpava os lábios com o lenço. Marlon, ajoelhado e inclinado para frente nos degraus do tablado do trono, ofereceu outro lenço, que Audric pegou entregando o manchado para o criado. Foi Sigourney ca’Ludovici quem respondeu a co’Falla, e Audric escutou enquanto tossia baixinho no novo lenço. — Estas são belas e nobres palavras, comandante, mas... — Ela olhou solenemente em volta do salão. — Ora, eu não vejo o regente nem o embaixador ca’Vliomani algemados diante de nós, e pelo que o senhor nos disse, todos os numetodos notórios da cidade fugiram também. Como o kraljiki disse, que conveniente que eles tenham tido tempo e oportunidade para fazer tal coisa.

— Conselheira ca’Ludovici — falou co’Falla —, eu fico ofendido diante destas acusações. Assim que recuperei a consciência, eu despachei a Garde Kralji para guardar os portões e varrer a cidade; entrei em contato com o archigos Kenne para que ele mandasse alertar os utilinos em suas rondas; mandei uma mensagem ao Guardião dos Portões e pedi que vasculhassem todos os albergues e estalagens. A senhora pode verificar essas ordens com meus offiziers.

— Mas seu amigo ca’Rudka e seus comparsas conseguiram escapar dessa bela e maravilhosa rede que o senhor colocou em torno da cidade — respondeu ca’Ludovici. — Como ele é esperto. — Novamente veio a risada dos outros conselheiros.

Audric recuperou a compostura e dobrou o lenço manchado de sangue na mão. O rosto de co’Falla estava ainda mais vermelho do que antes, e o kraljiki ergueu a mão para interromper o protesto do comandante. — Eu decreto que Sergei ca’Rudka não tem mais status algum nos Domínios. Que a Gardes a’Liste registre o nome dele simplesmente como Sergei Rudka, de agora em diante. O mesmo para o embaixador ca’Vliomani; ele perdeu o status diplomático e agora é conhecido apenas como Karl Vliomani, sem nenhum posto aqui. Quando forem encontrados, a pena para eles será a morte imediata.

Audric ouviu o murmúrio de prazer da mamatarh e os sussurros dos conselheiros, que concordaram. — Quanto a você, comandante co’Falla — falou ele, e co’Falla ajeitou os ombros e pareceu olhar além do kraljiki —, também é necessário haver julgamento.

— Kraljiki — disse co’Falla, de queixo empinado e com olhos ocultos —, eu tenho família aqui e presto serviço leal ao Trono do Sol desde minha décima-sexta temporada. Eu peço aos senhores que considerem isso.

— Nós consideramos — falou Audric. — Nós também consideramos que você falhou com seu juramento e falhou com seu kraljiki. — Mostre a eles. Mostre a eles que você também pode ser a Spada Terribile. Mostre sua força e sua determinação. Audric levantou-se do Trono do Sol e enfiou o lenço de renda na manga da bashta azul e dourada. Ele deu alguns passos para ficar na frente de co’Falla e sentiu o olhar de aprovação de Marguerite as suas costas. Sua cabeça bateu na altura do peito do comandante; ele teve que erguê-la para ver o rosto do homem e ficou furioso por causa disso. — Nós exigimos a espada de seu cargo, comandante. — O kraljiki estendeu a mão.

A expressão de co’Falla ficou séria e vazia. Ele soltou o cinto da bainha, e os fechos de metal tilintaram como uma música. Co’Falla colocou a arma na mão estendida de Audric. O kraljiki pensou ter visto um leve traço de satisfação no rosto do homem quando o peso inesperado do aço quase fez Audric deixar a espada cair, a mão caiu e o cinto de couro da bainha enroscou-se sobre o piso de mármore do salão. O kraljiki virou-se de lado para co’Falla e sacou a lâmina da bainha. O aço retiniu: era a arma de um guerreiro, não um objeto de enfeite lustroso, entalhado e cravejado de joias que a maioria do Conselho dos Ca’ portava. Audric ergueu a lâmina com admiração e viu os pequeninos arranhões onde o gume fora recentemente afiado, o brilho da cobertura de óleo na superfície. A espada de um guerreiro. A espada que dava sinal de ter tido muito uso e muita morte.

Audric sorriu.

Sem aviso prévio, ele empunhou a arma na horizontal e girou o corpo rapidamente, enfiando fundo a ponta afiada e triangular da espada no estômago de co’Falla, e gemeu diante da resistência inesperada do tecido e dos músculos. O comandante ofegou, ficou boquiaberto e arregalou os olhos. As mãos de co’Falla pegaram a lâmina enquanto Audric continuava a empurrar com toda força e a enterrar a espada fundo na barriga do homem. O sangue espalhou-se rapidamente e fluiu pela calha central na direção do punho que o kraljiki segurava. Co’Falla tomou fôlego pela segunda vez e verteu sangue pela boca aberta, seus joelhos cederam, o homem caiu e arrancou a espada da mão de Audric. O kraljiki ouviu os conselheiros ficarem de pé ao mesmo tempo, horrorizados.

A mamatarh riu dentro de sua cabeça.

Muito benfeito, disse ela para o neto. Benfeito mesmo!

Audric foi até o corpo que estrebuchava, olhou nos olhos do moribundo e falou — Agora nós realmente não temos que nos preocupar com sua incompetência. — Ele tossiu violentamente pelo esforço, mas não se importou com as gotículas vermelhas que caíram sobre o rosto e o peito do homem. Co’Falla olhou Audric fixamente e pestanejou. O kraljiki arrancou a espada do estômago do sujeito e colocou a ponta sobre o peito, sentiu quando ela entrou entre as costelas. — E lhe concedemos um último favor: uma morte rápida. — Audric colocou todo o peso no cabo e empurrou. Mais sangue jorrou da boca de co’Falla, e o homem ficou imóvel.

Excelente! Você é realmente meu verdadeiro herdeiro, muito mais forte que seu vatarh...

Audric voltou-se para o Conselho dos Ca’ e espalmou as mãos ensanguentadas. O rosto de Sigourney ca’Ludovici ficou pálido, e ela olhava mais para o cadáver de co’Falla do que para o kraljiki.

— Parece que precisamos de um novo comandante — disse Audric para os conselheiros.

 

 

Allesandra ca’Vörl

— ISSO NÃO ERA O QUE EU QUERIA, matarh. Fynn deveria ser o hïrzg, e caso não fosse ele, então a senhora. Não eu.

Allesandra tirou fios imaginários dos ombros da bashta com apliques dourados que Jan usava, com a faixa do cargo de hïrzg sobre o tecido preto e prateado. Ela tocou a bochecha do filho e sorriu. Ele já tinha ficado mais alto do que a matarh nos últimos dois anos; Jan ficaria ainda mais alto. — É melhor assim — disse Allesandra. — Firenzcia terá um hïrzg forte por muitas décadas, que é o que precisamos.

— Eu não entendo. — Jan olhou para ela, com a cabeça ligeiramente inclinada. — Por que a senhora fez isso? Por que abdicou de ser a hïrzgin? Todas aquelas histórias sobre o vavatarh ter tirado este direito da senhora, de tê-la ignorado em favor do onczio Fynn...

— Eu não queria. — Allesandra viu o espanto no rosto do filho. Jan sempre foi uma criança que revelava os pensamentos pelas expressões. Vou ter que trabalhar essa questão com ele. É algo que Jan precisa aprender. Ela sorriu e tocou a bochecha do rapaz. — É verdade, querido. Realmente. Agora, vamos: os ca’ e co’ vieram encontrar seu novo hïrzg, e não podemos fazê-los esperar.

Allesandra acenou com a cabeça para o comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg, que esperava pacientemente a uma passada e meia de distância dos dois trajando uniforme de gala. O homem prestou continência e ergueu a mão. Em resposta, Roderigo, que se tornou o assistente de Jan, gesticulou para os criados, que correram para seus postos. O som das cornetas ecoou pelo ar agradável da noite quando os atendentes abriram as portas duplas que levavam ao salão principal. Jan fez uma pausa e não se mexeu; Allesandra gesticulou para ele e disse — Você primeiro. É você que eles querem ver.

Quando Jan entrou, os aplausos surgiram e se avolumaram, entremeados por berros de comemoração e gritos de “hurra, hïrzg Jan!”. Ele parou na porta como se estivesse preso ao lugar pela aclamação e ergueu os braços lentamente, quase arrependido, para aceitá-la. — Ande — sussurrou Allesandra ao ver que o filho continuava parado ali. — Vá até eles.

Jan olhou para trás. — Com a senhora, matarh — falou e ofereceu o braço. Ela deu um passo à frente para aceitá-lo e sorriu quando pousou a mão no braço ao filho. Os aplausos aumentaram e envolveram os dois.

Allesandra olhou para a multidão radiante. As cores preto e prata predominavam, como em todas as comemorações firenzcianas, refletindo as cores dos estandartes pendurados no alto das paredes. Luzes mágicas reluziam intensamente nos candelabros e iluminavam os ca’ e co’ de Brezno, todos reunidos e voltados para os dois. Os rostos mostravam sorrisos, alguns genuínos, mas muitos escondendo preocupação, incerteza e desconfiança. Ninguém conseguiria deixar de ver o número de homens da Garde Hïrzg postados nas laterais do salão que andavam cuidadosamente entre a multidão, com olhares sérios e atentos, nem o comandante co’Göttering, que entrou no salão imediatamente atrás de Jan e Allesandra, nem a presença chamativa do starkkapitän ca’Damont, bem como seus vários offiziers chevarittai. Firenzcia tinha perdido dois hïrzg em menos de um ano agora, e os ca’ e co’ sabiam que a a’hïrzg passara o cajado e a espada para o filho, que eles conheciam pouco, apesar do recente destaque. Era óbvio que Firenzcia planejava não sofrer mais perdas.

Firenzcia estava acostumada a mudanças: na vida de muitos que aplaudiam a entrada de Allesandra e Jan, eles vivenciaram uma grande batalha perdida para Nessântico; viram a própria Allesandra ser feita de refém; testemunharam seu querido vatarh abandoná-la em nome do irmão mais novo; tremeram quando o velho hïrzg Jan separou-se dos Domínios e criou a Coalizão; testemunharam a separação da própria fé concénziana, com a rebelião do archigos ca’Cellibrecca contra o velho trono em Nessântico e a ascensão da archigos Ana; vibraram com o fortalecimento da Coalizão a cada ano que passava, pois parecia que um dia poderia até mesmo ofuscar os Domínios.

Na vida dos ca’ e co’, Firenzcia passou de criado dos Domínios a seu maior rival. A luz de Brezno agora rivalizava com a da própria Nessântico.

Eles sentiam-se otimistas a respeito de Firenzcia e do ramo breznoniano da fé concénziana, mas este ano acabou com muito daquele otimismo. Allesandra sabia que os ca’ e co’ vibravam agora mais pela esperança que o novo hïrzg Jan representava do que pelo próprio Jan.

Se eles soubessem o que ela planejou... Allesandra perguntou-se que caras os ca’ e co’ fariam e se conseguiriam sorrir de alguma maneira.

Semini estava na frente do público, com a equipe de ténis vestidos de verde atrás. Allesandra segurou na mão de Jan quando os dois desceram os degraus. Conforme a multidão começava a se juntar em volta de Jan, muitos com filhas jovens e solteiras a tiracolo, Allesandra apertou o braço do hïrzg e sussurrou — Seja educado com seus súditos. Você nunca sabe de qual deles poderá precisar como aliado... ou como esposa.

— Aonde você vai, matarh? — sussurrou Jan de volta, e ela ouviu apreensão em sua voz.

— Não se preocupe; eu estarei aqui e resgatarei você se notar algo estranho. Preciso falar com o archigos ca’Cellibrecca. — Allesandra acenou com a cabeça para os ca’ e co’ enquanto estes se reuniram em volta de Jan, escapou no meio da multidão e cumprimentou aqueles por quem passava. A música havia recomeçado, mas a maioria no salão ignorava o chamado para dançar a fim de ter um momento com o novo hïrzg. — Archigos — disse ela ao chegar a Semini, que estava do lado do público. Seus o’ténis assistentes, que sorriram e fizeram o sinal de Cénzi para Allesandra, afastaram-se quando ela chegou e retornaram cuidadosamente às próprias conversas.

Semini acenou com a cabeça para Allesandra e fez o sinal de Cénzi, depois ofereceu as mãos para ela. Allesandra as segurou e apertou os dedos por um instante antes de soltá-las. Eles não tiveram uma oportunidade de ficar juntos desde o encontro na Encosta do Cervo, há mais de um mês, mas houve cartas e recados cuidadosamente elaborados. Ela sabia como queria que esta noite acabasse. Os preparativos já tinham sido feitos: Semini iria aos aposentos de Allesandra após a recepção. Ela sorriu. — É tão bom vê-lo novamente, archigos. Como vai sua esposa na noite de hoje? Eu esperava ver Francesca com você. — Sempre educada em público, sempre dizendo as coisas certas.

— Ela não está... se sentindo bem e pede desculpas à senhora e ao hïrzg. Na verdade, Francesca não vem se sentindo bem há algum tempo, eu cuidei para que ela fosse para as estâncias de Kishkoros. Francesca ficará lá mais uma semana; eu soube que as estâncias são bem revigorantes e renovadoras.

Allesandra concordou, contente com a notícia: isso remove um empecilho para nosso caso. — São sim. Tenho certeza de que o descanso fará maravilhas para a saúde de Francesca, embora eu espere que isso não lhe deixe muito solitário. — Ela apertou a mão de Semini novamente.

Ele deu um sorriso ao ouvir isto, talvez largo demais. Allesandra viu um dos o’ténis erguer as sobrancelhas na direção dos dois e soltou as mãos do archigos. — Tenho certeza de que o trabalho me impedirá de sentir muita falta de Francesca. Há muita coisa que a Fé pode fazer para ajudar o novo hïrzg, não acha?

— Eu sei que Jan ficará muito grato a você, archigos. Assim como eu. — Ela deu uma olhadela para a aglomeração de gente em volta de Jan. Ele sorria abertamente, cumprimentava mãos e tocava em ombros, e havia jovens reunidas ao seu redor. Apesar da apreensão mais cedo, Jan parecia estar se divertindo. O nó no estômago de Allesandra afrouxou um pouco. O comandante co’Göttering permanecia ao lado do hïrzg e observava atentamente, com a mão nunca longe da espada ao lado. Allesandra suspeitava que, apesar da elegância dourada do cabo, a lâmina do comandante era bem útil. Aliás, ela sabia que o próprio Semini era um excelente téni-guerreiro e não tinha dúvidas de que os outros ténis com ele eram o mesmo.

Jan estava a salvo aqui. Allesandra poderia aproveitar a noite e ver as manobras sociais dos ca’ e co’ que foram convidados. — Uma vez que a conselheira ca’Cellibrecca não pôde estar aqui — disse ela para Semini —, talvez você possa dançar comigo mais tarde?

Os dentes brancos reluziram sob a barba grisalha; ele abaixou levemente a cabeça. — Eu adoraria muitíssimo. Gostaria de caminhar comigo, a’hïrzg? Meus ténis montaram um belo arranjo no jardim, e eu gostaria de mostrá-lo para a senhora. — Semini ofereceu o braço para Allesandra, que hesitou um momento; os ca’ e co’ podiam não estar prestando tanta atenção a ela quanto ao filho, mas notariam. Eles sempre notavam. Mas Allesandra deu a mão ao braço oferecido e deixou que Semini a conduzisse a uma das sacadas no mezanino do salão. Os o’ténis do archigos, notou ela, se posicionaram cuidadosamente nas portas da sacada quando os dois passaram e ficaram voltados para o salão, de maneira que, quando Allesandra olhou para trás, não viu nada além de costas vestidas de verde, embora as portas permanecessem educadamente abertas.

— Eles são bem treinados — disse ela, e Semini sorriu.

— E são bem discretos. Veja. — O archigos se dirigiu para o lado esquerdo da sacada, onde mesmo que alguém tentasse olhar do salão sobre a parede de o’ténis não conseguiria ver facilmente os dois. Lá embaixo, os jardins do Palácio de Brezno estavam acesos com bolas de luz brilhante que flutuavam suavemente nas alamedas: tons intensos de púrpura e azul, vermelhos reluzentes, verdes da cor da grama na primavera, amarelos mais fortes do que girassóis. A noite estava fresca e agradável, e as estrelas imitavam o jardim em um céu decorado com nuvens prateadas. Os casais na recepção perambulavam pelo labirinto dos jardins, de mãos dadas.

O calor de Semini cobria as costas de Allesandra, ele estava com os braços em volta dela e apertava o corpo contra o seu. — Eu senti sua falta, Allesandra.

— Semini... — Ela recostou-se no abraço e sentiu o desejo aumentar dentro de si. Ele tinha cheiro de sabonete, de óleo no cabelo e almíscar. Allesandra imaginou-se montada em Semini, movendo-se com ele.

Ela virou-se nos braços do archigos e empinou o rosto. Eles beijaram-se, e Allesandra sentiu os pelos macios da barba em sua bochecha e o ímpeto da língua na boca, as mãos do archigos desceram para pegar suas nádegas e apertá-la contra ele. A a’hïrzg entregou-se ao beijo, fechou os olhos e se permitiu sentir, notar o calor que passava por ela como uma maré lenta e implacável. Allesandra afastou-se, relutante, o fôlego era quase um lamento, e virou-se novamente para relaxar contra o corpo do archigos. Ela olhou para a luz, para os amantes furtivos em momentos secretos no jardim lá embaixo. — Semini... — Allesandra começou a falar...

... Mas o aumento do barulho no interior do salão afastou Allesandra do archigos, cheia de culpa. Eles ouviram gritos, e no momento em que a a’hïrzg virou-se, preocupada, ela ouviu um dos o’ténis falar alto demais: — ... deixe-me buscar o archigos para o senhor...

O comandante co’Göttering empurrou a porta da sacada e irrompeu noite afora, seguido por um trio de inúteis o’ténis. — A’hïrzg, archigos — falou o homem. Quaisquer que fossem os pensamentos que ele possa ter tido ao ver os dois próximos e sozinhos na sacada foram cuidadosamente dissimulados. — A sua presença é exigida no salão.

— Qual é o problema, comandante? — perguntou Allesandra. — Eu ouvi gritos. Jan está...?

— O hïrzg está bem. Há notícias e... um convidado. Por favor... — Co’Göttering gesticulou para a porta; Allesandra e Semini seguiram o comandante em direção à claridade do palácio e da escada do mezanino. A a’hïrzg viu um quarteto de homens da Garde Hïrzg em volta de Jan, enquanto os ca’ e co’ ficavam boquiabertos, e com eles um homem sujo de viagem. No meio da escada, o sujeito se virou e, na luz, Allesandra viu o brilho de metal no rosto: um nariz feito de prata reluzente. E o rosto...

Allesandra ficou sem fôlego. Ela conhecia o homem. Conhecia muito bem, e parecia impossível que ele estivesse aqui em Brezno.

 

Enéas co’Kinnear

NESSÂNTICO...

Enéas quase chorou quando viu as torres e domos dourados novamente, quando vislumbrou a faixa perolada da Avi a’Parete brilhando à noite, quando ouviu as trompas do Templo do Archigos que anunciavam, em tom de lamúria, as Chamadas para a prece. A grande cidade, a maior de todas as cidades: ela era uma visão que, por muitas vezes quando serviu nos Hellins, ele duvidou que tivesse permissão para ver de novo.

E Enéas não teria tido o prazer se não tivesse sido abençoado com a graça de Cénzi. Disso, ele tinha certeza — não, ele teria morrido nos Hellins. Deveria ter morrido lá. Enéas parou a carruagem no Morro Corcunda, do lado de fora da cidade ao longo da Avi a’Sutegate, desceu e gesticulou para o condutor prosseguir. Enquanto a carruagem descia o morro se sacolejando, na direção do Portão Sul e de pontos de referência conhecidos, Enéas ficou em um joelho só, com as mãos entrelaçadas na testa, e rezou para agradecer a Cénzi.

Ainda há uma tarefa que resta você fazer, Enéas ouviu a resposta de Cénzi enquanto olhava o cenário maravilhosamente familiar diante dele: o rio A’Sele, que reluzia ao abraçar a Ilha A’Kralji, com as quatro pontes arqueadas sobre as águas. Então sua dívida Comigo estará realmente paga, e eu lhe aceitarei plenamente nos Meus braços...

Enéas sorriu, levantou-se e desceu devagar em direção à cidade que amava.

Naquela noite, ele deu os papéis do comandante ca’Sibelli e seu próprio relatório verbal ao gabinete da Garde Civile, embora o e’offizier presente parecesse distraído e nervoso. — Há notícias dos Hellins? — perguntou Enéas. — Mais recentes do que as que eu contei?

O e’offizier fez que não com a cabeça. — O seu é o último relatório que recebemos, o’offizier. — Ele abaixou a voz num sussurro conspiratório. — Cá entre nós, eu sei que o comandante co’Ulcai está muito preocupado; ele esperava receber mensagens expressas dos Hellins nas últimas semanas, mas elas não vieram. Quanto aos eventos aqui na cidade, bem... — O homem falou da fuga do regente, da participação dos numetodos e da execução do comandante co’Falla da Garde Kralji como punição. Ele inclinou-se para frente a fim de sussurrar para Enéas. — Vá à Pontica a’Brezi Veste e o senhor verá o corpo do comandante pendurado para servir de comida para os corvos. Cá entre nós, isso deixou o comandante co’Ulcai preocupado, uma vez que ele e co’Falla eram protegidos do regente e indicados pelo próprio. O kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, pode vir a desconfiar daqueles que tenham um tiquinho de lealdade pelo velho regente. Só podemos torcer para que o kraljiki Audric acabe sendo tão forte e sábio quanto sua mamatarh, mas... — O e’offizier deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Só Cénzi sabe.

— Realmente — respondeu Enéas. — Só Cénzi sabe. Essa é a única verdade.

O offizier carimbou a papelada e informou que a agenda de co’Ulcai estava cheia no dia de hoje, mas que o comandante poderia chamar Enéas para dar o relatório em pessoa, e que ele estava liberado de outras tarefas na próxima semana. Enéas recebeu uma chave e um quarto, onde colocou a mochila com cuidado, longe do fogo na lareira e da janela, onde o calor do sol poderia alcançá-la.

Depois, ele seguiu pela Avi a’Parete para a praça onde ficava o Templo do Archigos, cheia de pombos sobre as lajotas ou voando com precisão militar em esquadrões no céu, que depois pousavam onde alguém talvez tivesse deixado comida cair. Enéas andou devagar e apreciou as vistas e os odores da cidade, sentiu o gosto do ar carregado na boca. A presença da cidade abraçou Enéas como uma matarh, ele foi completamente envolvido pelo miasma perfumado e quase soluçou pelo puro alívio da sensação. Vindas da Avi, as pessoas entravam aos borbotões na praça, e Enéas percebeu que era quase a Segunda Chamada, bem no momento em que as trompas começaram a soar nos grandes domos dourados. Ele juntou-se às pessoas que entravam no templo. Algumas reconheceram seu uniforme, com a faixa vermelha dos Hellins proeminente na transversal, e sorriram para Enéas, gesticulando para que ele entrasse na fila. — Obrigado por servir ao país, offizier — disseram para ele. — Nós reconhecemos tudo o que o senhor está fazendo por lá. — Enéas devolveu o sorriso ao passar pelas grandes portas de bronze, com os corpos emaranhados dos moitidis que jorravam do peito dilacerado de Cénzi, e entrou na penumbra fria e com cheiro de incenso do templo.

Ele sentou-se perto do coro, logo abaixo do Alto Púlpito, e jogou a cabeça para trás para ver o telhado distante, cheio de vigas. Através do vitral bem acima de Enéas, a luz radiante trespassava a penumbra. Ele ouviu o cântico dos acólitos nas alcovas quando as trompas se calaram e a procissão de ténis entrou no coro pela porta dos fundos. Enéas ficou com o resto da congregação e sorriu com prazer ao se dar conta de que seria o próprio archigos a dar a Admoestação e a Bênção hoje. Cénzi realmente o recompensou. Quando ele foi embora de Nessântico, há tanto tempo, tinha sido a archigos Ana que dera a Bênção ao batalhão prestes a partir, aqui neste mesmo espaço.

Agora seria o sucessor da archigos que o abençoaria novamente, quando Enéas tinha uma nova e mais importante missão a cumprir.

Ele escutou pacientemente à Admoestação do archigos. Ela foi permeada por um pedido de tolerância, o que soou estranho para Enéas, e o archigos Kenne citou versículos do Toustour que falavam do respeito por visões diferentes. Ele aconselhou os presentes no templo a não fazer julgamentos precipitados: — Às vezes, a verdade está escondida até mesmo daqueles que estão mais próximos. Deixem Cénzi julgar os outros, não nós. — Este, pelo menos, era um conselho que Enéas podia seguir, sendo guiado pela voz de Cénzi.

Após a cerimônia, ele foi até o parapeito com os demais suplicantes. O archigos Kenne percorreu a fila lentamente e parou para falar com cada um deles. Aos olhos de Enéas, o velho téni parecia cansado e abatido. Sua voz era fraca e estridente, o que indicou para Enéas que ela foi aprimorada com o Ilmodo pelo archigos (ou por um dos outros ténis) para que soasse forte e confiante ao dar a Admoestação. Enéas abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi quando o archigos, com um cheiro de incenso entranhado no robe, parou diante dele. — Ah, um offizier da Garde Civile — falou o archigos. — E com uma faixa das Terras Ocidentais, ainda por cima. Nós lhe devemos gratidão pelo seu serviço ao país, o’offizier. Por quanto tempo o senhor serviu lá?

— Por mais tempo do que eu gostaria de lembrar, archigos. Retornei hoje à Nessântico.

A mão enrugada e seca do archigos roçou na cabeça baixa de Enéas, e os dedos encostaram no cabelo oleoso. — Então deixe que a Bênção de Cénzi lhe dê boas-vindas à cidade. Há alguma bênção específica que eu possa lhe oferecer, o’offizier?

Enéas levantou a cabeça. Os olhos do archigos eram de um tom cinza esbranquiçado e começavam a dar sinais de catarata; a cabeça tremia de leve, sem parar, mas o sorriso parecia genuíno, e Enéas viu-se devolvendo o sorriso, dizendo — Eu sou um simples guerreiro. Um offizier serve às ordens que recebe. Eu tirei muitas vidas, archigos, mais do que sou capaz de contar, e com certeza tomarei mais até parar de servir.

— E o senhor quer o perdão de Cénzi por isso? — perguntou o archigos, cujo sorriso aumentou. — O senhor estava apenas cumprindo seu dever e...

— Não. — Enéas interrompeu e balançou a cabeça. — Eu não me arrependo do que fiz, archigos.

O sorriso sumiu, incerto. — Então o que...?

— Eu gostaria de me encontrar com o kraljiki. Ele tem que saber o que está acontecendo nos Hellins. O que está acontecendo de verdade.

— Eu tenho certeza de que o kraljiki se informa através do comandante... — O archigos começou a dizer, mas Cénzi falava com Enéas, e ele repetiu as palavras que ouviu na cabeça.

— A essa altura, o comandante ca’Sibelli está morto — falou Enéas em voz alta. — Pergunte ao kraljiki que notícias chegaram dos Hellins. Ele não terá ouvido nada, archigos. Não há notícias dos Hellins porque simplesmente não sobrou ninguém para enviá-las. Acabou. Pergunte ao kraljiki, e quando ele responder que os navios expressos não vieram, diga que eu posso dar o relatório que o kraljiki precisa ouvir. Eu sou a única pessoa capaz disso. Aqui... — Ele colocou um cartão de visitas com seu nome e atual endereço no parapeito. — Por favor, pergunte a ele quando o senhor o vir novamente. Esta é a dádiva e a bênção que peço ao senhor, archigos. Apenas isso. E Cénzi também faz esse pedido ao senhor. Escutou? Não ouviu Sua voz? Ouça, archigos. Ele chama o senhor através de mim.

— Meu filho... — O archigos começou a falar, mas foi interrompido por Enéas.

— Eu não sou um soldado com a mente perturbada pelo que viu, archigos. Fui salvo por Cénzi para trazer esta mensagem ao kraljiki. Eu ofereço minha mão ao senhor quanto a isso. — Enéas estendeu a braço para o archigos e ouviu a voz grave de Cénzi em sua cabeça ao tocar o pulso do velho. — Dê ouvidos a ele. Eu ordeno. — E o archigos arregalou os olhos como se tivesse escutado a voz também. Ele puxou a mão, e a voz morreu.

— Pergunte ao kraljiki por mim — falou Enéas. — É tudo o que eu peço. Pergunte a ele. — Enéas sorriu para o archigos e ficou de pé. Os outros suplicantes e os ténis presentes olharam fixamente para o offizier. O archigos Kenne ficou boquiaberto enquanto olhava para a própria mão, como se ela fosse um corpo estranho.

Enéas fez o sinal de Cénzi para todos e saiu do templo, as botas ecoaram alto no silêncio.

 

Niente

As forças do tecuhtli Zolin e o exército tehuantino estavam dispostas à cautelosa distância de um tiro de flecha das grossas muralhas de defesa de Munereo.

Três dias de batalha fizeram a Garde Civile recuar para dentro das muralhas. O tecuhtli Zolin foi ao mesmo tempo agressivo e impiedoso no ataque. O comandante ca’Sibelli mandou um grupo de negociação para o acampamento tehuantino depois do primeiro dia de batalha, quando Zolin fez a Garde Civile fugir dos campos altos e amplos ao sul da cidade. Niente estava lá no momento em que o grupo de negociação chegou com a bandeira branca; ele viu Zolin ordenar que seus guardas pessoais matassem os negociadores e mandassem as cabeças decepadas para o comandante ca’Sibelli como resposta.

Eles atacaram a força principal da Garde Civile na alvorada da manhã seguinte; naquela noite, os tehuantinos avistavam as muralhas de Munereo e o porto, onde estava ancorada a frota dos Domínios.

Agora era alvorada de novo, e o tecuhtli Zolin havia convocado Niente. Zolin reclinou-se em um amontoado de travesseiros coloridos; os guerreiros supremos Citlali e Mazatl também estavam com ele. Atrás do tecuhtli, havia um artista debruçado sobre a cabeça recém-raspada de Zolin; perto do homem havia uma mesinha coberta por agulhas em formato de unha de dragão e potes de tinta. O escalpo de Zolin fora pintado com a águia de asas abertas que era a insígnia do tecuhtli; agora o tatuador se preparava para marcar a pele permanentemente. Ele pegou uma agulha, mergulhou no pigmento vermelho e pressionou no escalpo de Zolin: o guerreiro fez uma careta sutil. — Os preparativos dos nahualli estão prontos? — perguntou o tecuhtli para Niente, enquanto o tatuador rapidamente mergulhava a agulha novamente e pressionava na cabeça de Zolin, sem parar. O sujeito limpava com um pano o sangue que gotejava e escorria.

— Sim, tecuhtli — respondeu Niente. — Nossos cajados mágicos foram renovados, por outros saudáveis o suficiente para realizar a tarefa. — Ele ergueu o próprio cajado e mostrou as águias entalhadas que davam voltas abaixo da cabeça lustrosa e grossa. — Nós perdemos dois punhados de nahualli na batalha; outro punhado e um estão feridos demais para serem úteis hoje. Todo o resto está pronto. — Niente acenou com a cabeça para os dois guerreiros supremos. — Eu dispus os nahualli conforme Citlali e Mazatl pediram.

— E a areia negra?

— Foi preparada — falou Niente. — Eu mesmo supervisionei.

— A tigela premonitória? O que ela lhe disse?

Niente passou a maior parte da noite olhando as águas, que lhe renderam apenas visões turvas e enevoadas, bem como exaustão e uma face e mãos que pareciam ter adquirido mais uma teia de finas rugas da noite para o dia. Ele ficou confuso pelos rápidos vislumbres de futuros possíveis, mas sabia o que Zolin queria escutar e sacou da mente uma daquelas visões efêmeras. — Eu vi o senhor dentro da cidade, tecuhtli, e o comandante dos Domínios a seus pés.

Zolin abriu um largo sorriso e disse — Então é chegado o momento. — Ele levantou-se e quase derrubou o tatuador, que deu um passo rápido para trás quando o tecuhtli pegou sua espada. Zolin deu tapinhas na cabeça que sangrava e sorriu. — Isso pode ser terminado depois. A batalha não pode esperar.

Quando eles saíram da tenda, os guardas entraram em posição de sentido. Do pequeno morro onde a tenda do tecuhtli ficava, eles podiam ver o exército espalhado lá embaixo e a névoa das fogueiras sendo levada pela brisa na manhã serena. As muralhas de Munereo surgiam altas mais ao longe na descida da encosta, e o sol cintilava na água da baía do outro lado, à direita. Zolin gesticulou, e um trio de trompas de guerra soou um chamado que foi repetido por outras trompas ao longo do acampamento, e Niente viu todo o exército se agitar como um formigueiro cutucado com um graveto. As fileiras de batalha começaram a se formar; os supremos guerreiros em seus cavalos encorajavam as tropas. Nas muralhas de Munereo, o sol nascente era refletido nos elmos de metal e nas pontas das flechas enquanto as tropas dos Domínios esperavam pelo ataque.

Seus próprios cavalos foram trazidos, e eles montaram. Citlali e Mazatl prestaram continência a Zolin, cutucaram os animais e dispararam a galope. — Você fica comigo, nahual — falou Zolin. — Agora! — Ele também cutucou o cavalo com o pé, e Niente seguiu o galope do tecuhtli morro abaixo, na direção onde as tropas esperavam na encosta, quase niveladas com o topo das muralhas de Munereo. Os soldados abriram espaço rapidamente para deixá-los passar e soltaram gritos de apoio e admiração.

Antes do encantamento profundo realizado no oriental, Niente teria sido capaz de cavalgar o dia inteiro com qualquer pessoa. Agora, a batida dos cascos do cavalo no chão atingiu o corpo como marteladas. O máximo que conseguiu fazer foi se firmar às costas do animal com joelhos trêmulos. Zolin cavalgou até o centro da linha de frente das forças tehuantinas, onde a bandeira da águia fora plantada no meio da estrada tortuosa que descia até o portão ocidental de Munereo. Lá, um punhado de dragões de cerco aguardava. Zolin, de cima do cavalo, deu um tapinha na enorme cabeça pintada e entalhada de um dos dragões. — Os deuses nos prometeram vitória hoje! — berrou ele para quem estava em volta. Zolin apontou para a cidade à espera, morro abaixo. Os rostos marcados dos guerreiros estavam erguidos para ele, e os homens vibraram. Niente tinha que admitir que Zolin tinha o carisma que faltava ao tecuhtli Necalli: a expressão no rosto dos soldados indicava que eles o seguiriam até mesmo nas profundezas de uma das montanhas fumegantes. — Hoje, faremos um banquete onde os orientais jantaram, levaremos suas riquezas e os sobreviventes de volta para nossas cidades, e esta terra será devolvida aos nossos primos, que já foram seus donos!

Eles vibraram novamente, mais alto que antes. Zolin soltou uma gargalhada alta e deu tapinhas no dragão de cerco outra vez. — Está na hora! — berrou. — Hoje, vocês encontrarão a vitória ou a paz com os deuses!

Zolin gesticulou, e as trompas de guerra soaram a ordem para avançar. As fileiras estremeceram e começaram a avançar, e o tecuhtli Zolin, ao contrário de Necalli, Niente teve que admitir novamente, cavalgou bem à frente, sem penas na cabeça, para que todos pudessem ver a águia no crânio. O avanço começou lento, os soldados prosseguiram em ritmo de caminhada. Conforme desciam a encosta, as muralhas de Munereo pareciam se elevar, ficavam cada vez mais altas enquanto os tehuantinos se aproximavam até estarem sob sua longa sombra. Os dragões de cerco, montados em carroças, rangeram e gemeram quando começaram a descer a estrada, reclamaram ao serem empurrados encosta abaixo na direção das muralhas e dos enormes portões com barras. Zolin parou, Niente fez o mesmo: havia uma movimentação nas muralhas, de repente, uma chuva de flechas diminuiu a luz do sol e fez um arco no ar que foi seguido momentaneamente pelo estalo de mil cordas de arcos. — Escudos! — berrou Zolin, e os guerreiros ao redor ergueram os escudos de madeira para formar um teto temporário, vários levantaram o bastante para proteger tanto Zolin quanto Niente em seus cavalos. A chuva de flechas caiu furiosa e cravou as tábuas de madeira pintadas e presas com tiras de couro, algumas flechas passaram entre os escudos e pegaram alguns guerreiros azarados, mas a maioria bateu na madeira inofensivamente. — Abaixar! — gritou Zolin, e a parede de escudos foi abaixada, os soldados golpearam as hastes com as espadas. O chão ficou repleto de flechas quebradas.

Agora o avanço acelerou. Niente ergueu o cajado mágico no alto, pois sabia o que viria a seguir e berrou — Nahualli! Preparam-se! — Ele ouviu o cântico ao longe e sentiu a agitação da energia do X’in Ka quando os ténis-guerreiros dos Domínios lançaram os próprios encantamentos. Bolas de fogo irromperam sobre as muralhas de Munereo e se lançaram estridentes na direção dos tehuantinos em um rastro de fumaça. Niente sacudiu o cajado mágico apontado para a bola de fogo mais próxima e falou a palavra de ativação: ela explodiu enquanto ainda estava no ar e diante dos tehuantinos, o fogo assobiou ao morrer em fagulhas reluzentes que caíram sobre eles. Outra bola de fogo caiu ilesa nas forças tehuantinas à direita de Niente, e, mesmo ao longe, o calor e o impacto da explosão eram assustadores. Onde as bolas de fogo caíam, guerreiros gritavam ao morrer. Elas abriam sulcos nas fileiras em avanço, mas os espaços eram rapidamente preenchidos por guerreiros das fileiras seguintes. Zolin fez a fileira correr devagar, os dragões de cerco pareciam gritar conforme as rodas de madeira davam solavancos no solo irregular.

— Empurrem! — rugiu Niente para os guerreiros em volta dos dragões de cerco. — Andem! — Agora ele finalmente foi tomado pela empolgação da batalha e não se sentia mais um velho prematuro. Seu sangue ferveu e o vento cantou em seus ouvidos. O punhado de dragões de cerco ganhou velocidade e começou a descer morro abaixo por conta própria. Os guerreiros ao redor não precisaram mais empurrá-los; os dragões tinham o próprio ímpeto agora, já passavam da linha de frente do inimigo. Flechas caíam sem parar e o teto de escudos era formado a cada ataque, como resposta, mas Niente mal notava. Ele observava os dragões de cerco, que agora voavam pela terra batida da estrada, com as mandíbulas pintadas e escancaradas ao correr na direção dos portões. Bolas de fogo avançavam em arcos, e novamente Niente e os outros nahualli dispararam feitiços para detê-las. Ele ouviu Zolin gritar ordens para os homens.

Os dragões de cerco voaram, os controladores ficaram bem para trás e gritavam conforme as carroças avançavam, rolando por conta própria. Três dragões acertaram a base das muralhas em ambos os lados dos portões, e dois bateram nos próprios portões.

As cabeças dos dragões estavam repletas de areia negra — mais do que Niente e os outros nahualli já haviam preparado antes. Bastões mágicos foram enfiados nos focinhos para responder com fogo ao impacto. Niente viu os bastões entrarem em chamas, e então...

Houve um estrondo, como se uma das montanhas de fogo da terra natal de Niente tivesse entrado em erupção, e a seguir veio um clarão de pura luz que fez o nahual erguer a mão aos olhos com atraso. Pedras do tamanho de cavalos saíram voando, algumas caíram sobre os tehuantinos mais próximos, mas houve gritos mais altos vindos do interior de Munereo. Havia um turbilhão de fumaça na cena que tornava impossível ver, mas quando ela se dissipou, lentamente, as forças tehuantinas soltaram um grito mudo.

Os portões foram rompidos. Onde eles estiveram, havia apenas um buraco enorme, e as grossas muralhas de apoio em volta desmoronaram. Enquanto os tehuantinos observavam, um trecho dos parapeitos entrou em colapso à direita, derrubando os defensores a 15 metros do chão. — Avante! — berrava Zolin. — Avante! — O exército tehuantino avançou em uníssono na direção da cidade, sem se importar com as flechas ou o fogo dos ténis-guerreiros. O próprio Niente viu-se avançando com eles, com o cajado de prontidão e a garganta rouca pelos gritos de exaltação.

Os tehuantinos entraram aos borbotões pelas muralhas quebradas de Munereo.


Nas ruas da cidade, a batalha foi acirrada, violenta e caótica. Assim que o exército tehuantino entrou, a população nativa rebelou-se em conjunto e usou como arma qualquer coisa que estivesse à mão para matar e saquear alegremente os responsáveis por sua escravidão. Os defensores orientais de Munereo viram-se atacados tanto pela frente quanto pela retaguarda.

Ao perceber a derrota, os remanescentes da força dos Domínios tentaram recuar para os navios na baía, mas Zolin despachara naus de guerra dos tehuantinos para a boca da baía, cada uma com um nahualli a bordo, e eles dispararam fogo mágico para queimar as velas e os mastros das embarcações dos Domínios; nenhuma escapou do porto da baía de Munereo.

Foi dito mais tarde que era possível ir andando dos destroços dos navios dos Domínios até a praia sobre os corpos dos mortos, e que a baía inteira ficou vermelha por uma semana por causa do sangue despejado das ruínas de Munereo.

Os tehuantinos encontraram o comandante ca’Sibelli encolhido de medo a bordo da nau capitânia da frota e levaram o oriental de volta às ruínas fumegantes da cidade. O tecuhtli Zolin mandou que o homem fosse arrastado para o interior do principal templo de Munereo e amarrado ao altar ali, o próprio Niente preparou uma garra de águia para o homem, e encheu o tubo curvo de osso com areia negra. Ele pronunciou o encantamento enquanto trabalhava: tudo que seria preciso era dar uma virada no chifre de marfim e apertar o gatilho no punho de madeira para riscar a pederneira e acender o pó negro. Niente levava a garra da águia enquanto acompanhava o tecuhtli Zolin ao templo, que estava lotado de guerreiros supremos e nahualli; ele viu Citlali e Mazatl ali, sentados na frente. Todos estavam cobertos de sangue, mas a maior parte não era deles. Zolin estava diante de ca’Sibelli, despido até a cintura e amarrado ao altar. O homem grisalho parecia aterrorizado ao ver o tecuhtli e gemeu. — Eu entreguei a cidade para o senhor... — disse o comandante na língua oriental. — O regente e o Conselho dos Ca’ pagarão meu resgate, o que o senhor pedir...

— Silêncio — falou Niente na mesma língua. — Agora é hora de rezar para o seu deus, se quiser.

— O que ele disse? — perguntou Zolin para Niente, que respondeu. O tecuhtli soltou uma gargalhada alta e falou — É assim que os orientais brincam de guerra? Eles compram e vendem seus prisioneiros? Será que os deuses dos orientais são tão fracos assim? Não me admira que eles fujam diante de nós. — Zolin fez um gesto de desdém para o homem. — Eles mal valem o sacrifício. Sakal e Axat ficarão mal alimentados com eles.

— O que ele está dizendo? — perguntou ca’Sibelli, que ergueu a cabeça e fez força contra as cordas que o prendiam. — Diga a ele que eu sei onde fica o tesouro. Há muito ouro.

Niente tirou a garra de águia da bolsa. Ca’Sibelli ficou calado ao olhar para ela. O comandante lambeu os lábios rachados e ensanguentados. — O que... o que é isto?

— É a sua morte — disse Niente. — Sakal e Axat exigem sua presença como líder.

— Não! — berrou o homem. A boca espumava saliva. — Vocês não podem fazer isto. Eu sou seu prisioneiro, seu refém. Peça por resgate...

Niente chegou perto do homem, que se contorcia. Ele sentiu o terror do oriental e falou com a maior delicadeza possível. — Isso vai acabar com a matança aqui na sua cidade. Sua morte paga pela morte de todos os seus soldados que capturamos, e eles serão poupados. Se você for bravo, comandante, se mostrar a Axat e Sakal que merece, será levado a Eles e viverá eternamente Neles. Eternamente. É uma dádiva o que oferecemos para você aqui. Uma dádiva.

O homem ficou boquiaberto, sem conseguir acreditar, mas o cântico de sacrifício tinha começado, baixo e sonoro, e ecoava na câmara. Os guerreiros e nahualli se agitaram com a prece. Ca’Sibelli virou a cabeça e olhou fixamente para eles, nervoso. O tecuhtli Zolin acenou com a cabeça para Niente, que tirou a garra de águia do cinto. Ca’Sibelli arregalou os olhos quando Niente girou o chifre de marfim até fazer um clique ao ficar no lugar.

Niente ficou ao lado do comandante e disse — Você deveria estar rezando. — A cabeça de ca’Sibelli balançava violentamente de um lado para o outro, como se pudesse negar o momento. O nahual pressionou a ponta do tubo curvo no estômago do homem enquanto ca’Sibelli se debatia freneticamente nas amarras. Niente suspirou; esta não seria uma boa morte. — Axat, Sakal, nós entregamos este inimigo aos Senhores — falou ele na própria língua. — Aceitem esta oferta como um sinal da Sua vitória.

Niente apertou o gatilho. Houve um clique, uma fagulha e depois uma explosão de carne e sangue.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI NÃO FICOU SURPRESO que tivessem retirado sua espada. Na verdade, ele perguntava-se se de alguma maneira sobreviveria a essa reunião.

A sala era pequena e excessivamente quente, decorada em típico estilo firenzciano, com tapeçarias escuras e pinturas simples com temas marciais, todas em homenagem a hïrzgai há muito tempo falecidos. O novo hïrzg Jan estava sentado em uma cadeira estofada ao lado da lareira, mas era óbvio que Allesandra, sentada à direita do filho, era o personagem principal aqui, em vez de o jovem hïrzg, que olhava fixamente para o nariz de Sergei, com a atenção presa ali. O archigos ca’Cellibrecca agigantava-se como um semideus ursino atrás do espaldar alto da cadeira do hïrzg, com a cara fechada. Os gardai que trouxeram Sergei foram dispensados (após outra revista minuciosa à roupa do regente, para garantir que estivesse desarmado; eles pegaram duas facas e só não notaram uma pequena lâmina fina, enfiada no salto e sola soltos da bota). Ao longe, Sergei ouvia os músicos tocarem uma gavota no salão lá fora, embora ele duvidasse que muitas pessoas na festa ainda dançassem. A maioria estaria conversando e fofocando, imaginado o que o regente de Nessântico fazia aqui em Brezno.

Ele tinha certeza de que os presentes na sala se perguntavam a mesma coisa.

— Hïrzg Jan — falou Sergei ao se curvar diante do jovem que tanto parecia com sua matarh. — Eu lhe agradeço por acolher um pobre refugiado e ofereço meus serviços como gratidão.

— Seus serviços, regente ca’Rudka? — Foi Allesandra quem falou. — O que aconteceu em Nessântico, regente, que agora você oferece serviços para aqueles com quem lutou como inimigo?

Sergei não via Allesandra há quase 16 anos; ela deixou o confinamento em Nessântico quando era pouco mais velha que o filho agora. Allesandra virou uma mulher adulta nesse meio tempo. Sergei ainda conseguia enxergar a jovem entusiasmada no rosto, mas havia uma nova austeridade ali, e rugas adquiridas por experiências que ele não tinha como saber. Não presuma que ela ainda é a mesma pessoa que você conheceu...

— Traições e maus bocados — respondeu Sergei, que resumiu os eventos dos últimos meses, incluindo a própria fuga da Bastida há dias. — Eu duvido que o kraljiki sobreviva por muito tempo — finalizou. — Suspeito que Sigourney ca’Ludovici será a kraljica dentro de um ano, talvez dois. — Ele olhou intensamente para Allesandra, que havia desviado o olhar contemplativo em meio à história. — Ela não tem mais direito ao Trono do Sol que algumas pessoas aqui — falou Sergei. Allesandra acenou levemente com a cabeça; Sergei achou que Jan olhou estranhamente para a matarh diante do gesto.

— Onde estão esses numetodos que o senhor diz que lhe ajudaram a escapar? — rosnou ca’Cellibrecca. — Também trouxe os hereges aqui?

Sergei deu uma olhadela lânguida para o archigos. — Eles recusaram-se a me seguir, dada a recepção que esperavam receber, archigos. A atitude de Brezno para com os numetodos foi... bem demonstrada. — Ele deu um sorriso gentil, e ca’Cellibrecca contorceu a boca em uma expressão de desdém.

— Assim como Nessântico, e nós vimos o que a cidade ganhou com isso — respondeu o archigos. — Ter sido resgatado da Bastida pelos numetodos, regente, indicaria que suas próprias opiniões são hereges também. O senhor se tornou um numetodo?

— Minha crença em Cénzi e nos ensinamentos do Toustour permanece tão firme como sempre, archigos. — Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. — Eu descobri que pode-se discordar até mesmo dos amigos e ainda assim permanecer amigo. Eu tive muitas discussões interessantes com o embaixador ca’Vliomani ao longo dos anos, muitas delas acaloradas, mas nenhum de nós dois conseguiu mudar significativamente as opiniões um do outro. Nem acho que isso seja necessariamente uma coisa ruim. O embaixador ca’Vliomani era meu amigo e agiu para me ajudar, embora nossas opiniões sobre religião sejam completamente discordantes. Minha alma não tem nada a temer. — Ele fez uma pausa e voltou a olhar para Allesandra. — Amigos e aliados podem ser encontrados onde menos se espera. Eu estaria errado, a’hïrzg ca’Vörl, em dizer que a senhora passou a considerar a archigos Ana uma amiga, embora ela tenha lhe tirado de seu vatarh?

Ca’Cellibrecca chiou alto ao ouvir isso, e o hïrzg Jan ergueu as sobrancelhas, mas Allesandra deu um leve sorriso. — Ah, regente, você sempre duelou tão bem com palavras quanto com sua espada.

Sergei fez uma nova mesura para ela.

— Sim — continuou Allesandra —, eu passei a considerar a archigos Ana, se não uma amiga, então como alguém em quem podia confiar diante do destino incerto que meu vatarh me relegou. Eu fiquei genuinamente horrorizada ao saber que ela foi assassinada, nem acreditei quando ouvi quem foi o responsável, por conhecer a archigos Ana e ca’Vliomani. Sofri e rezei por ela desde então. E, sim, entendo o que você está querendo dizer por trás da pergunta. Tenho certeza de que o hïrzg Jan ficará satisfeito em aceitar seus serviços e falar mais com você a respeito do que pode fazer pela Coalizão Firenzciana.

O garoto ajeitou-se subitamente na cadeira ao ouvir a menção do próprio nome e deu uma olhadela para a matarh. — Sim — falou Jan para Sergei. — Eu... nós ficaremos satisfeitos. — A voz era tão duvidosa quanto o olhar que ele lançou para Allesandra. Então as feições de Jan relaxaram, e ele soou mais adulto. — Firenzcia pode lhe oferecer asilo, regente ca’Rudka, e tenho certeza de que poderemos encontrar uma utilidade para seu conhecimento e suas habilidades.

— Obrigado, hïrzg Jan — respondeu Sergei, que ficou em um joelho só. — Falou bem. Eu ofereço livremente ao senhor e à Firenzcia a lealdade que Nessântico desprezou e darei qualquer conselho e ajuda que puder.

O jovem pareceu excessivamente contente com a declaração, como se, de certo modo, a tivesse arrancado a contragosto do próprio Sergei. Ele era jovem e inexperiente, Sergei percebeu, mas parecia suficientemente inteligente, e tinha uma excelente professora na matarh. O hïrzg aprenderia rápido. O archigos estava carrancudo, obviamente descontente com a decisão. Haveria pouca solidariedade com Sergei aqui — ele teria que ficar de olho em ca’Cellibrecca e encontrar qualquer vantagem que pudesse usar contra o homem.

Quanto a Allesandra... A mulher o encarava com cautela. Pensativa. Havia ambição ali e uma inteligência que faltou ao vatarh de Allesandra. Sergei podia facilmente imaginá-la no Trono do Sol. Podia vê-la tomar decisões que protegeriam os Domínios e cicatrizariam as feridas que Justi e agora seu filho abriram na cidade e no império aos quais Sergei servia.

Será que ela seria a kraljica que rivalizaria com Marguerite?

Ele descobriria. E agiria.

 

Karl ca’Vliomani

ELE RASPOU a barba. Escureceu o cabelo com essência de granito e deixou as feições ficarem obscuras com a sujeira da estrada. Doou as bashtas elegantes na mochila em troca das roupas rasgadas e cheias de pulgas de um mendigo. Karl cheirava mal, e só o fedor já era suficiente para as pessoas evitarem olhar para ele.

Karl perguntava-se onde Sergei estaria, se conseguira chegar a Firenzcia e como teria sido recebido lá.

A intenção original de Karl era voltar à Ilha de Paeti. Ele descansou o suficiente para usar o Scáth Cumhacht a fim de curar a pior parte do ferimento de Varina. Depois, Karl e ela acompanharam Sergei até as florestas ao norte da cidade, mas lá eles se separaram; Sergei tomou a direção leste para Azay a’Reaudi, enquanto o embaixador e Varina seguiram o limite da floresta para o oeste. Os dois cruzaram a Avi a’Nortegate depois de Tousia, dali rumaram para o sudeste na direção da Avi a’Nostrosei, na esperança de seguir a estrada até Sforzia e de lá conseguir passagem em um navio para Paeti ou para um dos países ao norte. Eles chegaram à Avi em Ville Paisli quatro dias depois, a apenas um dia de jornada a pé das muralhas de Nessântico.

Karl pretendia que eles passassem um dia, não mais do que isso. Ele e Varina pegaram um quarto na única estalagem do vilarejo e deram nomes falsos, como se fossem um casal a caminho de Varolli na esperança de encontrar emprego. A mulher mais velha que mostrou o quarto acenou ao pegar o dinheiro e enfiou as moedas em um bolso embaixo do avental que ela usava sobre uma tashta manchada, que parecia duas décadas fora de moda. O rosto e o corpo davam sinais de anos dando à luz e trabalhando duro. — Eu sou Alisa Morel — falou ela. Karl ouviu Varina respirar fundo ao ouvir o nome. — Meu marido e eu somos donos da estalagem e da taverna, e ele é o ferreiro do vilarejo. Se quiserem um banho... — o que foi dito com um olhar significativo e um nariz torcido que sugeriam que a ideia era boa — ... há um pequeno cômodo para isso lá embaixo, e eu posso mandar meus filhos encherem duas banheiras com água quente. O jantar sai uma virada da ampulheta depois do pôr do sol.

A mulher foi embora, Varina ergueu as sobrancelhas para Karl e disse — Morel... Nico disse que tinha fugido da tantzia e do onczio. Será que ela...?

— Morel é um nome bem comum em Nessântico. — Ele deu de ombros. — Mas obviamente há algumas perguntas que podemos fazer. Se ainda estivéssemos com o menino...

Karl já estava certo de que havia conexão ali, embora não soubesse dizer por quê. Ele percebeu pela expressão de Varina que ela pensava a mesma coisa. Se ele realmente acreditasse em algum deus, teria achado que os dois foram conduzidos a esse lugar pela providência divina.

Naquela noite, após aceitarem a oferta de banho feita pela mulher, para tirar o grosso da fedentina da estrada, ele e Varina jantaram no salão comunal da taverna, tanto para evitar suspeitas como para conseguir ouvir qualquer fofoca que tivesse chegado ao vilarejo a respeito da fuga do regente da Bastida. O salão estava — como ele suspeitava pela aparência estressada de Alisa, pelas crianças que trabalhavam como serventes, e pelo marido, Bayard, atrás do pequeno bar perto da porta da cozinha — mais cheio do que o usual, e a conversa era predominantemente sobre os eventos em Nessântico, cujas notícias pareciam ter chegado ao vilarejo há apenas alguns dias.

— Eu mesmo falei com o offizier do destacamento de busca — dizia Bayard Morel em voz alta para uma plateia de meia dúzia de aldeões. — O cavalo tinha perdido a ferradura, então ele me pediu para ferrar o bicho. O offizier disse que o kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, despachou cavaleiros para cada estrada da cidade a fim de pegar o traidor e os hereges numetodos que estão com ele. O destacamento vasculharia a estrada até Varolli, se necessário. O offizier me disse que os numetodos mataram três dezenas de homens da Garde Kralji na Bastida com sua magia terrível e blasfema, mataram sem pensar, embora alguns dos gardai ainda estivessem em suas camas. Os numetodos deixaram em ruínas a torre onde ca’Rudka estava, nada além de pedras enormes espalhadas por todo o chão. Eles cuspiram fogo ao fugir a cavalo, um fogo azul horrível, disse o offizier, que matou gente pela Avi quando os numetodos passaram, e depois, com um grande estouro... — nesse momento Bayard subitamente abriu bem as mãos e derrubou a caneca mais próxima de cerveja, o que fez a plateia recuar aterrorizada, de olhos arregalados — ... eles desapareceram em uma nuvem negra e fedorenta. Assim, do nada. Ao todo, tem mais de cem mortos na cidade. Eu estou dizendo, a morte é um destino bom demais para o regente. Eles deviam arrastá-lo vivo pelas ruas e deixar as pedras da Avi arrancarem a carne dos ossos e aquele nariz de prata dele enquanto berra.

As pessoas no salão murmuraram ao concordar com a opinião. Varina inclinou-se na direção de Karl e fez uma careta quando o movimento repuxou a ferida no braço, que cicatrizava. — Na semana que vem, ele dirá que foram mil mortos. Pelo menos, parece que os gardai já passaram por aqui e foram embora. Estamos atrás dele. Isso é bom, certo? — Ela vasculhou o rosto de Karl com olhos ansiosos, e ele concordou com um grunhido, embora não tivesse tanta certeza assim.

Enquanto observava o salão, Karl notou outra mulher que ajudava a servir os clientes: ela tinha uma aparência azeda e cansada e nunca sorria. A mulher parecia muitos anos mais jovem que Alisa, mas havia uma semelhança familiar entre as duas: nos olhos, no nariz fino, no conjunto dos lábios. Ela parecia ser velha demais para ser filha de Alisa, pois os filhos da estalajadeira ainda eram pequenos. Quando um deles, um menino mal-humorado à beira da puberdade, colocou um prato de pão fatiado na mesa, Karl apontou para ela. — Aquela mulher ali... quem é?

O garoto fungou e fez uma cara feia. — Aquela é a minha tantzia Serafina. Ela mora com a gente agora.

— Ela parece infeliz.

— Ela está assim há um tempo, desde que Nico fugiu.

Karl olhou para Varina. — Quem é Nico?

— O filho dela — falou o menino, que fechou mais a cara. — Um bastardo. Eu não gostava dele, de qualquer forma. Sempre falava besteira sobre os ocidentais e feitiços e tentava fingir que podia fazer magia como se fosse um téni. Todo mundo teve que perder três dias procurando por Nico depois que ele fugiu, e meu vatarh cavalgou até Certendi, mas ninguém jamais o encontrou. Acho que provavelmente está morto. — Ele parecia excessivamente satisfeito com essa conclusão, uma satisfação que torceu o canto da boca.

— Ah. — Karl concordou com a cabeça. — Você provavelmente está certo. O mundo lá fora não é fácil. Eu só estava me perguntando por que ela parecia tão triste. — Varina desviou o olhar nesse momento, encarava Serafina e mordia os nós dos dedos. O garoto arrastou os pés no assoalho de madeira rústica, fungou o nariz e passou o braço para limpá-lo, depois voltou para a cozinha.

— Pelos deuses, é ela. — Varina balançou a cabeça quase imperceptivelmente. — O que faremos, Karl? Aquela é a matarh de Nico.

Karl pegou um pedaço de pão do prato que o menino trouxe. Ele arrancou um naco do pão preto, enfiou na boca e mastigou, pensativo. — Se pudéssemos entregar Nico para ela — falou Karl depois de engolir —, será que ela nos entregaria Talis de volta?

 

Jan ca’Vörl

JAN GESTICULOU PARA OS GARDAI do lado de fora da porta e falou — Deixem-me entrar. — Os dois homens entreolharam-se uma vez, rapidamente, antes que um deles abrisse a porta. Assim que Jan entrou, um garda começou a segui-lo. O hïrzg meneou a cabeça para o homem e disse — Sozinho. — O garda hesitou antes de concordar e prestar continência. A porta foi fechada atrás de Jan.

— O senhor é corajoso por entrar em um aposento sozinho com seu inimigo. E aquele garda reportará ao comandante co’Göttering que o senhor veio me visitar. Co’Göttering sem dúvida informará sua matarh.

A luz de velas refletiu no nariz de prata quando Sergei se virou para encarar Jan. O homem foi instalado em um dos aposentos interiores do Palácio de Brezno, a comida foi posta diante dele em uma mesa coberta de damasco, a lareira estalava para afastar o frio da noite, e havia uma cama macia e confortável com travesseiros de plumas e cobertores. Ele usava uma nova bashta limpa e tinha evidentemente tomado banho, e seu cabelo grisalho estava empastado com óleo.

Sergei estava em uma prisão feita de seda.

— Eu não me importo que co’Göttering saiba, nem minha matarh. Você é tão perigoso assim, regente ca’Rudka? — perguntou Jan do outro lado da mesa.

Em resposta, Sergei meteu a mão no salto da bota: devagar, para que Jan pudesse vê-lo. Ele retirou uma lâmina chata, fina e com um cabo curto entre a sola e o couro, colocou a arma sobre a mesa e empurrou na direção de Jan. — Sempre, hïrzg Jan — respondeu o homem com um leve sorriso. — Seu vavatarh teria lhe dito isso. Sua matarh também. Se eu quisesse o senhor morto, o senhor já estaria.

Jan olhou fixamente para a lâmina. Ele viu os gardai revistarem Sergei à procura de armas, ouviu a declaração de que o regente estava desarmado. — Acho que precisarei falar com o comandante co’Göttering sobre o treinamento de seus homens. — O hïrzg esticou a mão para tocar o cabo com o dedo, mas não pegou a faca. — O que mais eles deixaram passar?

Sergei apenas sorriu. Jan colocou a mão na faca e empurrou-a novamente sobre a mesa para Sergei, que embainhou a lâmina na bota novamente. — Então, hïrzg Jan, a que devo o prazer?

O próprio Jan não tinha certeza. Ele ficou incomodado com a reunião inicial com Sergei, por ter ouvido a matarh e o archigos ca’Cellibrecca, por saber que eles dominaram a ocasião. Na verdade, Jan sentia-se sobrepujado pelo caráter repentino dos acontecimentos: o assassinato de Fynn, a fuga de Elissa, as notícias dos Domínios, a chegada do regente. Seu vatarh deixara Brezno correndo, furioso; sua matarh e o archigos eram íntimos, de maneira suspeita. Era como se ele estivesse sendo levado sem controle por uma enchente que não tinha visto, nem previsto. Jan sentia-se perdido e cheio de dúvidas, ficava remoendo essa situação por longas viradas da ampulheta, incapaz de se soltar na alegria agora forçada das festas, nas distrações das jovens que flertavam com ele ou nas especulações urgentes que irrompiam a sua volta.

Jan queria falar com alguém. E não queria que essa pessoa fosse sua matarh.

Jan não se sentia como um hïrzg. Sentia-se como um impostor. — Eu quero saber o que eu ganho ao lhe dar asilo, regente.

— Está mudando de ideia? — Sergei empurrou a cadeira da mesa. — Ou pensa que outra pessoa tomou esta decisão pelo senhor?

Jan devia ter ficado furioso com isso, mas, ao contrário, apenas ergueu um ombro e deixou que caísse novamente. — Ah, eu entendo — falou Sergei. — Assim como o pobre Audric, creio eu. Deixe-me lhe dizer uma coisa, hïrzg Jan: eu conheci vários kralji na minha vida, e apesar do que o senhor possa pensar sobre eles, a verdade é que nenhum jamais tomou uma decisão fácil. Tudo o que se faz como kralji, ou hïrzg, afeta milhares de pessoas, algumas vezes de uma maneira boa, em outras, de maneira adversa. Fique feliz por estar cercado por bons conselheiros e dê ouvidos a eles. Isso pode lhe poupar de tomar decisões realmente horrorosas. — Ele então deu um sorriso cruel. — E se uma delas der bons resultados, apesar de suas boas intenções, bem, o senhor sempre pode culpar o péssimo conselho.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

O sorriso de Sergei se ampliou. — Não respondi, não é mesmo? — Ele colocou as mãos sobre a mesa, com as palmas voltadas para cima. — Tudo o que tenho a lhe oferecer sou eu, hïrzg. Meu conhecimento, minha experiência, meu ponto de vista. Por acaso, eu acho que esse é um recurso potencialmente valioso para o senhor, mas tenho que admitir que sou meio suspeito para falar. — Ele franziu a pele em volta do nariz falso, mas o nariz em si não se mexeu, o que pareceu perturbador aos olhos de Jan. O gesto deixou o hïrzg incomodado, mas ele achou difícil desviar o olhar do rosto de Sergei.

— Eu tenho o conhecimento, a experiência e o ponto de vista da minha matarh; também tenho os do archigos. E tenho os dos comandantes e dos outros chevarittai da Coalizão.

— Tem sim — respondeu Sergei. — Sua matarh foi refém nos Domínios por grande parte da juventude. O archigos é um oponente jurado do ramo da fé concénziana de Nessântico. Os comandantes e chevarittai também são oponentes dos Domínios. Nenhum deles conhece os Domínios, e todos têm razões para odiá-los. O ódio pode cegar às vezes. Quanto a mim, bem, a segurança dos Domínios tem sido a minha vida.

— O que é outra razão para desconfiar de você.

— Então deixe que esse seja meu primeiro conselho para o senhor, hïrzg Jan. O senhor deve desconfiar de mim. Um hïrzg tem que duvidar de todos os conselhos que recebe, porque os conselhos de todo mundo são pintados com as cores de seus próprios interesses, os meus não menos do que os conselhos de qualquer pessoa. Mas... eu sou um velho espadachim, hïrzg, e eu diria que é mais fácil derrotar um inimigo cujos movimentos são conhecidos e previsíveis do que um inimigo completamente desconhecido. — Sergei recostou-se na cadeira. — Eu conheço os movimentos dos Domínios. Conheço todos. O senhor precisa de mim.

— Você parece muito confiante.

— Eu conheço meu inimigo, hïrzg. Se não conhecesse, por acaso eu teria lhe dado a minha faca? — Ele abaixou a mão e deu um tapinha na bota. — Todo mundo corre riscos, hïrzg. O truque é ter confiança no resultado.

— E se seu tivesse ficado com a faca? — perguntou Jan.

Sergei deu um risinho. — Então eu teria que fingir que isso era o que eu esperava. O senhor ainda gosta da sua decisão, hïrzg?

Jan sorriu com os lábios fechados e disse — Era o que eu esperava, regente. E isso vai ter que ser suficiente, não é?

 

Audric ca’Dakwi

A O’TÉNI AJOELHADA ao lado da cama de Audric abriu os olhos, com o rosto abatido e cansado, e deu uma olhadela para o archigos Kenne. — Eu terminei minhas... — Ela hesitou, e Audric viu o olhar da o’téni desviar-se do archigos para a conselheira Sigourney ca’Ludovici, que estava perto da lareira e olhava para o retrato da kraljica Marguerite, apoiado ao lado do fogo no cavalete portátil. Acima da lareira, Audric viu o retângulo desbotado onde o quadro esteve pendurado por tanto tempo. Nos recônditos escuros do quarto, Marlon e Seaton estavam à espreita, à espera para correr à frente caso fosse necessário.

— ... preces — concluiu a o’téni.

O archigos dissera para Audric que esta téni viera do templo de Chiari e que era alguém “cujas preces tinham uma afinidade especial com os doentes”. Isso talvez pudesse ser verdade; ele certamente se sentia um pouco melhor, os pulmões doíam menos ao se mexer. A tosse insistente cedeu, embora Audric ainda sentisse um pouco de aperto no peito; talvez ele realmente tivesse sido abençoado por Cénzi na noite de hoje. A melhora não era tão marcante quanto nas ocasiões em que a archigos Ana fizera “preces” pelo kraljiki, mas bastaria. Ele torcia para que durasse tanto quanto a ajuda da archigos Ana durava.

— Obrigado, o’téni — falou o archigos enquanto fazia o sinal de Cénzi para a mulher. — Agradecemos seus esforços. Você pode retornar ao templo agora. Diga ao u’téni co’Magnaoi que estarei lá em breve, por gentileza.

Ela concordou com a cabeça e ficou em pé cambaleando, como se tivesse ficado ajoelhada por muito tempo e as pernas tivessem adormecido. Enquanto Audric observava, a o’téni levou as mãos à testa, depois às pernas e saiu arrastando os pés com cuidado até a porta do quarto. Marlon correu para abri-la para a mulher. — Estranho — comentou Sigourney sem desviar o olhar do quadro —, eu nunca fiquei tão cansada depois de uma simples prece.

Audric viu Kenne contrair o rosto encarquilhado à luz das velas diante da acusação nada sutil. O archigos ignorou o comentário e perguntou — Está se sentindo melhor, kraljiki?

A mamatarh de Audric encarou o neto com preocupação sobre o ombro de ca’Ludovici. — Não há nada de errado comigo — falou o kraljiki para o archigos. Ele viu sua mamatarh concordar com um aceno no limite de seu campo de visão. Não deixe que eles saibam como você realmente se sente, não quando podem considerar uma fraqueza. — Eu sei — disse Audric para Marguerite, depois se voltou novamente para o archigos. — Estou me sentindo muito bem. — Kenne pareceu aliviado de uma maneira quase cômica. — Agora, você disse que tinha um favor para pedir, archigos.

— Eu tenho, kraljiki. Eu tive um encontro estranho na manhã de hoje, no templo. Havia um homem, um o’offizier da Garde Civile: Enéas co’Kinnear. Ele veio à Bênção de Cénzi e tinha uma faixa dos Hellins sobre o uniforme. Um jovem bonito, com uma expressão séria. Ele me disse que havia acabado de voltar da guerra.

— Sim, sim — falou Audric com impaciência e fez um gesto para calar o homem. O archigos seria capaz de divagar assim por uma virada da ampulheta e contar cada detalhe interminável do encontro. Ele ouviu ca’Ludovici rir ao fundo. — Onde você quer chegar, archigos?

Kenne não conseguiu esconder completamente sua irritação, mas forçou um sorriso e abaixou a cabeça para Audric. — O o’offizier co’Kinnear disse que tinha uma informação vital para o senhor, a respeito dos Hellins, kraljiki. Falou que o senhor não teria ouvido essas notícias porque os navios expressos não teriam chegado. Eu verifiquei, e é verdade. Também mandei minha equipe investigar este co’Kinnear, e eles descobriram que o comandante ca’Sibelli — ao dizer isso, o archigos acenou com a cabeça na direção de Sigourney — recomendou que ele fosse nomeado chevaritt, e os relatórios sobre o homem foram unânimes na alta estima que ele goza como uma pessoa de fé e um offizier. Na verdade, eu descobri que antigamente co’Kinnear era considerado como candidato a acólito e mostrava sinais do Dom de...

— Certo. — Audric interrompeu novamente e suspirou. — Tenho certeza de que esse co’Kinnear é um bom homem. — Ele fechou os olhos. Era tão cansativo ter que ouvir as besteiras de gente inferior e fingir que prestava atenção ou se importava. É a maldição de todos os kralji, Audric ouviu a mamatarh e deu um sorriso compreensivo para ela. — É verdade — falou o kraljiki para Marguerite. — É bem verdade. — Agora ele queria jantar e talvez jogar uma rodada de cartas com algumas jovens dos ca’ e co’, e, quem sabe, flertar, pois se sentia melhor.

Você tem que tomar cuidado com isso, Audric, ele ouviu a mamatarh reclamar. Casamento é uma arma que só pode ser usada uma ou duas vezes; você deve escolher o momento certo e a arma certa.

— Não me canse — disse Audric para a mamatarh.

Sigourney manifestou-se. — Se me dá licença, kraljiki? — Audric gesticulou para ela. A mulher era uma chata; não tinha humor algum, tudo o que a interessava eram assuntos de estado. Sigourney era seca como torrada velha. — Archigos, se esse co’Kinnear tem uma informação tão vital, por que não contou aos offiziers superiores e passou pela cadeia de comando?

— Isto eu não sei, conselheira — respondeu o archigos. — Mas havia alguma coisa... Eu pensei... Quando co’Kinnear me pediu para falar com o senhor, kraljiki Audric, eu pensei ter ouvido a Voz de Cénzi me dizer que eu deveria escutar. Eu podia ter jurado... — O velho balançou a cabeça, e Audric suspirou com impaciência novamente. — Que mal faria ouvir o sujeito por alguns instantes? Daqui a duas semanas será o segundo cénzidi do mês; se ele puder ser colocado na lista de suplicantes para a sua audiência de sempre, kraljiki...

Presa na pintura, Marguerite pareceu dar de ombros à luz de velas. Audric jogou as pernas para fora da cama. Seaton correu para ajudá-lo a ficar de pé, mas ele dispensou o criado com um gesto e falou — Certo. Combine com Marlon, archigos. Verei este modelo de perfeição da Garde Civile no segundo cénzidi, mas só se nenhum navio expresso chegar nesse meio tempo com notícias mais atuais dos Hellins. Essa é uma solução satisfatória?

O archigos fez uma mesura e o sinal de Cénzi para Audric, depois para a conselheira. Ca’Ludovici pareceu abafar um riso. — Agora — disse o kraljiki —, eu estou com fome, e há compromissos aos quais pretendo comparecer na noite de hoje, então, se não houver mais assuntos...

 

A Pedra Branca

O AR ESTAVA TOMADO por sussurros e imprecações, e eles não vinham apenas das vozes na mente da Pedra Branca. Nessântico estava abalada pelos acontecimentos da última semana, com a fuga do regente e a traição dos numetodos. Ela viu os esquadrões passarem com raiva e desconfiança pelas alamedas e becos do Velho Distrito; ela tinha sido questionada duas vezes, arrastada e interrogada como se pensassem que ela pudesse ser um dos numetodos. A Pedra Branca teve o bom senso de demonstrar a dose certa de medo; o suficiente para acalmá-los, mas não o bastante para alimentar as suspeitas. Outras pessoas não tiveram a mesma sorte; a Pedra Branca viu dezenas sendo levadas para um interrogatório detalhado na escuridão cruel da Bastida, e não sentiu inveja delas.

Teria sido tão mais fácil para eles se tivessem contratado a Pedra Branca. A vida do regente; a vida do embaixador; ela teria apagado os dois como uma vela extinta à luz do dia — vidas que não eram mais necessárias ou desejadas. Ela poderia ter colocado suas almas na pedra que levava entre os seios.

Mais loucura para você sofrer... As vozes riram diante da ideia. Você vai se perder completamente entre nós...

Em breve...

Em breve...

O refrão era uma batida forte de tambor em sua cabeça. A voz furiosa de Fynn era a mais alta de todas.

Em breve...

Em breve...

— Talvez não — disse ela para as vozes. — Eu sou mais forte do que vocês pensam. Afinal, eu matei todos vocês. — ela disse as palavras em voz alta, e as pessoas próximas nas ruas olharam para ela com pena, irritação ou medo. A Pedra Branca não se importava com esse tipo de reação.

O sol da manhã se levantou sobre a estátua do kraljiki Selida II no chafariz do centro do Velho Distrito; o globo ardia como se a ponta da espada erguida do kraljiki pegasse fogo. À direita da praça estava a enorme estátua de Henri VI, que também lançava uma sombra comprida. A náusea matinal que a atormentava todo dia sempre que acordava tinha ido embora, e o cheiro de croissants amanteigados da padaria a algumas portas de distância provocou sua fome novamente. Ela esfregou a barriga; podia sentir o inchaço no estômago debaixo da tashta; em breve, não conseguiria esconder a gravidez de maneira alguma.

Em breve...

— Calem-se! — berrou a Pedra Branca, e a voz fez os pombos saírem voando do chão da praça, para depois pousarem novamente a alguns passos de distância. Alguém riu ali perto, presente em um grupo de rapazes que apontavam para ela, e a Pedra Branca respondeu com um gesto obsceno que só fez aumentar a gargalhada.

Em breve...

Vou destruí-la como você me destruiu. Este era Fynn. Em breve...

Com a cara fechada, ela foi empurrando as pessoas até chegar à padaria e jogou uma se’folia de bronze no balcão. — Croissants — disse.

Ela já tinha comido dois croissants antes de chegar à casa que ocupava, a alguns quarteirões do centro. O pão doce e molhado aplacou a dor na barriga e baniu as vozes. Ela estava pegando a chave do quarto quando ouviu barulho: algo sendo arrastado, uma respiração. Ela parou, pousou o saco com os croissants que tinham sobrado e levou a mão ao cabo da faca enfiada na faixa da tashta. O som vinha de um pequeno espaço entre sua casa e o prédio ao lado. Ela espiou as sombras púrpuras e viu uma silhueta que tremia, encolhida contra a lateral da casa.

— Eu estou vendo você aí — falou ela. — Saia.

Ela esperava que a pessoa corresse, que fugisse para o outro lado, na direção da viela atrás da casa. Mas a silhueta apenas se mexeu e ficou em pé devagar, e sob a luz fraca do céu que clareava, ela notou que era uma criança. Ele saiu lentamente, arrastou os pés e manteve as costas voltadas para a parede da estrutura, os olhos arregalados espiaram a Pedra Branca e desviaram o olhar novamente. O rosto estava sujo de lama, o cabelo totalmente desgrenhado.

— O que foi? Está com medo de mim?

— Você é a mulher maluca — respondeu o menino, e as vozes vibraram de alegria, a de Fynn a mais alta de todas. Viu só? Eles já sabem. Em breve...

— O que você está fazendo aqui? — perguntou ela.

O menino deu de ombros. — Esperando.

— Esperando o quê?

Ele repetiu o gesto. — Nada.

— Só um idiota espera por nada, menino. O que você está escondendo? — A Pedra Branca ergueu o dedo e deteve o menino quando ele ia dar de ombros novamente. — Não minta para mim, menino. Eu sou a mulher maluca, lembra-se? Eu posso ouvir o que você está pensando. — Ela bateu com o dedo na testa. As vozes vibraram novamente. Mentirosa! Charlatã! — Então é melhor que me conte a verdade: de quem você está se escondendo?

O menino olhou para ela com desconfiança e inclinou a cabeça de lado, como se tivesse escutado as vozes. — Os soldados. Aqueles de azul e dourado.

— A Garde Kralji? — Ela cuspiu no chão entre os dois. — Eu os conheço. Ah, eu os conheço bem. Mas por que você está se escondendo deles? Os soldados não estão procurando por você, menino, a não ser que seja um numetodo. — Ele torceu a cara de um jeito esquisito ao ouvir isso, e ela olhou de soslaio para o menino enquanto esfregava o estômago. Havia uma agitação estranha ali, e se perguntou se ficaria enjoada novamente ou se sentia a criança pela primeira vez. — Você é um numetodo? É por isso?

— Não — disse ele, rapidamente, mas a Pedra Branca já tinha visto muitas mentiras e falsidades na vida e sabia que o menino dizia menos do que podia. Ela observou com mais atenção, viu a roupa suja e o cabelo emaranhado. Notou os ossos das bochechas.

— Quando foi a última vez que você comeu?

O menino deu de ombros novamente.

— Você mora aqui perto?

Ele fez uma careta. — Eu... eu morava. Logo ali. — Apontou para a viela. — Mas... eu não sei... — Ele parou, e a Pedra Branca viu o lábio do menino tremer. Ele fungou e passou a manga rapidamente pelos olhos, fechou bem a boca. A resistência, a recusa em deixar que ela visse como ele estava assustado e amedrontado tomaram a decisão pela Pedra Branca. Ela sorriu para o menino ao se agachar em sua frente. Deveria ter sido um movimento fácil, mas a cintura mais larga fez com que ela sentisse como se seu corpo fosse de outra pessoa.

— Você tem um nome? — perguntou ela.

— Nico. Meu nome é Nico.

— Então por que você não vem comigo, Nico? Eu tenho alguns croissants e um pouco de manteiga. Talvez eu consiga achar uma fatia ou duas de carne. Não parece bom? — A Pedra Branca ofereceu a mão para o menino, que aceitou com hesitação, e ficou de pé. As vozes riram dela, debocharam. A Pedra Branca ficou mole como lama...

Ela as ignorou e andou com Nico até sua casa.


CONTINUA

MOVIMENTOS

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Nico Morel

Jan ca’Vörl

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Karl ca’Vliomani

Varina ci’Pallo

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— A PEDRA BRANCA...

— Deve ter sido o kraljiki que contratou o assassino...

— Os numetodos o contrataram...

— Os tennshas o contrataram...

— Eu ouvi dizer que a própria a’hïrzg foi marcada para morrer, e o filho dela...

Allesandra ouviu os rumores. Era impossível escapar, eles sufocavam Firenzcia como a bruma que surgia todas as noites das florestas em volta do palácio da Encosta do Cervo, para onde a família fora levada depois do assassinato, sob ordens do starkkapitän Armen ca’Damont e do comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg. — O comandante e eu podemos protegê-los melhor lá, a’hïrzg — disse ca’Damont. Ela concordou com a cabeça, com a face impassível.

Fingimento... Allesandra tinha que manter a expressão adequada. Tinha que fazer com que os ca’ e co’ acreditassem que ela sofria. Tinha que fazê-los acreditar no que a a’hïrzg pediria para eles.

Em breve. Mesmo que houvesse pouca esperança agora.

A segurança era visível por toda parte do palácio, com gardai aparentemente em todos os cantos. Allesandra estava na sacada mais alta neste momento e olhava para os topos dos abetos lá embaixo, nas encostas íngremes das montanhas, e para os filamentos cinza esbranquiçados da névoa que passavam entre as árvores e que aumentavam conforme o sol se punha. Ela esfregou um seixo claro e chato entre os dedos.

Allesandra ouviu a porta da sacada ser aberta, seguida por um murmúrio de vozes masculinas. Ela virou-se e viu Semini se aproximar como um urso, vestido de verde e com uma expressão soturna. O archigos não disse nada, foi pé ante pé até a a’hïrzg e parou a uma curta distância — havia gardai em ambos os lados dos dois, a vários passos cautelosos de distância. Ele colocou os braços no parapeito da sacada e olhou para a bruma que se enroscava como braços musculosos em volta das árvores, como fantasmas que cuidavam de um jardim e estendiam as mãos para arrancar as ervas daninhas entre as plantas. De vez em quando, um fiapo de névoa chegava ao nível da sacada e, levado pelo ar frio e úmido, passava pelos tornozelos de Allesandra como se tentasse puxá-la para a escuridão cada vez maior.

— Então... — A palavra soou como um vento baixo entre as agulhas dos pinheiros. — Será que a Pedra Branca virá atrás de mim agora? — Ela viu o olhar do archigos se voltar para o seixo em seus dedos.

— Eu não contratei o assassino, Semini — disse Allesandra. O assassino... ela pensou a respeito disso neste momento. Elissa parecia ter desaparecido no mesmo dia em que o hïrzg morreu, o que deixou Jan arrasado com outro golpe emocional forte como um martelo, somado à morte de seu onczio Fynn. Dois dias depois, chegou uma mensagem nervosa de Jablunkov que dizia que Elissa, filha de Elissa e Josef (nome de solteiro ca’Evelii) ca’Karina, morrera há seis anos e que perguntava se a a’hïrzg possivelmente não cometera algum engano.

Allesandra ficou pensativa. Era possível que “Elissa” tivesse fugido apenas porque sabia que a a’hïrzg mandou uma carta para a família ca’Karina. Era possível que não houvesse conexão entre o desaparecimento dela e a morte de Fynn. Ainda assim, ser próxima de Jan significava que Elissa também tinha acesso a Fynn, e segundo a experiência de Allesandra, era perigoso acreditar em coincidência. Ao contrário, era mais seguro ver a faca afiada da conspiração sob o véu da coincidência.

A voz da Pedra Branca... será que podia ser a voz de uma mulher falando grosso?

Semini acenou com a cabeça ao ver o seixo na mão dela. — Isto é...?

Allesandra ergueu o seixo para que ele pudesse vê-lo e falou — Sim, foi isso que a Pedra Branca deixou para trás. O seixo... me faz lembrar de Fynn e me faz lembrar que encontrarei quem contratou a Pedra Branca e que punirei a pessoa.

Outro aceno. Semini olhou novamente para as árvores lá embaixo. — O Conselho dos Ca’ será unânime em nomeá-la como hïrzgin. Parabéns. — O tom de voz não tinha emoção. — Mas você podia ter conseguido isso há semanas, se não tivesse mandado Jan salvar Fynn.

— Fico contente que alguém se lembre disso. Mas... eu não tenho intenção de ser hïrzgin, Semini.

A afirmação fez o archigos encará-la novamente. Uma mão cofiou a barba grisalha enquanto os olhos negros vasculhavam os dela. — Você está falando sério.

— Estou.

— Eu pensei...

— Você pensa demais, Semini. — Ela abrandou a crítica com um sorriso. O garda atrás dela olhava para o outro lado, e o corpo da a’hïrzg bloqueava o homem em sua retaguarda. Allesandra esticou a mão para afagar o braço do archigos. — Eu pretendo renunciar ao título de a’hïrzg. Afinal, muitas pessoas pensarão exatamente como você neste momento. Sempre haveria rumores de que eu mandei matar Fynn para ficar com o trono em Brezno. Se eu renunciar, a fofoca morrerá com minha abdicação. Deixarei que o Conselho dos Ca’ nomeie um novo hïrzg para Firenzcia.

Semini arqueou uma sobrancelha grossa. — Você falou com Pauli?

A menção do nome criou uma barreira gelada entre os dois, ou talvez fosse a bruma. Ela recolheu a mão e falou com rispidez — Essa não é uma decisão que meu marido deva tomar. — Depois sorriu novamente. — Mas será interessante ver a cara dele quando eu estiver diante do Conselho e disser que abdico. E espero que seja uma completa surpresa para ele, Semini. E também espero que Pauli volte correndo com raiva para Magyaria Ocidental no dia seguinte, para reclamar com o gyula Karvella que foi arruinado pela esposa que Karvella e o hïrzg Jan escolheram a dedo para ele.

— Você realmente deixaria a decisão para o Conselho?

— Ah, eu já falei com alguns dos integrantes. Um número suficiente para os meus propósitos, de qualquer maneira. Eu sugeri que, após a devida deliberação, o Conselho possa vir a crer que as recentes ações de meu irmão mostraram quem ele atualmente favorecia como sucessor: alguém que demonstrou amplamente sua lealdade e habilidade. Ora, Jan seria um belo hïrzg quando crescer, você não acha? Um hïrzg que governaria bem e com força por muitos e muitos anos.

Semini riu, baixinho a priori, depois com mais entusiasmo. — Então esta é a sua intenção.

A pedra parecia gelo na mão de Allesandra. — Não inteiramente. Eu penso no futuro, Semini. Talvez quando os Domínios e a Coalizão estiverem unidos novamente e um líder competente esteja sentado no Trono do Sol, e haja um archigos de direito no Templo de Cénzi que também tenha unificado as metades separadas da fé concénziana, então Jan seria o braço direito perfeito do kralji.

Havia um enorme sorriso no rosto de Semini agora. — Allesandra, você me surpreende.

— Eu não deveria surpreendê-lo. Você e eu, Semini, estamos no mesmo lado nessa história. — Allesandra esfregou a pedra entre os dedos e enfiou em um bolso da tashta. Ela mandaria dourá-la e colocaria em uma corrente elegante. Usaria a pedra debaixo da tashta quando falasse com o Conselho, usaria ao lado do globo partido de Cénzi que a archigos Ana lhe dera. Seria um lembrete da culpa, uma lembrança de que agiu precipitadamente e fez pior com o irmão do que o vatarh e ele jamais fizeram com ela. Sinto muito, Fynn. Sinto que nunca nos conhecemos de verdade. Sinto muito...

Ela colocou a mão no parapeito, perto da mão do archigos, e olhou novamente para as brumas. Alguns instantes depois, Allesandra sentiu o calor da mão de Semini cobrir a sua.

Os dois ficaram assim até a escuridão chegar e as primeiras estrelas furarem o azul-escuro do céu.

 

Enéas co’Kinnear

A BOCA DO A’Sele era mais larga neste ponto. A cidade de Fossano ficava na margem sul, os morros ao norte eram minúsculos e tinham uma cerração azul do outro lado, elementos que sumiram quando eles fizeram a curva e entraram no golfo escancarado da baía A’Sele. Dezenas de navios mercantes cortavam as águas marrons cheias de sedimentos para seguir rio acima até Nessântico, ou rio abaixo na direção de Karnmor ou de outros países ao norte e ao sul, ou até mesmo para cruzar o próprio Strettosei. A água da baía A’Sele era colorida pelo solo que o rio A’Sele trazia dos afluentes e serpenteava em seu frescor de água doce, que com o tempo desaparecia nas profundezas azuis das águas salgadas do Nostrosei.

Enéas finalmente estava de volta à Nessântico propriamente dita. De volta aos Domínios. De volta ao continente. O cheiro de água salgada era mais fraco aqui, e ele estava bem longe dela. Daqui, Enéas viajaria pela estrada principal na direção leste para Vouziers, depois seguiria para Nessântico ao norte, finalmente.

Em casa. Ele estava quase em casa. Podia sentir o gostinho.

Em Fossano, tudo era familiar e deixava Enéas à vontade. A arquitetura lembrava os sólidos prédios enfeitados da capital, assim como os templos eram réplicas menores das grandes catedrais da margem sul de Nessântico ou da Ilha A’Kralji, a uns 150 quilômetros de subida pelas águas caudalosas do A’Sele. Não havia nada dos prédios quadrados e lisos dos ocidentais, nem das torres esquisitas e das casas caiadas nas encostas de Karnor.

Os Hellins e as batalhas que Enéas vivenciou pareciam distantes enquanto ele observava do interior de uma taverna nas Colinas do Sul, como se tivessem acontecido com outra pessoa, em outra vida. Ele flutuava separado das memórias; podia vê-las, mas não tocá-las, e não podia ser tocado por elas.

Mas... sempre na cabeça havia esta voz fraca, a voz que ele agora sabia que era de Cénzi. Sim... eu ouço, Senhor de Tudo. Eu ouço...

Enéas ouviu a voz Dele agora, ao tocar na bolsa com o nitro que comprou em Karnor pesando ao fundo. Ele estava parado em frente à janela aberta do quarto na Hospedaria do Velho Chevaritt e sentiu um leve cheiro de queimado por perto, e a Voz mandou que Enéas saísse. Saia. Encontre a fonte. Descubra o que é necessário agora.

Ele obedeceu, como devia. Colocou o uniforme, afivelou a espada na cintura e saiu da estalagem.

As ruas de Fossano subiam e desciam por ladeiras íngremes e espalhavam-se como se tivessem sido projetadas por um bêbado. Esta parte da cidade, do lado de fora das velhas muralhas e longe do centro populoso, tinha sido área de cultivo até recentemente. As casas e os prédios ainda eram bem separados por pequenos campos onde ovelhas, cabras e vacas pastavam ou onde fazendeiros plantavam colheitas. O cheiro intenso de queimado ficava mais forte à medida que Enéas seguia a estrada e afastava-se da cidade, até que as casas sumiram completamente e a estrada virou nada mais que uma trilha cheia de sulcos tomada pelo mato.

Enéas deu a volta por uma saliência de granito cheia de árvores. Era visível o rastro azulado de fumaça que saía de perto de uma cabana caindo aos pedaços, em um campo sem cultivo. O pátio estava cheio de braçadas de lenha, e três homens amontoavam os feixes em uma pilha circular — que já tinha o dobro da altura de um homem e vários passos de diâmetro. Ali perto, outro monte de madeira fora coberto por terra e grama, e saía fumaça dos buracos de ventilação em volta do perímetro do morrinho e da chaminé coberta no topo. Os homens ergueram o olhar quando Enéas se aproximou, e ele jogou a capa de viagem para trás a fim de revelar o brasão da Garde Civile e o cabo da espada: os carvoeiros eram conhecidos por serem um grupo bruto e indigno de confiança que morava em áreas de floresta fora da cidade. Um monte de lenha podia levar duas ou três semanas em combustão lenta até se transformar em puro carvão negro e exigia um cuidado constante, ou os carvoeiros encontrariam apenas cinzas quando tirassem a cobertura de terra. Eles viviam isolados, saíam apenas para vender os sacos de carvão que produziam e iam embora para novas áreas de floresta quando acabavam as árvores adequadas por perto. A reputação ruim dos carvoeiros era piorada pelo fato de que eles geralmente misturavam pedaços de terra e rochas ao carvão, de maneira que a qualidade do produto podia ser menor do que a desejada. Em Nessântico, havia e’ténis cuja tarefa era produzir carvão de qualidade, parecido com gemas, que era usado nas fornalhas da grande cidade e no aquecimento das casas dos ca’ e co’. Aqui, o serviço não era feito através do poder do Ilmodo, mas sim pelo trabalho árduo e sujo de pessoas comuns.

Enéas acenou para os carvoeiros enquanto eles encaravam o offizier com braços cruzados ou mãos na cintura. — Que cê quer, vajiki? — perguntou um deles. O homem tinha um cisto debaixo do olho esquerdo que parecia uma meia uva vermelha grudada na pele, cercado por um tufo de cabelo crespo que combinava com a barba rala; havia um cisto igual meio fora do centro da testa. Ele era muitos anos mais velho do que os outros dois sujeitos; Enéas perguntou-se se o homem não seria o vatarh ou onczio dos mais jovens. — Perdeu sua tropa, hein? — O trio riu da piada ruim do carvoeiro com uma risada tão sombria quanto a fuligem que sujava as mãos e os rostos.

— Eu preciso de carvão — falou Enéas. — Da melhor qualidade que vocês tiverem. Um saco sem impurezas. É isso que Cénzi deseja.

Eles riram novamente. O homem com os cistos esfregou o rosto. — Cénzi, hein? Cê tá dizendo que é Cénzi ou é um téni também, vajiki? Ou talvez seja meio ruim das ideias? — Novamente Enéas foi atacado pelas risadas, enquanto o vento fez a fumaça do fogo envolver os carvoeiros. — Nós estaremos na cidade no próximo mizzkdi, vajiki, com todo carvão que cê quiser. Espere até lá. Tamos ocupados.

— Eu preciso agora — insistiu Enéas. — Amanhã eu vou embora da cidade para Nessântico.

O homem deu uma olhada para os companheiros. — Viajando, hein? Cê não é de Fossano, então? — Enéas fez que não com a cabeça. O velho carvoeiro sorriu. — Ele é elegante, não é, rapazes? Ora, aposto que é da própria Nessântico. E aposto que tem uma bolsa cheia o suficiente para comprar todo o carvão que ele quer e mais um pouco.

O sujeito deu um passo na direção de Enéas, que puxou meia espada da bainha e falou — Eu não quero confusão, vajiki, apenas o seu carvão. Pagarei um bom preço por ele; o dobro do preço, com a benção de Cénzi e sem barganha.

— O dobro do preço e ainda por cima com uma benção. — Outro passo. — A gente tá com sorte, hein, rapazes? — Os dois carvoeiros mais jovens foram lentamente para cada lado de Enéas a fim de cercá-lo. Ele viu uma faca na mão de um homem; o outro segurava um pedaço de lenha como um porrete.

Enéas já tinha visto brigas suficientes na vida; elas eram endêmicas entre as tropas e bem comuns nas tavernas das cidades, à noite. Ele sabia que a bravura do grupo duraria apenas enquanto o líder permanecesse intocado. O homem com os cistos sorria agora ao se abaixar para também pegar um pedaço de lenha. Ele bateu com o pau na palma da mão cheia de calos. — Tô achando que cê vai dar essa bolsa pra gente agora, vajiki, se quiser evitar uma surra — falou o sujeito. — Afinal de contas, três contra um...

Isto foi o máximo até onde o homem chegou. Em um único movimento, Enéas sacou a espada da bainha e atacou, o aço retiniu e reluziu à luz do sol. O porrete improvisado do carvoeiro voou longe, com a mão ainda na madeira. O homem ficou boquiaberto e olhou para o toco que jorrava sangue no braço. Ele gritou enquanto Enéas dava meia-volta, e a espada agora ameaçava a garganta do homem com a faca. O carvoeiro soltou a arma e recuou às pressas; o outro encarou com olhos arregalados o homem com os cistos, que caiu de joelhos e continuou a gritar enquanto a mão remanescente apertava o toco no antebraço. — Amarrem o braço para estancar o sangramento se vocês quiserem que seu amigo viva — falou Enéas. Ele pegou a faca que o homem deixou cair. — Onde está o carvão?

Um deles gesticulou na direção da cabana tosca. Enéas viu uma carroça ali com blocos escuros empilhados em um canto. Havia uma pilha de sacos de aniagem perto de uma das rodas. Ele limpou a lâmina na grama do campo, embainhou a espada, foi a passos largos até a carroça e encheu um dos sacos. O homem, cuja mão Enéas decepou, passou a gemer e lamuriar e caiu de lado enquanto os dois companheiros ficaram ajoelhados ao lado dele. Enéas pendurou o saco no ombro, voltou até os carvoeiros e jogou uma única sola de ouro na grama entre eles — mais dinheiro do que os homens ganhariam por uma carroça cheia de carvão. Eles olharam fixamente para a moeda. O mais jovem tinha amarrado um torniquete em volta do toco do líder, mas o rosto do sujeito estava pálido e os cistos destacavam-se como seixos vermelhos no rosto. Uma ferida como aquela, Enéas sabia, podia ser fatal: pela perda de sangue ou pela gangrena que geralmente acometia braços e pernas feridos.

— Que Cénzi tenha piedade de você — falou Enéas para o carvoeiro. — E que Ele lhe perdoe por impedir Sua vontade.

Dito isso, ele ajeitou o peso do saco no ombro e começou a voltar para a cidade.

 

Nico Morel

— ELE É APENAS UM MENINO, KARL. Uma criança inocente. Não ouse machucá-lo.

Nico ouviu a voz de Varina através da porta trancada ao se aninhar na pilha de lençóis contra a parede de madeira. Ele escutou uma voz de homem responder — imaginou que fosse Karl —, mas o tom era baixo demais, e Nico não conseguiu distinguir todas as palavras com a parede de madeira entre eles, apenas a frase “... o que eu tiver que fazer”. Então a porta foi aberta, e Nico jogou o braço sobre os olhos para se proteger da luz que veio do outro cômodo. Uma sombra surgiu na passagem e se dirigiu até ele, os passos ecoaram alto nas tábuas do piso que rangia. O menino pestanejou ao erguer o olhar para o homem, vislumbrou o cabelo grisalho, a barba bem feita, e os olhos gentis que contrastavam com a boca franzida debaixo do bigode. Sua bashta era elegante e limpa, o tecido reluzia e era macio ao roçar na pele de Nico quando o homem se ajoelhou em frente a ele. Um dos ca’ e co’, decidiu o menino.

— Eu não sei de nada — repetiu Nico, cansado, antes que o homem pudesse falar. Ele já tinha repetido as palavras muitas vezes, em todas as variações que era capaz de tirar da mente cansada. A mulher, Varina, não parou de perguntar sobre Talis: se ele sabia onde Talis morava agora; qual era a conexão entre ele, sua matarh e Talis; se sabia de onde Talis era ou o que fazia; e onde Talis aprendeu a usar o Ilmodo (só que Varina às vezes usava outra palavra para “Ilmodo”, que parecia com “scati” ou alguma coisa assim). Nico não disse nada porque sabia que Talis não queria isso. Eles queriam machucá-lo; o menino tinha certeza disso.

O homem fez uma concha com a mão diante de Nico e falou uma palavra estranha, como aquelas que Talis às vezes entoava quando fazia magia. O menino sentiu o frio do Ilmodo perto dele, os pelos nos antebraços ficaram eriçados quando surgiu uma bola de luz amarela e fraca, como uma bola de chamas na palma virada para cima do homem. Na luz, Nico viu o rosto claramente e conteve um gritinho.

Ele conhecia aquele rosto. Este era o homem que atacou Talis na rua: o embaixador ca’Vliomani, o numetodo. Nico gemeu e encostou-se na parede, como se pudesse atravessar a madeira e sair para a liberdade. Ele queria ser tomado pela fúria gelada novamente, mas estava tão cansado e assustado que não conseguiu invocar o sentimento.

— Ah, então você realmente me reconhece — disse o homem. — Pensei que isso fosse acontecer. Eu certamente reconheço você, Nico. — O menino ouviu o sotaque, mas não era o mesmo que Talis tinha. A fala era cantada, rodopiava e vinha mais do fundo da garganta, em vez do nariz. O “r” era dobrado, ele dizia “rreconheço.” O embaixador desceu a mão para o chão, e a bola de luz rolou preguiçosamente até o assoalho. A sombra comprida do homem se deslocou pelas paredes.

— O senhor vai me machucar? — A voz de Nico soou miúda e quase perdida aos próprios ouvidos: uma casquinha, o sussurro de uma brisa.

O homem não respondeu. Não diretamente. — Da última vez que vi você, Nico, eu quase fui morto pelo homem que estava ao seu lado. Qual era o nome dele? Talis? — Nico balançou a cabeça, mas o embaixador sorriu diante da negativa e continuou — Eu realmente preciso falar com Talis, Nico, e aposto que você também gostaria de falar com ele.

— O senhor está furioso com Talis. Tentará machucá-lo.

— Eu não estou furioso com ele — respondeu o embaixador. — Eu sei que é difícil para você acreditar, mas é verdade. Existem coisas que preciso perguntar para Talis, coisas urgentes e importantes, e ele não me deu uma chance. Só isso. Nós tivemos um... desentendimento.

— O senhor promete?

Karl não respondeu, mas meteu a mão dentro de uma bolsa presa à lateral do corpo, desdobrou alguma coisa em papel de seda, e segurou na direção do menino. Nico recuou um instante, depois inclinou-se para frente novamente quando o embaixador continuou a oferecer a mão: na palma havia uma tâmara roliça, salpicada de mel e de amêndoas picadas. A boca de Nico ficou cheia de água; Varina tinha servido pão, queijo e água, mas ele ainda continuava com um pouco de fome após a longa caminhada de Ville Paisli, e a visão da tâmara deu uma incontrolável água na boca. — Vamos, Nico, pegue — falou o homem. — Eu trouxe só para você.

Hesitante, Nico esticou a mão para o fruto doce. Quando os dedos tocaram o papel barulhento e amassado, ele arrancou a tâmara da mão do embaixador tão rápido quanto foi capaz. Enfiou o doce inteiro na boca, e a leve doçura do mel desceu pela língua e misturou-se ao gosto azedo da tâmara. O homem continuou sorrindo ao encará-lo. O menino achou que o rosto dele não parecia tão furioso neste momento, e havia uma ternura nas rugas em volta dos olhos.

— Sabe, eu tenho netos que têm mais ou menos a sua idade — disse Karl. Um pouco mais novos, mas não muito. Você gostaria deles, creio eu, se os conhecesse. Meus netos vivem na Ilha de Paeti. Você sabe onde ela fica?

Nico concordou com a cabeça. A matarh mostrara para ele um mapa dos Domínios, apontara os países e fizera com que aprendesse.

— Paeti é bem longe daqui — disse o embaixador. — Mas eu gostaria de voltar lá um dia. E você, Nico? Nasceu aqui em Nessântico?

Outro aceno com a cabeça. Nico lambeu os beiços e sentiu o gosto do resto do mel grudento.

— E quanto à sua matarh? De onde ela é?

— Daqui. — A palavra saiu meio abafada. O gosto persistente da tâmara ficou amargo. Nico pigarreou.

— Ah... — O homem pareceu considerar a informação por um momento e afastou momentaneamente o olhar. Ele notou um movimento na porta e viu Varina apoiada ali. O embaixador e ela entreolharam-se, e algo no jeito daquele olhar fez o menino pensar que eles eram um casal, como Talis e sua matarh. — E seu vatarh? Talis é daqui?

O menino começou a balançar a cabeça, depois parou. Talis não iria querer que Nico falasse sobre ele. O que aconteceu tem que ser um segredo... Foi isso que Talis disse. Ele confiava em Nico.

— Ele é das Terras Ocidentais, depois dos Hellins, não é? — insistiu Karl. — Ele é um daqueles que se chamam de tehuantinos. Nico, você sabe que os Domínios estão em guerra com os ocidentais, não sabe? Você compreende isso?

Um aceno de cabeça. Nico não ousava abrir a boca. Ele jamais tinha ouvido aquela palavra: tehuantino. Entretanto, parecia como uma palavra que Talis diria, só pelo som. Ele foi capaz de ouvi-la no sotaque de Talis.

— Onde está sua matarh, Nico? Nós temos que levar você até ela, mas precisa nos dizer onde está sua matarh.

— Ela está com a minha tantzia — disse Nico. — Ela está bem longe daqui. Eu... abandonei minha matarh. — O menino não queria contar ao embaixador sobre os primos e a maneira como foi tratado por eles, mas pensar naquilo trouxe a lembrança da matarh, e de repente Nico queria estar com ela, acima de tudo. Sentiu lágrimas brotarem de seus olhos e os limpou quase com raiva, sem querer que o embaixador visse. Varina saiu da porta e agachou-se ao lado de Nico. Ela abraçou o menino, o que foi quase tão bom quanto um abraço da matarh.

— Talis está com sua matarh? — indagou Karl.

Esta parecia ser uma pergunta inofensiva o suficiente para responder. Nico não queria que o embaixador fosse até a matarh, e se soubesse que Talis não estava lá, bem, ele a deixaria em paz. — Não — falou Nico. Ele fungou o nariz.

— Karl, já chega — disse Varina.

O embaixador ignorou a mulher. — Onde está Talis agora, Nico?

— Eu não sei. — Quando ca’Vliomani ficou ali ajoelhado, sem dizer nada, Nico deu de ombros. — Eu não sei. Não sei mesmo.

Ca’Vliomani inclinou a cabeça de lado ao olhar para Nico. Ele pegou o queixo do menino e levantou sua cabeça até o menino ser forçado a encarar os olhos do embaixador, que não piscava. Nico viu Varina ficar nervosa. — Isso é a verdade?

O menino concordou com a cabeça enfaticamente. O homem olhou fixamente por mais alguns instantes, depois afastou a mão. Ele e Varina entreolharam-se novamente. Para o menino, parecia que os dois falavam sem dizer nada. Os dedos de ca’Vliomani cofiaram a barba, e ele fez uma careta de desdém, como se estivesse insatisfeito. A voz pareceu mais leve e menos sinistra agora. — O que você fazia no Velho Distrito, Nico? Por que não está com sua matarh?

Isso era complicado demais para responder. Nico balançou a cabeça para conter a confusão de respostas possíveis. Ele mesmo não tinha certeza por que estava aqui, neste momento. — Eu pensei que, talvez... — As lágrimas ameaçaram escorrer novamente, e o menino parou para tomar fôlego. — Eu pensei que Talis ainda pudesse estar onde a gente morava.

— Ele não está. — Foi Varina quem respondeu. A mão dela fez carinho nas costas de Nico. — Nós andamos vigiando.

— Bem, então ele viu vocês — falou Nico com confiança. — Talis é esperto. Ele teria visto vocês vigiando e não iria para casa.

— Ele não teria me visto — respondeu Varina, mas o menino não acreditou. Ele limpou os olhos novamente.

— Você tem família aqui? — perguntou ca’Vliomani. — Alguém para cuidar de você?

— Só Talis. Só ele.

Ca’Vliomani suspirou e ficou de pé soltando um gemido, os joelhos estalaram com o esforço. — Então teremos que fazer Talis saber que você está conosco, e talvez nós dois consigamos o que queremos, hein?

 

Jan ca’Vörl

— SINTO MUITO, ONCZIO FYNN — sussurrou Jan. — Isso não deveria ter acontecido, e eu espero... espero que não tenha sido culpa minha. — A voz ecoou na tumba e agitou tênues fantasmas de si mesmo. A luz hesitante da tocha fez as sombras pularem e se sacudirem pelos selos de pedra das catacumbas. Era a segunda vez que ele tinha visto um hïrzg ser sepultado nestas câmaras úmidas e sinistras, rápido demais. Vatarh e filho. Pelo menos o funeral de Fynn não foi acompanhado por presságios e mais mortes. Foi um ritual lento e sombrio, que deixou Jan com uma dor no coração.

Ele procurou por toda parte por Elissa. Mandou batedores partirem de Brezno para vasculhar estradas, estalagens e vilarejos à procura dela, em todas as direções. Roderigo dissera que não havia visto Elissa perto dos aposentos de Fynn. — Mas eu estava longe do hïrzg quando aquilo aconteceu. Ela pode ter conseguido entrar de mansinho, ou talvez tenha sido outra pessoa. Eu não sei, simplesmente não sei.

As palavras tinham gosto de bile e veneno. Jan tentou se convencer de que era tudo coincidência. A matarh mostrou a carta que recebera da família ca’Karina: Elissa era uma impostora que fingia ser uma ca’. Mas talvez fosse só isso: ela fugira porque sabia que a farsa seria revelada. Talvez fosse isso e nada mais. Ou... talvez Elissa tivesse ido até Fynn para defender sua causa, pois sabia que seria exposta como uma fraude, e interrompeu a Pedra Branca durante o serviço. Talvez ela tenha fugido aterrorizada antes de ser vista pelo famoso assassino, tão assustada que sequer ficou na cidade depois do que viu. Ou talvez — pior ainda — a Pedra Branca viu Elissa e levou-a para ser assassinada em outro lugar.

Nada disso convenceu Jan. Ele sabia o que eles pensavam, todos eles, e quando sua intuição passou a aceitar a suspeita, Jan também soube que eles estavam certos. Uma impostora na corte, uma impostora que era a amante de companhia predileta do hïrzg — a conclusão era óbvia. Elissa era a cúmplice da Pedra Branca, ou ela mesma era a Pedra Branca.

Qualquer uma das hipóteses fazia a cabeça de Jan girar. Ele lembrava o tempo que passou com Elissa, as conversas, os flertes, os beijos; a respiração acelerada quando exploravam um ao outro; o calor escorregadio e melado do sexo, as risadas depois... o corpo de Elissa, esbelto e atraente no banho de luz cálida das velas; a curva dos seios com gotas de suor da paixão; o triângulo escuro, macio e atraente na junção das penas...

Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos.

Não podia ser ela. Não podia. No entanto...

Jan colocou a mão no selo de pedra da tumba de Fynn e deixou os dedos percorrerem o baixo-relevo gravado ali. — Sinto muito — disse ele novamente para o cadáver.

Se, de alguma forma, foi Elissa, então a questão ainda sem resposta era quem contratou a Pedra Branca. Ela não mataria sem um contrato. Alguém pagou a Pedra Branca para fazer isso. Se Elissa tinha sido a faca ou simplesmente a ajudante, não importava. Não foi ela que tomou a decisão. Outra pessoa encomendou a morte.

Jan abaixou a cabeça até a testa tocar a pedra fria. — Eu descobrirei quem fez isso — falou ele: para Cénzi, para Fynn, para o ar assombrado. — Eu descobrirei e lhe darei justiça, onczio.

Jan respirou fundo no ar frio e úmido. Ficou de pé com os joelhos rangendo e pegou a tocha no suporte. Depois começou a longa subida em direção ao dia.

 

Sergei ca’Rudka

— HÁ VERDADE NA DOR — disse Sergei. Ele falou o aforismo várias vezes ao longo dos anos, dizia para que a vítima soubesse que deveria confessar o que Sergei queria que ela confessasse. Ele também sabia que era mentira. Não havia “verdade” na dor, não realmente. Pelo contrário, com a agonia que Sergei infligia, vinha a habilidade de fazer a vítima dizer qualquer coisa que ele desejasse que ela dissesse. Vinha a habilidade de tornar “verdade” qualquer coisa que quem estivesse no comando desejasse que fosse verdade. A vítima diria qualquer coisa, concordaria com tudo, confessaria qualquer coisa desde que houvesse a promessa de acabar com o tormento.

Sergei sorriu para o homem acorrentado diante dele. Ele estava em frente aos instrumentos sinistros de tortura em um rolo de couro, mas aí sua percepção mudou: era Sergei quem estava deitado e preso na mesa e olhava para o próprio rosto. As mãos estavam acorrentadas, e ele sentiu um nó nas estranhas por causa do medo gelado. Sergei sabia o que estava prestes a sentir; ele tinha infligido em muitas pessoas. Sabia o que estava prestes a sentir e gritou pela expectativa da agonia...

— Regente?

Sergei deu um pulo ao acordar na cela, as algemas nos pulsos chacoalharam a curta corrente entre elas. Ele rapidamente desceu a mão até a faca que ainda estava na bota e fez questão de pegar o cabo para que, se viessem levá-lo para o interrogatório, conseguisse tirar a própria vida primeiro.

Ele não passaria pelo que forçou outros a passar.

Mas era Aris co’Falla, o comandante da Bastida, que entrou na cela, e Sergei relaxou e tirou os dedos do cabo. Aris prestou continência ao garda que abriu a porta e falou — Pode sair. Tem almoço para o senhor no andar debaixo. Volte aqui em meia virada da ampulheta.

— Obrigado, comandante — disse o garda. Ele prestou continência e foi embora. Aris deixou a porta aberta. Da cama onde estava, Sergei deu uma olhadela para a porta escancarada. O comandante notou o olhar.

— Você não passaria por mim, Sergei. Você sabe disso. Eu sou duas décadas mais novo, afinal de contas, e é meu dever, sem falar minha vida, impedi-lo.

— Você deixou a porta aberta apenas para zombar de mim, então?

Um sorriso surgiu e desapareceu como geada na primavera. — Você prefere que eu feche e tranque?

Sergei soltou um riso amargo, e a risada virou uma tosse cheia de catarro. Aris tocou o ombro dele com preocupação quando Sergei dobrou o corpo. — Quer que eu chame um curandeiro, meu amigo?

— Para quê? Para que eu esteja o mais saudável possível quando o Conselho mandar me matar? — Sergei balançou a cabeça. — É apenas a umidade; meus pulmões não gostam dela. Então me diga, Aris, que notícias você traz?

O comandante puxou a única cadeira na cela até ele, e as pernas fizeram um barulho alto ao serem arrastadas sobre os ladrilhos. — Eu destaquei um garda em quem confio totalmente para o Conselho; para minha própria segurança nestes tempos confusos, para ser franco. Portanto, muito do que sei vem da parte dele.

— Eu não preciso do preâmbulo, Aris; ele não vai mudar sua resposta, e presumo que eu já saiba qual é. Apenas conte.

Aris suspirou. Ele virou a cadeira ao contrário e sentou-se, colocou os braços dobrados sobre o encosto e apoiou o queixo nos braços. — Sigourney ca’Ludovici está forçando o Conselho a dar o poder que o kraljiki pede. Haverá uma reunião final em poucos dias, quando então ocorrerá uma votação.

— Eles realmente darão a Audric o que ele quer?

Um aceno de cabeça franziu o queixo barbado nas mãos de Aris. — Sim, creio que sim.

Sergei fechou os olhos e recostou a cabeça na parede de pedra. Sentiu o frio da rocha através do cabelo que ficava ralo. — Eles destruirão Nessântico em nome do poder. Todos eles, e Sigourney especialmente, pensam que Audric não durará um ano, o que deixará o Trono do Sol vago para um dos conselheiros, considerando que eu esteja morto.

— Sergei. — Ele ouviu Aris falar na escuridão de seus pensamentos. — Eu lhe avisarei. Prometo. Eu darei tempo para que você... — O comandante parou.

— Obrigado, Aris.

— Eu faria mais, se pudesse, mas tenho que pensar na minha família. Se o Conselho dos Ca’ ou o novo kralji descobrir que ajudei você a fugir, bem...

— Eu sei. Eu não pediria isso a você.

— Sinto muito.

— Não sinta. — Sergei abriu os olhos novamente e inclinou-se para frente. Ele tocou o rosto de Aris com a mão, e as algemas chacoalharam com o movimento. — Eu tive uma boa vida, Aris, e servi a três kralji da melhor maneira que pude. Cénzi vai me perdoar pelo que tenho que fazer.

— Ainda há esperança, e não é preciso fazer nada por enquanto. O Conselho pode cair em si e notar que o kraljiki está doente da cabeça assim como do corpo. Os conselheiros ainda podem soltar você; eles soltarão se o esforço do archigos Kenne e dos demais leais a você surtir algum efeito. O archigos Kenne já defendeu sua causa diante do Conselho, e suas palavras ainda têm alguma influência, afinal de contas. Não perca as esperanças, Sergei. Ambos sabemos muito bem a história da Bastida. Ora, a Bastida prendeu Harcourt ca’Denai por três anos antes de ele se tornar kraljiki.

Sergei riu e conteve a tosse que queria vir junto. — Nós somos homens práticos, Aris. Realistas. Não nos enganamos com falsas esperanças.

— É bem verdade. — Aris levantou-se. — Eu mandarei o garda trazer sua comida. E um curandeiro para examinar você, quer você queira ou não. — Ele deu um tapinha no ombro de Sergei e seguiu para a porta, mas parou com a mão na maçaneta. — Se a situação chegar a este ponto, Sergei, mandarei lhe avisar antes que qualquer pessoa venha levar você para os calabouços lá embaixo. — O comandante fez uma pausa e olhou intensamente para Sergei. — Para que possa se preparar. Tem a minha palavra quanto a isso.

Sergei concordou com a cabeça. Aris prestou continência e fechou a porta com um baque metálico. Sergei ouviu o rangido da chave na tranca. Ele recostou a cabeça novamente e escutou o som das botas de co’Falla na escada de caracol da torre.

Sergei lembrou-se do som nítido dos gritos que ecoavam na pedra e das súplicas estridentes daqueles mandados para o interrogatório. Lembrou-se dos rostos contraídos de dor. Havia uma honestidade na agonia, uma pureza de expressão que não podia ser fingida. Às vezes, Sergei pensava que via Cénzi nos interrogados: o Cénzi que Ele tinha sido quando Seus próprios filhos, os moitidis, voltaram-se contra Ele e dilaceraram Seu corpo mortal. Agora, como Cénzi, Sergei poderia encarar a fúria da própria criação.

Mas ele não enfrentaria. Ele prometeu a si mesmo. De uma maneira ou de outra, ele não enfrentaria.

 

Allesandra ca’Vörl

— OS CONSELHEIROS ESTÃO AQUI e já se sentaram, a’hïrzg — disse o assistente. — Eles me pediram para levar a senhora à câmara.

Allesandra estava no corredor do lado de fora da câmara do conselho, com Pauli e Jan de cada lado. A mão tocou a tashta de gola baixa onde — sob o pano — havia uma pedra branca comum cercada por uma filigrana de ouro, ao lado do globo da archigos Ana. Mesmo Pauli — que falava alegremente que a Magyaria Ocidental e Firenzcia juntas solidificariam a Coalizão quando ele fosse o gyula e Allesandra, a hïrzgin — calou a boca quando o assistente acenou com a cabeça para que os criados do corredor abrissem as portas duplas. Os três espiaram a penumbra lá dentro, onde o Conselho dos Ca’ estava sentado a uma grande mesa.

Jan, da parte dele, estava sério e quieto, este era seu estado desde a morte de Fynn e a partida de Elissa. Allesandra passou o braço pelos ombros do filho antes de eles entrarem. Ela inclinou-se na direção de Jan e sussurrou — Quando eu sair daqui, você deve ir para seus aposentos e esperar, entendeu?

Jan olhou estranhamente para a matarh, mas finalmente concordou com um ligeiro aceno de cabeça, confuso.

A câmara do Conselho dos Ca’ em Brezno era escura, com painéis de carvalho tingido nas paredes e um tapete da cor de sangue seco: era uma sala interior do Palácio de Brezno, sem janelas, iluminada apenas pelas velas dos candelabros sobre uma mesa comprida e envernizada (nem mesmo luzes mágicas), e fria por ter apenas uma pequena lareira em uma ponta. A sala era sombria e melancólica. Não era um lugar convidativo para uma longa estadia e conversas sem pressa — e isto era intencional. O hïrzg Karin, vavatarh de Allesandra, separou esta sala de propósito para o Conselho. Ele considerava as sessões do Conselho dos Ca’ tediosas e chatas; a falta de conforto na sala pelo menos garantia que as reuniões fossem curtas.

— Por favor, entre, a’hïrzg — falou Sinclair ca’Egan da cabeceira da mesa. Ca’Egan era velho e careca, um chevaritt de voz trêmula que cavalgou com o vatarh de Allesandra antes mesmo de ele ter sido nomeado a’hïrzg pelo hïrzg Karin. Ca’Egan estava no Conselho dos Ca’ desde que Allesandra o conhecia; como ancião, ele também era o líder titular do conselho. Quatro mulheres (uma delas Francesca), cinco homens: eles ficaram de pé simultaneamente, fizeram uma mesura para a a’hïrzg, uma gentileza que nem mesmo o Conselho dos Ca’ podia ignorar, e sentaram-se novamente. Seis dos nove, em especial, acenaram com a cabeça e sorriram para ela. Allesandra, Pauli e Jan ficaram de pé, como mandava a etiqueta, na outra ponta desocupada da mesa. Ca’Egan remexeu os pergaminhos diante dele e pigarreou. — Obrigado por virem. Nós seremos breves, com certeza. É uma mera formalidade, na verdade. O hïrzg Fynn já havia nomeado Allesandra ca’Vörl como a’hïrzg, portanto precisamos apenas de sua assinatura, a’hïrzg, e a dos conselheiros presentes...

— Vajiki ca’Egan — falou Allesandra, e o velho ergueu a cabeça, curioso com a interrupção. Ao lado direito da esposa, Pauli grunhiu diante da óbvia quebra de protocolo. — Eu tenho uma declaração para fazer antes que o Conselho coloque seu selo neste documento e mande-o para o archigos reconhecer. Venho pensando nesta questão desde que meu querido irmão foi morto e rezei para Cénzi por Sua orientação, e tudo ficou claro para mim. — Ela fez uma pausa. Esta é sua última chance de mudar de ideia... Semini argumentou com ela por uma ou duas longas viradas da ampulheta, quando estavam juntos na cama, mas Allesandra estava convencida de que essa era a estratégia correta. Ela respirou fundo. Sentiu o olhar curioso e impaciente de Pauli. — Eu não quero ser a hïrzgin, e por isso renuncio à minha pretensão ao título.

As sobrancelhas de ca’Egan se levantaram no crânio nu e enrugado, a boca abriu sem emitir sons. Francesca, em choque, recuou no assento, atordoada pelo anúncio, mas a maioria não se abalou. Eles apenas concordaram com a cabeça, com os olhares mais em Jan do que em Allesandra.

— Pelos colhões de Cénzi — berrou Pauli ao lado dela. O palavrão quase pareceu evocar um relâmpago no ar escuro da câmara. — Mulher, você ficou maluca? Sabe o que está fazendo? Você acabou de...

— Cale a boca — falou Allesandra para Pauli, que a olhou com raiva, mas fechou a boca imediatamente. Ela ergueu as mãos para os conselheiros. — Eu disse tudo o que precisava dizer. Deixo com o Conselho dos Ca’ a decisão de quem é o mais indicado para ocupar o trono de Brezno. No entanto, não serei eu. Confio no julgamento dos senhores, conselheiros. Sei que farão o que é melhor para Brezno.

Dito isso, ela fez o sinal de Cénzi para o Conselho e deu meia-volta, abriu as portas tão abruptamente que os criados do corredor, postados do lado de fora, quase foram derrubados. Pauli e Jan, surpresos com a saída repentina, seguiram com atraso. Allesandra ouviu o marido avançar atrás dela. A mão de Pauli pegou seu braço e girou a esposa. O belo rosto estava vermelho e contorcido, ficou feio de raiva. Atrás dele, Allesandra viu Jan parado em frente à porta aberta da câmara enquanto observava o confronto, a própria expressão era de perplexidade e incerteza.

— O que é isso, em nome dos sete infernos? — Pauli estava furioso. — Nós tínhamos tudo que sempre quisemos nas mãos, e você simplesmente jogou fora? Ficou louca, Allesandra? — A mão apertou o bíceps da esposa e amassou a tashta embaixo dos dedos. Allesandra ficaria marcada ali amanhã, ela sabia. — Você vai voltar lá agora e dizer para os conselheiros que foi um erro. Uma brincadeira. Diga o que raios você quiser, mas você não vai fazer isso comigo.

— Com você? — respondeu Allesandra em um tom calmo e debochado. — Como essa questão tem algo a ver com você, Pauli? Eu era a a’hïrzg, não você. Você é apenas um arremedo inútil e deplorável de marido, um erro que pretendo retificar assim que puder, e vai tirar a mão de mim. Agora.

Pauli não tirou. Ele colocou a outra mão para trás, como se fosse bater em Allesandra, e cerrou o punho. — Não! — O grito veio de Jan, que correu na direção deles. — Não, vatarh.

Allesandra deu um sorriso cruel para Pauli, para a mão ainda erguida, e falou — Vá em frente. Bata, se quiser. Eu lhe digo agora que será a última vez na vida que você me tocará.

Pauli deixou o punho cair. Os dedos ficaram frouxos na manga da esposa, que se sacudiu para se soltar dele.

— Cansei de você, Pauli. Você me deu tudo o que eu precisava há muito tempo.

 

Enéas co’Kinnear

VOUZIERS: UMA CIDADE SEM SAÍDA PARA O MAR, a maior em Nessântico do Sul, a encruzilhada das estradas para Namarro e para as longínquas terras ensolaradas de Daritria. Vouziers ficava ao extremo norte das planícies de Nessântico do Sul, uma terra agrícola com extensos campos de grãos ao vento. O povo de Vouziers era como a terra: firme, despretensioso, sério e simples.

De Fossano, a carruagem levou vários dias para chegar a Vouziers. Em um vilarejo ao longo do caminho, Enéas comprou todo o enxofre que o alquimista local tinha na loja; na noite seguinte, ele fez o mesmo na próxima. Em cada uma das paradas noturnas, Enéas hospedava-se em um quarto privativo no vilarejo. Ele arrancava alguns pedaços do carvão e começava, lentamente, a moê-los até virar um pó preto — Enéas ouvia a satisfação de Cénzi quando o carvão alcançava a fineza necessária. Então, com o alerta da Voz de Cénzi para que fosse delicado e cuidadoso, ele misturava o carvão em pó, o enxofre e o nitro para formar a areia negra dos ocidentais, que Enéas embrulhou com cautela em pacotes de papel. Cénzi sussurrou as instruções enquanto ele trabalhava e manteve Enéas a salvo.

Na noite da véspera da chegada a Vouziers, Enéas levou alguns dos pacotes para o campo depois que todos dormiram. Lá, ele depositou o conteúdo em um pequeno buraco raso que cavou no solo — o resultado trouxe a lembrança incômoda das areias negras nos campos de batalha nos Hellins e da própria derrota. Conforme foi instruído pela Voz de Cénzi, Enéas pegou um pedaço de barbante molhado com cera e partículas da areia negra, enterrou uma ponta na areia negra e desenrolou o resto pelo chão ao se afastar do buraco. Mais tarde, ele ouviu Cénzi dizer em sua cabeça, Vou lhe mostrar como criar fogo do jeito que os ténis fazem. Você deveria ter sido um téni, Enéas. Este era Meu desejo para você, mas seu vatarh e matarh não Me ouviram, mas agora posso fazer de você tudo que deveria ter sido. Você tem Minha bênção...

Enéas pegou a lanterna coberta que trouxe e acendeu a ponta do barbante. O pavio assobiou e soltou fumaça e fagulhas que brilharam na escuridão. Enéas afastou-se rapidamente, chegou à estalagem e entrou no salão comunal quando surgiu a erupção: um estrondo mais alto do que um trovão estremeceu as paredes da estalagem e sacudiu o papel de seda, grosso e transparente das janelas, seguido por um clarão momentâneo de luz do dia. Todo mundo no salão ficou assustado e esticou o pescoço. — Pelos colhões de Cénzi! — rugiu o estalajadeiro. — A noite ficou clara como água!

O estalajadeiro irrompeu do lado de fora e foi seguido pelos outros. Eles primeiro olharam para o céu sem nuvens e não viram nada. Lá no campo, porém, ardia um pequeno fogo. Quando se aproximaram, Enéas viu que o pequeno buraco que cavou agora tinha profundidade suficiente para um homem ficar de pé até os joelhos e o diâmetro de quase um braço. Pedras e terra voaram para todos os lados. Era como se o próprio Cénzi tivesse socado a terra com raiva.

O estalajadeiro ergueu os olhos para o céu onde as estrelas brilhavam e aglomeravam-se na escuridão vazia. — Raio que cai sem tempestade — disse o homem enquanto balançava a cabeça. — É um presságio, eu digo para vocês. Os moitidis estão dizendo que perdemos o rumo.

Um presságio. Enéas viu-se rindo das palavras do estalajadeiro, que não tinha noção de como eram proféticas. Isto era realmente um presságio, um presságio do desejo de Cénzi para ele.

No dia seguinte, ele chegou a Vouziers. Durante a longa cavalgada, Enéas rezou com mais fervor do que jamais rezara, e Cénzi respondeu. Ele sabia o que devia fazer ali, o pensamento o incomodava, mas Enéas era um soldado, e soldados sempre cumpriam seus deveres, por mais onerosos que fossem.

Após chegar a Vouziers e arrumar hospedagem para a noite, Enéas vestiu o uniforme e pendurou uma bolsa pesada de couro no ombro. Ele havia enchido um saco comprido de couro com seixos, que foi colocado no bolso interno da bashta. Quando as trompas soaram a Terceira Chamada, Enéas entrou no templo para a missa da noite, que era ministrada pela própria a’téni de Vouziers. Depois da Admoestação e da Bênção, Enéas acompanhou a procissão de ténis do templo para a praça, iluminada por lâmpadas mágicas contra o céu que escurecia. A a’téni conversava com os ca’ e co’ da cidade, e, em vez de falar com ela, Enéas foi até um de seus assistentes, um o’téni pálido cuja boca parecia lutar com o sorriso que deu para ele.

— Boa noite, o’offizier — falou o téni ao fazer o sinal de Cénzi para Enéas. — Perdão, eu deveria conhecer o senhor?

Ele balançou a cabeça ao devolver o gesto. — Não, o’téni, só estou passando pela cidade a caminho de Nessântico. Acabei de retornar dos Hellins e da guerra de lá.

O o’téni arregalou um pouco os olhos e franziu os lábios. — Ah, então devo abençoar o senhor pelo serviço prestado aos Domínios. Como vai a guerra contra os ocidentais pagãos?

— Não vai bem, infelizmente — respondeu Enéas, que olhou com cuidado em volta da praça do templo. — Eu queria que fosse possível dizer o contrário. E aqui... — Ele balançou a cabeça com tristeza e observou o o’téni com atenção. — Eu passei quase 15 anos fora e encontrei muitas mudanças ao voltar. Os numetodos andam pelas ruas abertamente, debocham de Cénzi com seus feitiços e palavras... — Sim, Enéas julgou o homem corretamente: o o’téni apertou os olhos e franziu ainda mais os lábios. Ele inclinou-se para frente de maneira conspiratória e falou quase como um sussurro.

— É realmente uma vergonha que o senhor, que serviu tão fielmente ao seu kraljiki, retorne e veja essa situação. Minha a’téni discorda, mas eu culpo a archigos Ana por esse estado das coisas. E olhe no que isso resultou para ela: os malditos numetodos mataram a archigos assim mesmo. O archigos Kenne... — O o’téni fez um gesto de nojo. — Pfff... Ele é ainda pior, na verdade. Ora, em Nessântico as pessoas desrespeitam a Divolonté abertamente hoje em dia: os numetodos dizem que qualquer um pode usar o Ilmodo, que isso não exige o Dom de Cénzi, e mostram como realizar pequenos feitiços: acender uma lareira ou esfriar o vinho. As pessoas não usam os feitiços às claras, mas nos lares, quando acham que Cénzi não está vendo... — O o’téni balançou a cabeça novamente.

— Os numetodos são uma praga — disse Enéas. — O velho Orlandi ca’Cellibrecca sabia o que fazer com eles.

O o’téni olhou em volta com uma expressão de culpa ao ouvir a menção a Orlandi e falou — Este não é um nome que se deva falar abertamente, o’offizier. Não quando o genro diz ser o archigos de Brezno.

Enéas fez o sinal de Cénzi novamente. — Peço desculpas, o’téni. Este é outro assunto delicado para um soldado como eu, infelizmente. Os Domínios deveriam ser reunificados, assim como a fé concénziana. Sofro por vê-los partidos, assim como sofro ao ver os numetodos tão descarados.

— Eu entendo — disse o o’téni. — Ora, aqui em Vouziers, os numetodos têm o próprio prédio. — O homem apontou para uma das ruas que afluía da praça. — Bem por ali, à vista do próprio templo, com o sinal deles como enfeite na porta. É uma desgraça que Cénzi não permitirá por muito tempo.

— Quanto a isso, o senhor está certo, o’téni — respondeu Enéas. — É exatamente o que Cénzi me diz. — Ao ouvir isso, o o’téni olhou estranhamente para Enéas, mas o offizier não deu chance de ele falar mais nada, apenas fez uma mesura e cruzou a praça rapidamente na direção da rua que o homem indicou. Enéas assobiou uma música enquanto caminhava, uma canção de Darkmavis que sua matarh cantara para ele há muito tempo, quando o mundo ainda fazia sentido e a kraljica Marguerite ainda estava no Trono do Sol.

Ele achou o prédio dos numetodos facilmente — o entalhe no dintel da porta principal era uma concha, o sinal dos numetodos. Havia uma estalagem do outro lado da rua do prédio. Enéas entrou e pediu vinho e uma refeição, sentado a uma das mesas do lado de fora. Ele tomou goles do vinho e comeu devagar, observando o covil dos numetodos enquanto o céu ficava totalmente escuro entre os prédios.

Três vezes Enéas viu gente entrar; duas vezes viu alguém saindo, mas, como em nenhuma das ocasiões Cénzi falou com ele, o offizier continuou comendo e esperando. De vez em quando, Enéas tocava na bolsa de couro no chão ao seu lado para restaurar a confiança. Quase duas viradas da ampulheta depois, quando as ruas estavam quase vazias, antes de ficarem cheias novamente de pessoas que preferiam o anonimato da noite, ele viu um homem sair do prédio dos numetodos, e Cénzi agitou-se dentro de Enéas.

— Aquele ali... — Enéas sentiu o chamado com força, pendurou a bolsa no ombro, deixou um siqil de prata na mesa para pagar a refeição e o vinho, e correu atrás do sujeito. Seu alvo era um homem mais velho: careca no topo da cabeça, com cabelos grisalhos em volta. Ele usava túnica e calças, não uma bashta, e estava sem chapéu; seria difícil perdê-lo de vista mesmo em uma multidão.

Subitamente ficou claro por que Cénzi escolheu este numetodo; ele descia a rua na direção da praça do templo. As luzes mágicas começavam a enfraquecer, e havia poucas pessoas na praça, embora os domos do templo em si ainda estivessem bem acesos, com uma luminosidade dourada contrastando com o céu pontilhado de estrelas. Enéas deu uma olhada rápida à procura de um utilino e não viu nenhum. Ele seguiu em frente apressadamente, e o numetodo virou-se ao ouvir os passos. Enéas viu a palavra do feitiço nos lábios do homem, que ergueu as mãos como se fosse fazer um gesto, e abriu um largo sorriso ao acenar para o homem como se cumprimentasse um amigo que não via há tempos.

O numetodo franziu os olhos, como se não reconhecesse o rosto diante dele. O homem abaixou as mãos e deu um sorriso hesitante como resposta. — Eu conheço...?

Foi o máximo que ele chegou a dizer. Enéas puxou o saco de couro com seixos do bolso e, com um movimento ágil, golpeou com força ao lado da cabeça do homem. O numetodo desabou inconsciente, e Enéas segurou-o com o braço ao desmoronar. Ele apoiou um braço mole sobre o ombro e levantou o sujeito pelo cinto. Riu como se estivesse bêbado, cantou desafinado ao arrastar o numetodo na direção da porta lateral do templo. Quem visse ao longe pensaria que eram dois amigos embriagados que cambaleavam pela praça. Enéas olhou pela última vez para trás ao chegar às portas; ninguém parecia estar observando. Ele puxou a porta pesada com revestimento de bronze e decorada com imagens dos moitidis e sua luta com Cénzi: isso não mudara — as portas dos templos raramente eram trancadas, ficavam abertas para aqueles que desejassem entrar para rezar ou para os indigentes que precisassem de um lugar para dormir à noite, ao custo de ouvir uma Admoestação do téni que os encontrasse de manhã. Enéas entrou de mansinho na escuridão fria do templo, que estava vazio. O som da respiração e dos passos soaram alto enquanto ele arrastava o peso morto do numetodo pela nave principal, e finalmente Enéas largou o homem apoiado no atril em frente ao coro. Ele tirou a bolsa do ombro e colocou no colo do numetodo, depois desenrolou o longo barbante. Enéas foi soltando o pavio com cuidado enquanto recuava pela nave.

Eu vou lhe mostrar seu próprio pequeno Dom, Cénzi dissera para Enéas naquela mesma tarde. Vou lhe mostrar como fazer seu próprio fogo. O cântico e os gestos vieram à mente naquele instante, e embora Enéas soubesse que era contra a Divolonté usar o Ilmodo sem ser um téni, ele sabia que esta era a vontade de Cénzi e que não seria punido por isso. Enéas entoava o cântico agora, perto da entrada do templo, e sentiu o frio do Ilmodo fluir pelas veias e o Segundo Mundo se abrir em sua mente: entre as mãos em movimento, havia um calor e luz impossíveis. Ele deixou que o fogo caísse na ponta do barbante, e o pavio começou a espocar e fumegar.

— Ei! Quem está aí? O que é isso?

Enéas viu um téni surgir de uma arcada que dava para fora do coro; era o o’téni com quem ele falara mais cedo. Enéas abaixou-se rapidamente, embora estivesse estranhamente cansado por causa do feitiço, como se tivesse trabalhado duro o dia inteiro. Ele ouviu o chamado do téni e o eco de outros passos. — Quem é? O que está acontecendo? — disse alguém enquanto o fogo no pavio afastava-se rapidamente de Enéas na direção do atril. Quando a chama estava quase lá, ele ficou de pé e correu para a porta. Viu de relance o o’téni e alguns e’ténis, que se dirigiam rapidamente para o numetodo caído e imóvel, e alguém apontou para Enéas...

... mas já era tarde demais.

Um dragão rugiu e cuspiu fogo, e a concussão alcançou Enéas, jogando-o contra as portas de bronze. Meio inconsciente, ele caiu nas lajotas de pedra e foi fustigado por fragmentos de rocha e mármore. Quando passou a chuva rápida e dura, Enéas ergueu a cabeça. Havia algo vermelho no chão à sua frente: a perna do numetodo, ainda vestida com as calças largas, notou ele com um susto. Perto da entrada do templo, alguém gritava, um longo lamento entrecortado por xingamentos. Gemendo, Enéas tentou se sentar. Ele sangrava por vários cortes e arranhões, o corpo estava dolorido pela colisão com as portas de bronze, mas, tirando isso, havia sido poupado por Cénzi. As portas do templo estavam escancaradas diante dele, e um utilino entrou correndo e passou por Enéas enquanto apitava alto. Ténis entraram correndo das alcovas. O Alto Púlpito havia desmoronado, estava quebrado, caído na nave, e havia sangue e partes de corpos por todos os lados. O numetodo... ele viu a cabeça do homem e a parte de cima do torso, que foram arrancadas e jogadas na nave. O resto dele, onde esteve a bolsa de areia negra... Enéas não conseguiu ver o resto.

Por um momento, ele sentiu náusea: isso era muito parecido com a guerra, e as memórias do que viu nos Hellins ameaçaram sobrepujá-lo. Sentiu um gosto ácido na garganta e um embrulho no estômago, mas a Voz de Cénzi estava em sua cabeça também.

Isso é o que eles merecem, aqueles que Me desafiam. Você, Enéas, será meu moitidi da morte, a arma escolhida por Mim.

Mas eu não desejo isso, Enéas queria dizer, mas assim que pensou nas palavras, sentiu a fúria de Cénzi crescer, um calor no cérebro que fez a cabeça latejar, e ele caiu de joelhos com o crânio entre as mãos.

Tudo era uma confusão. Pessoas empurraram Enéas para passar. Ele ainda ouviu o téni ferido gritar. — ... numetodo... eu o reconheço... — Enéas ouviu a palavra em meio ao caos e sorriu. Quando mais pessoas entraram aos gritos vindas da praça, ele aproveitou a oportunidade para sair de mansinho pelo lado e entrar nas sombras.

Ele saiu para a noite e sentiu-se aquecido pela presença de Cénzi.

Você está apto para a tarefa que lhe dei. Agora, vá para Nessântico, e falarei com você lá...

 

Audric ca’Dakwi

O CONSELHO DOS CA’ DE NESSÂNTICO reunia-se no primeiro andar do Grande Palácio na Ilha A’Kralji, onde os conselheiros tinham vários aposentos e um pequeno contingente de criados do palácio dedicados inteiramente às suas necessidades. O Conselho dos Ca’, durante a maior parte do reinado da kraljica Marguerite, bem como de seu filho, o kraljiki Justi, foi basicamente uma organização social, que vinha ao palácio para assinar documentos entregues a eles pelo kralji e pelo corpo de funcionários do palácio — uma tarefa que eles executavam com pouca reflexão ou discussão, de resto, passavam o tempo relaxando em seus suntuosos gabinetes privativos ou socializando nas salas de jantar e estar bem equipadas da seção do Conselho no Palácio do Kralji. Por muitas décadas, ser um “conselheiro” era, em grande parte, um posto honorário, com deveres cerimoniais e longe de serem muito exigentes, e a retribuição por servir no Conselho era generosa.

Mas com o falecimento do kraljiki Justi, e com Audric sendo menor de idade ao ascender ao Trono do Sol, o Conselho teve que assumir um papel mais ativo no governo. Foi o Conselho dos Ca’ que nomeou Sergei ca’Rudka como regente; era o Conselho que agora criava e aprovava novas legislações (até bem recentemente, com a contribuição do regente também); era o Conselho que controlava o bolso de Nessântico; era o Conselho que o regente tinha a obrigação de consultar em qualquer questão política dentro dos Domínios ou qualquer decisão diplomática que envolvesse a Coalizão, os Hellins ou quaisquer outros países dentro dos Domínios.

O Conselho foi obrigado a acordar do longo e tranquilo sono, e em grande parte acordou. A última eleição para o Conselho, há quatro anos, foi agressiva e implacável; quatro dos sete integrantes foram depostos e substituí-dos por ca’ bem mais ambiciosos.

Audric conhecia a história do Conselho; Sergei reclamava sem parar a respeito dos conselheiros, e o mestre ci’Blaylock falava a mesma coisa nas aulas. Agora sua mamatarh deu os mesmos avisos.

— Você precisa tomar cuidado, Audric. Lembre-se de que cada um dos conselheiros quer estar no seu lugar. Eles querem o anel e o cajado; querem se sentar no Trono do Sol. Os conselheiros têm inveja de você, e é preciso convencê-los de que, ao darem o que você quer, eles estarão mais próximos de seus próprios objetivos.

A mamatarh Marguerite olhava fixamente para ele enquanto Audric percorria o corredor até o salão do Trono do Sol, onde era aguardado pelo Conselho. As rodas do cavalete onde o quadro ficava apoiado estavam silenciosas hoje; ele insistiu que fossem lubrificadas por Marlon com gordura de pato antes da reunião. Os criados empurraram o cavalete pelo corredor interno do palácio na frente de Audric, com cuidado, para acompanhar seu ritmo lento e vacilante, enquanto Marlon e Seaton apoiavam o kraljiki de ambos os lados. Ele teve um péssimo dia; era um dia nublado e frio, e Audric permitiu-se tossir mesmo enquanto ouvia a voz da mamatarh confortá-lo.

— Você pode se permitir tossir, desta vez — disse ela. — Dessa vez, sua fraqueza será sua força. Mas, depois de hoje, você tem que ser mais forte. Você será mais forte.

— Eu serei, mamatarh. Serei forte depois de hoje, e a doença irá embora. — Pelo rabo do olho, Audric notou que Marlon olhava estranhamente para ele, embora o homem não dissesse nada.

Seaton gesticulou para os criados do corredor, que abriram a porta do salão e fizeram uma mesura quando Audric e sua mamatarh entraram. Lá dentro, os integrantes do Conselho levantaram-se das cadeiras diante do Trono do Sol e também fizeram uma mesura, embora a saudação tenha sido apenas uma leve inclinação de cabeças. Audric notou os olhos de Sigourney ca’Ludovici quando ela abaixou a cabeça, embora a conselheira parecesse olhar mais para o quadro de Marguerite do que para o kraljiki. Ele dirigiu-se ao Trono do Sol, foi ajudado por Marlon a subir os três degraus da plataforma, e deixou-se cair no assento estofado. Audric tossiu então — não conseguiu impedir o ataque —, no momento em que a luz brilhou nas profundezas do cristal e banhou o kraljiki de amarelo: como o Trono do Sol fazia há longas gerações sempre que um kralji se sentava ali. Audric limpou a boca na manga da bashta de seda enquanto o Conselho permanecia de pé diante dele, e Seaton empurrou o cavalete para o lado direito do trono, de maneira que Marguerite encarasse com ódio os sete ca’.

— Olhe para eles — falou a kraljica para Audric. — Veja como olham com fome o Trono do Sol. Todos imaginam como conseguirão se sentar onde você está. Comece por ser firme com eles, Audric. Mostre que você está no comando desta reunião, não os conselheiros. Então... então faça o que tem que fazer.

— Eu farei — disse Audric para Marguerite. Os ca’ já começavam a se sentar, e ele ergueu a voz para se dirigir aos conselheiros. — Não há necessidade de se sentar. Nosso assunto aqui deve tomar apenas alguns grãos de areia da ampulheta.

Interrompidos no meio do movimento, os ca’ endireitaram-se em meio a um farfalhar de bashtas e tashtas e lançaram olhares na direção de Audric que oscilavam do questionamento à quase raiva. — Perdoe-me, kraljiki — falou Sigourney ca’Ludovici —, mas as coisas podem não ser tão simples quanto o senhor imagina.

— Mas elas são simples, vajica ca’Ludovici — disse Audric. — O traidor ca’Rudka está na Bastida; o Conselho teve o tempo que a senhora pediu para que os conselheiros consultassem entre si e deliberassem. Os senhores nomearão outro regente ou permitirão que eu reine como kraljiki como deveria? Essas são as duas únicas opções diante dos senhores, que já deveriam ter tomado uma decisão. — A longa fala exigiu esforço, como ele sabia que exigiria. Ele tossiu e dobrou o corpo enquanto a mamatarh ria baixinho em sua cabeça, cobriu a boca com um lenço que rapidamente ficou sujo com manchas vermelhas. Audric amassou o pano de linho na mão, mas não tanto a ponto de eles não conseguirem ver o sangue.

Audric abriu os olhos e viu ca’Ludovici olhando fixamente para sua mão. A conselheira ergueu o olhar abruptamente e sorriu como um gato espiando um rato encurralado, depois olhou uma vez para os demais integrantes do conselho, atrás dela. — Talvez o senhor esteja certo, kraljiki. Afinal de contas, o dia está úmido e nós não deveríamos mantê-lo longe do conforto de seus aposentos.

A vajica ca’Ludovici tomou fôlego, e Audric ouviu Marguerite sussurrar para ele naquele espaço de tempo. — Agora. Diga para a conselheira o que ela quer escutar.

— Eu estou mais forte agora do que estive há anos — falou Audric, mas ele forçou uma tosse e uma pausa, como se tomasse fôlego entre as palavras. Não foi preciso muito encenação. — Mas também estou ciente da minha juventude e inexperiência, e contaria com a orientação do Conselho dos Ca’, e talvez especialmente da senhora, conselheira ca’Ludovici, como minha mentora.

Ela fez uma mesura ao ouvir isso, e era impossível não notar a satisfação no rosto de ca’Ludovici. — O senhor realmente é sábio para a idade que tem, kraljiki, o que significa que é um prazer lhe informar que todos nós deliberamos e chegamos a um acordo. Kraljiki Audric, apesar de sua idade, o Conselho dos Ca’ não nomeará um novo regente.

Ele ouviu a mamatarh rir ao ouvir a notícia, exultante, e o próprio Audric quase riu também, só não o fez porque o riso traria a tosse novamente. O kraljiki contentou-se com um gesto silencioso de agradecimento para os conselheiros. Tão fáceis de manipular. Tão previsíveis. Ele não sabia de quem era o pensamento: seu ou de Marguerite.

— Eu gostaria de agradecer ao Conselho por seus esforços. E vemos uma nova era para Nessântico, uma era em que recuperaremos tudo que perdemos e superaremos até mesmo os sonhos da kraljica Marguerite. — Audric teve que fazer uma pausa para respirar e limpar os pulmões de novo. Marlon esticou a mão para o trono a fim de entregar um novo lenço e levar embora o molhado e manchado. — Quanto ao antigo regente ca’Rudka, acho que está na hora de ele confessar seus pecados, fazer as pazes com Cénzi e pagar pelos erros de sua vida.

A vajica ca’Ludovici fez uma mesura mais uma vez, mas não antes de Audric ver mais uma vez a satisfação na expressão do rosto. Sim, ela encara ca’Rudka como um rival perigoso enquanto permanecer vivo... — Será feito como o kraljiki deseja — disse Sigourney. — Eu cuidarei disso pessoalmente.

 

Karl ca’Vliomani

A NOTÍCIA ESPALHOU-SE RAPIDAMENTE pela cidade, e como embaixador de Paeti, Karl esteve entre os primeiros a ouvi-la: o Conselho dos Ca’ declarou que o kraljiki atingiu a maioridade e que a regência de ca’Rudka chegou ao fim. Karl ouviu a notícia com um desespero desanimador, pois sabia o que ela prenunciava, e imediatamente chamou uma carruagem e mandou que o condutor cruzasse correndo a Pontica Kralji para o Velho Distrito.

Ele torceu para que já não fosse tarde demais. Se Karl fosse um homem religioso, teria rezado. De certo modo, ele tocou a concha no cordão em volta do pescoço como se fosse um talismã, como se a concha pudesse afastar as nuvens tempestuosas que Karl via em seu futuro.

Considerando que Audric conseguisse sobreviver, o menino seria agora um joguete de Sigourney ca’Ludovici e do Conselho dos Ca’. Ana e Sergei foram os escudos dos numetodos contra os elementos conservadores dentro da fé concénziana e da sociedade. Foram apenas os dois que permitiram o crescimento dos numetodos. Agora, rápido demais, os dois se foram.

Haverá corpos de numetodos pendurados para exibição nas Ponticas novamente. Karl viu os cadáveres em sua mente e o próprio rosto em um deles. Torceu para que a visão fosse causada apenas pelo medo, e não por algum presságio.

Não existem deuses. Não existem presságios. O pensamento racional não acalmou sua mente. Ele não se sentia racional; sentia medo.

Mika e Varina concordaram em se encontrar com ele na taverna de sempre no Velho Distrito. Mesmo lá, onde os frequentadores o conheciam e o cumprimentavam pelo nome, Karl imaginou que receberia olhares tortos de quem estivesse nos compartimentos e às mesas. Ele não sabia mais com quem poderia contar, a não ser com os dois. Varina sentou-se ao lado de Karl no compartimento do canto, seu corpo era uma fonte de calor providencial, e Mika ficou do outro lado da mesa.

Amigos. Karl esperava que eles continuassem sendo amigos, depois disso. — Você é o a’morce dos numetodos aqui — disse o embaixador para Mika em uma voz urgente e baixa, para que não fosse ouvido pelos frequentadores do bar. O músico no canto, que tocava um alaúde de cinco cordas e cantava baladas que já eram velhas quando sua mamatarh as ensinou para ele, ajudou a abafar a conversa. — Não peço que se envolvam, mas fiz uma promessa a ca’Rudka que pretendo cumprir. Preciso avisá-los para que... façam preparativos.

Mika deu de ombros, embora sua expressão cansada tenha deixado claro para Karl que ele estava mais preocupado do que admitiria. Mika pegou a cerveja em frente a ele e deu um grande gole, depois limpou a espuma das pontas do bigode. — Se Audric ou o Conselho estão dispostos a matar ca’Rudka, então se voltarão para os numetodos a seguir como bodes expiatórios adicionais, caso você faça ou não alguma coisa, Karl. A culpa de tudo sempre cairá sobre nós, como sempre cai.

— Você tem família aqui. Eu sei. Sinto muito.

— Sali já passou por isso antes — falou Mika. — Ela entenderá. Vou mandá-la com as crianças para sua família em Il Trebbio.

— E quanto ao menino, Nico? — perguntou Varina. — O que fazemos com ele?

— Vocês não ouviram nada de Talis ou da matarh dele? — indagou Karl, e Varina negou com a cabeça. — Então permaneça com o menino por enquanto, se quiser. Se a situação ficar muito perigosa, deixe Nico ir embora. Não tenho interesse que ele se machuque só por estar associado a nós. — Karl soltou um longo suspiro. A própria cerveja permanecia intocada sobre a mesa, e ele olhou fixamente para as bolhas que espumavam na caneca de madeira. Milhares de bolhas, todas surgem ao mesmo tempo, depois estouram e somem. Como eu. Como todos nós. Somem rápido demais e não sobra nada depois. Nada...

— Eu irei com você hoje à noite, Karl, depois que despachar Sali e as crianças — disse Mika. — Você precisará de ajuda com isso.

Karl balançou a cabeça. — Não será necessário.

— Se ca’Rudka for retirado da Bastida por magia, então todos nós sabemos quem será o culpado e quem será caçado — falou Mika. — Pelo menos uma vez, eles terão razão em culpar os numetodos, não é? Mas a reação que que se desencadeará não mudará caso você vá sozinho ou com uma dezena de nós, ou caso seja bem-sucedido ou fracasse: só a tentativa já será suficiente.

— Eu não arriscarei a vida de uma dezena de nós; levarei dois — respondeu Karl. — Eu e mais outro.

Mika deu um sorriso irônico. — Então é melhor eu garantir que você consiga. Enquanto ca’Rudka permanecer vivo, há uma chance de que ele consiga voltar ao poder, o que seria melhor para nós.

— Eu sou mais forte do que qualquer um de vocês com o Scáth Cumhacht — interrompeu Varina. — Eu vou com vocês também.

Com esta declaração, o nó no estômago de Karl ficou mais apertado. Ele imaginou Varina morta, ou pior, capturada. Karl fez uma careta e balançou a cabeça diante da dor dessa ideia. — Não há necessidade. Você tem que tomar conta de Nico.

Ela franziu os lábios e tamborilou na mesa do compartimento. — Mika — falou Varina —, acho que precisamos de mais uma rodada aqui. Importa-se de ir pegar?

Mika pestanejou, confuso. — É só chamar Mara e... — Ele fez uma pausa e arregalou um pouco os olhos. — Ah. — Mika franziu os lábios. — Certamente. Vou pegar.

Ele mal havia deixado o compartimento quando Varina virou-se no banco para encarar Karl. A voz era baixa e ameaçadora. — Karl, eu passei anos, anos, realizando pesquisas e experiências para expandir o catálogo de fórmulas mágicas que agora nós usamos regularmente. Eu me dediquei a entender a magia ocidental, como ela funciona e como podemos dominar seus costumes. Eu abri mão... — Varina parou e mordeu o lábio inferior momentaneamente. — Eu abri mão da vida que poderia ter levado em nome dos numetodos e de uma causa que achei que compartilhávamos. E agora você vai me relegar ao papel de babá? Se fizer isso, Karl, você estará dizendo que desperdicei todo aquele tempo, todo aquele esforço e todos aqueles anos. É o que está me dizendo? É isso?

A acusação de Varina cortou Karl como uma adaga afiada. Ele levantou as mãos da mesa como se estivesse magoado. — Você não entende... — Karl começou a dizer.

— O que eu não entendo? — disparou ela de volta. — Que você acha que eu não tenho utilidade alguma para você? Que eu... não me importo com você o suficiente para querer ajudar?

— Não. — Karl balançou a cabeça incontrolavelmente. — Varina, nossas chances não são boas aqui.

— E são melhores sem mim?

Karl suspirou. — Não, não foi isso o que eu disse. Eu não quero que você se machuque.

— Mas está disposto a deixar Mika se arriscar? Por que, Karl? Por que ele é tão diferente de mim? Por quê? — As perguntas foram marteladas, e Karl pensou que houvesse uma estranha urgência nas questões, como se existisse uma resposta que Varina quisesse que ele desse.

Mas Karl não tinha respostas. Ele abaixou a cabeça, encarou a caneca, as bolhas sumiam na borda, a água no fundo manchava a madeira. — Se quiser ir comigo, Varina, então eu ficarei contente com a sua ajuda. — Karl ergueu a cabeça. Ela encarava o embaixador com uma resistência frágil. — Obrigada.

Varina abriu um pouco a boca, como se fosse dizer mais alguma coisa, mas simplesmente concordou com a cabeça.

Mika voltou com mais cerveja e pousou as canecas no centro da mesa. — Tudo acertado?

— Sim — respondeu Karl. — Tudo acertado. Se isso for realmente o que vocês querem, então vamos terminar as cervejas para podermos ir aos nossos aposentos e preparar os feitiços que precisaremos hoje à noite. Mika, se você puder cuidar de espalhar a mensagem para que todos os numetodos saiam da cidade ou façam planos para ficar escondidos em um futuro próximo... — Ele finalmente pegou sua caneca, e Mika e Varina levantaram as próprias. Os três brindaram. — À sorte — falou Karl. — Vamos precisar dela.

Eles beberam as canecas simultaneamente.

 

Varina ci’Pallo

— VOCÊ PARECE TERRIVELMENTE CANSADA, Varina — disse Nico.

Ela estava mesmo. Estava exausta, tão cansada que os ossos doíam. A tarde tinha sido gasta na preparação dos feitiços, com a moldagem do Scáth Cumhacht até que o feitiço estivesse completo, depois vieram a colocação da palavra de ativação e o gestual para soltá-lo na mente. A exaustão da feitiçaria consumiu Varina — era pior agora do que quando ela era jovem, pior desde que começou a experimentar o método tehuantino. Ela tinha ido ao quartinho onde Nico era mantido a fim de buscá-lo para o jantar e ver como o menino estava.

— Eu ficarei bem em algumas viradas da ampulheta — falou Varina para Nico. — Eu só tenho que dormir um pouco para me recuperar.

— Talis também sempre ficava cansado quando fazia as coisas mágicas, especialmente com aquela tigela. Eu achava que aquilo fazia Talis parecer velho também. Como a senhora.

A honestidade brutal de uma criança. Varina tocou no cabelo cada vez mais grisalho, nas rugas profundas que surgiram no rosto nos últimos anos, e disse — Nós pagamos pela magia desta maneira. Não se consegue nada nesse mundo sem um preço. Você aprenderá isso. — Ela deu um sorriso irônico. — Desculpe. Isso parece algo que uma matarh diria.

Nico sorriu: hesitante, quase tímido. — A matarh fala assim comigo às vezes, como se estivesse falando mais com ela mesma do que comigo. Vou tentar me lembrar disso, porém.

Varina riu. Ela sentou-se na cadeira ao lado da cama do menino e inclinou-se para frente a fim de mexer no cabelo de Nico. Ele franziu a testa e recuou um pouco na cama. — Nico — disse Varina ao recolher a mão —, eu tenho que falar com você. Coisas estão acontecendo lá fora. Coisas ruins. Depois que eu descansar um pouco, terei que sair para fazer algo e, quando voltar, teremos que sair da cidade muito depressa.

— Como eu tive que sair com a matarh? — Ele recolheu ao peito as pernas dobradas quando se sentou na cama e as abraçou. Nico olhou sobre os joelhos para Varina.

— Sim, da mesma forma.

— A senhora está em apuros?

Varina teve que sorrir ao ouvir isso. — Estou prestes a estar.

Ele torceu o nariz. — É por causa daquele homem?

— Karl, você quer dizer? Pode-se dizer que sim.

Nico soltou as pernas e olhou para a comida na bandeja, mas não tocou nela. — A senhora e Karl estão...?

Varina entendeu a pergunta sem palavras. — Não. Por que você achou isso?

— A senhora age como se fossem. Quando vocês dois conversam, parecem minha matarh e Talis.

— Bem, nós não estamos... juntos. Não desta forma.

— Ele gosta da senhora, dá para dizer.

Isso fez Varina sorrir, mas o gosto foi amargo. — Ah, dá para dizer, é? Quando você passou a saber tanto sobre os costumes dos adultos?

Nico deu de ombros e repetiu — Dá para dizer.

— Não vamos falar sobre isso — disse Varina, embora quisesse. Ela perguntou-se o que Karl diria para Nico se o menino tivesse dito a mesma coisa. — Eu preciso que você coma e durma um pouco porque é bem provável que nós tenhamos que sair da cidade hoje à noite. Você precisa estar pronto para isso.

— A senhora vai me levar para a minha matarh?

— Quisera eu, Nico. De verdade. Mas eu ainda não sei para onde iremos. Vou levá-lo a um lugar seguro. Isto eu prometo. Não deixarei nada de mal acontecer com você, e tentaremos devolvê-lo para sua matarh. Entendeu?

Ele concordou com a cabeça.

— Ótimo. Então coma o jantar e tente dormir. Eu mesma vou descansar no quarto ao lado. Se precisar de mim, pode me chamar. Vá agora, prove a sopa antes que ela esfrie.

Varina observou o menino comer por alguns grãos da ampulheta até sentir as pálpebras pesadas. Quando acordou, descobriu que tinha caído no sono na cadeira ao lado da cama, e Nico também dormia, encolhido perto dela com um braço esticado para tocar sua perna. Lá fora, ouviu o ritmo da chuva no telhado e nas persianas da casa.

Varina cobrou Nico e encostou os lábios em sua bochecha. Depois deixou o menino, fechou e trancou a porta ao sair.

Ela torceu para que o visse novamente.

 

A Pedra Branca

NESSÂNTICO...

Ela nunca tinha visto a cidade antes, embora obviamente tivesse ouvido falar muito a seu respeito. Mesmo com os Domínios divididos, mesmo com o antigo kraljiki tendo sido uma pálida imagem de sua famosa matarh, e mesmo com o atual kraljiki sendo um menino frágil que, diziam os rumores, não viveria para chegar à maioridade, Nessântico mantinha o encanto.

A Pedra Branca sempre soube que viria aqui com o tempo, como qualquer pessoa com ambição deveria. A atração da cidade era irresistível, e para alguém de seu ramo de negócios, Nessântico era um campo rico e fértil a ser explorado. Mas ela não esperava vir aqui tão rapidamente ou por estes motivos.

Após o assassinato às pressas e quase malfeito do hïrzg, a Pedra Branca considerou que era perigoso demais ficar na Coalizão. Ela voltou a assumir o papel da mendiga Elzbet, escondeu-se entre os pobres que tão frequentemente eram invisíveis aos ca’ e co’, e foi de Brezno a Montbataille nas montanhas orientais que formavam a fronteira de Nessântico com Firenzcia, depois desceu o rio A’Sele até a grande cidade em si.

Enquanto interpretava o papel, a Pedra Branca instalou-se no Velho Distrito. Esta era a melhor maneira de evitar chamar atenção. Ela era apenas mais um dos pobres anônimos que perambulavam pelas ruas da maior cidade do mundo conhecido, e ninguém iria notar ou se importar muito se ela conversasse com as vozes em sua cabeça enquanto andava. Ela era apenas outra alma louca, uma mulher maluca que balbuciava e murmurava para si mesma, que percorria algum mundo interior em conflito com a realidade à volta dela.

— Você pagará por isso. Não pode me matar e não pagar. Eles encontrarão você. Eles virão ao seu encalço e matarão você.

— Quem? — perguntou ela para a voz estridente de Fynn enquanto os demais dentro da Pedra Branca riam e debochavam dele. Ela levou a mão à tashta, apalpou sob o pano a pequena bolsinha amarrada ao pescoço e, por dentro, a pedra clara que sempre mantinha consigo. — Quem virá me encontrar? Eu contei quem me contratou. Será que ela irá procurar por mim?

— Você está preocupada que outra pessoa descubra. Está preocupada que se espalhe a notícia de que a Pedra Branca também era a mulher que era amante de Jan ca’Vörl. Eles viram seu rosto; eles reconheceriam você, e o rosto da Pedra Branca não pode ser conhecido.

— Cale a boca! — ela quase gritou com Fynn, e o guincho fez cabeças se voltarem para ela. Um utilino de passagem parou no meio da ronda e virou a lanterna de luz mágica em sua direção. Ela protegeu os olhos da luz, curvou o corpo e arreganhou os dentes para o homem, no que torceu que parecesse ser um olhar de louca. O utilino fez um som de nojo e afastou a luz dela; as outras pessoas já tinham virado o rosto e dado as costas para cuidar de suas próprias vidas.

As vozes das vítimas gargalhavam e riam quando ela virou a esquina para entrar no centro do Velho Distrito. As famosas lâmpadas mágicas de Nessântico reluziam e brilhavam nos postes de ferro dispostos em volta da praça aberta. Ela olhou as placas das lojas ao longo da rua. Aqui, na grande praça, as lojas ainda estavam abertas, embora a maioria dos estabelecimentos nas transversais estivesse trancada desde que escureceu totalmente: os ténis podiam acender as lâmpadas do centro do Velho Distrito, mas não iam às ruas antigas e estreitas que afluíam do centro. Eles iluminavam o anel da Avi a’Parete pela cidade inteira, de maneira que Nessântico parecia usar um colar de esplendor amarelo, e as ruas largas da margem sul onde a maioria dos ca’ e co’ morava, mas o Velho Distrito era abandonado à noite.

A lua escondeu-se atrás de uma nuvem, e uma garoa ameaçava virar uma chuva intensa. Ela correu na direção do centro, pois sabia que o tempo mandaria todo mundo para casa e faria os comerciantes fecharem as lojas.

Ali: ela viu o almofariz e o pilão de um boticário mais à frente e arrastou os pés na direção da loja, através da multidão que rapidamente ficava menor. Manteve a cabeça baixa e as costas perto dos tijolos e das pedras dos prédios. Em um momento, um homem que passava tocou seu braço: um velho de barba grisalha, que deu um sorriso malicioso com uma boca banguela e um bafo que cheirava a cerveja e queijo. — Eu tenho dinheiro — disse ele sem preâmbulos, com o rosto molhado de chuva. — Venha comigo.

— Puta! — gritaram as vozes alegremente em deboche. — Por que não? Você aceita pagamento por outros serviços.

A Pedra Branca olhou com raiva para o homem e mostrou o cabo da faca na cintura. — Eu não sou uma puta — disse ela para o sujeito, e para as vozes. A mão agarrou a faca, e gotas de chuva caíram do manto com o movimento. — Afaste-se.

O homem sem dentes riu e espalmou as mãos. — Como quiser, vajica. Sem problemas, hein? — Então ele desviou o olhar e se afastou, os pés chapinharam nas poças. Ela observou o homem ir embora.

A Pedra Branca poderia se livrar dele, mas não dos demais. Os outros estavam sempre com ela.

Ela chegou ao boticário e olhou o interior através das persianas abertas. Não havia ninguém lá dentro, a não ser o proprietário parcialmente careca. Ela entrou, e quando o sino da porta retiniu de forma estridente, o homem ergueu os olhos dos jarros e frascos atrás do balcão.

— Boa noite. Que tempo horrível, eu já estava prestes a fechar. Como posso ajudar, vajica? — As palavras eram agradáveis, mas o tom e o olhar eram menos convidativos. O boticário parecia dividido entre sair detrás do balcão ou retornar aos preparativos interrompidos para fechar. — Uma poção para dores de cabeça? Algo para aliviar uma tosse?

A Pedra Branca teria sido firme, teria sido decidida, mas ela não era a Pedra Branca agora, era apenas uma jovem de aparência comum, sem status, que pingava no chão, uma pessoa que podia ser confundida com uma prostituta comum que andava pelas ruas ou tentava escapar do tempo por um momento.

É isso o que você realmente quer? Não tinha certeza sobre quem fez a pergunta ou se tinha sido ela mesma quem indagou. As vozes ficaram quietas enquanto ela esteve com Jan. De alguma forma, ficar com ele acalmou a confusão dentro de sua mente, e isso ao menos tinha sido parte da atração que ela sentiu por ele, tinha sido o motivo pelo o qual ela se deixou envolver mais do que deveria. Com Jan, naquele pouco tempo, ela se sentiu cicatrizando. Pensou que talvez fosse capaz de se tornar alguém além da Pedra Branca, que pudesse se tornar normal. Jan... Ela se perguntou o que ele estaria pensando agora, se achava que foi feito de bobo ou se sentia arrependimento ao pensar nela. Perguntou-se se Jan sabia quem ela era, que matara seu onczio, ou se pensava que ela fugira apenas porque fingira ser alguém que não era e fora descoberta.

— Vajica?

Ela se perguntou se Jan algum dia saberia como ela se arrependia de tudo.

A Pedra Branca tocou o estômago com delicadeza novamente, como fazia cada vez mais recentemente. Deveria ter ocorrido o sangramento mensal antes mesmo de ter matado Fynn ca’Vörl. Ela pensou que talvez o estresse o tivesse atrasado alguns dias. Mas o sangramento não veio depois da fuga; ainda não tinha ocorrido durante os dias que passou em Nessântico, e agora havia uma estranha náusea quando acordava e sensações estranhas dentro dela.

Isso é tudo o que você terá dele. Quer realmente fazer isso?

Podia ter sido sua própria voz. Podia ter sido a voz de todos eles.

— Vajica? Eu não tenho a noite toda. A chuva...

Ela balançou a cabeça e pestanejou. — Desculpe, eu... — A mão tocou o abdômen outra vez.

O boticário olhou fixamente para a mulher e para o movimento da mão na barriga. Ele empinou e abaixou o queixo, passou a mão na careca como se ajeitasse um cabelo invisível. — Eu acho que tenho o que você quer, vajica — disse o homem, com um tom mais gentil agora. — As moças da sua idade, às vezes, vêm até mim, e, como você, não sabem exatamente o que dizer. Eu tenho uma poção que trará o sangramento. É o que você precisa, não é? Mas devo dizer que não é uma poção fácil de fazer, e, portanto, não é barata.

Ela encarou o homem. Prestou atenção. Colocou a mão na gola da tashta molhada e apalpou a pedra na bolsinha de couro.

As vozes estavam caladas.

Caladas.

— Não. — A Pedra Branca recuou e ouviu o sino da porta quando o calcanhar bateu nela. — Não, não quero sua poção. Não quero.

Ela então deu meia-volta e fugiu para a praça e para o ataque violento da chuva, as luzes mágicas brilhavam à sua volta e refletiam nas ruas molhadas.

Foi quando a Pedra Branca ouviu as trompas darem um alarme por toda a cidade.


??? EVASÕES ???

Karl ca’Vliomani

Niente

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Niente

Sergei ca’Rudka

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Audric ca’Dakwi

A Pedra Branca


Karl ca’Vliomani

O PLANO ERA BEM SIMPLES — tinha que ser. Karl não tinha um exército para atacar a Bastida. Não tinha compatriotas entre os gardai para abrir os portões ou deixá-los desguarnecidos ou para dar cópias das chaves das masmorras. Não tinha a poderosa magia selvagem de Mahri quando este o tirou da Bastida, para simplesmente levar Sergei embora.

Karl tinha a si mesmo. Tinha Varina e Mika. Tinha o que o próprio Sergei lhe contou.

Ele tinha o mau tempo.

A Bastida foi originalmente projetada como um fortaleza, para proteger o A’Sele de invasores que viessem do alto do rio; mais tarde ela foi convertida em prisão. Uma parte de seu legado ainda existia, e ninguém conhecia todos os caminhos secretos, embora poucos a conhecessem melhor do que Sergei ca’Rudka, que passou muito tempo no comando do conjunto irregular e úmido de pedras negras.

O trio pegou emprestado um pequeno bote ancorado a leste da Pontica a’Brezi Nippoli. Eles entraram na embarcação a poucas viradas da ampulheta depois de ter anoitecido completamente, quando a lua e as estrelas ficaram perdidas atrás dos baluartes dos arranha-céus e uma leve chuva começou a cair. — Eu diria graças aos deuses, se acreditasse neles. — Mika deu um sorriso irônico para Karl ao ajudar Varina, e depois o embaixador, a entrar. Com água até o joelho no rio, ele empurrou e afastou o bote da margem. — Vejo vocês dois mais tarde — disse Mika.

Karl torceu para que ele estivesse certo. Ouviu Mika sair do rio chapinhando e correr na direção das casas ao longo da margem sul.

Karl e Varina não usaram os remos por medo de que as pancadas na água alertassem um dos utilinos que faziam ronda ou um transeunte curioso acima deles. Em vez disso, os dois deixaram que a lenta correnteza do A’Sele levasse o bote rio abaixo. Eles estavam vestidos com roupas escuras, os rostos foram encobertos por fuligem e cinzas, embora a chuva tenha limpado rapidamente. Assim que passaram pela Pontica a’Brezi Veste e pelas torres sinistras e melancólicas das torres da Bastida, os dois vislumbraram a luz agitada de vela no alto da torre onde ca’Rudka estava preso — o sinal de que ele ainda estava lá.

Karl conduziu o bote em silêncio até a margem. Ele e Varina saíram e pisaram na lama úmida, ignoraram o cheiro de peixe morto e de água podre e entraram rapidamente nas sombras da Bastida.

Karl encontrou a porta onde Sergei disse que ela estaria: no ponto em que a barragem de terra coberta por grama da margem do rio encontrava os flancos da torre ocidental da Bastida. A barragem foi construída por ordens da kraljica Maria IV, há um século e meio, para evitar que as enchentes do A’Sele, que ocorriam anualmente na primavera, inundassem a margem sul. A porta estava coberta por terra e grama, onde a barragem subia sobre a base de pedra da Bastida, mas a cobertura era fina e as mãos de Karl rapidamente encontraram o anel de ferro debaixo da terra. Ele puxou com cuidado. A porta cedeu de má vontade, a terra empapada de chuva caiu, mas o som das dobradiças rabugentas foi em grande parte abafado pelo barulho da chuva no rio. Karl segurou a porta aberta para Varina entrar, depois ele mesmo entrou e deixou que a porta se fechasse.

O embaixador ouviu Varina falar uma palavra mágica e luz surgiu na lanterna encoberta que os dois trouxeram: a luminosidade amarela e fria do Scáth Cumhacht. O brilho parecia reluzir com uma intensidade impossível na escuridão. Karl viu as pedras lisas de limo e as lajotas quebradas do piso, as paredes infestadas com estranhas colônias de fungos e decoradas com cortinas esfarrapadas de teias de aranha. As silhuetas marrons e sinistras de ratos fugiam da luz e guinchavam em protesto.

— Que lindo — murmurou Varina, e o sussurro pareceu ecoar com um volume impossivelmente alto. Ela chutou um rato que se aproximara demais do pé, e o animal guinchou com raiva antes de fugir.

— Melhor ratos do que gardai — falou Karl. — Venha. Sergei disse que este caminho deve levar à base da torre principal. Mantenha a lanterna bem encoberta, só para garantir.

A caminhada pelo corredor abandonado pareceu levar cerca de meia virada da ampulheta, embora Karl soubesse que não poderia ter levado mais do que algumas centenas de passos. O ar estava gelado, e ele tremia sob a roupa molhada. Os dois chegaram à outra porta, obviamente fechada há muito tempo, e Karl levou um dedo aos lábios: depois daquele ponto, dissera Sergei, eles estariam nos níveis mais baixos da Bastida, onde poderia haver gardai ou prisioneiros trancados em celas meio esquecidas. Varina tirou uma jarra de banha de cozinha da tashta, abriu e besuntou a substância nojenta nas dobradiças da porta e nas bordas. Depois afastou-se e testou puxar a maçaneta, mas a porta não se mexeu. Ela puxou com mais força. Nada. Apoiou o pé na parede. A porta estremeceu uma vez no batente, mas, tirando isso, não houve resposta. Trancada — Varina falou sem emitir som.

Ela espiou pelo buraco da fechadura com o olho direito. Balançou a cabeça, depois se acocorou ao lado do batente. Falou uma única palavra mágica e gesticulou ao mesmo tempo: a madeira estremeceu e virou serragem em volta do buraco da fechadura, o trabalho de milhares de cupins feito em um instante, o mecanismo de metal caiu no novo buraco irregular com um baque surdo. Varina pegou o ferrolho e o soltou devagar e com cuidado, depois puxou a porta mais uma vez. Dessa vez, ela cedeu, relutante, porém silenciosa, e os dois entraram de mansinho em um pavimento gasto e úmido, mal iluminado por tochas presas em anéis dispostos em intervalos compridos ao longo das paredes — pelo menos um terço já havia se apagado e deixado um rastro de fuligem negra que manchava o teto baixo acima delas. O corredor fedia a óleo, fumaça e urina.

Karl fechou a porta outra vez após os dois entrarem e examinou-a rapidamente. Alguém que passasse por acaso talvez não notasse o buraco aberto por magia na penumbra; isso teria que ser suficiente. Em silêncio, ele apontou para a direita, e os dois começaram a seguir na ponta dos pés rapidamente pelo corredor.

Todas as passagens levarão à saída à esquerda. Conte duas e entre na terceira. Foi o que Sergei disse para Karl; agora ele observava cuidadosamente enquanto eles apressavam. Primeira abertura, da qual ouviram o som de alguém gritando: um choramingo longo, estridente e melancólico que não parecia humano — Karl sentiu Varina estremecer ao seu lado. Segunda abertura: uma passagem bem iluminada e o som ao longe de vozes rudes rindo de alguma piada e berrando.

Terceira abertura. Mais à frente, em um pequeno corredor, havia uma escada gasta em caracol, e eles ouviram vozes baixas e sons de um espaço habitado. A torre...

A mão de Varina pegou o braço de Karl; ela chegou perto, o calor do corpo foi providencial ao lado do embaixador. — Devemos esperar por Mika...

— Até onde sabemos, Mika já fez a parte dele ou já foi capturado. De um jeito ou de outro...

Ela soltou o braço de Karl e concordou com a cabeça. Ele e Varina entraram no corredor e começaram a subir, no maior silêncio possível. A escada, segundo Sergei contou, dava uma volta pelo perímetro de cada andar, com um pequeno patamar em cada um deles e uma porta que levava às celas. Haveria gardai a postos em cada andar, que mudavam na Terceira Chamada. Karl já conseguia enxergar o patamar do térreo. Ouviu duas pessoas falando — se eram dois gardai, ou talvez um garda e um dos prisioneiros, ele não sabia. Karl começava a subir a escada, encostado na parede de pedra...

... e foi então que eles sentiram a torre estremecer uma vez, junto com um rugido grave e um breve clarão de luz branca que banhou a superfície das pedras. Karl e Varina encostaram-se na parede quando vozes gritaram, assustadas. Eles ouviram a porta da torre ser aberta, sentiram o toque do ar da noite e o cheiro da chuva. — O que está acontecendo aqui, pelos seis abismos? — berrou uma voz para a noite lá fora. — Aquilo foi um raio?

A resposta foi ininteligível e longa. Karl e Varina ouviram a porta ser fechada, seguida pelo rangido de uma chave em uma fechadura. — Que agitação é essa, Dorcas? — chamou alguém.

— Alguém acabou de tentar entrar pelo portão principal. O desgraçado usou o Ilmodo e derrubou ambas as portas. Eles acham que pode ter sido um numetodo. O comandante mandou interditar a prisão; devo avisar aos demais. Ninguém entra e ninguém sai enquanto co’Falla investiga e chama alguns ténis do templo para cá. Entendeu?

Veio um resmungo como resposta, e Karl ouviu passos na escada, que sumiram rapidamente.

Ele acenou com a cabeça para Varina. Os dois prosseguiram.

Um triângulo de luz amarela brilhou nas pedras do patamar; ele viu uma sombra se mover na luz. Karl fechou os olhos momentaneamente, sentiu na cabeça a agitação dos feitiços que preparara previamente. Ele saiu do patamar com as mãos já em movimento, a palavra de ativação pronta nos lábios quando Varina passou pelo embaixador e subiu correndo os degraus, na direção do próximo patamar. — Ei, o que... — disse o garda, mas Karl já havia dito a palavra, e um raio refulgiu de sua mão e jogou o homem na parede atrás dele. O garda desmoronou, inconsciente, e Karl correu à frente. Ele começou a seguir Varina, mas foi chamado por vozes de um trio de celas ali. — Vajiki! E nós? As chaves, homem, as chaves... — Mãos foram esticadas pelas janelas com barras nas sólidas portas de carvalho.

Karl hesitou, e os chamados continuaram, mais insistentes. — Solte-nos, vajiki! Não pode nos deixar aqui!

Ele balançou a cabeça. Soltar os prisioneiros só complicaria as coisas, tornaria a situação mais caótica do que já estava e possivelmente mais perigosa: nem todos os prisioneiros na Bastida eram políticos, e nem todos eram inocentes.

Karl seguiu Varina escada acima ao som de xingamentos e gritos.

Varina já havia repetido o processo no segundo andar. — Estou quase exausta — disse ela, visivelmente arrasada contra a parede. — Só tenho mais um feitiço; conjurei os encantamentos às pressas como um téni.

Karl concordou com a cabeça; o embaixador sentia a mesma exaustão, e havia pouco poder sobrando dentro dele. — Eu pego o próximo. Precisamos ter o suficiente sobrando quando chegarmos ao regente.

Juntos, os dois foram para o terceiro nível tão rápido quanto puderam. A cela de Sergei, eles sabiam, ficava no quarto nível; mas quando se aproximaram do terceiro, Karl e Varina ouviram vozes. — O comandante pediu que levássemos o senhor até ele — o tal Dorcas dizia.

— Ele disse que viria em pessoa. — Karl ouviu Sergei protestar; a voz do homem parecia assustada.

— O comandante está um tanto quanto ocupado no momento.

— Soltem minhas mãos, pelo menos. Esta escada...

— Não. O comandante disse que o senhor deveria ficar algemado...

Karl viu uma bota aparecer na curva da escada quase à altura de sua cabeça. Sentiu o agito das últimas sobras do Scáth Cumhacht e falou a palavra de ativação ao se afastar da parede; logo abaixo, ele ouviu Varina fazer a mesma coisa. Dois raios foram disparados, e os gardai que seguravam ca’Rudka desmoronaram. Sergei tropeçou, caiu na escada e quase derrubou Karl. O segundo garda — Dorcas, presumiu Karl — permaneceu em pé, no entanto; sua espada saiu sibilando da bainha, e ele protegeu Varina, que agarrou o braço e recuou. Sergei chutou o joelho do homem, que gemeu e começou a cair; o regente chutou de novo, e Dorcas caiu de cabeça pela escada. Ele não se moveu novamente; a cabeça estava dobrada em um ângulo horrível.

— Eu não achei que você viesse — disse Sergei.

— Eu cumpro minhas promessas — falou Karl. — Agora, vamos sair daqui... Varina?

Ela balançou a cabeça. Karl notou o sangue jorrando entre os dedos enquanto Varina segurava o braço. O embaixador rasgou o própria roupa para fazer uma bandagem. — Eu vou atrasar vocês — disse ela. — Vão indo. Eu seguirei o mais rápido possível.

— Eu não vou deixar você aqui. — Karl amarrou com força o ferimento com faixas de pano. O rosto de Varina estava pálido, e havia mais sangue manchando a tashta do que Karl gostaria. — Não tenho mais nada sobrando do Scáth Cumhacht. E você?

Ela fez que não. Quando Karl amarrou com mais força as bandagens, Varina fez uma careta.

Sergei estava agachado ao lado do garda. Karl ouviu o ranger de aço contra aço e o retinir de chaves, ca’Rudka tirou as algemas da mão e jogou na escada. Ele retirou um florete de um dos gardai.

— Pegue a espada do outro garda — disse Varina para Karl. — Podemos precisar.

Karl assentiu e disse — Vamos. — Eles desceram correndo a escada, com Karl ajudando Varina. Ele sentiu o corpo ficando mole e pesado em seus braços, mais lento a cada lance de degraus. Os prisioneiros gritavam e berravam enquanto os três passavam, sacudiam as barras das celas, mas Karl os ignorou. Eles chegaram ao térreo e, mais devagar, começaram a longa curva para o subsolo. Karl começou a achar que conseguiriam. Eles estavam quase lá. Com Varina arrastando os pés atrás e Sergei à frente, os três desceram correndo a pequena passagem até o corredor principal. Dois cruzamentos, outra curva e mais um pequeno corredor, e eles estariam à porta que levaria ao antigo túnel desativado e ao bote à espera.

— Não desmaie, Varina — falou Karl ao olhar para ela. — Estamos quase lá.

Os três deram mais alguns passos até que um grupo de meia dúzia de gardai armados entrou no corredor vindo do cruzamento à frente. — Lá! É o regente! — berrou um garda, e o líder, com as faixas do posto no uniforme, virou-se. Karl conhecia o homem, embora o offizier olhasse mais para Sergei do que para ele.

— Sinto muito, Sergei — disse o comandante co’Falla, então seu olhar se voltou para Karl e Varina. — Embaixador, infelizmente o senhor e sua companheira cometeram um erro muito grave aqui. Cuidarei para que ela receba o tratamento adequado para a ferida. Sergei, abaixe sua arma. Acabou.

— Eu posso dizer o mesmo para você, Aris — falou Karl. — Afinal, todos vocês sabem o que um numetodo é capaz de fazer.

— Se o senhor tivesse algum feitiço sobrando, já teria usado — respondeu co’Falla. — Ou estou errado?

Houve movimento no corredor atrás dos gardai; uma figura na penumbra das tochas. Karl sorriu. Ele espalmou bem as mãos. Notou que alguns gardai atrás do comandante se encolheram, como se esperassem a explosão de um feitiço. — Não — disse ele. — Você não está errado. Não quanto a mim.

Co’Falla acenou com a cabeça e falou — Então eu sugiro que tornemos esta situação mais fácil para todos nós.

— Eu concordo — disse Karl. Ele olhou atrás de co’Falla e dos gardai, e o comandante começou a virar o rosto. O feitiço atingiu o grupo naquele momento: o ar em volta dos gardai reluziu e se contorceu com raios. Com gritos de dor e surpresa, eles desmoronaram no pavimento de pedra, com os raios ainda ondulando, estalando e se contorcendo sobre os corpos. Atrás deles, Mika estava com as mãos estendidas. O corpo esmoreceu quando as mãos caíram.

— Regente — falou ele. — É um prazer conhecer o senhor. Agora, queiram vocês se apressar...

Varina seguiu meio cambaleante à frente. Ela pegou a espada de co’Falla com a mão boa e colocou a ponta na garganta do comandante. Olhou para Karl e disse — Ele conhece você. — Havia uma mancha de sangue na bochecha, onde ela roçou a mão no rosto cansado e pálido. — Ele falou seu nome.

— Não. — A resposta veio de Sergei. Ele se moveu como se fosse pegar o pulso de Varina, mas ela balançou a cabeça e empurrou a espada, que furou a pele e fez aparecer um ponto vermelho. Sergei olhou para Karl. — Ele é meu amigo. Se fizerem isso, eu não irei com vocês. Ficarei aqui. Vocês terão acabado com tudo.

Varina olhou fixamente para Karl, à espera. O embaixador balançou a cabeça. Ela deu de ombros e deixou a espada cair com um baque alto no pavimento. Varina cambaleou, depois se equilibrou e disse — Estamos perdendo tempo, então.

Eles passaram pelos corpos caídos dos gardai e correram.

 

Niente

NECALLI ERA O TECUHTLI desde antes de Niente nascer. Ele sabia os nomes dos antigos tecuhtlis, mas apenas porque seu vatarh e matarh falaram a respeito deles. O nome de Necalli era sempre louvado nas cerimônias do solstício nos Templos do Sol; foi Necalli quem mandou o famoso Mahri para o leste após suas visões profetizarem a ascensão dos orientais dos Domínios. Foi Necalli quem respondeu ao pedido de ajuda dos primos após o comandante dos orientais ter começado represálias contra aqueles que viviam depois das montanhas costeiras. Foi Necalli quem criou Niente para se tornar o novo nahual acima de todos os demais feiticeiros, muitos dos quais eram mais velhos que Niente e sentiam inveja de sua rápida ascensão. Foi Necalli quem concordou em permitir que Niente usasse os encantamentos profundos do X’in Ka para capturar a mente do offizier dos Domínios e mandá-lo de volta para a grande cidade dos orientais como uma arma.

O feitiço custara mais a Niente do que ele havia esperado, debilitou seus músculos de tal forma que ele não conseguia ficar de pé por muito tempo sem precisar se sentar novamente. O esforço o consumiu tanto que o rosto no reflexo da água na tigela premonitória estava enrugado e cansado como o de uma pessoa muitos anos mais velha do que ele. Niente pagou o preço, como Mahri pagou muitas vezes em sua época, mas Niente odiaria ver aquele sacrifício desperdiçado.

Agora ele se perguntava para que serviu o sacrifício. — Ataque a cabeça da fera, e ela não poderá mais feri-lo — dissera Necalli. Era o que tinha mandado Mahri fazer, mas parecia que, ao contrário, a fera havia consumido Mahri. Niente tinha receio de que este pudesse ser seu destino também.

Mais importante, Necalli era o centro do mundo tehuantino na vida da maioria dos presentes ali. Niente não conseguia imaginar seu mundo sem o tecuhtli Necalli. Todos os guerreiros deviam morrer, e com o tecuhtli não era diferente. No entanto, Necalli sobreviveu aos desafios esporádicos ao seu reinado. Niente desejava que fosse capaz de imaginar Necalli sobrevivendo a este desafio também.

Mas ele tinha pouca esperança.

Niente estava no meio da multidão presente nos flancos da cavidade verdejante do vale Amalian, um dos locais sagrados de Sakal e Axat, localizado mais a leste. Suas costas estavam apoiadas em um dos alaques de pedra entalhada do campo de jogo e mantinha as mãos sobre a ponta do cajado mágico. Niente desceu o olhar para o pátio nas sombras. Lá embaixo, o tecuhtli Necalli estava de armadura, empunhando uma reluzente espada curvada na mão velha, mas firme, enquanto encarava Zolin, supremo guerreiro das forças tehuantinas e filho do irmão morto de Necalli. O rosto do tecuhtli Necalli era escuro com as tatuagens de sua patente, que contornavam as feições como uma máscara eterna e cruel, mas ele era um velho agora, as costas estavam curvadas para frente, o cabelo era branco e ralo. Zolin, em comparação, era a imagem esculpida e perfeita de um guerreiro.

O desafio surpreendeu a todos. Citlali, ele mesmo um guerreiro supremo, estava perto de Niente, e bufou diante da cena abaixo dos dois, Necalli e Zolin começaram a se cercar lentamente, enquanto os guerreiros em volta do campo começaram um cântico ritmado, batendo nas pedras com a ponta do cabo das lanças. O som parecia com as marteladas de Sakal quando Ele entalhou o mundo no casco da Grande Tartaruga. — Necalli voltará para os deuses hoje — disse Citlali. — Que Eles estejam prontos para receber o velho abutre.

— Por quê? — perguntou Niente. — Por que Zolin desafiou o tio? O tecuhtli Necalli não perdeu uma batalha para os orientais; na verdade, ele fez com que recuassem para o Mar Interior. A Garde Civile dos Domínios não penetrou ainda nas nossas fronteiras. O tecuhtli pode ser velho, mas ainda é um mestre da estratégia.

— Zolin diz que o tecuhtli ficou tímido com a senilidade — respondeu Citlali. A própria face era cheia de linhas negras pontilhadas por círculos de um azul intenso. — Ele dança com os orientais, mas hesita em destruí-los. Tornou-se cauteloso e cuidadoso demais. Zolin não tem medo. Zolin varrerá completamente os orientais da terra de nossos primos. Ele atacará, em vez de simplesmente se defender.

— Se vencer o desafio — disse Niente.

— Ninguém é mais forte do que Zolin. Necalli certamente não; olhe, os músculos são flácidos como os de uma velha.

— Será que a força deve vencer sempre a experiência? — perguntou Niente, e Citlali riu.

— Você é o nahual — falou Citlali. — Um dia, um de seus nahualli virá até você e exigirá um desafio, e talvez você descubra a resposta por si mesmo. Diga-me, Niente, por ter sido o nahual de Necalli, você está com medo de mudar de status quando Zolin se tornar o tecuhtli?

Niente aprendeu há muito tempo que alguém nunca demonstrava medo para um guerreiro supremo. Os Tatuados já consideravam os nahualli pouco mais do que armas em forma humana e não tinham nada além de desprezo por aqueles que eles consideravam fracos. Niente deu um sorriso forçado. — Não se Zolin tiver um cérebro, além de força.

Citlali riu outra vez e disse — Ah, isso ele tem. Zolin aprendeu com o próprio Necalli. Agora é o momento de o aluno superar o mestre, de o filho substituir o irmão de seu vatarh. — Niente percebeu que o guerreiro supremo o examinava de cima a baixo com o olhar. — Você anda cansado ultimamente, e estas rugas são novas no seu rosto. Você mesmo devia tomar mais cuidado, Niente. Necalli usou você demais, assim como Mahri. É uma pena.

Niente concordou cautelosamente com a cabeça. Era o que ele mesmo pensara, mais de uma vez.

O cântico e as batidas pararam abruptamente. Eles ouviram os pássaros da floresta se acomodarem novamente. O silêncio quase incomodou os ouvidos de Niente. Necalli e Zolin estavam a dois passos um do outro, no centro do campo.

Zolin rugiu. Avançou. A espada reluziu, mas a arma de Necalli se ergueu ao mesmo tempo, e as lâminas fizeram barulho ao colidirem enquanto os guerreiros gritavam em aprovação. Por um momento, os dois homens ficaram travados nessa posição, depois Zolin empurrou Necalli, e o tecuhtli recuou.

— Viu só — falou Citlali. — Eles agem em batalha como agem aqui. Zolin ataca, enquanto Necalli aguarda.

— E se Necalli encontrar uma falha no ataque de Zolin, ou se Zolin for impaciente, então é Necalli que continuará sendo o tecuhtli. Há vantagens em esperar.

— Veremos então quem os deuses favorecem, não é? — Citlali sorriu com ironia. — Quer apostar, nahual? Três cabras que Zolin vencerá.

Niente negou com a cabeça; Citlali riu. Lá embaixo, o guerreiro supremo executou uma finta em nova investida, e Necalli quase cambaleou ao erguer a espada novamente contra o ataque esperado. Zolin foi para a direita, depois rapidamente mudou para a esquerda, e a espada desenhou uma linha reluzente no ar. Desta vez, a resposta de Necalli veio atrasada. A lâmina do guerreiro supremo acertou o corpo de Necalli no ponto onde o peitoral era amarrado às ombreiras, cortou as tiras de couro e penetrou fundo no ombro do braço que segurava a espada do tecuhtli. Necalli, para seu crédito, só fez uma careta quando Zolin arrancou sua espada, e o sangue jorrou nos dois. O guerreiro supremo cercou Necalli quando o tecuhtli cambaleou para trás, sua armadura se agitou quando ele trocou a espada para a mão esquerda. O sangue escorria pelo braço direito de Necalli e pingava dos dedos. Zolin berrou novamente e levantou poeira com as sandálias ao atacar novamente. O tecuhtli ergueu a espada, mas sua defesa era fraca, e a espada do guerreiro supremo continuou descendo, entrou ao lado do crânio desprotegido de Necalli, se enterrando no pescoço abaixo da orelha esquerda. Zolin soltou a espada quando Necalli caiu de joelhos, a arma do tecuhtli tiniu ao cair no chão. Por um longo momento, Necalli cambaleou ali. A mão esquerda apalpou o cabo da espada de Zolin, sem efeito. Os olhos estavam arregalados, como se enxergasse uma visão no céu; a boca abriu-se como se estivesse prestes a falar, mas só o sangue saiu.

Necalli oscilou para a direita e caiu. O rugido de Zolin foi combinado aos milhares de berros dos que assistiam. Ao lado de Niente, Citlali ergueu um punho cerrado no ar e berrou — Tecuhtli Zolin! Tecuhtli Zolin!

Lá embaixo, Zolin arrancou a espada do corpo de Necalli. Ele ergueu a arma no ar, e os gritos foram redobrados quando ele se virou para encarar os que assistiam. Seu olhar triunfante pareceu encontrar cada tehuantino.

Dessa vez, Niente também se juntou aos gritos. — Tecuhtli Zolin! — Ele levantou o cajado mágico para o céu, mas olhou mais para o corpo de Necalli.

 

Nico Morel

NICO ESTAVA CONFUSO e assustado com a agitação. Várias coisas estavam acontecendo rápido demais. Houve batidas furiosas na porta, e o homem que estava tomando conta de Nico fez um gesto estranho com as mãos antes de os dois ouvirem a voz do embaixador do outro lado. A porta foi escancarada, e várias pessoas entraram correndo. Elas meio que carregavam Varina, cuja tashta estava encharcada de sangue. Nico tentou correr até ela, mas alguém o empurrou de volta para a cama com um rosnado. Houve muitos gritos e gente demais na sala pequena. Sob a luz das velas, tudo era uma confusão de sombras. Ele só conseguiu ouvir trechos do que as pessoas diziam.

— ... precisamos de Karina; ela tem o talento de cura... —

— ... não podemos ficar... fomos reconhecidos... —

— ... diga aos demais para ficarem escondidos... —

— ... a Garde Kralji já deve estar à procura... —

— ...torturar e matar qualquer um de nós que encontrarem... —

— ... a criança tem que ir embora...

Nico sentou-se na cama e queria chorar, mas ficou com medo de atrair atenção para si quando não queria nada além de ser invisível. Um rosto saiu do caos e agigantou-se sobre ele: Karl. — Nós temos que sair de Nessântico. Varina lhe disse isso, não foi? Você virá comigo, Nico. Não podemos deixá-lo para trás, não sem ninguém para tomar conta de você.

— Eu posso ficar na minha velha casa — disse Nico com uma confiança que não sentia. — Minha matarh irá me procurar lá, ou Talis. E eu conheço as pessoas que moram nas outras casas. Eu ficarei lá.

— Nós deixamos uma mensagem para Talis na sua casa avisando onde você estava — disse Karl. — Ele não veio.

— Ele virá — insistiu Nico. — Ele virá.

O homem parecia ter tantas dúvidas quanto Nico tinha por dentro. — Sinto muito, Nico, mas temos que ir embora rápido, e você precisa vir conosco.

Nico olhou por cima do ombro de Karl, na direção do tumulto na sala. Havia muitas pessoas ali, e ele não conseguiu ver Varina. — Varina vai morrer? — perguntou Nico.

— Não. — O embaixador balançou a cabeça enfaticamente. — Ela foi ferida, mas não vai morrer. — O menino acenou com a cabeça. — Nico, você terá que ser muito corajoso e ficar muito quieto. Se formos descobertos, Varina vai morrer, e eu, e talvez você, também. Entendeu?

Nico concordou novamente, embora não entendesse. Ele franziu os lábios e engoliu em seco. — Muito bem, bom rapaz — disse Karl ao mexer no cabelo de Nico, como Talis às vezes fazia, e Varina também. Nico perguntou-se por que os adultos sempre faziam isso apesar de ele não gostar. O menino sabia que Karl tinha filhos e netos em Paeti; uma vez sua matarh comentou com Talis que o embaixador e a archigos Ana eram “próximos demais”, então talvez eles fossem filhos da archigos. Nico imaginou como seria uma criança que cresceu no interior escuro e cavernoso do templo, com pinturas dos moitidis em combate nos domos no alto e fogo mágico que ardia em enormes braseiros em volta do coro.

— Nico! Venha cá. — Karl gesticulou, e Nico foi até ele.

— ... os portões da cidade serão fechados a qualquer momento — dissera um homem grisalho, e Nico levou um susto ao perceber que era o regente de Nessântico: tinha que ser ele, com o nariz feito de prata que reluzia à luz das velas. O menino olhou fixamente para o nariz: ele tinha visto o regente algumas vezes em dias de cerimônias, sentado ao lado do kraljiki Audric, quando a carruagem real dava a volta pela Avi a’Parete. Nico não compreendia por que o regente estava ali ou como poderia haver perigo com sua presença. A matarh sentia arrepios quando falava a respeito dele e contou para Nico histórias sobre o regente ter sido antigamente o comandante e ter torturado pessoas na Bastida. O rosto do regente parecia mais cansado do que perigoso neste instante. — O comandante co’Falla conhece a cidade tão bem quanto eu, pois o ensinei, e isso é um problema. Ele sabe que precisamos sair, e mandará pessoas à nossa procura. — O regente bateu com o dedo no nariz. — Alguns de nós somos muitíssimo reconhecíveis.

— Então nós evitaremos os portões — falou Karl. — Se conseguirmos cruzar a Avi perto do Parque do Templo, bem, as velhas muralhas ficam por ali, e se pudermos atravessar a vizinhança ao norte e entrar nos campos agrícolas durante a noite, há uma faixa de terra com muita floresta por lá, mais ou menos cinco quilômetros adiante, onde podemos ficar durante o dia. Talvez possamos prosseguir para Azay e... — O embaixador parou e deu de ombros. — Então faremos o que for necessário. Nesse momento, estamos perdendo tempo.

— Realmente — respondeu o regente. — Varina consegue andar?

— Eu consigo — Nico ouviu Varina responder, embora a voz soasse fraca e trêmula. Ele a viu, então, sentada na cama enquanto balançava os pés na beirada. O sangue na roupa era escuro, e parecia úmido. — Estou pronta. Só me deixem trocar de roupa. — Varina abanou a mão para eles. — Andem, saiam. Esperem por mim aí fora. Só levarei uma marca da ampulheta.

— Venha, Nico. — Karl acenou para a porta com a cabeça, mas Nico fez que não e abraçou o próprio corpo.

— Deixe o menino ficar — disse Varina. — Eu o levarei comigo. Andem.

— Está certo — respondeu o embaixador, mas ele parecia incerto. — Esperaremos na antecâmara. Seja rápida.

Os homens saíram e Varina desmoronou na cama por um momento, a respiração estava acelerada e incômoda. Ela gemeu ao se sentar novamente e ao tentar desfazer os laços da tashta. — Nico, preciso da sua ajuda...

O menino foi até Varina e desfez os laços, atrapalhou-se com os nós enquanto tentava não notar o sangue que sujava os dedos. Ela abaixou a tashta até a cintura, e Nico afastou o rosto rapidamente, um pouco corado, enquanto Varina tomou impulso com uma mão para ficar de pé. Os seios sob a faixa eram menores que os da matarh, e vê-los cobertos apenas por um pano fino provocou uma sensação estranha em Nico. — Há outra tashta no baú ao pé da cama — falou Varina. — Uma azul; pode pegá-la para mim? Bom menino.

Ele vasculhou o baú, o cheiro de ervas doces dentro de sachês de linho penetrou nas narinas do menino, que entregou a tashta azul para Varina. — Vire-se um instante — falou ela, e quando Nico obedeceu, ele escutou a tashta suja deslizar completamente até o chão. Ouviu Varina vestir a nova tashta meio sem jeito com o braço machucado, e quando ela gritou de dor, o menino foi rapidamente ajudá-la, puxou com força a faixa embaixo dos seios, depois amarrou as alças e os laços das costas. — Há bandagens na última gaveta do baú — disse Varina. — Se puder trazer algumas...

Nico correu para pegá-las para ela. Quando se levantou com as faixas brancas de tecido macio nas mãos, viu Varina tirar as bandagens do braço. Ele conteve um gritinho ao ver o corte fundo e irregular, que ainda estava escancarado e vertia sangue. As bordas da ferida abriram enquanto Nico observava, era tão funda que ele pensou ter visto o osso branco no fundo. Ele engoliu em seco e sentiu enjoo. — Eu sei — falou Varina. — O corte parece sério, e preciso encontrar um curandeiro para costurá-lo. Mas, nesse momento, preciso amarrar uma nova bandagem para mantê-lo fechado. Não consigo com uma mão só. Você pode me ajudar?

Nico concordou com a cabeça e engoliu em seco. Enquanto recebia instruções, ele colocou um chumaço de bandagens dobradas em cima da ferida; depois, conforme Varina apertava as bordas do corte da melhor maneira possível, o menino enfaixou a região. — O mais apertado que você conseguir — disse ela. — Não se preocupe, você não irá me machucar. — Varina mostrou a ele como rasgar a ponta da bandagem em duas e depois amarrá-las para ficar no lugar.

Ela chorava no momento em que Nico terminou e olhava para a mão ao tentar mexer os dedos. — Vai melhorar, Varina — falou o menino. — Só precisa de tempo para sarar.

Varina riu entre as lágrimas e puxou Nico em um abraço com a mão boa. — Obrigada — sussurrou ela no cabelo do menino. — Agora, pegue um pouco de água. Eu quero tirar o sangue das minhas mãos e das suas.

Uma marca da ampulheta depois, os dois saíram do quarto, com Varina pálida, mas andando com firmeza.


Estava chovendo, estava frio, estava escuro, e Nico estava péssimo.

O menino manteve-se próximo a Varina enquanto eles atravessaram correndo a Avi a’Parete sob o aparente olhar furioso das famosas lâmpadas mágicas da cidade. O regente estava com Nico, Varina e Karl; o outro numetodo — aquele chamado Mika — deixou o grupo e foi para outra direção pela cidade. Nico viu um esquadrão da Garde Kralji correr pela Avi na direção do Portão Norte, pisando nas poças dos paralelepípedos da avenida; o regente fez o grupo parar à sombra de um prédio — a chuva caía com força das calhas entupidas sobre eles — até os gardai sumirem na curva da Avi, depois Sergei guiou-os por uma corrida no interior do aglomerado de casas ao norte da Avi. Lá, eles rapidamente trocaram as ruas principais por transversais e becos, mantiveram-se longe das poucas pessoas que estavam na rua no tempo ruim e ocasionalmente se escondiam em vielas quando ouviam outros se aproximarem. Em um momento, um trio de utilinos passou pelo grupo, e eles espremeram-se contra as pedras frias e úmidas do prédio mais próximo, prendendo a respiração enquanto os utilinos, que obviamente observavam os rostos dos transeuntes, iam embora. O grupo continuou rumo ao norte; as casas ficaram mais espaçadas, estavam separadas agora por campos e pastoreios; as luzes da cidade tornaram-se apenas um brilho nas nuvens acima deles; as ruas de paralelepípedos deram lugar a estradas enlameadas e cheias de sulcos, que finalmente viraram um caminho estreito e sujo. Quando eles pararam, Nico teve a sensação de que passou a noite correndo. Os pés e as pernas doíam, e ele ofegava pelo esforço de acompanhar os adultos. Varina desmoronou no chão assim que o grupo parou.

— Vamos descansar aqui por alguns minutos — falou o regente. — Se vier alguém, nós devemos vê-los antes que nos notem. — Os quatro estavam bem afastados de qualquer fazenda, e a chuva virou uma garoa inconstante. Nico ficou ao lado de Varina, que estava apoiada em um muro de pedra à beira do caminho. Ela fechou os olhos e segurou o braço ferido com firmeza.

— A floresta fica a mais ou menos um quilômetro e meio estrada acima; devemos alcançá-la em meia virada da ampulheta — continuou o regente. — Talvez nós devêssemos sair da estrada; se eu fosse o comandante, mandaria batedores para todos os vilarejos à nossa procura.

— Para onde? — perguntou Karl.

O regente sacudiu a água do cabelo parcialmente grisalho; gotas pingaram do nariz de prata. — Firenzcia — resmungou ele.

Karl deu uma risada que mais pareceu uma tosse. — Você está brincando, Sergei. Isso é sair do fogo para cair na brasa. Firenzcia? O archigos ca’Cellibrecca não é nada mais que uma versão mais nova de seu vatarh por casamento; eles adorariam ter o embaixador dos numetodos para torturar e pendurar em uma jaula para que todo mundo visse. Firenzcia? Lá pode ser bom para você, mas Varina e eu teremos uma chance melhor de sobreviver se tentarmos nadar pelo Strettosei até Paeti. Era melhor nós simplesmente nos rendermos à Garde Kralji agora.

Varina abriu os olhos, e Nico viu que ela assistia à discussão. O regente fungou. — Firenzcia é inimiga dos kralji. Agora, nós também. Eu conheço Allesandra desde a época que ela passou aqui; você também. Com Fynn assassinado, ela será a hïrzgin; Allesandra nos acolherá.

— A não ser que os numetodos estejam sendo convenientemente culpados pelo assassinato do hïrzg Fynn — falou o embaixador, e Varina concordou enfaticamente com a cabeça.

— Para onde mais vocês iriam? — perguntou o regente.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

— Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

— E Firenzcia não faria o mesmo? — interveio Varina.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — disse o embaixador.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — Sergei fungou novamente.

Nico ouvia a discussão enquanto se encolhia no manto. Ele não queria ir para Firenzcia, Il Trebbio, Paeti ou qualquer um desses lugares. O menino gostava de Varina e sentia muito por ela estar machucada, mas queria estar com sua matarh ou Talis. Os adultos não prestavam atenção nele; estavam muito dedicados à discussão.

Aos poucos, Nico ergueu o corpo até ficar sentado no muro. Ele virou-se, as pernas balançaram do outro lado. Ninguém notou o menino; ninguém disse nada para ele. Nico deixou-se cair na grama alta do campo. Ele ainda podia ouvir a discussão quando começou a se afastar rapidamente do outro lado do muro de pedra — de volta para Nessântico. De volta para o único lar que conhecia.

Quando Nico mal pôde escutar as vozes, ele começou a correr: noite adentro, chuva adentro, na direção do brilho da cidade ao longe.

 

Varina ci’Pallo

— PARA ONDE MAIS VOCÊS IRIAM? — falou o regente, e ela ouviu Karl escarnecer.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

Sergei parecia um professor ensinando um aluno lento. — Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

Varina, que meio que ouvia a discussão, remexeu-se e interrompeu os dois com os olhos semicerrados. — E Firenzcia não faria o mesmo? — disparou para o regente.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — acrescentou Karl; Varina ficou contente por ter o apoio dele.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — A voz de Sergei era quase de deboche.

A discussão apenas minava a pouca força que restava a ela. Deixe Karl lidar com ele; Karl não irá para Firenzcia. Não irá... Conforme a discussão continuava, a atenção de Varina voltou-se para o cansaço do corpo e a dor latejante e insistente no braço, que dava uma pontada toda vez que ela se mexia. Varina apoiou a cabeça no muro de pedra à beira da estrada, sem se importar que o chão embaixo dela estivesse frio e encharcado, e fechou os olhos enquanto os dois continuavam a discutir. Sentia no rosto o espirro gelado ocasional das nuvens insistentes e ouvia o estrondo da voz dos dois homens como um trovão distante em sua mente. Ela estava péssima e com frio.

Varina perguntava-se se a morte não seria na verdade um benefício.

Ela não sabia o que pensar quando olhou para a direita, na direção onde o brilho da cidade pintava as nuvens baixas levadas pelo vento. Ao mesmo tempo, percebeu que o calor tênue que estivera ao seu lado foi embora.

— Nico? — Varina sentou-se e conteve o grito que queria irromper pela garganta com o movimento. Então, falou mais alto — Nico?

Karl e Sergei deixaram a discussão de lado e viraram-se. — Varina? — Karl começou a dizer, depois praguejou. — Merda! O menino sumiu. — Ele olhou sobre o muro, Varina fez o mesmo, enquanto se levantava lentamente. A grama da campina revelava o rastro escuro e pisoteado dos pés de Nico, que voltava na direção da cidade até Varina perdê-lo na escuridão.

— Eu vou atrás dele. O garoto não pode estar longe. — Ela começou a passar por cima do muro para persegui-lo e fez uma careta quando o movimento forçou o braço machucado. Mas Varina sentiu a mão de Karl no braço bom, para contê-la.

— Não — falou Karl. — Você não pode. Ele está voltando para a cidade e chegará lá antes que você o alcance. Você não pode ir lá. Eles não estão procurando por um menino, estão procurando por você.

Varina estava agitada. Ela tentou se soltar de Karl, mas estava muito fraca. Sergei assistiu, impassível, da estrada. — Nico estará sozinho lá. Não posso abandoná-lo assim. Eu prometi.

— Ele estava sozinho quando você o encontrou. O garoto é no mínimo engenhoso. — Karl apontou com o queixo para o brilho da cidade nas nuvens. — Nico acha que sua matarh ou Talis irão encontrá-lo se ficar lá. Ele pode estar certo. Deixe o menino ir, Varina. Deixe-o ir. Nós temos outras questões para nos preocupar.

Varina esmoreceu. Ela sentou-se no muro e olhou para a trilha da fuga de Nico. Karl soltou seu braço, que ela usou para abraçar o ferido. A chuva tinha recomeçado a cair; a garoa escondeu as lágrimas. — É minha culpa — disse Varina. — Minha culpa. Eu devia ter tomado conta dele. Prometi que o levaria a um lugar seguro. Prometi a ele...

— Varina. — Ela virou-se para Karl, que balançou a cabeça. — A culpa é minha. Você está ferida, precisava descansar. Eu devia ter vigiado o menino. Não você. A culpa é minha.

Varina queria poder acreditar em Karl. Fungou. Virou o rosto novamente para o rastro, que sumia. A grama da campina já se levantava e escondia a fuga de Nico.

— Fique a salvo — sussurrou Varina: para a escuridão, para a chuva, para a névoa distante tocada pela luz. — Por favor, fique a salvo.

 

Audric ca’Dakwi

VOCÊ TEM TODO O DIREITO de estar furioso. Na verdade, você tem que estar furioso, para que eles temam você.

Audric ouviu a voz da mamatarh, o espocar das palavras em sua cabeça, a raiva aparente de Marguerite. Ele viu a cara fechada no quadro à direita quando se sentou no Trono do Sol.

Eu fui a Spada Terribile, a Espada Terrível, antes de ser a Généra a’Pace, falou a kraljica em fúria. Você tem que seguir meus passos, Audric. Tem que mostrar para eles o aço, antes de dar a luva de pelica, para que saibam que o aço está sempre dentro. Escondido.

— Eu mostrarei — falou Audric em tom grave, depois se voltou para o comandante co’Falla, que estava diante dele com a cabeça baixa e uma pequena bandagem no pescoço. O Conselho dos Ca’ sussurrava em seus assentos, atrás do comandante. — Comandante? — vociferou o kraljiki, embora a rispidez da palavra tenha provocado um acesso de tosse. Ele ergueu os olhos, com o lenço de renda amassado na mão, e viu que co’Falla o encarava. — Você está me informando que o ex-regente ca’Rudka conseguiu escapar da Bastida e de minha ordem de execução? — Ele teve que parar para tomar fôlego. Ouviu o eco da voz nas pedras do salão. Abaixe a voz. Você soa estridente, como uma criança. Mostre a eles que você está à altura deles. — Eu sei — falou Audric para a mamatarh, depois se deu conta de que todos o observavam, e fingiu que começava outra sentença — ... que o regente não pôde ser encontrado em Nessântico e que provavelmente fugiu da cidade?

— Sim, kraljiki — falou o comandante irritado. Ele retesou o maxilar, os músculos encolheram-se debaixo da barba, e ele franziu os lábios depois da resposta. Co’Falla parecia conter as palavras que queria dizer.

Audric fez um gesto magnânimo na direção ao homem e falou — Prossiga. Esclareça para nós.

— Kraljiki — disse ele, e olhou para trás, para os demais. — Conselheiros. Este foi um ataque à Bastida orquestrado pelos numetodos; por quantos, ainda não temos certeza. Os portões principais foram arrancados com um feitiço, e perdi dois homens quando os suportes do lado norte caíram como resultado. Eu imediatamente mandei interditar a torre onde o regente estava preso, com medo de que um ataque direto pelos portões destruídos viesse a seguir, e despachei um mensageiro ao templo para chamar os ténis, a fim de neutralizar os feitiços numetodos. Mas, ao que parece, o ataque aos portões foi simplesmente um engodo para chamar nossa atenção. Quando não aconteceu ataque algum, eu pessoalmente levei gardai aos corredores do subsolo da Bastida, mas o embaixador ca’Vliomani e seus comparsas já haviam entrado; provavelmente muito antes do ataque ao portão.

— Você tem certeza de que o homem que viu era o embaixador ca’Vliomani? — perguntou Audric.

Co’Falla concordou com a cabeça. — Certeza absoluta, kraljiki. Quando ficou óbvio que não haveria ataque algum aos portões, eu levei um esquadrão aos corredores do subsolo, como disse. Nós confrontamos o embaixador ca’Vliomani e a numetodo Varina ci’Pallo com o prisioneiro; havia pelo menos outro numetodo nos corredores. Eles usaram feitiços contra nós. — Ele engoliu em seco. — Meus homens e eu fomos incapacitados.

Audric ergueu as sobrancelhas. — Incapacitados — falou o kraljiki demoradamente, como se saboreasse a palavra. — Mas não morto, embora, eu noto, tenha sido... ferido. Um arranhão no pescoço, que não foi pior que um cortezinho de navalha? Que sorte para todos nós!

Soaram risadas da parte dos conselheiros, com destaque para o riso debochado de Sigourney ca’Ludovici. O rosto de co’Falla ficou visivelmente vermelho.

— Kraljiki, conselheiros, eu conheço Sergei ca’Rudka desde que entrei para a Garde — disse ele. — Ele foi meu offizier superior e meu mentor. Ele me promoveu e me fez subir de patente; Sergei ca’Rudka, através de seu vatarh, kraljiki, me escalou para meu posto atual como comandante da Garde Kralji. Eu o considerava meu amigo, bem como meu superior. Eu presumo que a amizade dele é o motivo de meus homens e eu ainda estarmos vivos, kraljiki.

Audric não precisou do falatório da mamatarh para se levantar do trono ao ouvir isso. Ele apontou um dedo acusador para o comandante. — Na realidade, seu relacionamento e amizade com ele foram a causa de ca’Rudka ter escapado — rugiu o kraljiki em tom estridente ao conter a tosse. — Que conveniente que você tenha caído inconsciente exatamente na hora certa. Que conveniente que os numetodos conhecessem essa passagem secreta pelo rio. Que conveniente... — Audric não conseguiu prosseguir. Foi sobrepujado pela tosse naquele instante, e encolheu-se no Trono do Sol com o lenço de renda no rosto enquanto o corpo era acometido pelo ataque. Ele mal ouviu a ladainha de desculpas do comandante.

— Meu dever é com o kraljiki e Nessântico — insistiu co’Falla. — Isso suplanta qualquer amizade que eu possa ter com o regente. Eu lhe garanto, kraljiki, que agi exatamente como o senhor ordenou. Eu lhe garanto que teria cumprido a sua ordem de executar o regente, caso o senhor tivesse decidido que esse seria o destino dele. Vários dos meus homens foram feridos ou mortos no ataque; eu jamais, jamais teria permitido que isso acontecesse. Eu não abandonaria meu dever e juramento ao serviço militar pelo bem de uma amizade. Jamais.

Audric ainda recuperava o fôlego enquanto limpava os lábios com o lenço. Marlon, ajoelhado e inclinado para frente nos degraus do tablado do trono, ofereceu outro lenço, que Audric pegou entregando o manchado para o criado. Foi Sigourney ca’Ludovici quem respondeu a co’Falla, e Audric escutou enquanto tossia baixinho no novo lenço. — Estas são belas e nobres palavras, comandante, mas... — Ela olhou solenemente em volta do salão. — Ora, eu não vejo o regente nem o embaixador ca’Vliomani algemados diante de nós, e pelo que o senhor nos disse, todos os numetodos notórios da cidade fugiram também. Como o kraljiki disse, que conveniente que eles tenham tido tempo e oportunidade para fazer tal coisa.

— Conselheira ca’Ludovici — falou co’Falla —, eu fico ofendido diante destas acusações. Assim que recuperei a consciência, eu despachei a Garde Kralji para guardar os portões e varrer a cidade; entrei em contato com o archigos Kenne para que ele mandasse alertar os utilinos em suas rondas; mandei uma mensagem ao Guardião dos Portões e pedi que vasculhassem todos os albergues e estalagens. A senhora pode verificar essas ordens com meus offiziers.

— Mas seu amigo ca’Rudka e seus comparsas conseguiram escapar dessa bela e maravilhosa rede que o senhor colocou em torno da cidade — respondeu ca’Ludovici. — Como ele é esperto. — Novamente veio a risada dos outros conselheiros.

Audric recuperou a compostura e dobrou o lenço manchado de sangue na mão. O rosto de co’Falla estava ainda mais vermelho do que antes, e o kraljiki ergueu a mão para interromper o protesto do comandante. — Eu decreto que Sergei ca’Rudka não tem mais status algum nos Domínios. Que a Gardes a’Liste registre o nome dele simplesmente como Sergei Rudka, de agora em diante. O mesmo para o embaixador ca’Vliomani; ele perdeu o status diplomático e agora é conhecido apenas como Karl Vliomani, sem nenhum posto aqui. Quando forem encontrados, a pena para eles será a morte imediata.

Audric ouviu o murmúrio de prazer da mamatarh e os sussurros dos conselheiros, que concordaram. — Quanto a você, comandante co’Falla — falou ele, e co’Falla ajeitou os ombros e pareceu olhar além do kraljiki —, também é necessário haver julgamento.

— Kraljiki — disse co’Falla, de queixo empinado e com olhos ocultos —, eu tenho família aqui e presto serviço leal ao Trono do Sol desde minha décima-sexta temporada. Eu peço aos senhores que considerem isso.

— Nós consideramos — falou Audric. — Nós também consideramos que você falhou com seu juramento e falhou com seu kraljiki. — Mostre a eles. Mostre a eles que você também pode ser a Spada Terribile. Mostre sua força e sua determinação. Audric levantou-se do Trono do Sol e enfiou o lenço de renda na manga da bashta azul e dourada. Ele deu alguns passos para ficar na frente de co’Falla e sentiu o olhar de aprovação de Marguerite as suas costas. Sua cabeça bateu na altura do peito do comandante; ele teve que erguê-la para ver o rosto do homem e ficou furioso por causa disso. — Nós exigimos a espada de seu cargo, comandante. — O kraljiki estendeu a mão.

A expressão de co’Falla ficou séria e vazia. Ele soltou o cinto da bainha, e os fechos de metal tilintaram como uma música. Co’Falla colocou a arma na mão estendida de Audric. O kraljiki pensou ter visto um leve traço de satisfação no rosto do homem quando o peso inesperado do aço quase fez Audric deixar a espada cair, a mão caiu e o cinto de couro da bainha enroscou-se sobre o piso de mármore do salão. O kraljiki virou-se de lado para co’Falla e sacou a lâmina da bainha. O aço retiniu: era a arma de um guerreiro, não um objeto de enfeite lustroso, entalhado e cravejado de joias que a maioria do Conselho dos Ca’ portava. Audric ergueu a lâmina com admiração e viu os pequeninos arranhões onde o gume fora recentemente afiado, o brilho da cobertura de óleo na superfície. A espada de um guerreiro. A espada que dava sinal de ter tido muito uso e muita morte.

Audric sorriu.

Sem aviso prévio, ele empunhou a arma na horizontal e girou o corpo rapidamente, enfiando fundo a ponta afiada e triangular da espada no estômago de co’Falla, e gemeu diante da resistência inesperada do tecido e dos músculos. O comandante ofegou, ficou boquiaberto e arregalou os olhos. As mãos de co’Falla pegaram a lâmina enquanto Audric continuava a empurrar com toda força e a enterrar a espada fundo na barriga do homem. O sangue espalhou-se rapidamente e fluiu pela calha central na direção do punho que o kraljiki segurava. Co’Falla tomou fôlego pela segunda vez e verteu sangue pela boca aberta, seus joelhos cederam, o homem caiu e arrancou a espada da mão de Audric. O kraljiki ouviu os conselheiros ficarem de pé ao mesmo tempo, horrorizados.

A mamatarh riu dentro de sua cabeça.

Muito benfeito, disse ela para o neto. Benfeito mesmo!

Audric foi até o corpo que estrebuchava, olhou nos olhos do moribundo e falou — Agora nós realmente não temos que nos preocupar com sua incompetência. — Ele tossiu violentamente pelo esforço, mas não se importou com as gotículas vermelhas que caíram sobre o rosto e o peito do homem. Co’Falla olhou Audric fixamente e pestanejou. O kraljiki arrancou a espada do estômago do sujeito e colocou a ponta sobre o peito, sentiu quando ela entrou entre as costelas. — E lhe concedemos um último favor: uma morte rápida. — Audric colocou todo o peso no cabo e empurrou. Mais sangue jorrou da boca de co’Falla, e o homem ficou imóvel.

Excelente! Você é realmente meu verdadeiro herdeiro, muito mais forte que seu vatarh...

Audric voltou-se para o Conselho dos Ca’ e espalmou as mãos ensanguentadas. O rosto de Sigourney ca’Ludovici ficou pálido, e ela olhava mais para o cadáver de co’Falla do que para o kraljiki.

— Parece que precisamos de um novo comandante — disse Audric para os conselheiros.

 

 

Allesandra ca’Vörl

— ISSO NÃO ERA O QUE EU QUERIA, matarh. Fynn deveria ser o hïrzg, e caso não fosse ele, então a senhora. Não eu.

Allesandra tirou fios imaginários dos ombros da bashta com apliques dourados que Jan usava, com a faixa do cargo de hïrzg sobre o tecido preto e prateado. Ela tocou a bochecha do filho e sorriu. Ele já tinha ficado mais alto do que a matarh nos últimos dois anos; Jan ficaria ainda mais alto. — É melhor assim — disse Allesandra. — Firenzcia terá um hïrzg forte por muitas décadas, que é o que precisamos.

— Eu não entendo. — Jan olhou para ela, com a cabeça ligeiramente inclinada. — Por que a senhora fez isso? Por que abdicou de ser a hïrzgin? Todas aquelas histórias sobre o vavatarh ter tirado este direito da senhora, de tê-la ignorado em favor do onczio Fynn...

— Eu não queria. — Allesandra viu o espanto no rosto do filho. Jan sempre foi uma criança que revelava os pensamentos pelas expressões. Vou ter que trabalhar essa questão com ele. É algo que Jan precisa aprender. Ela sorriu e tocou a bochecha do rapaz. — É verdade, querido. Realmente. Agora, vamos: os ca’ e co’ vieram encontrar seu novo hïrzg, e não podemos fazê-los esperar.

Allesandra acenou com a cabeça para o comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg, que esperava pacientemente a uma passada e meia de distância dos dois trajando uniforme de gala. O homem prestou continência e ergueu a mão. Em resposta, Roderigo, que se tornou o assistente de Jan, gesticulou para os criados, que correram para seus postos. O som das cornetas ecoou pelo ar agradável da noite quando os atendentes abriram as portas duplas que levavam ao salão principal. Jan fez uma pausa e não se mexeu; Allesandra gesticulou para ele e disse — Você primeiro. É você que eles querem ver.

Quando Jan entrou, os aplausos surgiram e se avolumaram, entremeados por berros de comemoração e gritos de “hurra, hïrzg Jan!”. Ele parou na porta como se estivesse preso ao lugar pela aclamação e ergueu os braços lentamente, quase arrependido, para aceitá-la. — Ande — sussurrou Allesandra ao ver que o filho continuava parado ali. — Vá até eles.

Jan olhou para trás. — Com a senhora, matarh — falou e ofereceu o braço. Ela deu um passo à frente para aceitá-lo e sorriu quando pousou a mão no braço ao filho. Os aplausos aumentaram e envolveram os dois.

Allesandra olhou para a multidão radiante. As cores preto e prata predominavam, como em todas as comemorações firenzcianas, refletindo as cores dos estandartes pendurados no alto das paredes. Luzes mágicas reluziam intensamente nos candelabros e iluminavam os ca’ e co’ de Brezno, todos reunidos e voltados para os dois. Os rostos mostravam sorrisos, alguns genuínos, mas muitos escondendo preocupação, incerteza e desconfiança. Ninguém conseguiria deixar de ver o número de homens da Garde Hïrzg postados nas laterais do salão que andavam cuidadosamente entre a multidão, com olhares sérios e atentos, nem o comandante co’Göttering, que entrou no salão imediatamente atrás de Jan e Allesandra, nem a presença chamativa do starkkapitän ca’Damont, bem como seus vários offiziers chevarittai. Firenzcia tinha perdido dois hïrzg em menos de um ano agora, e os ca’ e co’ sabiam que a a’hïrzg passara o cajado e a espada para o filho, que eles conheciam pouco, apesar do recente destaque. Era óbvio que Firenzcia planejava não sofrer mais perdas.

Firenzcia estava acostumada a mudanças: na vida de muitos que aplaudiam a entrada de Allesandra e Jan, eles vivenciaram uma grande batalha perdida para Nessântico; viram a própria Allesandra ser feita de refém; testemunharam seu querido vatarh abandoná-la em nome do irmão mais novo; tremeram quando o velho hïrzg Jan separou-se dos Domínios e criou a Coalizão; testemunharam a separação da própria fé concénziana, com a rebelião do archigos ca’Cellibrecca contra o velho trono em Nessântico e a ascensão da archigos Ana; vibraram com o fortalecimento da Coalizão a cada ano que passava, pois parecia que um dia poderia até mesmo ofuscar os Domínios.

Na vida dos ca’ e co’, Firenzcia passou de criado dos Domínios a seu maior rival. A luz de Brezno agora rivalizava com a da própria Nessântico.

Eles sentiam-se otimistas a respeito de Firenzcia e do ramo breznoniano da fé concénziana, mas este ano acabou com muito daquele otimismo. Allesandra sabia que os ca’ e co’ vibravam agora mais pela esperança que o novo hïrzg Jan representava do que pelo próprio Jan.

Se eles soubessem o que ela planejou... Allesandra perguntou-se que caras os ca’ e co’ fariam e se conseguiriam sorrir de alguma maneira.

Semini estava na frente do público, com a equipe de ténis vestidos de verde atrás. Allesandra segurou na mão de Jan quando os dois desceram os degraus. Conforme a multidão começava a se juntar em volta de Jan, muitos com filhas jovens e solteiras a tiracolo, Allesandra apertou o braço do hïrzg e sussurrou — Seja educado com seus súditos. Você nunca sabe de qual deles poderá precisar como aliado... ou como esposa.

— Aonde você vai, matarh? — sussurrou Jan de volta, e ela ouviu apreensão em sua voz.

— Não se preocupe; eu estarei aqui e resgatarei você se notar algo estranho. Preciso falar com o archigos ca’Cellibrecca. — Allesandra acenou com a cabeça para os ca’ e co’ enquanto estes se reuniram em volta de Jan, escapou no meio da multidão e cumprimentou aqueles por quem passava. A música havia recomeçado, mas a maioria no salão ignorava o chamado para dançar a fim de ter um momento com o novo hïrzg. — Archigos — disse ela ao chegar a Semini, que estava do lado do público. Seus o’ténis assistentes, que sorriram e fizeram o sinal de Cénzi para Allesandra, afastaram-se quando ela chegou e retornaram cuidadosamente às próprias conversas.

Semini acenou com a cabeça para Allesandra e fez o sinal de Cénzi, depois ofereceu as mãos para ela. Allesandra as segurou e apertou os dedos por um instante antes de soltá-las. Eles não tiveram uma oportunidade de ficar juntos desde o encontro na Encosta do Cervo, há mais de um mês, mas houve cartas e recados cuidadosamente elaborados. Ela sabia como queria que esta noite acabasse. Os preparativos já tinham sido feitos: Semini iria aos aposentos de Allesandra após a recepção. Ela sorriu. — É tão bom vê-lo novamente, archigos. Como vai sua esposa na noite de hoje? Eu esperava ver Francesca com você. — Sempre educada em público, sempre dizendo as coisas certas.

— Ela não está... se sentindo bem e pede desculpas à senhora e ao hïrzg. Na verdade, Francesca não vem se sentindo bem há algum tempo, eu cuidei para que ela fosse para as estâncias de Kishkoros. Francesca ficará lá mais uma semana; eu soube que as estâncias são bem revigorantes e renovadoras.

Allesandra concordou, contente com a notícia: isso remove um empecilho para nosso caso. — São sim. Tenho certeza de que o descanso fará maravilhas para a saúde de Francesca, embora eu espere que isso não lhe deixe muito solitário. — Ela apertou a mão de Semini novamente.

Ele deu um sorriso ao ouvir isto, talvez largo demais. Allesandra viu um dos o’ténis erguer as sobrancelhas na direção dos dois e soltou as mãos do archigos. — Tenho certeza de que o trabalho me impedirá de sentir muita falta de Francesca. Há muita coisa que a Fé pode fazer para ajudar o novo hïrzg, não acha?

— Eu sei que Jan ficará muito grato a você, archigos. Assim como eu. — Ela deu uma olhadela para a aglomeração de gente em volta de Jan. Ele sorria abertamente, cumprimentava mãos e tocava em ombros, e havia jovens reunidas ao seu redor. Apesar da apreensão mais cedo, Jan parecia estar se divertindo. O nó no estômago de Allesandra afrouxou um pouco. O comandante co’Göttering permanecia ao lado do hïrzg e observava atentamente, com a mão nunca longe da espada ao lado. Allesandra suspeitava que, apesar da elegância dourada do cabo, a lâmina do comandante era bem útil. Aliás, ela sabia que o próprio Semini era um excelente téni-guerreiro e não tinha dúvidas de que os outros ténis com ele eram o mesmo.

Jan estava a salvo aqui. Allesandra poderia aproveitar a noite e ver as manobras sociais dos ca’ e co’ que foram convidados. — Uma vez que a conselheira ca’Cellibrecca não pôde estar aqui — disse ela para Semini —, talvez você possa dançar comigo mais tarde?

Os dentes brancos reluziram sob a barba grisalha; ele abaixou levemente a cabeça. — Eu adoraria muitíssimo. Gostaria de caminhar comigo, a’hïrzg? Meus ténis montaram um belo arranjo no jardim, e eu gostaria de mostrá-lo para a senhora. — Semini ofereceu o braço para Allesandra, que hesitou um momento; os ca’ e co’ podiam não estar prestando tanta atenção a ela quanto ao filho, mas notariam. Eles sempre notavam. Mas Allesandra deu a mão ao braço oferecido e deixou que Semini a conduzisse a uma das sacadas no mezanino do salão. Os o’ténis do archigos, notou ela, se posicionaram cuidadosamente nas portas da sacada quando os dois passaram e ficaram voltados para o salão, de maneira que, quando Allesandra olhou para trás, não viu nada além de costas vestidas de verde, embora as portas permanecessem educadamente abertas.

— Eles são bem treinados — disse ela, e Semini sorriu.

— E são bem discretos. Veja. — O archigos se dirigiu para o lado esquerdo da sacada, onde mesmo que alguém tentasse olhar do salão sobre a parede de o’ténis não conseguiria ver facilmente os dois. Lá embaixo, os jardins do Palácio de Brezno estavam acesos com bolas de luz brilhante que flutuavam suavemente nas alamedas: tons intensos de púrpura e azul, vermelhos reluzentes, verdes da cor da grama na primavera, amarelos mais fortes do que girassóis. A noite estava fresca e agradável, e as estrelas imitavam o jardim em um céu decorado com nuvens prateadas. Os casais na recepção perambulavam pelo labirinto dos jardins, de mãos dadas.

O calor de Semini cobria as costas de Allesandra, ele estava com os braços em volta dela e apertava o corpo contra o seu. — Eu senti sua falta, Allesandra.

— Semini... — Ela recostou-se no abraço e sentiu o desejo aumentar dentro de si. Ele tinha cheiro de sabonete, de óleo no cabelo e almíscar. Allesandra imaginou-se montada em Semini, movendo-se com ele.

Ela virou-se nos braços do archigos e empinou o rosto. Eles beijaram-se, e Allesandra sentiu os pelos macios da barba em sua bochecha e o ímpeto da língua na boca, as mãos do archigos desceram para pegar suas nádegas e apertá-la contra ele. A a’hïrzg entregou-se ao beijo, fechou os olhos e se permitiu sentir, notar o calor que passava por ela como uma maré lenta e implacável. Allesandra afastou-se, relutante, o fôlego era quase um lamento, e virou-se novamente para relaxar contra o corpo do archigos. Ela olhou para a luz, para os amantes furtivos em momentos secretos no jardim lá embaixo. — Semini... — Allesandra começou a falar...

... Mas o aumento do barulho no interior do salão afastou Allesandra do archigos, cheia de culpa. Eles ouviram gritos, e no momento em que a a’hïrzg virou-se, preocupada, ela ouviu um dos o’ténis falar alto demais: — ... deixe-me buscar o archigos para o senhor...

O comandante co’Göttering empurrou a porta da sacada e irrompeu noite afora, seguido por um trio de inúteis o’ténis. — A’hïrzg, archigos — falou o homem. Quaisquer que fossem os pensamentos que ele possa ter tido ao ver os dois próximos e sozinhos na sacada foram cuidadosamente dissimulados. — A sua presença é exigida no salão.

— Qual é o problema, comandante? — perguntou Allesandra. — Eu ouvi gritos. Jan está...?

— O hïrzg está bem. Há notícias e... um convidado. Por favor... — Co’Göttering gesticulou para a porta; Allesandra e Semini seguiram o comandante em direção à claridade do palácio e da escada do mezanino. A a’hïrzg viu um quarteto de homens da Garde Hïrzg em volta de Jan, enquanto os ca’ e co’ ficavam boquiabertos, e com eles um homem sujo de viagem. No meio da escada, o sujeito se virou e, na luz, Allesandra viu o brilho de metal no rosto: um nariz feito de prata reluzente. E o rosto...

Allesandra ficou sem fôlego. Ela conhecia o homem. Conhecia muito bem, e parecia impossível que ele estivesse aqui em Brezno.

 

Enéas co’Kinnear

NESSÂNTICO...

Enéas quase chorou quando viu as torres e domos dourados novamente, quando vislumbrou a faixa perolada da Avi a’Parete brilhando à noite, quando ouviu as trompas do Templo do Archigos que anunciavam, em tom de lamúria, as Chamadas para a prece. A grande cidade, a maior de todas as cidades: ela era uma visão que, por muitas vezes quando serviu nos Hellins, ele duvidou que tivesse permissão para ver de novo.

E Enéas não teria tido o prazer se não tivesse sido abençoado com a graça de Cénzi. Disso, ele tinha certeza — não, ele teria morrido nos Hellins. Deveria ter morrido lá. Enéas parou a carruagem no Morro Corcunda, do lado de fora da cidade ao longo da Avi a’Sutegate, desceu e gesticulou para o condutor prosseguir. Enquanto a carruagem descia o morro se sacolejando, na direção do Portão Sul e de pontos de referência conhecidos, Enéas ficou em um joelho só, com as mãos entrelaçadas na testa, e rezou para agradecer a Cénzi.

Ainda há uma tarefa que resta você fazer, Enéas ouviu a resposta de Cénzi enquanto olhava o cenário maravilhosamente familiar diante dele: o rio A’Sele, que reluzia ao abraçar a Ilha A’Kralji, com as quatro pontes arqueadas sobre as águas. Então sua dívida Comigo estará realmente paga, e eu lhe aceitarei plenamente nos Meus braços...

Enéas sorriu, levantou-se e desceu devagar em direção à cidade que amava.

Naquela noite, ele deu os papéis do comandante ca’Sibelli e seu próprio relatório verbal ao gabinete da Garde Civile, embora o e’offizier presente parecesse distraído e nervoso. — Há notícias dos Hellins? — perguntou Enéas. — Mais recentes do que as que eu contei?

O e’offizier fez que não com a cabeça. — O seu é o último relatório que recebemos, o’offizier. — Ele abaixou a voz num sussurro conspiratório. — Cá entre nós, eu sei que o comandante co’Ulcai está muito preocupado; ele esperava receber mensagens expressas dos Hellins nas últimas semanas, mas elas não vieram. Quanto aos eventos aqui na cidade, bem... — O homem falou da fuga do regente, da participação dos numetodos e da execução do comandante co’Falla da Garde Kralji como punição. Ele inclinou-se para frente a fim de sussurrar para Enéas. — Vá à Pontica a’Brezi Veste e o senhor verá o corpo do comandante pendurado para servir de comida para os corvos. Cá entre nós, isso deixou o comandante co’Ulcai preocupado, uma vez que ele e co’Falla eram protegidos do regente e indicados pelo próprio. O kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, pode vir a desconfiar daqueles que tenham um tiquinho de lealdade pelo velho regente. Só podemos torcer para que o kraljiki Audric acabe sendo tão forte e sábio quanto sua mamatarh, mas... — O e’offizier deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Só Cénzi sabe.

— Realmente — respondeu Enéas. — Só Cénzi sabe. Essa é a única verdade.

O offizier carimbou a papelada e informou que a agenda de co’Ulcai estava cheia no dia de hoje, mas que o comandante poderia chamar Enéas para dar o relatório em pessoa, e que ele estava liberado de outras tarefas na próxima semana. Enéas recebeu uma chave e um quarto, onde colocou a mochila com cuidado, longe do fogo na lareira e da janela, onde o calor do sol poderia alcançá-la.

Depois, ele seguiu pela Avi a’Parete para a praça onde ficava o Templo do Archigos, cheia de pombos sobre as lajotas ou voando com precisão militar em esquadrões no céu, que depois pousavam onde alguém talvez tivesse deixado comida cair. Enéas andou devagar e apreciou as vistas e os odores da cidade, sentiu o gosto do ar carregado na boca. A presença da cidade abraçou Enéas como uma matarh, ele foi completamente envolvido pelo miasma perfumado e quase soluçou pelo puro alívio da sensação. Vindas da Avi, as pessoas entravam aos borbotões na praça, e Enéas percebeu que era quase a Segunda Chamada, bem no momento em que as trompas começaram a soar nos grandes domos dourados. Ele juntou-se às pessoas que entravam no templo. Algumas reconheceram seu uniforme, com a faixa vermelha dos Hellins proeminente na transversal, e sorriram para Enéas, gesticulando para que ele entrasse na fila. — Obrigado por servir ao país, offizier — disseram para ele. — Nós reconhecemos tudo o que o senhor está fazendo por lá. — Enéas devolveu o sorriso ao passar pelas grandes portas de bronze, com os corpos emaranhados dos moitidis que jorravam do peito dilacerado de Cénzi, e entrou na penumbra fria e com cheiro de incenso do templo.

Ele sentou-se perto do coro, logo abaixo do Alto Púlpito, e jogou a cabeça para trás para ver o telhado distante, cheio de vigas. Através do vitral bem acima de Enéas, a luz radiante trespassava a penumbra. Ele ouviu o cântico dos acólitos nas alcovas quando as trompas se calaram e a procissão de ténis entrou no coro pela porta dos fundos. Enéas ficou com o resto da congregação e sorriu com prazer ao se dar conta de que seria o próprio archigos a dar a Admoestação e a Bênção hoje. Cénzi realmente o recompensou. Quando ele foi embora de Nessântico, há tanto tempo, tinha sido a archigos Ana que dera a Bênção ao batalhão prestes a partir, aqui neste mesmo espaço.

Agora seria o sucessor da archigos que o abençoaria novamente, quando Enéas tinha uma nova e mais importante missão a cumprir.

Ele escutou pacientemente à Admoestação do archigos. Ela foi permeada por um pedido de tolerância, o que soou estranho para Enéas, e o archigos Kenne citou versículos do Toustour que falavam do respeito por visões diferentes. Ele aconselhou os presentes no templo a não fazer julgamentos precipitados: — Às vezes, a verdade está escondida até mesmo daqueles que estão mais próximos. Deixem Cénzi julgar os outros, não nós. — Este, pelo menos, era um conselho que Enéas podia seguir, sendo guiado pela voz de Cénzi.

Após a cerimônia, ele foi até o parapeito com os demais suplicantes. O archigos Kenne percorreu a fila lentamente e parou para falar com cada um deles. Aos olhos de Enéas, o velho téni parecia cansado e abatido. Sua voz era fraca e estridente, o que indicou para Enéas que ela foi aprimorada com o Ilmodo pelo archigos (ou por um dos outros ténis) para que soasse forte e confiante ao dar a Admoestação. Enéas abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi quando o archigos, com um cheiro de incenso entranhado no robe, parou diante dele. — Ah, um offizier da Garde Civile — falou o archigos. — E com uma faixa das Terras Ocidentais, ainda por cima. Nós lhe devemos gratidão pelo seu serviço ao país, o’offizier. Por quanto tempo o senhor serviu lá?

— Por mais tempo do que eu gostaria de lembrar, archigos. Retornei hoje à Nessântico.

A mão enrugada e seca do archigos roçou na cabeça baixa de Enéas, e os dedos encostaram no cabelo oleoso. — Então deixe que a Bênção de Cénzi lhe dê boas-vindas à cidade. Há alguma bênção específica que eu possa lhe oferecer, o’offizier?

Enéas levantou a cabeça. Os olhos do archigos eram de um tom cinza esbranquiçado e começavam a dar sinais de catarata; a cabeça tremia de leve, sem parar, mas o sorriso parecia genuíno, e Enéas viu-se devolvendo o sorriso, dizendo — Eu sou um simples guerreiro. Um offizier serve às ordens que recebe. Eu tirei muitas vidas, archigos, mais do que sou capaz de contar, e com certeza tomarei mais até parar de servir.

— E o senhor quer o perdão de Cénzi por isso? — perguntou o archigos, cujo sorriso aumentou. — O senhor estava apenas cumprindo seu dever e...

— Não. — Enéas interrompeu e balançou a cabeça. — Eu não me arrependo do que fiz, archigos.

O sorriso sumiu, incerto. — Então o que...?

— Eu gostaria de me encontrar com o kraljiki. Ele tem que saber o que está acontecendo nos Hellins. O que está acontecendo de verdade.

— Eu tenho certeza de que o kraljiki se informa através do comandante... — O archigos começou a dizer, mas Cénzi falava com Enéas, e ele repetiu as palavras que ouviu na cabeça.

— A essa altura, o comandante ca’Sibelli está morto — falou Enéas em voz alta. — Pergunte ao kraljiki que notícias chegaram dos Hellins. Ele não terá ouvido nada, archigos. Não há notícias dos Hellins porque simplesmente não sobrou ninguém para enviá-las. Acabou. Pergunte ao kraljiki, e quando ele responder que os navios expressos não vieram, diga que eu posso dar o relatório que o kraljiki precisa ouvir. Eu sou a única pessoa capaz disso. Aqui... — Ele colocou um cartão de visitas com seu nome e atual endereço no parapeito. — Por favor, pergunte a ele quando o senhor o vir novamente. Esta é a dádiva e a bênção que peço ao senhor, archigos. Apenas isso. E Cénzi também faz esse pedido ao senhor. Escutou? Não ouviu Sua voz? Ouça, archigos. Ele chama o senhor através de mim.

— Meu filho... — O archigos começou a falar, mas foi interrompido por Enéas.

— Eu não sou um soldado com a mente perturbada pelo que viu, archigos. Fui salvo por Cénzi para trazer esta mensagem ao kraljiki. Eu ofereço minha mão ao senhor quanto a isso. — Enéas estendeu a braço para o archigos e ouviu a voz grave de Cénzi em sua cabeça ao tocar o pulso do velho. — Dê ouvidos a ele. Eu ordeno. — E o archigos arregalou os olhos como se tivesse escutado a voz também. Ele puxou a mão, e a voz morreu.

— Pergunte ao kraljiki por mim — falou Enéas. — É tudo o que eu peço. Pergunte a ele. — Enéas sorriu para o archigos e ficou de pé. Os outros suplicantes e os ténis presentes olharam fixamente para o offizier. O archigos Kenne ficou boquiaberto enquanto olhava para a própria mão, como se ela fosse um corpo estranho.

Enéas fez o sinal de Cénzi para todos e saiu do templo, as botas ecoaram alto no silêncio.

 

Niente

As forças do tecuhtli Zolin e o exército tehuantino estavam dispostas à cautelosa distância de um tiro de flecha das grossas muralhas de defesa de Munereo.

Três dias de batalha fizeram a Garde Civile recuar para dentro das muralhas. O tecuhtli Zolin foi ao mesmo tempo agressivo e impiedoso no ataque. O comandante ca’Sibelli mandou um grupo de negociação para o acampamento tehuantino depois do primeiro dia de batalha, quando Zolin fez a Garde Civile fugir dos campos altos e amplos ao sul da cidade. Niente estava lá no momento em que o grupo de negociação chegou com a bandeira branca; ele viu Zolin ordenar que seus guardas pessoais matassem os negociadores e mandassem as cabeças decepadas para o comandante ca’Sibelli como resposta.

Eles atacaram a força principal da Garde Civile na alvorada da manhã seguinte; naquela noite, os tehuantinos avistavam as muralhas de Munereo e o porto, onde estava ancorada a frota dos Domínios.

Agora era alvorada de novo, e o tecuhtli Zolin havia convocado Niente. Zolin reclinou-se em um amontoado de travesseiros coloridos; os guerreiros supremos Citlali e Mazatl também estavam com ele. Atrás do tecuhtli, havia um artista debruçado sobre a cabeça recém-raspada de Zolin; perto do homem havia uma mesinha coberta por agulhas em formato de unha de dragão e potes de tinta. O escalpo de Zolin fora pintado com a águia de asas abertas que era a insígnia do tecuhtli; agora o tatuador se preparava para marcar a pele permanentemente. Ele pegou uma agulha, mergulhou no pigmento vermelho e pressionou no escalpo de Zolin: o guerreiro fez uma careta sutil. — Os preparativos dos nahualli estão prontos? — perguntou o tecuhtli para Niente, enquanto o tatuador rapidamente mergulhava a agulha novamente e pressionava na cabeça de Zolin, sem parar. O sujeito limpava com um pano o sangue que gotejava e escorria.

— Sim, tecuhtli — respondeu Niente. — Nossos cajados mágicos foram renovados, por outros saudáveis o suficiente para realizar a tarefa. — Ele ergueu o próprio cajado e mostrou as águias entalhadas que davam voltas abaixo da cabeça lustrosa e grossa. — Nós perdemos dois punhados de nahualli na batalha; outro punhado e um estão feridos demais para serem úteis hoje. Todo o resto está pronto. — Niente acenou com a cabeça para os dois guerreiros supremos. — Eu dispus os nahualli conforme Citlali e Mazatl pediram.

— E a areia negra?

— Foi preparada — falou Niente. — Eu mesmo supervisionei.

— A tigela premonitória? O que ela lhe disse?

Niente passou a maior parte da noite olhando as águas, que lhe renderam apenas visões turvas e enevoadas, bem como exaustão e uma face e mãos que pareciam ter adquirido mais uma teia de finas rugas da noite para o dia. Ele ficou confuso pelos rápidos vislumbres de futuros possíveis, mas sabia o que Zolin queria escutar e sacou da mente uma daquelas visões efêmeras. — Eu vi o senhor dentro da cidade, tecuhtli, e o comandante dos Domínios a seus pés.

Zolin abriu um largo sorriso e disse — Então é chegado o momento. — Ele levantou-se e quase derrubou o tatuador, que deu um passo rápido para trás quando o tecuhtli pegou sua espada. Zolin deu tapinhas na cabeça que sangrava e sorriu. — Isso pode ser terminado depois. A batalha não pode esperar.

Quando eles saíram da tenda, os guardas entraram em posição de sentido. Do pequeno morro onde a tenda do tecuhtli ficava, eles podiam ver o exército espalhado lá embaixo e a névoa das fogueiras sendo levada pela brisa na manhã serena. As muralhas de Munereo surgiam altas mais ao longe na descida da encosta, e o sol cintilava na água da baía do outro lado, à direita. Zolin gesticulou, e um trio de trompas de guerra soou um chamado que foi repetido por outras trompas ao longo do acampamento, e Niente viu todo o exército se agitar como um formigueiro cutucado com um graveto. As fileiras de batalha começaram a se formar; os supremos guerreiros em seus cavalos encorajavam as tropas. Nas muralhas de Munereo, o sol nascente era refletido nos elmos de metal e nas pontas das flechas enquanto as tropas dos Domínios esperavam pelo ataque.

Seus próprios cavalos foram trazidos, e eles montaram. Citlali e Mazatl prestaram continência a Zolin, cutucaram os animais e dispararam a galope. — Você fica comigo, nahual — falou Zolin. — Agora! — Ele também cutucou o cavalo com o pé, e Niente seguiu o galope do tecuhtli morro abaixo, na direção onde as tropas esperavam na encosta, quase niveladas com o topo das muralhas de Munereo. Os soldados abriram espaço rapidamente para deixá-los passar e soltaram gritos de apoio e admiração.

Antes do encantamento profundo realizado no oriental, Niente teria sido capaz de cavalgar o dia inteiro com qualquer pessoa. Agora, a batida dos cascos do cavalo no chão atingiu o corpo como marteladas. O máximo que conseguiu fazer foi se firmar às costas do animal com joelhos trêmulos. Zolin cavalgou até o centro da linha de frente das forças tehuantinas, onde a bandeira da águia fora plantada no meio da estrada tortuosa que descia até o portão ocidental de Munereo. Lá, um punhado de dragões de cerco aguardava. Zolin, de cima do cavalo, deu um tapinha na enorme cabeça pintada e entalhada de um dos dragões. — Os deuses nos prometeram vitória hoje! — berrou ele para quem estava em volta. Zolin apontou para a cidade à espera, morro abaixo. Os rostos marcados dos guerreiros estavam erguidos para ele, e os homens vibraram. Niente tinha que admitir que Zolin tinha o carisma que faltava ao tecuhtli Necalli: a expressão no rosto dos soldados indicava que eles o seguiriam até mesmo nas profundezas de uma das montanhas fumegantes. — Hoje, faremos um banquete onde os orientais jantaram, levaremos suas riquezas e os sobreviventes de volta para nossas cidades, e esta terra será devolvida aos nossos primos, que já foram seus donos!

Eles vibraram novamente, mais alto que antes. Zolin soltou uma gargalhada alta e deu tapinhas no dragão de cerco outra vez. — Está na hora! — berrou. — Hoje, vocês encontrarão a vitória ou a paz com os deuses!

Zolin gesticulou, e as trompas de guerra soaram a ordem para avançar. As fileiras estremeceram e começaram a avançar, e o tecuhtli Zolin, ao contrário de Necalli, Niente teve que admitir novamente, cavalgou bem à frente, sem penas na cabeça, para que todos pudessem ver a águia no crânio. O avanço começou lento, os soldados prosseguiram em ritmo de caminhada. Conforme desciam a encosta, as muralhas de Munereo pareciam se elevar, ficavam cada vez mais altas enquanto os tehuantinos se aproximavam até estarem sob sua longa sombra. Os dragões de cerco, montados em carroças, rangeram e gemeram quando começaram a descer a estrada, reclamaram ao serem empurrados encosta abaixo na direção das muralhas e dos enormes portões com barras. Zolin parou, Niente fez o mesmo: havia uma movimentação nas muralhas, de repente, uma chuva de flechas diminuiu a luz do sol e fez um arco no ar que foi seguido momentaneamente pelo estalo de mil cordas de arcos. — Escudos! — berrou Zolin, e os guerreiros ao redor ergueram os escudos de madeira para formar um teto temporário, vários levantaram o bastante para proteger tanto Zolin quanto Niente em seus cavalos. A chuva de flechas caiu furiosa e cravou as tábuas de madeira pintadas e presas com tiras de couro, algumas flechas passaram entre os escudos e pegaram alguns guerreiros azarados, mas a maioria bateu na madeira inofensivamente. — Abaixar! — gritou Zolin, e a parede de escudos foi abaixada, os soldados golpearam as hastes com as espadas. O chão ficou repleto de flechas quebradas.

Agora o avanço acelerou. Niente ergueu o cajado mágico no alto, pois sabia o que viria a seguir e berrou — Nahualli! Preparam-se! — Ele ouviu o cântico ao longe e sentiu a agitação da energia do X’in Ka quando os ténis-guerreiros dos Domínios lançaram os próprios encantamentos. Bolas de fogo irromperam sobre as muralhas de Munereo e se lançaram estridentes na direção dos tehuantinos em um rastro de fumaça. Niente sacudiu o cajado mágico apontado para a bola de fogo mais próxima e falou a palavra de ativação: ela explodiu enquanto ainda estava no ar e diante dos tehuantinos, o fogo assobiou ao morrer em fagulhas reluzentes que caíram sobre eles. Outra bola de fogo caiu ilesa nas forças tehuantinas à direita de Niente, e, mesmo ao longe, o calor e o impacto da explosão eram assustadores. Onde as bolas de fogo caíam, guerreiros gritavam ao morrer. Elas abriam sulcos nas fileiras em avanço, mas os espaços eram rapidamente preenchidos por guerreiros das fileiras seguintes. Zolin fez a fileira correr devagar, os dragões de cerco pareciam gritar conforme as rodas de madeira davam solavancos no solo irregular.

— Empurrem! — rugiu Niente para os guerreiros em volta dos dragões de cerco. — Andem! — Agora ele finalmente foi tomado pela empolgação da batalha e não se sentia mais um velho prematuro. Seu sangue ferveu e o vento cantou em seus ouvidos. O punhado de dragões de cerco ganhou velocidade e começou a descer morro abaixo por conta própria. Os guerreiros ao redor não precisaram mais empurrá-los; os dragões tinham o próprio ímpeto agora, já passavam da linha de frente do inimigo. Flechas caíam sem parar e o teto de escudos era formado a cada ataque, como resposta, mas Niente mal notava. Ele observava os dragões de cerco, que agora voavam pela terra batida da estrada, com as mandíbulas pintadas e escancaradas ao correr na direção dos portões. Bolas de fogo avançavam em arcos, e novamente Niente e os outros nahualli dispararam feitiços para detê-las. Ele ouviu Zolin gritar ordens para os homens.

Os dragões de cerco voaram, os controladores ficaram bem para trás e gritavam conforme as carroças avançavam, rolando por conta própria. Três dragões acertaram a base das muralhas em ambos os lados dos portões, e dois bateram nos próprios portões.

As cabeças dos dragões estavam repletas de areia negra — mais do que Niente e os outros nahualli já haviam preparado antes. Bastões mágicos foram enfiados nos focinhos para responder com fogo ao impacto. Niente viu os bastões entrarem em chamas, e então...

Houve um estrondo, como se uma das montanhas de fogo da terra natal de Niente tivesse entrado em erupção, e a seguir veio um clarão de pura luz que fez o nahual erguer a mão aos olhos com atraso. Pedras do tamanho de cavalos saíram voando, algumas caíram sobre os tehuantinos mais próximos, mas houve gritos mais altos vindos do interior de Munereo. Havia um turbilhão de fumaça na cena que tornava impossível ver, mas quando ela se dissipou, lentamente, as forças tehuantinas soltaram um grito mudo.

Os portões foram rompidos. Onde eles estiveram, havia apenas um buraco enorme, e as grossas muralhas de apoio em volta desmoronaram. Enquanto os tehuantinos observavam, um trecho dos parapeitos entrou em colapso à direita, derrubando os defensores a 15 metros do chão. — Avante! — berrava Zolin. — Avante! — O exército tehuantino avançou em uníssono na direção da cidade, sem se importar com as flechas ou o fogo dos ténis-guerreiros. O próprio Niente viu-se avançando com eles, com o cajado de prontidão e a garganta rouca pelos gritos de exaltação.

Os tehuantinos entraram aos borbotões pelas muralhas quebradas de Munereo.


Nas ruas da cidade, a batalha foi acirrada, violenta e caótica. Assim que o exército tehuantino entrou, a população nativa rebelou-se em conjunto e usou como arma qualquer coisa que estivesse à mão para matar e saquear alegremente os responsáveis por sua escravidão. Os defensores orientais de Munereo viram-se atacados tanto pela frente quanto pela retaguarda.

Ao perceber a derrota, os remanescentes da força dos Domínios tentaram recuar para os navios na baía, mas Zolin despachara naus de guerra dos tehuantinos para a boca da baía, cada uma com um nahualli a bordo, e eles dispararam fogo mágico para queimar as velas e os mastros das embarcações dos Domínios; nenhuma escapou do porto da baía de Munereo.

Foi dito mais tarde que era possível ir andando dos destroços dos navios dos Domínios até a praia sobre os corpos dos mortos, e que a baía inteira ficou vermelha por uma semana por causa do sangue despejado das ruínas de Munereo.

Os tehuantinos encontraram o comandante ca’Sibelli encolhido de medo a bordo da nau capitânia da frota e levaram o oriental de volta às ruínas fumegantes da cidade. O tecuhtli Zolin mandou que o homem fosse arrastado para o interior do principal templo de Munereo e amarrado ao altar ali, o próprio Niente preparou uma garra de águia para o homem, e encheu o tubo curvo de osso com areia negra. Ele pronunciou o encantamento enquanto trabalhava: tudo que seria preciso era dar uma virada no chifre de marfim e apertar o gatilho no punho de madeira para riscar a pederneira e acender o pó negro. Niente levava a garra da águia enquanto acompanhava o tecuhtli Zolin ao templo, que estava lotado de guerreiros supremos e nahualli; ele viu Citlali e Mazatl ali, sentados na frente. Todos estavam cobertos de sangue, mas a maior parte não era deles. Zolin estava diante de ca’Sibelli, despido até a cintura e amarrado ao altar. O homem grisalho parecia aterrorizado ao ver o tecuhtli e gemeu. — Eu entreguei a cidade para o senhor... — disse o comandante na língua oriental. — O regente e o Conselho dos Ca’ pagarão meu resgate, o que o senhor pedir...

— Silêncio — falou Niente na mesma língua. — Agora é hora de rezar para o seu deus, se quiser.

— O que ele disse? — perguntou Zolin para Niente, que respondeu. O tecuhtli soltou uma gargalhada alta e falou — É assim que os orientais brincam de guerra? Eles compram e vendem seus prisioneiros? Será que os deuses dos orientais são tão fracos assim? Não me admira que eles fujam diante de nós. — Zolin fez um gesto de desdém para o homem. — Eles mal valem o sacrifício. Sakal e Axat ficarão mal alimentados com eles.

— O que ele está dizendo? — perguntou ca’Sibelli, que ergueu a cabeça e fez força contra as cordas que o prendiam. — Diga a ele que eu sei onde fica o tesouro. Há muito ouro.

Niente tirou a garra de águia da bolsa. Ca’Sibelli ficou calado ao olhar para ela. O comandante lambeu os lábios rachados e ensanguentados. — O que... o que é isto?

— É a sua morte — disse Niente. — Sakal e Axat exigem sua presença como líder.

— Não! — berrou o homem. A boca espumava saliva. — Vocês não podem fazer isto. Eu sou seu prisioneiro, seu refém. Peça por resgate...

Niente chegou perto do homem, que se contorcia. Ele sentiu o terror do oriental e falou com a maior delicadeza possível. — Isso vai acabar com a matança aqui na sua cidade. Sua morte paga pela morte de todos os seus soldados que capturamos, e eles serão poupados. Se você for bravo, comandante, se mostrar a Axat e Sakal que merece, será levado a Eles e viverá eternamente Neles. Eternamente. É uma dádiva o que oferecemos para você aqui. Uma dádiva.

O homem ficou boquiaberto, sem conseguir acreditar, mas o cântico de sacrifício tinha começado, baixo e sonoro, e ecoava na câmara. Os guerreiros e nahualli se agitaram com a prece. Ca’Sibelli virou a cabeça e olhou fixamente para eles, nervoso. O tecuhtli Zolin acenou com a cabeça para Niente, que tirou a garra de águia do cinto. Ca’Sibelli arregalou os olhos quando Niente girou o chifre de marfim até fazer um clique ao ficar no lugar.

Niente ficou ao lado do comandante e disse — Você deveria estar rezando. — A cabeça de ca’Sibelli balançava violentamente de um lado para o outro, como se pudesse negar o momento. O nahual pressionou a ponta do tubo curvo no estômago do homem enquanto ca’Sibelli se debatia freneticamente nas amarras. Niente suspirou; esta não seria uma boa morte. — Axat, Sakal, nós entregamos este inimigo aos Senhores — falou ele na própria língua. — Aceitem esta oferta como um sinal da Sua vitória.

Niente apertou o gatilho. Houve um clique, uma fagulha e depois uma explosão de carne e sangue.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI NÃO FICOU SURPRESO que tivessem retirado sua espada. Na verdade, ele perguntava-se se de alguma maneira sobreviveria a essa reunião.

A sala era pequena e excessivamente quente, decorada em típico estilo firenzciano, com tapeçarias escuras e pinturas simples com temas marciais, todas em homenagem a hïrzgai há muito tempo falecidos. O novo hïrzg Jan estava sentado em uma cadeira estofada ao lado da lareira, mas era óbvio que Allesandra, sentada à direita do filho, era o personagem principal aqui, em vez de o jovem hïrzg, que olhava fixamente para o nariz de Sergei, com a atenção presa ali. O archigos ca’Cellibrecca agigantava-se como um semideus ursino atrás do espaldar alto da cadeira do hïrzg, com a cara fechada. Os gardai que trouxeram Sergei foram dispensados (após outra revista minuciosa à roupa do regente, para garantir que estivesse desarmado; eles pegaram duas facas e só não notaram uma pequena lâmina fina, enfiada no salto e sola soltos da bota). Ao longe, Sergei ouvia os músicos tocarem uma gavota no salão lá fora, embora ele duvidasse que muitas pessoas na festa ainda dançassem. A maioria estaria conversando e fofocando, imaginado o que o regente de Nessântico fazia aqui em Brezno.

Ele tinha certeza de que os presentes na sala se perguntavam a mesma coisa.

— Hïrzg Jan — falou Sergei ao se curvar diante do jovem que tanto parecia com sua matarh. — Eu lhe agradeço por acolher um pobre refugiado e ofereço meus serviços como gratidão.

— Seus serviços, regente ca’Rudka? — Foi Allesandra quem falou. — O que aconteceu em Nessântico, regente, que agora você oferece serviços para aqueles com quem lutou como inimigo?

Sergei não via Allesandra há quase 16 anos; ela deixou o confinamento em Nessântico quando era pouco mais velha que o filho agora. Allesandra virou uma mulher adulta nesse meio tempo. Sergei ainda conseguia enxergar a jovem entusiasmada no rosto, mas havia uma nova austeridade ali, e rugas adquiridas por experiências que ele não tinha como saber. Não presuma que ela ainda é a mesma pessoa que você conheceu...

— Traições e maus bocados — respondeu Sergei, que resumiu os eventos dos últimos meses, incluindo a própria fuga da Bastida há dias. — Eu duvido que o kraljiki sobreviva por muito tempo — finalizou. — Suspeito que Sigourney ca’Ludovici será a kraljica dentro de um ano, talvez dois. — Ele olhou intensamente para Allesandra, que havia desviado o olhar contemplativo em meio à história. — Ela não tem mais direito ao Trono do Sol que algumas pessoas aqui — falou Sergei. Allesandra acenou levemente com a cabeça; Sergei achou que Jan olhou estranhamente para a matarh diante do gesto.

— Onde estão esses numetodos que o senhor diz que lhe ajudaram a escapar? — rosnou ca’Cellibrecca. — Também trouxe os hereges aqui?

Sergei deu uma olhadela lânguida para o archigos. — Eles recusaram-se a me seguir, dada a recepção que esperavam receber, archigos. A atitude de Brezno para com os numetodos foi... bem demonstrada. — Ele deu um sorriso gentil, e ca’Cellibrecca contorceu a boca em uma expressão de desdém.

— Assim como Nessântico, e nós vimos o que a cidade ganhou com isso — respondeu o archigos. — Ter sido resgatado da Bastida pelos numetodos, regente, indicaria que suas próprias opiniões são hereges também. O senhor se tornou um numetodo?

— Minha crença em Cénzi e nos ensinamentos do Toustour permanece tão firme como sempre, archigos. — Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. — Eu descobri que pode-se discordar até mesmo dos amigos e ainda assim permanecer amigo. Eu tive muitas discussões interessantes com o embaixador ca’Vliomani ao longo dos anos, muitas delas acaloradas, mas nenhum de nós dois conseguiu mudar significativamente as opiniões um do outro. Nem acho que isso seja necessariamente uma coisa ruim. O embaixador ca’Vliomani era meu amigo e agiu para me ajudar, embora nossas opiniões sobre religião sejam completamente discordantes. Minha alma não tem nada a temer. — Ele fez uma pausa e voltou a olhar para Allesandra. — Amigos e aliados podem ser encontrados onde menos se espera. Eu estaria errado, a’hïrzg ca’Vörl, em dizer que a senhora passou a considerar a archigos Ana uma amiga, embora ela tenha lhe tirado de seu vatarh?

Ca’Cellibrecca chiou alto ao ouvir isso, e o hïrzg Jan ergueu as sobrancelhas, mas Allesandra deu um leve sorriso. — Ah, regente, você sempre duelou tão bem com palavras quanto com sua espada.

Sergei fez uma nova mesura para ela.

— Sim — continuou Allesandra —, eu passei a considerar a archigos Ana, se não uma amiga, então como alguém em quem podia confiar diante do destino incerto que meu vatarh me relegou. Eu fiquei genuinamente horrorizada ao saber que ela foi assassinada, nem acreditei quando ouvi quem foi o responsável, por conhecer a archigos Ana e ca’Vliomani. Sofri e rezei por ela desde então. E, sim, entendo o que você está querendo dizer por trás da pergunta. Tenho certeza de que o hïrzg Jan ficará satisfeito em aceitar seus serviços e falar mais com você a respeito do que pode fazer pela Coalizão Firenzciana.

O garoto ajeitou-se subitamente na cadeira ao ouvir a menção do próprio nome e deu uma olhadela para a matarh. — Sim — falou Jan para Sergei. — Eu... nós ficaremos satisfeitos. — A voz era tão duvidosa quanto o olhar que ele lançou para Allesandra. Então as feições de Jan relaxaram, e ele soou mais adulto. — Firenzcia pode lhe oferecer asilo, regente ca’Rudka, e tenho certeza de que poderemos encontrar uma utilidade para seu conhecimento e suas habilidades.

— Obrigado, hïrzg Jan — respondeu Sergei, que ficou em um joelho só. — Falou bem. Eu ofereço livremente ao senhor e à Firenzcia a lealdade que Nessântico desprezou e darei qualquer conselho e ajuda que puder.

O jovem pareceu excessivamente contente com a declaração, como se, de certo modo, a tivesse arrancado a contragosto do próprio Sergei. Ele era jovem e inexperiente, Sergei percebeu, mas parecia suficientemente inteligente, e tinha uma excelente professora na matarh. O hïrzg aprenderia rápido. O archigos estava carrancudo, obviamente descontente com a decisão. Haveria pouca solidariedade com Sergei aqui — ele teria que ficar de olho em ca’Cellibrecca e encontrar qualquer vantagem que pudesse usar contra o homem.

Quanto a Allesandra... A mulher o encarava com cautela. Pensativa. Havia ambição ali e uma inteligência que faltou ao vatarh de Allesandra. Sergei podia facilmente imaginá-la no Trono do Sol. Podia vê-la tomar decisões que protegeriam os Domínios e cicatrizariam as feridas que Justi e agora seu filho abriram na cidade e no império aos quais Sergei servia.

Será que ela seria a kraljica que rivalizaria com Marguerite?

Ele descobriria. E agiria.

 

Karl ca’Vliomani

ELE RASPOU a barba. Escureceu o cabelo com essência de granito e deixou as feições ficarem obscuras com a sujeira da estrada. Doou as bashtas elegantes na mochila em troca das roupas rasgadas e cheias de pulgas de um mendigo. Karl cheirava mal, e só o fedor já era suficiente para as pessoas evitarem olhar para ele.

Karl perguntava-se onde Sergei estaria, se conseguira chegar a Firenzcia e como teria sido recebido lá.

A intenção original de Karl era voltar à Ilha de Paeti. Ele descansou o suficiente para usar o Scáth Cumhacht a fim de curar a pior parte do ferimento de Varina. Depois, Karl e ela acompanharam Sergei até as florestas ao norte da cidade, mas lá eles se separaram; Sergei tomou a direção leste para Azay a’Reaudi, enquanto o embaixador e Varina seguiram o limite da floresta para o oeste. Os dois cruzaram a Avi a’Nortegate depois de Tousia, dali rumaram para o sudeste na direção da Avi a’Nostrosei, na esperança de seguir a estrada até Sforzia e de lá conseguir passagem em um navio para Paeti ou para um dos países ao norte. Eles chegaram à Avi em Ville Paisli quatro dias depois, a apenas um dia de jornada a pé das muralhas de Nessântico.

Karl pretendia que eles passassem um dia, não mais do que isso. Ele e Varina pegaram um quarto na única estalagem do vilarejo e deram nomes falsos, como se fossem um casal a caminho de Varolli na esperança de encontrar emprego. A mulher mais velha que mostrou o quarto acenou ao pegar o dinheiro e enfiou as moedas em um bolso embaixo do avental que ela usava sobre uma tashta manchada, que parecia duas décadas fora de moda. O rosto e o corpo davam sinais de anos dando à luz e trabalhando duro. — Eu sou Alisa Morel — falou ela. Karl ouviu Varina respirar fundo ao ouvir o nome. — Meu marido e eu somos donos da estalagem e da taverna, e ele é o ferreiro do vilarejo. Se quiserem um banho... — o que foi dito com um olhar significativo e um nariz torcido que sugeriam que a ideia era boa — ... há um pequeno cômodo para isso lá embaixo, e eu posso mandar meus filhos encherem duas banheiras com água quente. O jantar sai uma virada da ampulheta depois do pôr do sol.

A mulher foi embora, Varina ergueu as sobrancelhas para Karl e disse — Morel... Nico disse que tinha fugido da tantzia e do onczio. Será que ela...?

— Morel é um nome bem comum em Nessântico. — Ele deu de ombros. — Mas obviamente há algumas perguntas que podemos fazer. Se ainda estivéssemos com o menino...

Karl já estava certo de que havia conexão ali, embora não soubesse dizer por quê. Ele percebeu pela expressão de Varina que ela pensava a mesma coisa. Se ele realmente acreditasse em algum deus, teria achado que os dois foram conduzidos a esse lugar pela providência divina.

Naquela noite, após aceitarem a oferta de banho feita pela mulher, para tirar o grosso da fedentina da estrada, ele e Varina jantaram no salão comunal da taverna, tanto para evitar suspeitas como para conseguir ouvir qualquer fofoca que tivesse chegado ao vilarejo a respeito da fuga do regente da Bastida. O salão estava — como ele suspeitava pela aparência estressada de Alisa, pelas crianças que trabalhavam como serventes, e pelo marido, Bayard, atrás do pequeno bar perto da porta da cozinha — mais cheio do que o usual, e a conversa era predominantemente sobre os eventos em Nessântico, cujas notícias pareciam ter chegado ao vilarejo há apenas alguns dias.

— Eu mesmo falei com o offizier do destacamento de busca — dizia Bayard Morel em voz alta para uma plateia de meia dúzia de aldeões. — O cavalo tinha perdido a ferradura, então ele me pediu para ferrar o bicho. O offizier disse que o kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, despachou cavaleiros para cada estrada da cidade a fim de pegar o traidor e os hereges numetodos que estão com ele. O destacamento vasculharia a estrada até Varolli, se necessário. O offizier me disse que os numetodos mataram três dezenas de homens da Garde Kralji na Bastida com sua magia terrível e blasfema, mataram sem pensar, embora alguns dos gardai ainda estivessem em suas camas. Os numetodos deixaram em ruínas a torre onde ca’Rudka estava, nada além de pedras enormes espalhadas por todo o chão. Eles cuspiram fogo ao fugir a cavalo, um fogo azul horrível, disse o offizier, que matou gente pela Avi quando os numetodos passaram, e depois, com um grande estouro... — nesse momento Bayard subitamente abriu bem as mãos e derrubou a caneca mais próxima de cerveja, o que fez a plateia recuar aterrorizada, de olhos arregalados — ... eles desapareceram em uma nuvem negra e fedorenta. Assim, do nada. Ao todo, tem mais de cem mortos na cidade. Eu estou dizendo, a morte é um destino bom demais para o regente. Eles deviam arrastá-lo vivo pelas ruas e deixar as pedras da Avi arrancarem a carne dos ossos e aquele nariz de prata dele enquanto berra.

As pessoas no salão murmuraram ao concordar com a opinião. Varina inclinou-se na direção de Karl e fez uma careta quando o movimento repuxou a ferida no braço, que cicatrizava. — Na semana que vem, ele dirá que foram mil mortos. Pelo menos, parece que os gardai já passaram por aqui e foram embora. Estamos atrás dele. Isso é bom, certo? — Ela vasculhou o rosto de Karl com olhos ansiosos, e ele concordou com um grunhido, embora não tivesse tanta certeza assim.

Enquanto observava o salão, Karl notou outra mulher que ajudava a servir os clientes: ela tinha uma aparência azeda e cansada e nunca sorria. A mulher parecia muitos anos mais jovem que Alisa, mas havia uma semelhança familiar entre as duas: nos olhos, no nariz fino, no conjunto dos lábios. Ela parecia ser velha demais para ser filha de Alisa, pois os filhos da estalajadeira ainda eram pequenos. Quando um deles, um menino mal-humorado à beira da puberdade, colocou um prato de pão fatiado na mesa, Karl apontou para ela. — Aquela mulher ali... quem é?

O garoto fungou e fez uma cara feia. — Aquela é a minha tantzia Serafina. Ela mora com a gente agora.

— Ela parece infeliz.

— Ela está assim há um tempo, desde que Nico fugiu.

Karl olhou para Varina. — Quem é Nico?

— O filho dela — falou o menino, que fechou mais a cara. — Um bastardo. Eu não gostava dele, de qualquer forma. Sempre falava besteira sobre os ocidentais e feitiços e tentava fingir que podia fazer magia como se fosse um téni. Todo mundo teve que perder três dias procurando por Nico depois que ele fugiu, e meu vatarh cavalgou até Certendi, mas ninguém jamais o encontrou. Acho que provavelmente está morto. — Ele parecia excessivamente satisfeito com essa conclusão, uma satisfação que torceu o canto da boca.

— Ah. — Karl concordou com a cabeça. — Você provavelmente está certo. O mundo lá fora não é fácil. Eu só estava me perguntando por que ela parecia tão triste. — Varina desviou o olhar nesse momento, encarava Serafina e mordia os nós dos dedos. O garoto arrastou os pés no assoalho de madeira rústica, fungou o nariz e passou o braço para limpá-lo, depois voltou para a cozinha.

— Pelos deuses, é ela. — Varina balançou a cabeça quase imperceptivelmente. — O que faremos, Karl? Aquela é a matarh de Nico.

Karl pegou um pedaço de pão do prato que o menino trouxe. Ele arrancou um naco do pão preto, enfiou na boca e mastigou, pensativo. — Se pudéssemos entregar Nico para ela — falou Karl depois de engolir —, será que ela nos entregaria Talis de volta?

 

Jan ca’Vörl

JAN GESTICULOU PARA OS GARDAI do lado de fora da porta e falou — Deixem-me entrar. — Os dois homens entreolharam-se uma vez, rapidamente, antes que um deles abrisse a porta. Assim que Jan entrou, um garda começou a segui-lo. O hïrzg meneou a cabeça para o homem e disse — Sozinho. — O garda hesitou antes de concordar e prestar continência. A porta foi fechada atrás de Jan.

— O senhor é corajoso por entrar em um aposento sozinho com seu inimigo. E aquele garda reportará ao comandante co’Göttering que o senhor veio me visitar. Co’Göttering sem dúvida informará sua matarh.

A luz de velas refletiu no nariz de prata quando Sergei se virou para encarar Jan. O homem foi instalado em um dos aposentos interiores do Palácio de Brezno, a comida foi posta diante dele em uma mesa coberta de damasco, a lareira estalava para afastar o frio da noite, e havia uma cama macia e confortável com travesseiros de plumas e cobertores. Ele usava uma nova bashta limpa e tinha evidentemente tomado banho, e seu cabelo grisalho estava empastado com óleo.

Sergei estava em uma prisão feita de seda.

— Eu não me importo que co’Göttering saiba, nem minha matarh. Você é tão perigoso assim, regente ca’Rudka? — perguntou Jan do outro lado da mesa.

Em resposta, Sergei meteu a mão no salto da bota: devagar, para que Jan pudesse vê-lo. Ele retirou uma lâmina chata, fina e com um cabo curto entre a sola e o couro, colocou a arma sobre a mesa e empurrou na direção de Jan. — Sempre, hïrzg Jan — respondeu o homem com um leve sorriso. — Seu vavatarh teria lhe dito isso. Sua matarh também. Se eu quisesse o senhor morto, o senhor já estaria.

Jan olhou fixamente para a lâmina. Ele viu os gardai revistarem Sergei à procura de armas, ouviu a declaração de que o regente estava desarmado. — Acho que precisarei falar com o comandante co’Göttering sobre o treinamento de seus homens. — O hïrzg esticou a mão para tocar o cabo com o dedo, mas não pegou a faca. — O que mais eles deixaram passar?

Sergei apenas sorriu. Jan colocou a mão na faca e empurrou-a novamente sobre a mesa para Sergei, que embainhou a lâmina na bota novamente. — Então, hïrzg Jan, a que devo o prazer?

O próprio Jan não tinha certeza. Ele ficou incomodado com a reunião inicial com Sergei, por ter ouvido a matarh e o archigos ca’Cellibrecca, por saber que eles dominaram a ocasião. Na verdade, Jan sentia-se sobrepujado pelo caráter repentino dos acontecimentos: o assassinato de Fynn, a fuga de Elissa, as notícias dos Domínios, a chegada do regente. Seu vatarh deixara Brezno correndo, furioso; sua matarh e o archigos eram íntimos, de maneira suspeita. Era como se ele estivesse sendo levado sem controle por uma enchente que não tinha visto, nem previsto. Jan sentia-se perdido e cheio de dúvidas, ficava remoendo essa situação por longas viradas da ampulheta, incapaz de se soltar na alegria agora forçada das festas, nas distrações das jovens que flertavam com ele ou nas especulações urgentes que irrompiam a sua volta.

Jan queria falar com alguém. E não queria que essa pessoa fosse sua matarh.

Jan não se sentia como um hïrzg. Sentia-se como um impostor. — Eu quero saber o que eu ganho ao lhe dar asilo, regente.

— Está mudando de ideia? — Sergei empurrou a cadeira da mesa. — Ou pensa que outra pessoa tomou esta decisão pelo senhor?

Jan devia ter ficado furioso com isso, mas, ao contrário, apenas ergueu um ombro e deixou que caísse novamente. — Ah, eu entendo — falou Sergei. — Assim como o pobre Audric, creio eu. Deixe-me lhe dizer uma coisa, hïrzg Jan: eu conheci vários kralji na minha vida, e apesar do que o senhor possa pensar sobre eles, a verdade é que nenhum jamais tomou uma decisão fácil. Tudo o que se faz como kralji, ou hïrzg, afeta milhares de pessoas, algumas vezes de uma maneira boa, em outras, de maneira adversa. Fique feliz por estar cercado por bons conselheiros e dê ouvidos a eles. Isso pode lhe poupar de tomar decisões realmente horrorosas. — Ele então deu um sorriso cruel. — E se uma delas der bons resultados, apesar de suas boas intenções, bem, o senhor sempre pode culpar o péssimo conselho.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

O sorriso de Sergei se ampliou. — Não respondi, não é mesmo? — Ele colocou as mãos sobre a mesa, com as palmas voltadas para cima. — Tudo o que tenho a lhe oferecer sou eu, hïrzg. Meu conhecimento, minha experiência, meu ponto de vista. Por acaso, eu acho que esse é um recurso potencialmente valioso para o senhor, mas tenho que admitir que sou meio suspeito para falar. — Ele franziu a pele em volta do nariz falso, mas o nariz em si não se mexeu, o que pareceu perturbador aos olhos de Jan. O gesto deixou o hïrzg incomodado, mas ele achou difícil desviar o olhar do rosto de Sergei.

— Eu tenho o conhecimento, a experiência e o ponto de vista da minha matarh; também tenho os do archigos. E tenho os dos comandantes e dos outros chevarittai da Coalizão.

— Tem sim — respondeu Sergei. — Sua matarh foi refém nos Domínios por grande parte da juventude. O archigos é um oponente jurado do ramo da fé concénziana de Nessântico. Os comandantes e chevarittai também são oponentes dos Domínios. Nenhum deles conhece os Domínios, e todos têm razões para odiá-los. O ódio pode cegar às vezes. Quanto a mim, bem, a segurança dos Domínios tem sido a minha vida.

— O que é outra razão para desconfiar de você.

— Então deixe que esse seja meu primeiro conselho para o senhor, hïrzg Jan. O senhor deve desconfiar de mim. Um hïrzg tem que duvidar de todos os conselhos que recebe, porque os conselhos de todo mundo são pintados com as cores de seus próprios interesses, os meus não menos do que os conselhos de qualquer pessoa. Mas... eu sou um velho espadachim, hïrzg, e eu diria que é mais fácil derrotar um inimigo cujos movimentos são conhecidos e previsíveis do que um inimigo completamente desconhecido. — Sergei recostou-se na cadeira. — Eu conheço os movimentos dos Domínios. Conheço todos. O senhor precisa de mim.

— Você parece muito confiante.

— Eu conheço meu inimigo, hïrzg. Se não conhecesse, por acaso eu teria lhe dado a minha faca? — Ele abaixou a mão e deu um tapinha na bota. — Todo mundo corre riscos, hïrzg. O truque é ter confiança no resultado.

— E se seu tivesse ficado com a faca? — perguntou Jan.

Sergei deu um risinho. — Então eu teria que fingir que isso era o que eu esperava. O senhor ainda gosta da sua decisão, hïrzg?

Jan sorriu com os lábios fechados e disse — Era o que eu esperava, regente. E isso vai ter que ser suficiente, não é?

 

Audric ca’Dakwi

A O’TÉNI AJOELHADA ao lado da cama de Audric abriu os olhos, com o rosto abatido e cansado, e deu uma olhadela para o archigos Kenne. — Eu terminei minhas... — Ela hesitou, e Audric viu o olhar da o’téni desviar-se do archigos para a conselheira Sigourney ca’Ludovici, que estava perto da lareira e olhava para o retrato da kraljica Marguerite, apoiado ao lado do fogo no cavalete portátil. Acima da lareira, Audric viu o retângulo desbotado onde o quadro esteve pendurado por tanto tempo. Nos recônditos escuros do quarto, Marlon e Seaton estavam à espreita, à espera para correr à frente caso fosse necessário.

— ... preces — concluiu a o’téni.

O archigos dissera para Audric que esta téni viera do templo de Chiari e que era alguém “cujas preces tinham uma afinidade especial com os doentes”. Isso talvez pudesse ser verdade; ele certamente se sentia um pouco melhor, os pulmões doíam menos ao se mexer. A tosse insistente cedeu, embora Audric ainda sentisse um pouco de aperto no peito; talvez ele realmente tivesse sido abençoado por Cénzi na noite de hoje. A melhora não era tão marcante quanto nas ocasiões em que a archigos Ana fizera “preces” pelo kraljiki, mas bastaria. Ele torcia para que durasse tanto quanto a ajuda da archigos Ana durava.

— Obrigado, o’téni — falou o archigos enquanto fazia o sinal de Cénzi para a mulher. — Agradecemos seus esforços. Você pode retornar ao templo agora. Diga ao u’téni co’Magnaoi que estarei lá em breve, por gentileza.

Ela concordou com a cabeça e ficou em pé cambaleando, como se tivesse ficado ajoelhada por muito tempo e as pernas tivessem adormecido. Enquanto Audric observava, a o’téni levou as mãos à testa, depois às pernas e saiu arrastando os pés com cuidado até a porta do quarto. Marlon correu para abri-la para a mulher. — Estranho — comentou Sigourney sem desviar o olhar do quadro —, eu nunca fiquei tão cansada depois de uma simples prece.

Audric viu Kenne contrair o rosto encarquilhado à luz das velas diante da acusação nada sutil. O archigos ignorou o comentário e perguntou — Está se sentindo melhor, kraljiki?

A mamatarh de Audric encarou o neto com preocupação sobre o ombro de ca’Ludovici. — Não há nada de errado comigo — falou o kraljiki para o archigos. Ele viu sua mamatarh concordar com um aceno no limite de seu campo de visão. Não deixe que eles saibam como você realmente se sente, não quando podem considerar uma fraqueza. — Eu sei — disse Audric para Marguerite, depois se voltou novamente para o archigos. — Estou me sentindo muito bem. — Kenne pareceu aliviado de uma maneira quase cômica. — Agora, você disse que tinha um favor para pedir, archigos.

— Eu tenho, kraljiki. Eu tive um encontro estranho na manhã de hoje, no templo. Havia um homem, um o’offizier da Garde Civile: Enéas co’Kinnear. Ele veio à Bênção de Cénzi e tinha uma faixa dos Hellins sobre o uniforme. Um jovem bonito, com uma expressão séria. Ele me disse que havia acabado de voltar da guerra.

— Sim, sim — falou Audric com impaciência e fez um gesto para calar o homem. O archigos seria capaz de divagar assim por uma virada da ampulheta e contar cada detalhe interminável do encontro. Ele ouviu ca’Ludovici rir ao fundo. — Onde você quer chegar, archigos?

Kenne não conseguiu esconder completamente sua irritação, mas forçou um sorriso e abaixou a cabeça para Audric. — O o’offizier co’Kinnear disse que tinha uma informação vital para o senhor, a respeito dos Hellins, kraljiki. Falou que o senhor não teria ouvido essas notícias porque os navios expressos não teriam chegado. Eu verifiquei, e é verdade. Também mandei minha equipe investigar este co’Kinnear, e eles descobriram que o comandante ca’Sibelli — ao dizer isso, o archigos acenou com a cabeça na direção de Sigourney — recomendou que ele fosse nomeado chevaritt, e os relatórios sobre o homem foram unânimes na alta estima que ele goza como uma pessoa de fé e um offizier. Na verdade, eu descobri que antigamente co’Kinnear era considerado como candidato a acólito e mostrava sinais do Dom de...

— Certo. — Audric interrompeu novamente e suspirou. — Tenho certeza de que esse co’Kinnear é um bom homem. — Ele fechou os olhos. Era tão cansativo ter que ouvir as besteiras de gente inferior e fingir que prestava atenção ou se importava. É a maldição de todos os kralji, Audric ouviu a mamatarh e deu um sorriso compreensivo para ela. — É verdade — falou o kraljiki para Marguerite. — É bem verdade. — Agora ele queria jantar e talvez jogar uma rodada de cartas com algumas jovens dos ca’ e co’, e, quem sabe, flertar, pois se sentia melhor.

Você tem que tomar cuidado com isso, Audric, ele ouviu a mamatarh reclamar. Casamento é uma arma que só pode ser usada uma ou duas vezes; você deve escolher o momento certo e a arma certa.

— Não me canse — disse Audric para a mamatarh.

Sigourney manifestou-se. — Se me dá licença, kraljiki? — Audric gesticulou para ela. A mulher era uma chata; não tinha humor algum, tudo o que a interessava eram assuntos de estado. Sigourney era seca como torrada velha. — Archigos, se esse co’Kinnear tem uma informação tão vital, por que não contou aos offiziers superiores e passou pela cadeia de comando?

— Isto eu não sei, conselheira — respondeu o archigos. — Mas havia alguma coisa... Eu pensei... Quando co’Kinnear me pediu para falar com o senhor, kraljiki Audric, eu pensei ter ouvido a Voz de Cénzi me dizer que eu deveria escutar. Eu podia ter jurado... — O velho balançou a cabeça, e Audric suspirou com impaciência novamente. — Que mal faria ouvir o sujeito por alguns instantes? Daqui a duas semanas será o segundo cénzidi do mês; se ele puder ser colocado na lista de suplicantes para a sua audiência de sempre, kraljiki...

Presa na pintura, Marguerite pareceu dar de ombros à luz de velas. Audric jogou as pernas para fora da cama. Seaton correu para ajudá-lo a ficar de pé, mas ele dispensou o criado com um gesto e falou — Certo. Combine com Marlon, archigos. Verei este modelo de perfeição da Garde Civile no segundo cénzidi, mas só se nenhum navio expresso chegar nesse meio tempo com notícias mais atuais dos Hellins. Essa é uma solução satisfatória?

O archigos fez uma mesura e o sinal de Cénzi para Audric, depois para a conselheira. Ca’Ludovici pareceu abafar um riso. — Agora — disse o kraljiki —, eu estou com fome, e há compromissos aos quais pretendo comparecer na noite de hoje, então, se não houver mais assuntos...

 

A Pedra Branca

O AR ESTAVA TOMADO por sussurros e imprecações, e eles não vinham apenas das vozes na mente da Pedra Branca. Nessântico estava abalada pelos acontecimentos da última semana, com a fuga do regente e a traição dos numetodos. Ela viu os esquadrões passarem com raiva e desconfiança pelas alamedas e becos do Velho Distrito; ela tinha sido questionada duas vezes, arrastada e interrogada como se pensassem que ela pudesse ser um dos numetodos. A Pedra Branca teve o bom senso de demonstrar a dose certa de medo; o suficiente para acalmá-los, mas não o bastante para alimentar as suspeitas. Outras pessoas não tiveram a mesma sorte; a Pedra Branca viu dezenas sendo levadas para um interrogatório detalhado na escuridão cruel da Bastida, e não sentiu inveja delas.

Teria sido tão mais fácil para eles se tivessem contratado a Pedra Branca. A vida do regente; a vida do embaixador; ela teria apagado os dois como uma vela extinta à luz do dia — vidas que não eram mais necessárias ou desejadas. Ela poderia ter colocado suas almas na pedra que levava entre os seios.

Mais loucura para você sofrer... As vozes riram diante da ideia. Você vai se perder completamente entre nós...

Em breve...

Em breve...

O refrão era uma batida forte de tambor em sua cabeça. A voz furiosa de Fynn era a mais alta de todas.

Em breve...

Em breve...

— Talvez não — disse ela para as vozes. — Eu sou mais forte do que vocês pensam. Afinal, eu matei todos vocês. — ela disse as palavras em voz alta, e as pessoas próximas nas ruas olharam para ela com pena, irritação ou medo. A Pedra Branca não se importava com esse tipo de reação.

O sol da manhã se levantou sobre a estátua do kraljiki Selida II no chafariz do centro do Velho Distrito; o globo ardia como se a ponta da espada erguida do kraljiki pegasse fogo. À direita da praça estava a enorme estátua de Henri VI, que também lançava uma sombra comprida. A náusea matinal que a atormentava todo dia sempre que acordava tinha ido embora, e o cheiro de croissants amanteigados da padaria a algumas portas de distância provocou sua fome novamente. Ela esfregou a barriga; podia sentir o inchaço no estômago debaixo da tashta; em breve, não conseguiria esconder a gravidez de maneira alguma.

Em breve...

— Calem-se! — berrou a Pedra Branca, e a voz fez os pombos saírem voando do chão da praça, para depois pousarem novamente a alguns passos de distância. Alguém riu ali perto, presente em um grupo de rapazes que apontavam para ela, e a Pedra Branca respondeu com um gesto obsceno que só fez aumentar a gargalhada.

Em breve...

Vou destruí-la como você me destruiu. Este era Fynn. Em breve...

Com a cara fechada, ela foi empurrando as pessoas até chegar à padaria e jogou uma se’folia de bronze no balcão. — Croissants — disse.

Ela já tinha comido dois croissants antes de chegar à casa que ocupava, a alguns quarteirões do centro. O pão doce e molhado aplacou a dor na barriga e baniu as vozes. Ela estava pegando a chave do quarto quando ouviu barulho: algo sendo arrastado, uma respiração. Ela parou, pousou o saco com os croissants que tinham sobrado e levou a mão ao cabo da faca enfiada na faixa da tashta. O som vinha de um pequeno espaço entre sua casa e o prédio ao lado. Ela espiou as sombras púrpuras e viu uma silhueta que tremia, encolhida contra a lateral da casa.

— Eu estou vendo você aí — falou ela. — Saia.

Ela esperava que a pessoa corresse, que fugisse para o outro lado, na direção da viela atrás da casa. Mas a silhueta apenas se mexeu e ficou em pé devagar, e sob a luz fraca do céu que clareava, ela notou que era uma criança. Ele saiu lentamente, arrastou os pés e manteve as costas voltadas para a parede da estrutura, os olhos arregalados espiaram a Pedra Branca e desviaram o olhar novamente. O rosto estava sujo de lama, o cabelo totalmente desgrenhado.

— O que foi? Está com medo de mim?

— Você é a mulher maluca — respondeu o menino, e as vozes vibraram de alegria, a de Fynn a mais alta de todas. Viu só? Eles já sabem. Em breve...

— O que você está fazendo aqui? — perguntou ela.

O menino deu de ombros. — Esperando.

— Esperando o quê?

Ele repetiu o gesto. — Nada.

— Só um idiota espera por nada, menino. O que você está escondendo? — A Pedra Branca ergueu o dedo e deteve o menino quando ele ia dar de ombros novamente. — Não minta para mim, menino. Eu sou a mulher maluca, lembra-se? Eu posso ouvir o que você está pensando. — Ela bateu com o dedo na testa. As vozes vibraram novamente. Mentirosa! Charlatã! — Então é melhor que me conte a verdade: de quem você está se escondendo?

O menino olhou para ela com desconfiança e inclinou a cabeça de lado, como se tivesse escutado as vozes. — Os soldados. Aqueles de azul e dourado.

— A Garde Kralji? — Ela cuspiu no chão entre os dois. — Eu os conheço. Ah, eu os conheço bem. Mas por que você está se escondendo deles? Os soldados não estão procurando por você, menino, a não ser que seja um numetodo. — Ele torceu a cara de um jeito esquisito ao ouvir isso, e ela olhou de soslaio para o menino enquanto esfregava o estômago. Havia uma agitação estranha ali, e se perguntou se ficaria enjoada novamente ou se sentia a criança pela primeira vez. — Você é um numetodo? É por isso?

— Não — disse ele, rapidamente, mas a Pedra Branca já tinha visto muitas mentiras e falsidades na vida e sabia que o menino dizia menos do que podia. Ela observou com mais atenção, viu a roupa suja e o cabelo emaranhado. Notou os ossos das bochechas.

— Quando foi a última vez que você comeu?

O menino deu de ombros novamente.

— Você mora aqui perto?

Ele fez uma careta. — Eu... eu morava. Logo ali. — Apontou para a viela. — Mas... eu não sei... — Ele parou, e a Pedra Branca viu o lábio do menino tremer. Ele fungou e passou a manga rapidamente pelos olhos, fechou bem a boca. A resistência, a recusa em deixar que ela visse como ele estava assustado e amedrontado tomaram a decisão pela Pedra Branca. Ela sorriu para o menino ao se agachar em sua frente. Deveria ter sido um movimento fácil, mas a cintura mais larga fez com que ela sentisse como se seu corpo fosse de outra pessoa.

— Você tem um nome? — perguntou ela.

— Nico. Meu nome é Nico.

— Então por que você não vem comigo, Nico? Eu tenho alguns croissants e um pouco de manteiga. Talvez eu consiga achar uma fatia ou duas de carne. Não parece bom? — A Pedra Branca ofereceu a mão para o menino, que aceitou com hesitação, e ficou de pé. As vozes riram dela, debocharam. A Pedra Branca ficou mole como lama...

Ela as ignorou e andou com Nico até sua casa.


CONTINUA

MOVIMENTOS

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Nico Morel

Jan ca’Vörl

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Karl ca’Vliomani

Varina ci’Pallo

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— A PEDRA BRANCA...

— Deve ter sido o kraljiki que contratou o assassino...

— Os numetodos o contrataram...

— Os tennshas o contrataram...

— Eu ouvi dizer que a própria a’hïrzg foi marcada para morrer, e o filho dela...

Allesandra ouviu os rumores. Era impossível escapar, eles sufocavam Firenzcia como a bruma que surgia todas as noites das florestas em volta do palácio da Encosta do Cervo, para onde a família fora levada depois do assassinato, sob ordens do starkkapitän Armen ca’Damont e do comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg. — O comandante e eu podemos protegê-los melhor lá, a’hïrzg — disse ca’Damont. Ela concordou com a cabeça, com a face impassível.

Fingimento... Allesandra tinha que manter a expressão adequada. Tinha que fazer com que os ca’ e co’ acreditassem que ela sofria. Tinha que fazê-los acreditar no que a a’hïrzg pediria para eles.

Em breve. Mesmo que houvesse pouca esperança agora.

A segurança era visível por toda parte do palácio, com gardai aparentemente em todos os cantos. Allesandra estava na sacada mais alta neste momento e olhava para os topos dos abetos lá embaixo, nas encostas íngremes das montanhas, e para os filamentos cinza esbranquiçados da névoa que passavam entre as árvores e que aumentavam conforme o sol se punha. Ela esfregou um seixo claro e chato entre os dedos.

Allesandra ouviu a porta da sacada ser aberta, seguida por um murmúrio de vozes masculinas. Ela virou-se e viu Semini se aproximar como um urso, vestido de verde e com uma expressão soturna. O archigos não disse nada, foi pé ante pé até a a’hïrzg e parou a uma curta distância — havia gardai em ambos os lados dos dois, a vários passos cautelosos de distância. Ele colocou os braços no parapeito da sacada e olhou para a bruma que se enroscava como braços musculosos em volta das árvores, como fantasmas que cuidavam de um jardim e estendiam as mãos para arrancar as ervas daninhas entre as plantas. De vez em quando, um fiapo de névoa chegava ao nível da sacada e, levado pelo ar frio e úmido, passava pelos tornozelos de Allesandra como se tentasse puxá-la para a escuridão cada vez maior.

— Então... — A palavra soou como um vento baixo entre as agulhas dos pinheiros. — Será que a Pedra Branca virá atrás de mim agora? — Ela viu o olhar do archigos se voltar para o seixo em seus dedos.

— Eu não contratei o assassino, Semini — disse Allesandra. O assassino... ela pensou a respeito disso neste momento. Elissa parecia ter desaparecido no mesmo dia em que o hïrzg morreu, o que deixou Jan arrasado com outro golpe emocional forte como um martelo, somado à morte de seu onczio Fynn. Dois dias depois, chegou uma mensagem nervosa de Jablunkov que dizia que Elissa, filha de Elissa e Josef (nome de solteiro ca’Evelii) ca’Karina, morrera há seis anos e que perguntava se a a’hïrzg possivelmente não cometera algum engano.

Allesandra ficou pensativa. Era possível que “Elissa” tivesse fugido apenas porque sabia que a a’hïrzg mandou uma carta para a família ca’Karina. Era possível que não houvesse conexão entre o desaparecimento dela e a morte de Fynn. Ainda assim, ser próxima de Jan significava que Elissa também tinha acesso a Fynn, e segundo a experiência de Allesandra, era perigoso acreditar em coincidência. Ao contrário, era mais seguro ver a faca afiada da conspiração sob o véu da coincidência.

A voz da Pedra Branca... será que podia ser a voz de uma mulher falando grosso?

Semini acenou com a cabeça ao ver o seixo na mão dela. — Isto é...?

Allesandra ergueu o seixo para que ele pudesse vê-lo e falou — Sim, foi isso que a Pedra Branca deixou para trás. O seixo... me faz lembrar de Fynn e me faz lembrar que encontrarei quem contratou a Pedra Branca e que punirei a pessoa.

Outro aceno. Semini olhou novamente para as árvores lá embaixo. — O Conselho dos Ca’ será unânime em nomeá-la como hïrzgin. Parabéns. — O tom de voz não tinha emoção. — Mas você podia ter conseguido isso há semanas, se não tivesse mandado Jan salvar Fynn.

— Fico contente que alguém se lembre disso. Mas... eu não tenho intenção de ser hïrzgin, Semini.

A afirmação fez o archigos encará-la novamente. Uma mão cofiou a barba grisalha enquanto os olhos negros vasculhavam os dela. — Você está falando sério.

— Estou.

— Eu pensei...

— Você pensa demais, Semini. — Ela abrandou a crítica com um sorriso. O garda atrás dela olhava para o outro lado, e o corpo da a’hïrzg bloqueava o homem em sua retaguarda. Allesandra esticou a mão para afagar o braço do archigos. — Eu pretendo renunciar ao título de a’hïrzg. Afinal, muitas pessoas pensarão exatamente como você neste momento. Sempre haveria rumores de que eu mandei matar Fynn para ficar com o trono em Brezno. Se eu renunciar, a fofoca morrerá com minha abdicação. Deixarei que o Conselho dos Ca’ nomeie um novo hïrzg para Firenzcia.

Semini arqueou uma sobrancelha grossa. — Você falou com Pauli?

A menção do nome criou uma barreira gelada entre os dois, ou talvez fosse a bruma. Ela recolheu a mão e falou com rispidez — Essa não é uma decisão que meu marido deva tomar. — Depois sorriu novamente. — Mas será interessante ver a cara dele quando eu estiver diante do Conselho e disser que abdico. E espero que seja uma completa surpresa para ele, Semini. E também espero que Pauli volte correndo com raiva para Magyaria Ocidental no dia seguinte, para reclamar com o gyula Karvella que foi arruinado pela esposa que Karvella e o hïrzg Jan escolheram a dedo para ele.

— Você realmente deixaria a decisão para o Conselho?

— Ah, eu já falei com alguns dos integrantes. Um número suficiente para os meus propósitos, de qualquer maneira. Eu sugeri que, após a devida deliberação, o Conselho possa vir a crer que as recentes ações de meu irmão mostraram quem ele atualmente favorecia como sucessor: alguém que demonstrou amplamente sua lealdade e habilidade. Ora, Jan seria um belo hïrzg quando crescer, você não acha? Um hïrzg que governaria bem e com força por muitos e muitos anos.

Semini riu, baixinho a priori, depois com mais entusiasmo. — Então esta é a sua intenção.

A pedra parecia gelo na mão de Allesandra. — Não inteiramente. Eu penso no futuro, Semini. Talvez quando os Domínios e a Coalizão estiverem unidos novamente e um líder competente esteja sentado no Trono do Sol, e haja um archigos de direito no Templo de Cénzi que também tenha unificado as metades separadas da fé concénziana, então Jan seria o braço direito perfeito do kralji.

Havia um enorme sorriso no rosto de Semini agora. — Allesandra, você me surpreende.

— Eu não deveria surpreendê-lo. Você e eu, Semini, estamos no mesmo lado nessa história. — Allesandra esfregou a pedra entre os dedos e enfiou em um bolso da tashta. Ela mandaria dourá-la e colocaria em uma corrente elegante. Usaria a pedra debaixo da tashta quando falasse com o Conselho, usaria ao lado do globo partido de Cénzi que a archigos Ana lhe dera. Seria um lembrete da culpa, uma lembrança de que agiu precipitadamente e fez pior com o irmão do que o vatarh e ele jamais fizeram com ela. Sinto muito, Fynn. Sinto que nunca nos conhecemos de verdade. Sinto muito...

Ela colocou a mão no parapeito, perto da mão do archigos, e olhou novamente para as brumas. Alguns instantes depois, Allesandra sentiu o calor da mão de Semini cobrir a sua.

Os dois ficaram assim até a escuridão chegar e as primeiras estrelas furarem o azul-escuro do céu.

 

Enéas co’Kinnear

A BOCA DO A’Sele era mais larga neste ponto. A cidade de Fossano ficava na margem sul, os morros ao norte eram minúsculos e tinham uma cerração azul do outro lado, elementos que sumiram quando eles fizeram a curva e entraram no golfo escancarado da baía A’Sele. Dezenas de navios mercantes cortavam as águas marrons cheias de sedimentos para seguir rio acima até Nessântico, ou rio abaixo na direção de Karnmor ou de outros países ao norte e ao sul, ou até mesmo para cruzar o próprio Strettosei. A água da baía A’Sele era colorida pelo solo que o rio A’Sele trazia dos afluentes e serpenteava em seu frescor de água doce, que com o tempo desaparecia nas profundezas azuis das águas salgadas do Nostrosei.

Enéas finalmente estava de volta à Nessântico propriamente dita. De volta aos Domínios. De volta ao continente. O cheiro de água salgada era mais fraco aqui, e ele estava bem longe dela. Daqui, Enéas viajaria pela estrada principal na direção leste para Vouziers, depois seguiria para Nessântico ao norte, finalmente.

Em casa. Ele estava quase em casa. Podia sentir o gostinho.

Em Fossano, tudo era familiar e deixava Enéas à vontade. A arquitetura lembrava os sólidos prédios enfeitados da capital, assim como os templos eram réplicas menores das grandes catedrais da margem sul de Nessântico ou da Ilha A’Kralji, a uns 150 quilômetros de subida pelas águas caudalosas do A’Sele. Não havia nada dos prédios quadrados e lisos dos ocidentais, nem das torres esquisitas e das casas caiadas nas encostas de Karnor.

Os Hellins e as batalhas que Enéas vivenciou pareciam distantes enquanto ele observava do interior de uma taverna nas Colinas do Sul, como se tivessem acontecido com outra pessoa, em outra vida. Ele flutuava separado das memórias; podia vê-las, mas não tocá-las, e não podia ser tocado por elas.

Mas... sempre na cabeça havia esta voz fraca, a voz que ele agora sabia que era de Cénzi. Sim... eu ouço, Senhor de Tudo. Eu ouço...

Enéas ouviu a voz Dele agora, ao tocar na bolsa com o nitro que comprou em Karnor pesando ao fundo. Ele estava parado em frente à janela aberta do quarto na Hospedaria do Velho Chevaritt e sentiu um leve cheiro de queimado por perto, e a Voz mandou que Enéas saísse. Saia. Encontre a fonte. Descubra o que é necessário agora.

Ele obedeceu, como devia. Colocou o uniforme, afivelou a espada na cintura e saiu da estalagem.

As ruas de Fossano subiam e desciam por ladeiras íngremes e espalhavam-se como se tivessem sido projetadas por um bêbado. Esta parte da cidade, do lado de fora das velhas muralhas e longe do centro populoso, tinha sido área de cultivo até recentemente. As casas e os prédios ainda eram bem separados por pequenos campos onde ovelhas, cabras e vacas pastavam ou onde fazendeiros plantavam colheitas. O cheiro intenso de queimado ficava mais forte à medida que Enéas seguia a estrada e afastava-se da cidade, até que as casas sumiram completamente e a estrada virou nada mais que uma trilha cheia de sulcos tomada pelo mato.

Enéas deu a volta por uma saliência de granito cheia de árvores. Era visível o rastro azulado de fumaça que saía de perto de uma cabana caindo aos pedaços, em um campo sem cultivo. O pátio estava cheio de braçadas de lenha, e três homens amontoavam os feixes em uma pilha circular — que já tinha o dobro da altura de um homem e vários passos de diâmetro. Ali perto, outro monte de madeira fora coberto por terra e grama, e saía fumaça dos buracos de ventilação em volta do perímetro do morrinho e da chaminé coberta no topo. Os homens ergueram o olhar quando Enéas se aproximou, e ele jogou a capa de viagem para trás a fim de revelar o brasão da Garde Civile e o cabo da espada: os carvoeiros eram conhecidos por serem um grupo bruto e indigno de confiança que morava em áreas de floresta fora da cidade. Um monte de lenha podia levar duas ou três semanas em combustão lenta até se transformar em puro carvão negro e exigia um cuidado constante, ou os carvoeiros encontrariam apenas cinzas quando tirassem a cobertura de terra. Eles viviam isolados, saíam apenas para vender os sacos de carvão que produziam e iam embora para novas áreas de floresta quando acabavam as árvores adequadas por perto. A reputação ruim dos carvoeiros era piorada pelo fato de que eles geralmente misturavam pedaços de terra e rochas ao carvão, de maneira que a qualidade do produto podia ser menor do que a desejada. Em Nessântico, havia e’ténis cuja tarefa era produzir carvão de qualidade, parecido com gemas, que era usado nas fornalhas da grande cidade e no aquecimento das casas dos ca’ e co’. Aqui, o serviço não era feito através do poder do Ilmodo, mas sim pelo trabalho árduo e sujo de pessoas comuns.

Enéas acenou para os carvoeiros enquanto eles encaravam o offizier com braços cruzados ou mãos na cintura. — Que cê quer, vajiki? — perguntou um deles. O homem tinha um cisto debaixo do olho esquerdo que parecia uma meia uva vermelha grudada na pele, cercado por um tufo de cabelo crespo que combinava com a barba rala; havia um cisto igual meio fora do centro da testa. Ele era muitos anos mais velho do que os outros dois sujeitos; Enéas perguntou-se se o homem não seria o vatarh ou onczio dos mais jovens. — Perdeu sua tropa, hein? — O trio riu da piada ruim do carvoeiro com uma risada tão sombria quanto a fuligem que sujava as mãos e os rostos.

— Eu preciso de carvão — falou Enéas. — Da melhor qualidade que vocês tiverem. Um saco sem impurezas. É isso que Cénzi deseja.

Eles riram novamente. O homem com os cistos esfregou o rosto. — Cénzi, hein? Cê tá dizendo que é Cénzi ou é um téni também, vajiki? Ou talvez seja meio ruim das ideias? — Novamente Enéas foi atacado pelas risadas, enquanto o vento fez a fumaça do fogo envolver os carvoeiros. — Nós estaremos na cidade no próximo mizzkdi, vajiki, com todo carvão que cê quiser. Espere até lá. Tamos ocupados.

— Eu preciso agora — insistiu Enéas. — Amanhã eu vou embora da cidade para Nessântico.

O homem deu uma olhada para os companheiros. — Viajando, hein? Cê não é de Fossano, então? — Enéas fez que não com a cabeça. O velho carvoeiro sorriu. — Ele é elegante, não é, rapazes? Ora, aposto que é da própria Nessântico. E aposto que tem uma bolsa cheia o suficiente para comprar todo o carvão que ele quer e mais um pouco.

O sujeito deu um passo na direção de Enéas, que puxou meia espada da bainha e falou — Eu não quero confusão, vajiki, apenas o seu carvão. Pagarei um bom preço por ele; o dobro do preço, com a benção de Cénzi e sem barganha.

— O dobro do preço e ainda por cima com uma benção. — Outro passo. — A gente tá com sorte, hein, rapazes? — Os dois carvoeiros mais jovens foram lentamente para cada lado de Enéas a fim de cercá-lo. Ele viu uma faca na mão de um homem; o outro segurava um pedaço de lenha como um porrete.

Enéas já tinha visto brigas suficientes na vida; elas eram endêmicas entre as tropas e bem comuns nas tavernas das cidades, à noite. Ele sabia que a bravura do grupo duraria apenas enquanto o líder permanecesse intocado. O homem com os cistos sorria agora ao se abaixar para também pegar um pedaço de lenha. Ele bateu com o pau na palma da mão cheia de calos. — Tô achando que cê vai dar essa bolsa pra gente agora, vajiki, se quiser evitar uma surra — falou o sujeito. — Afinal de contas, três contra um...

Isto foi o máximo até onde o homem chegou. Em um único movimento, Enéas sacou a espada da bainha e atacou, o aço retiniu e reluziu à luz do sol. O porrete improvisado do carvoeiro voou longe, com a mão ainda na madeira. O homem ficou boquiaberto e olhou para o toco que jorrava sangue no braço. Ele gritou enquanto Enéas dava meia-volta, e a espada agora ameaçava a garganta do homem com a faca. O carvoeiro soltou a arma e recuou às pressas; o outro encarou com olhos arregalados o homem com os cistos, que caiu de joelhos e continuou a gritar enquanto a mão remanescente apertava o toco no antebraço. — Amarrem o braço para estancar o sangramento se vocês quiserem que seu amigo viva — falou Enéas. Ele pegou a faca que o homem deixou cair. — Onde está o carvão?

Um deles gesticulou na direção da cabana tosca. Enéas viu uma carroça ali com blocos escuros empilhados em um canto. Havia uma pilha de sacos de aniagem perto de uma das rodas. Ele limpou a lâmina na grama do campo, embainhou a espada, foi a passos largos até a carroça e encheu um dos sacos. O homem, cuja mão Enéas decepou, passou a gemer e lamuriar e caiu de lado enquanto os dois companheiros ficaram ajoelhados ao lado dele. Enéas pendurou o saco no ombro, voltou até os carvoeiros e jogou uma única sola de ouro na grama entre eles — mais dinheiro do que os homens ganhariam por uma carroça cheia de carvão. Eles olharam fixamente para a moeda. O mais jovem tinha amarrado um torniquete em volta do toco do líder, mas o rosto do sujeito estava pálido e os cistos destacavam-se como seixos vermelhos no rosto. Uma ferida como aquela, Enéas sabia, podia ser fatal: pela perda de sangue ou pela gangrena que geralmente acometia braços e pernas feridos.

— Que Cénzi tenha piedade de você — falou Enéas para o carvoeiro. — E que Ele lhe perdoe por impedir Sua vontade.

Dito isso, ele ajeitou o peso do saco no ombro e começou a voltar para a cidade.

 

Nico Morel

— ELE É APENAS UM MENINO, KARL. Uma criança inocente. Não ouse machucá-lo.

Nico ouviu a voz de Varina através da porta trancada ao se aninhar na pilha de lençóis contra a parede de madeira. Ele escutou uma voz de homem responder — imaginou que fosse Karl —, mas o tom era baixo demais, e Nico não conseguiu distinguir todas as palavras com a parede de madeira entre eles, apenas a frase “... o que eu tiver que fazer”. Então a porta foi aberta, e Nico jogou o braço sobre os olhos para se proteger da luz que veio do outro cômodo. Uma sombra surgiu na passagem e se dirigiu até ele, os passos ecoaram alto nas tábuas do piso que rangia. O menino pestanejou ao erguer o olhar para o homem, vislumbrou o cabelo grisalho, a barba bem feita, e os olhos gentis que contrastavam com a boca franzida debaixo do bigode. Sua bashta era elegante e limpa, o tecido reluzia e era macio ao roçar na pele de Nico quando o homem se ajoelhou em frente a ele. Um dos ca’ e co’, decidiu o menino.

— Eu não sei de nada — repetiu Nico, cansado, antes que o homem pudesse falar. Ele já tinha repetido as palavras muitas vezes, em todas as variações que era capaz de tirar da mente cansada. A mulher, Varina, não parou de perguntar sobre Talis: se ele sabia onde Talis morava agora; qual era a conexão entre ele, sua matarh e Talis; se sabia de onde Talis era ou o que fazia; e onde Talis aprendeu a usar o Ilmodo (só que Varina às vezes usava outra palavra para “Ilmodo”, que parecia com “scati” ou alguma coisa assim). Nico não disse nada porque sabia que Talis não queria isso. Eles queriam machucá-lo; o menino tinha certeza disso.

O homem fez uma concha com a mão diante de Nico e falou uma palavra estranha, como aquelas que Talis às vezes entoava quando fazia magia. O menino sentiu o frio do Ilmodo perto dele, os pelos nos antebraços ficaram eriçados quando surgiu uma bola de luz amarela e fraca, como uma bola de chamas na palma virada para cima do homem. Na luz, Nico viu o rosto claramente e conteve um gritinho.

Ele conhecia aquele rosto. Este era o homem que atacou Talis na rua: o embaixador ca’Vliomani, o numetodo. Nico gemeu e encostou-se na parede, como se pudesse atravessar a madeira e sair para a liberdade. Ele queria ser tomado pela fúria gelada novamente, mas estava tão cansado e assustado que não conseguiu invocar o sentimento.

— Ah, então você realmente me reconhece — disse o homem. — Pensei que isso fosse acontecer. Eu certamente reconheço você, Nico. — O menino ouviu o sotaque, mas não era o mesmo que Talis tinha. A fala era cantada, rodopiava e vinha mais do fundo da garganta, em vez do nariz. O “r” era dobrado, ele dizia “rreconheço.” O embaixador desceu a mão para o chão, e a bola de luz rolou preguiçosamente até o assoalho. A sombra comprida do homem se deslocou pelas paredes.

— O senhor vai me machucar? — A voz de Nico soou miúda e quase perdida aos próprios ouvidos: uma casquinha, o sussurro de uma brisa.

O homem não respondeu. Não diretamente. — Da última vez que vi você, Nico, eu quase fui morto pelo homem que estava ao seu lado. Qual era o nome dele? Talis? — Nico balançou a cabeça, mas o embaixador sorriu diante da negativa e continuou — Eu realmente preciso falar com Talis, Nico, e aposto que você também gostaria de falar com ele.

— O senhor está furioso com Talis. Tentará machucá-lo.

— Eu não estou furioso com ele — respondeu o embaixador. — Eu sei que é difícil para você acreditar, mas é verdade. Existem coisas que preciso perguntar para Talis, coisas urgentes e importantes, e ele não me deu uma chance. Só isso. Nós tivemos um... desentendimento.

— O senhor promete?

Karl não respondeu, mas meteu a mão dentro de uma bolsa presa à lateral do corpo, desdobrou alguma coisa em papel de seda, e segurou na direção do menino. Nico recuou um instante, depois inclinou-se para frente novamente quando o embaixador continuou a oferecer a mão: na palma havia uma tâmara roliça, salpicada de mel e de amêndoas picadas. A boca de Nico ficou cheia de água; Varina tinha servido pão, queijo e água, mas ele ainda continuava com um pouco de fome após a longa caminhada de Ville Paisli, e a visão da tâmara deu uma incontrolável água na boca. — Vamos, Nico, pegue — falou o homem. — Eu trouxe só para você.

Hesitante, Nico esticou a mão para o fruto doce. Quando os dedos tocaram o papel barulhento e amassado, ele arrancou a tâmara da mão do embaixador tão rápido quanto foi capaz. Enfiou o doce inteiro na boca, e a leve doçura do mel desceu pela língua e misturou-se ao gosto azedo da tâmara. O homem continuou sorrindo ao encará-lo. O menino achou que o rosto dele não parecia tão furioso neste momento, e havia uma ternura nas rugas em volta dos olhos.

— Sabe, eu tenho netos que têm mais ou menos a sua idade — disse Karl. Um pouco mais novos, mas não muito. Você gostaria deles, creio eu, se os conhecesse. Meus netos vivem na Ilha de Paeti. Você sabe onde ela fica?

Nico concordou com a cabeça. A matarh mostrara para ele um mapa dos Domínios, apontara os países e fizera com que aprendesse.

— Paeti é bem longe daqui — disse o embaixador. — Mas eu gostaria de voltar lá um dia. E você, Nico? Nasceu aqui em Nessântico?

Outro aceno com a cabeça. Nico lambeu os beiços e sentiu o gosto do resto do mel grudento.

— E quanto à sua matarh? De onde ela é?

— Daqui. — A palavra saiu meio abafada. O gosto persistente da tâmara ficou amargo. Nico pigarreou.

— Ah... — O homem pareceu considerar a informação por um momento e afastou momentaneamente o olhar. Ele notou um movimento na porta e viu Varina apoiada ali. O embaixador e ela entreolharam-se, e algo no jeito daquele olhar fez o menino pensar que eles eram um casal, como Talis e sua matarh. — E seu vatarh? Talis é daqui?

O menino começou a balançar a cabeça, depois parou. Talis não iria querer que Nico falasse sobre ele. O que aconteceu tem que ser um segredo... Foi isso que Talis disse. Ele confiava em Nico.

— Ele é das Terras Ocidentais, depois dos Hellins, não é? — insistiu Karl. — Ele é um daqueles que se chamam de tehuantinos. Nico, você sabe que os Domínios estão em guerra com os ocidentais, não sabe? Você compreende isso?

Um aceno de cabeça. Nico não ousava abrir a boca. Ele jamais tinha ouvido aquela palavra: tehuantino. Entretanto, parecia como uma palavra que Talis diria, só pelo som. Ele foi capaz de ouvi-la no sotaque de Talis.

— Onde está sua matarh, Nico? Nós temos que levar você até ela, mas precisa nos dizer onde está sua matarh.

— Ela está com a minha tantzia — disse Nico. — Ela está bem longe daqui. Eu... abandonei minha matarh. — O menino não queria contar ao embaixador sobre os primos e a maneira como foi tratado por eles, mas pensar naquilo trouxe a lembrança da matarh, e de repente Nico queria estar com ela, acima de tudo. Sentiu lágrimas brotarem de seus olhos e os limpou quase com raiva, sem querer que o embaixador visse. Varina saiu da porta e agachou-se ao lado de Nico. Ela abraçou o menino, o que foi quase tão bom quanto um abraço da matarh.

— Talis está com sua matarh? — indagou Karl.

Esta parecia ser uma pergunta inofensiva o suficiente para responder. Nico não queria que o embaixador fosse até a matarh, e se soubesse que Talis não estava lá, bem, ele a deixaria em paz. — Não — falou Nico. Ele fungou o nariz.

— Karl, já chega — disse Varina.

O embaixador ignorou a mulher. — Onde está Talis agora, Nico?

— Eu não sei. — Quando ca’Vliomani ficou ali ajoelhado, sem dizer nada, Nico deu de ombros. — Eu não sei. Não sei mesmo.

Ca’Vliomani inclinou a cabeça de lado ao olhar para Nico. Ele pegou o queixo do menino e levantou sua cabeça até o menino ser forçado a encarar os olhos do embaixador, que não piscava. Nico viu Varina ficar nervosa. — Isso é a verdade?

O menino concordou com a cabeça enfaticamente. O homem olhou fixamente por mais alguns instantes, depois afastou a mão. Ele e Varina entreolharam-se novamente. Para o menino, parecia que os dois falavam sem dizer nada. Os dedos de ca’Vliomani cofiaram a barba, e ele fez uma careta de desdém, como se estivesse insatisfeito. A voz pareceu mais leve e menos sinistra agora. — O que você fazia no Velho Distrito, Nico? Por que não está com sua matarh?

Isso era complicado demais para responder. Nico balançou a cabeça para conter a confusão de respostas possíveis. Ele mesmo não tinha certeza por que estava aqui, neste momento. — Eu pensei que, talvez... — As lágrimas ameaçaram escorrer novamente, e o menino parou para tomar fôlego. — Eu pensei que Talis ainda pudesse estar onde a gente morava.

— Ele não está. — Foi Varina quem respondeu. A mão dela fez carinho nas costas de Nico. — Nós andamos vigiando.

— Bem, então ele viu vocês — falou Nico com confiança. — Talis é esperto. Ele teria visto vocês vigiando e não iria para casa.

— Ele não teria me visto — respondeu Varina, mas o menino não acreditou. Ele limpou os olhos novamente.

— Você tem família aqui? — perguntou ca’Vliomani. — Alguém para cuidar de você?

— Só Talis. Só ele.

Ca’Vliomani suspirou e ficou de pé soltando um gemido, os joelhos estalaram com o esforço. — Então teremos que fazer Talis saber que você está conosco, e talvez nós dois consigamos o que queremos, hein?

 

Jan ca’Vörl

— SINTO MUITO, ONCZIO FYNN — sussurrou Jan. — Isso não deveria ter acontecido, e eu espero... espero que não tenha sido culpa minha. — A voz ecoou na tumba e agitou tênues fantasmas de si mesmo. A luz hesitante da tocha fez as sombras pularem e se sacudirem pelos selos de pedra das catacumbas. Era a segunda vez que ele tinha visto um hïrzg ser sepultado nestas câmaras úmidas e sinistras, rápido demais. Vatarh e filho. Pelo menos o funeral de Fynn não foi acompanhado por presságios e mais mortes. Foi um ritual lento e sombrio, que deixou Jan com uma dor no coração.

Ele procurou por toda parte por Elissa. Mandou batedores partirem de Brezno para vasculhar estradas, estalagens e vilarejos à procura dela, em todas as direções. Roderigo dissera que não havia visto Elissa perto dos aposentos de Fynn. — Mas eu estava longe do hïrzg quando aquilo aconteceu. Ela pode ter conseguido entrar de mansinho, ou talvez tenha sido outra pessoa. Eu não sei, simplesmente não sei.

As palavras tinham gosto de bile e veneno. Jan tentou se convencer de que era tudo coincidência. A matarh mostrou a carta que recebera da família ca’Karina: Elissa era uma impostora que fingia ser uma ca’. Mas talvez fosse só isso: ela fugira porque sabia que a farsa seria revelada. Talvez fosse isso e nada mais. Ou... talvez Elissa tivesse ido até Fynn para defender sua causa, pois sabia que seria exposta como uma fraude, e interrompeu a Pedra Branca durante o serviço. Talvez ela tenha fugido aterrorizada antes de ser vista pelo famoso assassino, tão assustada que sequer ficou na cidade depois do que viu. Ou talvez — pior ainda — a Pedra Branca viu Elissa e levou-a para ser assassinada em outro lugar.

Nada disso convenceu Jan. Ele sabia o que eles pensavam, todos eles, e quando sua intuição passou a aceitar a suspeita, Jan também soube que eles estavam certos. Uma impostora na corte, uma impostora que era a amante de companhia predileta do hïrzg — a conclusão era óbvia. Elissa era a cúmplice da Pedra Branca, ou ela mesma era a Pedra Branca.

Qualquer uma das hipóteses fazia a cabeça de Jan girar. Ele lembrava o tempo que passou com Elissa, as conversas, os flertes, os beijos; a respiração acelerada quando exploravam um ao outro; o calor escorregadio e melado do sexo, as risadas depois... o corpo de Elissa, esbelto e atraente no banho de luz cálida das velas; a curva dos seios com gotas de suor da paixão; o triângulo escuro, macio e atraente na junção das penas...

Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos.

Não podia ser ela. Não podia. No entanto...

Jan colocou a mão no selo de pedra da tumba de Fynn e deixou os dedos percorrerem o baixo-relevo gravado ali. — Sinto muito — disse ele novamente para o cadáver.

Se, de alguma forma, foi Elissa, então a questão ainda sem resposta era quem contratou a Pedra Branca. Ela não mataria sem um contrato. Alguém pagou a Pedra Branca para fazer isso. Se Elissa tinha sido a faca ou simplesmente a ajudante, não importava. Não foi ela que tomou a decisão. Outra pessoa encomendou a morte.

Jan abaixou a cabeça até a testa tocar a pedra fria. — Eu descobrirei quem fez isso — falou ele: para Cénzi, para Fynn, para o ar assombrado. — Eu descobrirei e lhe darei justiça, onczio.

Jan respirou fundo no ar frio e úmido. Ficou de pé com os joelhos rangendo e pegou a tocha no suporte. Depois começou a longa subida em direção ao dia.

 

Sergei ca’Rudka

— HÁ VERDADE NA DOR — disse Sergei. Ele falou o aforismo várias vezes ao longo dos anos, dizia para que a vítima soubesse que deveria confessar o que Sergei queria que ela confessasse. Ele também sabia que era mentira. Não havia “verdade” na dor, não realmente. Pelo contrário, com a agonia que Sergei infligia, vinha a habilidade de fazer a vítima dizer qualquer coisa que ele desejasse que ela dissesse. Vinha a habilidade de tornar “verdade” qualquer coisa que quem estivesse no comando desejasse que fosse verdade. A vítima diria qualquer coisa, concordaria com tudo, confessaria qualquer coisa desde que houvesse a promessa de acabar com o tormento.

Sergei sorriu para o homem acorrentado diante dele. Ele estava em frente aos instrumentos sinistros de tortura em um rolo de couro, mas aí sua percepção mudou: era Sergei quem estava deitado e preso na mesa e olhava para o próprio rosto. As mãos estavam acorrentadas, e ele sentiu um nó nas estranhas por causa do medo gelado. Sergei sabia o que estava prestes a sentir; ele tinha infligido em muitas pessoas. Sabia o que estava prestes a sentir e gritou pela expectativa da agonia...

— Regente?

Sergei deu um pulo ao acordar na cela, as algemas nos pulsos chacoalharam a curta corrente entre elas. Ele rapidamente desceu a mão até a faca que ainda estava na bota e fez questão de pegar o cabo para que, se viessem levá-lo para o interrogatório, conseguisse tirar a própria vida primeiro.

Ele não passaria pelo que forçou outros a passar.

Mas era Aris co’Falla, o comandante da Bastida, que entrou na cela, e Sergei relaxou e tirou os dedos do cabo. Aris prestou continência ao garda que abriu a porta e falou — Pode sair. Tem almoço para o senhor no andar debaixo. Volte aqui em meia virada da ampulheta.

— Obrigado, comandante — disse o garda. Ele prestou continência e foi embora. Aris deixou a porta aberta. Da cama onde estava, Sergei deu uma olhadela para a porta escancarada. O comandante notou o olhar.

— Você não passaria por mim, Sergei. Você sabe disso. Eu sou duas décadas mais novo, afinal de contas, e é meu dever, sem falar minha vida, impedi-lo.

— Você deixou a porta aberta apenas para zombar de mim, então?

Um sorriso surgiu e desapareceu como geada na primavera. — Você prefere que eu feche e tranque?

Sergei soltou um riso amargo, e a risada virou uma tosse cheia de catarro. Aris tocou o ombro dele com preocupação quando Sergei dobrou o corpo. — Quer que eu chame um curandeiro, meu amigo?

— Para quê? Para que eu esteja o mais saudável possível quando o Conselho mandar me matar? — Sergei balançou a cabeça. — É apenas a umidade; meus pulmões não gostam dela. Então me diga, Aris, que notícias você traz?

O comandante puxou a única cadeira na cela até ele, e as pernas fizeram um barulho alto ao serem arrastadas sobre os ladrilhos. — Eu destaquei um garda em quem confio totalmente para o Conselho; para minha própria segurança nestes tempos confusos, para ser franco. Portanto, muito do que sei vem da parte dele.

— Eu não preciso do preâmbulo, Aris; ele não vai mudar sua resposta, e presumo que eu já saiba qual é. Apenas conte.

Aris suspirou. Ele virou a cadeira ao contrário e sentou-se, colocou os braços dobrados sobre o encosto e apoiou o queixo nos braços. — Sigourney ca’Ludovici está forçando o Conselho a dar o poder que o kraljiki pede. Haverá uma reunião final em poucos dias, quando então ocorrerá uma votação.

— Eles realmente darão a Audric o que ele quer?

Um aceno de cabeça franziu o queixo barbado nas mãos de Aris. — Sim, creio que sim.

Sergei fechou os olhos e recostou a cabeça na parede de pedra. Sentiu o frio da rocha através do cabelo que ficava ralo. — Eles destruirão Nessântico em nome do poder. Todos eles, e Sigourney especialmente, pensam que Audric não durará um ano, o que deixará o Trono do Sol vago para um dos conselheiros, considerando que eu esteja morto.

— Sergei. — Ele ouviu Aris falar na escuridão de seus pensamentos. — Eu lhe avisarei. Prometo. Eu darei tempo para que você... — O comandante parou.

— Obrigado, Aris.

— Eu faria mais, se pudesse, mas tenho que pensar na minha família. Se o Conselho dos Ca’ ou o novo kralji descobrir que ajudei você a fugir, bem...

— Eu sei. Eu não pediria isso a você.

— Sinto muito.

— Não sinta. — Sergei abriu os olhos novamente e inclinou-se para frente. Ele tocou o rosto de Aris com a mão, e as algemas chacoalharam com o movimento. — Eu tive uma boa vida, Aris, e servi a três kralji da melhor maneira que pude. Cénzi vai me perdoar pelo que tenho que fazer.

— Ainda há esperança, e não é preciso fazer nada por enquanto. O Conselho pode cair em si e notar que o kraljiki está doente da cabeça assim como do corpo. Os conselheiros ainda podem soltar você; eles soltarão se o esforço do archigos Kenne e dos demais leais a você surtir algum efeito. O archigos Kenne já defendeu sua causa diante do Conselho, e suas palavras ainda têm alguma influência, afinal de contas. Não perca as esperanças, Sergei. Ambos sabemos muito bem a história da Bastida. Ora, a Bastida prendeu Harcourt ca’Denai por três anos antes de ele se tornar kraljiki.

Sergei riu e conteve a tosse que queria vir junto. — Nós somos homens práticos, Aris. Realistas. Não nos enganamos com falsas esperanças.

— É bem verdade. — Aris levantou-se. — Eu mandarei o garda trazer sua comida. E um curandeiro para examinar você, quer você queira ou não. — Ele deu um tapinha no ombro de Sergei e seguiu para a porta, mas parou com a mão na maçaneta. — Se a situação chegar a este ponto, Sergei, mandarei lhe avisar antes que qualquer pessoa venha levar você para os calabouços lá embaixo. — O comandante fez uma pausa e olhou intensamente para Sergei. — Para que possa se preparar. Tem a minha palavra quanto a isso.

Sergei concordou com a cabeça. Aris prestou continência e fechou a porta com um baque metálico. Sergei ouviu o rangido da chave na tranca. Ele recostou a cabeça novamente e escutou o som das botas de co’Falla na escada de caracol da torre.

Sergei lembrou-se do som nítido dos gritos que ecoavam na pedra e das súplicas estridentes daqueles mandados para o interrogatório. Lembrou-se dos rostos contraídos de dor. Havia uma honestidade na agonia, uma pureza de expressão que não podia ser fingida. Às vezes, Sergei pensava que via Cénzi nos interrogados: o Cénzi que Ele tinha sido quando Seus próprios filhos, os moitidis, voltaram-se contra Ele e dilaceraram Seu corpo mortal. Agora, como Cénzi, Sergei poderia encarar a fúria da própria criação.

Mas ele não enfrentaria. Ele prometeu a si mesmo. De uma maneira ou de outra, ele não enfrentaria.

 

Allesandra ca’Vörl

— OS CONSELHEIROS ESTÃO AQUI e já se sentaram, a’hïrzg — disse o assistente. — Eles me pediram para levar a senhora à câmara.

Allesandra estava no corredor do lado de fora da câmara do conselho, com Pauli e Jan de cada lado. A mão tocou a tashta de gola baixa onde — sob o pano — havia uma pedra branca comum cercada por uma filigrana de ouro, ao lado do globo da archigos Ana. Mesmo Pauli — que falava alegremente que a Magyaria Ocidental e Firenzcia juntas solidificariam a Coalizão quando ele fosse o gyula e Allesandra, a hïrzgin — calou a boca quando o assistente acenou com a cabeça para que os criados do corredor abrissem as portas duplas. Os três espiaram a penumbra lá dentro, onde o Conselho dos Ca’ estava sentado a uma grande mesa.

Jan, da parte dele, estava sério e quieto, este era seu estado desde a morte de Fynn e a partida de Elissa. Allesandra passou o braço pelos ombros do filho antes de eles entrarem. Ela inclinou-se na direção de Jan e sussurrou — Quando eu sair daqui, você deve ir para seus aposentos e esperar, entendeu?

Jan olhou estranhamente para a matarh, mas finalmente concordou com um ligeiro aceno de cabeça, confuso.

A câmara do Conselho dos Ca’ em Brezno era escura, com painéis de carvalho tingido nas paredes e um tapete da cor de sangue seco: era uma sala interior do Palácio de Brezno, sem janelas, iluminada apenas pelas velas dos candelabros sobre uma mesa comprida e envernizada (nem mesmo luzes mágicas), e fria por ter apenas uma pequena lareira em uma ponta. A sala era sombria e melancólica. Não era um lugar convidativo para uma longa estadia e conversas sem pressa — e isto era intencional. O hïrzg Karin, vavatarh de Allesandra, separou esta sala de propósito para o Conselho. Ele considerava as sessões do Conselho dos Ca’ tediosas e chatas; a falta de conforto na sala pelo menos garantia que as reuniões fossem curtas.

— Por favor, entre, a’hïrzg — falou Sinclair ca’Egan da cabeceira da mesa. Ca’Egan era velho e careca, um chevaritt de voz trêmula que cavalgou com o vatarh de Allesandra antes mesmo de ele ter sido nomeado a’hïrzg pelo hïrzg Karin. Ca’Egan estava no Conselho dos Ca’ desde que Allesandra o conhecia; como ancião, ele também era o líder titular do conselho. Quatro mulheres (uma delas Francesca), cinco homens: eles ficaram de pé simultaneamente, fizeram uma mesura para a a’hïrzg, uma gentileza que nem mesmo o Conselho dos Ca’ podia ignorar, e sentaram-se novamente. Seis dos nove, em especial, acenaram com a cabeça e sorriram para ela. Allesandra, Pauli e Jan ficaram de pé, como mandava a etiqueta, na outra ponta desocupada da mesa. Ca’Egan remexeu os pergaminhos diante dele e pigarreou. — Obrigado por virem. Nós seremos breves, com certeza. É uma mera formalidade, na verdade. O hïrzg Fynn já havia nomeado Allesandra ca’Vörl como a’hïrzg, portanto precisamos apenas de sua assinatura, a’hïrzg, e a dos conselheiros presentes...

— Vajiki ca’Egan — falou Allesandra, e o velho ergueu a cabeça, curioso com a interrupção. Ao lado direito da esposa, Pauli grunhiu diante da óbvia quebra de protocolo. — Eu tenho uma declaração para fazer antes que o Conselho coloque seu selo neste documento e mande-o para o archigos reconhecer. Venho pensando nesta questão desde que meu querido irmão foi morto e rezei para Cénzi por Sua orientação, e tudo ficou claro para mim. — Ela fez uma pausa. Esta é sua última chance de mudar de ideia... Semini argumentou com ela por uma ou duas longas viradas da ampulheta, quando estavam juntos na cama, mas Allesandra estava convencida de que essa era a estratégia correta. Ela respirou fundo. Sentiu o olhar curioso e impaciente de Pauli. — Eu não quero ser a hïrzgin, e por isso renuncio à minha pretensão ao título.

As sobrancelhas de ca’Egan se levantaram no crânio nu e enrugado, a boca abriu sem emitir sons. Francesca, em choque, recuou no assento, atordoada pelo anúncio, mas a maioria não se abalou. Eles apenas concordaram com a cabeça, com os olhares mais em Jan do que em Allesandra.

— Pelos colhões de Cénzi — berrou Pauli ao lado dela. O palavrão quase pareceu evocar um relâmpago no ar escuro da câmara. — Mulher, você ficou maluca? Sabe o que está fazendo? Você acabou de...

— Cale a boca — falou Allesandra para Pauli, que a olhou com raiva, mas fechou a boca imediatamente. Ela ergueu as mãos para os conselheiros. — Eu disse tudo o que precisava dizer. Deixo com o Conselho dos Ca’ a decisão de quem é o mais indicado para ocupar o trono de Brezno. No entanto, não serei eu. Confio no julgamento dos senhores, conselheiros. Sei que farão o que é melhor para Brezno.

Dito isso, ela fez o sinal de Cénzi para o Conselho e deu meia-volta, abriu as portas tão abruptamente que os criados do corredor, postados do lado de fora, quase foram derrubados. Pauli e Jan, surpresos com a saída repentina, seguiram com atraso. Allesandra ouviu o marido avançar atrás dela. A mão de Pauli pegou seu braço e girou a esposa. O belo rosto estava vermelho e contorcido, ficou feio de raiva. Atrás dele, Allesandra viu Jan parado em frente à porta aberta da câmara enquanto observava o confronto, a própria expressão era de perplexidade e incerteza.

— O que é isso, em nome dos sete infernos? — Pauli estava furioso. — Nós tínhamos tudo que sempre quisemos nas mãos, e você simplesmente jogou fora? Ficou louca, Allesandra? — A mão apertou o bíceps da esposa e amassou a tashta embaixo dos dedos. Allesandra ficaria marcada ali amanhã, ela sabia. — Você vai voltar lá agora e dizer para os conselheiros que foi um erro. Uma brincadeira. Diga o que raios você quiser, mas você não vai fazer isso comigo.

— Com você? — respondeu Allesandra em um tom calmo e debochado. — Como essa questão tem algo a ver com você, Pauli? Eu era a a’hïrzg, não você. Você é apenas um arremedo inútil e deplorável de marido, um erro que pretendo retificar assim que puder, e vai tirar a mão de mim. Agora.

Pauli não tirou. Ele colocou a outra mão para trás, como se fosse bater em Allesandra, e cerrou o punho. — Não! — O grito veio de Jan, que correu na direção deles. — Não, vatarh.

Allesandra deu um sorriso cruel para Pauli, para a mão ainda erguida, e falou — Vá em frente. Bata, se quiser. Eu lhe digo agora que será a última vez na vida que você me tocará.

Pauli deixou o punho cair. Os dedos ficaram frouxos na manga da esposa, que se sacudiu para se soltar dele.

— Cansei de você, Pauli. Você me deu tudo o que eu precisava há muito tempo.

 

Enéas co’Kinnear

VOUZIERS: UMA CIDADE SEM SAÍDA PARA O MAR, a maior em Nessântico do Sul, a encruzilhada das estradas para Namarro e para as longínquas terras ensolaradas de Daritria. Vouziers ficava ao extremo norte das planícies de Nessântico do Sul, uma terra agrícola com extensos campos de grãos ao vento. O povo de Vouziers era como a terra: firme, despretensioso, sério e simples.

De Fossano, a carruagem levou vários dias para chegar a Vouziers. Em um vilarejo ao longo do caminho, Enéas comprou todo o enxofre que o alquimista local tinha na loja; na noite seguinte, ele fez o mesmo na próxima. Em cada uma das paradas noturnas, Enéas hospedava-se em um quarto privativo no vilarejo. Ele arrancava alguns pedaços do carvão e começava, lentamente, a moê-los até virar um pó preto — Enéas ouvia a satisfação de Cénzi quando o carvão alcançava a fineza necessária. Então, com o alerta da Voz de Cénzi para que fosse delicado e cuidadoso, ele misturava o carvão em pó, o enxofre e o nitro para formar a areia negra dos ocidentais, que Enéas embrulhou com cautela em pacotes de papel. Cénzi sussurrou as instruções enquanto ele trabalhava e manteve Enéas a salvo.

Na noite da véspera da chegada a Vouziers, Enéas levou alguns dos pacotes para o campo depois que todos dormiram. Lá, ele depositou o conteúdo em um pequeno buraco raso que cavou no solo — o resultado trouxe a lembrança incômoda das areias negras nos campos de batalha nos Hellins e da própria derrota. Conforme foi instruído pela Voz de Cénzi, Enéas pegou um pedaço de barbante molhado com cera e partículas da areia negra, enterrou uma ponta na areia negra e desenrolou o resto pelo chão ao se afastar do buraco. Mais tarde, ele ouviu Cénzi dizer em sua cabeça, Vou lhe mostrar como criar fogo do jeito que os ténis fazem. Você deveria ter sido um téni, Enéas. Este era Meu desejo para você, mas seu vatarh e matarh não Me ouviram, mas agora posso fazer de você tudo que deveria ter sido. Você tem Minha bênção...

Enéas pegou a lanterna coberta que trouxe e acendeu a ponta do barbante. O pavio assobiou e soltou fumaça e fagulhas que brilharam na escuridão. Enéas afastou-se rapidamente, chegou à estalagem e entrou no salão comunal quando surgiu a erupção: um estrondo mais alto do que um trovão estremeceu as paredes da estalagem e sacudiu o papel de seda, grosso e transparente das janelas, seguido por um clarão momentâneo de luz do dia. Todo mundo no salão ficou assustado e esticou o pescoço. — Pelos colhões de Cénzi! — rugiu o estalajadeiro. — A noite ficou clara como água!

O estalajadeiro irrompeu do lado de fora e foi seguido pelos outros. Eles primeiro olharam para o céu sem nuvens e não viram nada. Lá no campo, porém, ardia um pequeno fogo. Quando se aproximaram, Enéas viu que o pequeno buraco que cavou agora tinha profundidade suficiente para um homem ficar de pé até os joelhos e o diâmetro de quase um braço. Pedras e terra voaram para todos os lados. Era como se o próprio Cénzi tivesse socado a terra com raiva.

O estalajadeiro ergueu os olhos para o céu onde as estrelas brilhavam e aglomeravam-se na escuridão vazia. — Raio que cai sem tempestade — disse o homem enquanto balançava a cabeça. — É um presságio, eu digo para vocês. Os moitidis estão dizendo que perdemos o rumo.

Um presságio. Enéas viu-se rindo das palavras do estalajadeiro, que não tinha noção de como eram proféticas. Isto era realmente um presságio, um presságio do desejo de Cénzi para ele.

No dia seguinte, ele chegou a Vouziers. Durante a longa cavalgada, Enéas rezou com mais fervor do que jamais rezara, e Cénzi respondeu. Ele sabia o que devia fazer ali, o pensamento o incomodava, mas Enéas era um soldado, e soldados sempre cumpriam seus deveres, por mais onerosos que fossem.

Após chegar a Vouziers e arrumar hospedagem para a noite, Enéas vestiu o uniforme e pendurou uma bolsa pesada de couro no ombro. Ele havia enchido um saco comprido de couro com seixos, que foi colocado no bolso interno da bashta. Quando as trompas soaram a Terceira Chamada, Enéas entrou no templo para a missa da noite, que era ministrada pela própria a’téni de Vouziers. Depois da Admoestação e da Bênção, Enéas acompanhou a procissão de ténis do templo para a praça, iluminada por lâmpadas mágicas contra o céu que escurecia. A a’téni conversava com os ca’ e co’ da cidade, e, em vez de falar com ela, Enéas foi até um de seus assistentes, um o’téni pálido cuja boca parecia lutar com o sorriso que deu para ele.

— Boa noite, o’offizier — falou o téni ao fazer o sinal de Cénzi para Enéas. — Perdão, eu deveria conhecer o senhor?

Ele balançou a cabeça ao devolver o gesto. — Não, o’téni, só estou passando pela cidade a caminho de Nessântico. Acabei de retornar dos Hellins e da guerra de lá.

O o’téni arregalou um pouco os olhos e franziu os lábios. — Ah, então devo abençoar o senhor pelo serviço prestado aos Domínios. Como vai a guerra contra os ocidentais pagãos?

— Não vai bem, infelizmente — respondeu Enéas, que olhou com cuidado em volta da praça do templo. — Eu queria que fosse possível dizer o contrário. E aqui... — Ele balançou a cabeça com tristeza e observou o o’téni com atenção. — Eu passei quase 15 anos fora e encontrei muitas mudanças ao voltar. Os numetodos andam pelas ruas abertamente, debocham de Cénzi com seus feitiços e palavras... — Sim, Enéas julgou o homem corretamente: o o’téni apertou os olhos e franziu ainda mais os lábios. Ele inclinou-se para frente de maneira conspiratória e falou quase como um sussurro.

— É realmente uma vergonha que o senhor, que serviu tão fielmente ao seu kraljiki, retorne e veja essa situação. Minha a’téni discorda, mas eu culpo a archigos Ana por esse estado das coisas. E olhe no que isso resultou para ela: os malditos numetodos mataram a archigos assim mesmo. O archigos Kenne... — O o’téni fez um gesto de nojo. — Pfff... Ele é ainda pior, na verdade. Ora, em Nessântico as pessoas desrespeitam a Divolonté abertamente hoje em dia: os numetodos dizem que qualquer um pode usar o Ilmodo, que isso não exige o Dom de Cénzi, e mostram como realizar pequenos feitiços: acender uma lareira ou esfriar o vinho. As pessoas não usam os feitiços às claras, mas nos lares, quando acham que Cénzi não está vendo... — O o’téni balançou a cabeça novamente.

— Os numetodos são uma praga — disse Enéas. — O velho Orlandi ca’Cellibrecca sabia o que fazer com eles.

O o’téni olhou em volta com uma expressão de culpa ao ouvir a menção a Orlandi e falou — Este não é um nome que se deva falar abertamente, o’offizier. Não quando o genro diz ser o archigos de Brezno.

Enéas fez o sinal de Cénzi novamente. — Peço desculpas, o’téni. Este é outro assunto delicado para um soldado como eu, infelizmente. Os Domínios deveriam ser reunificados, assim como a fé concénziana. Sofro por vê-los partidos, assim como sofro ao ver os numetodos tão descarados.

— Eu entendo — disse o o’téni. — Ora, aqui em Vouziers, os numetodos têm o próprio prédio. — O homem apontou para uma das ruas que afluía da praça. — Bem por ali, à vista do próprio templo, com o sinal deles como enfeite na porta. É uma desgraça que Cénzi não permitirá por muito tempo.

— Quanto a isso, o senhor está certo, o’téni — respondeu Enéas. — É exatamente o que Cénzi me diz. — Ao ouvir isso, o o’téni olhou estranhamente para Enéas, mas o offizier não deu chance de ele falar mais nada, apenas fez uma mesura e cruzou a praça rapidamente na direção da rua que o homem indicou. Enéas assobiou uma música enquanto caminhava, uma canção de Darkmavis que sua matarh cantara para ele há muito tempo, quando o mundo ainda fazia sentido e a kraljica Marguerite ainda estava no Trono do Sol.

Ele achou o prédio dos numetodos facilmente — o entalhe no dintel da porta principal era uma concha, o sinal dos numetodos. Havia uma estalagem do outro lado da rua do prédio. Enéas entrou e pediu vinho e uma refeição, sentado a uma das mesas do lado de fora. Ele tomou goles do vinho e comeu devagar, observando o covil dos numetodos enquanto o céu ficava totalmente escuro entre os prédios.

Três vezes Enéas viu gente entrar; duas vezes viu alguém saindo, mas, como em nenhuma das ocasiões Cénzi falou com ele, o offizier continuou comendo e esperando. De vez em quando, Enéas tocava na bolsa de couro no chão ao seu lado para restaurar a confiança. Quase duas viradas da ampulheta depois, quando as ruas estavam quase vazias, antes de ficarem cheias novamente de pessoas que preferiam o anonimato da noite, ele viu um homem sair do prédio dos numetodos, e Cénzi agitou-se dentro de Enéas.

— Aquele ali... — Enéas sentiu o chamado com força, pendurou a bolsa no ombro, deixou um siqil de prata na mesa para pagar a refeição e o vinho, e correu atrás do sujeito. Seu alvo era um homem mais velho: careca no topo da cabeça, com cabelos grisalhos em volta. Ele usava túnica e calças, não uma bashta, e estava sem chapéu; seria difícil perdê-lo de vista mesmo em uma multidão.

Subitamente ficou claro por que Cénzi escolheu este numetodo; ele descia a rua na direção da praça do templo. As luzes mágicas começavam a enfraquecer, e havia poucas pessoas na praça, embora os domos do templo em si ainda estivessem bem acesos, com uma luminosidade dourada contrastando com o céu pontilhado de estrelas. Enéas deu uma olhada rápida à procura de um utilino e não viu nenhum. Ele seguiu em frente apressadamente, e o numetodo virou-se ao ouvir os passos. Enéas viu a palavra do feitiço nos lábios do homem, que ergueu as mãos como se fosse fazer um gesto, e abriu um largo sorriso ao acenar para o homem como se cumprimentasse um amigo que não via há tempos.

O numetodo franziu os olhos, como se não reconhecesse o rosto diante dele. O homem abaixou as mãos e deu um sorriso hesitante como resposta. — Eu conheço...?

Foi o máximo que ele chegou a dizer. Enéas puxou o saco de couro com seixos do bolso e, com um movimento ágil, golpeou com força ao lado da cabeça do homem. O numetodo desabou inconsciente, e Enéas segurou-o com o braço ao desmoronar. Ele apoiou um braço mole sobre o ombro e levantou o sujeito pelo cinto. Riu como se estivesse bêbado, cantou desafinado ao arrastar o numetodo na direção da porta lateral do templo. Quem visse ao longe pensaria que eram dois amigos embriagados que cambaleavam pela praça. Enéas olhou pela última vez para trás ao chegar às portas; ninguém parecia estar observando. Ele puxou a porta pesada com revestimento de bronze e decorada com imagens dos moitidis e sua luta com Cénzi: isso não mudara — as portas dos templos raramente eram trancadas, ficavam abertas para aqueles que desejassem entrar para rezar ou para os indigentes que precisassem de um lugar para dormir à noite, ao custo de ouvir uma Admoestação do téni que os encontrasse de manhã. Enéas entrou de mansinho na escuridão fria do templo, que estava vazio. O som da respiração e dos passos soaram alto enquanto ele arrastava o peso morto do numetodo pela nave principal, e finalmente Enéas largou o homem apoiado no atril em frente ao coro. Ele tirou a bolsa do ombro e colocou no colo do numetodo, depois desenrolou o longo barbante. Enéas foi soltando o pavio com cuidado enquanto recuava pela nave.

Eu vou lhe mostrar seu próprio pequeno Dom, Cénzi dissera para Enéas naquela mesma tarde. Vou lhe mostrar como fazer seu próprio fogo. O cântico e os gestos vieram à mente naquele instante, e embora Enéas soubesse que era contra a Divolonté usar o Ilmodo sem ser um téni, ele sabia que esta era a vontade de Cénzi e que não seria punido por isso. Enéas entoava o cântico agora, perto da entrada do templo, e sentiu o frio do Ilmodo fluir pelas veias e o Segundo Mundo se abrir em sua mente: entre as mãos em movimento, havia um calor e luz impossíveis. Ele deixou que o fogo caísse na ponta do barbante, e o pavio começou a espocar e fumegar.

— Ei! Quem está aí? O que é isso?

Enéas viu um téni surgir de uma arcada que dava para fora do coro; era o o’téni com quem ele falara mais cedo. Enéas abaixou-se rapidamente, embora estivesse estranhamente cansado por causa do feitiço, como se tivesse trabalhado duro o dia inteiro. Ele ouviu o chamado do téni e o eco de outros passos. — Quem é? O que está acontecendo? — disse alguém enquanto o fogo no pavio afastava-se rapidamente de Enéas na direção do atril. Quando a chama estava quase lá, ele ficou de pé e correu para a porta. Viu de relance o o’téni e alguns e’ténis, que se dirigiam rapidamente para o numetodo caído e imóvel, e alguém apontou para Enéas...

... mas já era tarde demais.

Um dragão rugiu e cuspiu fogo, e a concussão alcançou Enéas, jogando-o contra as portas de bronze. Meio inconsciente, ele caiu nas lajotas de pedra e foi fustigado por fragmentos de rocha e mármore. Quando passou a chuva rápida e dura, Enéas ergueu a cabeça. Havia algo vermelho no chão à sua frente: a perna do numetodo, ainda vestida com as calças largas, notou ele com um susto. Perto da entrada do templo, alguém gritava, um longo lamento entrecortado por xingamentos. Gemendo, Enéas tentou se sentar. Ele sangrava por vários cortes e arranhões, o corpo estava dolorido pela colisão com as portas de bronze, mas, tirando isso, havia sido poupado por Cénzi. As portas do templo estavam escancaradas diante dele, e um utilino entrou correndo e passou por Enéas enquanto apitava alto. Ténis entraram correndo das alcovas. O Alto Púlpito havia desmoronado, estava quebrado, caído na nave, e havia sangue e partes de corpos por todos os lados. O numetodo... ele viu a cabeça do homem e a parte de cima do torso, que foram arrancadas e jogadas na nave. O resto dele, onde esteve a bolsa de areia negra... Enéas não conseguiu ver o resto.

Por um momento, ele sentiu náusea: isso era muito parecido com a guerra, e as memórias do que viu nos Hellins ameaçaram sobrepujá-lo. Sentiu um gosto ácido na garganta e um embrulho no estômago, mas a Voz de Cénzi estava em sua cabeça também.

Isso é o que eles merecem, aqueles que Me desafiam. Você, Enéas, será meu moitidi da morte, a arma escolhida por Mim.

Mas eu não desejo isso, Enéas queria dizer, mas assim que pensou nas palavras, sentiu a fúria de Cénzi crescer, um calor no cérebro que fez a cabeça latejar, e ele caiu de joelhos com o crânio entre as mãos.

Tudo era uma confusão. Pessoas empurraram Enéas para passar. Ele ainda ouviu o téni ferido gritar. — ... numetodo... eu o reconheço... — Enéas ouviu a palavra em meio ao caos e sorriu. Quando mais pessoas entraram aos gritos vindas da praça, ele aproveitou a oportunidade para sair de mansinho pelo lado e entrar nas sombras.

Ele saiu para a noite e sentiu-se aquecido pela presença de Cénzi.

Você está apto para a tarefa que lhe dei. Agora, vá para Nessântico, e falarei com você lá...

 

Audric ca’Dakwi

O CONSELHO DOS CA’ DE NESSÂNTICO reunia-se no primeiro andar do Grande Palácio na Ilha A’Kralji, onde os conselheiros tinham vários aposentos e um pequeno contingente de criados do palácio dedicados inteiramente às suas necessidades. O Conselho dos Ca’, durante a maior parte do reinado da kraljica Marguerite, bem como de seu filho, o kraljiki Justi, foi basicamente uma organização social, que vinha ao palácio para assinar documentos entregues a eles pelo kralji e pelo corpo de funcionários do palácio — uma tarefa que eles executavam com pouca reflexão ou discussão, de resto, passavam o tempo relaxando em seus suntuosos gabinetes privativos ou socializando nas salas de jantar e estar bem equipadas da seção do Conselho no Palácio do Kralji. Por muitas décadas, ser um “conselheiro” era, em grande parte, um posto honorário, com deveres cerimoniais e longe de serem muito exigentes, e a retribuição por servir no Conselho era generosa.

Mas com o falecimento do kraljiki Justi, e com Audric sendo menor de idade ao ascender ao Trono do Sol, o Conselho teve que assumir um papel mais ativo no governo. Foi o Conselho dos Ca’ que nomeou Sergei ca’Rudka como regente; era o Conselho que agora criava e aprovava novas legislações (até bem recentemente, com a contribuição do regente também); era o Conselho que controlava o bolso de Nessântico; era o Conselho que o regente tinha a obrigação de consultar em qualquer questão política dentro dos Domínios ou qualquer decisão diplomática que envolvesse a Coalizão, os Hellins ou quaisquer outros países dentro dos Domínios.

O Conselho foi obrigado a acordar do longo e tranquilo sono, e em grande parte acordou. A última eleição para o Conselho, há quatro anos, foi agressiva e implacável; quatro dos sete integrantes foram depostos e substituí-dos por ca’ bem mais ambiciosos.

Audric conhecia a história do Conselho; Sergei reclamava sem parar a respeito dos conselheiros, e o mestre ci’Blaylock falava a mesma coisa nas aulas. Agora sua mamatarh deu os mesmos avisos.

— Você precisa tomar cuidado, Audric. Lembre-se de que cada um dos conselheiros quer estar no seu lugar. Eles querem o anel e o cajado; querem se sentar no Trono do Sol. Os conselheiros têm inveja de você, e é preciso convencê-los de que, ao darem o que você quer, eles estarão mais próximos de seus próprios objetivos.

A mamatarh Marguerite olhava fixamente para ele enquanto Audric percorria o corredor até o salão do Trono do Sol, onde era aguardado pelo Conselho. As rodas do cavalete onde o quadro ficava apoiado estavam silenciosas hoje; ele insistiu que fossem lubrificadas por Marlon com gordura de pato antes da reunião. Os criados empurraram o cavalete pelo corredor interno do palácio na frente de Audric, com cuidado, para acompanhar seu ritmo lento e vacilante, enquanto Marlon e Seaton apoiavam o kraljiki de ambos os lados. Ele teve um péssimo dia; era um dia nublado e frio, e Audric permitiu-se tossir mesmo enquanto ouvia a voz da mamatarh confortá-lo.

— Você pode se permitir tossir, desta vez — disse ela. — Dessa vez, sua fraqueza será sua força. Mas, depois de hoje, você tem que ser mais forte. Você será mais forte.

— Eu serei, mamatarh. Serei forte depois de hoje, e a doença irá embora. — Pelo rabo do olho, Audric notou que Marlon olhava estranhamente para ele, embora o homem não dissesse nada.

Seaton gesticulou para os criados do corredor, que abriram a porta do salão e fizeram uma mesura quando Audric e sua mamatarh entraram. Lá dentro, os integrantes do Conselho levantaram-se das cadeiras diante do Trono do Sol e também fizeram uma mesura, embora a saudação tenha sido apenas uma leve inclinação de cabeças. Audric notou os olhos de Sigourney ca’Ludovici quando ela abaixou a cabeça, embora a conselheira parecesse olhar mais para o quadro de Marguerite do que para o kraljiki. Ele dirigiu-se ao Trono do Sol, foi ajudado por Marlon a subir os três degraus da plataforma, e deixou-se cair no assento estofado. Audric tossiu então — não conseguiu impedir o ataque —, no momento em que a luz brilhou nas profundezas do cristal e banhou o kraljiki de amarelo: como o Trono do Sol fazia há longas gerações sempre que um kralji se sentava ali. Audric limpou a boca na manga da bashta de seda enquanto o Conselho permanecia de pé diante dele, e Seaton empurrou o cavalete para o lado direito do trono, de maneira que Marguerite encarasse com ódio os sete ca’.

— Olhe para eles — falou a kraljica para Audric. — Veja como olham com fome o Trono do Sol. Todos imaginam como conseguirão se sentar onde você está. Comece por ser firme com eles, Audric. Mostre que você está no comando desta reunião, não os conselheiros. Então... então faça o que tem que fazer.

— Eu farei — disse Audric para Marguerite. Os ca’ já começavam a se sentar, e ele ergueu a voz para se dirigir aos conselheiros. — Não há necessidade de se sentar. Nosso assunto aqui deve tomar apenas alguns grãos de areia da ampulheta.

Interrompidos no meio do movimento, os ca’ endireitaram-se em meio a um farfalhar de bashtas e tashtas e lançaram olhares na direção de Audric que oscilavam do questionamento à quase raiva. — Perdoe-me, kraljiki — falou Sigourney ca’Ludovici —, mas as coisas podem não ser tão simples quanto o senhor imagina.

— Mas elas são simples, vajica ca’Ludovici — disse Audric. — O traidor ca’Rudka está na Bastida; o Conselho teve o tempo que a senhora pediu para que os conselheiros consultassem entre si e deliberassem. Os senhores nomearão outro regente ou permitirão que eu reine como kraljiki como deveria? Essas são as duas únicas opções diante dos senhores, que já deveriam ter tomado uma decisão. — A longa fala exigiu esforço, como ele sabia que exigiria. Ele tossiu e dobrou o corpo enquanto a mamatarh ria baixinho em sua cabeça, cobriu a boca com um lenço que rapidamente ficou sujo com manchas vermelhas. Audric amassou o pano de linho na mão, mas não tanto a ponto de eles não conseguirem ver o sangue.

Audric abriu os olhos e viu ca’Ludovici olhando fixamente para sua mão. A conselheira ergueu o olhar abruptamente e sorriu como um gato espiando um rato encurralado, depois olhou uma vez para os demais integrantes do conselho, atrás dela. — Talvez o senhor esteja certo, kraljiki. Afinal de contas, o dia está úmido e nós não deveríamos mantê-lo longe do conforto de seus aposentos.

A vajica ca’Ludovici tomou fôlego, e Audric ouviu Marguerite sussurrar para ele naquele espaço de tempo. — Agora. Diga para a conselheira o que ela quer escutar.

— Eu estou mais forte agora do que estive há anos — falou Audric, mas ele forçou uma tosse e uma pausa, como se tomasse fôlego entre as palavras. Não foi preciso muito encenação. — Mas também estou ciente da minha juventude e inexperiência, e contaria com a orientação do Conselho dos Ca’, e talvez especialmente da senhora, conselheira ca’Ludovici, como minha mentora.

Ela fez uma mesura ao ouvir isso, e era impossível não notar a satisfação no rosto de ca’Ludovici. — O senhor realmente é sábio para a idade que tem, kraljiki, o que significa que é um prazer lhe informar que todos nós deliberamos e chegamos a um acordo. Kraljiki Audric, apesar de sua idade, o Conselho dos Ca’ não nomeará um novo regente.

Ele ouviu a mamatarh rir ao ouvir a notícia, exultante, e o próprio Audric quase riu também, só não o fez porque o riso traria a tosse novamente. O kraljiki contentou-se com um gesto silencioso de agradecimento para os conselheiros. Tão fáceis de manipular. Tão previsíveis. Ele não sabia de quem era o pensamento: seu ou de Marguerite.

— Eu gostaria de agradecer ao Conselho por seus esforços. E vemos uma nova era para Nessântico, uma era em que recuperaremos tudo que perdemos e superaremos até mesmo os sonhos da kraljica Marguerite. — Audric teve que fazer uma pausa para respirar e limpar os pulmões de novo. Marlon esticou a mão para o trono a fim de entregar um novo lenço e levar embora o molhado e manchado. — Quanto ao antigo regente ca’Rudka, acho que está na hora de ele confessar seus pecados, fazer as pazes com Cénzi e pagar pelos erros de sua vida.

A vajica ca’Ludovici fez uma mesura mais uma vez, mas não antes de Audric ver mais uma vez a satisfação na expressão do rosto. Sim, ela encara ca’Rudka como um rival perigoso enquanto permanecer vivo... — Será feito como o kraljiki deseja — disse Sigourney. — Eu cuidarei disso pessoalmente.

 

Karl ca’Vliomani

A NOTÍCIA ESPALHOU-SE RAPIDAMENTE pela cidade, e como embaixador de Paeti, Karl esteve entre os primeiros a ouvi-la: o Conselho dos Ca’ declarou que o kraljiki atingiu a maioridade e que a regência de ca’Rudka chegou ao fim. Karl ouviu a notícia com um desespero desanimador, pois sabia o que ela prenunciava, e imediatamente chamou uma carruagem e mandou que o condutor cruzasse correndo a Pontica Kralji para o Velho Distrito.

Ele torceu para que já não fosse tarde demais. Se Karl fosse um homem religioso, teria rezado. De certo modo, ele tocou a concha no cordão em volta do pescoço como se fosse um talismã, como se a concha pudesse afastar as nuvens tempestuosas que Karl via em seu futuro.

Considerando que Audric conseguisse sobreviver, o menino seria agora um joguete de Sigourney ca’Ludovici e do Conselho dos Ca’. Ana e Sergei foram os escudos dos numetodos contra os elementos conservadores dentro da fé concénziana e da sociedade. Foram apenas os dois que permitiram o crescimento dos numetodos. Agora, rápido demais, os dois se foram.

Haverá corpos de numetodos pendurados para exibição nas Ponticas novamente. Karl viu os cadáveres em sua mente e o próprio rosto em um deles. Torceu para que a visão fosse causada apenas pelo medo, e não por algum presságio.

Não existem deuses. Não existem presságios. O pensamento racional não acalmou sua mente. Ele não se sentia racional; sentia medo.

Mika e Varina concordaram em se encontrar com ele na taverna de sempre no Velho Distrito. Mesmo lá, onde os frequentadores o conheciam e o cumprimentavam pelo nome, Karl imaginou que receberia olhares tortos de quem estivesse nos compartimentos e às mesas. Ele não sabia mais com quem poderia contar, a não ser com os dois. Varina sentou-se ao lado de Karl no compartimento do canto, seu corpo era uma fonte de calor providencial, e Mika ficou do outro lado da mesa.

Amigos. Karl esperava que eles continuassem sendo amigos, depois disso. — Você é o a’morce dos numetodos aqui — disse o embaixador para Mika em uma voz urgente e baixa, para que não fosse ouvido pelos frequentadores do bar. O músico no canto, que tocava um alaúde de cinco cordas e cantava baladas que já eram velhas quando sua mamatarh as ensinou para ele, ajudou a abafar a conversa. — Não peço que se envolvam, mas fiz uma promessa a ca’Rudka que pretendo cumprir. Preciso avisá-los para que... façam preparativos.

Mika deu de ombros, embora sua expressão cansada tenha deixado claro para Karl que ele estava mais preocupado do que admitiria. Mika pegou a cerveja em frente a ele e deu um grande gole, depois limpou a espuma das pontas do bigode. — Se Audric ou o Conselho estão dispostos a matar ca’Rudka, então se voltarão para os numetodos a seguir como bodes expiatórios adicionais, caso você faça ou não alguma coisa, Karl. A culpa de tudo sempre cairá sobre nós, como sempre cai.

— Você tem família aqui. Eu sei. Sinto muito.

— Sali já passou por isso antes — falou Mika. — Ela entenderá. Vou mandá-la com as crianças para sua família em Il Trebbio.

— E quanto ao menino, Nico? — perguntou Varina. — O que fazemos com ele?

— Vocês não ouviram nada de Talis ou da matarh dele? — indagou Karl, e Varina negou com a cabeça. — Então permaneça com o menino por enquanto, se quiser. Se a situação ficar muito perigosa, deixe Nico ir embora. Não tenho interesse que ele se machuque só por estar associado a nós. — Karl soltou um longo suspiro. A própria cerveja permanecia intocada sobre a mesa, e ele olhou fixamente para as bolhas que espumavam na caneca de madeira. Milhares de bolhas, todas surgem ao mesmo tempo, depois estouram e somem. Como eu. Como todos nós. Somem rápido demais e não sobra nada depois. Nada...

— Eu irei com você hoje à noite, Karl, depois que despachar Sali e as crianças — disse Mika. — Você precisará de ajuda com isso.

Karl balançou a cabeça. — Não será necessário.

— Se ca’Rudka for retirado da Bastida por magia, então todos nós sabemos quem será o culpado e quem será caçado — falou Mika. — Pelo menos uma vez, eles terão razão em culpar os numetodos, não é? Mas a reação que que se desencadeará não mudará caso você vá sozinho ou com uma dezena de nós, ou caso seja bem-sucedido ou fracasse: só a tentativa já será suficiente.

— Eu não arriscarei a vida de uma dezena de nós; levarei dois — respondeu Karl. — Eu e mais outro.

Mika deu um sorriso irônico. — Então é melhor eu garantir que você consiga. Enquanto ca’Rudka permanecer vivo, há uma chance de que ele consiga voltar ao poder, o que seria melhor para nós.

— Eu sou mais forte do que qualquer um de vocês com o Scáth Cumhacht — interrompeu Varina. — Eu vou com vocês também.

Com esta declaração, o nó no estômago de Karl ficou mais apertado. Ele imaginou Varina morta, ou pior, capturada. Karl fez uma careta e balançou a cabeça diante da dor dessa ideia. — Não há necessidade. Você tem que tomar conta de Nico.

Ela franziu os lábios e tamborilou na mesa do compartimento. — Mika — falou Varina —, acho que precisamos de mais uma rodada aqui. Importa-se de ir pegar?

Mika pestanejou, confuso. — É só chamar Mara e... — Ele fez uma pausa e arregalou um pouco os olhos. — Ah. — Mika franziu os lábios. — Certamente. Vou pegar.

Ele mal havia deixado o compartimento quando Varina virou-se no banco para encarar Karl. A voz era baixa e ameaçadora. — Karl, eu passei anos, anos, realizando pesquisas e experiências para expandir o catálogo de fórmulas mágicas que agora nós usamos regularmente. Eu me dediquei a entender a magia ocidental, como ela funciona e como podemos dominar seus costumes. Eu abri mão... — Varina parou e mordeu o lábio inferior momentaneamente. — Eu abri mão da vida que poderia ter levado em nome dos numetodos e de uma causa que achei que compartilhávamos. E agora você vai me relegar ao papel de babá? Se fizer isso, Karl, você estará dizendo que desperdicei todo aquele tempo, todo aquele esforço e todos aqueles anos. É o que está me dizendo? É isso?

A acusação de Varina cortou Karl como uma adaga afiada. Ele levantou as mãos da mesa como se estivesse magoado. — Você não entende... — Karl começou a dizer.

— O que eu não entendo? — disparou ela de volta. — Que você acha que eu não tenho utilidade alguma para você? Que eu... não me importo com você o suficiente para querer ajudar?

— Não. — Karl balançou a cabeça incontrolavelmente. — Varina, nossas chances não são boas aqui.

— E são melhores sem mim?

Karl suspirou. — Não, não foi isso o que eu disse. Eu não quero que você se machuque.

— Mas está disposto a deixar Mika se arriscar? Por que, Karl? Por que ele é tão diferente de mim? Por quê? — As perguntas foram marteladas, e Karl pensou que houvesse uma estranha urgência nas questões, como se existisse uma resposta que Varina quisesse que ele desse.

Mas Karl não tinha respostas. Ele abaixou a cabeça, encarou a caneca, as bolhas sumiam na borda, a água no fundo manchava a madeira. — Se quiser ir comigo, Varina, então eu ficarei contente com a sua ajuda. — Karl ergueu a cabeça. Ela encarava o embaixador com uma resistência frágil. — Obrigada.

Varina abriu um pouco a boca, como se fosse dizer mais alguma coisa, mas simplesmente concordou com a cabeça.

Mika voltou com mais cerveja e pousou as canecas no centro da mesa. — Tudo acertado?

— Sim — respondeu Karl. — Tudo acertado. Se isso for realmente o que vocês querem, então vamos terminar as cervejas para podermos ir aos nossos aposentos e preparar os feitiços que precisaremos hoje à noite. Mika, se você puder cuidar de espalhar a mensagem para que todos os numetodos saiam da cidade ou façam planos para ficar escondidos em um futuro próximo... — Ele finalmente pegou sua caneca, e Mika e Varina levantaram as próprias. Os três brindaram. — À sorte — falou Karl. — Vamos precisar dela.

Eles beberam as canecas simultaneamente.

 

Varina ci’Pallo

— VOCÊ PARECE TERRIVELMENTE CANSADA, Varina — disse Nico.

Ela estava mesmo. Estava exausta, tão cansada que os ossos doíam. A tarde tinha sido gasta na preparação dos feitiços, com a moldagem do Scáth Cumhacht até que o feitiço estivesse completo, depois vieram a colocação da palavra de ativação e o gestual para soltá-lo na mente. A exaustão da feitiçaria consumiu Varina — era pior agora do que quando ela era jovem, pior desde que começou a experimentar o método tehuantino. Ela tinha ido ao quartinho onde Nico era mantido a fim de buscá-lo para o jantar e ver como o menino estava.

— Eu ficarei bem em algumas viradas da ampulheta — falou Varina para Nico. — Eu só tenho que dormir um pouco para me recuperar.

— Talis também sempre ficava cansado quando fazia as coisas mágicas, especialmente com aquela tigela. Eu achava que aquilo fazia Talis parecer velho também. Como a senhora.

A honestidade brutal de uma criança. Varina tocou no cabelo cada vez mais grisalho, nas rugas profundas que surgiram no rosto nos últimos anos, e disse — Nós pagamos pela magia desta maneira. Não se consegue nada nesse mundo sem um preço. Você aprenderá isso. — Ela deu um sorriso irônico. — Desculpe. Isso parece algo que uma matarh diria.

Nico sorriu: hesitante, quase tímido. — A matarh fala assim comigo às vezes, como se estivesse falando mais com ela mesma do que comigo. Vou tentar me lembrar disso, porém.

Varina riu. Ela sentou-se na cadeira ao lado da cama do menino e inclinou-se para frente a fim de mexer no cabelo de Nico. Ele franziu a testa e recuou um pouco na cama. — Nico — disse Varina ao recolher a mão —, eu tenho que falar com você. Coisas estão acontecendo lá fora. Coisas ruins. Depois que eu descansar um pouco, terei que sair para fazer algo e, quando voltar, teremos que sair da cidade muito depressa.

— Como eu tive que sair com a matarh? — Ele recolheu ao peito as pernas dobradas quando se sentou na cama e as abraçou. Nico olhou sobre os joelhos para Varina.

— Sim, da mesma forma.

— A senhora está em apuros?

Varina teve que sorrir ao ouvir isso. — Estou prestes a estar.

Ele torceu o nariz. — É por causa daquele homem?

— Karl, você quer dizer? Pode-se dizer que sim.

Nico soltou as pernas e olhou para a comida na bandeja, mas não tocou nela. — A senhora e Karl estão...?

Varina entendeu a pergunta sem palavras. — Não. Por que você achou isso?

— A senhora age como se fossem. Quando vocês dois conversam, parecem minha matarh e Talis.

— Bem, nós não estamos... juntos. Não desta forma.

— Ele gosta da senhora, dá para dizer.

Isso fez Varina sorrir, mas o gosto foi amargo. — Ah, dá para dizer, é? Quando você passou a saber tanto sobre os costumes dos adultos?

Nico deu de ombros e repetiu — Dá para dizer.

— Não vamos falar sobre isso — disse Varina, embora quisesse. Ela perguntou-se o que Karl diria para Nico se o menino tivesse dito a mesma coisa. — Eu preciso que você coma e durma um pouco porque é bem provável que nós tenhamos que sair da cidade hoje à noite. Você precisa estar pronto para isso.

— A senhora vai me levar para a minha matarh?

— Quisera eu, Nico. De verdade. Mas eu ainda não sei para onde iremos. Vou levá-lo a um lugar seguro. Isto eu prometo. Não deixarei nada de mal acontecer com você, e tentaremos devolvê-lo para sua matarh. Entendeu?

Ele concordou com a cabeça.

— Ótimo. Então coma o jantar e tente dormir. Eu mesma vou descansar no quarto ao lado. Se precisar de mim, pode me chamar. Vá agora, prove a sopa antes que ela esfrie.

Varina observou o menino comer por alguns grãos da ampulheta até sentir as pálpebras pesadas. Quando acordou, descobriu que tinha caído no sono na cadeira ao lado da cama, e Nico também dormia, encolhido perto dela com um braço esticado para tocar sua perna. Lá fora, ouviu o ritmo da chuva no telhado e nas persianas da casa.

Varina cobrou Nico e encostou os lábios em sua bochecha. Depois deixou o menino, fechou e trancou a porta ao sair.

Ela torceu para que o visse novamente.

 

A Pedra Branca

NESSÂNTICO...

Ela nunca tinha visto a cidade antes, embora obviamente tivesse ouvido falar muito a seu respeito. Mesmo com os Domínios divididos, mesmo com o antigo kraljiki tendo sido uma pálida imagem de sua famosa matarh, e mesmo com o atual kraljiki sendo um menino frágil que, diziam os rumores, não viveria para chegar à maioridade, Nessântico mantinha o encanto.

A Pedra Branca sempre soube que viria aqui com o tempo, como qualquer pessoa com ambição deveria. A atração da cidade era irresistível, e para alguém de seu ramo de negócios, Nessântico era um campo rico e fértil a ser explorado. Mas ela não esperava vir aqui tão rapidamente ou por estes motivos.

Após o assassinato às pressas e quase malfeito do hïrzg, a Pedra Branca considerou que era perigoso demais ficar na Coalizão. Ela voltou a assumir o papel da mendiga Elzbet, escondeu-se entre os pobres que tão frequentemente eram invisíveis aos ca’ e co’, e foi de Brezno a Montbataille nas montanhas orientais que formavam a fronteira de Nessântico com Firenzcia, depois desceu o rio A’Sele até a grande cidade em si.

Enquanto interpretava o papel, a Pedra Branca instalou-se no Velho Distrito. Esta era a melhor maneira de evitar chamar atenção. Ela era apenas mais um dos pobres anônimos que perambulavam pelas ruas da maior cidade do mundo conhecido, e ninguém iria notar ou se importar muito se ela conversasse com as vozes em sua cabeça enquanto andava. Ela era apenas outra alma louca, uma mulher maluca que balbuciava e murmurava para si mesma, que percorria algum mundo interior em conflito com a realidade à volta dela.

— Você pagará por isso. Não pode me matar e não pagar. Eles encontrarão você. Eles virão ao seu encalço e matarão você.

— Quem? — perguntou ela para a voz estridente de Fynn enquanto os demais dentro da Pedra Branca riam e debochavam dele. Ela levou a mão à tashta, apalpou sob o pano a pequena bolsinha amarrada ao pescoço e, por dentro, a pedra clara que sempre mantinha consigo. — Quem virá me encontrar? Eu contei quem me contratou. Será que ela irá procurar por mim?

— Você está preocupada que outra pessoa descubra. Está preocupada que se espalhe a notícia de que a Pedra Branca também era a mulher que era amante de Jan ca’Vörl. Eles viram seu rosto; eles reconheceriam você, e o rosto da Pedra Branca não pode ser conhecido.

— Cale a boca! — ela quase gritou com Fynn, e o guincho fez cabeças se voltarem para ela. Um utilino de passagem parou no meio da ronda e virou a lanterna de luz mágica em sua direção. Ela protegeu os olhos da luz, curvou o corpo e arreganhou os dentes para o homem, no que torceu que parecesse ser um olhar de louca. O utilino fez um som de nojo e afastou a luz dela; as outras pessoas já tinham virado o rosto e dado as costas para cuidar de suas próprias vidas.

As vozes das vítimas gargalhavam e riam quando ela virou a esquina para entrar no centro do Velho Distrito. As famosas lâmpadas mágicas de Nessântico reluziam e brilhavam nos postes de ferro dispostos em volta da praça aberta. Ela olhou as placas das lojas ao longo da rua. Aqui, na grande praça, as lojas ainda estavam abertas, embora a maioria dos estabelecimentos nas transversais estivesse trancada desde que escureceu totalmente: os ténis podiam acender as lâmpadas do centro do Velho Distrito, mas não iam às ruas antigas e estreitas que afluíam do centro. Eles iluminavam o anel da Avi a’Parete pela cidade inteira, de maneira que Nessântico parecia usar um colar de esplendor amarelo, e as ruas largas da margem sul onde a maioria dos ca’ e co’ morava, mas o Velho Distrito era abandonado à noite.

A lua escondeu-se atrás de uma nuvem, e uma garoa ameaçava virar uma chuva intensa. Ela correu na direção do centro, pois sabia que o tempo mandaria todo mundo para casa e faria os comerciantes fecharem as lojas.

Ali: ela viu o almofariz e o pilão de um boticário mais à frente e arrastou os pés na direção da loja, através da multidão que rapidamente ficava menor. Manteve a cabeça baixa e as costas perto dos tijolos e das pedras dos prédios. Em um momento, um homem que passava tocou seu braço: um velho de barba grisalha, que deu um sorriso malicioso com uma boca banguela e um bafo que cheirava a cerveja e queijo. — Eu tenho dinheiro — disse ele sem preâmbulos, com o rosto molhado de chuva. — Venha comigo.

— Puta! — gritaram as vozes alegremente em deboche. — Por que não? Você aceita pagamento por outros serviços.

A Pedra Branca olhou com raiva para o homem e mostrou o cabo da faca na cintura. — Eu não sou uma puta — disse ela para o sujeito, e para as vozes. A mão agarrou a faca, e gotas de chuva caíram do manto com o movimento. — Afaste-se.

O homem sem dentes riu e espalmou as mãos. — Como quiser, vajica. Sem problemas, hein? — Então ele desviou o olhar e se afastou, os pés chapinharam nas poças. Ela observou o homem ir embora.

A Pedra Branca poderia se livrar dele, mas não dos demais. Os outros estavam sempre com ela.

Ela chegou ao boticário e olhou o interior através das persianas abertas. Não havia ninguém lá dentro, a não ser o proprietário parcialmente careca. Ela entrou, e quando o sino da porta retiniu de forma estridente, o homem ergueu os olhos dos jarros e frascos atrás do balcão.

— Boa noite. Que tempo horrível, eu já estava prestes a fechar. Como posso ajudar, vajica? — As palavras eram agradáveis, mas o tom e o olhar eram menos convidativos. O boticário parecia dividido entre sair detrás do balcão ou retornar aos preparativos interrompidos para fechar. — Uma poção para dores de cabeça? Algo para aliviar uma tosse?

A Pedra Branca teria sido firme, teria sido decidida, mas ela não era a Pedra Branca agora, era apenas uma jovem de aparência comum, sem status, que pingava no chão, uma pessoa que podia ser confundida com uma prostituta comum que andava pelas ruas ou tentava escapar do tempo por um momento.

É isso o que você realmente quer? Não tinha certeza sobre quem fez a pergunta ou se tinha sido ela mesma quem indagou. As vozes ficaram quietas enquanto ela esteve com Jan. De alguma forma, ficar com ele acalmou a confusão dentro de sua mente, e isso ao menos tinha sido parte da atração que ela sentiu por ele, tinha sido o motivo pelo o qual ela se deixou envolver mais do que deveria. Com Jan, naquele pouco tempo, ela se sentiu cicatrizando. Pensou que talvez fosse capaz de se tornar alguém além da Pedra Branca, que pudesse se tornar normal. Jan... Ela se perguntou o que ele estaria pensando agora, se achava que foi feito de bobo ou se sentia arrependimento ao pensar nela. Perguntou-se se Jan sabia quem ela era, que matara seu onczio, ou se pensava que ela fugira apenas porque fingira ser alguém que não era e fora descoberta.

— Vajica?

Ela se perguntou se Jan algum dia saberia como ela se arrependia de tudo.

A Pedra Branca tocou o estômago com delicadeza novamente, como fazia cada vez mais recentemente. Deveria ter ocorrido o sangramento mensal antes mesmo de ter matado Fynn ca’Vörl. Ela pensou que talvez o estresse o tivesse atrasado alguns dias. Mas o sangramento não veio depois da fuga; ainda não tinha ocorrido durante os dias que passou em Nessântico, e agora havia uma estranha náusea quando acordava e sensações estranhas dentro dela.

Isso é tudo o que você terá dele. Quer realmente fazer isso?

Podia ter sido sua própria voz. Podia ter sido a voz de todos eles.

— Vajica? Eu não tenho a noite toda. A chuva...

Ela balançou a cabeça e pestanejou. — Desculpe, eu... — A mão tocou o abdômen outra vez.

O boticário olhou fixamente para a mulher e para o movimento da mão na barriga. Ele empinou e abaixou o queixo, passou a mão na careca como se ajeitasse um cabelo invisível. — Eu acho que tenho o que você quer, vajica — disse o homem, com um tom mais gentil agora. — As moças da sua idade, às vezes, vêm até mim, e, como você, não sabem exatamente o que dizer. Eu tenho uma poção que trará o sangramento. É o que você precisa, não é? Mas devo dizer que não é uma poção fácil de fazer, e, portanto, não é barata.

Ela encarou o homem. Prestou atenção. Colocou a mão na gola da tashta molhada e apalpou a pedra na bolsinha de couro.

As vozes estavam caladas.

Caladas.

— Não. — A Pedra Branca recuou e ouviu o sino da porta quando o calcanhar bateu nela. — Não, não quero sua poção. Não quero.

Ela então deu meia-volta e fugiu para a praça e para o ataque violento da chuva, as luzes mágicas brilhavam à sua volta e refletiam nas ruas molhadas.

Foi quando a Pedra Branca ouviu as trompas darem um alarme por toda a cidade.


??? EVASÕES ???

Karl ca’Vliomani

Niente

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Niente

Sergei ca’Rudka

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Audric ca’Dakwi

A Pedra Branca


Karl ca’Vliomani

O PLANO ERA BEM SIMPLES — tinha que ser. Karl não tinha um exército para atacar a Bastida. Não tinha compatriotas entre os gardai para abrir os portões ou deixá-los desguarnecidos ou para dar cópias das chaves das masmorras. Não tinha a poderosa magia selvagem de Mahri quando este o tirou da Bastida, para simplesmente levar Sergei embora.

Karl tinha a si mesmo. Tinha Varina e Mika. Tinha o que o próprio Sergei lhe contou.

Ele tinha o mau tempo.

A Bastida foi originalmente projetada como um fortaleza, para proteger o A’Sele de invasores que viessem do alto do rio; mais tarde ela foi convertida em prisão. Uma parte de seu legado ainda existia, e ninguém conhecia todos os caminhos secretos, embora poucos a conhecessem melhor do que Sergei ca’Rudka, que passou muito tempo no comando do conjunto irregular e úmido de pedras negras.

O trio pegou emprestado um pequeno bote ancorado a leste da Pontica a’Brezi Nippoli. Eles entraram na embarcação a poucas viradas da ampulheta depois de ter anoitecido completamente, quando a lua e as estrelas ficaram perdidas atrás dos baluartes dos arranha-céus e uma leve chuva começou a cair. — Eu diria graças aos deuses, se acreditasse neles. — Mika deu um sorriso irônico para Karl ao ajudar Varina, e depois o embaixador, a entrar. Com água até o joelho no rio, ele empurrou e afastou o bote da margem. — Vejo vocês dois mais tarde — disse Mika.

Karl torceu para que ele estivesse certo. Ouviu Mika sair do rio chapinhando e correr na direção das casas ao longo da margem sul.

Karl e Varina não usaram os remos por medo de que as pancadas na água alertassem um dos utilinos que faziam ronda ou um transeunte curioso acima deles. Em vez disso, os dois deixaram que a lenta correnteza do A’Sele levasse o bote rio abaixo. Eles estavam vestidos com roupas escuras, os rostos foram encobertos por fuligem e cinzas, embora a chuva tenha limpado rapidamente. Assim que passaram pela Pontica a’Brezi Veste e pelas torres sinistras e melancólicas das torres da Bastida, os dois vislumbraram a luz agitada de vela no alto da torre onde ca’Rudka estava preso — o sinal de que ele ainda estava lá.

Karl conduziu o bote em silêncio até a margem. Ele e Varina saíram e pisaram na lama úmida, ignoraram o cheiro de peixe morto e de água podre e entraram rapidamente nas sombras da Bastida.

Karl encontrou a porta onde Sergei disse que ela estaria: no ponto em que a barragem de terra coberta por grama da margem do rio encontrava os flancos da torre ocidental da Bastida. A barragem foi construída por ordens da kraljica Maria IV, há um século e meio, para evitar que as enchentes do A’Sele, que ocorriam anualmente na primavera, inundassem a margem sul. A porta estava coberta por terra e grama, onde a barragem subia sobre a base de pedra da Bastida, mas a cobertura era fina e as mãos de Karl rapidamente encontraram o anel de ferro debaixo da terra. Ele puxou com cuidado. A porta cedeu de má vontade, a terra empapada de chuva caiu, mas o som das dobradiças rabugentas foi em grande parte abafado pelo barulho da chuva no rio. Karl segurou a porta aberta para Varina entrar, depois ele mesmo entrou e deixou que a porta se fechasse.

O embaixador ouviu Varina falar uma palavra mágica e luz surgiu na lanterna encoberta que os dois trouxeram: a luminosidade amarela e fria do Scáth Cumhacht. O brilho parecia reluzir com uma intensidade impossível na escuridão. Karl viu as pedras lisas de limo e as lajotas quebradas do piso, as paredes infestadas com estranhas colônias de fungos e decoradas com cortinas esfarrapadas de teias de aranha. As silhuetas marrons e sinistras de ratos fugiam da luz e guinchavam em protesto.

— Que lindo — murmurou Varina, e o sussurro pareceu ecoar com um volume impossivelmente alto. Ela chutou um rato que se aproximara demais do pé, e o animal guinchou com raiva antes de fugir.

— Melhor ratos do que gardai — falou Karl. — Venha. Sergei disse que este caminho deve levar à base da torre principal. Mantenha a lanterna bem encoberta, só para garantir.

A caminhada pelo corredor abandonado pareceu levar cerca de meia virada da ampulheta, embora Karl soubesse que não poderia ter levado mais do que algumas centenas de passos. O ar estava gelado, e ele tremia sob a roupa molhada. Os dois chegaram à outra porta, obviamente fechada há muito tempo, e Karl levou um dedo aos lábios: depois daquele ponto, dissera Sergei, eles estariam nos níveis mais baixos da Bastida, onde poderia haver gardai ou prisioneiros trancados em celas meio esquecidas. Varina tirou uma jarra de banha de cozinha da tashta, abriu e besuntou a substância nojenta nas dobradiças da porta e nas bordas. Depois afastou-se e testou puxar a maçaneta, mas a porta não se mexeu. Ela puxou com mais força. Nada. Apoiou o pé na parede. A porta estremeceu uma vez no batente, mas, tirando isso, não houve resposta. Trancada — Varina falou sem emitir som.

Ela espiou pelo buraco da fechadura com o olho direito. Balançou a cabeça, depois se acocorou ao lado do batente. Falou uma única palavra mágica e gesticulou ao mesmo tempo: a madeira estremeceu e virou serragem em volta do buraco da fechadura, o trabalho de milhares de cupins feito em um instante, o mecanismo de metal caiu no novo buraco irregular com um baque surdo. Varina pegou o ferrolho e o soltou devagar e com cuidado, depois puxou a porta mais uma vez. Dessa vez, ela cedeu, relutante, porém silenciosa, e os dois entraram de mansinho em um pavimento gasto e úmido, mal iluminado por tochas presas em anéis dispostos em intervalos compridos ao longo das paredes — pelo menos um terço já havia se apagado e deixado um rastro de fuligem negra que manchava o teto baixo acima delas. O corredor fedia a óleo, fumaça e urina.

Karl fechou a porta outra vez após os dois entrarem e examinou-a rapidamente. Alguém que passasse por acaso talvez não notasse o buraco aberto por magia na penumbra; isso teria que ser suficiente. Em silêncio, ele apontou para a direita, e os dois começaram a seguir na ponta dos pés rapidamente pelo corredor.

Todas as passagens levarão à saída à esquerda. Conte duas e entre na terceira. Foi o que Sergei disse para Karl; agora ele observava cuidadosamente enquanto eles apressavam. Primeira abertura, da qual ouviram o som de alguém gritando: um choramingo longo, estridente e melancólico que não parecia humano — Karl sentiu Varina estremecer ao seu lado. Segunda abertura: uma passagem bem iluminada e o som ao longe de vozes rudes rindo de alguma piada e berrando.

Terceira abertura. Mais à frente, em um pequeno corredor, havia uma escada gasta em caracol, e eles ouviram vozes baixas e sons de um espaço habitado. A torre...

A mão de Varina pegou o braço de Karl; ela chegou perto, o calor do corpo foi providencial ao lado do embaixador. — Devemos esperar por Mika...

— Até onde sabemos, Mika já fez a parte dele ou já foi capturado. De um jeito ou de outro...

Ela soltou o braço de Karl e concordou com a cabeça. Ele e Varina entraram no corredor e começaram a subir, no maior silêncio possível. A escada, segundo Sergei contou, dava uma volta pelo perímetro de cada andar, com um pequeno patamar em cada um deles e uma porta que levava às celas. Haveria gardai a postos em cada andar, que mudavam na Terceira Chamada. Karl já conseguia enxergar o patamar do térreo. Ouviu duas pessoas falando — se eram dois gardai, ou talvez um garda e um dos prisioneiros, ele não sabia. Karl começava a subir a escada, encostado na parede de pedra...

... e foi então que eles sentiram a torre estremecer uma vez, junto com um rugido grave e um breve clarão de luz branca que banhou a superfície das pedras. Karl e Varina encostaram-se na parede quando vozes gritaram, assustadas. Eles ouviram a porta da torre ser aberta, sentiram o toque do ar da noite e o cheiro da chuva. — O que está acontecendo aqui, pelos seis abismos? — berrou uma voz para a noite lá fora. — Aquilo foi um raio?

A resposta foi ininteligível e longa. Karl e Varina ouviram a porta ser fechada, seguida pelo rangido de uma chave em uma fechadura. — Que agitação é essa, Dorcas? — chamou alguém.

— Alguém acabou de tentar entrar pelo portão principal. O desgraçado usou o Ilmodo e derrubou ambas as portas. Eles acham que pode ter sido um numetodo. O comandante mandou interditar a prisão; devo avisar aos demais. Ninguém entra e ninguém sai enquanto co’Falla investiga e chama alguns ténis do templo para cá. Entendeu?

Veio um resmungo como resposta, e Karl ouviu passos na escada, que sumiram rapidamente.

Ele acenou com a cabeça para Varina. Os dois prosseguiram.

Um triângulo de luz amarela brilhou nas pedras do patamar; ele viu uma sombra se mover na luz. Karl fechou os olhos momentaneamente, sentiu na cabeça a agitação dos feitiços que preparara previamente. Ele saiu do patamar com as mãos já em movimento, a palavra de ativação pronta nos lábios quando Varina passou pelo embaixador e subiu correndo os degraus, na direção do próximo patamar. — Ei, o que... — disse o garda, mas Karl já havia dito a palavra, e um raio refulgiu de sua mão e jogou o homem na parede atrás dele. O garda desmoronou, inconsciente, e Karl correu à frente. Ele começou a seguir Varina, mas foi chamado por vozes de um trio de celas ali. — Vajiki! E nós? As chaves, homem, as chaves... — Mãos foram esticadas pelas janelas com barras nas sólidas portas de carvalho.

Karl hesitou, e os chamados continuaram, mais insistentes. — Solte-nos, vajiki! Não pode nos deixar aqui!

Ele balançou a cabeça. Soltar os prisioneiros só complicaria as coisas, tornaria a situação mais caótica do que já estava e possivelmente mais perigosa: nem todos os prisioneiros na Bastida eram políticos, e nem todos eram inocentes.

Karl seguiu Varina escada acima ao som de xingamentos e gritos.

Varina já havia repetido o processo no segundo andar. — Estou quase exausta — disse ela, visivelmente arrasada contra a parede. — Só tenho mais um feitiço; conjurei os encantamentos às pressas como um téni.

Karl concordou com a cabeça; o embaixador sentia a mesma exaustão, e havia pouco poder sobrando dentro dele. — Eu pego o próximo. Precisamos ter o suficiente sobrando quando chegarmos ao regente.

Juntos, os dois foram para o terceiro nível tão rápido quanto puderam. A cela de Sergei, eles sabiam, ficava no quarto nível; mas quando se aproximaram do terceiro, Karl e Varina ouviram vozes. — O comandante pediu que levássemos o senhor até ele — o tal Dorcas dizia.

— Ele disse que viria em pessoa. — Karl ouviu Sergei protestar; a voz do homem parecia assustada.

— O comandante está um tanto quanto ocupado no momento.

— Soltem minhas mãos, pelo menos. Esta escada...

— Não. O comandante disse que o senhor deveria ficar algemado...

Karl viu uma bota aparecer na curva da escada quase à altura de sua cabeça. Sentiu o agito das últimas sobras do Scáth Cumhacht e falou a palavra de ativação ao se afastar da parede; logo abaixo, ele ouviu Varina fazer a mesma coisa. Dois raios foram disparados, e os gardai que seguravam ca’Rudka desmoronaram. Sergei tropeçou, caiu na escada e quase derrubou Karl. O segundo garda — Dorcas, presumiu Karl — permaneceu em pé, no entanto; sua espada saiu sibilando da bainha, e ele protegeu Varina, que agarrou o braço e recuou. Sergei chutou o joelho do homem, que gemeu e começou a cair; o regente chutou de novo, e Dorcas caiu de cabeça pela escada. Ele não se moveu novamente; a cabeça estava dobrada em um ângulo horrível.

— Eu não achei que você viesse — disse Sergei.

— Eu cumpro minhas promessas — falou Karl. — Agora, vamos sair daqui... Varina?

Ela balançou a cabeça. Karl notou o sangue jorrando entre os dedos enquanto Varina segurava o braço. O embaixador rasgou o própria roupa para fazer uma bandagem. — Eu vou atrasar vocês — disse ela. — Vão indo. Eu seguirei o mais rápido possível.

— Eu não vou deixar você aqui. — Karl amarrou com força o ferimento com faixas de pano. O rosto de Varina estava pálido, e havia mais sangue manchando a tashta do que Karl gostaria. — Não tenho mais nada sobrando do Scáth Cumhacht. E você?

Ela fez que não. Quando Karl amarrou com mais força as bandagens, Varina fez uma careta.

Sergei estava agachado ao lado do garda. Karl ouviu o ranger de aço contra aço e o retinir de chaves, ca’Rudka tirou as algemas da mão e jogou na escada. Ele retirou um florete de um dos gardai.

— Pegue a espada do outro garda — disse Varina para Karl. — Podemos precisar.

Karl assentiu e disse — Vamos. — Eles desceram correndo a escada, com Karl ajudando Varina. Ele sentiu o corpo ficando mole e pesado em seus braços, mais lento a cada lance de degraus. Os prisioneiros gritavam e berravam enquanto os três passavam, sacudiam as barras das celas, mas Karl os ignorou. Eles chegaram ao térreo e, mais devagar, começaram a longa curva para o subsolo. Karl começou a achar que conseguiriam. Eles estavam quase lá. Com Varina arrastando os pés atrás e Sergei à frente, os três desceram correndo a pequena passagem até o corredor principal. Dois cruzamentos, outra curva e mais um pequeno corredor, e eles estariam à porta que levaria ao antigo túnel desativado e ao bote à espera.

— Não desmaie, Varina — falou Karl ao olhar para ela. — Estamos quase lá.

Os três deram mais alguns passos até que um grupo de meia dúzia de gardai armados entrou no corredor vindo do cruzamento à frente. — Lá! É o regente! — berrou um garda, e o líder, com as faixas do posto no uniforme, virou-se. Karl conhecia o homem, embora o offizier olhasse mais para Sergei do que para ele.

— Sinto muito, Sergei — disse o comandante co’Falla, então seu olhar se voltou para Karl e Varina. — Embaixador, infelizmente o senhor e sua companheira cometeram um erro muito grave aqui. Cuidarei para que ela receba o tratamento adequado para a ferida. Sergei, abaixe sua arma. Acabou.

— Eu posso dizer o mesmo para você, Aris — falou Karl. — Afinal, todos vocês sabem o que um numetodo é capaz de fazer.

— Se o senhor tivesse algum feitiço sobrando, já teria usado — respondeu co’Falla. — Ou estou errado?

Houve movimento no corredor atrás dos gardai; uma figura na penumbra das tochas. Karl sorriu. Ele espalmou bem as mãos. Notou que alguns gardai atrás do comandante se encolheram, como se esperassem a explosão de um feitiço. — Não — disse ele. — Você não está errado. Não quanto a mim.

Co’Falla acenou com a cabeça e falou — Então eu sugiro que tornemos esta situação mais fácil para todos nós.

— Eu concordo — disse Karl. Ele olhou atrás de co’Falla e dos gardai, e o comandante começou a virar o rosto. O feitiço atingiu o grupo naquele momento: o ar em volta dos gardai reluziu e se contorceu com raios. Com gritos de dor e surpresa, eles desmoronaram no pavimento de pedra, com os raios ainda ondulando, estalando e se contorcendo sobre os corpos. Atrás deles, Mika estava com as mãos estendidas. O corpo esmoreceu quando as mãos caíram.

— Regente — falou ele. — É um prazer conhecer o senhor. Agora, queiram vocês se apressar...

Varina seguiu meio cambaleante à frente. Ela pegou a espada de co’Falla com a mão boa e colocou a ponta na garganta do comandante. Olhou para Karl e disse — Ele conhece você. — Havia uma mancha de sangue na bochecha, onde ela roçou a mão no rosto cansado e pálido. — Ele falou seu nome.

— Não. — A resposta veio de Sergei. Ele se moveu como se fosse pegar o pulso de Varina, mas ela balançou a cabeça e empurrou a espada, que furou a pele e fez aparecer um ponto vermelho. Sergei olhou para Karl. — Ele é meu amigo. Se fizerem isso, eu não irei com vocês. Ficarei aqui. Vocês terão acabado com tudo.

Varina olhou fixamente para Karl, à espera. O embaixador balançou a cabeça. Ela deu de ombros e deixou a espada cair com um baque alto no pavimento. Varina cambaleou, depois se equilibrou e disse — Estamos perdendo tempo, então.

Eles passaram pelos corpos caídos dos gardai e correram.

 

Niente

NECALLI ERA O TECUHTLI desde antes de Niente nascer. Ele sabia os nomes dos antigos tecuhtlis, mas apenas porque seu vatarh e matarh falaram a respeito deles. O nome de Necalli era sempre louvado nas cerimônias do solstício nos Templos do Sol; foi Necalli quem mandou o famoso Mahri para o leste após suas visões profetizarem a ascensão dos orientais dos Domínios. Foi Necalli quem respondeu ao pedido de ajuda dos primos após o comandante dos orientais ter começado represálias contra aqueles que viviam depois das montanhas costeiras. Foi Necalli quem criou Niente para se tornar o novo nahual acima de todos os demais feiticeiros, muitos dos quais eram mais velhos que Niente e sentiam inveja de sua rápida ascensão. Foi Necalli quem concordou em permitir que Niente usasse os encantamentos profundos do X’in Ka para capturar a mente do offizier dos Domínios e mandá-lo de volta para a grande cidade dos orientais como uma arma.

O feitiço custara mais a Niente do que ele havia esperado, debilitou seus músculos de tal forma que ele não conseguia ficar de pé por muito tempo sem precisar se sentar novamente. O esforço o consumiu tanto que o rosto no reflexo da água na tigela premonitória estava enrugado e cansado como o de uma pessoa muitos anos mais velha do que ele. Niente pagou o preço, como Mahri pagou muitas vezes em sua época, mas Niente odiaria ver aquele sacrifício desperdiçado.

Agora ele se perguntava para que serviu o sacrifício. — Ataque a cabeça da fera, e ela não poderá mais feri-lo — dissera Necalli. Era o que tinha mandado Mahri fazer, mas parecia que, ao contrário, a fera havia consumido Mahri. Niente tinha receio de que este pudesse ser seu destino também.

Mais importante, Necalli era o centro do mundo tehuantino na vida da maioria dos presentes ali. Niente não conseguia imaginar seu mundo sem o tecuhtli Necalli. Todos os guerreiros deviam morrer, e com o tecuhtli não era diferente. No entanto, Necalli sobreviveu aos desafios esporádicos ao seu reinado. Niente desejava que fosse capaz de imaginar Necalli sobrevivendo a este desafio também.

Mas ele tinha pouca esperança.

Niente estava no meio da multidão presente nos flancos da cavidade verdejante do vale Amalian, um dos locais sagrados de Sakal e Axat, localizado mais a leste. Suas costas estavam apoiadas em um dos alaques de pedra entalhada do campo de jogo e mantinha as mãos sobre a ponta do cajado mágico. Niente desceu o olhar para o pátio nas sombras. Lá embaixo, o tecuhtli Necalli estava de armadura, empunhando uma reluzente espada curvada na mão velha, mas firme, enquanto encarava Zolin, supremo guerreiro das forças tehuantinas e filho do irmão morto de Necalli. O rosto do tecuhtli Necalli era escuro com as tatuagens de sua patente, que contornavam as feições como uma máscara eterna e cruel, mas ele era um velho agora, as costas estavam curvadas para frente, o cabelo era branco e ralo. Zolin, em comparação, era a imagem esculpida e perfeita de um guerreiro.

O desafio surpreendeu a todos. Citlali, ele mesmo um guerreiro supremo, estava perto de Niente, e bufou diante da cena abaixo dos dois, Necalli e Zolin começaram a se cercar lentamente, enquanto os guerreiros em volta do campo começaram um cântico ritmado, batendo nas pedras com a ponta do cabo das lanças. O som parecia com as marteladas de Sakal quando Ele entalhou o mundo no casco da Grande Tartaruga. — Necalli voltará para os deuses hoje — disse Citlali. — Que Eles estejam prontos para receber o velho abutre.

— Por quê? — perguntou Niente. — Por que Zolin desafiou o tio? O tecuhtli Necalli não perdeu uma batalha para os orientais; na verdade, ele fez com que recuassem para o Mar Interior. A Garde Civile dos Domínios não penetrou ainda nas nossas fronteiras. O tecuhtli pode ser velho, mas ainda é um mestre da estratégia.

— Zolin diz que o tecuhtli ficou tímido com a senilidade — respondeu Citlali. A própria face era cheia de linhas negras pontilhadas por círculos de um azul intenso. — Ele dança com os orientais, mas hesita em destruí-los. Tornou-se cauteloso e cuidadoso demais. Zolin não tem medo. Zolin varrerá completamente os orientais da terra de nossos primos. Ele atacará, em vez de simplesmente se defender.

— Se vencer o desafio — disse Niente.

— Ninguém é mais forte do que Zolin. Necalli certamente não; olhe, os músculos são flácidos como os de uma velha.

— Será que a força deve vencer sempre a experiência? — perguntou Niente, e Citlali riu.

— Você é o nahual — falou Citlali. — Um dia, um de seus nahualli virá até você e exigirá um desafio, e talvez você descubra a resposta por si mesmo. Diga-me, Niente, por ter sido o nahual de Necalli, você está com medo de mudar de status quando Zolin se tornar o tecuhtli?

Niente aprendeu há muito tempo que alguém nunca demonstrava medo para um guerreiro supremo. Os Tatuados já consideravam os nahualli pouco mais do que armas em forma humana e não tinham nada além de desprezo por aqueles que eles consideravam fracos. Niente deu um sorriso forçado. — Não se Zolin tiver um cérebro, além de força.

Citlali riu outra vez e disse — Ah, isso ele tem. Zolin aprendeu com o próprio Necalli. Agora é o momento de o aluno superar o mestre, de o filho substituir o irmão de seu vatarh. — Niente percebeu que o guerreiro supremo o examinava de cima a baixo com o olhar. — Você anda cansado ultimamente, e estas rugas são novas no seu rosto. Você mesmo devia tomar mais cuidado, Niente. Necalli usou você demais, assim como Mahri. É uma pena.

Niente concordou cautelosamente com a cabeça. Era o que ele mesmo pensara, mais de uma vez.

O cântico e as batidas pararam abruptamente. Eles ouviram os pássaros da floresta se acomodarem novamente. O silêncio quase incomodou os ouvidos de Niente. Necalli e Zolin estavam a dois passos um do outro, no centro do campo.

Zolin rugiu. Avançou. A espada reluziu, mas a arma de Necalli se ergueu ao mesmo tempo, e as lâminas fizeram barulho ao colidirem enquanto os guerreiros gritavam em aprovação. Por um momento, os dois homens ficaram travados nessa posição, depois Zolin empurrou Necalli, e o tecuhtli recuou.

— Viu só — falou Citlali. — Eles agem em batalha como agem aqui. Zolin ataca, enquanto Necalli aguarda.

— E se Necalli encontrar uma falha no ataque de Zolin, ou se Zolin for impaciente, então é Necalli que continuará sendo o tecuhtli. Há vantagens em esperar.

— Veremos então quem os deuses favorecem, não é? — Citlali sorriu com ironia. — Quer apostar, nahual? Três cabras que Zolin vencerá.

Niente negou com a cabeça; Citlali riu. Lá embaixo, o guerreiro supremo executou uma finta em nova investida, e Necalli quase cambaleou ao erguer a espada novamente contra o ataque esperado. Zolin foi para a direita, depois rapidamente mudou para a esquerda, e a espada desenhou uma linha reluzente no ar. Desta vez, a resposta de Necalli veio atrasada. A lâmina do guerreiro supremo acertou o corpo de Necalli no ponto onde o peitoral era amarrado às ombreiras, cortou as tiras de couro e penetrou fundo no ombro do braço que segurava a espada do tecuhtli. Necalli, para seu crédito, só fez uma careta quando Zolin arrancou sua espada, e o sangue jorrou nos dois. O guerreiro supremo cercou Necalli quando o tecuhtli cambaleou para trás, sua armadura se agitou quando ele trocou a espada para a mão esquerda. O sangue escorria pelo braço direito de Necalli e pingava dos dedos. Zolin berrou novamente e levantou poeira com as sandálias ao atacar novamente. O tecuhtli ergueu a espada, mas sua defesa era fraca, e a espada do guerreiro supremo continuou descendo, entrou ao lado do crânio desprotegido de Necalli, se enterrando no pescoço abaixo da orelha esquerda. Zolin soltou a espada quando Necalli caiu de joelhos, a arma do tecuhtli tiniu ao cair no chão. Por um longo momento, Necalli cambaleou ali. A mão esquerda apalpou o cabo da espada de Zolin, sem efeito. Os olhos estavam arregalados, como se enxergasse uma visão no céu; a boca abriu-se como se estivesse prestes a falar, mas só o sangue saiu.

Necalli oscilou para a direita e caiu. O rugido de Zolin foi combinado aos milhares de berros dos que assistiam. Ao lado de Niente, Citlali ergueu um punho cerrado no ar e berrou — Tecuhtli Zolin! Tecuhtli Zolin!

Lá embaixo, Zolin arrancou a espada do corpo de Necalli. Ele ergueu a arma no ar, e os gritos foram redobrados quando ele se virou para encarar os que assistiam. Seu olhar triunfante pareceu encontrar cada tehuantino.

Dessa vez, Niente também se juntou aos gritos. — Tecuhtli Zolin! — Ele levantou o cajado mágico para o céu, mas olhou mais para o corpo de Necalli.

 

Nico Morel

NICO ESTAVA CONFUSO e assustado com a agitação. Várias coisas estavam acontecendo rápido demais. Houve batidas furiosas na porta, e o homem que estava tomando conta de Nico fez um gesto estranho com as mãos antes de os dois ouvirem a voz do embaixador do outro lado. A porta foi escancarada, e várias pessoas entraram correndo. Elas meio que carregavam Varina, cuja tashta estava encharcada de sangue. Nico tentou correr até ela, mas alguém o empurrou de volta para a cama com um rosnado. Houve muitos gritos e gente demais na sala pequena. Sob a luz das velas, tudo era uma confusão de sombras. Ele só conseguiu ouvir trechos do que as pessoas diziam.

— ... precisamos de Karina; ela tem o talento de cura... —

— ... não podemos ficar... fomos reconhecidos... —

— ... diga aos demais para ficarem escondidos... —

— ... a Garde Kralji já deve estar à procura... —

— ...torturar e matar qualquer um de nós que encontrarem... —

— ... a criança tem que ir embora...

Nico sentou-se na cama e queria chorar, mas ficou com medo de atrair atenção para si quando não queria nada além de ser invisível. Um rosto saiu do caos e agigantou-se sobre ele: Karl. — Nós temos que sair de Nessântico. Varina lhe disse isso, não foi? Você virá comigo, Nico. Não podemos deixá-lo para trás, não sem ninguém para tomar conta de você.

— Eu posso ficar na minha velha casa — disse Nico com uma confiança que não sentia. — Minha matarh irá me procurar lá, ou Talis. E eu conheço as pessoas que moram nas outras casas. Eu ficarei lá.

— Nós deixamos uma mensagem para Talis na sua casa avisando onde você estava — disse Karl. — Ele não veio.

— Ele virá — insistiu Nico. — Ele virá.

O homem parecia ter tantas dúvidas quanto Nico tinha por dentro. — Sinto muito, Nico, mas temos que ir embora rápido, e você precisa vir conosco.

Nico olhou por cima do ombro de Karl, na direção do tumulto na sala. Havia muitas pessoas ali, e ele não conseguiu ver Varina. — Varina vai morrer? — perguntou Nico.

— Não. — O embaixador balançou a cabeça enfaticamente. — Ela foi ferida, mas não vai morrer. — O menino acenou com a cabeça. — Nico, você terá que ser muito corajoso e ficar muito quieto. Se formos descobertos, Varina vai morrer, e eu, e talvez você, também. Entendeu?

Nico concordou novamente, embora não entendesse. Ele franziu os lábios e engoliu em seco. — Muito bem, bom rapaz — disse Karl ao mexer no cabelo de Nico, como Talis às vezes fazia, e Varina também. Nico perguntou-se por que os adultos sempre faziam isso apesar de ele não gostar. O menino sabia que Karl tinha filhos e netos em Paeti; uma vez sua matarh comentou com Talis que o embaixador e a archigos Ana eram “próximos demais”, então talvez eles fossem filhos da archigos. Nico imaginou como seria uma criança que cresceu no interior escuro e cavernoso do templo, com pinturas dos moitidis em combate nos domos no alto e fogo mágico que ardia em enormes braseiros em volta do coro.

— Nico! Venha cá. — Karl gesticulou, e Nico foi até ele.

— ... os portões da cidade serão fechados a qualquer momento — dissera um homem grisalho, e Nico levou um susto ao perceber que era o regente de Nessântico: tinha que ser ele, com o nariz feito de prata que reluzia à luz das velas. O menino olhou fixamente para o nariz: ele tinha visto o regente algumas vezes em dias de cerimônias, sentado ao lado do kraljiki Audric, quando a carruagem real dava a volta pela Avi a’Parete. Nico não compreendia por que o regente estava ali ou como poderia haver perigo com sua presença. A matarh sentia arrepios quando falava a respeito dele e contou para Nico histórias sobre o regente ter sido antigamente o comandante e ter torturado pessoas na Bastida. O rosto do regente parecia mais cansado do que perigoso neste instante. — O comandante co’Falla conhece a cidade tão bem quanto eu, pois o ensinei, e isso é um problema. Ele sabe que precisamos sair, e mandará pessoas à nossa procura. — O regente bateu com o dedo no nariz. — Alguns de nós somos muitíssimo reconhecíveis.

— Então nós evitaremos os portões — falou Karl. — Se conseguirmos cruzar a Avi perto do Parque do Templo, bem, as velhas muralhas ficam por ali, e se pudermos atravessar a vizinhança ao norte e entrar nos campos agrícolas durante a noite, há uma faixa de terra com muita floresta por lá, mais ou menos cinco quilômetros adiante, onde podemos ficar durante o dia. Talvez possamos prosseguir para Azay e... — O embaixador parou e deu de ombros. — Então faremos o que for necessário. Nesse momento, estamos perdendo tempo.

— Realmente — respondeu o regente. — Varina consegue andar?

— Eu consigo — Nico ouviu Varina responder, embora a voz soasse fraca e trêmula. Ele a viu, então, sentada na cama enquanto balançava os pés na beirada. O sangue na roupa era escuro, e parecia úmido. — Estou pronta. Só me deixem trocar de roupa. — Varina abanou a mão para eles. — Andem, saiam. Esperem por mim aí fora. Só levarei uma marca da ampulheta.

— Venha, Nico. — Karl acenou para a porta com a cabeça, mas Nico fez que não e abraçou o próprio corpo.

— Deixe o menino ficar — disse Varina. — Eu o levarei comigo. Andem.

— Está certo — respondeu o embaixador, mas ele parecia incerto. — Esperaremos na antecâmara. Seja rápida.

Os homens saíram e Varina desmoronou na cama por um momento, a respiração estava acelerada e incômoda. Ela gemeu ao se sentar novamente e ao tentar desfazer os laços da tashta. — Nico, preciso da sua ajuda...

O menino foi até Varina e desfez os laços, atrapalhou-se com os nós enquanto tentava não notar o sangue que sujava os dedos. Ela abaixou a tashta até a cintura, e Nico afastou o rosto rapidamente, um pouco corado, enquanto Varina tomou impulso com uma mão para ficar de pé. Os seios sob a faixa eram menores que os da matarh, e vê-los cobertos apenas por um pano fino provocou uma sensação estranha em Nico. — Há outra tashta no baú ao pé da cama — falou Varina. — Uma azul; pode pegá-la para mim? Bom menino.

Ele vasculhou o baú, o cheiro de ervas doces dentro de sachês de linho penetrou nas narinas do menino, que entregou a tashta azul para Varina. — Vire-se um instante — falou ela, e quando Nico obedeceu, ele escutou a tashta suja deslizar completamente até o chão. Ouviu Varina vestir a nova tashta meio sem jeito com o braço machucado, e quando ela gritou de dor, o menino foi rapidamente ajudá-la, puxou com força a faixa embaixo dos seios, depois amarrou as alças e os laços das costas. — Há bandagens na última gaveta do baú — disse Varina. — Se puder trazer algumas...

Nico correu para pegá-las para ela. Quando se levantou com as faixas brancas de tecido macio nas mãos, viu Varina tirar as bandagens do braço. Ele conteve um gritinho ao ver o corte fundo e irregular, que ainda estava escancarado e vertia sangue. As bordas da ferida abriram enquanto Nico observava, era tão funda que ele pensou ter visto o osso branco no fundo. Ele engoliu em seco e sentiu enjoo. — Eu sei — falou Varina. — O corte parece sério, e preciso encontrar um curandeiro para costurá-lo. Mas, nesse momento, preciso amarrar uma nova bandagem para mantê-lo fechado. Não consigo com uma mão só. Você pode me ajudar?

Nico concordou com a cabeça e engoliu em seco. Enquanto recebia instruções, ele colocou um chumaço de bandagens dobradas em cima da ferida; depois, conforme Varina apertava as bordas do corte da melhor maneira possível, o menino enfaixou a região. — O mais apertado que você conseguir — disse ela. — Não se preocupe, você não irá me machucar. — Varina mostrou a ele como rasgar a ponta da bandagem em duas e depois amarrá-las para ficar no lugar.

Ela chorava no momento em que Nico terminou e olhava para a mão ao tentar mexer os dedos. — Vai melhorar, Varina — falou o menino. — Só precisa de tempo para sarar.

Varina riu entre as lágrimas e puxou Nico em um abraço com a mão boa. — Obrigada — sussurrou ela no cabelo do menino. — Agora, pegue um pouco de água. Eu quero tirar o sangue das minhas mãos e das suas.

Uma marca da ampulheta depois, os dois saíram do quarto, com Varina pálida, mas andando com firmeza.


Estava chovendo, estava frio, estava escuro, e Nico estava péssimo.

O menino manteve-se próximo a Varina enquanto eles atravessaram correndo a Avi a’Parete sob o aparente olhar furioso das famosas lâmpadas mágicas da cidade. O regente estava com Nico, Varina e Karl; o outro numetodo — aquele chamado Mika — deixou o grupo e foi para outra direção pela cidade. Nico viu um esquadrão da Garde Kralji correr pela Avi na direção do Portão Norte, pisando nas poças dos paralelepípedos da avenida; o regente fez o grupo parar à sombra de um prédio — a chuva caía com força das calhas entupidas sobre eles — até os gardai sumirem na curva da Avi, depois Sergei guiou-os por uma corrida no interior do aglomerado de casas ao norte da Avi. Lá, eles rapidamente trocaram as ruas principais por transversais e becos, mantiveram-se longe das poucas pessoas que estavam na rua no tempo ruim e ocasionalmente se escondiam em vielas quando ouviam outros se aproximarem. Em um momento, um trio de utilinos passou pelo grupo, e eles espremeram-se contra as pedras frias e úmidas do prédio mais próximo, prendendo a respiração enquanto os utilinos, que obviamente observavam os rostos dos transeuntes, iam embora. O grupo continuou rumo ao norte; as casas ficaram mais espaçadas, estavam separadas agora por campos e pastoreios; as luzes da cidade tornaram-se apenas um brilho nas nuvens acima deles; as ruas de paralelepípedos deram lugar a estradas enlameadas e cheias de sulcos, que finalmente viraram um caminho estreito e sujo. Quando eles pararam, Nico teve a sensação de que passou a noite correndo. Os pés e as pernas doíam, e ele ofegava pelo esforço de acompanhar os adultos. Varina desmoronou no chão assim que o grupo parou.

— Vamos descansar aqui por alguns minutos — falou o regente. — Se vier alguém, nós devemos vê-los antes que nos notem. — Os quatro estavam bem afastados de qualquer fazenda, e a chuva virou uma garoa inconstante. Nico ficou ao lado de Varina, que estava apoiada em um muro de pedra à beira do caminho. Ela fechou os olhos e segurou o braço ferido com firmeza.

— A floresta fica a mais ou menos um quilômetro e meio estrada acima; devemos alcançá-la em meia virada da ampulheta — continuou o regente. — Talvez nós devêssemos sair da estrada; se eu fosse o comandante, mandaria batedores para todos os vilarejos à nossa procura.

— Para onde? — perguntou Karl.

O regente sacudiu a água do cabelo parcialmente grisalho; gotas pingaram do nariz de prata. — Firenzcia — resmungou ele.

Karl deu uma risada que mais pareceu uma tosse. — Você está brincando, Sergei. Isso é sair do fogo para cair na brasa. Firenzcia? O archigos ca’Cellibrecca não é nada mais que uma versão mais nova de seu vatarh por casamento; eles adorariam ter o embaixador dos numetodos para torturar e pendurar em uma jaula para que todo mundo visse. Firenzcia? Lá pode ser bom para você, mas Varina e eu teremos uma chance melhor de sobreviver se tentarmos nadar pelo Strettosei até Paeti. Era melhor nós simplesmente nos rendermos à Garde Kralji agora.

Varina abriu os olhos, e Nico viu que ela assistia à discussão. O regente fungou. — Firenzcia é inimiga dos kralji. Agora, nós também. Eu conheço Allesandra desde a época que ela passou aqui; você também. Com Fynn assassinado, ela será a hïrzgin; Allesandra nos acolherá.

— A não ser que os numetodos estejam sendo convenientemente culpados pelo assassinato do hïrzg Fynn — falou o embaixador, e Varina concordou enfaticamente com a cabeça.

— Para onde mais vocês iriam? — perguntou o regente.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

— Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

— E Firenzcia não faria o mesmo? — interveio Varina.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — disse o embaixador.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — Sergei fungou novamente.

Nico ouvia a discussão enquanto se encolhia no manto. Ele não queria ir para Firenzcia, Il Trebbio, Paeti ou qualquer um desses lugares. O menino gostava de Varina e sentia muito por ela estar machucada, mas queria estar com sua matarh ou Talis. Os adultos não prestavam atenção nele; estavam muito dedicados à discussão.

Aos poucos, Nico ergueu o corpo até ficar sentado no muro. Ele virou-se, as pernas balançaram do outro lado. Ninguém notou o menino; ninguém disse nada para ele. Nico deixou-se cair na grama alta do campo. Ele ainda podia ouvir a discussão quando começou a se afastar rapidamente do outro lado do muro de pedra — de volta para Nessântico. De volta para o único lar que conhecia.

Quando Nico mal pôde escutar as vozes, ele começou a correr: noite adentro, chuva adentro, na direção do brilho da cidade ao longe.

 

Varina ci’Pallo

— PARA ONDE MAIS VOCÊS IRIAM? — falou o regente, e ela ouviu Karl escarnecer.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

Sergei parecia um professor ensinando um aluno lento. — Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

Varina, que meio que ouvia a discussão, remexeu-se e interrompeu os dois com os olhos semicerrados. — E Firenzcia não faria o mesmo? — disparou para o regente.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — acrescentou Karl; Varina ficou contente por ter o apoio dele.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — A voz de Sergei era quase de deboche.

A discussão apenas minava a pouca força que restava a ela. Deixe Karl lidar com ele; Karl não irá para Firenzcia. Não irá... Conforme a discussão continuava, a atenção de Varina voltou-se para o cansaço do corpo e a dor latejante e insistente no braço, que dava uma pontada toda vez que ela se mexia. Varina apoiou a cabeça no muro de pedra à beira da estrada, sem se importar que o chão embaixo dela estivesse frio e encharcado, e fechou os olhos enquanto os dois continuavam a discutir. Sentia no rosto o espirro gelado ocasional das nuvens insistentes e ouvia o estrondo da voz dos dois homens como um trovão distante em sua mente. Ela estava péssima e com frio.

Varina perguntava-se se a morte não seria na verdade um benefício.

Ela não sabia o que pensar quando olhou para a direita, na direção onde o brilho da cidade pintava as nuvens baixas levadas pelo vento. Ao mesmo tempo, percebeu que o calor tênue que estivera ao seu lado foi embora.

— Nico? — Varina sentou-se e conteve o grito que queria irromper pela garganta com o movimento. Então, falou mais alto — Nico?

Karl e Sergei deixaram a discussão de lado e viraram-se. — Varina? — Karl começou a dizer, depois praguejou. — Merda! O menino sumiu. — Ele olhou sobre o muro, Varina fez o mesmo, enquanto se levantava lentamente. A grama da campina revelava o rastro escuro e pisoteado dos pés de Nico, que voltava na direção da cidade até Varina perdê-lo na escuridão.

— Eu vou atrás dele. O garoto não pode estar longe. — Ela começou a passar por cima do muro para persegui-lo e fez uma careta quando o movimento forçou o braço machucado. Mas Varina sentiu a mão de Karl no braço bom, para contê-la.

— Não — falou Karl. — Você não pode. Ele está voltando para a cidade e chegará lá antes que você o alcance. Você não pode ir lá. Eles não estão procurando por um menino, estão procurando por você.

Varina estava agitada. Ela tentou se soltar de Karl, mas estava muito fraca. Sergei assistiu, impassível, da estrada. — Nico estará sozinho lá. Não posso abandoná-lo assim. Eu prometi.

— Ele estava sozinho quando você o encontrou. O garoto é no mínimo engenhoso. — Karl apontou com o queixo para o brilho da cidade nas nuvens. — Nico acha que sua matarh ou Talis irão encontrá-lo se ficar lá. Ele pode estar certo. Deixe o menino ir, Varina. Deixe-o ir. Nós temos outras questões para nos preocupar.

Varina esmoreceu. Ela sentou-se no muro e olhou para a trilha da fuga de Nico. Karl soltou seu braço, que ela usou para abraçar o ferido. A chuva tinha recomeçado a cair; a garoa escondeu as lágrimas. — É minha culpa — disse Varina. — Minha culpa. Eu devia ter tomado conta dele. Prometi que o levaria a um lugar seguro. Prometi a ele...

— Varina. — Ela virou-se para Karl, que balançou a cabeça. — A culpa é minha. Você está ferida, precisava descansar. Eu devia ter vigiado o menino. Não você. A culpa é minha.

Varina queria poder acreditar em Karl. Fungou. Virou o rosto novamente para o rastro, que sumia. A grama da campina já se levantava e escondia a fuga de Nico.

— Fique a salvo — sussurrou Varina: para a escuridão, para a chuva, para a névoa distante tocada pela luz. — Por favor, fique a salvo.

 

Audric ca’Dakwi

VOCÊ TEM TODO O DIREITO de estar furioso. Na verdade, você tem que estar furioso, para que eles temam você.

Audric ouviu a voz da mamatarh, o espocar das palavras em sua cabeça, a raiva aparente de Marguerite. Ele viu a cara fechada no quadro à direita quando se sentou no Trono do Sol.

Eu fui a Spada Terribile, a Espada Terrível, antes de ser a Généra a’Pace, falou a kraljica em fúria. Você tem que seguir meus passos, Audric. Tem que mostrar para eles o aço, antes de dar a luva de pelica, para que saibam que o aço está sempre dentro. Escondido.

— Eu mostrarei — falou Audric em tom grave, depois se voltou para o comandante co’Falla, que estava diante dele com a cabeça baixa e uma pequena bandagem no pescoço. O Conselho dos Ca’ sussurrava em seus assentos, atrás do comandante. — Comandante? — vociferou o kraljiki, embora a rispidez da palavra tenha provocado um acesso de tosse. Ele ergueu os olhos, com o lenço de renda amassado na mão, e viu que co’Falla o encarava. — Você está me informando que o ex-regente ca’Rudka conseguiu escapar da Bastida e de minha ordem de execução? — Ele teve que parar para tomar fôlego. Ouviu o eco da voz nas pedras do salão. Abaixe a voz. Você soa estridente, como uma criança. Mostre a eles que você está à altura deles. — Eu sei — falou Audric para a mamatarh, depois se deu conta de que todos o observavam, e fingiu que começava outra sentença — ... que o regente não pôde ser encontrado em Nessântico e que provavelmente fugiu da cidade?

— Sim, kraljiki — falou o comandante irritado. Ele retesou o maxilar, os músculos encolheram-se debaixo da barba, e ele franziu os lábios depois da resposta. Co’Falla parecia conter as palavras que queria dizer.

Audric fez um gesto magnânimo na direção ao homem e falou — Prossiga. Esclareça para nós.

— Kraljiki — disse ele, e olhou para trás, para os demais. — Conselheiros. Este foi um ataque à Bastida orquestrado pelos numetodos; por quantos, ainda não temos certeza. Os portões principais foram arrancados com um feitiço, e perdi dois homens quando os suportes do lado norte caíram como resultado. Eu imediatamente mandei interditar a torre onde o regente estava preso, com medo de que um ataque direto pelos portões destruídos viesse a seguir, e despachei um mensageiro ao templo para chamar os ténis, a fim de neutralizar os feitiços numetodos. Mas, ao que parece, o ataque aos portões foi simplesmente um engodo para chamar nossa atenção. Quando não aconteceu ataque algum, eu pessoalmente levei gardai aos corredores do subsolo da Bastida, mas o embaixador ca’Vliomani e seus comparsas já haviam entrado; provavelmente muito antes do ataque ao portão.

— Você tem certeza de que o homem que viu era o embaixador ca’Vliomani? — perguntou Audric.

Co’Falla concordou com a cabeça. — Certeza absoluta, kraljiki. Quando ficou óbvio que não haveria ataque algum aos portões, eu levei um esquadrão aos corredores do subsolo, como disse. Nós confrontamos o embaixador ca’Vliomani e a numetodo Varina ci’Pallo com o prisioneiro; havia pelo menos outro numetodo nos corredores. Eles usaram feitiços contra nós. — Ele engoliu em seco. — Meus homens e eu fomos incapacitados.

Audric ergueu as sobrancelhas. — Incapacitados — falou o kraljiki demoradamente, como se saboreasse a palavra. — Mas não morto, embora, eu noto, tenha sido... ferido. Um arranhão no pescoço, que não foi pior que um cortezinho de navalha? Que sorte para todos nós!

Soaram risadas da parte dos conselheiros, com destaque para o riso debochado de Sigourney ca’Ludovici. O rosto de co’Falla ficou visivelmente vermelho.

— Kraljiki, conselheiros, eu conheço Sergei ca’Rudka desde que entrei para a Garde — disse ele. — Ele foi meu offizier superior e meu mentor. Ele me promoveu e me fez subir de patente; Sergei ca’Rudka, através de seu vatarh, kraljiki, me escalou para meu posto atual como comandante da Garde Kralji. Eu o considerava meu amigo, bem como meu superior. Eu presumo que a amizade dele é o motivo de meus homens e eu ainda estarmos vivos, kraljiki.

Audric não precisou do falatório da mamatarh para se levantar do trono ao ouvir isso. Ele apontou um dedo acusador para o comandante. — Na realidade, seu relacionamento e amizade com ele foram a causa de ca’Rudka ter escapado — rugiu o kraljiki em tom estridente ao conter a tosse. — Que conveniente que você tenha caído inconsciente exatamente na hora certa. Que conveniente que os numetodos conhecessem essa passagem secreta pelo rio. Que conveniente... — Audric não conseguiu prosseguir. Foi sobrepujado pela tosse naquele instante, e encolheu-se no Trono do Sol com o lenço de renda no rosto enquanto o corpo era acometido pelo ataque. Ele mal ouviu a ladainha de desculpas do comandante.

— Meu dever é com o kraljiki e Nessântico — insistiu co’Falla. — Isso suplanta qualquer amizade que eu possa ter com o regente. Eu lhe garanto, kraljiki, que agi exatamente como o senhor ordenou. Eu lhe garanto que teria cumprido a sua ordem de executar o regente, caso o senhor tivesse decidido que esse seria o destino dele. Vários dos meus homens foram feridos ou mortos no ataque; eu jamais, jamais teria permitido que isso acontecesse. Eu não abandonaria meu dever e juramento ao serviço militar pelo bem de uma amizade. Jamais.

Audric ainda recuperava o fôlego enquanto limpava os lábios com o lenço. Marlon, ajoelhado e inclinado para frente nos degraus do tablado do trono, ofereceu outro lenço, que Audric pegou entregando o manchado para o criado. Foi Sigourney ca’Ludovici quem respondeu a co’Falla, e Audric escutou enquanto tossia baixinho no novo lenço. — Estas são belas e nobres palavras, comandante, mas... — Ela olhou solenemente em volta do salão. — Ora, eu não vejo o regente nem o embaixador ca’Vliomani algemados diante de nós, e pelo que o senhor nos disse, todos os numetodos notórios da cidade fugiram também. Como o kraljiki disse, que conveniente que eles tenham tido tempo e oportunidade para fazer tal coisa.

— Conselheira ca’Ludovici — falou co’Falla —, eu fico ofendido diante destas acusações. Assim que recuperei a consciência, eu despachei a Garde Kralji para guardar os portões e varrer a cidade; entrei em contato com o archigos Kenne para que ele mandasse alertar os utilinos em suas rondas; mandei uma mensagem ao Guardião dos Portões e pedi que vasculhassem todos os albergues e estalagens. A senhora pode verificar essas ordens com meus offiziers.

— Mas seu amigo ca’Rudka e seus comparsas conseguiram escapar dessa bela e maravilhosa rede que o senhor colocou em torno da cidade — respondeu ca’Ludovici. — Como ele é esperto. — Novamente veio a risada dos outros conselheiros.

Audric recuperou a compostura e dobrou o lenço manchado de sangue na mão. O rosto de co’Falla estava ainda mais vermelho do que antes, e o kraljiki ergueu a mão para interromper o protesto do comandante. — Eu decreto que Sergei ca’Rudka não tem mais status algum nos Domínios. Que a Gardes a’Liste registre o nome dele simplesmente como Sergei Rudka, de agora em diante. O mesmo para o embaixador ca’Vliomani; ele perdeu o status diplomático e agora é conhecido apenas como Karl Vliomani, sem nenhum posto aqui. Quando forem encontrados, a pena para eles será a morte imediata.

Audric ouviu o murmúrio de prazer da mamatarh e os sussurros dos conselheiros, que concordaram. — Quanto a você, comandante co’Falla — falou ele, e co’Falla ajeitou os ombros e pareceu olhar além do kraljiki —, também é necessário haver julgamento.

— Kraljiki — disse co’Falla, de queixo empinado e com olhos ocultos —, eu tenho família aqui e presto serviço leal ao Trono do Sol desde minha décima-sexta temporada. Eu peço aos senhores que considerem isso.

— Nós consideramos — falou Audric. — Nós também consideramos que você falhou com seu juramento e falhou com seu kraljiki. — Mostre a eles. Mostre a eles que você também pode ser a Spada Terribile. Mostre sua força e sua determinação. Audric levantou-se do Trono do Sol e enfiou o lenço de renda na manga da bashta azul e dourada. Ele deu alguns passos para ficar na frente de co’Falla e sentiu o olhar de aprovação de Marguerite as suas costas. Sua cabeça bateu na altura do peito do comandante; ele teve que erguê-la para ver o rosto do homem e ficou furioso por causa disso. — Nós exigimos a espada de seu cargo, comandante. — O kraljiki estendeu a mão.

A expressão de co’Falla ficou séria e vazia. Ele soltou o cinto da bainha, e os fechos de metal tilintaram como uma música. Co’Falla colocou a arma na mão estendida de Audric. O kraljiki pensou ter visto um leve traço de satisfação no rosto do homem quando o peso inesperado do aço quase fez Audric deixar a espada cair, a mão caiu e o cinto de couro da bainha enroscou-se sobre o piso de mármore do salão. O kraljiki virou-se de lado para co’Falla e sacou a lâmina da bainha. O aço retiniu: era a arma de um guerreiro, não um objeto de enfeite lustroso, entalhado e cravejado de joias que a maioria do Conselho dos Ca’ portava. Audric ergueu a lâmina com admiração e viu os pequeninos arranhões onde o gume fora recentemente afiado, o brilho da cobertura de óleo na superfície. A espada de um guerreiro. A espada que dava sinal de ter tido muito uso e muita morte.

Audric sorriu.

Sem aviso prévio, ele empunhou a arma na horizontal e girou o corpo rapidamente, enfiando fundo a ponta afiada e triangular da espada no estômago de co’Falla, e gemeu diante da resistência inesperada do tecido e dos músculos. O comandante ofegou, ficou boquiaberto e arregalou os olhos. As mãos de co’Falla pegaram a lâmina enquanto Audric continuava a empurrar com toda força e a enterrar a espada fundo na barriga do homem. O sangue espalhou-se rapidamente e fluiu pela calha central na direção do punho que o kraljiki segurava. Co’Falla tomou fôlego pela segunda vez e verteu sangue pela boca aberta, seus joelhos cederam, o homem caiu e arrancou a espada da mão de Audric. O kraljiki ouviu os conselheiros ficarem de pé ao mesmo tempo, horrorizados.

A mamatarh riu dentro de sua cabeça.

Muito benfeito, disse ela para o neto. Benfeito mesmo!

Audric foi até o corpo que estrebuchava, olhou nos olhos do moribundo e falou — Agora nós realmente não temos que nos preocupar com sua incompetência. — Ele tossiu violentamente pelo esforço, mas não se importou com as gotículas vermelhas que caíram sobre o rosto e o peito do homem. Co’Falla olhou Audric fixamente e pestanejou. O kraljiki arrancou a espada do estômago do sujeito e colocou a ponta sobre o peito, sentiu quando ela entrou entre as costelas. — E lhe concedemos um último favor: uma morte rápida. — Audric colocou todo o peso no cabo e empurrou. Mais sangue jorrou da boca de co’Falla, e o homem ficou imóvel.

Excelente! Você é realmente meu verdadeiro herdeiro, muito mais forte que seu vatarh...

Audric voltou-se para o Conselho dos Ca’ e espalmou as mãos ensanguentadas. O rosto de Sigourney ca’Ludovici ficou pálido, e ela olhava mais para o cadáver de co’Falla do que para o kraljiki.

— Parece que precisamos de um novo comandante — disse Audric para os conselheiros.

 

 

Allesandra ca’Vörl

— ISSO NÃO ERA O QUE EU QUERIA, matarh. Fynn deveria ser o hïrzg, e caso não fosse ele, então a senhora. Não eu.

Allesandra tirou fios imaginários dos ombros da bashta com apliques dourados que Jan usava, com a faixa do cargo de hïrzg sobre o tecido preto e prateado. Ela tocou a bochecha do filho e sorriu. Ele já tinha ficado mais alto do que a matarh nos últimos dois anos; Jan ficaria ainda mais alto. — É melhor assim — disse Allesandra. — Firenzcia terá um hïrzg forte por muitas décadas, que é o que precisamos.

— Eu não entendo. — Jan olhou para ela, com a cabeça ligeiramente inclinada. — Por que a senhora fez isso? Por que abdicou de ser a hïrzgin? Todas aquelas histórias sobre o vavatarh ter tirado este direito da senhora, de tê-la ignorado em favor do onczio Fynn...

— Eu não queria. — Allesandra viu o espanto no rosto do filho. Jan sempre foi uma criança que revelava os pensamentos pelas expressões. Vou ter que trabalhar essa questão com ele. É algo que Jan precisa aprender. Ela sorriu e tocou a bochecha do rapaz. — É verdade, querido. Realmente. Agora, vamos: os ca’ e co’ vieram encontrar seu novo hïrzg, e não podemos fazê-los esperar.

Allesandra acenou com a cabeça para o comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg, que esperava pacientemente a uma passada e meia de distância dos dois trajando uniforme de gala. O homem prestou continência e ergueu a mão. Em resposta, Roderigo, que se tornou o assistente de Jan, gesticulou para os criados, que correram para seus postos. O som das cornetas ecoou pelo ar agradável da noite quando os atendentes abriram as portas duplas que levavam ao salão principal. Jan fez uma pausa e não se mexeu; Allesandra gesticulou para ele e disse — Você primeiro. É você que eles querem ver.

Quando Jan entrou, os aplausos surgiram e se avolumaram, entremeados por berros de comemoração e gritos de “hurra, hïrzg Jan!”. Ele parou na porta como se estivesse preso ao lugar pela aclamação e ergueu os braços lentamente, quase arrependido, para aceitá-la. — Ande — sussurrou Allesandra ao ver que o filho continuava parado ali. — Vá até eles.

Jan olhou para trás. — Com a senhora, matarh — falou e ofereceu o braço. Ela deu um passo à frente para aceitá-lo e sorriu quando pousou a mão no braço ao filho. Os aplausos aumentaram e envolveram os dois.

Allesandra olhou para a multidão radiante. As cores preto e prata predominavam, como em todas as comemorações firenzcianas, refletindo as cores dos estandartes pendurados no alto das paredes. Luzes mágicas reluziam intensamente nos candelabros e iluminavam os ca’ e co’ de Brezno, todos reunidos e voltados para os dois. Os rostos mostravam sorrisos, alguns genuínos, mas muitos escondendo preocupação, incerteza e desconfiança. Ninguém conseguiria deixar de ver o número de homens da Garde Hïrzg postados nas laterais do salão que andavam cuidadosamente entre a multidão, com olhares sérios e atentos, nem o comandante co’Göttering, que entrou no salão imediatamente atrás de Jan e Allesandra, nem a presença chamativa do starkkapitän ca’Damont, bem como seus vários offiziers chevarittai. Firenzcia tinha perdido dois hïrzg em menos de um ano agora, e os ca’ e co’ sabiam que a a’hïrzg passara o cajado e a espada para o filho, que eles conheciam pouco, apesar do recente destaque. Era óbvio que Firenzcia planejava não sofrer mais perdas.

Firenzcia estava acostumada a mudanças: na vida de muitos que aplaudiam a entrada de Allesandra e Jan, eles vivenciaram uma grande batalha perdida para Nessântico; viram a própria Allesandra ser feita de refém; testemunharam seu querido vatarh abandoná-la em nome do irmão mais novo; tremeram quando o velho hïrzg Jan separou-se dos Domínios e criou a Coalizão; testemunharam a separação da própria fé concénziana, com a rebelião do archigos ca’Cellibrecca contra o velho trono em Nessântico e a ascensão da archigos Ana; vibraram com o fortalecimento da Coalizão a cada ano que passava, pois parecia que um dia poderia até mesmo ofuscar os Domínios.

Na vida dos ca’ e co’, Firenzcia passou de criado dos Domínios a seu maior rival. A luz de Brezno agora rivalizava com a da própria Nessântico.

Eles sentiam-se otimistas a respeito de Firenzcia e do ramo breznoniano da fé concénziana, mas este ano acabou com muito daquele otimismo. Allesandra sabia que os ca’ e co’ vibravam agora mais pela esperança que o novo hïrzg Jan representava do que pelo próprio Jan.

Se eles soubessem o que ela planejou... Allesandra perguntou-se que caras os ca’ e co’ fariam e se conseguiriam sorrir de alguma maneira.

Semini estava na frente do público, com a equipe de ténis vestidos de verde atrás. Allesandra segurou na mão de Jan quando os dois desceram os degraus. Conforme a multidão começava a se juntar em volta de Jan, muitos com filhas jovens e solteiras a tiracolo, Allesandra apertou o braço do hïrzg e sussurrou — Seja educado com seus súditos. Você nunca sabe de qual deles poderá precisar como aliado... ou como esposa.

— Aonde você vai, matarh? — sussurrou Jan de volta, e ela ouviu apreensão em sua voz.

— Não se preocupe; eu estarei aqui e resgatarei você se notar algo estranho. Preciso falar com o archigos ca’Cellibrecca. — Allesandra acenou com a cabeça para os ca’ e co’ enquanto estes se reuniram em volta de Jan, escapou no meio da multidão e cumprimentou aqueles por quem passava. A música havia recomeçado, mas a maioria no salão ignorava o chamado para dançar a fim de ter um momento com o novo hïrzg. — Archigos — disse ela ao chegar a Semini, que estava do lado do público. Seus o’ténis assistentes, que sorriram e fizeram o sinal de Cénzi para Allesandra, afastaram-se quando ela chegou e retornaram cuidadosamente às próprias conversas.

Semini acenou com a cabeça para Allesandra e fez o sinal de Cénzi, depois ofereceu as mãos para ela. Allesandra as segurou e apertou os dedos por um instante antes de soltá-las. Eles não tiveram uma oportunidade de ficar juntos desde o encontro na Encosta do Cervo, há mais de um mês, mas houve cartas e recados cuidadosamente elaborados. Ela sabia como queria que esta noite acabasse. Os preparativos já tinham sido feitos: Semini iria aos aposentos de Allesandra após a recepção. Ela sorriu. — É tão bom vê-lo novamente, archigos. Como vai sua esposa na noite de hoje? Eu esperava ver Francesca com você. — Sempre educada em público, sempre dizendo as coisas certas.

— Ela não está... se sentindo bem e pede desculpas à senhora e ao hïrzg. Na verdade, Francesca não vem se sentindo bem há algum tempo, eu cuidei para que ela fosse para as estâncias de Kishkoros. Francesca ficará lá mais uma semana; eu soube que as estâncias são bem revigorantes e renovadoras.

Allesandra concordou, contente com a notícia: isso remove um empecilho para nosso caso. — São sim. Tenho certeza de que o descanso fará maravilhas para a saúde de Francesca, embora eu espere que isso não lhe deixe muito solitário. — Ela apertou a mão de Semini novamente.

Ele deu um sorriso ao ouvir isto, talvez largo demais. Allesandra viu um dos o’ténis erguer as sobrancelhas na direção dos dois e soltou as mãos do archigos. — Tenho certeza de que o trabalho me impedirá de sentir muita falta de Francesca. Há muita coisa que a Fé pode fazer para ajudar o novo hïrzg, não acha?

— Eu sei que Jan ficará muito grato a você, archigos. Assim como eu. — Ela deu uma olhadela para a aglomeração de gente em volta de Jan. Ele sorria abertamente, cumprimentava mãos e tocava em ombros, e havia jovens reunidas ao seu redor. Apesar da apreensão mais cedo, Jan parecia estar se divertindo. O nó no estômago de Allesandra afrouxou um pouco. O comandante co’Göttering permanecia ao lado do hïrzg e observava atentamente, com a mão nunca longe da espada ao lado. Allesandra suspeitava que, apesar da elegância dourada do cabo, a lâmina do comandante era bem útil. Aliás, ela sabia que o próprio Semini era um excelente téni-guerreiro e não tinha dúvidas de que os outros ténis com ele eram o mesmo.

Jan estava a salvo aqui. Allesandra poderia aproveitar a noite e ver as manobras sociais dos ca’ e co’ que foram convidados. — Uma vez que a conselheira ca’Cellibrecca não pôde estar aqui — disse ela para Semini —, talvez você possa dançar comigo mais tarde?

Os dentes brancos reluziram sob a barba grisalha; ele abaixou levemente a cabeça. — Eu adoraria muitíssimo. Gostaria de caminhar comigo, a’hïrzg? Meus ténis montaram um belo arranjo no jardim, e eu gostaria de mostrá-lo para a senhora. — Semini ofereceu o braço para Allesandra, que hesitou um momento; os ca’ e co’ podiam não estar prestando tanta atenção a ela quanto ao filho, mas notariam. Eles sempre notavam. Mas Allesandra deu a mão ao braço oferecido e deixou que Semini a conduzisse a uma das sacadas no mezanino do salão. Os o’ténis do archigos, notou ela, se posicionaram cuidadosamente nas portas da sacada quando os dois passaram e ficaram voltados para o salão, de maneira que, quando Allesandra olhou para trás, não viu nada além de costas vestidas de verde, embora as portas permanecessem educadamente abertas.

— Eles são bem treinados — disse ela, e Semini sorriu.

— E são bem discretos. Veja. — O archigos se dirigiu para o lado esquerdo da sacada, onde mesmo que alguém tentasse olhar do salão sobre a parede de o’ténis não conseguiria ver facilmente os dois. Lá embaixo, os jardins do Palácio de Brezno estavam acesos com bolas de luz brilhante que flutuavam suavemente nas alamedas: tons intensos de púrpura e azul, vermelhos reluzentes, verdes da cor da grama na primavera, amarelos mais fortes do que girassóis. A noite estava fresca e agradável, e as estrelas imitavam o jardim em um céu decorado com nuvens prateadas. Os casais na recepção perambulavam pelo labirinto dos jardins, de mãos dadas.

O calor de Semini cobria as costas de Allesandra, ele estava com os braços em volta dela e apertava o corpo contra o seu. — Eu senti sua falta, Allesandra.

— Semini... — Ela recostou-se no abraço e sentiu o desejo aumentar dentro de si. Ele tinha cheiro de sabonete, de óleo no cabelo e almíscar. Allesandra imaginou-se montada em Semini, movendo-se com ele.

Ela virou-se nos braços do archigos e empinou o rosto. Eles beijaram-se, e Allesandra sentiu os pelos macios da barba em sua bochecha e o ímpeto da língua na boca, as mãos do archigos desceram para pegar suas nádegas e apertá-la contra ele. A a’hïrzg entregou-se ao beijo, fechou os olhos e se permitiu sentir, notar o calor que passava por ela como uma maré lenta e implacável. Allesandra afastou-se, relutante, o fôlego era quase um lamento, e virou-se novamente para relaxar contra o corpo do archigos. Ela olhou para a luz, para os amantes furtivos em momentos secretos no jardim lá embaixo. — Semini... — Allesandra começou a falar...

... Mas o aumento do barulho no interior do salão afastou Allesandra do archigos, cheia de culpa. Eles ouviram gritos, e no momento em que a a’hïrzg virou-se, preocupada, ela ouviu um dos o’ténis falar alto demais: — ... deixe-me buscar o archigos para o senhor...

O comandante co’Göttering empurrou a porta da sacada e irrompeu noite afora, seguido por um trio de inúteis o’ténis. — A’hïrzg, archigos — falou o homem. Quaisquer que fossem os pensamentos que ele possa ter tido ao ver os dois próximos e sozinhos na sacada foram cuidadosamente dissimulados. — A sua presença é exigida no salão.

— Qual é o problema, comandante? — perguntou Allesandra. — Eu ouvi gritos. Jan está...?

— O hïrzg está bem. Há notícias e... um convidado. Por favor... — Co’Göttering gesticulou para a porta; Allesandra e Semini seguiram o comandante em direção à claridade do palácio e da escada do mezanino. A a’hïrzg viu um quarteto de homens da Garde Hïrzg em volta de Jan, enquanto os ca’ e co’ ficavam boquiabertos, e com eles um homem sujo de viagem. No meio da escada, o sujeito se virou e, na luz, Allesandra viu o brilho de metal no rosto: um nariz feito de prata reluzente. E o rosto...

Allesandra ficou sem fôlego. Ela conhecia o homem. Conhecia muito bem, e parecia impossível que ele estivesse aqui em Brezno.

 

Enéas co’Kinnear

NESSÂNTICO...

Enéas quase chorou quando viu as torres e domos dourados novamente, quando vislumbrou a faixa perolada da Avi a’Parete brilhando à noite, quando ouviu as trompas do Templo do Archigos que anunciavam, em tom de lamúria, as Chamadas para a prece. A grande cidade, a maior de todas as cidades: ela era uma visão que, por muitas vezes quando serviu nos Hellins, ele duvidou que tivesse permissão para ver de novo.

E Enéas não teria tido o prazer se não tivesse sido abençoado com a graça de Cénzi. Disso, ele tinha certeza — não, ele teria morrido nos Hellins. Deveria ter morrido lá. Enéas parou a carruagem no Morro Corcunda, do lado de fora da cidade ao longo da Avi a’Sutegate, desceu e gesticulou para o condutor prosseguir. Enquanto a carruagem descia o morro se sacolejando, na direção do Portão Sul e de pontos de referência conhecidos, Enéas ficou em um joelho só, com as mãos entrelaçadas na testa, e rezou para agradecer a Cénzi.

Ainda há uma tarefa que resta você fazer, Enéas ouviu a resposta de Cénzi enquanto olhava o cenário maravilhosamente familiar diante dele: o rio A’Sele, que reluzia ao abraçar a Ilha A’Kralji, com as quatro pontes arqueadas sobre as águas. Então sua dívida Comigo estará realmente paga, e eu lhe aceitarei plenamente nos Meus braços...

Enéas sorriu, levantou-se e desceu devagar em direção à cidade que amava.

Naquela noite, ele deu os papéis do comandante ca’Sibelli e seu próprio relatório verbal ao gabinete da Garde Civile, embora o e’offizier presente parecesse distraído e nervoso. — Há notícias dos Hellins? — perguntou Enéas. — Mais recentes do que as que eu contei?

O e’offizier fez que não com a cabeça. — O seu é o último relatório que recebemos, o’offizier. — Ele abaixou a voz num sussurro conspiratório. — Cá entre nós, eu sei que o comandante co’Ulcai está muito preocupado; ele esperava receber mensagens expressas dos Hellins nas últimas semanas, mas elas não vieram. Quanto aos eventos aqui na cidade, bem... — O homem falou da fuga do regente, da participação dos numetodos e da execução do comandante co’Falla da Garde Kralji como punição. Ele inclinou-se para frente a fim de sussurrar para Enéas. — Vá à Pontica a’Brezi Veste e o senhor verá o corpo do comandante pendurado para servir de comida para os corvos. Cá entre nós, isso deixou o comandante co’Ulcai preocupado, uma vez que ele e co’Falla eram protegidos do regente e indicados pelo próprio. O kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, pode vir a desconfiar daqueles que tenham um tiquinho de lealdade pelo velho regente. Só podemos torcer para que o kraljiki Audric acabe sendo tão forte e sábio quanto sua mamatarh, mas... — O e’offizier deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Só Cénzi sabe.

— Realmente — respondeu Enéas. — Só Cénzi sabe. Essa é a única verdade.

O offizier carimbou a papelada e informou que a agenda de co’Ulcai estava cheia no dia de hoje, mas que o comandante poderia chamar Enéas para dar o relatório em pessoa, e que ele estava liberado de outras tarefas na próxima semana. Enéas recebeu uma chave e um quarto, onde colocou a mochila com cuidado, longe do fogo na lareira e da janela, onde o calor do sol poderia alcançá-la.

Depois, ele seguiu pela Avi a’Parete para a praça onde ficava o Templo do Archigos, cheia de pombos sobre as lajotas ou voando com precisão militar em esquadrões no céu, que depois pousavam onde alguém talvez tivesse deixado comida cair. Enéas andou devagar e apreciou as vistas e os odores da cidade, sentiu o gosto do ar carregado na boca. A presença da cidade abraçou Enéas como uma matarh, ele foi completamente envolvido pelo miasma perfumado e quase soluçou pelo puro alívio da sensação. Vindas da Avi, as pessoas entravam aos borbotões na praça, e Enéas percebeu que era quase a Segunda Chamada, bem no momento em que as trompas começaram a soar nos grandes domos dourados. Ele juntou-se às pessoas que entravam no templo. Algumas reconheceram seu uniforme, com a faixa vermelha dos Hellins proeminente na transversal, e sorriram para Enéas, gesticulando para que ele entrasse na fila. — Obrigado por servir ao país, offizier — disseram para ele. — Nós reconhecemos tudo o que o senhor está fazendo por lá. — Enéas devolveu o sorriso ao passar pelas grandes portas de bronze, com os corpos emaranhados dos moitidis que jorravam do peito dilacerado de Cénzi, e entrou na penumbra fria e com cheiro de incenso do templo.

Ele sentou-se perto do coro, logo abaixo do Alto Púlpito, e jogou a cabeça para trás para ver o telhado distante, cheio de vigas. Através do vitral bem acima de Enéas, a luz radiante trespassava a penumbra. Ele ouviu o cântico dos acólitos nas alcovas quando as trompas se calaram e a procissão de ténis entrou no coro pela porta dos fundos. Enéas ficou com o resto da congregação e sorriu com prazer ao se dar conta de que seria o próprio archigos a dar a Admoestação e a Bênção hoje. Cénzi realmente o recompensou. Quando ele foi embora de Nessântico, há tanto tempo, tinha sido a archigos Ana que dera a Bênção ao batalhão prestes a partir, aqui neste mesmo espaço.

Agora seria o sucessor da archigos que o abençoaria novamente, quando Enéas tinha uma nova e mais importante missão a cumprir.

Ele escutou pacientemente à Admoestação do archigos. Ela foi permeada por um pedido de tolerância, o que soou estranho para Enéas, e o archigos Kenne citou versículos do Toustour que falavam do respeito por visões diferentes. Ele aconselhou os presentes no templo a não fazer julgamentos precipitados: — Às vezes, a verdade está escondida até mesmo daqueles que estão mais próximos. Deixem Cénzi julgar os outros, não nós. — Este, pelo menos, era um conselho que Enéas podia seguir, sendo guiado pela voz de Cénzi.

Após a cerimônia, ele foi até o parapeito com os demais suplicantes. O archigos Kenne percorreu a fila lentamente e parou para falar com cada um deles. Aos olhos de Enéas, o velho téni parecia cansado e abatido. Sua voz era fraca e estridente, o que indicou para Enéas que ela foi aprimorada com o Ilmodo pelo archigos (ou por um dos outros ténis) para que soasse forte e confiante ao dar a Admoestação. Enéas abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi quando o archigos, com um cheiro de incenso entranhado no robe, parou diante dele. — Ah, um offizier da Garde Civile — falou o archigos. — E com uma faixa das Terras Ocidentais, ainda por cima. Nós lhe devemos gratidão pelo seu serviço ao país, o’offizier. Por quanto tempo o senhor serviu lá?

— Por mais tempo do que eu gostaria de lembrar, archigos. Retornei hoje à Nessântico.

A mão enrugada e seca do archigos roçou na cabeça baixa de Enéas, e os dedos encostaram no cabelo oleoso. — Então deixe que a Bênção de Cénzi lhe dê boas-vindas à cidade. Há alguma bênção específica que eu possa lhe oferecer, o’offizier?

Enéas levantou a cabeça. Os olhos do archigos eram de um tom cinza esbranquiçado e começavam a dar sinais de catarata; a cabeça tremia de leve, sem parar, mas o sorriso parecia genuíno, e Enéas viu-se devolvendo o sorriso, dizendo — Eu sou um simples guerreiro. Um offizier serve às ordens que recebe. Eu tirei muitas vidas, archigos, mais do que sou capaz de contar, e com certeza tomarei mais até parar de servir.

— E o senhor quer o perdão de Cénzi por isso? — perguntou o archigos, cujo sorriso aumentou. — O senhor estava apenas cumprindo seu dever e...

— Não. — Enéas interrompeu e balançou a cabeça. — Eu não me arrependo do que fiz, archigos.

O sorriso sumiu, incerto. — Então o que...?

— Eu gostaria de me encontrar com o kraljiki. Ele tem que saber o que está acontecendo nos Hellins. O que está acontecendo de verdade.

— Eu tenho certeza de que o kraljiki se informa através do comandante... — O archigos começou a dizer, mas Cénzi falava com Enéas, e ele repetiu as palavras que ouviu na cabeça.

— A essa altura, o comandante ca’Sibelli está morto — falou Enéas em voz alta. — Pergunte ao kraljiki que notícias chegaram dos Hellins. Ele não terá ouvido nada, archigos. Não há notícias dos Hellins porque simplesmente não sobrou ninguém para enviá-las. Acabou. Pergunte ao kraljiki, e quando ele responder que os navios expressos não vieram, diga que eu posso dar o relatório que o kraljiki precisa ouvir. Eu sou a única pessoa capaz disso. Aqui... — Ele colocou um cartão de visitas com seu nome e atual endereço no parapeito. — Por favor, pergunte a ele quando o senhor o vir novamente. Esta é a dádiva e a bênção que peço ao senhor, archigos. Apenas isso. E Cénzi também faz esse pedido ao senhor. Escutou? Não ouviu Sua voz? Ouça, archigos. Ele chama o senhor através de mim.

— Meu filho... — O archigos começou a falar, mas foi interrompido por Enéas.

— Eu não sou um soldado com a mente perturbada pelo que viu, archigos. Fui salvo por Cénzi para trazer esta mensagem ao kraljiki. Eu ofereço minha mão ao senhor quanto a isso. — Enéas estendeu a braço para o archigos e ouviu a voz grave de Cénzi em sua cabeça ao tocar o pulso do velho. — Dê ouvidos a ele. Eu ordeno. — E o archigos arregalou os olhos como se tivesse escutado a voz também. Ele puxou a mão, e a voz morreu.

— Pergunte ao kraljiki por mim — falou Enéas. — É tudo o que eu peço. Pergunte a ele. — Enéas sorriu para o archigos e ficou de pé. Os outros suplicantes e os ténis presentes olharam fixamente para o offizier. O archigos Kenne ficou boquiaberto enquanto olhava para a própria mão, como se ela fosse um corpo estranho.

Enéas fez o sinal de Cénzi para todos e saiu do templo, as botas ecoaram alto no silêncio.

 

Niente

As forças do tecuhtli Zolin e o exército tehuantino estavam dispostas à cautelosa distância de um tiro de flecha das grossas muralhas de defesa de Munereo.

Três dias de batalha fizeram a Garde Civile recuar para dentro das muralhas. O tecuhtli Zolin foi ao mesmo tempo agressivo e impiedoso no ataque. O comandante ca’Sibelli mandou um grupo de negociação para o acampamento tehuantino depois do primeiro dia de batalha, quando Zolin fez a Garde Civile fugir dos campos altos e amplos ao sul da cidade. Niente estava lá no momento em que o grupo de negociação chegou com a bandeira branca; ele viu Zolin ordenar que seus guardas pessoais matassem os negociadores e mandassem as cabeças decepadas para o comandante ca’Sibelli como resposta.

Eles atacaram a força principal da Garde Civile na alvorada da manhã seguinte; naquela noite, os tehuantinos avistavam as muralhas de Munereo e o porto, onde estava ancorada a frota dos Domínios.

Agora era alvorada de novo, e o tecuhtli Zolin havia convocado Niente. Zolin reclinou-se em um amontoado de travesseiros coloridos; os guerreiros supremos Citlali e Mazatl também estavam com ele. Atrás do tecuhtli, havia um artista debruçado sobre a cabeça recém-raspada de Zolin; perto do homem havia uma mesinha coberta por agulhas em formato de unha de dragão e potes de tinta. O escalpo de Zolin fora pintado com a águia de asas abertas que era a insígnia do tecuhtli; agora o tatuador se preparava para marcar a pele permanentemente. Ele pegou uma agulha, mergulhou no pigmento vermelho e pressionou no escalpo de Zolin: o guerreiro fez uma careta sutil. — Os preparativos dos nahualli estão prontos? — perguntou o tecuhtli para Niente, enquanto o tatuador rapidamente mergulhava a agulha novamente e pressionava na cabeça de Zolin, sem parar. O sujeito limpava com um pano o sangue que gotejava e escorria.

— Sim, tecuhtli — respondeu Niente. — Nossos cajados mágicos foram renovados, por outros saudáveis o suficiente para realizar a tarefa. — Ele ergueu o próprio cajado e mostrou as águias entalhadas que davam voltas abaixo da cabeça lustrosa e grossa. — Nós perdemos dois punhados de nahualli na batalha; outro punhado e um estão feridos demais para serem úteis hoje. Todo o resto está pronto. — Niente acenou com a cabeça para os dois guerreiros supremos. — Eu dispus os nahualli conforme Citlali e Mazatl pediram.

— E a areia negra?

— Foi preparada — falou Niente. — Eu mesmo supervisionei.

— A tigela premonitória? O que ela lhe disse?

Niente passou a maior parte da noite olhando as águas, que lhe renderam apenas visões turvas e enevoadas, bem como exaustão e uma face e mãos que pareciam ter adquirido mais uma teia de finas rugas da noite para o dia. Ele ficou confuso pelos rápidos vislumbres de futuros possíveis, mas sabia o que Zolin queria escutar e sacou da mente uma daquelas visões efêmeras. — Eu vi o senhor dentro da cidade, tecuhtli, e o comandante dos Domínios a seus pés.

Zolin abriu um largo sorriso e disse — Então é chegado o momento. — Ele levantou-se e quase derrubou o tatuador, que deu um passo rápido para trás quando o tecuhtli pegou sua espada. Zolin deu tapinhas na cabeça que sangrava e sorriu. — Isso pode ser terminado depois. A batalha não pode esperar.

Quando eles saíram da tenda, os guardas entraram em posição de sentido. Do pequeno morro onde a tenda do tecuhtli ficava, eles podiam ver o exército espalhado lá embaixo e a névoa das fogueiras sendo levada pela brisa na manhã serena. As muralhas de Munereo surgiam altas mais ao longe na descida da encosta, e o sol cintilava na água da baía do outro lado, à direita. Zolin gesticulou, e um trio de trompas de guerra soou um chamado que foi repetido por outras trompas ao longo do acampamento, e Niente viu todo o exército se agitar como um formigueiro cutucado com um graveto. As fileiras de batalha começaram a se formar; os supremos guerreiros em seus cavalos encorajavam as tropas. Nas muralhas de Munereo, o sol nascente era refletido nos elmos de metal e nas pontas das flechas enquanto as tropas dos Domínios esperavam pelo ataque.

Seus próprios cavalos foram trazidos, e eles montaram. Citlali e Mazatl prestaram continência a Zolin, cutucaram os animais e dispararam a galope. — Você fica comigo, nahual — falou Zolin. — Agora! — Ele também cutucou o cavalo com o pé, e Niente seguiu o galope do tecuhtli morro abaixo, na direção onde as tropas esperavam na encosta, quase niveladas com o topo das muralhas de Munereo. Os soldados abriram espaço rapidamente para deixá-los passar e soltaram gritos de apoio e admiração.

Antes do encantamento profundo realizado no oriental, Niente teria sido capaz de cavalgar o dia inteiro com qualquer pessoa. Agora, a batida dos cascos do cavalo no chão atingiu o corpo como marteladas. O máximo que conseguiu fazer foi se firmar às costas do animal com joelhos trêmulos. Zolin cavalgou até o centro da linha de frente das forças tehuantinas, onde a bandeira da águia fora plantada no meio da estrada tortuosa que descia até o portão ocidental de Munereo. Lá, um punhado de dragões de cerco aguardava. Zolin, de cima do cavalo, deu um tapinha na enorme cabeça pintada e entalhada de um dos dragões. — Os deuses nos prometeram vitória hoje! — berrou ele para quem estava em volta. Zolin apontou para a cidade à espera, morro abaixo. Os rostos marcados dos guerreiros estavam erguidos para ele, e os homens vibraram. Niente tinha que admitir que Zolin tinha o carisma que faltava ao tecuhtli Necalli: a expressão no rosto dos soldados indicava que eles o seguiriam até mesmo nas profundezas de uma das montanhas fumegantes. — Hoje, faremos um banquete onde os orientais jantaram, levaremos suas riquezas e os sobreviventes de volta para nossas cidades, e esta terra será devolvida aos nossos primos, que já foram seus donos!

Eles vibraram novamente, mais alto que antes. Zolin soltou uma gargalhada alta e deu tapinhas no dragão de cerco outra vez. — Está na hora! — berrou. — Hoje, vocês encontrarão a vitória ou a paz com os deuses!

Zolin gesticulou, e as trompas de guerra soaram a ordem para avançar. As fileiras estremeceram e começaram a avançar, e o tecuhtli Zolin, ao contrário de Necalli, Niente teve que admitir novamente, cavalgou bem à frente, sem penas na cabeça, para que todos pudessem ver a águia no crânio. O avanço começou lento, os soldados prosseguiram em ritmo de caminhada. Conforme desciam a encosta, as muralhas de Munereo pareciam se elevar, ficavam cada vez mais altas enquanto os tehuantinos se aproximavam até estarem sob sua longa sombra. Os dragões de cerco, montados em carroças, rangeram e gemeram quando começaram a descer a estrada, reclamaram ao serem empurrados encosta abaixo na direção das muralhas e dos enormes portões com barras. Zolin parou, Niente fez o mesmo: havia uma movimentação nas muralhas, de repente, uma chuva de flechas diminuiu a luz do sol e fez um arco no ar que foi seguido momentaneamente pelo estalo de mil cordas de arcos. — Escudos! — berrou Zolin, e os guerreiros ao redor ergueram os escudos de madeira para formar um teto temporário, vários levantaram o bastante para proteger tanto Zolin quanto Niente em seus cavalos. A chuva de flechas caiu furiosa e cravou as tábuas de madeira pintadas e presas com tiras de couro, algumas flechas passaram entre os escudos e pegaram alguns guerreiros azarados, mas a maioria bateu na madeira inofensivamente. — Abaixar! — gritou Zolin, e a parede de escudos foi abaixada, os soldados golpearam as hastes com as espadas. O chão ficou repleto de flechas quebradas.

Agora o avanço acelerou. Niente ergueu o cajado mágico no alto, pois sabia o que viria a seguir e berrou — Nahualli! Preparam-se! — Ele ouviu o cântico ao longe e sentiu a agitação da energia do X’in Ka quando os ténis-guerreiros dos Domínios lançaram os próprios encantamentos. Bolas de fogo irromperam sobre as muralhas de Munereo e se lançaram estridentes na direção dos tehuantinos em um rastro de fumaça. Niente sacudiu o cajado mágico apontado para a bola de fogo mais próxima e falou a palavra de ativação: ela explodiu enquanto ainda estava no ar e diante dos tehuantinos, o fogo assobiou ao morrer em fagulhas reluzentes que caíram sobre eles. Outra bola de fogo caiu ilesa nas forças tehuantinas à direita de Niente, e, mesmo ao longe, o calor e o impacto da explosão eram assustadores. Onde as bolas de fogo caíam, guerreiros gritavam ao morrer. Elas abriam sulcos nas fileiras em avanço, mas os espaços eram rapidamente preenchidos por guerreiros das fileiras seguintes. Zolin fez a fileira correr devagar, os dragões de cerco pareciam gritar conforme as rodas de madeira davam solavancos no solo irregular.

— Empurrem! — rugiu Niente para os guerreiros em volta dos dragões de cerco. — Andem! — Agora ele finalmente foi tomado pela empolgação da batalha e não se sentia mais um velho prematuro. Seu sangue ferveu e o vento cantou em seus ouvidos. O punhado de dragões de cerco ganhou velocidade e começou a descer morro abaixo por conta própria. Os guerreiros ao redor não precisaram mais empurrá-los; os dragões tinham o próprio ímpeto agora, já passavam da linha de frente do inimigo. Flechas caíam sem parar e o teto de escudos era formado a cada ataque, como resposta, mas Niente mal notava. Ele observava os dragões de cerco, que agora voavam pela terra batida da estrada, com as mandíbulas pintadas e escancaradas ao correr na direção dos portões. Bolas de fogo avançavam em arcos, e novamente Niente e os outros nahualli dispararam feitiços para detê-las. Ele ouviu Zolin gritar ordens para os homens.

Os dragões de cerco voaram, os controladores ficaram bem para trás e gritavam conforme as carroças avançavam, rolando por conta própria. Três dragões acertaram a base das muralhas em ambos os lados dos portões, e dois bateram nos próprios portões.

As cabeças dos dragões estavam repletas de areia negra — mais do que Niente e os outros nahualli já haviam preparado antes. Bastões mágicos foram enfiados nos focinhos para responder com fogo ao impacto. Niente viu os bastões entrarem em chamas, e então...

Houve um estrondo, como se uma das montanhas de fogo da terra natal de Niente tivesse entrado em erupção, e a seguir veio um clarão de pura luz que fez o nahual erguer a mão aos olhos com atraso. Pedras do tamanho de cavalos saíram voando, algumas caíram sobre os tehuantinos mais próximos, mas houve gritos mais altos vindos do interior de Munereo. Havia um turbilhão de fumaça na cena que tornava impossível ver, mas quando ela se dissipou, lentamente, as forças tehuantinas soltaram um grito mudo.

Os portões foram rompidos. Onde eles estiveram, havia apenas um buraco enorme, e as grossas muralhas de apoio em volta desmoronaram. Enquanto os tehuantinos observavam, um trecho dos parapeitos entrou em colapso à direita, derrubando os defensores a 15 metros do chão. — Avante! — berrava Zolin. — Avante! — O exército tehuantino avançou em uníssono na direção da cidade, sem se importar com as flechas ou o fogo dos ténis-guerreiros. O próprio Niente viu-se avançando com eles, com o cajado de prontidão e a garganta rouca pelos gritos de exaltação.

Os tehuantinos entraram aos borbotões pelas muralhas quebradas de Munereo.


Nas ruas da cidade, a batalha foi acirrada, violenta e caótica. Assim que o exército tehuantino entrou, a população nativa rebelou-se em conjunto e usou como arma qualquer coisa que estivesse à mão para matar e saquear alegremente os responsáveis por sua escravidão. Os defensores orientais de Munereo viram-se atacados tanto pela frente quanto pela retaguarda.

Ao perceber a derrota, os remanescentes da força dos Domínios tentaram recuar para os navios na baía, mas Zolin despachara naus de guerra dos tehuantinos para a boca da baía, cada uma com um nahualli a bordo, e eles dispararam fogo mágico para queimar as velas e os mastros das embarcações dos Domínios; nenhuma escapou do porto da baía de Munereo.

Foi dito mais tarde que era possível ir andando dos destroços dos navios dos Domínios até a praia sobre os corpos dos mortos, e que a baía inteira ficou vermelha por uma semana por causa do sangue despejado das ruínas de Munereo.

Os tehuantinos encontraram o comandante ca’Sibelli encolhido de medo a bordo da nau capitânia da frota e levaram o oriental de volta às ruínas fumegantes da cidade. O tecuhtli Zolin mandou que o homem fosse arrastado para o interior do principal templo de Munereo e amarrado ao altar ali, o próprio Niente preparou uma garra de águia para o homem, e encheu o tubo curvo de osso com areia negra. Ele pronunciou o encantamento enquanto trabalhava: tudo que seria preciso era dar uma virada no chifre de marfim e apertar o gatilho no punho de madeira para riscar a pederneira e acender o pó negro. Niente levava a garra da águia enquanto acompanhava o tecuhtli Zolin ao templo, que estava lotado de guerreiros supremos e nahualli; ele viu Citlali e Mazatl ali, sentados na frente. Todos estavam cobertos de sangue, mas a maior parte não era deles. Zolin estava diante de ca’Sibelli, despido até a cintura e amarrado ao altar. O homem grisalho parecia aterrorizado ao ver o tecuhtli e gemeu. — Eu entreguei a cidade para o senhor... — disse o comandante na língua oriental. — O regente e o Conselho dos Ca’ pagarão meu resgate, o que o senhor pedir...

— Silêncio — falou Niente na mesma língua. — Agora é hora de rezar para o seu deus, se quiser.

— O que ele disse? — perguntou Zolin para Niente, que respondeu. O tecuhtli soltou uma gargalhada alta e falou — É assim que os orientais brincam de guerra? Eles compram e vendem seus prisioneiros? Será que os deuses dos orientais são tão fracos assim? Não me admira que eles fujam diante de nós. — Zolin fez um gesto de desdém para o homem. — Eles mal valem o sacrifício. Sakal e Axat ficarão mal alimentados com eles.

— O que ele está dizendo? — perguntou ca’Sibelli, que ergueu a cabeça e fez força contra as cordas que o prendiam. — Diga a ele que eu sei onde fica o tesouro. Há muito ouro.

Niente tirou a garra de águia da bolsa. Ca’Sibelli ficou calado ao olhar para ela. O comandante lambeu os lábios rachados e ensanguentados. — O que... o que é isto?

— É a sua morte — disse Niente. — Sakal e Axat exigem sua presença como líder.

— Não! — berrou o homem. A boca espumava saliva. — Vocês não podem fazer isto. Eu sou seu prisioneiro, seu refém. Peça por resgate...

Niente chegou perto do homem, que se contorcia. Ele sentiu o terror do oriental e falou com a maior delicadeza possível. — Isso vai acabar com a matança aqui na sua cidade. Sua morte paga pela morte de todos os seus soldados que capturamos, e eles serão poupados. Se você for bravo, comandante, se mostrar a Axat e Sakal que merece, será levado a Eles e viverá eternamente Neles. Eternamente. É uma dádiva o que oferecemos para você aqui. Uma dádiva.

O homem ficou boquiaberto, sem conseguir acreditar, mas o cântico de sacrifício tinha começado, baixo e sonoro, e ecoava na câmara. Os guerreiros e nahualli se agitaram com a prece. Ca’Sibelli virou a cabeça e olhou fixamente para eles, nervoso. O tecuhtli Zolin acenou com a cabeça para Niente, que tirou a garra de águia do cinto. Ca’Sibelli arregalou os olhos quando Niente girou o chifre de marfim até fazer um clique ao ficar no lugar.

Niente ficou ao lado do comandante e disse — Você deveria estar rezando. — A cabeça de ca’Sibelli balançava violentamente de um lado para o outro, como se pudesse negar o momento. O nahual pressionou a ponta do tubo curvo no estômago do homem enquanto ca’Sibelli se debatia freneticamente nas amarras. Niente suspirou; esta não seria uma boa morte. — Axat, Sakal, nós entregamos este inimigo aos Senhores — falou ele na própria língua. — Aceitem esta oferta como um sinal da Sua vitória.

Niente apertou o gatilho. Houve um clique, uma fagulha e depois uma explosão de carne e sangue.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI NÃO FICOU SURPRESO que tivessem retirado sua espada. Na verdade, ele perguntava-se se de alguma maneira sobreviveria a essa reunião.

A sala era pequena e excessivamente quente, decorada em típico estilo firenzciano, com tapeçarias escuras e pinturas simples com temas marciais, todas em homenagem a hïrzgai há muito tempo falecidos. O novo hïrzg Jan estava sentado em uma cadeira estofada ao lado da lareira, mas era óbvio que Allesandra, sentada à direita do filho, era o personagem principal aqui, em vez de o jovem hïrzg, que olhava fixamente para o nariz de Sergei, com a atenção presa ali. O archigos ca’Cellibrecca agigantava-se como um semideus ursino atrás do espaldar alto da cadeira do hïrzg, com a cara fechada. Os gardai que trouxeram Sergei foram dispensados (após outra revista minuciosa à roupa do regente, para garantir que estivesse desarmado; eles pegaram duas facas e só não notaram uma pequena lâmina fina, enfiada no salto e sola soltos da bota). Ao longe, Sergei ouvia os músicos tocarem uma gavota no salão lá fora, embora ele duvidasse que muitas pessoas na festa ainda dançassem. A maioria estaria conversando e fofocando, imaginado o que o regente de Nessântico fazia aqui em Brezno.

Ele tinha certeza de que os presentes na sala se perguntavam a mesma coisa.

— Hïrzg Jan — falou Sergei ao se curvar diante do jovem que tanto parecia com sua matarh. — Eu lhe agradeço por acolher um pobre refugiado e ofereço meus serviços como gratidão.

— Seus serviços, regente ca’Rudka? — Foi Allesandra quem falou. — O que aconteceu em Nessântico, regente, que agora você oferece serviços para aqueles com quem lutou como inimigo?

Sergei não via Allesandra há quase 16 anos; ela deixou o confinamento em Nessântico quando era pouco mais velha que o filho agora. Allesandra virou uma mulher adulta nesse meio tempo. Sergei ainda conseguia enxergar a jovem entusiasmada no rosto, mas havia uma nova austeridade ali, e rugas adquiridas por experiências que ele não tinha como saber. Não presuma que ela ainda é a mesma pessoa que você conheceu...

— Traições e maus bocados — respondeu Sergei, que resumiu os eventos dos últimos meses, incluindo a própria fuga da Bastida há dias. — Eu duvido que o kraljiki sobreviva por muito tempo — finalizou. — Suspeito que Sigourney ca’Ludovici será a kraljica dentro de um ano, talvez dois. — Ele olhou intensamente para Allesandra, que havia desviado o olhar contemplativo em meio à história. — Ela não tem mais direito ao Trono do Sol que algumas pessoas aqui — falou Sergei. Allesandra acenou levemente com a cabeça; Sergei achou que Jan olhou estranhamente para a matarh diante do gesto.

— Onde estão esses numetodos que o senhor diz que lhe ajudaram a escapar? — rosnou ca’Cellibrecca. — Também trouxe os hereges aqui?

Sergei deu uma olhadela lânguida para o archigos. — Eles recusaram-se a me seguir, dada a recepção que esperavam receber, archigos. A atitude de Brezno para com os numetodos foi... bem demonstrada. — Ele deu um sorriso gentil, e ca’Cellibrecca contorceu a boca em uma expressão de desdém.

— Assim como Nessântico, e nós vimos o que a cidade ganhou com isso — respondeu o archigos. — Ter sido resgatado da Bastida pelos numetodos, regente, indicaria que suas próprias opiniões são hereges também. O senhor se tornou um numetodo?

— Minha crença em Cénzi e nos ensinamentos do Toustour permanece tão firme como sempre, archigos. — Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. — Eu descobri que pode-se discordar até mesmo dos amigos e ainda assim permanecer amigo. Eu tive muitas discussões interessantes com o embaixador ca’Vliomani ao longo dos anos, muitas delas acaloradas, mas nenhum de nós dois conseguiu mudar significativamente as opiniões um do outro. Nem acho que isso seja necessariamente uma coisa ruim. O embaixador ca’Vliomani era meu amigo e agiu para me ajudar, embora nossas opiniões sobre religião sejam completamente discordantes. Minha alma não tem nada a temer. — Ele fez uma pausa e voltou a olhar para Allesandra. — Amigos e aliados podem ser encontrados onde menos se espera. Eu estaria errado, a’hïrzg ca’Vörl, em dizer que a senhora passou a considerar a archigos Ana uma amiga, embora ela tenha lhe tirado de seu vatarh?

Ca’Cellibrecca chiou alto ao ouvir isso, e o hïrzg Jan ergueu as sobrancelhas, mas Allesandra deu um leve sorriso. — Ah, regente, você sempre duelou tão bem com palavras quanto com sua espada.

Sergei fez uma nova mesura para ela.

— Sim — continuou Allesandra —, eu passei a considerar a archigos Ana, se não uma amiga, então como alguém em quem podia confiar diante do destino incerto que meu vatarh me relegou. Eu fiquei genuinamente horrorizada ao saber que ela foi assassinada, nem acreditei quando ouvi quem foi o responsável, por conhecer a archigos Ana e ca’Vliomani. Sofri e rezei por ela desde então. E, sim, entendo o que você está querendo dizer por trás da pergunta. Tenho certeza de que o hïrzg Jan ficará satisfeito em aceitar seus serviços e falar mais com você a respeito do que pode fazer pela Coalizão Firenzciana.

O garoto ajeitou-se subitamente na cadeira ao ouvir a menção do próprio nome e deu uma olhadela para a matarh. — Sim — falou Jan para Sergei. — Eu... nós ficaremos satisfeitos. — A voz era tão duvidosa quanto o olhar que ele lançou para Allesandra. Então as feições de Jan relaxaram, e ele soou mais adulto. — Firenzcia pode lhe oferecer asilo, regente ca’Rudka, e tenho certeza de que poderemos encontrar uma utilidade para seu conhecimento e suas habilidades.

— Obrigado, hïrzg Jan — respondeu Sergei, que ficou em um joelho só. — Falou bem. Eu ofereço livremente ao senhor e à Firenzcia a lealdade que Nessântico desprezou e darei qualquer conselho e ajuda que puder.

O jovem pareceu excessivamente contente com a declaração, como se, de certo modo, a tivesse arrancado a contragosto do próprio Sergei. Ele era jovem e inexperiente, Sergei percebeu, mas parecia suficientemente inteligente, e tinha uma excelente professora na matarh. O hïrzg aprenderia rápido. O archigos estava carrancudo, obviamente descontente com a decisão. Haveria pouca solidariedade com Sergei aqui — ele teria que ficar de olho em ca’Cellibrecca e encontrar qualquer vantagem que pudesse usar contra o homem.

Quanto a Allesandra... A mulher o encarava com cautela. Pensativa. Havia ambição ali e uma inteligência que faltou ao vatarh de Allesandra. Sergei podia facilmente imaginá-la no Trono do Sol. Podia vê-la tomar decisões que protegeriam os Domínios e cicatrizariam as feridas que Justi e agora seu filho abriram na cidade e no império aos quais Sergei servia.

Será que ela seria a kraljica que rivalizaria com Marguerite?

Ele descobriria. E agiria.

 

Karl ca’Vliomani

ELE RASPOU a barba. Escureceu o cabelo com essência de granito e deixou as feições ficarem obscuras com a sujeira da estrada. Doou as bashtas elegantes na mochila em troca das roupas rasgadas e cheias de pulgas de um mendigo. Karl cheirava mal, e só o fedor já era suficiente para as pessoas evitarem olhar para ele.

Karl perguntava-se onde Sergei estaria, se conseguira chegar a Firenzcia e como teria sido recebido lá.

A intenção original de Karl era voltar à Ilha de Paeti. Ele descansou o suficiente para usar o Scáth Cumhacht a fim de curar a pior parte do ferimento de Varina. Depois, Karl e ela acompanharam Sergei até as florestas ao norte da cidade, mas lá eles se separaram; Sergei tomou a direção leste para Azay a’Reaudi, enquanto o embaixador e Varina seguiram o limite da floresta para o oeste. Os dois cruzaram a Avi a’Nortegate depois de Tousia, dali rumaram para o sudeste na direção da Avi a’Nostrosei, na esperança de seguir a estrada até Sforzia e de lá conseguir passagem em um navio para Paeti ou para um dos países ao norte. Eles chegaram à Avi em Ville Paisli quatro dias depois, a apenas um dia de jornada a pé das muralhas de Nessântico.

Karl pretendia que eles passassem um dia, não mais do que isso. Ele e Varina pegaram um quarto na única estalagem do vilarejo e deram nomes falsos, como se fossem um casal a caminho de Varolli na esperança de encontrar emprego. A mulher mais velha que mostrou o quarto acenou ao pegar o dinheiro e enfiou as moedas em um bolso embaixo do avental que ela usava sobre uma tashta manchada, que parecia duas décadas fora de moda. O rosto e o corpo davam sinais de anos dando à luz e trabalhando duro. — Eu sou Alisa Morel — falou ela. Karl ouviu Varina respirar fundo ao ouvir o nome. — Meu marido e eu somos donos da estalagem e da taverna, e ele é o ferreiro do vilarejo. Se quiserem um banho... — o que foi dito com um olhar significativo e um nariz torcido que sugeriam que a ideia era boa — ... há um pequeno cômodo para isso lá embaixo, e eu posso mandar meus filhos encherem duas banheiras com água quente. O jantar sai uma virada da ampulheta depois do pôr do sol.

A mulher foi embora, Varina ergueu as sobrancelhas para Karl e disse — Morel... Nico disse que tinha fugido da tantzia e do onczio. Será que ela...?

— Morel é um nome bem comum em Nessântico. — Ele deu de ombros. — Mas obviamente há algumas perguntas que podemos fazer. Se ainda estivéssemos com o menino...

Karl já estava certo de que havia conexão ali, embora não soubesse dizer por quê. Ele percebeu pela expressão de Varina que ela pensava a mesma coisa. Se ele realmente acreditasse em algum deus, teria achado que os dois foram conduzidos a esse lugar pela providência divina.

Naquela noite, após aceitarem a oferta de banho feita pela mulher, para tirar o grosso da fedentina da estrada, ele e Varina jantaram no salão comunal da taverna, tanto para evitar suspeitas como para conseguir ouvir qualquer fofoca que tivesse chegado ao vilarejo a respeito da fuga do regente da Bastida. O salão estava — como ele suspeitava pela aparência estressada de Alisa, pelas crianças que trabalhavam como serventes, e pelo marido, Bayard, atrás do pequeno bar perto da porta da cozinha — mais cheio do que o usual, e a conversa era predominantemente sobre os eventos em Nessântico, cujas notícias pareciam ter chegado ao vilarejo há apenas alguns dias.

— Eu mesmo falei com o offizier do destacamento de busca — dizia Bayard Morel em voz alta para uma plateia de meia dúzia de aldeões. — O cavalo tinha perdido a ferradura, então ele me pediu para ferrar o bicho. O offizier disse que o kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, despachou cavaleiros para cada estrada da cidade a fim de pegar o traidor e os hereges numetodos que estão com ele. O destacamento vasculharia a estrada até Varolli, se necessário. O offizier me disse que os numetodos mataram três dezenas de homens da Garde Kralji na Bastida com sua magia terrível e blasfema, mataram sem pensar, embora alguns dos gardai ainda estivessem em suas camas. Os numetodos deixaram em ruínas a torre onde ca’Rudka estava, nada além de pedras enormes espalhadas por todo o chão. Eles cuspiram fogo ao fugir a cavalo, um fogo azul horrível, disse o offizier, que matou gente pela Avi quando os numetodos passaram, e depois, com um grande estouro... — nesse momento Bayard subitamente abriu bem as mãos e derrubou a caneca mais próxima de cerveja, o que fez a plateia recuar aterrorizada, de olhos arregalados — ... eles desapareceram em uma nuvem negra e fedorenta. Assim, do nada. Ao todo, tem mais de cem mortos na cidade. Eu estou dizendo, a morte é um destino bom demais para o regente. Eles deviam arrastá-lo vivo pelas ruas e deixar as pedras da Avi arrancarem a carne dos ossos e aquele nariz de prata dele enquanto berra.

As pessoas no salão murmuraram ao concordar com a opinião. Varina inclinou-se na direção de Karl e fez uma careta quando o movimento repuxou a ferida no braço, que cicatrizava. — Na semana que vem, ele dirá que foram mil mortos. Pelo menos, parece que os gardai já passaram por aqui e foram embora. Estamos atrás dele. Isso é bom, certo? — Ela vasculhou o rosto de Karl com olhos ansiosos, e ele concordou com um grunhido, embora não tivesse tanta certeza assim.

Enquanto observava o salão, Karl notou outra mulher que ajudava a servir os clientes: ela tinha uma aparência azeda e cansada e nunca sorria. A mulher parecia muitos anos mais jovem que Alisa, mas havia uma semelhança familiar entre as duas: nos olhos, no nariz fino, no conjunto dos lábios. Ela parecia ser velha demais para ser filha de Alisa, pois os filhos da estalajadeira ainda eram pequenos. Quando um deles, um menino mal-humorado à beira da puberdade, colocou um prato de pão fatiado na mesa, Karl apontou para ela. — Aquela mulher ali... quem é?

O garoto fungou e fez uma cara feia. — Aquela é a minha tantzia Serafina. Ela mora com a gente agora.

— Ela parece infeliz.

— Ela está assim há um tempo, desde que Nico fugiu.

Karl olhou para Varina. — Quem é Nico?

— O filho dela — falou o menino, que fechou mais a cara. — Um bastardo. Eu não gostava dele, de qualquer forma. Sempre falava besteira sobre os ocidentais e feitiços e tentava fingir que podia fazer magia como se fosse um téni. Todo mundo teve que perder três dias procurando por Nico depois que ele fugiu, e meu vatarh cavalgou até Certendi, mas ninguém jamais o encontrou. Acho que provavelmente está morto. — Ele parecia excessivamente satisfeito com essa conclusão, uma satisfação que torceu o canto da boca.

— Ah. — Karl concordou com a cabeça. — Você provavelmente está certo. O mundo lá fora não é fácil. Eu só estava me perguntando por que ela parecia tão triste. — Varina desviou o olhar nesse momento, encarava Serafina e mordia os nós dos dedos. O garoto arrastou os pés no assoalho de madeira rústica, fungou o nariz e passou o braço para limpá-lo, depois voltou para a cozinha.

— Pelos deuses, é ela. — Varina balançou a cabeça quase imperceptivelmente. — O que faremos, Karl? Aquela é a matarh de Nico.

Karl pegou um pedaço de pão do prato que o menino trouxe. Ele arrancou um naco do pão preto, enfiou na boca e mastigou, pensativo. — Se pudéssemos entregar Nico para ela — falou Karl depois de engolir —, será que ela nos entregaria Talis de volta?

 

Jan ca’Vörl

JAN GESTICULOU PARA OS GARDAI do lado de fora da porta e falou — Deixem-me entrar. — Os dois homens entreolharam-se uma vez, rapidamente, antes que um deles abrisse a porta. Assim que Jan entrou, um garda começou a segui-lo. O hïrzg meneou a cabeça para o homem e disse — Sozinho. — O garda hesitou antes de concordar e prestar continência. A porta foi fechada atrás de Jan.

— O senhor é corajoso por entrar em um aposento sozinho com seu inimigo. E aquele garda reportará ao comandante co’Göttering que o senhor veio me visitar. Co’Göttering sem dúvida informará sua matarh.

A luz de velas refletiu no nariz de prata quando Sergei se virou para encarar Jan. O homem foi instalado em um dos aposentos interiores do Palácio de Brezno, a comida foi posta diante dele em uma mesa coberta de damasco, a lareira estalava para afastar o frio da noite, e havia uma cama macia e confortável com travesseiros de plumas e cobertores. Ele usava uma nova bashta limpa e tinha evidentemente tomado banho, e seu cabelo grisalho estava empastado com óleo.

Sergei estava em uma prisão feita de seda.

— Eu não me importo que co’Göttering saiba, nem minha matarh. Você é tão perigoso assim, regente ca’Rudka? — perguntou Jan do outro lado da mesa.

Em resposta, Sergei meteu a mão no salto da bota: devagar, para que Jan pudesse vê-lo. Ele retirou uma lâmina chata, fina e com um cabo curto entre a sola e o couro, colocou a arma sobre a mesa e empurrou na direção de Jan. — Sempre, hïrzg Jan — respondeu o homem com um leve sorriso. — Seu vavatarh teria lhe dito isso. Sua matarh também. Se eu quisesse o senhor morto, o senhor já estaria.

Jan olhou fixamente para a lâmina. Ele viu os gardai revistarem Sergei à procura de armas, ouviu a declaração de que o regente estava desarmado. — Acho que precisarei falar com o comandante co’Göttering sobre o treinamento de seus homens. — O hïrzg esticou a mão para tocar o cabo com o dedo, mas não pegou a faca. — O que mais eles deixaram passar?

Sergei apenas sorriu. Jan colocou a mão na faca e empurrou-a novamente sobre a mesa para Sergei, que embainhou a lâmina na bota novamente. — Então, hïrzg Jan, a que devo o prazer?

O próprio Jan não tinha certeza. Ele ficou incomodado com a reunião inicial com Sergei, por ter ouvido a matarh e o archigos ca’Cellibrecca, por saber que eles dominaram a ocasião. Na verdade, Jan sentia-se sobrepujado pelo caráter repentino dos acontecimentos: o assassinato de Fynn, a fuga de Elissa, as notícias dos Domínios, a chegada do regente. Seu vatarh deixara Brezno correndo, furioso; sua matarh e o archigos eram íntimos, de maneira suspeita. Era como se ele estivesse sendo levado sem controle por uma enchente que não tinha visto, nem previsto. Jan sentia-se perdido e cheio de dúvidas, ficava remoendo essa situação por longas viradas da ampulheta, incapaz de se soltar na alegria agora forçada das festas, nas distrações das jovens que flertavam com ele ou nas especulações urgentes que irrompiam a sua volta.

Jan queria falar com alguém. E não queria que essa pessoa fosse sua matarh.

Jan não se sentia como um hïrzg. Sentia-se como um impostor. — Eu quero saber o que eu ganho ao lhe dar asilo, regente.

— Está mudando de ideia? — Sergei empurrou a cadeira da mesa. — Ou pensa que outra pessoa tomou esta decisão pelo senhor?

Jan devia ter ficado furioso com isso, mas, ao contrário, apenas ergueu um ombro e deixou que caísse novamente. — Ah, eu entendo — falou Sergei. — Assim como o pobre Audric, creio eu. Deixe-me lhe dizer uma coisa, hïrzg Jan: eu conheci vários kralji na minha vida, e apesar do que o senhor possa pensar sobre eles, a verdade é que nenhum jamais tomou uma decisão fácil. Tudo o que se faz como kralji, ou hïrzg, afeta milhares de pessoas, algumas vezes de uma maneira boa, em outras, de maneira adversa. Fique feliz por estar cercado por bons conselheiros e dê ouvidos a eles. Isso pode lhe poupar de tomar decisões realmente horrorosas. — Ele então deu um sorriso cruel. — E se uma delas der bons resultados, apesar de suas boas intenções, bem, o senhor sempre pode culpar o péssimo conselho.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

O sorriso de Sergei se ampliou. — Não respondi, não é mesmo? — Ele colocou as mãos sobre a mesa, com as palmas voltadas para cima. — Tudo o que tenho a lhe oferecer sou eu, hïrzg. Meu conhecimento, minha experiência, meu ponto de vista. Por acaso, eu acho que esse é um recurso potencialmente valioso para o senhor, mas tenho que admitir que sou meio suspeito para falar. — Ele franziu a pele em volta do nariz falso, mas o nariz em si não se mexeu, o que pareceu perturbador aos olhos de Jan. O gesto deixou o hïrzg incomodado, mas ele achou difícil desviar o olhar do rosto de Sergei.

— Eu tenho o conhecimento, a experiência e o ponto de vista da minha matarh; também tenho os do archigos. E tenho os dos comandantes e dos outros chevarittai da Coalizão.

— Tem sim — respondeu Sergei. — Sua matarh foi refém nos Domínios por grande parte da juventude. O archigos é um oponente jurado do ramo da fé concénziana de Nessântico. Os comandantes e chevarittai também são oponentes dos Domínios. Nenhum deles conhece os Domínios, e todos têm razões para odiá-los. O ódio pode cegar às vezes. Quanto a mim, bem, a segurança dos Domínios tem sido a minha vida.

— O que é outra razão para desconfiar de você.

— Então deixe que esse seja meu primeiro conselho para o senhor, hïrzg Jan. O senhor deve desconfiar de mim. Um hïrzg tem que duvidar de todos os conselhos que recebe, porque os conselhos de todo mundo são pintados com as cores de seus próprios interesses, os meus não menos do que os conselhos de qualquer pessoa. Mas... eu sou um velho espadachim, hïrzg, e eu diria que é mais fácil derrotar um inimigo cujos movimentos são conhecidos e previsíveis do que um inimigo completamente desconhecido. — Sergei recostou-se na cadeira. — Eu conheço os movimentos dos Domínios. Conheço todos. O senhor precisa de mim.

— Você parece muito confiante.

— Eu conheço meu inimigo, hïrzg. Se não conhecesse, por acaso eu teria lhe dado a minha faca? — Ele abaixou a mão e deu um tapinha na bota. — Todo mundo corre riscos, hïrzg. O truque é ter confiança no resultado.

— E se seu tivesse ficado com a faca? — perguntou Jan.

Sergei deu um risinho. — Então eu teria que fingir que isso era o que eu esperava. O senhor ainda gosta da sua decisão, hïrzg?

Jan sorriu com os lábios fechados e disse — Era o que eu esperava, regente. E isso vai ter que ser suficiente, não é?

 

Audric ca’Dakwi

A O’TÉNI AJOELHADA ao lado da cama de Audric abriu os olhos, com o rosto abatido e cansado, e deu uma olhadela para o archigos Kenne. — Eu terminei minhas... — Ela hesitou, e Audric viu o olhar da o’téni desviar-se do archigos para a conselheira Sigourney ca’Ludovici, que estava perto da lareira e olhava para o retrato da kraljica Marguerite, apoiado ao lado do fogo no cavalete portátil. Acima da lareira, Audric viu o retângulo desbotado onde o quadro esteve pendurado por tanto tempo. Nos recônditos escuros do quarto, Marlon e Seaton estavam à espreita, à espera para correr à frente caso fosse necessário.

— ... preces — concluiu a o’téni.

O archigos dissera para Audric que esta téni viera do templo de Chiari e que era alguém “cujas preces tinham uma afinidade especial com os doentes”. Isso talvez pudesse ser verdade; ele certamente se sentia um pouco melhor, os pulmões doíam menos ao se mexer. A tosse insistente cedeu, embora Audric ainda sentisse um pouco de aperto no peito; talvez ele realmente tivesse sido abençoado por Cénzi na noite de hoje. A melhora não era tão marcante quanto nas ocasiões em que a archigos Ana fizera “preces” pelo kraljiki, mas bastaria. Ele torcia para que durasse tanto quanto a ajuda da archigos Ana durava.

— Obrigado, o’téni — falou o archigos enquanto fazia o sinal de Cénzi para a mulher. — Agradecemos seus esforços. Você pode retornar ao templo agora. Diga ao u’téni co’Magnaoi que estarei lá em breve, por gentileza.

Ela concordou com a cabeça e ficou em pé cambaleando, como se tivesse ficado ajoelhada por muito tempo e as pernas tivessem adormecido. Enquanto Audric observava, a o’téni levou as mãos à testa, depois às pernas e saiu arrastando os pés com cuidado até a porta do quarto. Marlon correu para abri-la para a mulher. — Estranho — comentou Sigourney sem desviar o olhar do quadro —, eu nunca fiquei tão cansada depois de uma simples prece.

Audric viu Kenne contrair o rosto encarquilhado à luz das velas diante da acusação nada sutil. O archigos ignorou o comentário e perguntou — Está se sentindo melhor, kraljiki?

A mamatarh de Audric encarou o neto com preocupação sobre o ombro de ca’Ludovici. — Não há nada de errado comigo — falou o kraljiki para o archigos. Ele viu sua mamatarh concordar com um aceno no limite de seu campo de visão. Não deixe que eles saibam como você realmente se sente, não quando podem considerar uma fraqueza. — Eu sei — disse Audric para Marguerite, depois se voltou novamente para o archigos. — Estou me sentindo muito bem. — Kenne pareceu aliviado de uma maneira quase cômica. — Agora, você disse que tinha um favor para pedir, archigos.

— Eu tenho, kraljiki. Eu tive um encontro estranho na manhã de hoje, no templo. Havia um homem, um o’offizier da Garde Civile: Enéas co’Kinnear. Ele veio à Bênção de Cénzi e tinha uma faixa dos Hellins sobre o uniforme. Um jovem bonito, com uma expressão séria. Ele me disse que havia acabado de voltar da guerra.

— Sim, sim — falou Audric com impaciência e fez um gesto para calar o homem. O archigos seria capaz de divagar assim por uma virada da ampulheta e contar cada detalhe interminável do encontro. Ele ouviu ca’Ludovici rir ao fundo. — Onde você quer chegar, archigos?

Kenne não conseguiu esconder completamente sua irritação, mas forçou um sorriso e abaixou a cabeça para Audric. — O o’offizier co’Kinnear disse que tinha uma informação vital para o senhor, a respeito dos Hellins, kraljiki. Falou que o senhor não teria ouvido essas notícias porque os navios expressos não teriam chegado. Eu verifiquei, e é verdade. Também mandei minha equipe investigar este co’Kinnear, e eles descobriram que o comandante ca’Sibelli — ao dizer isso, o archigos acenou com a cabeça na direção de Sigourney — recomendou que ele fosse nomeado chevaritt, e os relatórios sobre o homem foram unânimes na alta estima que ele goza como uma pessoa de fé e um offizier. Na verdade, eu descobri que antigamente co’Kinnear era considerado como candidato a acólito e mostrava sinais do Dom de...

— Certo. — Audric interrompeu novamente e suspirou. — Tenho certeza de que esse co’Kinnear é um bom homem. — Ele fechou os olhos. Era tão cansativo ter que ouvir as besteiras de gente inferior e fingir que prestava atenção ou se importava. É a maldição de todos os kralji, Audric ouviu a mamatarh e deu um sorriso compreensivo para ela. — É verdade — falou o kraljiki para Marguerite. — É bem verdade. — Agora ele queria jantar e talvez jogar uma rodada de cartas com algumas jovens dos ca’ e co’, e, quem sabe, flertar, pois se sentia melhor.

Você tem que tomar cuidado com isso, Audric, ele ouviu a mamatarh reclamar. Casamento é uma arma que só pode ser usada uma ou duas vezes; você deve escolher o momento certo e a arma certa.

— Não me canse — disse Audric para a mamatarh.

Sigourney manifestou-se. — Se me dá licença, kraljiki? — Audric gesticulou para ela. A mulher era uma chata; não tinha humor algum, tudo o que a interessava eram assuntos de estado. Sigourney era seca como torrada velha. — Archigos, se esse co’Kinnear tem uma informação tão vital, por que não contou aos offiziers superiores e passou pela cadeia de comando?

— Isto eu não sei, conselheira — respondeu o archigos. — Mas havia alguma coisa... Eu pensei... Quando co’Kinnear me pediu para falar com o senhor, kraljiki Audric, eu pensei ter ouvido a Voz de Cénzi me dizer que eu deveria escutar. Eu podia ter jurado... — O velho balançou a cabeça, e Audric suspirou com impaciência novamente. — Que mal faria ouvir o sujeito por alguns instantes? Daqui a duas semanas será o segundo cénzidi do mês; se ele puder ser colocado na lista de suplicantes para a sua audiência de sempre, kraljiki...

Presa na pintura, Marguerite pareceu dar de ombros à luz de velas. Audric jogou as pernas para fora da cama. Seaton correu para ajudá-lo a ficar de pé, mas ele dispensou o criado com um gesto e falou — Certo. Combine com Marlon, archigos. Verei este modelo de perfeição da Garde Civile no segundo cénzidi, mas só se nenhum navio expresso chegar nesse meio tempo com notícias mais atuais dos Hellins. Essa é uma solução satisfatória?

O archigos fez uma mesura e o sinal de Cénzi para Audric, depois para a conselheira. Ca’Ludovici pareceu abafar um riso. — Agora — disse o kraljiki —, eu estou com fome, e há compromissos aos quais pretendo comparecer na noite de hoje, então, se não houver mais assuntos...

 

A Pedra Branca

O AR ESTAVA TOMADO por sussurros e imprecações, e eles não vinham apenas das vozes na mente da Pedra Branca. Nessântico estava abalada pelos acontecimentos da última semana, com a fuga do regente e a traição dos numetodos. Ela viu os esquadrões passarem com raiva e desconfiança pelas alamedas e becos do Velho Distrito; ela tinha sido questionada duas vezes, arrastada e interrogada como se pensassem que ela pudesse ser um dos numetodos. A Pedra Branca teve o bom senso de demonstrar a dose certa de medo; o suficiente para acalmá-los, mas não o bastante para alimentar as suspeitas. Outras pessoas não tiveram a mesma sorte; a Pedra Branca viu dezenas sendo levadas para um interrogatório detalhado na escuridão cruel da Bastida, e não sentiu inveja delas.

Teria sido tão mais fácil para eles se tivessem contratado a Pedra Branca. A vida do regente; a vida do embaixador; ela teria apagado os dois como uma vela extinta à luz do dia — vidas que não eram mais necessárias ou desejadas. Ela poderia ter colocado suas almas na pedra que levava entre os seios.

Mais loucura para você sofrer... As vozes riram diante da ideia. Você vai se perder completamente entre nós...

Em breve...

Em breve...

O refrão era uma batida forte de tambor em sua cabeça. A voz furiosa de Fynn era a mais alta de todas.

Em breve...

Em breve...

— Talvez não — disse ela para as vozes. — Eu sou mais forte do que vocês pensam. Afinal, eu matei todos vocês. — ela disse as palavras em voz alta, e as pessoas próximas nas ruas olharam para ela com pena, irritação ou medo. A Pedra Branca não se importava com esse tipo de reação.

O sol da manhã se levantou sobre a estátua do kraljiki Selida II no chafariz do centro do Velho Distrito; o globo ardia como se a ponta da espada erguida do kraljiki pegasse fogo. À direita da praça estava a enorme estátua de Henri VI, que também lançava uma sombra comprida. A náusea matinal que a atormentava todo dia sempre que acordava tinha ido embora, e o cheiro de croissants amanteigados da padaria a algumas portas de distância provocou sua fome novamente. Ela esfregou a barriga; podia sentir o inchaço no estômago debaixo da tashta; em breve, não conseguiria esconder a gravidez de maneira alguma.

Em breve...

— Calem-se! — berrou a Pedra Branca, e a voz fez os pombos saírem voando do chão da praça, para depois pousarem novamente a alguns passos de distância. Alguém riu ali perto, presente em um grupo de rapazes que apontavam para ela, e a Pedra Branca respondeu com um gesto obsceno que só fez aumentar a gargalhada.

Em breve...

Vou destruí-la como você me destruiu. Este era Fynn. Em breve...

Com a cara fechada, ela foi empurrando as pessoas até chegar à padaria e jogou uma se’folia de bronze no balcão. — Croissants — disse.

Ela já tinha comido dois croissants antes de chegar à casa que ocupava, a alguns quarteirões do centro. O pão doce e molhado aplacou a dor na barriga e baniu as vozes. Ela estava pegando a chave do quarto quando ouviu barulho: algo sendo arrastado, uma respiração. Ela parou, pousou o saco com os croissants que tinham sobrado e levou a mão ao cabo da faca enfiada na faixa da tashta. O som vinha de um pequeno espaço entre sua casa e o prédio ao lado. Ela espiou as sombras púrpuras e viu uma silhueta que tremia, encolhida contra a lateral da casa.

— Eu estou vendo você aí — falou ela. — Saia.

Ela esperava que a pessoa corresse, que fugisse para o outro lado, na direção da viela atrás da casa. Mas a silhueta apenas se mexeu e ficou em pé devagar, e sob a luz fraca do céu que clareava, ela notou que era uma criança. Ele saiu lentamente, arrastou os pés e manteve as costas voltadas para a parede da estrutura, os olhos arregalados espiaram a Pedra Branca e desviaram o olhar novamente. O rosto estava sujo de lama, o cabelo totalmente desgrenhado.

— O que foi? Está com medo de mim?

— Você é a mulher maluca — respondeu o menino, e as vozes vibraram de alegria, a de Fynn a mais alta de todas. Viu só? Eles já sabem. Em breve...

— O que você está fazendo aqui? — perguntou ela.

O menino deu de ombros. — Esperando.

— Esperando o quê?

Ele repetiu o gesto. — Nada.

— Só um idiota espera por nada, menino. O que você está escondendo? — A Pedra Branca ergueu o dedo e deteve o menino quando ele ia dar de ombros novamente. — Não minta para mim, menino. Eu sou a mulher maluca, lembra-se? Eu posso ouvir o que você está pensando. — Ela bateu com o dedo na testa. As vozes vibraram novamente. Mentirosa! Charlatã! — Então é melhor que me conte a verdade: de quem você está se escondendo?

O menino olhou para ela com desconfiança e inclinou a cabeça de lado, como se tivesse escutado as vozes. — Os soldados. Aqueles de azul e dourado.

— A Garde Kralji? — Ela cuspiu no chão entre os dois. — Eu os conheço. Ah, eu os conheço bem. Mas por que você está se escondendo deles? Os soldados não estão procurando por você, menino, a não ser que seja um numetodo. — Ele torceu a cara de um jeito esquisito ao ouvir isso, e ela olhou de soslaio para o menino enquanto esfregava o estômago. Havia uma agitação estranha ali, e se perguntou se ficaria enjoada novamente ou se sentia a criança pela primeira vez. — Você é um numetodo? É por isso?

— Não — disse ele, rapidamente, mas a Pedra Branca já tinha visto muitas mentiras e falsidades na vida e sabia que o menino dizia menos do que podia. Ela observou com mais atenção, viu a roupa suja e o cabelo emaranhado. Notou os ossos das bochechas.

— Quando foi a última vez que você comeu?

O menino deu de ombros novamente.

— Você mora aqui perto?

Ele fez uma careta. — Eu... eu morava. Logo ali. — Apontou para a viela. — Mas... eu não sei... — Ele parou, e a Pedra Branca viu o lábio do menino tremer. Ele fungou e passou a manga rapidamente pelos olhos, fechou bem a boca. A resistência, a recusa em deixar que ela visse como ele estava assustado e amedrontado tomaram a decisão pela Pedra Branca. Ela sorriu para o menino ao se agachar em sua frente. Deveria ter sido um movimento fácil, mas a cintura mais larga fez com que ela sentisse como se seu corpo fosse de outra pessoa.

— Você tem um nome? — perguntou ela.

— Nico. Meu nome é Nico.

— Então por que você não vem comigo, Nico? Eu tenho alguns croissants e um pouco de manteiga. Talvez eu consiga achar uma fatia ou duas de carne. Não parece bom? — A Pedra Branca ofereceu a mão para o menino, que aceitou com hesitação, e ficou de pé. As vozes riram dela, debocharam. A Pedra Branca ficou mole como lama...

Ela as ignorou e andou com Nico até sua casa.


CONTINUA

MOVIMENTOS

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Nico Morel

Jan ca’Vörl

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Karl ca’Vliomani

Varina ci’Pallo

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— A PEDRA BRANCA...

— Deve ter sido o kraljiki que contratou o assassino...

— Os numetodos o contrataram...

— Os tennshas o contrataram...

— Eu ouvi dizer que a própria a’hïrzg foi marcada para morrer, e o filho dela...

Allesandra ouviu os rumores. Era impossível escapar, eles sufocavam Firenzcia como a bruma que surgia todas as noites das florestas em volta do palácio da Encosta do Cervo, para onde a família fora levada depois do assassinato, sob ordens do starkkapitän Armen ca’Damont e do comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg. — O comandante e eu podemos protegê-los melhor lá, a’hïrzg — disse ca’Damont. Ela concordou com a cabeça, com a face impassível.

Fingimento... Allesandra tinha que manter a expressão adequada. Tinha que fazer com que os ca’ e co’ acreditassem que ela sofria. Tinha que fazê-los acreditar no que a a’hïrzg pediria para eles.

Em breve. Mesmo que houvesse pouca esperança agora.

A segurança era visível por toda parte do palácio, com gardai aparentemente em todos os cantos. Allesandra estava na sacada mais alta neste momento e olhava para os topos dos abetos lá embaixo, nas encostas íngremes das montanhas, e para os filamentos cinza esbranquiçados da névoa que passavam entre as árvores e que aumentavam conforme o sol se punha. Ela esfregou um seixo claro e chato entre os dedos.

Allesandra ouviu a porta da sacada ser aberta, seguida por um murmúrio de vozes masculinas. Ela virou-se e viu Semini se aproximar como um urso, vestido de verde e com uma expressão soturna. O archigos não disse nada, foi pé ante pé até a a’hïrzg e parou a uma curta distância — havia gardai em ambos os lados dos dois, a vários passos cautelosos de distância. Ele colocou os braços no parapeito da sacada e olhou para a bruma que se enroscava como braços musculosos em volta das árvores, como fantasmas que cuidavam de um jardim e estendiam as mãos para arrancar as ervas daninhas entre as plantas. De vez em quando, um fiapo de névoa chegava ao nível da sacada e, levado pelo ar frio e úmido, passava pelos tornozelos de Allesandra como se tentasse puxá-la para a escuridão cada vez maior.

— Então... — A palavra soou como um vento baixo entre as agulhas dos pinheiros. — Será que a Pedra Branca virá atrás de mim agora? — Ela viu o olhar do archigos se voltar para o seixo em seus dedos.

— Eu não contratei o assassino, Semini — disse Allesandra. O assassino... ela pensou a respeito disso neste momento. Elissa parecia ter desaparecido no mesmo dia em que o hïrzg morreu, o que deixou Jan arrasado com outro golpe emocional forte como um martelo, somado à morte de seu onczio Fynn. Dois dias depois, chegou uma mensagem nervosa de Jablunkov que dizia que Elissa, filha de Elissa e Josef (nome de solteiro ca’Evelii) ca’Karina, morrera há seis anos e que perguntava se a a’hïrzg possivelmente não cometera algum engano.

Allesandra ficou pensativa. Era possível que “Elissa” tivesse fugido apenas porque sabia que a a’hïrzg mandou uma carta para a família ca’Karina. Era possível que não houvesse conexão entre o desaparecimento dela e a morte de Fynn. Ainda assim, ser próxima de Jan significava que Elissa também tinha acesso a Fynn, e segundo a experiência de Allesandra, era perigoso acreditar em coincidência. Ao contrário, era mais seguro ver a faca afiada da conspiração sob o véu da coincidência.

A voz da Pedra Branca... será que podia ser a voz de uma mulher falando grosso?

Semini acenou com a cabeça ao ver o seixo na mão dela. — Isto é...?

Allesandra ergueu o seixo para que ele pudesse vê-lo e falou — Sim, foi isso que a Pedra Branca deixou para trás. O seixo... me faz lembrar de Fynn e me faz lembrar que encontrarei quem contratou a Pedra Branca e que punirei a pessoa.

Outro aceno. Semini olhou novamente para as árvores lá embaixo. — O Conselho dos Ca’ será unânime em nomeá-la como hïrzgin. Parabéns. — O tom de voz não tinha emoção. — Mas você podia ter conseguido isso há semanas, se não tivesse mandado Jan salvar Fynn.

— Fico contente que alguém se lembre disso. Mas... eu não tenho intenção de ser hïrzgin, Semini.

A afirmação fez o archigos encará-la novamente. Uma mão cofiou a barba grisalha enquanto os olhos negros vasculhavam os dela. — Você está falando sério.

— Estou.

— Eu pensei...

— Você pensa demais, Semini. — Ela abrandou a crítica com um sorriso. O garda atrás dela olhava para o outro lado, e o corpo da a’hïrzg bloqueava o homem em sua retaguarda. Allesandra esticou a mão para afagar o braço do archigos. — Eu pretendo renunciar ao título de a’hïrzg. Afinal, muitas pessoas pensarão exatamente como você neste momento. Sempre haveria rumores de que eu mandei matar Fynn para ficar com o trono em Brezno. Se eu renunciar, a fofoca morrerá com minha abdicação. Deixarei que o Conselho dos Ca’ nomeie um novo hïrzg para Firenzcia.

Semini arqueou uma sobrancelha grossa. — Você falou com Pauli?

A menção do nome criou uma barreira gelada entre os dois, ou talvez fosse a bruma. Ela recolheu a mão e falou com rispidez — Essa não é uma decisão que meu marido deva tomar. — Depois sorriu novamente. — Mas será interessante ver a cara dele quando eu estiver diante do Conselho e disser que abdico. E espero que seja uma completa surpresa para ele, Semini. E também espero que Pauli volte correndo com raiva para Magyaria Ocidental no dia seguinte, para reclamar com o gyula Karvella que foi arruinado pela esposa que Karvella e o hïrzg Jan escolheram a dedo para ele.

— Você realmente deixaria a decisão para o Conselho?

— Ah, eu já falei com alguns dos integrantes. Um número suficiente para os meus propósitos, de qualquer maneira. Eu sugeri que, após a devida deliberação, o Conselho possa vir a crer que as recentes ações de meu irmão mostraram quem ele atualmente favorecia como sucessor: alguém que demonstrou amplamente sua lealdade e habilidade. Ora, Jan seria um belo hïrzg quando crescer, você não acha? Um hïrzg que governaria bem e com força por muitos e muitos anos.

Semini riu, baixinho a priori, depois com mais entusiasmo. — Então esta é a sua intenção.

A pedra parecia gelo na mão de Allesandra. — Não inteiramente. Eu penso no futuro, Semini. Talvez quando os Domínios e a Coalizão estiverem unidos novamente e um líder competente esteja sentado no Trono do Sol, e haja um archigos de direito no Templo de Cénzi que também tenha unificado as metades separadas da fé concénziana, então Jan seria o braço direito perfeito do kralji.

Havia um enorme sorriso no rosto de Semini agora. — Allesandra, você me surpreende.

— Eu não deveria surpreendê-lo. Você e eu, Semini, estamos no mesmo lado nessa história. — Allesandra esfregou a pedra entre os dedos e enfiou em um bolso da tashta. Ela mandaria dourá-la e colocaria em uma corrente elegante. Usaria a pedra debaixo da tashta quando falasse com o Conselho, usaria ao lado do globo partido de Cénzi que a archigos Ana lhe dera. Seria um lembrete da culpa, uma lembrança de que agiu precipitadamente e fez pior com o irmão do que o vatarh e ele jamais fizeram com ela. Sinto muito, Fynn. Sinto que nunca nos conhecemos de verdade. Sinto muito...

Ela colocou a mão no parapeito, perto da mão do archigos, e olhou novamente para as brumas. Alguns instantes depois, Allesandra sentiu o calor da mão de Semini cobrir a sua.

Os dois ficaram assim até a escuridão chegar e as primeiras estrelas furarem o azul-escuro do céu.

 

Enéas co’Kinnear

A BOCA DO A’Sele era mais larga neste ponto. A cidade de Fossano ficava na margem sul, os morros ao norte eram minúsculos e tinham uma cerração azul do outro lado, elementos que sumiram quando eles fizeram a curva e entraram no golfo escancarado da baía A’Sele. Dezenas de navios mercantes cortavam as águas marrons cheias de sedimentos para seguir rio acima até Nessântico, ou rio abaixo na direção de Karnmor ou de outros países ao norte e ao sul, ou até mesmo para cruzar o próprio Strettosei. A água da baía A’Sele era colorida pelo solo que o rio A’Sele trazia dos afluentes e serpenteava em seu frescor de água doce, que com o tempo desaparecia nas profundezas azuis das águas salgadas do Nostrosei.

Enéas finalmente estava de volta à Nessântico propriamente dita. De volta aos Domínios. De volta ao continente. O cheiro de água salgada era mais fraco aqui, e ele estava bem longe dela. Daqui, Enéas viajaria pela estrada principal na direção leste para Vouziers, depois seguiria para Nessântico ao norte, finalmente.

Em casa. Ele estava quase em casa. Podia sentir o gostinho.

Em Fossano, tudo era familiar e deixava Enéas à vontade. A arquitetura lembrava os sólidos prédios enfeitados da capital, assim como os templos eram réplicas menores das grandes catedrais da margem sul de Nessântico ou da Ilha A’Kralji, a uns 150 quilômetros de subida pelas águas caudalosas do A’Sele. Não havia nada dos prédios quadrados e lisos dos ocidentais, nem das torres esquisitas e das casas caiadas nas encostas de Karnor.

Os Hellins e as batalhas que Enéas vivenciou pareciam distantes enquanto ele observava do interior de uma taverna nas Colinas do Sul, como se tivessem acontecido com outra pessoa, em outra vida. Ele flutuava separado das memórias; podia vê-las, mas não tocá-las, e não podia ser tocado por elas.

Mas... sempre na cabeça havia esta voz fraca, a voz que ele agora sabia que era de Cénzi. Sim... eu ouço, Senhor de Tudo. Eu ouço...

Enéas ouviu a voz Dele agora, ao tocar na bolsa com o nitro que comprou em Karnor pesando ao fundo. Ele estava parado em frente à janela aberta do quarto na Hospedaria do Velho Chevaritt e sentiu um leve cheiro de queimado por perto, e a Voz mandou que Enéas saísse. Saia. Encontre a fonte. Descubra o que é necessário agora.

Ele obedeceu, como devia. Colocou o uniforme, afivelou a espada na cintura e saiu da estalagem.

As ruas de Fossano subiam e desciam por ladeiras íngremes e espalhavam-se como se tivessem sido projetadas por um bêbado. Esta parte da cidade, do lado de fora das velhas muralhas e longe do centro populoso, tinha sido área de cultivo até recentemente. As casas e os prédios ainda eram bem separados por pequenos campos onde ovelhas, cabras e vacas pastavam ou onde fazendeiros plantavam colheitas. O cheiro intenso de queimado ficava mais forte à medida que Enéas seguia a estrada e afastava-se da cidade, até que as casas sumiram completamente e a estrada virou nada mais que uma trilha cheia de sulcos tomada pelo mato.

Enéas deu a volta por uma saliência de granito cheia de árvores. Era visível o rastro azulado de fumaça que saía de perto de uma cabana caindo aos pedaços, em um campo sem cultivo. O pátio estava cheio de braçadas de lenha, e três homens amontoavam os feixes em uma pilha circular — que já tinha o dobro da altura de um homem e vários passos de diâmetro. Ali perto, outro monte de madeira fora coberto por terra e grama, e saía fumaça dos buracos de ventilação em volta do perímetro do morrinho e da chaminé coberta no topo. Os homens ergueram o olhar quando Enéas se aproximou, e ele jogou a capa de viagem para trás a fim de revelar o brasão da Garde Civile e o cabo da espada: os carvoeiros eram conhecidos por serem um grupo bruto e indigno de confiança que morava em áreas de floresta fora da cidade. Um monte de lenha podia levar duas ou três semanas em combustão lenta até se transformar em puro carvão negro e exigia um cuidado constante, ou os carvoeiros encontrariam apenas cinzas quando tirassem a cobertura de terra. Eles viviam isolados, saíam apenas para vender os sacos de carvão que produziam e iam embora para novas áreas de floresta quando acabavam as árvores adequadas por perto. A reputação ruim dos carvoeiros era piorada pelo fato de que eles geralmente misturavam pedaços de terra e rochas ao carvão, de maneira que a qualidade do produto podia ser menor do que a desejada. Em Nessântico, havia e’ténis cuja tarefa era produzir carvão de qualidade, parecido com gemas, que era usado nas fornalhas da grande cidade e no aquecimento das casas dos ca’ e co’. Aqui, o serviço não era feito através do poder do Ilmodo, mas sim pelo trabalho árduo e sujo de pessoas comuns.

Enéas acenou para os carvoeiros enquanto eles encaravam o offizier com braços cruzados ou mãos na cintura. — Que cê quer, vajiki? — perguntou um deles. O homem tinha um cisto debaixo do olho esquerdo que parecia uma meia uva vermelha grudada na pele, cercado por um tufo de cabelo crespo que combinava com a barba rala; havia um cisto igual meio fora do centro da testa. Ele era muitos anos mais velho do que os outros dois sujeitos; Enéas perguntou-se se o homem não seria o vatarh ou onczio dos mais jovens. — Perdeu sua tropa, hein? — O trio riu da piada ruim do carvoeiro com uma risada tão sombria quanto a fuligem que sujava as mãos e os rostos.

— Eu preciso de carvão — falou Enéas. — Da melhor qualidade que vocês tiverem. Um saco sem impurezas. É isso que Cénzi deseja.

Eles riram novamente. O homem com os cistos esfregou o rosto. — Cénzi, hein? Cê tá dizendo que é Cénzi ou é um téni também, vajiki? Ou talvez seja meio ruim das ideias? — Novamente Enéas foi atacado pelas risadas, enquanto o vento fez a fumaça do fogo envolver os carvoeiros. — Nós estaremos na cidade no próximo mizzkdi, vajiki, com todo carvão que cê quiser. Espere até lá. Tamos ocupados.

— Eu preciso agora — insistiu Enéas. — Amanhã eu vou embora da cidade para Nessântico.

O homem deu uma olhada para os companheiros. — Viajando, hein? Cê não é de Fossano, então? — Enéas fez que não com a cabeça. O velho carvoeiro sorriu. — Ele é elegante, não é, rapazes? Ora, aposto que é da própria Nessântico. E aposto que tem uma bolsa cheia o suficiente para comprar todo o carvão que ele quer e mais um pouco.

O sujeito deu um passo na direção de Enéas, que puxou meia espada da bainha e falou — Eu não quero confusão, vajiki, apenas o seu carvão. Pagarei um bom preço por ele; o dobro do preço, com a benção de Cénzi e sem barganha.

— O dobro do preço e ainda por cima com uma benção. — Outro passo. — A gente tá com sorte, hein, rapazes? — Os dois carvoeiros mais jovens foram lentamente para cada lado de Enéas a fim de cercá-lo. Ele viu uma faca na mão de um homem; o outro segurava um pedaço de lenha como um porrete.

Enéas já tinha visto brigas suficientes na vida; elas eram endêmicas entre as tropas e bem comuns nas tavernas das cidades, à noite. Ele sabia que a bravura do grupo duraria apenas enquanto o líder permanecesse intocado. O homem com os cistos sorria agora ao se abaixar para também pegar um pedaço de lenha. Ele bateu com o pau na palma da mão cheia de calos. — Tô achando que cê vai dar essa bolsa pra gente agora, vajiki, se quiser evitar uma surra — falou o sujeito. — Afinal de contas, três contra um...

Isto foi o máximo até onde o homem chegou. Em um único movimento, Enéas sacou a espada da bainha e atacou, o aço retiniu e reluziu à luz do sol. O porrete improvisado do carvoeiro voou longe, com a mão ainda na madeira. O homem ficou boquiaberto e olhou para o toco que jorrava sangue no braço. Ele gritou enquanto Enéas dava meia-volta, e a espada agora ameaçava a garganta do homem com a faca. O carvoeiro soltou a arma e recuou às pressas; o outro encarou com olhos arregalados o homem com os cistos, que caiu de joelhos e continuou a gritar enquanto a mão remanescente apertava o toco no antebraço. — Amarrem o braço para estancar o sangramento se vocês quiserem que seu amigo viva — falou Enéas. Ele pegou a faca que o homem deixou cair. — Onde está o carvão?

Um deles gesticulou na direção da cabana tosca. Enéas viu uma carroça ali com blocos escuros empilhados em um canto. Havia uma pilha de sacos de aniagem perto de uma das rodas. Ele limpou a lâmina na grama do campo, embainhou a espada, foi a passos largos até a carroça e encheu um dos sacos. O homem, cuja mão Enéas decepou, passou a gemer e lamuriar e caiu de lado enquanto os dois companheiros ficaram ajoelhados ao lado dele. Enéas pendurou o saco no ombro, voltou até os carvoeiros e jogou uma única sola de ouro na grama entre eles — mais dinheiro do que os homens ganhariam por uma carroça cheia de carvão. Eles olharam fixamente para a moeda. O mais jovem tinha amarrado um torniquete em volta do toco do líder, mas o rosto do sujeito estava pálido e os cistos destacavam-se como seixos vermelhos no rosto. Uma ferida como aquela, Enéas sabia, podia ser fatal: pela perda de sangue ou pela gangrena que geralmente acometia braços e pernas feridos.

— Que Cénzi tenha piedade de você — falou Enéas para o carvoeiro. — E que Ele lhe perdoe por impedir Sua vontade.

Dito isso, ele ajeitou o peso do saco no ombro e começou a voltar para a cidade.

 

Nico Morel

— ELE É APENAS UM MENINO, KARL. Uma criança inocente. Não ouse machucá-lo.

Nico ouviu a voz de Varina através da porta trancada ao se aninhar na pilha de lençóis contra a parede de madeira. Ele escutou uma voz de homem responder — imaginou que fosse Karl —, mas o tom era baixo demais, e Nico não conseguiu distinguir todas as palavras com a parede de madeira entre eles, apenas a frase “... o que eu tiver que fazer”. Então a porta foi aberta, e Nico jogou o braço sobre os olhos para se proteger da luz que veio do outro cômodo. Uma sombra surgiu na passagem e se dirigiu até ele, os passos ecoaram alto nas tábuas do piso que rangia. O menino pestanejou ao erguer o olhar para o homem, vislumbrou o cabelo grisalho, a barba bem feita, e os olhos gentis que contrastavam com a boca franzida debaixo do bigode. Sua bashta era elegante e limpa, o tecido reluzia e era macio ao roçar na pele de Nico quando o homem se ajoelhou em frente a ele. Um dos ca’ e co’, decidiu o menino.

— Eu não sei de nada — repetiu Nico, cansado, antes que o homem pudesse falar. Ele já tinha repetido as palavras muitas vezes, em todas as variações que era capaz de tirar da mente cansada. A mulher, Varina, não parou de perguntar sobre Talis: se ele sabia onde Talis morava agora; qual era a conexão entre ele, sua matarh e Talis; se sabia de onde Talis era ou o que fazia; e onde Talis aprendeu a usar o Ilmodo (só que Varina às vezes usava outra palavra para “Ilmodo”, que parecia com “scati” ou alguma coisa assim). Nico não disse nada porque sabia que Talis não queria isso. Eles queriam machucá-lo; o menino tinha certeza disso.

O homem fez uma concha com a mão diante de Nico e falou uma palavra estranha, como aquelas que Talis às vezes entoava quando fazia magia. O menino sentiu o frio do Ilmodo perto dele, os pelos nos antebraços ficaram eriçados quando surgiu uma bola de luz amarela e fraca, como uma bola de chamas na palma virada para cima do homem. Na luz, Nico viu o rosto claramente e conteve um gritinho.

Ele conhecia aquele rosto. Este era o homem que atacou Talis na rua: o embaixador ca’Vliomani, o numetodo. Nico gemeu e encostou-se na parede, como se pudesse atravessar a madeira e sair para a liberdade. Ele queria ser tomado pela fúria gelada novamente, mas estava tão cansado e assustado que não conseguiu invocar o sentimento.

— Ah, então você realmente me reconhece — disse o homem. — Pensei que isso fosse acontecer. Eu certamente reconheço você, Nico. — O menino ouviu o sotaque, mas não era o mesmo que Talis tinha. A fala era cantada, rodopiava e vinha mais do fundo da garganta, em vez do nariz. O “r” era dobrado, ele dizia “rreconheço.” O embaixador desceu a mão para o chão, e a bola de luz rolou preguiçosamente até o assoalho. A sombra comprida do homem se deslocou pelas paredes.

— O senhor vai me machucar? — A voz de Nico soou miúda e quase perdida aos próprios ouvidos: uma casquinha, o sussurro de uma brisa.

O homem não respondeu. Não diretamente. — Da última vez que vi você, Nico, eu quase fui morto pelo homem que estava ao seu lado. Qual era o nome dele? Talis? — Nico balançou a cabeça, mas o embaixador sorriu diante da negativa e continuou — Eu realmente preciso falar com Talis, Nico, e aposto que você também gostaria de falar com ele.

— O senhor está furioso com Talis. Tentará machucá-lo.

— Eu não estou furioso com ele — respondeu o embaixador. — Eu sei que é difícil para você acreditar, mas é verdade. Existem coisas que preciso perguntar para Talis, coisas urgentes e importantes, e ele não me deu uma chance. Só isso. Nós tivemos um... desentendimento.

— O senhor promete?

Karl não respondeu, mas meteu a mão dentro de uma bolsa presa à lateral do corpo, desdobrou alguma coisa em papel de seda, e segurou na direção do menino. Nico recuou um instante, depois inclinou-se para frente novamente quando o embaixador continuou a oferecer a mão: na palma havia uma tâmara roliça, salpicada de mel e de amêndoas picadas. A boca de Nico ficou cheia de água; Varina tinha servido pão, queijo e água, mas ele ainda continuava com um pouco de fome após a longa caminhada de Ville Paisli, e a visão da tâmara deu uma incontrolável água na boca. — Vamos, Nico, pegue — falou o homem. — Eu trouxe só para você.

Hesitante, Nico esticou a mão para o fruto doce. Quando os dedos tocaram o papel barulhento e amassado, ele arrancou a tâmara da mão do embaixador tão rápido quanto foi capaz. Enfiou o doce inteiro na boca, e a leve doçura do mel desceu pela língua e misturou-se ao gosto azedo da tâmara. O homem continuou sorrindo ao encará-lo. O menino achou que o rosto dele não parecia tão furioso neste momento, e havia uma ternura nas rugas em volta dos olhos.

— Sabe, eu tenho netos que têm mais ou menos a sua idade — disse Karl. Um pouco mais novos, mas não muito. Você gostaria deles, creio eu, se os conhecesse. Meus netos vivem na Ilha de Paeti. Você sabe onde ela fica?

Nico concordou com a cabeça. A matarh mostrara para ele um mapa dos Domínios, apontara os países e fizera com que aprendesse.

— Paeti é bem longe daqui — disse o embaixador. — Mas eu gostaria de voltar lá um dia. E você, Nico? Nasceu aqui em Nessântico?

Outro aceno com a cabeça. Nico lambeu os beiços e sentiu o gosto do resto do mel grudento.

— E quanto à sua matarh? De onde ela é?

— Daqui. — A palavra saiu meio abafada. O gosto persistente da tâmara ficou amargo. Nico pigarreou.

— Ah... — O homem pareceu considerar a informação por um momento e afastou momentaneamente o olhar. Ele notou um movimento na porta e viu Varina apoiada ali. O embaixador e ela entreolharam-se, e algo no jeito daquele olhar fez o menino pensar que eles eram um casal, como Talis e sua matarh. — E seu vatarh? Talis é daqui?

O menino começou a balançar a cabeça, depois parou. Talis não iria querer que Nico falasse sobre ele. O que aconteceu tem que ser um segredo... Foi isso que Talis disse. Ele confiava em Nico.

— Ele é das Terras Ocidentais, depois dos Hellins, não é? — insistiu Karl. — Ele é um daqueles que se chamam de tehuantinos. Nico, você sabe que os Domínios estão em guerra com os ocidentais, não sabe? Você compreende isso?

Um aceno de cabeça. Nico não ousava abrir a boca. Ele jamais tinha ouvido aquela palavra: tehuantino. Entretanto, parecia como uma palavra que Talis diria, só pelo som. Ele foi capaz de ouvi-la no sotaque de Talis.

— Onde está sua matarh, Nico? Nós temos que levar você até ela, mas precisa nos dizer onde está sua matarh.

— Ela está com a minha tantzia — disse Nico. — Ela está bem longe daqui. Eu... abandonei minha matarh. — O menino não queria contar ao embaixador sobre os primos e a maneira como foi tratado por eles, mas pensar naquilo trouxe a lembrança da matarh, e de repente Nico queria estar com ela, acima de tudo. Sentiu lágrimas brotarem de seus olhos e os limpou quase com raiva, sem querer que o embaixador visse. Varina saiu da porta e agachou-se ao lado de Nico. Ela abraçou o menino, o que foi quase tão bom quanto um abraço da matarh.

— Talis está com sua matarh? — indagou Karl.

Esta parecia ser uma pergunta inofensiva o suficiente para responder. Nico não queria que o embaixador fosse até a matarh, e se soubesse que Talis não estava lá, bem, ele a deixaria em paz. — Não — falou Nico. Ele fungou o nariz.

— Karl, já chega — disse Varina.

O embaixador ignorou a mulher. — Onde está Talis agora, Nico?

— Eu não sei. — Quando ca’Vliomani ficou ali ajoelhado, sem dizer nada, Nico deu de ombros. — Eu não sei. Não sei mesmo.

Ca’Vliomani inclinou a cabeça de lado ao olhar para Nico. Ele pegou o queixo do menino e levantou sua cabeça até o menino ser forçado a encarar os olhos do embaixador, que não piscava. Nico viu Varina ficar nervosa. — Isso é a verdade?

O menino concordou com a cabeça enfaticamente. O homem olhou fixamente por mais alguns instantes, depois afastou a mão. Ele e Varina entreolharam-se novamente. Para o menino, parecia que os dois falavam sem dizer nada. Os dedos de ca’Vliomani cofiaram a barba, e ele fez uma careta de desdém, como se estivesse insatisfeito. A voz pareceu mais leve e menos sinistra agora. — O que você fazia no Velho Distrito, Nico? Por que não está com sua matarh?

Isso era complicado demais para responder. Nico balançou a cabeça para conter a confusão de respostas possíveis. Ele mesmo não tinha certeza por que estava aqui, neste momento. — Eu pensei que, talvez... — As lágrimas ameaçaram escorrer novamente, e o menino parou para tomar fôlego. — Eu pensei que Talis ainda pudesse estar onde a gente morava.

— Ele não está. — Foi Varina quem respondeu. A mão dela fez carinho nas costas de Nico. — Nós andamos vigiando.

— Bem, então ele viu vocês — falou Nico com confiança. — Talis é esperto. Ele teria visto vocês vigiando e não iria para casa.

— Ele não teria me visto — respondeu Varina, mas o menino não acreditou. Ele limpou os olhos novamente.

— Você tem família aqui? — perguntou ca’Vliomani. — Alguém para cuidar de você?

— Só Talis. Só ele.

Ca’Vliomani suspirou e ficou de pé soltando um gemido, os joelhos estalaram com o esforço. — Então teremos que fazer Talis saber que você está conosco, e talvez nós dois consigamos o que queremos, hein?

 

Jan ca’Vörl

— SINTO MUITO, ONCZIO FYNN — sussurrou Jan. — Isso não deveria ter acontecido, e eu espero... espero que não tenha sido culpa minha. — A voz ecoou na tumba e agitou tênues fantasmas de si mesmo. A luz hesitante da tocha fez as sombras pularem e se sacudirem pelos selos de pedra das catacumbas. Era a segunda vez que ele tinha visto um hïrzg ser sepultado nestas câmaras úmidas e sinistras, rápido demais. Vatarh e filho. Pelo menos o funeral de Fynn não foi acompanhado por presságios e mais mortes. Foi um ritual lento e sombrio, que deixou Jan com uma dor no coração.

Ele procurou por toda parte por Elissa. Mandou batedores partirem de Brezno para vasculhar estradas, estalagens e vilarejos à procura dela, em todas as direções. Roderigo dissera que não havia visto Elissa perto dos aposentos de Fynn. — Mas eu estava longe do hïrzg quando aquilo aconteceu. Ela pode ter conseguido entrar de mansinho, ou talvez tenha sido outra pessoa. Eu não sei, simplesmente não sei.

As palavras tinham gosto de bile e veneno. Jan tentou se convencer de que era tudo coincidência. A matarh mostrou a carta que recebera da família ca’Karina: Elissa era uma impostora que fingia ser uma ca’. Mas talvez fosse só isso: ela fugira porque sabia que a farsa seria revelada. Talvez fosse isso e nada mais. Ou... talvez Elissa tivesse ido até Fynn para defender sua causa, pois sabia que seria exposta como uma fraude, e interrompeu a Pedra Branca durante o serviço. Talvez ela tenha fugido aterrorizada antes de ser vista pelo famoso assassino, tão assustada que sequer ficou na cidade depois do que viu. Ou talvez — pior ainda — a Pedra Branca viu Elissa e levou-a para ser assassinada em outro lugar.

Nada disso convenceu Jan. Ele sabia o que eles pensavam, todos eles, e quando sua intuição passou a aceitar a suspeita, Jan também soube que eles estavam certos. Uma impostora na corte, uma impostora que era a amante de companhia predileta do hïrzg — a conclusão era óbvia. Elissa era a cúmplice da Pedra Branca, ou ela mesma era a Pedra Branca.

Qualquer uma das hipóteses fazia a cabeça de Jan girar. Ele lembrava o tempo que passou com Elissa, as conversas, os flertes, os beijos; a respiração acelerada quando exploravam um ao outro; o calor escorregadio e melado do sexo, as risadas depois... o corpo de Elissa, esbelto e atraente no banho de luz cálida das velas; a curva dos seios com gotas de suor da paixão; o triângulo escuro, macio e atraente na junção das penas...

Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos.

Não podia ser ela. Não podia. No entanto...

Jan colocou a mão no selo de pedra da tumba de Fynn e deixou os dedos percorrerem o baixo-relevo gravado ali. — Sinto muito — disse ele novamente para o cadáver.

Se, de alguma forma, foi Elissa, então a questão ainda sem resposta era quem contratou a Pedra Branca. Ela não mataria sem um contrato. Alguém pagou a Pedra Branca para fazer isso. Se Elissa tinha sido a faca ou simplesmente a ajudante, não importava. Não foi ela que tomou a decisão. Outra pessoa encomendou a morte.

Jan abaixou a cabeça até a testa tocar a pedra fria. — Eu descobrirei quem fez isso — falou ele: para Cénzi, para Fynn, para o ar assombrado. — Eu descobrirei e lhe darei justiça, onczio.

Jan respirou fundo no ar frio e úmido. Ficou de pé com os joelhos rangendo e pegou a tocha no suporte. Depois começou a longa subida em direção ao dia.

 

Sergei ca’Rudka

— HÁ VERDADE NA DOR — disse Sergei. Ele falou o aforismo várias vezes ao longo dos anos, dizia para que a vítima soubesse que deveria confessar o que Sergei queria que ela confessasse. Ele também sabia que era mentira. Não havia “verdade” na dor, não realmente. Pelo contrário, com a agonia que Sergei infligia, vinha a habilidade de fazer a vítima dizer qualquer coisa que ele desejasse que ela dissesse. Vinha a habilidade de tornar “verdade” qualquer coisa que quem estivesse no comando desejasse que fosse verdade. A vítima diria qualquer coisa, concordaria com tudo, confessaria qualquer coisa desde que houvesse a promessa de acabar com o tormento.

Sergei sorriu para o homem acorrentado diante dele. Ele estava em frente aos instrumentos sinistros de tortura em um rolo de couro, mas aí sua percepção mudou: era Sergei quem estava deitado e preso na mesa e olhava para o próprio rosto. As mãos estavam acorrentadas, e ele sentiu um nó nas estranhas por causa do medo gelado. Sergei sabia o que estava prestes a sentir; ele tinha infligido em muitas pessoas. Sabia o que estava prestes a sentir e gritou pela expectativa da agonia...

— Regente?

Sergei deu um pulo ao acordar na cela, as algemas nos pulsos chacoalharam a curta corrente entre elas. Ele rapidamente desceu a mão até a faca que ainda estava na bota e fez questão de pegar o cabo para que, se viessem levá-lo para o interrogatório, conseguisse tirar a própria vida primeiro.

Ele não passaria pelo que forçou outros a passar.

Mas era Aris co’Falla, o comandante da Bastida, que entrou na cela, e Sergei relaxou e tirou os dedos do cabo. Aris prestou continência ao garda que abriu a porta e falou — Pode sair. Tem almoço para o senhor no andar debaixo. Volte aqui em meia virada da ampulheta.

— Obrigado, comandante — disse o garda. Ele prestou continência e foi embora. Aris deixou a porta aberta. Da cama onde estava, Sergei deu uma olhadela para a porta escancarada. O comandante notou o olhar.

— Você não passaria por mim, Sergei. Você sabe disso. Eu sou duas décadas mais novo, afinal de contas, e é meu dever, sem falar minha vida, impedi-lo.

— Você deixou a porta aberta apenas para zombar de mim, então?

Um sorriso surgiu e desapareceu como geada na primavera. — Você prefere que eu feche e tranque?

Sergei soltou um riso amargo, e a risada virou uma tosse cheia de catarro. Aris tocou o ombro dele com preocupação quando Sergei dobrou o corpo. — Quer que eu chame um curandeiro, meu amigo?

— Para quê? Para que eu esteja o mais saudável possível quando o Conselho mandar me matar? — Sergei balançou a cabeça. — É apenas a umidade; meus pulmões não gostam dela. Então me diga, Aris, que notícias você traz?

O comandante puxou a única cadeira na cela até ele, e as pernas fizeram um barulho alto ao serem arrastadas sobre os ladrilhos. — Eu destaquei um garda em quem confio totalmente para o Conselho; para minha própria segurança nestes tempos confusos, para ser franco. Portanto, muito do que sei vem da parte dele.

— Eu não preciso do preâmbulo, Aris; ele não vai mudar sua resposta, e presumo que eu já saiba qual é. Apenas conte.

Aris suspirou. Ele virou a cadeira ao contrário e sentou-se, colocou os braços dobrados sobre o encosto e apoiou o queixo nos braços. — Sigourney ca’Ludovici está forçando o Conselho a dar o poder que o kraljiki pede. Haverá uma reunião final em poucos dias, quando então ocorrerá uma votação.

— Eles realmente darão a Audric o que ele quer?

Um aceno de cabeça franziu o queixo barbado nas mãos de Aris. — Sim, creio que sim.

Sergei fechou os olhos e recostou a cabeça na parede de pedra. Sentiu o frio da rocha através do cabelo que ficava ralo. — Eles destruirão Nessântico em nome do poder. Todos eles, e Sigourney especialmente, pensam que Audric não durará um ano, o que deixará o Trono do Sol vago para um dos conselheiros, considerando que eu esteja morto.

— Sergei. — Ele ouviu Aris falar na escuridão de seus pensamentos. — Eu lhe avisarei. Prometo. Eu darei tempo para que você... — O comandante parou.

— Obrigado, Aris.

— Eu faria mais, se pudesse, mas tenho que pensar na minha família. Se o Conselho dos Ca’ ou o novo kralji descobrir que ajudei você a fugir, bem...

— Eu sei. Eu não pediria isso a você.

— Sinto muito.

— Não sinta. — Sergei abriu os olhos novamente e inclinou-se para frente. Ele tocou o rosto de Aris com a mão, e as algemas chacoalharam com o movimento. — Eu tive uma boa vida, Aris, e servi a três kralji da melhor maneira que pude. Cénzi vai me perdoar pelo que tenho que fazer.

— Ainda há esperança, e não é preciso fazer nada por enquanto. O Conselho pode cair em si e notar que o kraljiki está doente da cabeça assim como do corpo. Os conselheiros ainda podem soltar você; eles soltarão se o esforço do archigos Kenne e dos demais leais a você surtir algum efeito. O archigos Kenne já defendeu sua causa diante do Conselho, e suas palavras ainda têm alguma influência, afinal de contas. Não perca as esperanças, Sergei. Ambos sabemos muito bem a história da Bastida. Ora, a Bastida prendeu Harcourt ca’Denai por três anos antes de ele se tornar kraljiki.

Sergei riu e conteve a tosse que queria vir junto. — Nós somos homens práticos, Aris. Realistas. Não nos enganamos com falsas esperanças.

— É bem verdade. — Aris levantou-se. — Eu mandarei o garda trazer sua comida. E um curandeiro para examinar você, quer você queira ou não. — Ele deu um tapinha no ombro de Sergei e seguiu para a porta, mas parou com a mão na maçaneta. — Se a situação chegar a este ponto, Sergei, mandarei lhe avisar antes que qualquer pessoa venha levar você para os calabouços lá embaixo. — O comandante fez uma pausa e olhou intensamente para Sergei. — Para que possa se preparar. Tem a minha palavra quanto a isso.

Sergei concordou com a cabeça. Aris prestou continência e fechou a porta com um baque metálico. Sergei ouviu o rangido da chave na tranca. Ele recostou a cabeça novamente e escutou o som das botas de co’Falla na escada de caracol da torre.

Sergei lembrou-se do som nítido dos gritos que ecoavam na pedra e das súplicas estridentes daqueles mandados para o interrogatório. Lembrou-se dos rostos contraídos de dor. Havia uma honestidade na agonia, uma pureza de expressão que não podia ser fingida. Às vezes, Sergei pensava que via Cénzi nos interrogados: o Cénzi que Ele tinha sido quando Seus próprios filhos, os moitidis, voltaram-se contra Ele e dilaceraram Seu corpo mortal. Agora, como Cénzi, Sergei poderia encarar a fúria da própria criação.

Mas ele não enfrentaria. Ele prometeu a si mesmo. De uma maneira ou de outra, ele não enfrentaria.

 

Allesandra ca’Vörl

— OS CONSELHEIROS ESTÃO AQUI e já se sentaram, a’hïrzg — disse o assistente. — Eles me pediram para levar a senhora à câmara.

Allesandra estava no corredor do lado de fora da câmara do conselho, com Pauli e Jan de cada lado. A mão tocou a tashta de gola baixa onde — sob o pano — havia uma pedra branca comum cercada por uma filigrana de ouro, ao lado do globo da archigos Ana. Mesmo Pauli — que falava alegremente que a Magyaria Ocidental e Firenzcia juntas solidificariam a Coalizão quando ele fosse o gyula e Allesandra, a hïrzgin — calou a boca quando o assistente acenou com a cabeça para que os criados do corredor abrissem as portas duplas. Os três espiaram a penumbra lá dentro, onde o Conselho dos Ca’ estava sentado a uma grande mesa.

Jan, da parte dele, estava sério e quieto, este era seu estado desde a morte de Fynn e a partida de Elissa. Allesandra passou o braço pelos ombros do filho antes de eles entrarem. Ela inclinou-se na direção de Jan e sussurrou — Quando eu sair daqui, você deve ir para seus aposentos e esperar, entendeu?

Jan olhou estranhamente para a matarh, mas finalmente concordou com um ligeiro aceno de cabeça, confuso.

A câmara do Conselho dos Ca’ em Brezno era escura, com painéis de carvalho tingido nas paredes e um tapete da cor de sangue seco: era uma sala interior do Palácio de Brezno, sem janelas, iluminada apenas pelas velas dos candelabros sobre uma mesa comprida e envernizada (nem mesmo luzes mágicas), e fria por ter apenas uma pequena lareira em uma ponta. A sala era sombria e melancólica. Não era um lugar convidativo para uma longa estadia e conversas sem pressa — e isto era intencional. O hïrzg Karin, vavatarh de Allesandra, separou esta sala de propósito para o Conselho. Ele considerava as sessões do Conselho dos Ca’ tediosas e chatas; a falta de conforto na sala pelo menos garantia que as reuniões fossem curtas.

— Por favor, entre, a’hïrzg — falou Sinclair ca’Egan da cabeceira da mesa. Ca’Egan era velho e careca, um chevaritt de voz trêmula que cavalgou com o vatarh de Allesandra antes mesmo de ele ter sido nomeado a’hïrzg pelo hïrzg Karin. Ca’Egan estava no Conselho dos Ca’ desde que Allesandra o conhecia; como ancião, ele também era o líder titular do conselho. Quatro mulheres (uma delas Francesca), cinco homens: eles ficaram de pé simultaneamente, fizeram uma mesura para a a’hïrzg, uma gentileza que nem mesmo o Conselho dos Ca’ podia ignorar, e sentaram-se novamente. Seis dos nove, em especial, acenaram com a cabeça e sorriram para ela. Allesandra, Pauli e Jan ficaram de pé, como mandava a etiqueta, na outra ponta desocupada da mesa. Ca’Egan remexeu os pergaminhos diante dele e pigarreou. — Obrigado por virem. Nós seremos breves, com certeza. É uma mera formalidade, na verdade. O hïrzg Fynn já havia nomeado Allesandra ca’Vörl como a’hïrzg, portanto precisamos apenas de sua assinatura, a’hïrzg, e a dos conselheiros presentes...

— Vajiki ca’Egan — falou Allesandra, e o velho ergueu a cabeça, curioso com a interrupção. Ao lado direito da esposa, Pauli grunhiu diante da óbvia quebra de protocolo. — Eu tenho uma declaração para fazer antes que o Conselho coloque seu selo neste documento e mande-o para o archigos reconhecer. Venho pensando nesta questão desde que meu querido irmão foi morto e rezei para Cénzi por Sua orientação, e tudo ficou claro para mim. — Ela fez uma pausa. Esta é sua última chance de mudar de ideia... Semini argumentou com ela por uma ou duas longas viradas da ampulheta, quando estavam juntos na cama, mas Allesandra estava convencida de que essa era a estratégia correta. Ela respirou fundo. Sentiu o olhar curioso e impaciente de Pauli. — Eu não quero ser a hïrzgin, e por isso renuncio à minha pretensão ao título.

As sobrancelhas de ca’Egan se levantaram no crânio nu e enrugado, a boca abriu sem emitir sons. Francesca, em choque, recuou no assento, atordoada pelo anúncio, mas a maioria não se abalou. Eles apenas concordaram com a cabeça, com os olhares mais em Jan do que em Allesandra.

— Pelos colhões de Cénzi — berrou Pauli ao lado dela. O palavrão quase pareceu evocar um relâmpago no ar escuro da câmara. — Mulher, você ficou maluca? Sabe o que está fazendo? Você acabou de...

— Cale a boca — falou Allesandra para Pauli, que a olhou com raiva, mas fechou a boca imediatamente. Ela ergueu as mãos para os conselheiros. — Eu disse tudo o que precisava dizer. Deixo com o Conselho dos Ca’ a decisão de quem é o mais indicado para ocupar o trono de Brezno. No entanto, não serei eu. Confio no julgamento dos senhores, conselheiros. Sei que farão o que é melhor para Brezno.

Dito isso, ela fez o sinal de Cénzi para o Conselho e deu meia-volta, abriu as portas tão abruptamente que os criados do corredor, postados do lado de fora, quase foram derrubados. Pauli e Jan, surpresos com a saída repentina, seguiram com atraso. Allesandra ouviu o marido avançar atrás dela. A mão de Pauli pegou seu braço e girou a esposa. O belo rosto estava vermelho e contorcido, ficou feio de raiva. Atrás dele, Allesandra viu Jan parado em frente à porta aberta da câmara enquanto observava o confronto, a própria expressão era de perplexidade e incerteza.

— O que é isso, em nome dos sete infernos? — Pauli estava furioso. — Nós tínhamos tudo que sempre quisemos nas mãos, e você simplesmente jogou fora? Ficou louca, Allesandra? — A mão apertou o bíceps da esposa e amassou a tashta embaixo dos dedos. Allesandra ficaria marcada ali amanhã, ela sabia. — Você vai voltar lá agora e dizer para os conselheiros que foi um erro. Uma brincadeira. Diga o que raios você quiser, mas você não vai fazer isso comigo.

— Com você? — respondeu Allesandra em um tom calmo e debochado. — Como essa questão tem algo a ver com você, Pauli? Eu era a a’hïrzg, não você. Você é apenas um arremedo inútil e deplorável de marido, um erro que pretendo retificar assim que puder, e vai tirar a mão de mim. Agora.

Pauli não tirou. Ele colocou a outra mão para trás, como se fosse bater em Allesandra, e cerrou o punho. — Não! — O grito veio de Jan, que correu na direção deles. — Não, vatarh.

Allesandra deu um sorriso cruel para Pauli, para a mão ainda erguida, e falou — Vá em frente. Bata, se quiser. Eu lhe digo agora que será a última vez na vida que você me tocará.

Pauli deixou o punho cair. Os dedos ficaram frouxos na manga da esposa, que se sacudiu para se soltar dele.

— Cansei de você, Pauli. Você me deu tudo o que eu precisava há muito tempo.

 

Enéas co’Kinnear

VOUZIERS: UMA CIDADE SEM SAÍDA PARA O MAR, a maior em Nessântico do Sul, a encruzilhada das estradas para Namarro e para as longínquas terras ensolaradas de Daritria. Vouziers ficava ao extremo norte das planícies de Nessântico do Sul, uma terra agrícola com extensos campos de grãos ao vento. O povo de Vouziers era como a terra: firme, despretensioso, sério e simples.

De Fossano, a carruagem levou vários dias para chegar a Vouziers. Em um vilarejo ao longo do caminho, Enéas comprou todo o enxofre que o alquimista local tinha na loja; na noite seguinte, ele fez o mesmo na próxima. Em cada uma das paradas noturnas, Enéas hospedava-se em um quarto privativo no vilarejo. Ele arrancava alguns pedaços do carvão e começava, lentamente, a moê-los até virar um pó preto — Enéas ouvia a satisfação de Cénzi quando o carvão alcançava a fineza necessária. Então, com o alerta da Voz de Cénzi para que fosse delicado e cuidadoso, ele misturava o carvão em pó, o enxofre e o nitro para formar a areia negra dos ocidentais, que Enéas embrulhou com cautela em pacotes de papel. Cénzi sussurrou as instruções enquanto ele trabalhava e manteve Enéas a salvo.

Na noite da véspera da chegada a Vouziers, Enéas levou alguns dos pacotes para o campo depois que todos dormiram. Lá, ele depositou o conteúdo em um pequeno buraco raso que cavou no solo — o resultado trouxe a lembrança incômoda das areias negras nos campos de batalha nos Hellins e da própria derrota. Conforme foi instruído pela Voz de Cénzi, Enéas pegou um pedaço de barbante molhado com cera e partículas da areia negra, enterrou uma ponta na areia negra e desenrolou o resto pelo chão ao se afastar do buraco. Mais tarde, ele ouviu Cénzi dizer em sua cabeça, Vou lhe mostrar como criar fogo do jeito que os ténis fazem. Você deveria ter sido um téni, Enéas. Este era Meu desejo para você, mas seu vatarh e matarh não Me ouviram, mas agora posso fazer de você tudo que deveria ter sido. Você tem Minha bênção...

Enéas pegou a lanterna coberta que trouxe e acendeu a ponta do barbante. O pavio assobiou e soltou fumaça e fagulhas que brilharam na escuridão. Enéas afastou-se rapidamente, chegou à estalagem e entrou no salão comunal quando surgiu a erupção: um estrondo mais alto do que um trovão estremeceu as paredes da estalagem e sacudiu o papel de seda, grosso e transparente das janelas, seguido por um clarão momentâneo de luz do dia. Todo mundo no salão ficou assustado e esticou o pescoço. — Pelos colhões de Cénzi! — rugiu o estalajadeiro. — A noite ficou clara como água!

O estalajadeiro irrompeu do lado de fora e foi seguido pelos outros. Eles primeiro olharam para o céu sem nuvens e não viram nada. Lá no campo, porém, ardia um pequeno fogo. Quando se aproximaram, Enéas viu que o pequeno buraco que cavou agora tinha profundidade suficiente para um homem ficar de pé até os joelhos e o diâmetro de quase um braço. Pedras e terra voaram para todos os lados. Era como se o próprio Cénzi tivesse socado a terra com raiva.

O estalajadeiro ergueu os olhos para o céu onde as estrelas brilhavam e aglomeravam-se na escuridão vazia. — Raio que cai sem tempestade — disse o homem enquanto balançava a cabeça. — É um presságio, eu digo para vocês. Os moitidis estão dizendo que perdemos o rumo.

Um presságio. Enéas viu-se rindo das palavras do estalajadeiro, que não tinha noção de como eram proféticas. Isto era realmente um presságio, um presságio do desejo de Cénzi para ele.

No dia seguinte, ele chegou a Vouziers. Durante a longa cavalgada, Enéas rezou com mais fervor do que jamais rezara, e Cénzi respondeu. Ele sabia o que devia fazer ali, o pensamento o incomodava, mas Enéas era um soldado, e soldados sempre cumpriam seus deveres, por mais onerosos que fossem.

Após chegar a Vouziers e arrumar hospedagem para a noite, Enéas vestiu o uniforme e pendurou uma bolsa pesada de couro no ombro. Ele havia enchido um saco comprido de couro com seixos, que foi colocado no bolso interno da bashta. Quando as trompas soaram a Terceira Chamada, Enéas entrou no templo para a missa da noite, que era ministrada pela própria a’téni de Vouziers. Depois da Admoestação e da Bênção, Enéas acompanhou a procissão de ténis do templo para a praça, iluminada por lâmpadas mágicas contra o céu que escurecia. A a’téni conversava com os ca’ e co’ da cidade, e, em vez de falar com ela, Enéas foi até um de seus assistentes, um o’téni pálido cuja boca parecia lutar com o sorriso que deu para ele.

— Boa noite, o’offizier — falou o téni ao fazer o sinal de Cénzi para Enéas. — Perdão, eu deveria conhecer o senhor?

Ele balançou a cabeça ao devolver o gesto. — Não, o’téni, só estou passando pela cidade a caminho de Nessântico. Acabei de retornar dos Hellins e da guerra de lá.

O o’téni arregalou um pouco os olhos e franziu os lábios. — Ah, então devo abençoar o senhor pelo serviço prestado aos Domínios. Como vai a guerra contra os ocidentais pagãos?

— Não vai bem, infelizmente — respondeu Enéas, que olhou com cuidado em volta da praça do templo. — Eu queria que fosse possível dizer o contrário. E aqui... — Ele balançou a cabeça com tristeza e observou o o’téni com atenção. — Eu passei quase 15 anos fora e encontrei muitas mudanças ao voltar. Os numetodos andam pelas ruas abertamente, debocham de Cénzi com seus feitiços e palavras... — Sim, Enéas julgou o homem corretamente: o o’téni apertou os olhos e franziu ainda mais os lábios. Ele inclinou-se para frente de maneira conspiratória e falou quase como um sussurro.

— É realmente uma vergonha que o senhor, que serviu tão fielmente ao seu kraljiki, retorne e veja essa situação. Minha a’téni discorda, mas eu culpo a archigos Ana por esse estado das coisas. E olhe no que isso resultou para ela: os malditos numetodos mataram a archigos assim mesmo. O archigos Kenne... — O o’téni fez um gesto de nojo. — Pfff... Ele é ainda pior, na verdade. Ora, em Nessântico as pessoas desrespeitam a Divolonté abertamente hoje em dia: os numetodos dizem que qualquer um pode usar o Ilmodo, que isso não exige o Dom de Cénzi, e mostram como realizar pequenos feitiços: acender uma lareira ou esfriar o vinho. As pessoas não usam os feitiços às claras, mas nos lares, quando acham que Cénzi não está vendo... — O o’téni balançou a cabeça novamente.

— Os numetodos são uma praga — disse Enéas. — O velho Orlandi ca’Cellibrecca sabia o que fazer com eles.

O o’téni olhou em volta com uma expressão de culpa ao ouvir a menção a Orlandi e falou — Este não é um nome que se deva falar abertamente, o’offizier. Não quando o genro diz ser o archigos de Brezno.

Enéas fez o sinal de Cénzi novamente. — Peço desculpas, o’téni. Este é outro assunto delicado para um soldado como eu, infelizmente. Os Domínios deveriam ser reunificados, assim como a fé concénziana. Sofro por vê-los partidos, assim como sofro ao ver os numetodos tão descarados.

— Eu entendo — disse o o’téni. — Ora, aqui em Vouziers, os numetodos têm o próprio prédio. — O homem apontou para uma das ruas que afluía da praça. — Bem por ali, à vista do próprio templo, com o sinal deles como enfeite na porta. É uma desgraça que Cénzi não permitirá por muito tempo.

— Quanto a isso, o senhor está certo, o’téni — respondeu Enéas. — É exatamente o que Cénzi me diz. — Ao ouvir isso, o o’téni olhou estranhamente para Enéas, mas o offizier não deu chance de ele falar mais nada, apenas fez uma mesura e cruzou a praça rapidamente na direção da rua que o homem indicou. Enéas assobiou uma música enquanto caminhava, uma canção de Darkmavis que sua matarh cantara para ele há muito tempo, quando o mundo ainda fazia sentido e a kraljica Marguerite ainda estava no Trono do Sol.

Ele achou o prédio dos numetodos facilmente — o entalhe no dintel da porta principal era uma concha, o sinal dos numetodos. Havia uma estalagem do outro lado da rua do prédio. Enéas entrou e pediu vinho e uma refeição, sentado a uma das mesas do lado de fora. Ele tomou goles do vinho e comeu devagar, observando o covil dos numetodos enquanto o céu ficava totalmente escuro entre os prédios.

Três vezes Enéas viu gente entrar; duas vezes viu alguém saindo, mas, como em nenhuma das ocasiões Cénzi falou com ele, o offizier continuou comendo e esperando. De vez em quando, Enéas tocava na bolsa de couro no chão ao seu lado para restaurar a confiança. Quase duas viradas da ampulheta depois, quando as ruas estavam quase vazias, antes de ficarem cheias novamente de pessoas que preferiam o anonimato da noite, ele viu um homem sair do prédio dos numetodos, e Cénzi agitou-se dentro de Enéas.

— Aquele ali... — Enéas sentiu o chamado com força, pendurou a bolsa no ombro, deixou um siqil de prata na mesa para pagar a refeição e o vinho, e correu atrás do sujeito. Seu alvo era um homem mais velho: careca no topo da cabeça, com cabelos grisalhos em volta. Ele usava túnica e calças, não uma bashta, e estava sem chapéu; seria difícil perdê-lo de vista mesmo em uma multidão.

Subitamente ficou claro por que Cénzi escolheu este numetodo; ele descia a rua na direção da praça do templo. As luzes mágicas começavam a enfraquecer, e havia poucas pessoas na praça, embora os domos do templo em si ainda estivessem bem acesos, com uma luminosidade dourada contrastando com o céu pontilhado de estrelas. Enéas deu uma olhada rápida à procura de um utilino e não viu nenhum. Ele seguiu em frente apressadamente, e o numetodo virou-se ao ouvir os passos. Enéas viu a palavra do feitiço nos lábios do homem, que ergueu as mãos como se fosse fazer um gesto, e abriu um largo sorriso ao acenar para o homem como se cumprimentasse um amigo que não via há tempos.

O numetodo franziu os olhos, como se não reconhecesse o rosto diante dele. O homem abaixou as mãos e deu um sorriso hesitante como resposta. — Eu conheço...?

Foi o máximo que ele chegou a dizer. Enéas puxou o saco de couro com seixos do bolso e, com um movimento ágil, golpeou com força ao lado da cabeça do homem. O numetodo desabou inconsciente, e Enéas segurou-o com o braço ao desmoronar. Ele apoiou um braço mole sobre o ombro e levantou o sujeito pelo cinto. Riu como se estivesse bêbado, cantou desafinado ao arrastar o numetodo na direção da porta lateral do templo. Quem visse ao longe pensaria que eram dois amigos embriagados que cambaleavam pela praça. Enéas olhou pela última vez para trás ao chegar às portas; ninguém parecia estar observando. Ele puxou a porta pesada com revestimento de bronze e decorada com imagens dos moitidis e sua luta com Cénzi: isso não mudara — as portas dos templos raramente eram trancadas, ficavam abertas para aqueles que desejassem entrar para rezar ou para os indigentes que precisassem de um lugar para dormir à noite, ao custo de ouvir uma Admoestação do téni que os encontrasse de manhã. Enéas entrou de mansinho na escuridão fria do templo, que estava vazio. O som da respiração e dos passos soaram alto enquanto ele arrastava o peso morto do numetodo pela nave principal, e finalmente Enéas largou o homem apoiado no atril em frente ao coro. Ele tirou a bolsa do ombro e colocou no colo do numetodo, depois desenrolou o longo barbante. Enéas foi soltando o pavio com cuidado enquanto recuava pela nave.

Eu vou lhe mostrar seu próprio pequeno Dom, Cénzi dissera para Enéas naquela mesma tarde. Vou lhe mostrar como fazer seu próprio fogo. O cântico e os gestos vieram à mente naquele instante, e embora Enéas soubesse que era contra a Divolonté usar o Ilmodo sem ser um téni, ele sabia que esta era a vontade de Cénzi e que não seria punido por isso. Enéas entoava o cântico agora, perto da entrada do templo, e sentiu o frio do Ilmodo fluir pelas veias e o Segundo Mundo se abrir em sua mente: entre as mãos em movimento, havia um calor e luz impossíveis. Ele deixou que o fogo caísse na ponta do barbante, e o pavio começou a espocar e fumegar.

— Ei! Quem está aí? O que é isso?

Enéas viu um téni surgir de uma arcada que dava para fora do coro; era o o’téni com quem ele falara mais cedo. Enéas abaixou-se rapidamente, embora estivesse estranhamente cansado por causa do feitiço, como se tivesse trabalhado duro o dia inteiro. Ele ouviu o chamado do téni e o eco de outros passos. — Quem é? O que está acontecendo? — disse alguém enquanto o fogo no pavio afastava-se rapidamente de Enéas na direção do atril. Quando a chama estava quase lá, ele ficou de pé e correu para a porta. Viu de relance o o’téni e alguns e’ténis, que se dirigiam rapidamente para o numetodo caído e imóvel, e alguém apontou para Enéas...

... mas já era tarde demais.

Um dragão rugiu e cuspiu fogo, e a concussão alcançou Enéas, jogando-o contra as portas de bronze. Meio inconsciente, ele caiu nas lajotas de pedra e foi fustigado por fragmentos de rocha e mármore. Quando passou a chuva rápida e dura, Enéas ergueu a cabeça. Havia algo vermelho no chão à sua frente: a perna do numetodo, ainda vestida com as calças largas, notou ele com um susto. Perto da entrada do templo, alguém gritava, um longo lamento entrecortado por xingamentos. Gemendo, Enéas tentou se sentar. Ele sangrava por vários cortes e arranhões, o corpo estava dolorido pela colisão com as portas de bronze, mas, tirando isso, havia sido poupado por Cénzi. As portas do templo estavam escancaradas diante dele, e um utilino entrou correndo e passou por Enéas enquanto apitava alto. Ténis entraram correndo das alcovas. O Alto Púlpito havia desmoronado, estava quebrado, caído na nave, e havia sangue e partes de corpos por todos os lados. O numetodo... ele viu a cabeça do homem e a parte de cima do torso, que foram arrancadas e jogadas na nave. O resto dele, onde esteve a bolsa de areia negra... Enéas não conseguiu ver o resto.

Por um momento, ele sentiu náusea: isso era muito parecido com a guerra, e as memórias do que viu nos Hellins ameaçaram sobrepujá-lo. Sentiu um gosto ácido na garganta e um embrulho no estômago, mas a Voz de Cénzi estava em sua cabeça também.

Isso é o que eles merecem, aqueles que Me desafiam. Você, Enéas, será meu moitidi da morte, a arma escolhida por Mim.

Mas eu não desejo isso, Enéas queria dizer, mas assim que pensou nas palavras, sentiu a fúria de Cénzi crescer, um calor no cérebro que fez a cabeça latejar, e ele caiu de joelhos com o crânio entre as mãos.

Tudo era uma confusão. Pessoas empurraram Enéas para passar. Ele ainda ouviu o téni ferido gritar. — ... numetodo... eu o reconheço... — Enéas ouviu a palavra em meio ao caos e sorriu. Quando mais pessoas entraram aos gritos vindas da praça, ele aproveitou a oportunidade para sair de mansinho pelo lado e entrar nas sombras.

Ele saiu para a noite e sentiu-se aquecido pela presença de Cénzi.

Você está apto para a tarefa que lhe dei. Agora, vá para Nessântico, e falarei com você lá...

 

Audric ca’Dakwi

O CONSELHO DOS CA’ DE NESSÂNTICO reunia-se no primeiro andar do Grande Palácio na Ilha A’Kralji, onde os conselheiros tinham vários aposentos e um pequeno contingente de criados do palácio dedicados inteiramente às suas necessidades. O Conselho dos Ca’, durante a maior parte do reinado da kraljica Marguerite, bem como de seu filho, o kraljiki Justi, foi basicamente uma organização social, que vinha ao palácio para assinar documentos entregues a eles pelo kralji e pelo corpo de funcionários do palácio — uma tarefa que eles executavam com pouca reflexão ou discussão, de resto, passavam o tempo relaxando em seus suntuosos gabinetes privativos ou socializando nas salas de jantar e estar bem equipadas da seção do Conselho no Palácio do Kralji. Por muitas décadas, ser um “conselheiro” era, em grande parte, um posto honorário, com deveres cerimoniais e longe de serem muito exigentes, e a retribuição por servir no Conselho era generosa.

Mas com o falecimento do kraljiki Justi, e com Audric sendo menor de idade ao ascender ao Trono do Sol, o Conselho teve que assumir um papel mais ativo no governo. Foi o Conselho dos Ca’ que nomeou Sergei ca’Rudka como regente; era o Conselho que agora criava e aprovava novas legislações (até bem recentemente, com a contribuição do regente também); era o Conselho que controlava o bolso de Nessântico; era o Conselho que o regente tinha a obrigação de consultar em qualquer questão política dentro dos Domínios ou qualquer decisão diplomática que envolvesse a Coalizão, os Hellins ou quaisquer outros países dentro dos Domínios.

O Conselho foi obrigado a acordar do longo e tranquilo sono, e em grande parte acordou. A última eleição para o Conselho, há quatro anos, foi agressiva e implacável; quatro dos sete integrantes foram depostos e substituí-dos por ca’ bem mais ambiciosos.

Audric conhecia a história do Conselho; Sergei reclamava sem parar a respeito dos conselheiros, e o mestre ci’Blaylock falava a mesma coisa nas aulas. Agora sua mamatarh deu os mesmos avisos.

— Você precisa tomar cuidado, Audric. Lembre-se de que cada um dos conselheiros quer estar no seu lugar. Eles querem o anel e o cajado; querem se sentar no Trono do Sol. Os conselheiros têm inveja de você, e é preciso convencê-los de que, ao darem o que você quer, eles estarão mais próximos de seus próprios objetivos.

A mamatarh Marguerite olhava fixamente para ele enquanto Audric percorria o corredor até o salão do Trono do Sol, onde era aguardado pelo Conselho. As rodas do cavalete onde o quadro ficava apoiado estavam silenciosas hoje; ele insistiu que fossem lubrificadas por Marlon com gordura de pato antes da reunião. Os criados empurraram o cavalete pelo corredor interno do palácio na frente de Audric, com cuidado, para acompanhar seu ritmo lento e vacilante, enquanto Marlon e Seaton apoiavam o kraljiki de ambos os lados. Ele teve um péssimo dia; era um dia nublado e frio, e Audric permitiu-se tossir mesmo enquanto ouvia a voz da mamatarh confortá-lo.

— Você pode se permitir tossir, desta vez — disse ela. — Dessa vez, sua fraqueza será sua força. Mas, depois de hoje, você tem que ser mais forte. Você será mais forte.

— Eu serei, mamatarh. Serei forte depois de hoje, e a doença irá embora. — Pelo rabo do olho, Audric notou que Marlon olhava estranhamente para ele, embora o homem não dissesse nada.

Seaton gesticulou para os criados do corredor, que abriram a porta do salão e fizeram uma mesura quando Audric e sua mamatarh entraram. Lá dentro, os integrantes do Conselho levantaram-se das cadeiras diante do Trono do Sol e também fizeram uma mesura, embora a saudação tenha sido apenas uma leve inclinação de cabeças. Audric notou os olhos de Sigourney ca’Ludovici quando ela abaixou a cabeça, embora a conselheira parecesse olhar mais para o quadro de Marguerite do que para o kraljiki. Ele dirigiu-se ao Trono do Sol, foi ajudado por Marlon a subir os três degraus da plataforma, e deixou-se cair no assento estofado. Audric tossiu então — não conseguiu impedir o ataque —, no momento em que a luz brilhou nas profundezas do cristal e banhou o kraljiki de amarelo: como o Trono do Sol fazia há longas gerações sempre que um kralji se sentava ali. Audric limpou a boca na manga da bashta de seda enquanto o Conselho permanecia de pé diante dele, e Seaton empurrou o cavalete para o lado direito do trono, de maneira que Marguerite encarasse com ódio os sete ca’.

— Olhe para eles — falou a kraljica para Audric. — Veja como olham com fome o Trono do Sol. Todos imaginam como conseguirão se sentar onde você está. Comece por ser firme com eles, Audric. Mostre que você está no comando desta reunião, não os conselheiros. Então... então faça o que tem que fazer.

— Eu farei — disse Audric para Marguerite. Os ca’ já começavam a se sentar, e ele ergueu a voz para se dirigir aos conselheiros. — Não há necessidade de se sentar. Nosso assunto aqui deve tomar apenas alguns grãos de areia da ampulheta.

Interrompidos no meio do movimento, os ca’ endireitaram-se em meio a um farfalhar de bashtas e tashtas e lançaram olhares na direção de Audric que oscilavam do questionamento à quase raiva. — Perdoe-me, kraljiki — falou Sigourney ca’Ludovici —, mas as coisas podem não ser tão simples quanto o senhor imagina.

— Mas elas são simples, vajica ca’Ludovici — disse Audric. — O traidor ca’Rudka está na Bastida; o Conselho teve o tempo que a senhora pediu para que os conselheiros consultassem entre si e deliberassem. Os senhores nomearão outro regente ou permitirão que eu reine como kraljiki como deveria? Essas são as duas únicas opções diante dos senhores, que já deveriam ter tomado uma decisão. — A longa fala exigiu esforço, como ele sabia que exigiria. Ele tossiu e dobrou o corpo enquanto a mamatarh ria baixinho em sua cabeça, cobriu a boca com um lenço que rapidamente ficou sujo com manchas vermelhas. Audric amassou o pano de linho na mão, mas não tanto a ponto de eles não conseguirem ver o sangue.

Audric abriu os olhos e viu ca’Ludovici olhando fixamente para sua mão. A conselheira ergueu o olhar abruptamente e sorriu como um gato espiando um rato encurralado, depois olhou uma vez para os demais integrantes do conselho, atrás dela. — Talvez o senhor esteja certo, kraljiki. Afinal de contas, o dia está úmido e nós não deveríamos mantê-lo longe do conforto de seus aposentos.

A vajica ca’Ludovici tomou fôlego, e Audric ouviu Marguerite sussurrar para ele naquele espaço de tempo. — Agora. Diga para a conselheira o que ela quer escutar.

— Eu estou mais forte agora do que estive há anos — falou Audric, mas ele forçou uma tosse e uma pausa, como se tomasse fôlego entre as palavras. Não foi preciso muito encenação. — Mas também estou ciente da minha juventude e inexperiência, e contaria com a orientação do Conselho dos Ca’, e talvez especialmente da senhora, conselheira ca’Ludovici, como minha mentora.

Ela fez uma mesura ao ouvir isso, e era impossível não notar a satisfação no rosto de ca’Ludovici. — O senhor realmente é sábio para a idade que tem, kraljiki, o que significa que é um prazer lhe informar que todos nós deliberamos e chegamos a um acordo. Kraljiki Audric, apesar de sua idade, o Conselho dos Ca’ não nomeará um novo regente.

Ele ouviu a mamatarh rir ao ouvir a notícia, exultante, e o próprio Audric quase riu também, só não o fez porque o riso traria a tosse novamente. O kraljiki contentou-se com um gesto silencioso de agradecimento para os conselheiros. Tão fáceis de manipular. Tão previsíveis. Ele não sabia de quem era o pensamento: seu ou de Marguerite.

— Eu gostaria de agradecer ao Conselho por seus esforços. E vemos uma nova era para Nessântico, uma era em que recuperaremos tudo que perdemos e superaremos até mesmo os sonhos da kraljica Marguerite. — Audric teve que fazer uma pausa para respirar e limpar os pulmões de novo. Marlon esticou a mão para o trono a fim de entregar um novo lenço e levar embora o molhado e manchado. — Quanto ao antigo regente ca’Rudka, acho que está na hora de ele confessar seus pecados, fazer as pazes com Cénzi e pagar pelos erros de sua vida.

A vajica ca’Ludovici fez uma mesura mais uma vez, mas não antes de Audric ver mais uma vez a satisfação na expressão do rosto. Sim, ela encara ca’Rudka como um rival perigoso enquanto permanecer vivo... — Será feito como o kraljiki deseja — disse Sigourney. — Eu cuidarei disso pessoalmente.

 

Karl ca’Vliomani

A NOTÍCIA ESPALHOU-SE RAPIDAMENTE pela cidade, e como embaixador de Paeti, Karl esteve entre os primeiros a ouvi-la: o Conselho dos Ca’ declarou que o kraljiki atingiu a maioridade e que a regência de ca’Rudka chegou ao fim. Karl ouviu a notícia com um desespero desanimador, pois sabia o que ela prenunciava, e imediatamente chamou uma carruagem e mandou que o condutor cruzasse correndo a Pontica Kralji para o Velho Distrito.

Ele torceu para que já não fosse tarde demais. Se Karl fosse um homem religioso, teria rezado. De certo modo, ele tocou a concha no cordão em volta do pescoço como se fosse um talismã, como se a concha pudesse afastar as nuvens tempestuosas que Karl via em seu futuro.

Considerando que Audric conseguisse sobreviver, o menino seria agora um joguete de Sigourney ca’Ludovici e do Conselho dos Ca’. Ana e Sergei foram os escudos dos numetodos contra os elementos conservadores dentro da fé concénziana e da sociedade. Foram apenas os dois que permitiram o crescimento dos numetodos. Agora, rápido demais, os dois se foram.

Haverá corpos de numetodos pendurados para exibição nas Ponticas novamente. Karl viu os cadáveres em sua mente e o próprio rosto em um deles. Torceu para que a visão fosse causada apenas pelo medo, e não por algum presságio.

Não existem deuses. Não existem presságios. O pensamento racional não acalmou sua mente. Ele não se sentia racional; sentia medo.

Mika e Varina concordaram em se encontrar com ele na taverna de sempre no Velho Distrito. Mesmo lá, onde os frequentadores o conheciam e o cumprimentavam pelo nome, Karl imaginou que receberia olhares tortos de quem estivesse nos compartimentos e às mesas. Ele não sabia mais com quem poderia contar, a não ser com os dois. Varina sentou-se ao lado de Karl no compartimento do canto, seu corpo era uma fonte de calor providencial, e Mika ficou do outro lado da mesa.

Amigos. Karl esperava que eles continuassem sendo amigos, depois disso. — Você é o a’morce dos numetodos aqui — disse o embaixador para Mika em uma voz urgente e baixa, para que não fosse ouvido pelos frequentadores do bar. O músico no canto, que tocava um alaúde de cinco cordas e cantava baladas que já eram velhas quando sua mamatarh as ensinou para ele, ajudou a abafar a conversa. — Não peço que se envolvam, mas fiz uma promessa a ca’Rudka que pretendo cumprir. Preciso avisá-los para que... façam preparativos.

Mika deu de ombros, embora sua expressão cansada tenha deixado claro para Karl que ele estava mais preocupado do que admitiria. Mika pegou a cerveja em frente a ele e deu um grande gole, depois limpou a espuma das pontas do bigode. — Se Audric ou o Conselho estão dispostos a matar ca’Rudka, então se voltarão para os numetodos a seguir como bodes expiatórios adicionais, caso você faça ou não alguma coisa, Karl. A culpa de tudo sempre cairá sobre nós, como sempre cai.

— Você tem família aqui. Eu sei. Sinto muito.

— Sali já passou por isso antes — falou Mika. — Ela entenderá. Vou mandá-la com as crianças para sua família em Il Trebbio.

— E quanto ao menino, Nico? — perguntou Varina. — O que fazemos com ele?

— Vocês não ouviram nada de Talis ou da matarh dele? — indagou Karl, e Varina negou com a cabeça. — Então permaneça com o menino por enquanto, se quiser. Se a situação ficar muito perigosa, deixe Nico ir embora. Não tenho interesse que ele se machuque só por estar associado a nós. — Karl soltou um longo suspiro. A própria cerveja permanecia intocada sobre a mesa, e ele olhou fixamente para as bolhas que espumavam na caneca de madeira. Milhares de bolhas, todas surgem ao mesmo tempo, depois estouram e somem. Como eu. Como todos nós. Somem rápido demais e não sobra nada depois. Nada...

— Eu irei com você hoje à noite, Karl, depois que despachar Sali e as crianças — disse Mika. — Você precisará de ajuda com isso.

Karl balançou a cabeça. — Não será necessário.

— Se ca’Rudka for retirado da Bastida por magia, então todos nós sabemos quem será o culpado e quem será caçado — falou Mika. — Pelo menos uma vez, eles terão razão em culpar os numetodos, não é? Mas a reação que que se desencadeará não mudará caso você vá sozinho ou com uma dezena de nós, ou caso seja bem-sucedido ou fracasse: só a tentativa já será suficiente.

— Eu não arriscarei a vida de uma dezena de nós; levarei dois — respondeu Karl. — Eu e mais outro.

Mika deu um sorriso irônico. — Então é melhor eu garantir que você consiga. Enquanto ca’Rudka permanecer vivo, há uma chance de que ele consiga voltar ao poder, o que seria melhor para nós.

— Eu sou mais forte do que qualquer um de vocês com o Scáth Cumhacht — interrompeu Varina. — Eu vou com vocês também.

Com esta declaração, o nó no estômago de Karl ficou mais apertado. Ele imaginou Varina morta, ou pior, capturada. Karl fez uma careta e balançou a cabeça diante da dor dessa ideia. — Não há necessidade. Você tem que tomar conta de Nico.

Ela franziu os lábios e tamborilou na mesa do compartimento. — Mika — falou Varina —, acho que precisamos de mais uma rodada aqui. Importa-se de ir pegar?

Mika pestanejou, confuso. — É só chamar Mara e... — Ele fez uma pausa e arregalou um pouco os olhos. — Ah. — Mika franziu os lábios. — Certamente. Vou pegar.

Ele mal havia deixado o compartimento quando Varina virou-se no banco para encarar Karl. A voz era baixa e ameaçadora. — Karl, eu passei anos, anos, realizando pesquisas e experiências para expandir o catálogo de fórmulas mágicas que agora nós usamos regularmente. Eu me dediquei a entender a magia ocidental, como ela funciona e como podemos dominar seus costumes. Eu abri mão... — Varina parou e mordeu o lábio inferior momentaneamente. — Eu abri mão da vida que poderia ter levado em nome dos numetodos e de uma causa que achei que compartilhávamos. E agora você vai me relegar ao papel de babá? Se fizer isso, Karl, você estará dizendo que desperdicei todo aquele tempo, todo aquele esforço e todos aqueles anos. É o que está me dizendo? É isso?

A acusação de Varina cortou Karl como uma adaga afiada. Ele levantou as mãos da mesa como se estivesse magoado. — Você não entende... — Karl começou a dizer.

— O que eu não entendo? — disparou ela de volta. — Que você acha que eu não tenho utilidade alguma para você? Que eu... não me importo com você o suficiente para querer ajudar?

— Não. — Karl balançou a cabeça incontrolavelmente. — Varina, nossas chances não são boas aqui.

— E são melhores sem mim?

Karl suspirou. — Não, não foi isso o que eu disse. Eu não quero que você se machuque.

— Mas está disposto a deixar Mika se arriscar? Por que, Karl? Por que ele é tão diferente de mim? Por quê? — As perguntas foram marteladas, e Karl pensou que houvesse uma estranha urgência nas questões, como se existisse uma resposta que Varina quisesse que ele desse.

Mas Karl não tinha respostas. Ele abaixou a cabeça, encarou a caneca, as bolhas sumiam na borda, a água no fundo manchava a madeira. — Se quiser ir comigo, Varina, então eu ficarei contente com a sua ajuda. — Karl ergueu a cabeça. Ela encarava o embaixador com uma resistência frágil. — Obrigada.

Varina abriu um pouco a boca, como se fosse dizer mais alguma coisa, mas simplesmente concordou com a cabeça.

Mika voltou com mais cerveja e pousou as canecas no centro da mesa. — Tudo acertado?

— Sim — respondeu Karl. — Tudo acertado. Se isso for realmente o que vocês querem, então vamos terminar as cervejas para podermos ir aos nossos aposentos e preparar os feitiços que precisaremos hoje à noite. Mika, se você puder cuidar de espalhar a mensagem para que todos os numetodos saiam da cidade ou façam planos para ficar escondidos em um futuro próximo... — Ele finalmente pegou sua caneca, e Mika e Varina levantaram as próprias. Os três brindaram. — À sorte — falou Karl. — Vamos precisar dela.

Eles beberam as canecas simultaneamente.

 

Varina ci’Pallo

— VOCÊ PARECE TERRIVELMENTE CANSADA, Varina — disse Nico.

Ela estava mesmo. Estava exausta, tão cansada que os ossos doíam. A tarde tinha sido gasta na preparação dos feitiços, com a moldagem do Scáth Cumhacht até que o feitiço estivesse completo, depois vieram a colocação da palavra de ativação e o gestual para soltá-lo na mente. A exaustão da feitiçaria consumiu Varina — era pior agora do que quando ela era jovem, pior desde que começou a experimentar o método tehuantino. Ela tinha ido ao quartinho onde Nico era mantido a fim de buscá-lo para o jantar e ver como o menino estava.

— Eu ficarei bem em algumas viradas da ampulheta — falou Varina para Nico. — Eu só tenho que dormir um pouco para me recuperar.

— Talis também sempre ficava cansado quando fazia as coisas mágicas, especialmente com aquela tigela. Eu achava que aquilo fazia Talis parecer velho também. Como a senhora.

A honestidade brutal de uma criança. Varina tocou no cabelo cada vez mais grisalho, nas rugas profundas que surgiram no rosto nos últimos anos, e disse — Nós pagamos pela magia desta maneira. Não se consegue nada nesse mundo sem um preço. Você aprenderá isso. — Ela deu um sorriso irônico. — Desculpe. Isso parece algo que uma matarh diria.

Nico sorriu: hesitante, quase tímido. — A matarh fala assim comigo às vezes, como se estivesse falando mais com ela mesma do que comigo. Vou tentar me lembrar disso, porém.

Varina riu. Ela sentou-se na cadeira ao lado da cama do menino e inclinou-se para frente a fim de mexer no cabelo de Nico. Ele franziu a testa e recuou um pouco na cama. — Nico — disse Varina ao recolher a mão —, eu tenho que falar com você. Coisas estão acontecendo lá fora. Coisas ruins. Depois que eu descansar um pouco, terei que sair para fazer algo e, quando voltar, teremos que sair da cidade muito depressa.

— Como eu tive que sair com a matarh? — Ele recolheu ao peito as pernas dobradas quando se sentou na cama e as abraçou. Nico olhou sobre os joelhos para Varina.

— Sim, da mesma forma.

— A senhora está em apuros?

Varina teve que sorrir ao ouvir isso. — Estou prestes a estar.

Ele torceu o nariz. — É por causa daquele homem?

— Karl, você quer dizer? Pode-se dizer que sim.

Nico soltou as pernas e olhou para a comida na bandeja, mas não tocou nela. — A senhora e Karl estão...?

Varina entendeu a pergunta sem palavras. — Não. Por que você achou isso?

— A senhora age como se fossem. Quando vocês dois conversam, parecem minha matarh e Talis.

— Bem, nós não estamos... juntos. Não desta forma.

— Ele gosta da senhora, dá para dizer.

Isso fez Varina sorrir, mas o gosto foi amargo. — Ah, dá para dizer, é? Quando você passou a saber tanto sobre os costumes dos adultos?

Nico deu de ombros e repetiu — Dá para dizer.

— Não vamos falar sobre isso — disse Varina, embora quisesse. Ela perguntou-se o que Karl diria para Nico se o menino tivesse dito a mesma coisa. — Eu preciso que você coma e durma um pouco porque é bem provável que nós tenhamos que sair da cidade hoje à noite. Você precisa estar pronto para isso.

— A senhora vai me levar para a minha matarh?

— Quisera eu, Nico. De verdade. Mas eu ainda não sei para onde iremos. Vou levá-lo a um lugar seguro. Isto eu prometo. Não deixarei nada de mal acontecer com você, e tentaremos devolvê-lo para sua matarh. Entendeu?

Ele concordou com a cabeça.

— Ótimo. Então coma o jantar e tente dormir. Eu mesma vou descansar no quarto ao lado. Se precisar de mim, pode me chamar. Vá agora, prove a sopa antes que ela esfrie.

Varina observou o menino comer por alguns grãos da ampulheta até sentir as pálpebras pesadas. Quando acordou, descobriu que tinha caído no sono na cadeira ao lado da cama, e Nico também dormia, encolhido perto dela com um braço esticado para tocar sua perna. Lá fora, ouviu o ritmo da chuva no telhado e nas persianas da casa.

Varina cobrou Nico e encostou os lábios em sua bochecha. Depois deixou o menino, fechou e trancou a porta ao sair.

Ela torceu para que o visse novamente.

 

A Pedra Branca

NESSÂNTICO...

Ela nunca tinha visto a cidade antes, embora obviamente tivesse ouvido falar muito a seu respeito. Mesmo com os Domínios divididos, mesmo com o antigo kraljiki tendo sido uma pálida imagem de sua famosa matarh, e mesmo com o atual kraljiki sendo um menino frágil que, diziam os rumores, não viveria para chegar à maioridade, Nessântico mantinha o encanto.

A Pedra Branca sempre soube que viria aqui com o tempo, como qualquer pessoa com ambição deveria. A atração da cidade era irresistível, e para alguém de seu ramo de negócios, Nessântico era um campo rico e fértil a ser explorado. Mas ela não esperava vir aqui tão rapidamente ou por estes motivos.

Após o assassinato às pressas e quase malfeito do hïrzg, a Pedra Branca considerou que era perigoso demais ficar na Coalizão. Ela voltou a assumir o papel da mendiga Elzbet, escondeu-se entre os pobres que tão frequentemente eram invisíveis aos ca’ e co’, e foi de Brezno a Montbataille nas montanhas orientais que formavam a fronteira de Nessântico com Firenzcia, depois desceu o rio A’Sele até a grande cidade em si.

Enquanto interpretava o papel, a Pedra Branca instalou-se no Velho Distrito. Esta era a melhor maneira de evitar chamar atenção. Ela era apenas mais um dos pobres anônimos que perambulavam pelas ruas da maior cidade do mundo conhecido, e ninguém iria notar ou se importar muito se ela conversasse com as vozes em sua cabeça enquanto andava. Ela era apenas outra alma louca, uma mulher maluca que balbuciava e murmurava para si mesma, que percorria algum mundo interior em conflito com a realidade à volta dela.

— Você pagará por isso. Não pode me matar e não pagar. Eles encontrarão você. Eles virão ao seu encalço e matarão você.

— Quem? — perguntou ela para a voz estridente de Fynn enquanto os demais dentro da Pedra Branca riam e debochavam dele. Ela levou a mão à tashta, apalpou sob o pano a pequena bolsinha amarrada ao pescoço e, por dentro, a pedra clara que sempre mantinha consigo. — Quem virá me encontrar? Eu contei quem me contratou. Será que ela irá procurar por mim?

— Você está preocupada que outra pessoa descubra. Está preocupada que se espalhe a notícia de que a Pedra Branca também era a mulher que era amante de Jan ca’Vörl. Eles viram seu rosto; eles reconheceriam você, e o rosto da Pedra Branca não pode ser conhecido.

— Cale a boca! — ela quase gritou com Fynn, e o guincho fez cabeças se voltarem para ela. Um utilino de passagem parou no meio da ronda e virou a lanterna de luz mágica em sua direção. Ela protegeu os olhos da luz, curvou o corpo e arreganhou os dentes para o homem, no que torceu que parecesse ser um olhar de louca. O utilino fez um som de nojo e afastou a luz dela; as outras pessoas já tinham virado o rosto e dado as costas para cuidar de suas próprias vidas.

As vozes das vítimas gargalhavam e riam quando ela virou a esquina para entrar no centro do Velho Distrito. As famosas lâmpadas mágicas de Nessântico reluziam e brilhavam nos postes de ferro dispostos em volta da praça aberta. Ela olhou as placas das lojas ao longo da rua. Aqui, na grande praça, as lojas ainda estavam abertas, embora a maioria dos estabelecimentos nas transversais estivesse trancada desde que escureceu totalmente: os ténis podiam acender as lâmpadas do centro do Velho Distrito, mas não iam às ruas antigas e estreitas que afluíam do centro. Eles iluminavam o anel da Avi a’Parete pela cidade inteira, de maneira que Nessântico parecia usar um colar de esplendor amarelo, e as ruas largas da margem sul onde a maioria dos ca’ e co’ morava, mas o Velho Distrito era abandonado à noite.

A lua escondeu-se atrás de uma nuvem, e uma garoa ameaçava virar uma chuva intensa. Ela correu na direção do centro, pois sabia que o tempo mandaria todo mundo para casa e faria os comerciantes fecharem as lojas.

Ali: ela viu o almofariz e o pilão de um boticário mais à frente e arrastou os pés na direção da loja, através da multidão que rapidamente ficava menor. Manteve a cabeça baixa e as costas perto dos tijolos e das pedras dos prédios. Em um momento, um homem que passava tocou seu braço: um velho de barba grisalha, que deu um sorriso malicioso com uma boca banguela e um bafo que cheirava a cerveja e queijo. — Eu tenho dinheiro — disse ele sem preâmbulos, com o rosto molhado de chuva. — Venha comigo.

— Puta! — gritaram as vozes alegremente em deboche. — Por que não? Você aceita pagamento por outros serviços.

A Pedra Branca olhou com raiva para o homem e mostrou o cabo da faca na cintura. — Eu não sou uma puta — disse ela para o sujeito, e para as vozes. A mão agarrou a faca, e gotas de chuva caíram do manto com o movimento. — Afaste-se.

O homem sem dentes riu e espalmou as mãos. — Como quiser, vajica. Sem problemas, hein? — Então ele desviou o olhar e se afastou, os pés chapinharam nas poças. Ela observou o homem ir embora.

A Pedra Branca poderia se livrar dele, mas não dos demais. Os outros estavam sempre com ela.

Ela chegou ao boticário e olhou o interior através das persianas abertas. Não havia ninguém lá dentro, a não ser o proprietário parcialmente careca. Ela entrou, e quando o sino da porta retiniu de forma estridente, o homem ergueu os olhos dos jarros e frascos atrás do balcão.

— Boa noite. Que tempo horrível, eu já estava prestes a fechar. Como posso ajudar, vajica? — As palavras eram agradáveis, mas o tom e o olhar eram menos convidativos. O boticário parecia dividido entre sair detrás do balcão ou retornar aos preparativos interrompidos para fechar. — Uma poção para dores de cabeça? Algo para aliviar uma tosse?

A Pedra Branca teria sido firme, teria sido decidida, mas ela não era a Pedra Branca agora, era apenas uma jovem de aparência comum, sem status, que pingava no chão, uma pessoa que podia ser confundida com uma prostituta comum que andava pelas ruas ou tentava escapar do tempo por um momento.

É isso o que você realmente quer? Não tinha certeza sobre quem fez a pergunta ou se tinha sido ela mesma quem indagou. As vozes ficaram quietas enquanto ela esteve com Jan. De alguma forma, ficar com ele acalmou a confusão dentro de sua mente, e isso ao menos tinha sido parte da atração que ela sentiu por ele, tinha sido o motivo pelo o qual ela se deixou envolver mais do que deveria. Com Jan, naquele pouco tempo, ela se sentiu cicatrizando. Pensou que talvez fosse capaz de se tornar alguém além da Pedra Branca, que pudesse se tornar normal. Jan... Ela se perguntou o que ele estaria pensando agora, se achava que foi feito de bobo ou se sentia arrependimento ao pensar nela. Perguntou-se se Jan sabia quem ela era, que matara seu onczio, ou se pensava que ela fugira apenas porque fingira ser alguém que não era e fora descoberta.

— Vajica?

Ela se perguntou se Jan algum dia saberia como ela se arrependia de tudo.

A Pedra Branca tocou o estômago com delicadeza novamente, como fazia cada vez mais recentemente. Deveria ter ocorrido o sangramento mensal antes mesmo de ter matado Fynn ca’Vörl. Ela pensou que talvez o estresse o tivesse atrasado alguns dias. Mas o sangramento não veio depois da fuga; ainda não tinha ocorrido durante os dias que passou em Nessântico, e agora havia uma estranha náusea quando acordava e sensações estranhas dentro dela.

Isso é tudo o que você terá dele. Quer realmente fazer isso?

Podia ter sido sua própria voz. Podia ter sido a voz de todos eles.

— Vajica? Eu não tenho a noite toda. A chuva...

Ela balançou a cabeça e pestanejou. — Desculpe, eu... — A mão tocou o abdômen outra vez.

O boticário olhou fixamente para a mulher e para o movimento da mão na barriga. Ele empinou e abaixou o queixo, passou a mão na careca como se ajeitasse um cabelo invisível. — Eu acho que tenho o que você quer, vajica — disse o homem, com um tom mais gentil agora. — As moças da sua idade, às vezes, vêm até mim, e, como você, não sabem exatamente o que dizer. Eu tenho uma poção que trará o sangramento. É o que você precisa, não é? Mas devo dizer que não é uma poção fácil de fazer, e, portanto, não é barata.

Ela encarou o homem. Prestou atenção. Colocou a mão na gola da tashta molhada e apalpou a pedra na bolsinha de couro.

As vozes estavam caladas.

Caladas.

— Não. — A Pedra Branca recuou e ouviu o sino da porta quando o calcanhar bateu nela. — Não, não quero sua poção. Não quero.

Ela então deu meia-volta e fugiu para a praça e para o ataque violento da chuva, as luzes mágicas brilhavam à sua volta e refletiam nas ruas molhadas.

Foi quando a Pedra Branca ouviu as trompas darem um alarme por toda a cidade.


??? EVASÕES ???

Karl ca’Vliomani

Niente

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Niente

Sergei ca’Rudka

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Audric ca’Dakwi

A Pedra Branca


Karl ca’Vliomani

O PLANO ERA BEM SIMPLES — tinha que ser. Karl não tinha um exército para atacar a Bastida. Não tinha compatriotas entre os gardai para abrir os portões ou deixá-los desguarnecidos ou para dar cópias das chaves das masmorras. Não tinha a poderosa magia selvagem de Mahri quando este o tirou da Bastida, para simplesmente levar Sergei embora.

Karl tinha a si mesmo. Tinha Varina e Mika. Tinha o que o próprio Sergei lhe contou.

Ele tinha o mau tempo.

A Bastida foi originalmente projetada como um fortaleza, para proteger o A’Sele de invasores que viessem do alto do rio; mais tarde ela foi convertida em prisão. Uma parte de seu legado ainda existia, e ninguém conhecia todos os caminhos secretos, embora poucos a conhecessem melhor do que Sergei ca’Rudka, que passou muito tempo no comando do conjunto irregular e úmido de pedras negras.

O trio pegou emprestado um pequeno bote ancorado a leste da Pontica a’Brezi Nippoli. Eles entraram na embarcação a poucas viradas da ampulheta depois de ter anoitecido completamente, quando a lua e as estrelas ficaram perdidas atrás dos baluartes dos arranha-céus e uma leve chuva começou a cair. — Eu diria graças aos deuses, se acreditasse neles. — Mika deu um sorriso irônico para Karl ao ajudar Varina, e depois o embaixador, a entrar. Com água até o joelho no rio, ele empurrou e afastou o bote da margem. — Vejo vocês dois mais tarde — disse Mika.

Karl torceu para que ele estivesse certo. Ouviu Mika sair do rio chapinhando e correr na direção das casas ao longo da margem sul.

Karl e Varina não usaram os remos por medo de que as pancadas na água alertassem um dos utilinos que faziam ronda ou um transeunte curioso acima deles. Em vez disso, os dois deixaram que a lenta correnteza do A’Sele levasse o bote rio abaixo. Eles estavam vestidos com roupas escuras, os rostos foram encobertos por fuligem e cinzas, embora a chuva tenha limpado rapidamente. Assim que passaram pela Pontica a’Brezi Veste e pelas torres sinistras e melancólicas das torres da Bastida, os dois vislumbraram a luz agitada de vela no alto da torre onde ca’Rudka estava preso — o sinal de que ele ainda estava lá.

Karl conduziu o bote em silêncio até a margem. Ele e Varina saíram e pisaram na lama úmida, ignoraram o cheiro de peixe morto e de água podre e entraram rapidamente nas sombras da Bastida.

Karl encontrou a porta onde Sergei disse que ela estaria: no ponto em que a barragem de terra coberta por grama da margem do rio encontrava os flancos da torre ocidental da Bastida. A barragem foi construída por ordens da kraljica Maria IV, há um século e meio, para evitar que as enchentes do A’Sele, que ocorriam anualmente na primavera, inundassem a margem sul. A porta estava coberta por terra e grama, onde a barragem subia sobre a base de pedra da Bastida, mas a cobertura era fina e as mãos de Karl rapidamente encontraram o anel de ferro debaixo da terra. Ele puxou com cuidado. A porta cedeu de má vontade, a terra empapada de chuva caiu, mas o som das dobradiças rabugentas foi em grande parte abafado pelo barulho da chuva no rio. Karl segurou a porta aberta para Varina entrar, depois ele mesmo entrou e deixou que a porta se fechasse.

O embaixador ouviu Varina falar uma palavra mágica e luz surgiu na lanterna encoberta que os dois trouxeram: a luminosidade amarela e fria do Scáth Cumhacht. O brilho parecia reluzir com uma intensidade impossível na escuridão. Karl viu as pedras lisas de limo e as lajotas quebradas do piso, as paredes infestadas com estranhas colônias de fungos e decoradas com cortinas esfarrapadas de teias de aranha. As silhuetas marrons e sinistras de ratos fugiam da luz e guinchavam em protesto.

— Que lindo — murmurou Varina, e o sussurro pareceu ecoar com um volume impossivelmente alto. Ela chutou um rato que se aproximara demais do pé, e o animal guinchou com raiva antes de fugir.

— Melhor ratos do que gardai — falou Karl. — Venha. Sergei disse que este caminho deve levar à base da torre principal. Mantenha a lanterna bem encoberta, só para garantir.

A caminhada pelo corredor abandonado pareceu levar cerca de meia virada da ampulheta, embora Karl soubesse que não poderia ter levado mais do que algumas centenas de passos. O ar estava gelado, e ele tremia sob a roupa molhada. Os dois chegaram à outra porta, obviamente fechada há muito tempo, e Karl levou um dedo aos lábios: depois daquele ponto, dissera Sergei, eles estariam nos níveis mais baixos da Bastida, onde poderia haver gardai ou prisioneiros trancados em celas meio esquecidas. Varina tirou uma jarra de banha de cozinha da tashta, abriu e besuntou a substância nojenta nas dobradiças da porta e nas bordas. Depois afastou-se e testou puxar a maçaneta, mas a porta não se mexeu. Ela puxou com mais força. Nada. Apoiou o pé na parede. A porta estremeceu uma vez no batente, mas, tirando isso, não houve resposta. Trancada — Varina falou sem emitir som.

Ela espiou pelo buraco da fechadura com o olho direito. Balançou a cabeça, depois se acocorou ao lado do batente. Falou uma única palavra mágica e gesticulou ao mesmo tempo: a madeira estremeceu e virou serragem em volta do buraco da fechadura, o trabalho de milhares de cupins feito em um instante, o mecanismo de metal caiu no novo buraco irregular com um baque surdo. Varina pegou o ferrolho e o soltou devagar e com cuidado, depois puxou a porta mais uma vez. Dessa vez, ela cedeu, relutante, porém silenciosa, e os dois entraram de mansinho em um pavimento gasto e úmido, mal iluminado por tochas presas em anéis dispostos em intervalos compridos ao longo das paredes — pelo menos um terço já havia se apagado e deixado um rastro de fuligem negra que manchava o teto baixo acima delas. O corredor fedia a óleo, fumaça e urina.

Karl fechou a porta outra vez após os dois entrarem e examinou-a rapidamente. Alguém que passasse por acaso talvez não notasse o buraco aberto por magia na penumbra; isso teria que ser suficiente. Em silêncio, ele apontou para a direita, e os dois começaram a seguir na ponta dos pés rapidamente pelo corredor.

Todas as passagens levarão à saída à esquerda. Conte duas e entre na terceira. Foi o que Sergei disse para Karl; agora ele observava cuidadosamente enquanto eles apressavam. Primeira abertura, da qual ouviram o som de alguém gritando: um choramingo longo, estridente e melancólico que não parecia humano — Karl sentiu Varina estremecer ao seu lado. Segunda abertura: uma passagem bem iluminada e o som ao longe de vozes rudes rindo de alguma piada e berrando.

Terceira abertura. Mais à frente, em um pequeno corredor, havia uma escada gasta em caracol, e eles ouviram vozes baixas e sons de um espaço habitado. A torre...

A mão de Varina pegou o braço de Karl; ela chegou perto, o calor do corpo foi providencial ao lado do embaixador. — Devemos esperar por Mika...

— Até onde sabemos, Mika já fez a parte dele ou já foi capturado. De um jeito ou de outro...

Ela soltou o braço de Karl e concordou com a cabeça. Ele e Varina entraram no corredor e começaram a subir, no maior silêncio possível. A escada, segundo Sergei contou, dava uma volta pelo perímetro de cada andar, com um pequeno patamar em cada um deles e uma porta que levava às celas. Haveria gardai a postos em cada andar, que mudavam na Terceira Chamada. Karl já conseguia enxergar o patamar do térreo. Ouviu duas pessoas falando — se eram dois gardai, ou talvez um garda e um dos prisioneiros, ele não sabia. Karl começava a subir a escada, encostado na parede de pedra...

... e foi então que eles sentiram a torre estremecer uma vez, junto com um rugido grave e um breve clarão de luz branca que banhou a superfície das pedras. Karl e Varina encostaram-se na parede quando vozes gritaram, assustadas. Eles ouviram a porta da torre ser aberta, sentiram o toque do ar da noite e o cheiro da chuva. — O que está acontecendo aqui, pelos seis abismos? — berrou uma voz para a noite lá fora. — Aquilo foi um raio?

A resposta foi ininteligível e longa. Karl e Varina ouviram a porta ser fechada, seguida pelo rangido de uma chave em uma fechadura. — Que agitação é essa, Dorcas? — chamou alguém.

— Alguém acabou de tentar entrar pelo portão principal. O desgraçado usou o Ilmodo e derrubou ambas as portas. Eles acham que pode ter sido um numetodo. O comandante mandou interditar a prisão; devo avisar aos demais. Ninguém entra e ninguém sai enquanto co’Falla investiga e chama alguns ténis do templo para cá. Entendeu?

Veio um resmungo como resposta, e Karl ouviu passos na escada, que sumiram rapidamente.

Ele acenou com a cabeça para Varina. Os dois prosseguiram.

Um triângulo de luz amarela brilhou nas pedras do patamar; ele viu uma sombra se mover na luz. Karl fechou os olhos momentaneamente, sentiu na cabeça a agitação dos feitiços que preparara previamente. Ele saiu do patamar com as mãos já em movimento, a palavra de ativação pronta nos lábios quando Varina passou pelo embaixador e subiu correndo os degraus, na direção do próximo patamar. — Ei, o que... — disse o garda, mas Karl já havia dito a palavra, e um raio refulgiu de sua mão e jogou o homem na parede atrás dele. O garda desmoronou, inconsciente, e Karl correu à frente. Ele começou a seguir Varina, mas foi chamado por vozes de um trio de celas ali. — Vajiki! E nós? As chaves, homem, as chaves... — Mãos foram esticadas pelas janelas com barras nas sólidas portas de carvalho.

Karl hesitou, e os chamados continuaram, mais insistentes. — Solte-nos, vajiki! Não pode nos deixar aqui!

Ele balançou a cabeça. Soltar os prisioneiros só complicaria as coisas, tornaria a situação mais caótica do que já estava e possivelmente mais perigosa: nem todos os prisioneiros na Bastida eram políticos, e nem todos eram inocentes.

Karl seguiu Varina escada acima ao som de xingamentos e gritos.

Varina já havia repetido o processo no segundo andar. — Estou quase exausta — disse ela, visivelmente arrasada contra a parede. — Só tenho mais um feitiço; conjurei os encantamentos às pressas como um téni.

Karl concordou com a cabeça; o embaixador sentia a mesma exaustão, e havia pouco poder sobrando dentro dele. — Eu pego o próximo. Precisamos ter o suficiente sobrando quando chegarmos ao regente.

Juntos, os dois foram para o terceiro nível tão rápido quanto puderam. A cela de Sergei, eles sabiam, ficava no quarto nível; mas quando se aproximaram do terceiro, Karl e Varina ouviram vozes. — O comandante pediu que levássemos o senhor até ele — o tal Dorcas dizia.

— Ele disse que viria em pessoa. — Karl ouviu Sergei protestar; a voz do homem parecia assustada.

— O comandante está um tanto quanto ocupado no momento.

— Soltem minhas mãos, pelo menos. Esta escada...

— Não. O comandante disse que o senhor deveria ficar algemado...

Karl viu uma bota aparecer na curva da escada quase à altura de sua cabeça. Sentiu o agito das últimas sobras do Scáth Cumhacht e falou a palavra de ativação ao se afastar da parede; logo abaixo, ele ouviu Varina fazer a mesma coisa. Dois raios foram disparados, e os gardai que seguravam ca’Rudka desmoronaram. Sergei tropeçou, caiu na escada e quase derrubou Karl. O segundo garda — Dorcas, presumiu Karl — permaneceu em pé, no entanto; sua espada saiu sibilando da bainha, e ele protegeu Varina, que agarrou o braço e recuou. Sergei chutou o joelho do homem, que gemeu e começou a cair; o regente chutou de novo, e Dorcas caiu de cabeça pela escada. Ele não se moveu novamente; a cabeça estava dobrada em um ângulo horrível.

— Eu não achei que você viesse — disse Sergei.

— Eu cumpro minhas promessas — falou Karl. — Agora, vamos sair daqui... Varina?

Ela balançou a cabeça. Karl notou o sangue jorrando entre os dedos enquanto Varina segurava o braço. O embaixador rasgou o própria roupa para fazer uma bandagem. — Eu vou atrasar vocês — disse ela. — Vão indo. Eu seguirei o mais rápido possível.

— Eu não vou deixar você aqui. — Karl amarrou com força o ferimento com faixas de pano. O rosto de Varina estava pálido, e havia mais sangue manchando a tashta do que Karl gostaria. — Não tenho mais nada sobrando do Scáth Cumhacht. E você?

Ela fez que não. Quando Karl amarrou com mais força as bandagens, Varina fez uma careta.

Sergei estava agachado ao lado do garda. Karl ouviu o ranger de aço contra aço e o retinir de chaves, ca’Rudka tirou as algemas da mão e jogou na escada. Ele retirou um florete de um dos gardai.

— Pegue a espada do outro garda — disse Varina para Karl. — Podemos precisar.

Karl assentiu e disse — Vamos. — Eles desceram correndo a escada, com Karl ajudando Varina. Ele sentiu o corpo ficando mole e pesado em seus braços, mais lento a cada lance de degraus. Os prisioneiros gritavam e berravam enquanto os três passavam, sacudiam as barras das celas, mas Karl os ignorou. Eles chegaram ao térreo e, mais devagar, começaram a longa curva para o subsolo. Karl começou a achar que conseguiriam. Eles estavam quase lá. Com Varina arrastando os pés atrás e Sergei à frente, os três desceram correndo a pequena passagem até o corredor principal. Dois cruzamentos, outra curva e mais um pequeno corredor, e eles estariam à porta que levaria ao antigo túnel desativado e ao bote à espera.

— Não desmaie, Varina — falou Karl ao olhar para ela. — Estamos quase lá.

Os três deram mais alguns passos até que um grupo de meia dúzia de gardai armados entrou no corredor vindo do cruzamento à frente. — Lá! É o regente! — berrou um garda, e o líder, com as faixas do posto no uniforme, virou-se. Karl conhecia o homem, embora o offizier olhasse mais para Sergei do que para ele.

— Sinto muito, Sergei — disse o comandante co’Falla, então seu olhar se voltou para Karl e Varina. — Embaixador, infelizmente o senhor e sua companheira cometeram um erro muito grave aqui. Cuidarei para que ela receba o tratamento adequado para a ferida. Sergei, abaixe sua arma. Acabou.

— Eu posso dizer o mesmo para você, Aris — falou Karl. — Afinal, todos vocês sabem o que um numetodo é capaz de fazer.

— Se o senhor tivesse algum feitiço sobrando, já teria usado — respondeu co’Falla. — Ou estou errado?

Houve movimento no corredor atrás dos gardai; uma figura na penumbra das tochas. Karl sorriu. Ele espalmou bem as mãos. Notou que alguns gardai atrás do comandante se encolheram, como se esperassem a explosão de um feitiço. — Não — disse ele. — Você não está errado. Não quanto a mim.

Co’Falla acenou com a cabeça e falou — Então eu sugiro que tornemos esta situação mais fácil para todos nós.

— Eu concordo — disse Karl. Ele olhou atrás de co’Falla e dos gardai, e o comandante começou a virar o rosto. O feitiço atingiu o grupo naquele momento: o ar em volta dos gardai reluziu e se contorceu com raios. Com gritos de dor e surpresa, eles desmoronaram no pavimento de pedra, com os raios ainda ondulando, estalando e se contorcendo sobre os corpos. Atrás deles, Mika estava com as mãos estendidas. O corpo esmoreceu quando as mãos caíram.

— Regente — falou ele. — É um prazer conhecer o senhor. Agora, queiram vocês se apressar...

Varina seguiu meio cambaleante à frente. Ela pegou a espada de co’Falla com a mão boa e colocou a ponta na garganta do comandante. Olhou para Karl e disse — Ele conhece você. — Havia uma mancha de sangue na bochecha, onde ela roçou a mão no rosto cansado e pálido. — Ele falou seu nome.

— Não. — A resposta veio de Sergei. Ele se moveu como se fosse pegar o pulso de Varina, mas ela balançou a cabeça e empurrou a espada, que furou a pele e fez aparecer um ponto vermelho. Sergei olhou para Karl. — Ele é meu amigo. Se fizerem isso, eu não irei com vocês. Ficarei aqui. Vocês terão acabado com tudo.

Varina olhou fixamente para Karl, à espera. O embaixador balançou a cabeça. Ela deu de ombros e deixou a espada cair com um baque alto no pavimento. Varina cambaleou, depois se equilibrou e disse — Estamos perdendo tempo, então.

Eles passaram pelos corpos caídos dos gardai e correram.

 

Niente

NECALLI ERA O TECUHTLI desde antes de Niente nascer. Ele sabia os nomes dos antigos tecuhtlis, mas apenas porque seu vatarh e matarh falaram a respeito deles. O nome de Necalli era sempre louvado nas cerimônias do solstício nos Templos do Sol; foi Necalli quem mandou o famoso Mahri para o leste após suas visões profetizarem a ascensão dos orientais dos Domínios. Foi Necalli quem respondeu ao pedido de ajuda dos primos após o comandante dos orientais ter começado represálias contra aqueles que viviam depois das montanhas costeiras. Foi Necalli quem criou Niente para se tornar o novo nahual acima de todos os demais feiticeiros, muitos dos quais eram mais velhos que Niente e sentiam inveja de sua rápida ascensão. Foi Necalli quem concordou em permitir que Niente usasse os encantamentos profundos do X’in Ka para capturar a mente do offizier dos Domínios e mandá-lo de volta para a grande cidade dos orientais como uma arma.

O feitiço custara mais a Niente do que ele havia esperado, debilitou seus músculos de tal forma que ele não conseguia ficar de pé por muito tempo sem precisar se sentar novamente. O esforço o consumiu tanto que o rosto no reflexo da água na tigela premonitória estava enrugado e cansado como o de uma pessoa muitos anos mais velha do que ele. Niente pagou o preço, como Mahri pagou muitas vezes em sua época, mas Niente odiaria ver aquele sacrifício desperdiçado.

Agora ele se perguntava para que serviu o sacrifício. — Ataque a cabeça da fera, e ela não poderá mais feri-lo — dissera Necalli. Era o que tinha mandado Mahri fazer, mas parecia que, ao contrário, a fera havia consumido Mahri. Niente tinha receio de que este pudesse ser seu destino também.

Mais importante, Necalli era o centro do mundo tehuantino na vida da maioria dos presentes ali. Niente não conseguia imaginar seu mundo sem o tecuhtli Necalli. Todos os guerreiros deviam morrer, e com o tecuhtli não era diferente. No entanto, Necalli sobreviveu aos desafios esporádicos ao seu reinado. Niente desejava que fosse capaz de imaginar Necalli sobrevivendo a este desafio também.

Mas ele tinha pouca esperança.

Niente estava no meio da multidão presente nos flancos da cavidade verdejante do vale Amalian, um dos locais sagrados de Sakal e Axat, localizado mais a leste. Suas costas estavam apoiadas em um dos alaques de pedra entalhada do campo de jogo e mantinha as mãos sobre a ponta do cajado mágico. Niente desceu o olhar para o pátio nas sombras. Lá embaixo, o tecuhtli Necalli estava de armadura, empunhando uma reluzente espada curvada na mão velha, mas firme, enquanto encarava Zolin, supremo guerreiro das forças tehuantinas e filho do irmão morto de Necalli. O rosto do tecuhtli Necalli era escuro com as tatuagens de sua patente, que contornavam as feições como uma máscara eterna e cruel, mas ele era um velho agora, as costas estavam curvadas para frente, o cabelo era branco e ralo. Zolin, em comparação, era a imagem esculpida e perfeita de um guerreiro.

O desafio surpreendeu a todos. Citlali, ele mesmo um guerreiro supremo, estava perto de Niente, e bufou diante da cena abaixo dos dois, Necalli e Zolin começaram a se cercar lentamente, enquanto os guerreiros em volta do campo começaram um cântico ritmado, batendo nas pedras com a ponta do cabo das lanças. O som parecia com as marteladas de Sakal quando Ele entalhou o mundo no casco da Grande Tartaruga. — Necalli voltará para os deuses hoje — disse Citlali. — Que Eles estejam prontos para receber o velho abutre.

— Por quê? — perguntou Niente. — Por que Zolin desafiou o tio? O tecuhtli Necalli não perdeu uma batalha para os orientais; na verdade, ele fez com que recuassem para o Mar Interior. A Garde Civile dos Domínios não penetrou ainda nas nossas fronteiras. O tecuhtli pode ser velho, mas ainda é um mestre da estratégia.

— Zolin diz que o tecuhtli ficou tímido com a senilidade — respondeu Citlali. A própria face era cheia de linhas negras pontilhadas por círculos de um azul intenso. — Ele dança com os orientais, mas hesita em destruí-los. Tornou-se cauteloso e cuidadoso demais. Zolin não tem medo. Zolin varrerá completamente os orientais da terra de nossos primos. Ele atacará, em vez de simplesmente se defender.

— Se vencer o desafio — disse Niente.

— Ninguém é mais forte do que Zolin. Necalli certamente não; olhe, os músculos são flácidos como os de uma velha.

— Será que a força deve vencer sempre a experiência? — perguntou Niente, e Citlali riu.

— Você é o nahual — falou Citlali. — Um dia, um de seus nahualli virá até você e exigirá um desafio, e talvez você descubra a resposta por si mesmo. Diga-me, Niente, por ter sido o nahual de Necalli, você está com medo de mudar de status quando Zolin se tornar o tecuhtli?

Niente aprendeu há muito tempo que alguém nunca demonstrava medo para um guerreiro supremo. Os Tatuados já consideravam os nahualli pouco mais do que armas em forma humana e não tinham nada além de desprezo por aqueles que eles consideravam fracos. Niente deu um sorriso forçado. — Não se Zolin tiver um cérebro, além de força.

Citlali riu outra vez e disse — Ah, isso ele tem. Zolin aprendeu com o próprio Necalli. Agora é o momento de o aluno superar o mestre, de o filho substituir o irmão de seu vatarh. — Niente percebeu que o guerreiro supremo o examinava de cima a baixo com o olhar. — Você anda cansado ultimamente, e estas rugas são novas no seu rosto. Você mesmo devia tomar mais cuidado, Niente. Necalli usou você demais, assim como Mahri. É uma pena.

Niente concordou cautelosamente com a cabeça. Era o que ele mesmo pensara, mais de uma vez.

O cântico e as batidas pararam abruptamente. Eles ouviram os pássaros da floresta se acomodarem novamente. O silêncio quase incomodou os ouvidos de Niente. Necalli e Zolin estavam a dois passos um do outro, no centro do campo.

Zolin rugiu. Avançou. A espada reluziu, mas a arma de Necalli se ergueu ao mesmo tempo, e as lâminas fizeram barulho ao colidirem enquanto os guerreiros gritavam em aprovação. Por um momento, os dois homens ficaram travados nessa posição, depois Zolin empurrou Necalli, e o tecuhtli recuou.

— Viu só — falou Citlali. — Eles agem em batalha como agem aqui. Zolin ataca, enquanto Necalli aguarda.

— E se Necalli encontrar uma falha no ataque de Zolin, ou se Zolin for impaciente, então é Necalli que continuará sendo o tecuhtli. Há vantagens em esperar.

— Veremos então quem os deuses favorecem, não é? — Citlali sorriu com ironia. — Quer apostar, nahual? Três cabras que Zolin vencerá.

Niente negou com a cabeça; Citlali riu. Lá embaixo, o guerreiro supremo executou uma finta em nova investida, e Necalli quase cambaleou ao erguer a espada novamente contra o ataque esperado. Zolin foi para a direita, depois rapidamente mudou para a esquerda, e a espada desenhou uma linha reluzente no ar. Desta vez, a resposta de Necalli veio atrasada. A lâmina do guerreiro supremo acertou o corpo de Necalli no ponto onde o peitoral era amarrado às ombreiras, cortou as tiras de couro e penetrou fundo no ombro do braço que segurava a espada do tecuhtli. Necalli, para seu crédito, só fez uma careta quando Zolin arrancou sua espada, e o sangue jorrou nos dois. O guerreiro supremo cercou Necalli quando o tecuhtli cambaleou para trás, sua armadura se agitou quando ele trocou a espada para a mão esquerda. O sangue escorria pelo braço direito de Necalli e pingava dos dedos. Zolin berrou novamente e levantou poeira com as sandálias ao atacar novamente. O tecuhtli ergueu a espada, mas sua defesa era fraca, e a espada do guerreiro supremo continuou descendo, entrou ao lado do crânio desprotegido de Necalli, se enterrando no pescoço abaixo da orelha esquerda. Zolin soltou a espada quando Necalli caiu de joelhos, a arma do tecuhtli tiniu ao cair no chão. Por um longo momento, Necalli cambaleou ali. A mão esquerda apalpou o cabo da espada de Zolin, sem efeito. Os olhos estavam arregalados, como se enxergasse uma visão no céu; a boca abriu-se como se estivesse prestes a falar, mas só o sangue saiu.

Necalli oscilou para a direita e caiu. O rugido de Zolin foi combinado aos milhares de berros dos que assistiam. Ao lado de Niente, Citlali ergueu um punho cerrado no ar e berrou — Tecuhtli Zolin! Tecuhtli Zolin!

Lá embaixo, Zolin arrancou a espada do corpo de Necalli. Ele ergueu a arma no ar, e os gritos foram redobrados quando ele se virou para encarar os que assistiam. Seu olhar triunfante pareceu encontrar cada tehuantino.

Dessa vez, Niente também se juntou aos gritos. — Tecuhtli Zolin! — Ele levantou o cajado mágico para o céu, mas olhou mais para o corpo de Necalli.

 

Nico Morel

NICO ESTAVA CONFUSO e assustado com a agitação. Várias coisas estavam acontecendo rápido demais. Houve batidas furiosas na porta, e o homem que estava tomando conta de Nico fez um gesto estranho com as mãos antes de os dois ouvirem a voz do embaixador do outro lado. A porta foi escancarada, e várias pessoas entraram correndo. Elas meio que carregavam Varina, cuja tashta estava encharcada de sangue. Nico tentou correr até ela, mas alguém o empurrou de volta para a cama com um rosnado. Houve muitos gritos e gente demais na sala pequena. Sob a luz das velas, tudo era uma confusão de sombras. Ele só conseguiu ouvir trechos do que as pessoas diziam.

— ... precisamos de Karina; ela tem o talento de cura... —

— ... não podemos ficar... fomos reconhecidos... —

— ... diga aos demais para ficarem escondidos... —

— ... a Garde Kralji já deve estar à procura... —

— ...torturar e matar qualquer um de nós que encontrarem... —

— ... a criança tem que ir embora...

Nico sentou-se na cama e queria chorar, mas ficou com medo de atrair atenção para si quando não queria nada além de ser invisível. Um rosto saiu do caos e agigantou-se sobre ele: Karl. — Nós temos que sair de Nessântico. Varina lhe disse isso, não foi? Você virá comigo, Nico. Não podemos deixá-lo para trás, não sem ninguém para tomar conta de você.

— Eu posso ficar na minha velha casa — disse Nico com uma confiança que não sentia. — Minha matarh irá me procurar lá, ou Talis. E eu conheço as pessoas que moram nas outras casas. Eu ficarei lá.

— Nós deixamos uma mensagem para Talis na sua casa avisando onde você estava — disse Karl. — Ele não veio.

— Ele virá — insistiu Nico. — Ele virá.

O homem parecia ter tantas dúvidas quanto Nico tinha por dentro. — Sinto muito, Nico, mas temos que ir embora rápido, e você precisa vir conosco.

Nico olhou por cima do ombro de Karl, na direção do tumulto na sala. Havia muitas pessoas ali, e ele não conseguiu ver Varina. — Varina vai morrer? — perguntou Nico.

— Não. — O embaixador balançou a cabeça enfaticamente. — Ela foi ferida, mas não vai morrer. — O menino acenou com a cabeça. — Nico, você terá que ser muito corajoso e ficar muito quieto. Se formos descobertos, Varina vai morrer, e eu, e talvez você, também. Entendeu?

Nico concordou novamente, embora não entendesse. Ele franziu os lábios e engoliu em seco. — Muito bem, bom rapaz — disse Karl ao mexer no cabelo de Nico, como Talis às vezes fazia, e Varina também. Nico perguntou-se por que os adultos sempre faziam isso apesar de ele não gostar. O menino sabia que Karl tinha filhos e netos em Paeti; uma vez sua matarh comentou com Talis que o embaixador e a archigos Ana eram “próximos demais”, então talvez eles fossem filhos da archigos. Nico imaginou como seria uma criança que cresceu no interior escuro e cavernoso do templo, com pinturas dos moitidis em combate nos domos no alto e fogo mágico que ardia em enormes braseiros em volta do coro.

— Nico! Venha cá. — Karl gesticulou, e Nico foi até ele.

— ... os portões da cidade serão fechados a qualquer momento — dissera um homem grisalho, e Nico levou um susto ao perceber que era o regente de Nessântico: tinha que ser ele, com o nariz feito de prata que reluzia à luz das velas. O menino olhou fixamente para o nariz: ele tinha visto o regente algumas vezes em dias de cerimônias, sentado ao lado do kraljiki Audric, quando a carruagem real dava a volta pela Avi a’Parete. Nico não compreendia por que o regente estava ali ou como poderia haver perigo com sua presença. A matarh sentia arrepios quando falava a respeito dele e contou para Nico histórias sobre o regente ter sido antigamente o comandante e ter torturado pessoas na Bastida. O rosto do regente parecia mais cansado do que perigoso neste instante. — O comandante co’Falla conhece a cidade tão bem quanto eu, pois o ensinei, e isso é um problema. Ele sabe que precisamos sair, e mandará pessoas à nossa procura. — O regente bateu com o dedo no nariz. — Alguns de nós somos muitíssimo reconhecíveis.

— Então nós evitaremos os portões — falou Karl. — Se conseguirmos cruzar a Avi perto do Parque do Templo, bem, as velhas muralhas ficam por ali, e se pudermos atravessar a vizinhança ao norte e entrar nos campos agrícolas durante a noite, há uma faixa de terra com muita floresta por lá, mais ou menos cinco quilômetros adiante, onde podemos ficar durante o dia. Talvez possamos prosseguir para Azay e... — O embaixador parou e deu de ombros. — Então faremos o que for necessário. Nesse momento, estamos perdendo tempo.

— Realmente — respondeu o regente. — Varina consegue andar?

— Eu consigo — Nico ouviu Varina responder, embora a voz soasse fraca e trêmula. Ele a viu, então, sentada na cama enquanto balançava os pés na beirada. O sangue na roupa era escuro, e parecia úmido. — Estou pronta. Só me deixem trocar de roupa. — Varina abanou a mão para eles. — Andem, saiam. Esperem por mim aí fora. Só levarei uma marca da ampulheta.

— Venha, Nico. — Karl acenou para a porta com a cabeça, mas Nico fez que não e abraçou o próprio corpo.

— Deixe o menino ficar — disse Varina. — Eu o levarei comigo. Andem.

— Está certo — respondeu o embaixador, mas ele parecia incerto. — Esperaremos na antecâmara. Seja rápida.

Os homens saíram e Varina desmoronou na cama por um momento, a respiração estava acelerada e incômoda. Ela gemeu ao se sentar novamente e ao tentar desfazer os laços da tashta. — Nico, preciso da sua ajuda...

O menino foi até Varina e desfez os laços, atrapalhou-se com os nós enquanto tentava não notar o sangue que sujava os dedos. Ela abaixou a tashta até a cintura, e Nico afastou o rosto rapidamente, um pouco corado, enquanto Varina tomou impulso com uma mão para ficar de pé. Os seios sob a faixa eram menores que os da matarh, e vê-los cobertos apenas por um pano fino provocou uma sensação estranha em Nico. — Há outra tashta no baú ao pé da cama — falou Varina. — Uma azul; pode pegá-la para mim? Bom menino.

Ele vasculhou o baú, o cheiro de ervas doces dentro de sachês de linho penetrou nas narinas do menino, que entregou a tashta azul para Varina. — Vire-se um instante — falou ela, e quando Nico obedeceu, ele escutou a tashta suja deslizar completamente até o chão. Ouviu Varina vestir a nova tashta meio sem jeito com o braço machucado, e quando ela gritou de dor, o menino foi rapidamente ajudá-la, puxou com força a faixa embaixo dos seios, depois amarrou as alças e os laços das costas. — Há bandagens na última gaveta do baú — disse Varina. — Se puder trazer algumas...

Nico correu para pegá-las para ela. Quando se levantou com as faixas brancas de tecido macio nas mãos, viu Varina tirar as bandagens do braço. Ele conteve um gritinho ao ver o corte fundo e irregular, que ainda estava escancarado e vertia sangue. As bordas da ferida abriram enquanto Nico observava, era tão funda que ele pensou ter visto o osso branco no fundo. Ele engoliu em seco e sentiu enjoo. — Eu sei — falou Varina. — O corte parece sério, e preciso encontrar um curandeiro para costurá-lo. Mas, nesse momento, preciso amarrar uma nova bandagem para mantê-lo fechado. Não consigo com uma mão só. Você pode me ajudar?

Nico concordou com a cabeça e engoliu em seco. Enquanto recebia instruções, ele colocou um chumaço de bandagens dobradas em cima da ferida; depois, conforme Varina apertava as bordas do corte da melhor maneira possível, o menino enfaixou a região. — O mais apertado que você conseguir — disse ela. — Não se preocupe, você não irá me machucar. — Varina mostrou a ele como rasgar a ponta da bandagem em duas e depois amarrá-las para ficar no lugar.

Ela chorava no momento em que Nico terminou e olhava para a mão ao tentar mexer os dedos. — Vai melhorar, Varina — falou o menino. — Só precisa de tempo para sarar.

Varina riu entre as lágrimas e puxou Nico em um abraço com a mão boa. — Obrigada — sussurrou ela no cabelo do menino. — Agora, pegue um pouco de água. Eu quero tirar o sangue das minhas mãos e das suas.

Uma marca da ampulheta depois, os dois saíram do quarto, com Varina pálida, mas andando com firmeza.


Estava chovendo, estava frio, estava escuro, e Nico estava péssimo.

O menino manteve-se próximo a Varina enquanto eles atravessaram correndo a Avi a’Parete sob o aparente olhar furioso das famosas lâmpadas mágicas da cidade. O regente estava com Nico, Varina e Karl; o outro numetodo — aquele chamado Mika — deixou o grupo e foi para outra direção pela cidade. Nico viu um esquadrão da Garde Kralji correr pela Avi na direção do Portão Norte, pisando nas poças dos paralelepípedos da avenida; o regente fez o grupo parar à sombra de um prédio — a chuva caía com força das calhas entupidas sobre eles — até os gardai sumirem na curva da Avi, depois Sergei guiou-os por uma corrida no interior do aglomerado de casas ao norte da Avi. Lá, eles rapidamente trocaram as ruas principais por transversais e becos, mantiveram-se longe das poucas pessoas que estavam na rua no tempo ruim e ocasionalmente se escondiam em vielas quando ouviam outros se aproximarem. Em um momento, um trio de utilinos passou pelo grupo, e eles espremeram-se contra as pedras frias e úmidas do prédio mais próximo, prendendo a respiração enquanto os utilinos, que obviamente observavam os rostos dos transeuntes, iam embora. O grupo continuou rumo ao norte; as casas ficaram mais espaçadas, estavam separadas agora por campos e pastoreios; as luzes da cidade tornaram-se apenas um brilho nas nuvens acima deles; as ruas de paralelepípedos deram lugar a estradas enlameadas e cheias de sulcos, que finalmente viraram um caminho estreito e sujo. Quando eles pararam, Nico teve a sensação de que passou a noite correndo. Os pés e as pernas doíam, e ele ofegava pelo esforço de acompanhar os adultos. Varina desmoronou no chão assim que o grupo parou.

— Vamos descansar aqui por alguns minutos — falou o regente. — Se vier alguém, nós devemos vê-los antes que nos notem. — Os quatro estavam bem afastados de qualquer fazenda, e a chuva virou uma garoa inconstante. Nico ficou ao lado de Varina, que estava apoiada em um muro de pedra à beira do caminho. Ela fechou os olhos e segurou o braço ferido com firmeza.

— A floresta fica a mais ou menos um quilômetro e meio estrada acima; devemos alcançá-la em meia virada da ampulheta — continuou o regente. — Talvez nós devêssemos sair da estrada; se eu fosse o comandante, mandaria batedores para todos os vilarejos à nossa procura.

— Para onde? — perguntou Karl.

O regente sacudiu a água do cabelo parcialmente grisalho; gotas pingaram do nariz de prata. — Firenzcia — resmungou ele.

Karl deu uma risada que mais pareceu uma tosse. — Você está brincando, Sergei. Isso é sair do fogo para cair na brasa. Firenzcia? O archigos ca’Cellibrecca não é nada mais que uma versão mais nova de seu vatarh por casamento; eles adorariam ter o embaixador dos numetodos para torturar e pendurar em uma jaula para que todo mundo visse. Firenzcia? Lá pode ser bom para você, mas Varina e eu teremos uma chance melhor de sobreviver se tentarmos nadar pelo Strettosei até Paeti. Era melhor nós simplesmente nos rendermos à Garde Kralji agora.

Varina abriu os olhos, e Nico viu que ela assistia à discussão. O regente fungou. — Firenzcia é inimiga dos kralji. Agora, nós também. Eu conheço Allesandra desde a época que ela passou aqui; você também. Com Fynn assassinado, ela será a hïrzgin; Allesandra nos acolherá.

— A não ser que os numetodos estejam sendo convenientemente culpados pelo assassinato do hïrzg Fynn — falou o embaixador, e Varina concordou enfaticamente com a cabeça.

— Para onde mais vocês iriam? — perguntou o regente.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

— Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

— E Firenzcia não faria o mesmo? — interveio Varina.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — disse o embaixador.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — Sergei fungou novamente.

Nico ouvia a discussão enquanto se encolhia no manto. Ele não queria ir para Firenzcia, Il Trebbio, Paeti ou qualquer um desses lugares. O menino gostava de Varina e sentia muito por ela estar machucada, mas queria estar com sua matarh ou Talis. Os adultos não prestavam atenção nele; estavam muito dedicados à discussão.

Aos poucos, Nico ergueu o corpo até ficar sentado no muro. Ele virou-se, as pernas balançaram do outro lado. Ninguém notou o menino; ninguém disse nada para ele. Nico deixou-se cair na grama alta do campo. Ele ainda podia ouvir a discussão quando começou a se afastar rapidamente do outro lado do muro de pedra — de volta para Nessântico. De volta para o único lar que conhecia.

Quando Nico mal pôde escutar as vozes, ele começou a correr: noite adentro, chuva adentro, na direção do brilho da cidade ao longe.

 

Varina ci’Pallo

— PARA ONDE MAIS VOCÊS IRIAM? — falou o regente, e ela ouviu Karl escarnecer.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

Sergei parecia um professor ensinando um aluno lento. — Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

Varina, que meio que ouvia a discussão, remexeu-se e interrompeu os dois com os olhos semicerrados. — E Firenzcia não faria o mesmo? — disparou para o regente.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — acrescentou Karl; Varina ficou contente por ter o apoio dele.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — A voz de Sergei era quase de deboche.

A discussão apenas minava a pouca força que restava a ela. Deixe Karl lidar com ele; Karl não irá para Firenzcia. Não irá... Conforme a discussão continuava, a atenção de Varina voltou-se para o cansaço do corpo e a dor latejante e insistente no braço, que dava uma pontada toda vez que ela se mexia. Varina apoiou a cabeça no muro de pedra à beira da estrada, sem se importar que o chão embaixo dela estivesse frio e encharcado, e fechou os olhos enquanto os dois continuavam a discutir. Sentia no rosto o espirro gelado ocasional das nuvens insistentes e ouvia o estrondo da voz dos dois homens como um trovão distante em sua mente. Ela estava péssima e com frio.

Varina perguntava-se se a morte não seria na verdade um benefício.

Ela não sabia o que pensar quando olhou para a direita, na direção onde o brilho da cidade pintava as nuvens baixas levadas pelo vento. Ao mesmo tempo, percebeu que o calor tênue que estivera ao seu lado foi embora.

— Nico? — Varina sentou-se e conteve o grito que queria irromper pela garganta com o movimento. Então, falou mais alto — Nico?

Karl e Sergei deixaram a discussão de lado e viraram-se. — Varina? — Karl começou a dizer, depois praguejou. — Merda! O menino sumiu. — Ele olhou sobre o muro, Varina fez o mesmo, enquanto se levantava lentamente. A grama da campina revelava o rastro escuro e pisoteado dos pés de Nico, que voltava na direção da cidade até Varina perdê-lo na escuridão.

— Eu vou atrás dele. O garoto não pode estar longe. — Ela começou a passar por cima do muro para persegui-lo e fez uma careta quando o movimento forçou o braço machucado. Mas Varina sentiu a mão de Karl no braço bom, para contê-la.

— Não — falou Karl. — Você não pode. Ele está voltando para a cidade e chegará lá antes que você o alcance. Você não pode ir lá. Eles não estão procurando por um menino, estão procurando por você.

Varina estava agitada. Ela tentou se soltar de Karl, mas estava muito fraca. Sergei assistiu, impassível, da estrada. — Nico estará sozinho lá. Não posso abandoná-lo assim. Eu prometi.

— Ele estava sozinho quando você o encontrou. O garoto é no mínimo engenhoso. — Karl apontou com o queixo para o brilho da cidade nas nuvens. — Nico acha que sua matarh ou Talis irão encontrá-lo se ficar lá. Ele pode estar certo. Deixe o menino ir, Varina. Deixe-o ir. Nós temos outras questões para nos preocupar.

Varina esmoreceu. Ela sentou-se no muro e olhou para a trilha da fuga de Nico. Karl soltou seu braço, que ela usou para abraçar o ferido. A chuva tinha recomeçado a cair; a garoa escondeu as lágrimas. — É minha culpa — disse Varina. — Minha culpa. Eu devia ter tomado conta dele. Prometi que o levaria a um lugar seguro. Prometi a ele...

— Varina. — Ela virou-se para Karl, que balançou a cabeça. — A culpa é minha. Você está ferida, precisava descansar. Eu devia ter vigiado o menino. Não você. A culpa é minha.

Varina queria poder acreditar em Karl. Fungou. Virou o rosto novamente para o rastro, que sumia. A grama da campina já se levantava e escondia a fuga de Nico.

— Fique a salvo — sussurrou Varina: para a escuridão, para a chuva, para a névoa distante tocada pela luz. — Por favor, fique a salvo.

 

Audric ca’Dakwi

VOCÊ TEM TODO O DIREITO de estar furioso. Na verdade, você tem que estar furioso, para que eles temam você.

Audric ouviu a voz da mamatarh, o espocar das palavras em sua cabeça, a raiva aparente de Marguerite. Ele viu a cara fechada no quadro à direita quando se sentou no Trono do Sol.

Eu fui a Spada Terribile, a Espada Terrível, antes de ser a Généra a’Pace, falou a kraljica em fúria. Você tem que seguir meus passos, Audric. Tem que mostrar para eles o aço, antes de dar a luva de pelica, para que saibam que o aço está sempre dentro. Escondido.

— Eu mostrarei — falou Audric em tom grave, depois se voltou para o comandante co’Falla, que estava diante dele com a cabeça baixa e uma pequena bandagem no pescoço. O Conselho dos Ca’ sussurrava em seus assentos, atrás do comandante. — Comandante? — vociferou o kraljiki, embora a rispidez da palavra tenha provocado um acesso de tosse. Ele ergueu os olhos, com o lenço de renda amassado na mão, e viu que co’Falla o encarava. — Você está me informando que o ex-regente ca’Rudka conseguiu escapar da Bastida e de minha ordem de execução? — Ele teve que parar para tomar fôlego. Ouviu o eco da voz nas pedras do salão. Abaixe a voz. Você soa estridente, como uma criança. Mostre a eles que você está à altura deles. — Eu sei — falou Audric para a mamatarh, depois se deu conta de que todos o observavam, e fingiu que começava outra sentença — ... que o regente não pôde ser encontrado em Nessântico e que provavelmente fugiu da cidade?

— Sim, kraljiki — falou o comandante irritado. Ele retesou o maxilar, os músculos encolheram-se debaixo da barba, e ele franziu os lábios depois da resposta. Co’Falla parecia conter as palavras que queria dizer.

Audric fez um gesto magnânimo na direção ao homem e falou — Prossiga. Esclareça para nós.

— Kraljiki — disse ele, e olhou para trás, para os demais. — Conselheiros. Este foi um ataque à Bastida orquestrado pelos numetodos; por quantos, ainda não temos certeza. Os portões principais foram arrancados com um feitiço, e perdi dois homens quando os suportes do lado norte caíram como resultado. Eu imediatamente mandei interditar a torre onde o regente estava preso, com medo de que um ataque direto pelos portões destruídos viesse a seguir, e despachei um mensageiro ao templo para chamar os ténis, a fim de neutralizar os feitiços numetodos. Mas, ao que parece, o ataque aos portões foi simplesmente um engodo para chamar nossa atenção. Quando não aconteceu ataque algum, eu pessoalmente levei gardai aos corredores do subsolo da Bastida, mas o embaixador ca’Vliomani e seus comparsas já haviam entrado; provavelmente muito antes do ataque ao portão.

— Você tem certeza de que o homem que viu era o embaixador ca’Vliomani? — perguntou Audric.

Co’Falla concordou com a cabeça. — Certeza absoluta, kraljiki. Quando ficou óbvio que não haveria ataque algum aos portões, eu levei um esquadrão aos corredores do subsolo, como disse. Nós confrontamos o embaixador ca’Vliomani e a numetodo Varina ci’Pallo com o prisioneiro; havia pelo menos outro numetodo nos corredores. Eles usaram feitiços contra nós. — Ele engoliu em seco. — Meus homens e eu fomos incapacitados.

Audric ergueu as sobrancelhas. — Incapacitados — falou o kraljiki demoradamente, como se saboreasse a palavra. — Mas não morto, embora, eu noto, tenha sido... ferido. Um arranhão no pescoço, que não foi pior que um cortezinho de navalha? Que sorte para todos nós!

Soaram risadas da parte dos conselheiros, com destaque para o riso debochado de Sigourney ca’Ludovici. O rosto de co’Falla ficou visivelmente vermelho.

— Kraljiki, conselheiros, eu conheço Sergei ca’Rudka desde que entrei para a Garde — disse ele. — Ele foi meu offizier superior e meu mentor. Ele me promoveu e me fez subir de patente; Sergei ca’Rudka, através de seu vatarh, kraljiki, me escalou para meu posto atual como comandante da Garde Kralji. Eu o considerava meu amigo, bem como meu superior. Eu presumo que a amizade dele é o motivo de meus homens e eu ainda estarmos vivos, kraljiki.

Audric não precisou do falatório da mamatarh para se levantar do trono ao ouvir isso. Ele apontou um dedo acusador para o comandante. — Na realidade, seu relacionamento e amizade com ele foram a causa de ca’Rudka ter escapado — rugiu o kraljiki em tom estridente ao conter a tosse. — Que conveniente que você tenha caído inconsciente exatamente na hora certa. Que conveniente que os numetodos conhecessem essa passagem secreta pelo rio. Que conveniente... — Audric não conseguiu prosseguir. Foi sobrepujado pela tosse naquele instante, e encolheu-se no Trono do Sol com o lenço de renda no rosto enquanto o corpo era acometido pelo ataque. Ele mal ouviu a ladainha de desculpas do comandante.

— Meu dever é com o kraljiki e Nessântico — insistiu co’Falla. — Isso suplanta qualquer amizade que eu possa ter com o regente. Eu lhe garanto, kraljiki, que agi exatamente como o senhor ordenou. Eu lhe garanto que teria cumprido a sua ordem de executar o regente, caso o senhor tivesse decidido que esse seria o destino dele. Vários dos meus homens foram feridos ou mortos no ataque; eu jamais, jamais teria permitido que isso acontecesse. Eu não abandonaria meu dever e juramento ao serviço militar pelo bem de uma amizade. Jamais.

Audric ainda recuperava o fôlego enquanto limpava os lábios com o lenço. Marlon, ajoelhado e inclinado para frente nos degraus do tablado do trono, ofereceu outro lenço, que Audric pegou entregando o manchado para o criado. Foi Sigourney ca’Ludovici quem respondeu a co’Falla, e Audric escutou enquanto tossia baixinho no novo lenço. — Estas são belas e nobres palavras, comandante, mas... — Ela olhou solenemente em volta do salão. — Ora, eu não vejo o regente nem o embaixador ca’Vliomani algemados diante de nós, e pelo que o senhor nos disse, todos os numetodos notórios da cidade fugiram também. Como o kraljiki disse, que conveniente que eles tenham tido tempo e oportunidade para fazer tal coisa.

— Conselheira ca’Ludovici — falou co’Falla —, eu fico ofendido diante destas acusações. Assim que recuperei a consciência, eu despachei a Garde Kralji para guardar os portões e varrer a cidade; entrei em contato com o archigos Kenne para que ele mandasse alertar os utilinos em suas rondas; mandei uma mensagem ao Guardião dos Portões e pedi que vasculhassem todos os albergues e estalagens. A senhora pode verificar essas ordens com meus offiziers.

— Mas seu amigo ca’Rudka e seus comparsas conseguiram escapar dessa bela e maravilhosa rede que o senhor colocou em torno da cidade — respondeu ca’Ludovici. — Como ele é esperto. — Novamente veio a risada dos outros conselheiros.

Audric recuperou a compostura e dobrou o lenço manchado de sangue na mão. O rosto de co’Falla estava ainda mais vermelho do que antes, e o kraljiki ergueu a mão para interromper o protesto do comandante. — Eu decreto que Sergei ca’Rudka não tem mais status algum nos Domínios. Que a Gardes a’Liste registre o nome dele simplesmente como Sergei Rudka, de agora em diante. O mesmo para o embaixador ca’Vliomani; ele perdeu o status diplomático e agora é conhecido apenas como Karl Vliomani, sem nenhum posto aqui. Quando forem encontrados, a pena para eles será a morte imediata.

Audric ouviu o murmúrio de prazer da mamatarh e os sussurros dos conselheiros, que concordaram. — Quanto a você, comandante co’Falla — falou ele, e co’Falla ajeitou os ombros e pareceu olhar além do kraljiki —, também é necessário haver julgamento.

— Kraljiki — disse co’Falla, de queixo empinado e com olhos ocultos —, eu tenho família aqui e presto serviço leal ao Trono do Sol desde minha décima-sexta temporada. Eu peço aos senhores que considerem isso.

— Nós consideramos — falou Audric. — Nós também consideramos que você falhou com seu juramento e falhou com seu kraljiki. — Mostre a eles. Mostre a eles que você também pode ser a Spada Terribile. Mostre sua força e sua determinação. Audric levantou-se do Trono do Sol e enfiou o lenço de renda na manga da bashta azul e dourada. Ele deu alguns passos para ficar na frente de co’Falla e sentiu o olhar de aprovação de Marguerite as suas costas. Sua cabeça bateu na altura do peito do comandante; ele teve que erguê-la para ver o rosto do homem e ficou furioso por causa disso. — Nós exigimos a espada de seu cargo, comandante. — O kraljiki estendeu a mão.

A expressão de co’Falla ficou séria e vazia. Ele soltou o cinto da bainha, e os fechos de metal tilintaram como uma música. Co’Falla colocou a arma na mão estendida de Audric. O kraljiki pensou ter visto um leve traço de satisfação no rosto do homem quando o peso inesperado do aço quase fez Audric deixar a espada cair, a mão caiu e o cinto de couro da bainha enroscou-se sobre o piso de mármore do salão. O kraljiki virou-se de lado para co’Falla e sacou a lâmina da bainha. O aço retiniu: era a arma de um guerreiro, não um objeto de enfeite lustroso, entalhado e cravejado de joias que a maioria do Conselho dos Ca’ portava. Audric ergueu a lâmina com admiração e viu os pequeninos arranhões onde o gume fora recentemente afiado, o brilho da cobertura de óleo na superfície. A espada de um guerreiro. A espada que dava sinal de ter tido muito uso e muita morte.

Audric sorriu.

Sem aviso prévio, ele empunhou a arma na horizontal e girou o corpo rapidamente, enfiando fundo a ponta afiada e triangular da espada no estômago de co’Falla, e gemeu diante da resistência inesperada do tecido e dos músculos. O comandante ofegou, ficou boquiaberto e arregalou os olhos. As mãos de co’Falla pegaram a lâmina enquanto Audric continuava a empurrar com toda força e a enterrar a espada fundo na barriga do homem. O sangue espalhou-se rapidamente e fluiu pela calha central na direção do punho que o kraljiki segurava. Co’Falla tomou fôlego pela segunda vez e verteu sangue pela boca aberta, seus joelhos cederam, o homem caiu e arrancou a espada da mão de Audric. O kraljiki ouviu os conselheiros ficarem de pé ao mesmo tempo, horrorizados.

A mamatarh riu dentro de sua cabeça.

Muito benfeito, disse ela para o neto. Benfeito mesmo!

Audric foi até o corpo que estrebuchava, olhou nos olhos do moribundo e falou — Agora nós realmente não temos que nos preocupar com sua incompetência. — Ele tossiu violentamente pelo esforço, mas não se importou com as gotículas vermelhas que caíram sobre o rosto e o peito do homem. Co’Falla olhou Audric fixamente e pestanejou. O kraljiki arrancou a espada do estômago do sujeito e colocou a ponta sobre o peito, sentiu quando ela entrou entre as costelas. — E lhe concedemos um último favor: uma morte rápida. — Audric colocou todo o peso no cabo e empurrou. Mais sangue jorrou da boca de co’Falla, e o homem ficou imóvel.

Excelente! Você é realmente meu verdadeiro herdeiro, muito mais forte que seu vatarh...

Audric voltou-se para o Conselho dos Ca’ e espalmou as mãos ensanguentadas. O rosto de Sigourney ca’Ludovici ficou pálido, e ela olhava mais para o cadáver de co’Falla do que para o kraljiki.

— Parece que precisamos de um novo comandante — disse Audric para os conselheiros.

 

 

Allesandra ca’Vörl

— ISSO NÃO ERA O QUE EU QUERIA, matarh. Fynn deveria ser o hïrzg, e caso não fosse ele, então a senhora. Não eu.

Allesandra tirou fios imaginários dos ombros da bashta com apliques dourados que Jan usava, com a faixa do cargo de hïrzg sobre o tecido preto e prateado. Ela tocou a bochecha do filho e sorriu. Ele já tinha ficado mais alto do que a matarh nos últimos dois anos; Jan ficaria ainda mais alto. — É melhor assim — disse Allesandra. — Firenzcia terá um hïrzg forte por muitas décadas, que é o que precisamos.

— Eu não entendo. — Jan olhou para ela, com a cabeça ligeiramente inclinada. — Por que a senhora fez isso? Por que abdicou de ser a hïrzgin? Todas aquelas histórias sobre o vavatarh ter tirado este direito da senhora, de tê-la ignorado em favor do onczio Fynn...

— Eu não queria. — Allesandra viu o espanto no rosto do filho. Jan sempre foi uma criança que revelava os pensamentos pelas expressões. Vou ter que trabalhar essa questão com ele. É algo que Jan precisa aprender. Ela sorriu e tocou a bochecha do rapaz. — É verdade, querido. Realmente. Agora, vamos: os ca’ e co’ vieram encontrar seu novo hïrzg, e não podemos fazê-los esperar.

Allesandra acenou com a cabeça para o comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg, que esperava pacientemente a uma passada e meia de distância dos dois trajando uniforme de gala. O homem prestou continência e ergueu a mão. Em resposta, Roderigo, que se tornou o assistente de Jan, gesticulou para os criados, que correram para seus postos. O som das cornetas ecoou pelo ar agradável da noite quando os atendentes abriram as portas duplas que levavam ao salão principal. Jan fez uma pausa e não se mexeu; Allesandra gesticulou para ele e disse — Você primeiro. É você que eles querem ver.

Quando Jan entrou, os aplausos surgiram e se avolumaram, entremeados por berros de comemoração e gritos de “hurra, hïrzg Jan!”. Ele parou na porta como se estivesse preso ao lugar pela aclamação e ergueu os braços lentamente, quase arrependido, para aceitá-la. — Ande — sussurrou Allesandra ao ver que o filho continuava parado ali. — Vá até eles.

Jan olhou para trás. — Com a senhora, matarh — falou e ofereceu o braço. Ela deu um passo à frente para aceitá-lo e sorriu quando pousou a mão no braço ao filho. Os aplausos aumentaram e envolveram os dois.

Allesandra olhou para a multidão radiante. As cores preto e prata predominavam, como em todas as comemorações firenzcianas, refletindo as cores dos estandartes pendurados no alto das paredes. Luzes mágicas reluziam intensamente nos candelabros e iluminavam os ca’ e co’ de Brezno, todos reunidos e voltados para os dois. Os rostos mostravam sorrisos, alguns genuínos, mas muitos escondendo preocupação, incerteza e desconfiança. Ninguém conseguiria deixar de ver o número de homens da Garde Hïrzg postados nas laterais do salão que andavam cuidadosamente entre a multidão, com olhares sérios e atentos, nem o comandante co’Göttering, que entrou no salão imediatamente atrás de Jan e Allesandra, nem a presença chamativa do starkkapitän ca’Damont, bem como seus vários offiziers chevarittai. Firenzcia tinha perdido dois hïrzg em menos de um ano agora, e os ca’ e co’ sabiam que a a’hïrzg passara o cajado e a espada para o filho, que eles conheciam pouco, apesar do recente destaque. Era óbvio que Firenzcia planejava não sofrer mais perdas.

Firenzcia estava acostumada a mudanças: na vida de muitos que aplaudiam a entrada de Allesandra e Jan, eles vivenciaram uma grande batalha perdida para Nessântico; viram a própria Allesandra ser feita de refém; testemunharam seu querido vatarh abandoná-la em nome do irmão mais novo; tremeram quando o velho hïrzg Jan separou-se dos Domínios e criou a Coalizão; testemunharam a separação da própria fé concénziana, com a rebelião do archigos ca’Cellibrecca contra o velho trono em Nessântico e a ascensão da archigos Ana; vibraram com o fortalecimento da Coalizão a cada ano que passava, pois parecia que um dia poderia até mesmo ofuscar os Domínios.

Na vida dos ca’ e co’, Firenzcia passou de criado dos Domínios a seu maior rival. A luz de Brezno agora rivalizava com a da própria Nessântico.

Eles sentiam-se otimistas a respeito de Firenzcia e do ramo breznoniano da fé concénziana, mas este ano acabou com muito daquele otimismo. Allesandra sabia que os ca’ e co’ vibravam agora mais pela esperança que o novo hïrzg Jan representava do que pelo próprio Jan.

Se eles soubessem o que ela planejou... Allesandra perguntou-se que caras os ca’ e co’ fariam e se conseguiriam sorrir de alguma maneira.

Semini estava na frente do público, com a equipe de ténis vestidos de verde atrás. Allesandra segurou na mão de Jan quando os dois desceram os degraus. Conforme a multidão começava a se juntar em volta de Jan, muitos com filhas jovens e solteiras a tiracolo, Allesandra apertou o braço do hïrzg e sussurrou — Seja educado com seus súditos. Você nunca sabe de qual deles poderá precisar como aliado... ou como esposa.

— Aonde você vai, matarh? — sussurrou Jan de volta, e ela ouviu apreensão em sua voz.

— Não se preocupe; eu estarei aqui e resgatarei você se notar algo estranho. Preciso falar com o archigos ca’Cellibrecca. — Allesandra acenou com a cabeça para os ca’ e co’ enquanto estes se reuniram em volta de Jan, escapou no meio da multidão e cumprimentou aqueles por quem passava. A música havia recomeçado, mas a maioria no salão ignorava o chamado para dançar a fim de ter um momento com o novo hïrzg. — Archigos — disse ela ao chegar a Semini, que estava do lado do público. Seus o’ténis assistentes, que sorriram e fizeram o sinal de Cénzi para Allesandra, afastaram-se quando ela chegou e retornaram cuidadosamente às próprias conversas.

Semini acenou com a cabeça para Allesandra e fez o sinal de Cénzi, depois ofereceu as mãos para ela. Allesandra as segurou e apertou os dedos por um instante antes de soltá-las. Eles não tiveram uma oportunidade de ficar juntos desde o encontro na Encosta do Cervo, há mais de um mês, mas houve cartas e recados cuidadosamente elaborados. Ela sabia como queria que esta noite acabasse. Os preparativos já tinham sido feitos: Semini iria aos aposentos de Allesandra após a recepção. Ela sorriu. — É tão bom vê-lo novamente, archigos. Como vai sua esposa na noite de hoje? Eu esperava ver Francesca com você. — Sempre educada em público, sempre dizendo as coisas certas.

— Ela não está... se sentindo bem e pede desculpas à senhora e ao hïrzg. Na verdade, Francesca não vem se sentindo bem há algum tempo, eu cuidei para que ela fosse para as estâncias de Kishkoros. Francesca ficará lá mais uma semana; eu soube que as estâncias são bem revigorantes e renovadoras.

Allesandra concordou, contente com a notícia: isso remove um empecilho para nosso caso. — São sim. Tenho certeza de que o descanso fará maravilhas para a saúde de Francesca, embora eu espere que isso não lhe deixe muito solitário. — Ela apertou a mão de Semini novamente.

Ele deu um sorriso ao ouvir isto, talvez largo demais. Allesandra viu um dos o’ténis erguer as sobrancelhas na direção dos dois e soltou as mãos do archigos. — Tenho certeza de que o trabalho me impedirá de sentir muita falta de Francesca. Há muita coisa que a Fé pode fazer para ajudar o novo hïrzg, não acha?

— Eu sei que Jan ficará muito grato a você, archigos. Assim como eu. — Ela deu uma olhadela para a aglomeração de gente em volta de Jan. Ele sorria abertamente, cumprimentava mãos e tocava em ombros, e havia jovens reunidas ao seu redor. Apesar da apreensão mais cedo, Jan parecia estar se divertindo. O nó no estômago de Allesandra afrouxou um pouco. O comandante co’Göttering permanecia ao lado do hïrzg e observava atentamente, com a mão nunca longe da espada ao lado. Allesandra suspeitava que, apesar da elegância dourada do cabo, a lâmina do comandante era bem útil. Aliás, ela sabia que o próprio Semini era um excelente téni-guerreiro e não tinha dúvidas de que os outros ténis com ele eram o mesmo.

Jan estava a salvo aqui. Allesandra poderia aproveitar a noite e ver as manobras sociais dos ca’ e co’ que foram convidados. — Uma vez que a conselheira ca’Cellibrecca não pôde estar aqui — disse ela para Semini —, talvez você possa dançar comigo mais tarde?

Os dentes brancos reluziram sob a barba grisalha; ele abaixou levemente a cabeça. — Eu adoraria muitíssimo. Gostaria de caminhar comigo, a’hïrzg? Meus ténis montaram um belo arranjo no jardim, e eu gostaria de mostrá-lo para a senhora. — Semini ofereceu o braço para Allesandra, que hesitou um momento; os ca’ e co’ podiam não estar prestando tanta atenção a ela quanto ao filho, mas notariam. Eles sempre notavam. Mas Allesandra deu a mão ao braço oferecido e deixou que Semini a conduzisse a uma das sacadas no mezanino do salão. Os o’ténis do archigos, notou ela, se posicionaram cuidadosamente nas portas da sacada quando os dois passaram e ficaram voltados para o salão, de maneira que, quando Allesandra olhou para trás, não viu nada além de costas vestidas de verde, embora as portas permanecessem educadamente abertas.

— Eles são bem treinados — disse ela, e Semini sorriu.

— E são bem discretos. Veja. — O archigos se dirigiu para o lado esquerdo da sacada, onde mesmo que alguém tentasse olhar do salão sobre a parede de o’ténis não conseguiria ver facilmente os dois. Lá embaixo, os jardins do Palácio de Brezno estavam acesos com bolas de luz brilhante que flutuavam suavemente nas alamedas: tons intensos de púrpura e azul, vermelhos reluzentes, verdes da cor da grama na primavera, amarelos mais fortes do que girassóis. A noite estava fresca e agradável, e as estrelas imitavam o jardim em um céu decorado com nuvens prateadas. Os casais na recepção perambulavam pelo labirinto dos jardins, de mãos dadas.

O calor de Semini cobria as costas de Allesandra, ele estava com os braços em volta dela e apertava o corpo contra o seu. — Eu senti sua falta, Allesandra.

— Semini... — Ela recostou-se no abraço e sentiu o desejo aumentar dentro de si. Ele tinha cheiro de sabonete, de óleo no cabelo e almíscar. Allesandra imaginou-se montada em Semini, movendo-se com ele.

Ela virou-se nos braços do archigos e empinou o rosto. Eles beijaram-se, e Allesandra sentiu os pelos macios da barba em sua bochecha e o ímpeto da língua na boca, as mãos do archigos desceram para pegar suas nádegas e apertá-la contra ele. A a’hïrzg entregou-se ao beijo, fechou os olhos e se permitiu sentir, notar o calor que passava por ela como uma maré lenta e implacável. Allesandra afastou-se, relutante, o fôlego era quase um lamento, e virou-se novamente para relaxar contra o corpo do archigos. Ela olhou para a luz, para os amantes furtivos em momentos secretos no jardim lá embaixo. — Semini... — Allesandra começou a falar...

... Mas o aumento do barulho no interior do salão afastou Allesandra do archigos, cheia de culpa. Eles ouviram gritos, e no momento em que a a’hïrzg virou-se, preocupada, ela ouviu um dos o’ténis falar alto demais: — ... deixe-me buscar o archigos para o senhor...

O comandante co’Göttering empurrou a porta da sacada e irrompeu noite afora, seguido por um trio de inúteis o’ténis. — A’hïrzg, archigos — falou o homem. Quaisquer que fossem os pensamentos que ele possa ter tido ao ver os dois próximos e sozinhos na sacada foram cuidadosamente dissimulados. — A sua presença é exigida no salão.

— Qual é o problema, comandante? — perguntou Allesandra. — Eu ouvi gritos. Jan está...?

— O hïrzg está bem. Há notícias e... um convidado. Por favor... — Co’Göttering gesticulou para a porta; Allesandra e Semini seguiram o comandante em direção à claridade do palácio e da escada do mezanino. A a’hïrzg viu um quarteto de homens da Garde Hïrzg em volta de Jan, enquanto os ca’ e co’ ficavam boquiabertos, e com eles um homem sujo de viagem. No meio da escada, o sujeito se virou e, na luz, Allesandra viu o brilho de metal no rosto: um nariz feito de prata reluzente. E o rosto...

Allesandra ficou sem fôlego. Ela conhecia o homem. Conhecia muito bem, e parecia impossível que ele estivesse aqui em Brezno.

 

Enéas co’Kinnear

NESSÂNTICO...

Enéas quase chorou quando viu as torres e domos dourados novamente, quando vislumbrou a faixa perolada da Avi a’Parete brilhando à noite, quando ouviu as trompas do Templo do Archigos que anunciavam, em tom de lamúria, as Chamadas para a prece. A grande cidade, a maior de todas as cidades: ela era uma visão que, por muitas vezes quando serviu nos Hellins, ele duvidou que tivesse permissão para ver de novo.

E Enéas não teria tido o prazer se não tivesse sido abençoado com a graça de Cénzi. Disso, ele tinha certeza — não, ele teria morrido nos Hellins. Deveria ter morrido lá. Enéas parou a carruagem no Morro Corcunda, do lado de fora da cidade ao longo da Avi a’Sutegate, desceu e gesticulou para o condutor prosseguir. Enquanto a carruagem descia o morro se sacolejando, na direção do Portão Sul e de pontos de referência conhecidos, Enéas ficou em um joelho só, com as mãos entrelaçadas na testa, e rezou para agradecer a Cénzi.

Ainda há uma tarefa que resta você fazer, Enéas ouviu a resposta de Cénzi enquanto olhava o cenário maravilhosamente familiar diante dele: o rio A’Sele, que reluzia ao abraçar a Ilha A’Kralji, com as quatro pontes arqueadas sobre as águas. Então sua dívida Comigo estará realmente paga, e eu lhe aceitarei plenamente nos Meus braços...

Enéas sorriu, levantou-se e desceu devagar em direção à cidade que amava.

Naquela noite, ele deu os papéis do comandante ca’Sibelli e seu próprio relatório verbal ao gabinete da Garde Civile, embora o e’offizier presente parecesse distraído e nervoso. — Há notícias dos Hellins? — perguntou Enéas. — Mais recentes do que as que eu contei?

O e’offizier fez que não com a cabeça. — O seu é o último relatório que recebemos, o’offizier. — Ele abaixou a voz num sussurro conspiratório. — Cá entre nós, eu sei que o comandante co’Ulcai está muito preocupado; ele esperava receber mensagens expressas dos Hellins nas últimas semanas, mas elas não vieram. Quanto aos eventos aqui na cidade, bem... — O homem falou da fuga do regente, da participação dos numetodos e da execução do comandante co’Falla da Garde Kralji como punição. Ele inclinou-se para frente a fim de sussurrar para Enéas. — Vá à Pontica a’Brezi Veste e o senhor verá o corpo do comandante pendurado para servir de comida para os corvos. Cá entre nós, isso deixou o comandante co’Ulcai preocupado, uma vez que ele e co’Falla eram protegidos do regente e indicados pelo próprio. O kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, pode vir a desconfiar daqueles que tenham um tiquinho de lealdade pelo velho regente. Só podemos torcer para que o kraljiki Audric acabe sendo tão forte e sábio quanto sua mamatarh, mas... — O e’offizier deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Só Cénzi sabe.

— Realmente — respondeu Enéas. — Só Cénzi sabe. Essa é a única verdade.

O offizier carimbou a papelada e informou que a agenda de co’Ulcai estava cheia no dia de hoje, mas que o comandante poderia chamar Enéas para dar o relatório em pessoa, e que ele estava liberado de outras tarefas na próxima semana. Enéas recebeu uma chave e um quarto, onde colocou a mochila com cuidado, longe do fogo na lareira e da janela, onde o calor do sol poderia alcançá-la.

Depois, ele seguiu pela Avi a’Parete para a praça onde ficava o Templo do Archigos, cheia de pombos sobre as lajotas ou voando com precisão militar em esquadrões no céu, que depois pousavam onde alguém talvez tivesse deixado comida cair. Enéas andou devagar e apreciou as vistas e os odores da cidade, sentiu o gosto do ar carregado na boca. A presença da cidade abraçou Enéas como uma matarh, ele foi completamente envolvido pelo miasma perfumado e quase soluçou pelo puro alívio da sensação. Vindas da Avi, as pessoas entravam aos borbotões na praça, e Enéas percebeu que era quase a Segunda Chamada, bem no momento em que as trompas começaram a soar nos grandes domos dourados. Ele juntou-se às pessoas que entravam no templo. Algumas reconheceram seu uniforme, com a faixa vermelha dos Hellins proeminente na transversal, e sorriram para Enéas, gesticulando para que ele entrasse na fila. — Obrigado por servir ao país, offizier — disseram para ele. — Nós reconhecemos tudo o que o senhor está fazendo por lá. — Enéas devolveu o sorriso ao passar pelas grandes portas de bronze, com os corpos emaranhados dos moitidis que jorravam do peito dilacerado de Cénzi, e entrou na penumbra fria e com cheiro de incenso do templo.

Ele sentou-se perto do coro, logo abaixo do Alto Púlpito, e jogou a cabeça para trás para ver o telhado distante, cheio de vigas. Através do vitral bem acima de Enéas, a luz radiante trespassava a penumbra. Ele ouviu o cântico dos acólitos nas alcovas quando as trompas se calaram e a procissão de ténis entrou no coro pela porta dos fundos. Enéas ficou com o resto da congregação e sorriu com prazer ao se dar conta de que seria o próprio archigos a dar a Admoestação e a Bênção hoje. Cénzi realmente o recompensou. Quando ele foi embora de Nessântico, há tanto tempo, tinha sido a archigos Ana que dera a Bênção ao batalhão prestes a partir, aqui neste mesmo espaço.

Agora seria o sucessor da archigos que o abençoaria novamente, quando Enéas tinha uma nova e mais importante missão a cumprir.

Ele escutou pacientemente à Admoestação do archigos. Ela foi permeada por um pedido de tolerância, o que soou estranho para Enéas, e o archigos Kenne citou versículos do Toustour que falavam do respeito por visões diferentes. Ele aconselhou os presentes no templo a não fazer julgamentos precipitados: — Às vezes, a verdade está escondida até mesmo daqueles que estão mais próximos. Deixem Cénzi julgar os outros, não nós. — Este, pelo menos, era um conselho que Enéas podia seguir, sendo guiado pela voz de Cénzi.

Após a cerimônia, ele foi até o parapeito com os demais suplicantes. O archigos Kenne percorreu a fila lentamente e parou para falar com cada um deles. Aos olhos de Enéas, o velho téni parecia cansado e abatido. Sua voz era fraca e estridente, o que indicou para Enéas que ela foi aprimorada com o Ilmodo pelo archigos (ou por um dos outros ténis) para que soasse forte e confiante ao dar a Admoestação. Enéas abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi quando o archigos, com um cheiro de incenso entranhado no robe, parou diante dele. — Ah, um offizier da Garde Civile — falou o archigos. — E com uma faixa das Terras Ocidentais, ainda por cima. Nós lhe devemos gratidão pelo seu serviço ao país, o’offizier. Por quanto tempo o senhor serviu lá?

— Por mais tempo do que eu gostaria de lembrar, archigos. Retornei hoje à Nessântico.

A mão enrugada e seca do archigos roçou na cabeça baixa de Enéas, e os dedos encostaram no cabelo oleoso. — Então deixe que a Bênção de Cénzi lhe dê boas-vindas à cidade. Há alguma bênção específica que eu possa lhe oferecer, o’offizier?

Enéas levantou a cabeça. Os olhos do archigos eram de um tom cinza esbranquiçado e começavam a dar sinais de catarata; a cabeça tremia de leve, sem parar, mas o sorriso parecia genuíno, e Enéas viu-se devolvendo o sorriso, dizendo — Eu sou um simples guerreiro. Um offizier serve às ordens que recebe. Eu tirei muitas vidas, archigos, mais do que sou capaz de contar, e com certeza tomarei mais até parar de servir.

— E o senhor quer o perdão de Cénzi por isso? — perguntou o archigos, cujo sorriso aumentou. — O senhor estava apenas cumprindo seu dever e...

— Não. — Enéas interrompeu e balançou a cabeça. — Eu não me arrependo do que fiz, archigos.

O sorriso sumiu, incerto. — Então o que...?

— Eu gostaria de me encontrar com o kraljiki. Ele tem que saber o que está acontecendo nos Hellins. O que está acontecendo de verdade.

— Eu tenho certeza de que o kraljiki se informa através do comandante... — O archigos começou a dizer, mas Cénzi falava com Enéas, e ele repetiu as palavras que ouviu na cabeça.

— A essa altura, o comandante ca’Sibelli está morto — falou Enéas em voz alta. — Pergunte ao kraljiki que notícias chegaram dos Hellins. Ele não terá ouvido nada, archigos. Não há notícias dos Hellins porque simplesmente não sobrou ninguém para enviá-las. Acabou. Pergunte ao kraljiki, e quando ele responder que os navios expressos não vieram, diga que eu posso dar o relatório que o kraljiki precisa ouvir. Eu sou a única pessoa capaz disso. Aqui... — Ele colocou um cartão de visitas com seu nome e atual endereço no parapeito. — Por favor, pergunte a ele quando o senhor o vir novamente. Esta é a dádiva e a bênção que peço ao senhor, archigos. Apenas isso. E Cénzi também faz esse pedido ao senhor. Escutou? Não ouviu Sua voz? Ouça, archigos. Ele chama o senhor através de mim.

— Meu filho... — O archigos começou a falar, mas foi interrompido por Enéas.

— Eu não sou um soldado com a mente perturbada pelo que viu, archigos. Fui salvo por Cénzi para trazer esta mensagem ao kraljiki. Eu ofereço minha mão ao senhor quanto a isso. — Enéas estendeu a braço para o archigos e ouviu a voz grave de Cénzi em sua cabeça ao tocar o pulso do velho. — Dê ouvidos a ele. Eu ordeno. — E o archigos arregalou os olhos como se tivesse escutado a voz também. Ele puxou a mão, e a voz morreu.

— Pergunte ao kraljiki por mim — falou Enéas. — É tudo o que eu peço. Pergunte a ele. — Enéas sorriu para o archigos e ficou de pé. Os outros suplicantes e os ténis presentes olharam fixamente para o offizier. O archigos Kenne ficou boquiaberto enquanto olhava para a própria mão, como se ela fosse um corpo estranho.

Enéas fez o sinal de Cénzi para todos e saiu do templo, as botas ecoaram alto no silêncio.

 

Niente

As forças do tecuhtli Zolin e o exército tehuantino estavam dispostas à cautelosa distância de um tiro de flecha das grossas muralhas de defesa de Munereo.

Três dias de batalha fizeram a Garde Civile recuar para dentro das muralhas. O tecuhtli Zolin foi ao mesmo tempo agressivo e impiedoso no ataque. O comandante ca’Sibelli mandou um grupo de negociação para o acampamento tehuantino depois do primeiro dia de batalha, quando Zolin fez a Garde Civile fugir dos campos altos e amplos ao sul da cidade. Niente estava lá no momento em que o grupo de negociação chegou com a bandeira branca; ele viu Zolin ordenar que seus guardas pessoais matassem os negociadores e mandassem as cabeças decepadas para o comandante ca’Sibelli como resposta.

Eles atacaram a força principal da Garde Civile na alvorada da manhã seguinte; naquela noite, os tehuantinos avistavam as muralhas de Munereo e o porto, onde estava ancorada a frota dos Domínios.

Agora era alvorada de novo, e o tecuhtli Zolin havia convocado Niente. Zolin reclinou-se em um amontoado de travesseiros coloridos; os guerreiros supremos Citlali e Mazatl também estavam com ele. Atrás do tecuhtli, havia um artista debruçado sobre a cabeça recém-raspada de Zolin; perto do homem havia uma mesinha coberta por agulhas em formato de unha de dragão e potes de tinta. O escalpo de Zolin fora pintado com a águia de asas abertas que era a insígnia do tecuhtli; agora o tatuador se preparava para marcar a pele permanentemente. Ele pegou uma agulha, mergulhou no pigmento vermelho e pressionou no escalpo de Zolin: o guerreiro fez uma careta sutil. — Os preparativos dos nahualli estão prontos? — perguntou o tecuhtli para Niente, enquanto o tatuador rapidamente mergulhava a agulha novamente e pressionava na cabeça de Zolin, sem parar. O sujeito limpava com um pano o sangue que gotejava e escorria.

— Sim, tecuhtli — respondeu Niente. — Nossos cajados mágicos foram renovados, por outros saudáveis o suficiente para realizar a tarefa. — Ele ergueu o próprio cajado e mostrou as águias entalhadas que davam voltas abaixo da cabeça lustrosa e grossa. — Nós perdemos dois punhados de nahualli na batalha; outro punhado e um estão feridos demais para serem úteis hoje. Todo o resto está pronto. — Niente acenou com a cabeça para os dois guerreiros supremos. — Eu dispus os nahualli conforme Citlali e Mazatl pediram.

— E a areia negra?

— Foi preparada — falou Niente. — Eu mesmo supervisionei.

— A tigela premonitória? O que ela lhe disse?

Niente passou a maior parte da noite olhando as águas, que lhe renderam apenas visões turvas e enevoadas, bem como exaustão e uma face e mãos que pareciam ter adquirido mais uma teia de finas rugas da noite para o dia. Ele ficou confuso pelos rápidos vislumbres de futuros possíveis, mas sabia o que Zolin queria escutar e sacou da mente uma daquelas visões efêmeras. — Eu vi o senhor dentro da cidade, tecuhtli, e o comandante dos Domínios a seus pés.

Zolin abriu um largo sorriso e disse — Então é chegado o momento. — Ele levantou-se e quase derrubou o tatuador, que deu um passo rápido para trás quando o tecuhtli pegou sua espada. Zolin deu tapinhas na cabeça que sangrava e sorriu. — Isso pode ser terminado depois. A batalha não pode esperar.

Quando eles saíram da tenda, os guardas entraram em posição de sentido. Do pequeno morro onde a tenda do tecuhtli ficava, eles podiam ver o exército espalhado lá embaixo e a névoa das fogueiras sendo levada pela brisa na manhã serena. As muralhas de Munereo surgiam altas mais ao longe na descida da encosta, e o sol cintilava na água da baía do outro lado, à direita. Zolin gesticulou, e um trio de trompas de guerra soou um chamado que foi repetido por outras trompas ao longo do acampamento, e Niente viu todo o exército se agitar como um formigueiro cutucado com um graveto. As fileiras de batalha começaram a se formar; os supremos guerreiros em seus cavalos encorajavam as tropas. Nas muralhas de Munereo, o sol nascente era refletido nos elmos de metal e nas pontas das flechas enquanto as tropas dos Domínios esperavam pelo ataque.

Seus próprios cavalos foram trazidos, e eles montaram. Citlali e Mazatl prestaram continência a Zolin, cutucaram os animais e dispararam a galope. — Você fica comigo, nahual — falou Zolin. — Agora! — Ele também cutucou o cavalo com o pé, e Niente seguiu o galope do tecuhtli morro abaixo, na direção onde as tropas esperavam na encosta, quase niveladas com o topo das muralhas de Munereo. Os soldados abriram espaço rapidamente para deixá-los passar e soltaram gritos de apoio e admiração.

Antes do encantamento profundo realizado no oriental, Niente teria sido capaz de cavalgar o dia inteiro com qualquer pessoa. Agora, a batida dos cascos do cavalo no chão atingiu o corpo como marteladas. O máximo que conseguiu fazer foi se firmar às costas do animal com joelhos trêmulos. Zolin cavalgou até o centro da linha de frente das forças tehuantinas, onde a bandeira da águia fora plantada no meio da estrada tortuosa que descia até o portão ocidental de Munereo. Lá, um punhado de dragões de cerco aguardava. Zolin, de cima do cavalo, deu um tapinha na enorme cabeça pintada e entalhada de um dos dragões. — Os deuses nos prometeram vitória hoje! — berrou ele para quem estava em volta. Zolin apontou para a cidade à espera, morro abaixo. Os rostos marcados dos guerreiros estavam erguidos para ele, e os homens vibraram. Niente tinha que admitir que Zolin tinha o carisma que faltava ao tecuhtli Necalli: a expressão no rosto dos soldados indicava que eles o seguiriam até mesmo nas profundezas de uma das montanhas fumegantes. — Hoje, faremos um banquete onde os orientais jantaram, levaremos suas riquezas e os sobreviventes de volta para nossas cidades, e esta terra será devolvida aos nossos primos, que já foram seus donos!

Eles vibraram novamente, mais alto que antes. Zolin soltou uma gargalhada alta e deu tapinhas no dragão de cerco outra vez. — Está na hora! — berrou. — Hoje, vocês encontrarão a vitória ou a paz com os deuses!

Zolin gesticulou, e as trompas de guerra soaram a ordem para avançar. As fileiras estremeceram e começaram a avançar, e o tecuhtli Zolin, ao contrário de Necalli, Niente teve que admitir novamente, cavalgou bem à frente, sem penas na cabeça, para que todos pudessem ver a águia no crânio. O avanço começou lento, os soldados prosseguiram em ritmo de caminhada. Conforme desciam a encosta, as muralhas de Munereo pareciam se elevar, ficavam cada vez mais altas enquanto os tehuantinos se aproximavam até estarem sob sua longa sombra. Os dragões de cerco, montados em carroças, rangeram e gemeram quando começaram a descer a estrada, reclamaram ao serem empurrados encosta abaixo na direção das muralhas e dos enormes portões com barras. Zolin parou, Niente fez o mesmo: havia uma movimentação nas muralhas, de repente, uma chuva de flechas diminuiu a luz do sol e fez um arco no ar que foi seguido momentaneamente pelo estalo de mil cordas de arcos. — Escudos! — berrou Zolin, e os guerreiros ao redor ergueram os escudos de madeira para formar um teto temporário, vários levantaram o bastante para proteger tanto Zolin quanto Niente em seus cavalos. A chuva de flechas caiu furiosa e cravou as tábuas de madeira pintadas e presas com tiras de couro, algumas flechas passaram entre os escudos e pegaram alguns guerreiros azarados, mas a maioria bateu na madeira inofensivamente. — Abaixar! — gritou Zolin, e a parede de escudos foi abaixada, os soldados golpearam as hastes com as espadas. O chão ficou repleto de flechas quebradas.

Agora o avanço acelerou. Niente ergueu o cajado mágico no alto, pois sabia o que viria a seguir e berrou — Nahualli! Preparam-se! — Ele ouviu o cântico ao longe e sentiu a agitação da energia do X’in Ka quando os ténis-guerreiros dos Domínios lançaram os próprios encantamentos. Bolas de fogo irromperam sobre as muralhas de Munereo e se lançaram estridentes na direção dos tehuantinos em um rastro de fumaça. Niente sacudiu o cajado mágico apontado para a bola de fogo mais próxima e falou a palavra de ativação: ela explodiu enquanto ainda estava no ar e diante dos tehuantinos, o fogo assobiou ao morrer em fagulhas reluzentes que caíram sobre eles. Outra bola de fogo caiu ilesa nas forças tehuantinas à direita de Niente, e, mesmo ao longe, o calor e o impacto da explosão eram assustadores. Onde as bolas de fogo caíam, guerreiros gritavam ao morrer. Elas abriam sulcos nas fileiras em avanço, mas os espaços eram rapidamente preenchidos por guerreiros das fileiras seguintes. Zolin fez a fileira correr devagar, os dragões de cerco pareciam gritar conforme as rodas de madeira davam solavancos no solo irregular.

— Empurrem! — rugiu Niente para os guerreiros em volta dos dragões de cerco. — Andem! — Agora ele finalmente foi tomado pela empolgação da batalha e não se sentia mais um velho prematuro. Seu sangue ferveu e o vento cantou em seus ouvidos. O punhado de dragões de cerco ganhou velocidade e começou a descer morro abaixo por conta própria. Os guerreiros ao redor não precisaram mais empurrá-los; os dragões tinham o próprio ímpeto agora, já passavam da linha de frente do inimigo. Flechas caíam sem parar e o teto de escudos era formado a cada ataque, como resposta, mas Niente mal notava. Ele observava os dragões de cerco, que agora voavam pela terra batida da estrada, com as mandíbulas pintadas e escancaradas ao correr na direção dos portões. Bolas de fogo avançavam em arcos, e novamente Niente e os outros nahualli dispararam feitiços para detê-las. Ele ouviu Zolin gritar ordens para os homens.

Os dragões de cerco voaram, os controladores ficaram bem para trás e gritavam conforme as carroças avançavam, rolando por conta própria. Três dragões acertaram a base das muralhas em ambos os lados dos portões, e dois bateram nos próprios portões.

As cabeças dos dragões estavam repletas de areia negra — mais do que Niente e os outros nahualli já haviam preparado antes. Bastões mágicos foram enfiados nos focinhos para responder com fogo ao impacto. Niente viu os bastões entrarem em chamas, e então...

Houve um estrondo, como se uma das montanhas de fogo da terra natal de Niente tivesse entrado em erupção, e a seguir veio um clarão de pura luz que fez o nahual erguer a mão aos olhos com atraso. Pedras do tamanho de cavalos saíram voando, algumas caíram sobre os tehuantinos mais próximos, mas houve gritos mais altos vindos do interior de Munereo. Havia um turbilhão de fumaça na cena que tornava impossível ver, mas quando ela se dissipou, lentamente, as forças tehuantinas soltaram um grito mudo.

Os portões foram rompidos. Onde eles estiveram, havia apenas um buraco enorme, e as grossas muralhas de apoio em volta desmoronaram. Enquanto os tehuantinos observavam, um trecho dos parapeitos entrou em colapso à direita, derrubando os defensores a 15 metros do chão. — Avante! — berrava Zolin. — Avante! — O exército tehuantino avançou em uníssono na direção da cidade, sem se importar com as flechas ou o fogo dos ténis-guerreiros. O próprio Niente viu-se avançando com eles, com o cajado de prontidão e a garganta rouca pelos gritos de exaltação.

Os tehuantinos entraram aos borbotões pelas muralhas quebradas de Munereo.


Nas ruas da cidade, a batalha foi acirrada, violenta e caótica. Assim que o exército tehuantino entrou, a população nativa rebelou-se em conjunto e usou como arma qualquer coisa que estivesse à mão para matar e saquear alegremente os responsáveis por sua escravidão. Os defensores orientais de Munereo viram-se atacados tanto pela frente quanto pela retaguarda.

Ao perceber a derrota, os remanescentes da força dos Domínios tentaram recuar para os navios na baía, mas Zolin despachara naus de guerra dos tehuantinos para a boca da baía, cada uma com um nahualli a bordo, e eles dispararam fogo mágico para queimar as velas e os mastros das embarcações dos Domínios; nenhuma escapou do porto da baía de Munereo.

Foi dito mais tarde que era possível ir andando dos destroços dos navios dos Domínios até a praia sobre os corpos dos mortos, e que a baía inteira ficou vermelha por uma semana por causa do sangue despejado das ruínas de Munereo.

Os tehuantinos encontraram o comandante ca’Sibelli encolhido de medo a bordo da nau capitânia da frota e levaram o oriental de volta às ruínas fumegantes da cidade. O tecuhtli Zolin mandou que o homem fosse arrastado para o interior do principal templo de Munereo e amarrado ao altar ali, o próprio Niente preparou uma garra de águia para o homem, e encheu o tubo curvo de osso com areia negra. Ele pronunciou o encantamento enquanto trabalhava: tudo que seria preciso era dar uma virada no chifre de marfim e apertar o gatilho no punho de madeira para riscar a pederneira e acender o pó negro. Niente levava a garra da águia enquanto acompanhava o tecuhtli Zolin ao templo, que estava lotado de guerreiros supremos e nahualli; ele viu Citlali e Mazatl ali, sentados na frente. Todos estavam cobertos de sangue, mas a maior parte não era deles. Zolin estava diante de ca’Sibelli, despido até a cintura e amarrado ao altar. O homem grisalho parecia aterrorizado ao ver o tecuhtli e gemeu. — Eu entreguei a cidade para o senhor... — disse o comandante na língua oriental. — O regente e o Conselho dos Ca’ pagarão meu resgate, o que o senhor pedir...

— Silêncio — falou Niente na mesma língua. — Agora é hora de rezar para o seu deus, se quiser.

— O que ele disse? — perguntou Zolin para Niente, que respondeu. O tecuhtli soltou uma gargalhada alta e falou — É assim que os orientais brincam de guerra? Eles compram e vendem seus prisioneiros? Será que os deuses dos orientais são tão fracos assim? Não me admira que eles fujam diante de nós. — Zolin fez um gesto de desdém para o homem. — Eles mal valem o sacrifício. Sakal e Axat ficarão mal alimentados com eles.

— O que ele está dizendo? — perguntou ca’Sibelli, que ergueu a cabeça e fez força contra as cordas que o prendiam. — Diga a ele que eu sei onde fica o tesouro. Há muito ouro.

Niente tirou a garra de águia da bolsa. Ca’Sibelli ficou calado ao olhar para ela. O comandante lambeu os lábios rachados e ensanguentados. — O que... o que é isto?

— É a sua morte — disse Niente. — Sakal e Axat exigem sua presença como líder.

— Não! — berrou o homem. A boca espumava saliva. — Vocês não podem fazer isto. Eu sou seu prisioneiro, seu refém. Peça por resgate...

Niente chegou perto do homem, que se contorcia. Ele sentiu o terror do oriental e falou com a maior delicadeza possível. — Isso vai acabar com a matança aqui na sua cidade. Sua morte paga pela morte de todos os seus soldados que capturamos, e eles serão poupados. Se você for bravo, comandante, se mostrar a Axat e Sakal que merece, será levado a Eles e viverá eternamente Neles. Eternamente. É uma dádiva o que oferecemos para você aqui. Uma dádiva.

O homem ficou boquiaberto, sem conseguir acreditar, mas o cântico de sacrifício tinha começado, baixo e sonoro, e ecoava na câmara. Os guerreiros e nahualli se agitaram com a prece. Ca’Sibelli virou a cabeça e olhou fixamente para eles, nervoso. O tecuhtli Zolin acenou com a cabeça para Niente, que tirou a garra de águia do cinto. Ca’Sibelli arregalou os olhos quando Niente girou o chifre de marfim até fazer um clique ao ficar no lugar.

Niente ficou ao lado do comandante e disse — Você deveria estar rezando. — A cabeça de ca’Sibelli balançava violentamente de um lado para o outro, como se pudesse negar o momento. O nahual pressionou a ponta do tubo curvo no estômago do homem enquanto ca’Sibelli se debatia freneticamente nas amarras. Niente suspirou; esta não seria uma boa morte. — Axat, Sakal, nós entregamos este inimigo aos Senhores — falou ele na própria língua. — Aceitem esta oferta como um sinal da Sua vitória.

Niente apertou o gatilho. Houve um clique, uma fagulha e depois uma explosão de carne e sangue.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI NÃO FICOU SURPRESO que tivessem retirado sua espada. Na verdade, ele perguntava-se se de alguma maneira sobreviveria a essa reunião.

A sala era pequena e excessivamente quente, decorada em típico estilo firenzciano, com tapeçarias escuras e pinturas simples com temas marciais, todas em homenagem a hïrzgai há muito tempo falecidos. O novo hïrzg Jan estava sentado em uma cadeira estofada ao lado da lareira, mas era óbvio que Allesandra, sentada à direita do filho, era o personagem principal aqui, em vez de o jovem hïrzg, que olhava fixamente para o nariz de Sergei, com a atenção presa ali. O archigos ca’Cellibrecca agigantava-se como um semideus ursino atrás do espaldar alto da cadeira do hïrzg, com a cara fechada. Os gardai que trouxeram Sergei foram dispensados (após outra revista minuciosa à roupa do regente, para garantir que estivesse desarmado; eles pegaram duas facas e só não notaram uma pequena lâmina fina, enfiada no salto e sola soltos da bota). Ao longe, Sergei ouvia os músicos tocarem uma gavota no salão lá fora, embora ele duvidasse que muitas pessoas na festa ainda dançassem. A maioria estaria conversando e fofocando, imaginado o que o regente de Nessântico fazia aqui em Brezno.

Ele tinha certeza de que os presentes na sala se perguntavam a mesma coisa.

— Hïrzg Jan — falou Sergei ao se curvar diante do jovem que tanto parecia com sua matarh. — Eu lhe agradeço por acolher um pobre refugiado e ofereço meus serviços como gratidão.

— Seus serviços, regente ca’Rudka? — Foi Allesandra quem falou. — O que aconteceu em Nessântico, regente, que agora você oferece serviços para aqueles com quem lutou como inimigo?

Sergei não via Allesandra há quase 16 anos; ela deixou o confinamento em Nessântico quando era pouco mais velha que o filho agora. Allesandra virou uma mulher adulta nesse meio tempo. Sergei ainda conseguia enxergar a jovem entusiasmada no rosto, mas havia uma nova austeridade ali, e rugas adquiridas por experiências que ele não tinha como saber. Não presuma que ela ainda é a mesma pessoa que você conheceu...

— Traições e maus bocados — respondeu Sergei, que resumiu os eventos dos últimos meses, incluindo a própria fuga da Bastida há dias. — Eu duvido que o kraljiki sobreviva por muito tempo — finalizou. — Suspeito que Sigourney ca’Ludovici será a kraljica dentro de um ano, talvez dois. — Ele olhou intensamente para Allesandra, que havia desviado o olhar contemplativo em meio à história. — Ela não tem mais direito ao Trono do Sol que algumas pessoas aqui — falou Sergei. Allesandra acenou levemente com a cabeça; Sergei achou que Jan olhou estranhamente para a matarh diante do gesto.

— Onde estão esses numetodos que o senhor diz que lhe ajudaram a escapar? — rosnou ca’Cellibrecca. — Também trouxe os hereges aqui?

Sergei deu uma olhadela lânguida para o archigos. — Eles recusaram-se a me seguir, dada a recepção que esperavam receber, archigos. A atitude de Brezno para com os numetodos foi... bem demonstrada. — Ele deu um sorriso gentil, e ca’Cellibrecca contorceu a boca em uma expressão de desdém.

— Assim como Nessântico, e nós vimos o que a cidade ganhou com isso — respondeu o archigos. — Ter sido resgatado da Bastida pelos numetodos, regente, indicaria que suas próprias opiniões são hereges também. O senhor se tornou um numetodo?

— Minha crença em Cénzi e nos ensinamentos do Toustour permanece tão firme como sempre, archigos. — Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. — Eu descobri que pode-se discordar até mesmo dos amigos e ainda assim permanecer amigo. Eu tive muitas discussões interessantes com o embaixador ca’Vliomani ao longo dos anos, muitas delas acaloradas, mas nenhum de nós dois conseguiu mudar significativamente as opiniões um do outro. Nem acho que isso seja necessariamente uma coisa ruim. O embaixador ca’Vliomani era meu amigo e agiu para me ajudar, embora nossas opiniões sobre religião sejam completamente discordantes. Minha alma não tem nada a temer. — Ele fez uma pausa e voltou a olhar para Allesandra. — Amigos e aliados podem ser encontrados onde menos se espera. Eu estaria errado, a’hïrzg ca’Vörl, em dizer que a senhora passou a considerar a archigos Ana uma amiga, embora ela tenha lhe tirado de seu vatarh?

Ca’Cellibrecca chiou alto ao ouvir isso, e o hïrzg Jan ergueu as sobrancelhas, mas Allesandra deu um leve sorriso. — Ah, regente, você sempre duelou tão bem com palavras quanto com sua espada.

Sergei fez uma nova mesura para ela.

— Sim — continuou Allesandra —, eu passei a considerar a archigos Ana, se não uma amiga, então como alguém em quem podia confiar diante do destino incerto que meu vatarh me relegou. Eu fiquei genuinamente horrorizada ao saber que ela foi assassinada, nem acreditei quando ouvi quem foi o responsável, por conhecer a archigos Ana e ca’Vliomani. Sofri e rezei por ela desde então. E, sim, entendo o que você está querendo dizer por trás da pergunta. Tenho certeza de que o hïrzg Jan ficará satisfeito em aceitar seus serviços e falar mais com você a respeito do que pode fazer pela Coalizão Firenzciana.

O garoto ajeitou-se subitamente na cadeira ao ouvir a menção do próprio nome e deu uma olhadela para a matarh. — Sim — falou Jan para Sergei. — Eu... nós ficaremos satisfeitos. — A voz era tão duvidosa quanto o olhar que ele lançou para Allesandra. Então as feições de Jan relaxaram, e ele soou mais adulto. — Firenzcia pode lhe oferecer asilo, regente ca’Rudka, e tenho certeza de que poderemos encontrar uma utilidade para seu conhecimento e suas habilidades.

— Obrigado, hïrzg Jan — respondeu Sergei, que ficou em um joelho só. — Falou bem. Eu ofereço livremente ao senhor e à Firenzcia a lealdade que Nessântico desprezou e darei qualquer conselho e ajuda que puder.

O jovem pareceu excessivamente contente com a declaração, como se, de certo modo, a tivesse arrancado a contragosto do próprio Sergei. Ele era jovem e inexperiente, Sergei percebeu, mas parecia suficientemente inteligente, e tinha uma excelente professora na matarh. O hïrzg aprenderia rápido. O archigos estava carrancudo, obviamente descontente com a decisão. Haveria pouca solidariedade com Sergei aqui — ele teria que ficar de olho em ca’Cellibrecca e encontrar qualquer vantagem que pudesse usar contra o homem.

Quanto a Allesandra... A mulher o encarava com cautela. Pensativa. Havia ambição ali e uma inteligência que faltou ao vatarh de Allesandra. Sergei podia facilmente imaginá-la no Trono do Sol. Podia vê-la tomar decisões que protegeriam os Domínios e cicatrizariam as feridas que Justi e agora seu filho abriram na cidade e no império aos quais Sergei servia.

Será que ela seria a kraljica que rivalizaria com Marguerite?

Ele descobriria. E agiria.

 

Karl ca’Vliomani

ELE RASPOU a barba. Escureceu o cabelo com essência de granito e deixou as feições ficarem obscuras com a sujeira da estrada. Doou as bashtas elegantes na mochila em troca das roupas rasgadas e cheias de pulgas de um mendigo. Karl cheirava mal, e só o fedor já era suficiente para as pessoas evitarem olhar para ele.

Karl perguntava-se onde Sergei estaria, se conseguira chegar a Firenzcia e como teria sido recebido lá.

A intenção original de Karl era voltar à Ilha de Paeti. Ele descansou o suficiente para usar o Scáth Cumhacht a fim de curar a pior parte do ferimento de Varina. Depois, Karl e ela acompanharam Sergei até as florestas ao norte da cidade, mas lá eles se separaram; Sergei tomou a direção leste para Azay a’Reaudi, enquanto o embaixador e Varina seguiram o limite da floresta para o oeste. Os dois cruzaram a Avi a’Nortegate depois de Tousia, dali rumaram para o sudeste na direção da Avi a’Nostrosei, na esperança de seguir a estrada até Sforzia e de lá conseguir passagem em um navio para Paeti ou para um dos países ao norte. Eles chegaram à Avi em Ville Paisli quatro dias depois, a apenas um dia de jornada a pé das muralhas de Nessântico.

Karl pretendia que eles passassem um dia, não mais do que isso. Ele e Varina pegaram um quarto na única estalagem do vilarejo e deram nomes falsos, como se fossem um casal a caminho de Varolli na esperança de encontrar emprego. A mulher mais velha que mostrou o quarto acenou ao pegar o dinheiro e enfiou as moedas em um bolso embaixo do avental que ela usava sobre uma tashta manchada, que parecia duas décadas fora de moda. O rosto e o corpo davam sinais de anos dando à luz e trabalhando duro. — Eu sou Alisa Morel — falou ela. Karl ouviu Varina respirar fundo ao ouvir o nome. — Meu marido e eu somos donos da estalagem e da taverna, e ele é o ferreiro do vilarejo. Se quiserem um banho... — o que foi dito com um olhar significativo e um nariz torcido que sugeriam que a ideia era boa — ... há um pequeno cômodo para isso lá embaixo, e eu posso mandar meus filhos encherem duas banheiras com água quente. O jantar sai uma virada da ampulheta depois do pôr do sol.

A mulher foi embora, Varina ergueu as sobrancelhas para Karl e disse — Morel... Nico disse que tinha fugido da tantzia e do onczio. Será que ela...?

— Morel é um nome bem comum em Nessântico. — Ele deu de ombros. — Mas obviamente há algumas perguntas que podemos fazer. Se ainda estivéssemos com o menino...

Karl já estava certo de que havia conexão ali, embora não soubesse dizer por quê. Ele percebeu pela expressão de Varina que ela pensava a mesma coisa. Se ele realmente acreditasse em algum deus, teria achado que os dois foram conduzidos a esse lugar pela providência divina.

Naquela noite, após aceitarem a oferta de banho feita pela mulher, para tirar o grosso da fedentina da estrada, ele e Varina jantaram no salão comunal da taverna, tanto para evitar suspeitas como para conseguir ouvir qualquer fofoca que tivesse chegado ao vilarejo a respeito da fuga do regente da Bastida. O salão estava — como ele suspeitava pela aparência estressada de Alisa, pelas crianças que trabalhavam como serventes, e pelo marido, Bayard, atrás do pequeno bar perto da porta da cozinha — mais cheio do que o usual, e a conversa era predominantemente sobre os eventos em Nessântico, cujas notícias pareciam ter chegado ao vilarejo há apenas alguns dias.

— Eu mesmo falei com o offizier do destacamento de busca — dizia Bayard Morel em voz alta para uma plateia de meia dúzia de aldeões. — O cavalo tinha perdido a ferradura, então ele me pediu para ferrar o bicho. O offizier disse que o kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, despachou cavaleiros para cada estrada da cidade a fim de pegar o traidor e os hereges numetodos que estão com ele. O destacamento vasculharia a estrada até Varolli, se necessário. O offizier me disse que os numetodos mataram três dezenas de homens da Garde Kralji na Bastida com sua magia terrível e blasfema, mataram sem pensar, embora alguns dos gardai ainda estivessem em suas camas. Os numetodos deixaram em ruínas a torre onde ca’Rudka estava, nada além de pedras enormes espalhadas por todo o chão. Eles cuspiram fogo ao fugir a cavalo, um fogo azul horrível, disse o offizier, que matou gente pela Avi quando os numetodos passaram, e depois, com um grande estouro... — nesse momento Bayard subitamente abriu bem as mãos e derrubou a caneca mais próxima de cerveja, o que fez a plateia recuar aterrorizada, de olhos arregalados — ... eles desapareceram em uma nuvem negra e fedorenta. Assim, do nada. Ao todo, tem mais de cem mortos na cidade. Eu estou dizendo, a morte é um destino bom demais para o regente. Eles deviam arrastá-lo vivo pelas ruas e deixar as pedras da Avi arrancarem a carne dos ossos e aquele nariz de prata dele enquanto berra.

As pessoas no salão murmuraram ao concordar com a opinião. Varina inclinou-se na direção de Karl e fez uma careta quando o movimento repuxou a ferida no braço, que cicatrizava. — Na semana que vem, ele dirá que foram mil mortos. Pelo menos, parece que os gardai já passaram por aqui e foram embora. Estamos atrás dele. Isso é bom, certo? — Ela vasculhou o rosto de Karl com olhos ansiosos, e ele concordou com um grunhido, embora não tivesse tanta certeza assim.

Enquanto observava o salão, Karl notou outra mulher que ajudava a servir os clientes: ela tinha uma aparência azeda e cansada e nunca sorria. A mulher parecia muitos anos mais jovem que Alisa, mas havia uma semelhança familiar entre as duas: nos olhos, no nariz fino, no conjunto dos lábios. Ela parecia ser velha demais para ser filha de Alisa, pois os filhos da estalajadeira ainda eram pequenos. Quando um deles, um menino mal-humorado à beira da puberdade, colocou um prato de pão fatiado na mesa, Karl apontou para ela. — Aquela mulher ali... quem é?

O garoto fungou e fez uma cara feia. — Aquela é a minha tantzia Serafina. Ela mora com a gente agora.

— Ela parece infeliz.

— Ela está assim há um tempo, desde que Nico fugiu.

Karl olhou para Varina. — Quem é Nico?

— O filho dela — falou o menino, que fechou mais a cara. — Um bastardo. Eu não gostava dele, de qualquer forma. Sempre falava besteira sobre os ocidentais e feitiços e tentava fingir que podia fazer magia como se fosse um téni. Todo mundo teve que perder três dias procurando por Nico depois que ele fugiu, e meu vatarh cavalgou até Certendi, mas ninguém jamais o encontrou. Acho que provavelmente está morto. — Ele parecia excessivamente satisfeito com essa conclusão, uma satisfação que torceu o canto da boca.

— Ah. — Karl concordou com a cabeça. — Você provavelmente está certo. O mundo lá fora não é fácil. Eu só estava me perguntando por que ela parecia tão triste. — Varina desviou o olhar nesse momento, encarava Serafina e mordia os nós dos dedos. O garoto arrastou os pés no assoalho de madeira rústica, fungou o nariz e passou o braço para limpá-lo, depois voltou para a cozinha.

— Pelos deuses, é ela. — Varina balançou a cabeça quase imperceptivelmente. — O que faremos, Karl? Aquela é a matarh de Nico.

Karl pegou um pedaço de pão do prato que o menino trouxe. Ele arrancou um naco do pão preto, enfiou na boca e mastigou, pensativo. — Se pudéssemos entregar Nico para ela — falou Karl depois de engolir —, será que ela nos entregaria Talis de volta?

 

Jan ca’Vörl

JAN GESTICULOU PARA OS GARDAI do lado de fora da porta e falou — Deixem-me entrar. — Os dois homens entreolharam-se uma vez, rapidamente, antes que um deles abrisse a porta. Assim que Jan entrou, um garda começou a segui-lo. O hïrzg meneou a cabeça para o homem e disse — Sozinho. — O garda hesitou antes de concordar e prestar continência. A porta foi fechada atrás de Jan.

— O senhor é corajoso por entrar em um aposento sozinho com seu inimigo. E aquele garda reportará ao comandante co’Göttering que o senhor veio me visitar. Co’Göttering sem dúvida informará sua matarh.

A luz de velas refletiu no nariz de prata quando Sergei se virou para encarar Jan. O homem foi instalado em um dos aposentos interiores do Palácio de Brezno, a comida foi posta diante dele em uma mesa coberta de damasco, a lareira estalava para afastar o frio da noite, e havia uma cama macia e confortável com travesseiros de plumas e cobertores. Ele usava uma nova bashta limpa e tinha evidentemente tomado banho, e seu cabelo grisalho estava empastado com óleo.

Sergei estava em uma prisão feita de seda.

— Eu não me importo que co’Göttering saiba, nem minha matarh. Você é tão perigoso assim, regente ca’Rudka? — perguntou Jan do outro lado da mesa.

Em resposta, Sergei meteu a mão no salto da bota: devagar, para que Jan pudesse vê-lo. Ele retirou uma lâmina chata, fina e com um cabo curto entre a sola e o couro, colocou a arma sobre a mesa e empurrou na direção de Jan. — Sempre, hïrzg Jan — respondeu o homem com um leve sorriso. — Seu vavatarh teria lhe dito isso. Sua matarh também. Se eu quisesse o senhor morto, o senhor já estaria.

Jan olhou fixamente para a lâmina. Ele viu os gardai revistarem Sergei à procura de armas, ouviu a declaração de que o regente estava desarmado. — Acho que precisarei falar com o comandante co’Göttering sobre o treinamento de seus homens. — O hïrzg esticou a mão para tocar o cabo com o dedo, mas não pegou a faca. — O que mais eles deixaram passar?

Sergei apenas sorriu. Jan colocou a mão na faca e empurrou-a novamente sobre a mesa para Sergei, que embainhou a lâmina na bota novamente. — Então, hïrzg Jan, a que devo o prazer?

O próprio Jan não tinha certeza. Ele ficou incomodado com a reunião inicial com Sergei, por ter ouvido a matarh e o archigos ca’Cellibrecca, por saber que eles dominaram a ocasião. Na verdade, Jan sentia-se sobrepujado pelo caráter repentino dos acontecimentos: o assassinato de Fynn, a fuga de Elissa, as notícias dos Domínios, a chegada do regente. Seu vatarh deixara Brezno correndo, furioso; sua matarh e o archigos eram íntimos, de maneira suspeita. Era como se ele estivesse sendo levado sem controle por uma enchente que não tinha visto, nem previsto. Jan sentia-se perdido e cheio de dúvidas, ficava remoendo essa situação por longas viradas da ampulheta, incapaz de se soltar na alegria agora forçada das festas, nas distrações das jovens que flertavam com ele ou nas especulações urgentes que irrompiam a sua volta.

Jan queria falar com alguém. E não queria que essa pessoa fosse sua matarh.

Jan não se sentia como um hïrzg. Sentia-se como um impostor. — Eu quero saber o que eu ganho ao lhe dar asilo, regente.

— Está mudando de ideia? — Sergei empurrou a cadeira da mesa. — Ou pensa que outra pessoa tomou esta decisão pelo senhor?

Jan devia ter ficado furioso com isso, mas, ao contrário, apenas ergueu um ombro e deixou que caísse novamente. — Ah, eu entendo — falou Sergei. — Assim como o pobre Audric, creio eu. Deixe-me lhe dizer uma coisa, hïrzg Jan: eu conheci vários kralji na minha vida, e apesar do que o senhor possa pensar sobre eles, a verdade é que nenhum jamais tomou uma decisão fácil. Tudo o que se faz como kralji, ou hïrzg, afeta milhares de pessoas, algumas vezes de uma maneira boa, em outras, de maneira adversa. Fique feliz por estar cercado por bons conselheiros e dê ouvidos a eles. Isso pode lhe poupar de tomar decisões realmente horrorosas. — Ele então deu um sorriso cruel. — E se uma delas der bons resultados, apesar de suas boas intenções, bem, o senhor sempre pode culpar o péssimo conselho.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

O sorriso de Sergei se ampliou. — Não respondi, não é mesmo? — Ele colocou as mãos sobre a mesa, com as palmas voltadas para cima. — Tudo o que tenho a lhe oferecer sou eu, hïrzg. Meu conhecimento, minha experiência, meu ponto de vista. Por acaso, eu acho que esse é um recurso potencialmente valioso para o senhor, mas tenho que admitir que sou meio suspeito para falar. — Ele franziu a pele em volta do nariz falso, mas o nariz em si não se mexeu, o que pareceu perturbador aos olhos de Jan. O gesto deixou o hïrzg incomodado, mas ele achou difícil desviar o olhar do rosto de Sergei.

— Eu tenho o conhecimento, a experiência e o ponto de vista da minha matarh; também tenho os do archigos. E tenho os dos comandantes e dos outros chevarittai da Coalizão.

— Tem sim — respondeu Sergei. — Sua matarh foi refém nos Domínios por grande parte da juventude. O archigos é um oponente jurado do ramo da fé concénziana de Nessântico. Os comandantes e chevarittai também são oponentes dos Domínios. Nenhum deles conhece os Domínios, e todos têm razões para odiá-los. O ódio pode cegar às vezes. Quanto a mim, bem, a segurança dos Domínios tem sido a minha vida.

— O que é outra razão para desconfiar de você.

— Então deixe que esse seja meu primeiro conselho para o senhor, hïrzg Jan. O senhor deve desconfiar de mim. Um hïrzg tem que duvidar de todos os conselhos que recebe, porque os conselhos de todo mundo são pintados com as cores de seus próprios interesses, os meus não menos do que os conselhos de qualquer pessoa. Mas... eu sou um velho espadachim, hïrzg, e eu diria que é mais fácil derrotar um inimigo cujos movimentos são conhecidos e previsíveis do que um inimigo completamente desconhecido. — Sergei recostou-se na cadeira. — Eu conheço os movimentos dos Domínios. Conheço todos. O senhor precisa de mim.

— Você parece muito confiante.

— Eu conheço meu inimigo, hïrzg. Se não conhecesse, por acaso eu teria lhe dado a minha faca? — Ele abaixou a mão e deu um tapinha na bota. — Todo mundo corre riscos, hïrzg. O truque é ter confiança no resultado.

— E se seu tivesse ficado com a faca? — perguntou Jan.

Sergei deu um risinho. — Então eu teria que fingir que isso era o que eu esperava. O senhor ainda gosta da sua decisão, hïrzg?

Jan sorriu com os lábios fechados e disse — Era o que eu esperava, regente. E isso vai ter que ser suficiente, não é?

 

Audric ca’Dakwi

A O’TÉNI AJOELHADA ao lado da cama de Audric abriu os olhos, com o rosto abatido e cansado, e deu uma olhadela para o archigos Kenne. — Eu terminei minhas... — Ela hesitou, e Audric viu o olhar da o’téni desviar-se do archigos para a conselheira Sigourney ca’Ludovici, que estava perto da lareira e olhava para o retrato da kraljica Marguerite, apoiado ao lado do fogo no cavalete portátil. Acima da lareira, Audric viu o retângulo desbotado onde o quadro esteve pendurado por tanto tempo. Nos recônditos escuros do quarto, Marlon e Seaton estavam à espreita, à espera para correr à frente caso fosse necessário.

— ... preces — concluiu a o’téni.

O archigos dissera para Audric que esta téni viera do templo de Chiari e que era alguém “cujas preces tinham uma afinidade especial com os doentes”. Isso talvez pudesse ser verdade; ele certamente se sentia um pouco melhor, os pulmões doíam menos ao se mexer. A tosse insistente cedeu, embora Audric ainda sentisse um pouco de aperto no peito; talvez ele realmente tivesse sido abençoado por Cénzi na noite de hoje. A melhora não era tão marcante quanto nas ocasiões em que a archigos Ana fizera “preces” pelo kraljiki, mas bastaria. Ele torcia para que durasse tanto quanto a ajuda da archigos Ana durava.

— Obrigado, o’téni — falou o archigos enquanto fazia o sinal de Cénzi para a mulher. — Agradecemos seus esforços. Você pode retornar ao templo agora. Diga ao u’téni co’Magnaoi que estarei lá em breve, por gentileza.

Ela concordou com a cabeça e ficou em pé cambaleando, como se tivesse ficado ajoelhada por muito tempo e as pernas tivessem adormecido. Enquanto Audric observava, a o’téni levou as mãos à testa, depois às pernas e saiu arrastando os pés com cuidado até a porta do quarto. Marlon correu para abri-la para a mulher. — Estranho — comentou Sigourney sem desviar o olhar do quadro —, eu nunca fiquei tão cansada depois de uma simples prece.

Audric viu Kenne contrair o rosto encarquilhado à luz das velas diante da acusação nada sutil. O archigos ignorou o comentário e perguntou — Está se sentindo melhor, kraljiki?

A mamatarh de Audric encarou o neto com preocupação sobre o ombro de ca’Ludovici. — Não há nada de errado comigo — falou o kraljiki para o archigos. Ele viu sua mamatarh concordar com um aceno no limite de seu campo de visão. Não deixe que eles saibam como você realmente se sente, não quando podem considerar uma fraqueza. — Eu sei — disse Audric para Marguerite, depois se voltou novamente para o archigos. — Estou me sentindo muito bem. — Kenne pareceu aliviado de uma maneira quase cômica. — Agora, você disse que tinha um favor para pedir, archigos.

— Eu tenho, kraljiki. Eu tive um encontro estranho na manhã de hoje, no templo. Havia um homem, um o’offizier da Garde Civile: Enéas co’Kinnear. Ele veio à Bênção de Cénzi e tinha uma faixa dos Hellins sobre o uniforme. Um jovem bonito, com uma expressão séria. Ele me disse que havia acabado de voltar da guerra.

— Sim, sim — falou Audric com impaciência e fez um gesto para calar o homem. O archigos seria capaz de divagar assim por uma virada da ampulheta e contar cada detalhe interminável do encontro. Ele ouviu ca’Ludovici rir ao fundo. — Onde você quer chegar, archigos?

Kenne não conseguiu esconder completamente sua irritação, mas forçou um sorriso e abaixou a cabeça para Audric. — O o’offizier co’Kinnear disse que tinha uma informação vital para o senhor, a respeito dos Hellins, kraljiki. Falou que o senhor não teria ouvido essas notícias porque os navios expressos não teriam chegado. Eu verifiquei, e é verdade. Também mandei minha equipe investigar este co’Kinnear, e eles descobriram que o comandante ca’Sibelli — ao dizer isso, o archigos acenou com a cabeça na direção de Sigourney — recomendou que ele fosse nomeado chevaritt, e os relatórios sobre o homem foram unânimes na alta estima que ele goza como uma pessoa de fé e um offizier. Na verdade, eu descobri que antigamente co’Kinnear era considerado como candidato a acólito e mostrava sinais do Dom de...

— Certo. — Audric interrompeu novamente e suspirou. — Tenho certeza de que esse co’Kinnear é um bom homem. — Ele fechou os olhos. Era tão cansativo ter que ouvir as besteiras de gente inferior e fingir que prestava atenção ou se importava. É a maldição de todos os kralji, Audric ouviu a mamatarh e deu um sorriso compreensivo para ela. — É verdade — falou o kraljiki para Marguerite. — É bem verdade. — Agora ele queria jantar e talvez jogar uma rodada de cartas com algumas jovens dos ca’ e co’, e, quem sabe, flertar, pois se sentia melhor.

Você tem que tomar cuidado com isso, Audric, ele ouviu a mamatarh reclamar. Casamento é uma arma que só pode ser usada uma ou duas vezes; você deve escolher o momento certo e a arma certa.

— Não me canse — disse Audric para a mamatarh.

Sigourney manifestou-se. — Se me dá licença, kraljiki? — Audric gesticulou para ela. A mulher era uma chata; não tinha humor algum, tudo o que a interessava eram assuntos de estado. Sigourney era seca como torrada velha. — Archigos, se esse co’Kinnear tem uma informação tão vital, por que não contou aos offiziers superiores e passou pela cadeia de comando?

— Isto eu não sei, conselheira — respondeu o archigos. — Mas havia alguma coisa... Eu pensei... Quando co’Kinnear me pediu para falar com o senhor, kraljiki Audric, eu pensei ter ouvido a Voz de Cénzi me dizer que eu deveria escutar. Eu podia ter jurado... — O velho balançou a cabeça, e Audric suspirou com impaciência novamente. — Que mal faria ouvir o sujeito por alguns instantes? Daqui a duas semanas será o segundo cénzidi do mês; se ele puder ser colocado na lista de suplicantes para a sua audiência de sempre, kraljiki...

Presa na pintura, Marguerite pareceu dar de ombros à luz de velas. Audric jogou as pernas para fora da cama. Seaton correu para ajudá-lo a ficar de pé, mas ele dispensou o criado com um gesto e falou — Certo. Combine com Marlon, archigos. Verei este modelo de perfeição da Garde Civile no segundo cénzidi, mas só se nenhum navio expresso chegar nesse meio tempo com notícias mais atuais dos Hellins. Essa é uma solução satisfatória?

O archigos fez uma mesura e o sinal de Cénzi para Audric, depois para a conselheira. Ca’Ludovici pareceu abafar um riso. — Agora — disse o kraljiki —, eu estou com fome, e há compromissos aos quais pretendo comparecer na noite de hoje, então, se não houver mais assuntos...

 

A Pedra Branca

O AR ESTAVA TOMADO por sussurros e imprecações, e eles não vinham apenas das vozes na mente da Pedra Branca. Nessântico estava abalada pelos acontecimentos da última semana, com a fuga do regente e a traição dos numetodos. Ela viu os esquadrões passarem com raiva e desconfiança pelas alamedas e becos do Velho Distrito; ela tinha sido questionada duas vezes, arrastada e interrogada como se pensassem que ela pudesse ser um dos numetodos. A Pedra Branca teve o bom senso de demonstrar a dose certa de medo; o suficiente para acalmá-los, mas não o bastante para alimentar as suspeitas. Outras pessoas não tiveram a mesma sorte; a Pedra Branca viu dezenas sendo levadas para um interrogatório detalhado na escuridão cruel da Bastida, e não sentiu inveja delas.

Teria sido tão mais fácil para eles se tivessem contratado a Pedra Branca. A vida do regente; a vida do embaixador; ela teria apagado os dois como uma vela extinta à luz do dia — vidas que não eram mais necessárias ou desejadas. Ela poderia ter colocado suas almas na pedra que levava entre os seios.

Mais loucura para você sofrer... As vozes riram diante da ideia. Você vai se perder completamente entre nós...

Em breve...

Em breve...

O refrão era uma batida forte de tambor em sua cabeça. A voz furiosa de Fynn era a mais alta de todas.

Em breve...

Em breve...

— Talvez não — disse ela para as vozes. — Eu sou mais forte do que vocês pensam. Afinal, eu matei todos vocês. — ela disse as palavras em voz alta, e as pessoas próximas nas ruas olharam para ela com pena, irritação ou medo. A Pedra Branca não se importava com esse tipo de reação.

O sol da manhã se levantou sobre a estátua do kraljiki Selida II no chafariz do centro do Velho Distrito; o globo ardia como se a ponta da espada erguida do kraljiki pegasse fogo. À direita da praça estava a enorme estátua de Henri VI, que também lançava uma sombra comprida. A náusea matinal que a atormentava todo dia sempre que acordava tinha ido embora, e o cheiro de croissants amanteigados da padaria a algumas portas de distância provocou sua fome novamente. Ela esfregou a barriga; podia sentir o inchaço no estômago debaixo da tashta; em breve, não conseguiria esconder a gravidez de maneira alguma.

Em breve...

— Calem-se! — berrou a Pedra Branca, e a voz fez os pombos saírem voando do chão da praça, para depois pousarem novamente a alguns passos de distância. Alguém riu ali perto, presente em um grupo de rapazes que apontavam para ela, e a Pedra Branca respondeu com um gesto obsceno que só fez aumentar a gargalhada.

Em breve...

Vou destruí-la como você me destruiu. Este era Fynn. Em breve...

Com a cara fechada, ela foi empurrando as pessoas até chegar à padaria e jogou uma se’folia de bronze no balcão. — Croissants — disse.

Ela já tinha comido dois croissants antes de chegar à casa que ocupava, a alguns quarteirões do centro. O pão doce e molhado aplacou a dor na barriga e baniu as vozes. Ela estava pegando a chave do quarto quando ouviu barulho: algo sendo arrastado, uma respiração. Ela parou, pousou o saco com os croissants que tinham sobrado e levou a mão ao cabo da faca enfiada na faixa da tashta. O som vinha de um pequeno espaço entre sua casa e o prédio ao lado. Ela espiou as sombras púrpuras e viu uma silhueta que tremia, encolhida contra a lateral da casa.

— Eu estou vendo você aí — falou ela. — Saia.

Ela esperava que a pessoa corresse, que fugisse para o outro lado, na direção da viela atrás da casa. Mas a silhueta apenas se mexeu e ficou em pé devagar, e sob a luz fraca do céu que clareava, ela notou que era uma criança. Ele saiu lentamente, arrastou os pés e manteve as costas voltadas para a parede da estrutura, os olhos arregalados espiaram a Pedra Branca e desviaram o olhar novamente. O rosto estava sujo de lama, o cabelo totalmente desgrenhado.

— O que foi? Está com medo de mim?

— Você é a mulher maluca — respondeu o menino, e as vozes vibraram de alegria, a de Fynn a mais alta de todas. Viu só? Eles já sabem. Em breve...

— O que você está fazendo aqui? — perguntou ela.

O menino deu de ombros. — Esperando.

— Esperando o quê?

Ele repetiu o gesto. — Nada.

— Só um idiota espera por nada, menino. O que você está escondendo? — A Pedra Branca ergueu o dedo e deteve o menino quando ele ia dar de ombros novamente. — Não minta para mim, menino. Eu sou a mulher maluca, lembra-se? Eu posso ouvir o que você está pensando. — Ela bateu com o dedo na testa. As vozes vibraram novamente. Mentirosa! Charlatã! — Então é melhor que me conte a verdade: de quem você está se escondendo?

O menino olhou para ela com desconfiança e inclinou a cabeça de lado, como se tivesse escutado as vozes. — Os soldados. Aqueles de azul e dourado.

— A Garde Kralji? — Ela cuspiu no chão entre os dois. — Eu os conheço. Ah, eu os conheço bem. Mas por que você está se escondendo deles? Os soldados não estão procurando por você, menino, a não ser que seja um numetodo. — Ele torceu a cara de um jeito esquisito ao ouvir isso, e ela olhou de soslaio para o menino enquanto esfregava o estômago. Havia uma agitação estranha ali, e se perguntou se ficaria enjoada novamente ou se sentia a criança pela primeira vez. — Você é um numetodo? É por isso?

— Não — disse ele, rapidamente, mas a Pedra Branca já tinha visto muitas mentiras e falsidades na vida e sabia que o menino dizia menos do que podia. Ela observou com mais atenção, viu a roupa suja e o cabelo emaranhado. Notou os ossos das bochechas.

— Quando foi a última vez que você comeu?

O menino deu de ombros novamente.

— Você mora aqui perto?

Ele fez uma careta. — Eu... eu morava. Logo ali. — Apontou para a viela. — Mas... eu não sei... — Ele parou, e a Pedra Branca viu o lábio do menino tremer. Ele fungou e passou a manga rapidamente pelos olhos, fechou bem a boca. A resistência, a recusa em deixar que ela visse como ele estava assustado e amedrontado tomaram a decisão pela Pedra Branca. Ela sorriu para o menino ao se agachar em sua frente. Deveria ter sido um movimento fácil, mas a cintura mais larga fez com que ela sentisse como se seu corpo fosse de outra pessoa.

— Você tem um nome? — perguntou ela.

— Nico. Meu nome é Nico.

— Então por que você não vem comigo, Nico? Eu tenho alguns croissants e um pouco de manteiga. Talvez eu consiga achar uma fatia ou duas de carne. Não parece bom? — A Pedra Branca ofereceu a mão para o menino, que aceitou com hesitação, e ficou de pé. As vozes riram dela, debocharam. A Pedra Branca ficou mole como lama...

Ela as ignorou e andou com Nico até sua casa.


CONTINUA

MOVIMENTOS

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Nico Morel

Jan ca’Vörl

Sergei ca’Rudka

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Audric ca’Dakwi

Karl ca’Vliomani

Varina ci’Pallo

A Pedra Branca


Allesandra ca’Vörl

— A PEDRA BRANCA...

— Deve ter sido o kraljiki que contratou o assassino...

— Os numetodos o contrataram...

— Os tennshas o contrataram...

— Eu ouvi dizer que a própria a’hïrzg foi marcada para morrer, e o filho dela...

Allesandra ouviu os rumores. Era impossível escapar, eles sufocavam Firenzcia como a bruma que surgia todas as noites das florestas em volta do palácio da Encosta do Cervo, para onde a família fora levada depois do assassinato, sob ordens do starkkapitän Armen ca’Damont e do comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg. — O comandante e eu podemos protegê-los melhor lá, a’hïrzg — disse ca’Damont. Ela concordou com a cabeça, com a face impassível.

Fingimento... Allesandra tinha que manter a expressão adequada. Tinha que fazer com que os ca’ e co’ acreditassem que ela sofria. Tinha que fazê-los acreditar no que a a’hïrzg pediria para eles.

Em breve. Mesmo que houvesse pouca esperança agora.

A segurança era visível por toda parte do palácio, com gardai aparentemente em todos os cantos. Allesandra estava na sacada mais alta neste momento e olhava para os topos dos abetos lá embaixo, nas encostas íngremes das montanhas, e para os filamentos cinza esbranquiçados da névoa que passavam entre as árvores e que aumentavam conforme o sol se punha. Ela esfregou um seixo claro e chato entre os dedos.

Allesandra ouviu a porta da sacada ser aberta, seguida por um murmúrio de vozes masculinas. Ela virou-se e viu Semini se aproximar como um urso, vestido de verde e com uma expressão soturna. O archigos não disse nada, foi pé ante pé até a a’hïrzg e parou a uma curta distância — havia gardai em ambos os lados dos dois, a vários passos cautelosos de distância. Ele colocou os braços no parapeito da sacada e olhou para a bruma que se enroscava como braços musculosos em volta das árvores, como fantasmas que cuidavam de um jardim e estendiam as mãos para arrancar as ervas daninhas entre as plantas. De vez em quando, um fiapo de névoa chegava ao nível da sacada e, levado pelo ar frio e úmido, passava pelos tornozelos de Allesandra como se tentasse puxá-la para a escuridão cada vez maior.

— Então... — A palavra soou como um vento baixo entre as agulhas dos pinheiros. — Será que a Pedra Branca virá atrás de mim agora? — Ela viu o olhar do archigos se voltar para o seixo em seus dedos.

— Eu não contratei o assassino, Semini — disse Allesandra. O assassino... ela pensou a respeito disso neste momento. Elissa parecia ter desaparecido no mesmo dia em que o hïrzg morreu, o que deixou Jan arrasado com outro golpe emocional forte como um martelo, somado à morte de seu onczio Fynn. Dois dias depois, chegou uma mensagem nervosa de Jablunkov que dizia que Elissa, filha de Elissa e Josef (nome de solteiro ca’Evelii) ca’Karina, morrera há seis anos e que perguntava se a a’hïrzg possivelmente não cometera algum engano.

Allesandra ficou pensativa. Era possível que “Elissa” tivesse fugido apenas porque sabia que a a’hïrzg mandou uma carta para a família ca’Karina. Era possível que não houvesse conexão entre o desaparecimento dela e a morte de Fynn. Ainda assim, ser próxima de Jan significava que Elissa também tinha acesso a Fynn, e segundo a experiência de Allesandra, era perigoso acreditar em coincidência. Ao contrário, era mais seguro ver a faca afiada da conspiração sob o véu da coincidência.

A voz da Pedra Branca... será que podia ser a voz de uma mulher falando grosso?

Semini acenou com a cabeça ao ver o seixo na mão dela. — Isto é...?

Allesandra ergueu o seixo para que ele pudesse vê-lo e falou — Sim, foi isso que a Pedra Branca deixou para trás. O seixo... me faz lembrar de Fynn e me faz lembrar que encontrarei quem contratou a Pedra Branca e que punirei a pessoa.

Outro aceno. Semini olhou novamente para as árvores lá embaixo. — O Conselho dos Ca’ será unânime em nomeá-la como hïrzgin. Parabéns. — O tom de voz não tinha emoção. — Mas você podia ter conseguido isso há semanas, se não tivesse mandado Jan salvar Fynn.

— Fico contente que alguém se lembre disso. Mas... eu não tenho intenção de ser hïrzgin, Semini.

A afirmação fez o archigos encará-la novamente. Uma mão cofiou a barba grisalha enquanto os olhos negros vasculhavam os dela. — Você está falando sério.

— Estou.

— Eu pensei...

— Você pensa demais, Semini. — Ela abrandou a crítica com um sorriso. O garda atrás dela olhava para o outro lado, e o corpo da a’hïrzg bloqueava o homem em sua retaguarda. Allesandra esticou a mão para afagar o braço do archigos. — Eu pretendo renunciar ao título de a’hïrzg. Afinal, muitas pessoas pensarão exatamente como você neste momento. Sempre haveria rumores de que eu mandei matar Fynn para ficar com o trono em Brezno. Se eu renunciar, a fofoca morrerá com minha abdicação. Deixarei que o Conselho dos Ca’ nomeie um novo hïrzg para Firenzcia.

Semini arqueou uma sobrancelha grossa. — Você falou com Pauli?

A menção do nome criou uma barreira gelada entre os dois, ou talvez fosse a bruma. Ela recolheu a mão e falou com rispidez — Essa não é uma decisão que meu marido deva tomar. — Depois sorriu novamente. — Mas será interessante ver a cara dele quando eu estiver diante do Conselho e disser que abdico. E espero que seja uma completa surpresa para ele, Semini. E também espero que Pauli volte correndo com raiva para Magyaria Ocidental no dia seguinte, para reclamar com o gyula Karvella que foi arruinado pela esposa que Karvella e o hïrzg Jan escolheram a dedo para ele.

— Você realmente deixaria a decisão para o Conselho?

— Ah, eu já falei com alguns dos integrantes. Um número suficiente para os meus propósitos, de qualquer maneira. Eu sugeri que, após a devida deliberação, o Conselho possa vir a crer que as recentes ações de meu irmão mostraram quem ele atualmente favorecia como sucessor: alguém que demonstrou amplamente sua lealdade e habilidade. Ora, Jan seria um belo hïrzg quando crescer, você não acha? Um hïrzg que governaria bem e com força por muitos e muitos anos.

Semini riu, baixinho a priori, depois com mais entusiasmo. — Então esta é a sua intenção.

A pedra parecia gelo na mão de Allesandra. — Não inteiramente. Eu penso no futuro, Semini. Talvez quando os Domínios e a Coalizão estiverem unidos novamente e um líder competente esteja sentado no Trono do Sol, e haja um archigos de direito no Templo de Cénzi que também tenha unificado as metades separadas da fé concénziana, então Jan seria o braço direito perfeito do kralji.

Havia um enorme sorriso no rosto de Semini agora. — Allesandra, você me surpreende.

— Eu não deveria surpreendê-lo. Você e eu, Semini, estamos no mesmo lado nessa história. — Allesandra esfregou a pedra entre os dedos e enfiou em um bolso da tashta. Ela mandaria dourá-la e colocaria em uma corrente elegante. Usaria a pedra debaixo da tashta quando falasse com o Conselho, usaria ao lado do globo partido de Cénzi que a archigos Ana lhe dera. Seria um lembrete da culpa, uma lembrança de que agiu precipitadamente e fez pior com o irmão do que o vatarh e ele jamais fizeram com ela. Sinto muito, Fynn. Sinto que nunca nos conhecemos de verdade. Sinto muito...

Ela colocou a mão no parapeito, perto da mão do archigos, e olhou novamente para as brumas. Alguns instantes depois, Allesandra sentiu o calor da mão de Semini cobrir a sua.

Os dois ficaram assim até a escuridão chegar e as primeiras estrelas furarem o azul-escuro do céu.

 

Enéas co’Kinnear

A BOCA DO A’Sele era mais larga neste ponto. A cidade de Fossano ficava na margem sul, os morros ao norte eram minúsculos e tinham uma cerração azul do outro lado, elementos que sumiram quando eles fizeram a curva e entraram no golfo escancarado da baía A’Sele. Dezenas de navios mercantes cortavam as águas marrons cheias de sedimentos para seguir rio acima até Nessântico, ou rio abaixo na direção de Karnmor ou de outros países ao norte e ao sul, ou até mesmo para cruzar o próprio Strettosei. A água da baía A’Sele era colorida pelo solo que o rio A’Sele trazia dos afluentes e serpenteava em seu frescor de água doce, que com o tempo desaparecia nas profundezas azuis das águas salgadas do Nostrosei.

Enéas finalmente estava de volta à Nessântico propriamente dita. De volta aos Domínios. De volta ao continente. O cheiro de água salgada era mais fraco aqui, e ele estava bem longe dela. Daqui, Enéas viajaria pela estrada principal na direção leste para Vouziers, depois seguiria para Nessântico ao norte, finalmente.

Em casa. Ele estava quase em casa. Podia sentir o gostinho.

Em Fossano, tudo era familiar e deixava Enéas à vontade. A arquitetura lembrava os sólidos prédios enfeitados da capital, assim como os templos eram réplicas menores das grandes catedrais da margem sul de Nessântico ou da Ilha A’Kralji, a uns 150 quilômetros de subida pelas águas caudalosas do A’Sele. Não havia nada dos prédios quadrados e lisos dos ocidentais, nem das torres esquisitas e das casas caiadas nas encostas de Karnor.

Os Hellins e as batalhas que Enéas vivenciou pareciam distantes enquanto ele observava do interior de uma taverna nas Colinas do Sul, como se tivessem acontecido com outra pessoa, em outra vida. Ele flutuava separado das memórias; podia vê-las, mas não tocá-las, e não podia ser tocado por elas.

Mas... sempre na cabeça havia esta voz fraca, a voz que ele agora sabia que era de Cénzi. Sim... eu ouço, Senhor de Tudo. Eu ouço...

Enéas ouviu a voz Dele agora, ao tocar na bolsa com o nitro que comprou em Karnor pesando ao fundo. Ele estava parado em frente à janela aberta do quarto na Hospedaria do Velho Chevaritt e sentiu um leve cheiro de queimado por perto, e a Voz mandou que Enéas saísse. Saia. Encontre a fonte. Descubra o que é necessário agora.

Ele obedeceu, como devia. Colocou o uniforme, afivelou a espada na cintura e saiu da estalagem.

As ruas de Fossano subiam e desciam por ladeiras íngremes e espalhavam-se como se tivessem sido projetadas por um bêbado. Esta parte da cidade, do lado de fora das velhas muralhas e longe do centro populoso, tinha sido área de cultivo até recentemente. As casas e os prédios ainda eram bem separados por pequenos campos onde ovelhas, cabras e vacas pastavam ou onde fazendeiros plantavam colheitas. O cheiro intenso de queimado ficava mais forte à medida que Enéas seguia a estrada e afastava-se da cidade, até que as casas sumiram completamente e a estrada virou nada mais que uma trilha cheia de sulcos tomada pelo mato.

Enéas deu a volta por uma saliência de granito cheia de árvores. Era visível o rastro azulado de fumaça que saía de perto de uma cabana caindo aos pedaços, em um campo sem cultivo. O pátio estava cheio de braçadas de lenha, e três homens amontoavam os feixes em uma pilha circular — que já tinha o dobro da altura de um homem e vários passos de diâmetro. Ali perto, outro monte de madeira fora coberto por terra e grama, e saía fumaça dos buracos de ventilação em volta do perímetro do morrinho e da chaminé coberta no topo. Os homens ergueram o olhar quando Enéas se aproximou, e ele jogou a capa de viagem para trás a fim de revelar o brasão da Garde Civile e o cabo da espada: os carvoeiros eram conhecidos por serem um grupo bruto e indigno de confiança que morava em áreas de floresta fora da cidade. Um monte de lenha podia levar duas ou três semanas em combustão lenta até se transformar em puro carvão negro e exigia um cuidado constante, ou os carvoeiros encontrariam apenas cinzas quando tirassem a cobertura de terra. Eles viviam isolados, saíam apenas para vender os sacos de carvão que produziam e iam embora para novas áreas de floresta quando acabavam as árvores adequadas por perto. A reputação ruim dos carvoeiros era piorada pelo fato de que eles geralmente misturavam pedaços de terra e rochas ao carvão, de maneira que a qualidade do produto podia ser menor do que a desejada. Em Nessântico, havia e’ténis cuja tarefa era produzir carvão de qualidade, parecido com gemas, que era usado nas fornalhas da grande cidade e no aquecimento das casas dos ca’ e co’. Aqui, o serviço não era feito através do poder do Ilmodo, mas sim pelo trabalho árduo e sujo de pessoas comuns.

Enéas acenou para os carvoeiros enquanto eles encaravam o offizier com braços cruzados ou mãos na cintura. — Que cê quer, vajiki? — perguntou um deles. O homem tinha um cisto debaixo do olho esquerdo que parecia uma meia uva vermelha grudada na pele, cercado por um tufo de cabelo crespo que combinava com a barba rala; havia um cisto igual meio fora do centro da testa. Ele era muitos anos mais velho do que os outros dois sujeitos; Enéas perguntou-se se o homem não seria o vatarh ou onczio dos mais jovens. — Perdeu sua tropa, hein? — O trio riu da piada ruim do carvoeiro com uma risada tão sombria quanto a fuligem que sujava as mãos e os rostos.

— Eu preciso de carvão — falou Enéas. — Da melhor qualidade que vocês tiverem. Um saco sem impurezas. É isso que Cénzi deseja.

Eles riram novamente. O homem com os cistos esfregou o rosto. — Cénzi, hein? Cê tá dizendo que é Cénzi ou é um téni também, vajiki? Ou talvez seja meio ruim das ideias? — Novamente Enéas foi atacado pelas risadas, enquanto o vento fez a fumaça do fogo envolver os carvoeiros. — Nós estaremos na cidade no próximo mizzkdi, vajiki, com todo carvão que cê quiser. Espere até lá. Tamos ocupados.

— Eu preciso agora — insistiu Enéas. — Amanhã eu vou embora da cidade para Nessântico.

O homem deu uma olhada para os companheiros. — Viajando, hein? Cê não é de Fossano, então? — Enéas fez que não com a cabeça. O velho carvoeiro sorriu. — Ele é elegante, não é, rapazes? Ora, aposto que é da própria Nessântico. E aposto que tem uma bolsa cheia o suficiente para comprar todo o carvão que ele quer e mais um pouco.

O sujeito deu um passo na direção de Enéas, que puxou meia espada da bainha e falou — Eu não quero confusão, vajiki, apenas o seu carvão. Pagarei um bom preço por ele; o dobro do preço, com a benção de Cénzi e sem barganha.

— O dobro do preço e ainda por cima com uma benção. — Outro passo. — A gente tá com sorte, hein, rapazes? — Os dois carvoeiros mais jovens foram lentamente para cada lado de Enéas a fim de cercá-lo. Ele viu uma faca na mão de um homem; o outro segurava um pedaço de lenha como um porrete.

Enéas já tinha visto brigas suficientes na vida; elas eram endêmicas entre as tropas e bem comuns nas tavernas das cidades, à noite. Ele sabia que a bravura do grupo duraria apenas enquanto o líder permanecesse intocado. O homem com os cistos sorria agora ao se abaixar para também pegar um pedaço de lenha. Ele bateu com o pau na palma da mão cheia de calos. — Tô achando que cê vai dar essa bolsa pra gente agora, vajiki, se quiser evitar uma surra — falou o sujeito. — Afinal de contas, três contra um...

Isto foi o máximo até onde o homem chegou. Em um único movimento, Enéas sacou a espada da bainha e atacou, o aço retiniu e reluziu à luz do sol. O porrete improvisado do carvoeiro voou longe, com a mão ainda na madeira. O homem ficou boquiaberto e olhou para o toco que jorrava sangue no braço. Ele gritou enquanto Enéas dava meia-volta, e a espada agora ameaçava a garganta do homem com a faca. O carvoeiro soltou a arma e recuou às pressas; o outro encarou com olhos arregalados o homem com os cistos, que caiu de joelhos e continuou a gritar enquanto a mão remanescente apertava o toco no antebraço. — Amarrem o braço para estancar o sangramento se vocês quiserem que seu amigo viva — falou Enéas. Ele pegou a faca que o homem deixou cair. — Onde está o carvão?

Um deles gesticulou na direção da cabana tosca. Enéas viu uma carroça ali com blocos escuros empilhados em um canto. Havia uma pilha de sacos de aniagem perto de uma das rodas. Ele limpou a lâmina na grama do campo, embainhou a espada, foi a passos largos até a carroça e encheu um dos sacos. O homem, cuja mão Enéas decepou, passou a gemer e lamuriar e caiu de lado enquanto os dois companheiros ficaram ajoelhados ao lado dele. Enéas pendurou o saco no ombro, voltou até os carvoeiros e jogou uma única sola de ouro na grama entre eles — mais dinheiro do que os homens ganhariam por uma carroça cheia de carvão. Eles olharam fixamente para a moeda. O mais jovem tinha amarrado um torniquete em volta do toco do líder, mas o rosto do sujeito estava pálido e os cistos destacavam-se como seixos vermelhos no rosto. Uma ferida como aquela, Enéas sabia, podia ser fatal: pela perda de sangue ou pela gangrena que geralmente acometia braços e pernas feridos.

— Que Cénzi tenha piedade de você — falou Enéas para o carvoeiro. — E que Ele lhe perdoe por impedir Sua vontade.

Dito isso, ele ajeitou o peso do saco no ombro e começou a voltar para a cidade.

 

Nico Morel

— ELE É APENAS UM MENINO, KARL. Uma criança inocente. Não ouse machucá-lo.

Nico ouviu a voz de Varina através da porta trancada ao se aninhar na pilha de lençóis contra a parede de madeira. Ele escutou uma voz de homem responder — imaginou que fosse Karl —, mas o tom era baixo demais, e Nico não conseguiu distinguir todas as palavras com a parede de madeira entre eles, apenas a frase “... o que eu tiver que fazer”. Então a porta foi aberta, e Nico jogou o braço sobre os olhos para se proteger da luz que veio do outro cômodo. Uma sombra surgiu na passagem e se dirigiu até ele, os passos ecoaram alto nas tábuas do piso que rangia. O menino pestanejou ao erguer o olhar para o homem, vislumbrou o cabelo grisalho, a barba bem feita, e os olhos gentis que contrastavam com a boca franzida debaixo do bigode. Sua bashta era elegante e limpa, o tecido reluzia e era macio ao roçar na pele de Nico quando o homem se ajoelhou em frente a ele. Um dos ca’ e co’, decidiu o menino.

— Eu não sei de nada — repetiu Nico, cansado, antes que o homem pudesse falar. Ele já tinha repetido as palavras muitas vezes, em todas as variações que era capaz de tirar da mente cansada. A mulher, Varina, não parou de perguntar sobre Talis: se ele sabia onde Talis morava agora; qual era a conexão entre ele, sua matarh e Talis; se sabia de onde Talis era ou o que fazia; e onde Talis aprendeu a usar o Ilmodo (só que Varina às vezes usava outra palavra para “Ilmodo”, que parecia com “scati” ou alguma coisa assim). Nico não disse nada porque sabia que Talis não queria isso. Eles queriam machucá-lo; o menino tinha certeza disso.

O homem fez uma concha com a mão diante de Nico e falou uma palavra estranha, como aquelas que Talis às vezes entoava quando fazia magia. O menino sentiu o frio do Ilmodo perto dele, os pelos nos antebraços ficaram eriçados quando surgiu uma bola de luz amarela e fraca, como uma bola de chamas na palma virada para cima do homem. Na luz, Nico viu o rosto claramente e conteve um gritinho.

Ele conhecia aquele rosto. Este era o homem que atacou Talis na rua: o embaixador ca’Vliomani, o numetodo. Nico gemeu e encostou-se na parede, como se pudesse atravessar a madeira e sair para a liberdade. Ele queria ser tomado pela fúria gelada novamente, mas estava tão cansado e assustado que não conseguiu invocar o sentimento.

— Ah, então você realmente me reconhece — disse o homem. — Pensei que isso fosse acontecer. Eu certamente reconheço você, Nico. — O menino ouviu o sotaque, mas não era o mesmo que Talis tinha. A fala era cantada, rodopiava e vinha mais do fundo da garganta, em vez do nariz. O “r” era dobrado, ele dizia “rreconheço.” O embaixador desceu a mão para o chão, e a bola de luz rolou preguiçosamente até o assoalho. A sombra comprida do homem se deslocou pelas paredes.

— O senhor vai me machucar? — A voz de Nico soou miúda e quase perdida aos próprios ouvidos: uma casquinha, o sussurro de uma brisa.

O homem não respondeu. Não diretamente. — Da última vez que vi você, Nico, eu quase fui morto pelo homem que estava ao seu lado. Qual era o nome dele? Talis? — Nico balançou a cabeça, mas o embaixador sorriu diante da negativa e continuou — Eu realmente preciso falar com Talis, Nico, e aposto que você também gostaria de falar com ele.

— O senhor está furioso com Talis. Tentará machucá-lo.

— Eu não estou furioso com ele — respondeu o embaixador. — Eu sei que é difícil para você acreditar, mas é verdade. Existem coisas que preciso perguntar para Talis, coisas urgentes e importantes, e ele não me deu uma chance. Só isso. Nós tivemos um... desentendimento.

— O senhor promete?

Karl não respondeu, mas meteu a mão dentro de uma bolsa presa à lateral do corpo, desdobrou alguma coisa em papel de seda, e segurou na direção do menino. Nico recuou um instante, depois inclinou-se para frente novamente quando o embaixador continuou a oferecer a mão: na palma havia uma tâmara roliça, salpicada de mel e de amêndoas picadas. A boca de Nico ficou cheia de água; Varina tinha servido pão, queijo e água, mas ele ainda continuava com um pouco de fome após a longa caminhada de Ville Paisli, e a visão da tâmara deu uma incontrolável água na boca. — Vamos, Nico, pegue — falou o homem. — Eu trouxe só para você.

Hesitante, Nico esticou a mão para o fruto doce. Quando os dedos tocaram o papel barulhento e amassado, ele arrancou a tâmara da mão do embaixador tão rápido quanto foi capaz. Enfiou o doce inteiro na boca, e a leve doçura do mel desceu pela língua e misturou-se ao gosto azedo da tâmara. O homem continuou sorrindo ao encará-lo. O menino achou que o rosto dele não parecia tão furioso neste momento, e havia uma ternura nas rugas em volta dos olhos.

— Sabe, eu tenho netos que têm mais ou menos a sua idade — disse Karl. Um pouco mais novos, mas não muito. Você gostaria deles, creio eu, se os conhecesse. Meus netos vivem na Ilha de Paeti. Você sabe onde ela fica?

Nico concordou com a cabeça. A matarh mostrara para ele um mapa dos Domínios, apontara os países e fizera com que aprendesse.

— Paeti é bem longe daqui — disse o embaixador. — Mas eu gostaria de voltar lá um dia. E você, Nico? Nasceu aqui em Nessântico?

Outro aceno com a cabeça. Nico lambeu os beiços e sentiu o gosto do resto do mel grudento.

— E quanto à sua matarh? De onde ela é?

— Daqui. — A palavra saiu meio abafada. O gosto persistente da tâmara ficou amargo. Nico pigarreou.

— Ah... — O homem pareceu considerar a informação por um momento e afastou momentaneamente o olhar. Ele notou um movimento na porta e viu Varina apoiada ali. O embaixador e ela entreolharam-se, e algo no jeito daquele olhar fez o menino pensar que eles eram um casal, como Talis e sua matarh. — E seu vatarh? Talis é daqui?

O menino começou a balançar a cabeça, depois parou. Talis não iria querer que Nico falasse sobre ele. O que aconteceu tem que ser um segredo... Foi isso que Talis disse. Ele confiava em Nico.

— Ele é das Terras Ocidentais, depois dos Hellins, não é? — insistiu Karl. — Ele é um daqueles que se chamam de tehuantinos. Nico, você sabe que os Domínios estão em guerra com os ocidentais, não sabe? Você compreende isso?

Um aceno de cabeça. Nico não ousava abrir a boca. Ele jamais tinha ouvido aquela palavra: tehuantino. Entretanto, parecia como uma palavra que Talis diria, só pelo som. Ele foi capaz de ouvi-la no sotaque de Talis.

— Onde está sua matarh, Nico? Nós temos que levar você até ela, mas precisa nos dizer onde está sua matarh.

— Ela está com a minha tantzia — disse Nico. — Ela está bem longe daqui. Eu... abandonei minha matarh. — O menino não queria contar ao embaixador sobre os primos e a maneira como foi tratado por eles, mas pensar naquilo trouxe a lembrança da matarh, e de repente Nico queria estar com ela, acima de tudo. Sentiu lágrimas brotarem de seus olhos e os limpou quase com raiva, sem querer que o embaixador visse. Varina saiu da porta e agachou-se ao lado de Nico. Ela abraçou o menino, o que foi quase tão bom quanto um abraço da matarh.

— Talis está com sua matarh? — indagou Karl.

Esta parecia ser uma pergunta inofensiva o suficiente para responder. Nico não queria que o embaixador fosse até a matarh, e se soubesse que Talis não estava lá, bem, ele a deixaria em paz. — Não — falou Nico. Ele fungou o nariz.

— Karl, já chega — disse Varina.

O embaixador ignorou a mulher. — Onde está Talis agora, Nico?

— Eu não sei. — Quando ca’Vliomani ficou ali ajoelhado, sem dizer nada, Nico deu de ombros. — Eu não sei. Não sei mesmo.

Ca’Vliomani inclinou a cabeça de lado ao olhar para Nico. Ele pegou o queixo do menino e levantou sua cabeça até o menino ser forçado a encarar os olhos do embaixador, que não piscava. Nico viu Varina ficar nervosa. — Isso é a verdade?

O menino concordou com a cabeça enfaticamente. O homem olhou fixamente por mais alguns instantes, depois afastou a mão. Ele e Varina entreolharam-se novamente. Para o menino, parecia que os dois falavam sem dizer nada. Os dedos de ca’Vliomani cofiaram a barba, e ele fez uma careta de desdém, como se estivesse insatisfeito. A voz pareceu mais leve e menos sinistra agora. — O que você fazia no Velho Distrito, Nico? Por que não está com sua matarh?

Isso era complicado demais para responder. Nico balançou a cabeça para conter a confusão de respostas possíveis. Ele mesmo não tinha certeza por que estava aqui, neste momento. — Eu pensei que, talvez... — As lágrimas ameaçaram escorrer novamente, e o menino parou para tomar fôlego. — Eu pensei que Talis ainda pudesse estar onde a gente morava.

— Ele não está. — Foi Varina quem respondeu. A mão dela fez carinho nas costas de Nico. — Nós andamos vigiando.

— Bem, então ele viu vocês — falou Nico com confiança. — Talis é esperto. Ele teria visto vocês vigiando e não iria para casa.

— Ele não teria me visto — respondeu Varina, mas o menino não acreditou. Ele limpou os olhos novamente.

— Você tem família aqui? — perguntou ca’Vliomani. — Alguém para cuidar de você?

— Só Talis. Só ele.

Ca’Vliomani suspirou e ficou de pé soltando um gemido, os joelhos estalaram com o esforço. — Então teremos que fazer Talis saber que você está conosco, e talvez nós dois consigamos o que queremos, hein?

 

Jan ca’Vörl

— SINTO MUITO, ONCZIO FYNN — sussurrou Jan. — Isso não deveria ter acontecido, e eu espero... espero que não tenha sido culpa minha. — A voz ecoou na tumba e agitou tênues fantasmas de si mesmo. A luz hesitante da tocha fez as sombras pularem e se sacudirem pelos selos de pedra das catacumbas. Era a segunda vez que ele tinha visto um hïrzg ser sepultado nestas câmaras úmidas e sinistras, rápido demais. Vatarh e filho. Pelo menos o funeral de Fynn não foi acompanhado por presságios e mais mortes. Foi um ritual lento e sombrio, que deixou Jan com uma dor no coração.

Ele procurou por toda parte por Elissa. Mandou batedores partirem de Brezno para vasculhar estradas, estalagens e vilarejos à procura dela, em todas as direções. Roderigo dissera que não havia visto Elissa perto dos aposentos de Fynn. — Mas eu estava longe do hïrzg quando aquilo aconteceu. Ela pode ter conseguido entrar de mansinho, ou talvez tenha sido outra pessoa. Eu não sei, simplesmente não sei.

As palavras tinham gosto de bile e veneno. Jan tentou se convencer de que era tudo coincidência. A matarh mostrou a carta que recebera da família ca’Karina: Elissa era uma impostora que fingia ser uma ca’. Mas talvez fosse só isso: ela fugira porque sabia que a farsa seria revelada. Talvez fosse isso e nada mais. Ou... talvez Elissa tivesse ido até Fynn para defender sua causa, pois sabia que seria exposta como uma fraude, e interrompeu a Pedra Branca durante o serviço. Talvez ela tenha fugido aterrorizada antes de ser vista pelo famoso assassino, tão assustada que sequer ficou na cidade depois do que viu. Ou talvez — pior ainda — a Pedra Branca viu Elissa e levou-a para ser assassinada em outro lugar.

Nada disso convenceu Jan. Ele sabia o que eles pensavam, todos eles, e quando sua intuição passou a aceitar a suspeita, Jan também soube que eles estavam certos. Uma impostora na corte, uma impostora que era a amante de companhia predileta do hïrzg — a conclusão era óbvia. Elissa era a cúmplice da Pedra Branca, ou ela mesma era a Pedra Branca.

Qualquer uma das hipóteses fazia a cabeça de Jan girar. Ele lembrava o tempo que passou com Elissa, as conversas, os flertes, os beijos; a respiração acelerada quando exploravam um ao outro; o calor escorregadio e melado do sexo, as risadas depois... o corpo de Elissa, esbelto e atraente no banho de luz cálida das velas; a curva dos seios com gotas de suor da paixão; o triângulo escuro, macio e atraente na junção das penas...

Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos.

Não podia ser ela. Não podia. No entanto...

Jan colocou a mão no selo de pedra da tumba de Fynn e deixou os dedos percorrerem o baixo-relevo gravado ali. — Sinto muito — disse ele novamente para o cadáver.

Se, de alguma forma, foi Elissa, então a questão ainda sem resposta era quem contratou a Pedra Branca. Ela não mataria sem um contrato. Alguém pagou a Pedra Branca para fazer isso. Se Elissa tinha sido a faca ou simplesmente a ajudante, não importava. Não foi ela que tomou a decisão. Outra pessoa encomendou a morte.

Jan abaixou a cabeça até a testa tocar a pedra fria. — Eu descobrirei quem fez isso — falou ele: para Cénzi, para Fynn, para o ar assombrado. — Eu descobrirei e lhe darei justiça, onczio.

Jan respirou fundo no ar frio e úmido. Ficou de pé com os joelhos rangendo e pegou a tocha no suporte. Depois começou a longa subida em direção ao dia.

 

Sergei ca’Rudka

— HÁ VERDADE NA DOR — disse Sergei. Ele falou o aforismo várias vezes ao longo dos anos, dizia para que a vítima soubesse que deveria confessar o que Sergei queria que ela confessasse. Ele também sabia que era mentira. Não havia “verdade” na dor, não realmente. Pelo contrário, com a agonia que Sergei infligia, vinha a habilidade de fazer a vítima dizer qualquer coisa que ele desejasse que ela dissesse. Vinha a habilidade de tornar “verdade” qualquer coisa que quem estivesse no comando desejasse que fosse verdade. A vítima diria qualquer coisa, concordaria com tudo, confessaria qualquer coisa desde que houvesse a promessa de acabar com o tormento.

Sergei sorriu para o homem acorrentado diante dele. Ele estava em frente aos instrumentos sinistros de tortura em um rolo de couro, mas aí sua percepção mudou: era Sergei quem estava deitado e preso na mesa e olhava para o próprio rosto. As mãos estavam acorrentadas, e ele sentiu um nó nas estranhas por causa do medo gelado. Sergei sabia o que estava prestes a sentir; ele tinha infligido em muitas pessoas. Sabia o que estava prestes a sentir e gritou pela expectativa da agonia...

— Regente?

Sergei deu um pulo ao acordar na cela, as algemas nos pulsos chacoalharam a curta corrente entre elas. Ele rapidamente desceu a mão até a faca que ainda estava na bota e fez questão de pegar o cabo para que, se viessem levá-lo para o interrogatório, conseguisse tirar a própria vida primeiro.

Ele não passaria pelo que forçou outros a passar.

Mas era Aris co’Falla, o comandante da Bastida, que entrou na cela, e Sergei relaxou e tirou os dedos do cabo. Aris prestou continência ao garda que abriu a porta e falou — Pode sair. Tem almoço para o senhor no andar debaixo. Volte aqui em meia virada da ampulheta.

— Obrigado, comandante — disse o garda. Ele prestou continência e foi embora. Aris deixou a porta aberta. Da cama onde estava, Sergei deu uma olhadela para a porta escancarada. O comandante notou o olhar.

— Você não passaria por mim, Sergei. Você sabe disso. Eu sou duas décadas mais novo, afinal de contas, e é meu dever, sem falar minha vida, impedi-lo.

— Você deixou a porta aberta apenas para zombar de mim, então?

Um sorriso surgiu e desapareceu como geada na primavera. — Você prefere que eu feche e tranque?

Sergei soltou um riso amargo, e a risada virou uma tosse cheia de catarro. Aris tocou o ombro dele com preocupação quando Sergei dobrou o corpo. — Quer que eu chame um curandeiro, meu amigo?

— Para quê? Para que eu esteja o mais saudável possível quando o Conselho mandar me matar? — Sergei balançou a cabeça. — É apenas a umidade; meus pulmões não gostam dela. Então me diga, Aris, que notícias você traz?

O comandante puxou a única cadeira na cela até ele, e as pernas fizeram um barulho alto ao serem arrastadas sobre os ladrilhos. — Eu destaquei um garda em quem confio totalmente para o Conselho; para minha própria segurança nestes tempos confusos, para ser franco. Portanto, muito do que sei vem da parte dele.

— Eu não preciso do preâmbulo, Aris; ele não vai mudar sua resposta, e presumo que eu já saiba qual é. Apenas conte.

Aris suspirou. Ele virou a cadeira ao contrário e sentou-se, colocou os braços dobrados sobre o encosto e apoiou o queixo nos braços. — Sigourney ca’Ludovici está forçando o Conselho a dar o poder que o kraljiki pede. Haverá uma reunião final em poucos dias, quando então ocorrerá uma votação.

— Eles realmente darão a Audric o que ele quer?

Um aceno de cabeça franziu o queixo barbado nas mãos de Aris. — Sim, creio que sim.

Sergei fechou os olhos e recostou a cabeça na parede de pedra. Sentiu o frio da rocha através do cabelo que ficava ralo. — Eles destruirão Nessântico em nome do poder. Todos eles, e Sigourney especialmente, pensam que Audric não durará um ano, o que deixará o Trono do Sol vago para um dos conselheiros, considerando que eu esteja morto.

— Sergei. — Ele ouviu Aris falar na escuridão de seus pensamentos. — Eu lhe avisarei. Prometo. Eu darei tempo para que você... — O comandante parou.

— Obrigado, Aris.

— Eu faria mais, se pudesse, mas tenho que pensar na minha família. Se o Conselho dos Ca’ ou o novo kralji descobrir que ajudei você a fugir, bem...

— Eu sei. Eu não pediria isso a você.

— Sinto muito.

— Não sinta. — Sergei abriu os olhos novamente e inclinou-se para frente. Ele tocou o rosto de Aris com a mão, e as algemas chacoalharam com o movimento. — Eu tive uma boa vida, Aris, e servi a três kralji da melhor maneira que pude. Cénzi vai me perdoar pelo que tenho que fazer.

— Ainda há esperança, e não é preciso fazer nada por enquanto. O Conselho pode cair em si e notar que o kraljiki está doente da cabeça assim como do corpo. Os conselheiros ainda podem soltar você; eles soltarão se o esforço do archigos Kenne e dos demais leais a você surtir algum efeito. O archigos Kenne já defendeu sua causa diante do Conselho, e suas palavras ainda têm alguma influência, afinal de contas. Não perca as esperanças, Sergei. Ambos sabemos muito bem a história da Bastida. Ora, a Bastida prendeu Harcourt ca’Denai por três anos antes de ele se tornar kraljiki.

Sergei riu e conteve a tosse que queria vir junto. — Nós somos homens práticos, Aris. Realistas. Não nos enganamos com falsas esperanças.

— É bem verdade. — Aris levantou-se. — Eu mandarei o garda trazer sua comida. E um curandeiro para examinar você, quer você queira ou não. — Ele deu um tapinha no ombro de Sergei e seguiu para a porta, mas parou com a mão na maçaneta. — Se a situação chegar a este ponto, Sergei, mandarei lhe avisar antes que qualquer pessoa venha levar você para os calabouços lá embaixo. — O comandante fez uma pausa e olhou intensamente para Sergei. — Para que possa se preparar. Tem a minha palavra quanto a isso.

Sergei concordou com a cabeça. Aris prestou continência e fechou a porta com um baque metálico. Sergei ouviu o rangido da chave na tranca. Ele recostou a cabeça novamente e escutou o som das botas de co’Falla na escada de caracol da torre.

Sergei lembrou-se do som nítido dos gritos que ecoavam na pedra e das súplicas estridentes daqueles mandados para o interrogatório. Lembrou-se dos rostos contraídos de dor. Havia uma honestidade na agonia, uma pureza de expressão que não podia ser fingida. Às vezes, Sergei pensava que via Cénzi nos interrogados: o Cénzi que Ele tinha sido quando Seus próprios filhos, os moitidis, voltaram-se contra Ele e dilaceraram Seu corpo mortal. Agora, como Cénzi, Sergei poderia encarar a fúria da própria criação.

Mas ele não enfrentaria. Ele prometeu a si mesmo. De uma maneira ou de outra, ele não enfrentaria.

 

Allesandra ca’Vörl

— OS CONSELHEIROS ESTÃO AQUI e já se sentaram, a’hïrzg — disse o assistente. — Eles me pediram para levar a senhora à câmara.

Allesandra estava no corredor do lado de fora da câmara do conselho, com Pauli e Jan de cada lado. A mão tocou a tashta de gola baixa onde — sob o pano — havia uma pedra branca comum cercada por uma filigrana de ouro, ao lado do globo da archigos Ana. Mesmo Pauli — que falava alegremente que a Magyaria Ocidental e Firenzcia juntas solidificariam a Coalizão quando ele fosse o gyula e Allesandra, a hïrzgin — calou a boca quando o assistente acenou com a cabeça para que os criados do corredor abrissem as portas duplas. Os três espiaram a penumbra lá dentro, onde o Conselho dos Ca’ estava sentado a uma grande mesa.

Jan, da parte dele, estava sério e quieto, este era seu estado desde a morte de Fynn e a partida de Elissa. Allesandra passou o braço pelos ombros do filho antes de eles entrarem. Ela inclinou-se na direção de Jan e sussurrou — Quando eu sair daqui, você deve ir para seus aposentos e esperar, entendeu?

Jan olhou estranhamente para a matarh, mas finalmente concordou com um ligeiro aceno de cabeça, confuso.

A câmara do Conselho dos Ca’ em Brezno era escura, com painéis de carvalho tingido nas paredes e um tapete da cor de sangue seco: era uma sala interior do Palácio de Brezno, sem janelas, iluminada apenas pelas velas dos candelabros sobre uma mesa comprida e envernizada (nem mesmo luzes mágicas), e fria por ter apenas uma pequena lareira em uma ponta. A sala era sombria e melancólica. Não era um lugar convidativo para uma longa estadia e conversas sem pressa — e isto era intencional. O hïrzg Karin, vavatarh de Allesandra, separou esta sala de propósito para o Conselho. Ele considerava as sessões do Conselho dos Ca’ tediosas e chatas; a falta de conforto na sala pelo menos garantia que as reuniões fossem curtas.

— Por favor, entre, a’hïrzg — falou Sinclair ca’Egan da cabeceira da mesa. Ca’Egan era velho e careca, um chevaritt de voz trêmula que cavalgou com o vatarh de Allesandra antes mesmo de ele ter sido nomeado a’hïrzg pelo hïrzg Karin. Ca’Egan estava no Conselho dos Ca’ desde que Allesandra o conhecia; como ancião, ele também era o líder titular do conselho. Quatro mulheres (uma delas Francesca), cinco homens: eles ficaram de pé simultaneamente, fizeram uma mesura para a a’hïrzg, uma gentileza que nem mesmo o Conselho dos Ca’ podia ignorar, e sentaram-se novamente. Seis dos nove, em especial, acenaram com a cabeça e sorriram para ela. Allesandra, Pauli e Jan ficaram de pé, como mandava a etiqueta, na outra ponta desocupada da mesa. Ca’Egan remexeu os pergaminhos diante dele e pigarreou. — Obrigado por virem. Nós seremos breves, com certeza. É uma mera formalidade, na verdade. O hïrzg Fynn já havia nomeado Allesandra ca’Vörl como a’hïrzg, portanto precisamos apenas de sua assinatura, a’hïrzg, e a dos conselheiros presentes...

— Vajiki ca’Egan — falou Allesandra, e o velho ergueu a cabeça, curioso com a interrupção. Ao lado direito da esposa, Pauli grunhiu diante da óbvia quebra de protocolo. — Eu tenho uma declaração para fazer antes que o Conselho coloque seu selo neste documento e mande-o para o archigos reconhecer. Venho pensando nesta questão desde que meu querido irmão foi morto e rezei para Cénzi por Sua orientação, e tudo ficou claro para mim. — Ela fez uma pausa. Esta é sua última chance de mudar de ideia... Semini argumentou com ela por uma ou duas longas viradas da ampulheta, quando estavam juntos na cama, mas Allesandra estava convencida de que essa era a estratégia correta. Ela respirou fundo. Sentiu o olhar curioso e impaciente de Pauli. — Eu não quero ser a hïrzgin, e por isso renuncio à minha pretensão ao título.

As sobrancelhas de ca’Egan se levantaram no crânio nu e enrugado, a boca abriu sem emitir sons. Francesca, em choque, recuou no assento, atordoada pelo anúncio, mas a maioria não se abalou. Eles apenas concordaram com a cabeça, com os olhares mais em Jan do que em Allesandra.

— Pelos colhões de Cénzi — berrou Pauli ao lado dela. O palavrão quase pareceu evocar um relâmpago no ar escuro da câmara. — Mulher, você ficou maluca? Sabe o que está fazendo? Você acabou de...

— Cale a boca — falou Allesandra para Pauli, que a olhou com raiva, mas fechou a boca imediatamente. Ela ergueu as mãos para os conselheiros. — Eu disse tudo o que precisava dizer. Deixo com o Conselho dos Ca’ a decisão de quem é o mais indicado para ocupar o trono de Brezno. No entanto, não serei eu. Confio no julgamento dos senhores, conselheiros. Sei que farão o que é melhor para Brezno.

Dito isso, ela fez o sinal de Cénzi para o Conselho e deu meia-volta, abriu as portas tão abruptamente que os criados do corredor, postados do lado de fora, quase foram derrubados. Pauli e Jan, surpresos com a saída repentina, seguiram com atraso. Allesandra ouviu o marido avançar atrás dela. A mão de Pauli pegou seu braço e girou a esposa. O belo rosto estava vermelho e contorcido, ficou feio de raiva. Atrás dele, Allesandra viu Jan parado em frente à porta aberta da câmara enquanto observava o confronto, a própria expressão era de perplexidade e incerteza.

— O que é isso, em nome dos sete infernos? — Pauli estava furioso. — Nós tínhamos tudo que sempre quisemos nas mãos, e você simplesmente jogou fora? Ficou louca, Allesandra? — A mão apertou o bíceps da esposa e amassou a tashta embaixo dos dedos. Allesandra ficaria marcada ali amanhã, ela sabia. — Você vai voltar lá agora e dizer para os conselheiros que foi um erro. Uma brincadeira. Diga o que raios você quiser, mas você não vai fazer isso comigo.

— Com você? — respondeu Allesandra em um tom calmo e debochado. — Como essa questão tem algo a ver com você, Pauli? Eu era a a’hïrzg, não você. Você é apenas um arremedo inútil e deplorável de marido, um erro que pretendo retificar assim que puder, e vai tirar a mão de mim. Agora.

Pauli não tirou. Ele colocou a outra mão para trás, como se fosse bater em Allesandra, e cerrou o punho. — Não! — O grito veio de Jan, que correu na direção deles. — Não, vatarh.

Allesandra deu um sorriso cruel para Pauli, para a mão ainda erguida, e falou — Vá em frente. Bata, se quiser. Eu lhe digo agora que será a última vez na vida que você me tocará.

Pauli deixou o punho cair. Os dedos ficaram frouxos na manga da esposa, que se sacudiu para se soltar dele.

— Cansei de você, Pauli. Você me deu tudo o que eu precisava há muito tempo.

 

Enéas co’Kinnear

VOUZIERS: UMA CIDADE SEM SAÍDA PARA O MAR, a maior em Nessântico do Sul, a encruzilhada das estradas para Namarro e para as longínquas terras ensolaradas de Daritria. Vouziers ficava ao extremo norte das planícies de Nessântico do Sul, uma terra agrícola com extensos campos de grãos ao vento. O povo de Vouziers era como a terra: firme, despretensioso, sério e simples.

De Fossano, a carruagem levou vários dias para chegar a Vouziers. Em um vilarejo ao longo do caminho, Enéas comprou todo o enxofre que o alquimista local tinha na loja; na noite seguinte, ele fez o mesmo na próxima. Em cada uma das paradas noturnas, Enéas hospedava-se em um quarto privativo no vilarejo. Ele arrancava alguns pedaços do carvão e começava, lentamente, a moê-los até virar um pó preto — Enéas ouvia a satisfação de Cénzi quando o carvão alcançava a fineza necessária. Então, com o alerta da Voz de Cénzi para que fosse delicado e cuidadoso, ele misturava o carvão em pó, o enxofre e o nitro para formar a areia negra dos ocidentais, que Enéas embrulhou com cautela em pacotes de papel. Cénzi sussurrou as instruções enquanto ele trabalhava e manteve Enéas a salvo.

Na noite da véspera da chegada a Vouziers, Enéas levou alguns dos pacotes para o campo depois que todos dormiram. Lá, ele depositou o conteúdo em um pequeno buraco raso que cavou no solo — o resultado trouxe a lembrança incômoda das areias negras nos campos de batalha nos Hellins e da própria derrota. Conforme foi instruído pela Voz de Cénzi, Enéas pegou um pedaço de barbante molhado com cera e partículas da areia negra, enterrou uma ponta na areia negra e desenrolou o resto pelo chão ao se afastar do buraco. Mais tarde, ele ouviu Cénzi dizer em sua cabeça, Vou lhe mostrar como criar fogo do jeito que os ténis fazem. Você deveria ter sido um téni, Enéas. Este era Meu desejo para você, mas seu vatarh e matarh não Me ouviram, mas agora posso fazer de você tudo que deveria ter sido. Você tem Minha bênção...

Enéas pegou a lanterna coberta que trouxe e acendeu a ponta do barbante. O pavio assobiou e soltou fumaça e fagulhas que brilharam na escuridão. Enéas afastou-se rapidamente, chegou à estalagem e entrou no salão comunal quando surgiu a erupção: um estrondo mais alto do que um trovão estremeceu as paredes da estalagem e sacudiu o papel de seda, grosso e transparente das janelas, seguido por um clarão momentâneo de luz do dia. Todo mundo no salão ficou assustado e esticou o pescoço. — Pelos colhões de Cénzi! — rugiu o estalajadeiro. — A noite ficou clara como água!

O estalajadeiro irrompeu do lado de fora e foi seguido pelos outros. Eles primeiro olharam para o céu sem nuvens e não viram nada. Lá no campo, porém, ardia um pequeno fogo. Quando se aproximaram, Enéas viu que o pequeno buraco que cavou agora tinha profundidade suficiente para um homem ficar de pé até os joelhos e o diâmetro de quase um braço. Pedras e terra voaram para todos os lados. Era como se o próprio Cénzi tivesse socado a terra com raiva.

O estalajadeiro ergueu os olhos para o céu onde as estrelas brilhavam e aglomeravam-se na escuridão vazia. — Raio que cai sem tempestade — disse o homem enquanto balançava a cabeça. — É um presságio, eu digo para vocês. Os moitidis estão dizendo que perdemos o rumo.

Um presságio. Enéas viu-se rindo das palavras do estalajadeiro, que não tinha noção de como eram proféticas. Isto era realmente um presságio, um presságio do desejo de Cénzi para ele.

No dia seguinte, ele chegou a Vouziers. Durante a longa cavalgada, Enéas rezou com mais fervor do que jamais rezara, e Cénzi respondeu. Ele sabia o que devia fazer ali, o pensamento o incomodava, mas Enéas era um soldado, e soldados sempre cumpriam seus deveres, por mais onerosos que fossem.

Após chegar a Vouziers e arrumar hospedagem para a noite, Enéas vestiu o uniforme e pendurou uma bolsa pesada de couro no ombro. Ele havia enchido um saco comprido de couro com seixos, que foi colocado no bolso interno da bashta. Quando as trompas soaram a Terceira Chamada, Enéas entrou no templo para a missa da noite, que era ministrada pela própria a’téni de Vouziers. Depois da Admoestação e da Bênção, Enéas acompanhou a procissão de ténis do templo para a praça, iluminada por lâmpadas mágicas contra o céu que escurecia. A a’téni conversava com os ca’ e co’ da cidade, e, em vez de falar com ela, Enéas foi até um de seus assistentes, um o’téni pálido cuja boca parecia lutar com o sorriso que deu para ele.

— Boa noite, o’offizier — falou o téni ao fazer o sinal de Cénzi para Enéas. — Perdão, eu deveria conhecer o senhor?

Ele balançou a cabeça ao devolver o gesto. — Não, o’téni, só estou passando pela cidade a caminho de Nessântico. Acabei de retornar dos Hellins e da guerra de lá.

O o’téni arregalou um pouco os olhos e franziu os lábios. — Ah, então devo abençoar o senhor pelo serviço prestado aos Domínios. Como vai a guerra contra os ocidentais pagãos?

— Não vai bem, infelizmente — respondeu Enéas, que olhou com cuidado em volta da praça do templo. — Eu queria que fosse possível dizer o contrário. E aqui... — Ele balançou a cabeça com tristeza e observou o o’téni com atenção. — Eu passei quase 15 anos fora e encontrei muitas mudanças ao voltar. Os numetodos andam pelas ruas abertamente, debocham de Cénzi com seus feitiços e palavras... — Sim, Enéas julgou o homem corretamente: o o’téni apertou os olhos e franziu ainda mais os lábios. Ele inclinou-se para frente de maneira conspiratória e falou quase como um sussurro.

— É realmente uma vergonha que o senhor, que serviu tão fielmente ao seu kraljiki, retorne e veja essa situação. Minha a’téni discorda, mas eu culpo a archigos Ana por esse estado das coisas. E olhe no que isso resultou para ela: os malditos numetodos mataram a archigos assim mesmo. O archigos Kenne... — O o’téni fez um gesto de nojo. — Pfff... Ele é ainda pior, na verdade. Ora, em Nessântico as pessoas desrespeitam a Divolonté abertamente hoje em dia: os numetodos dizem que qualquer um pode usar o Ilmodo, que isso não exige o Dom de Cénzi, e mostram como realizar pequenos feitiços: acender uma lareira ou esfriar o vinho. As pessoas não usam os feitiços às claras, mas nos lares, quando acham que Cénzi não está vendo... — O o’téni balançou a cabeça novamente.

— Os numetodos são uma praga — disse Enéas. — O velho Orlandi ca’Cellibrecca sabia o que fazer com eles.

O o’téni olhou em volta com uma expressão de culpa ao ouvir a menção a Orlandi e falou — Este não é um nome que se deva falar abertamente, o’offizier. Não quando o genro diz ser o archigos de Brezno.

Enéas fez o sinal de Cénzi novamente. — Peço desculpas, o’téni. Este é outro assunto delicado para um soldado como eu, infelizmente. Os Domínios deveriam ser reunificados, assim como a fé concénziana. Sofro por vê-los partidos, assim como sofro ao ver os numetodos tão descarados.

— Eu entendo — disse o o’téni. — Ora, aqui em Vouziers, os numetodos têm o próprio prédio. — O homem apontou para uma das ruas que afluía da praça. — Bem por ali, à vista do próprio templo, com o sinal deles como enfeite na porta. É uma desgraça que Cénzi não permitirá por muito tempo.

— Quanto a isso, o senhor está certo, o’téni — respondeu Enéas. — É exatamente o que Cénzi me diz. — Ao ouvir isso, o o’téni olhou estranhamente para Enéas, mas o offizier não deu chance de ele falar mais nada, apenas fez uma mesura e cruzou a praça rapidamente na direção da rua que o homem indicou. Enéas assobiou uma música enquanto caminhava, uma canção de Darkmavis que sua matarh cantara para ele há muito tempo, quando o mundo ainda fazia sentido e a kraljica Marguerite ainda estava no Trono do Sol.

Ele achou o prédio dos numetodos facilmente — o entalhe no dintel da porta principal era uma concha, o sinal dos numetodos. Havia uma estalagem do outro lado da rua do prédio. Enéas entrou e pediu vinho e uma refeição, sentado a uma das mesas do lado de fora. Ele tomou goles do vinho e comeu devagar, observando o covil dos numetodos enquanto o céu ficava totalmente escuro entre os prédios.

Três vezes Enéas viu gente entrar; duas vezes viu alguém saindo, mas, como em nenhuma das ocasiões Cénzi falou com ele, o offizier continuou comendo e esperando. De vez em quando, Enéas tocava na bolsa de couro no chão ao seu lado para restaurar a confiança. Quase duas viradas da ampulheta depois, quando as ruas estavam quase vazias, antes de ficarem cheias novamente de pessoas que preferiam o anonimato da noite, ele viu um homem sair do prédio dos numetodos, e Cénzi agitou-se dentro de Enéas.

— Aquele ali... — Enéas sentiu o chamado com força, pendurou a bolsa no ombro, deixou um siqil de prata na mesa para pagar a refeição e o vinho, e correu atrás do sujeito. Seu alvo era um homem mais velho: careca no topo da cabeça, com cabelos grisalhos em volta. Ele usava túnica e calças, não uma bashta, e estava sem chapéu; seria difícil perdê-lo de vista mesmo em uma multidão.

Subitamente ficou claro por que Cénzi escolheu este numetodo; ele descia a rua na direção da praça do templo. As luzes mágicas começavam a enfraquecer, e havia poucas pessoas na praça, embora os domos do templo em si ainda estivessem bem acesos, com uma luminosidade dourada contrastando com o céu pontilhado de estrelas. Enéas deu uma olhada rápida à procura de um utilino e não viu nenhum. Ele seguiu em frente apressadamente, e o numetodo virou-se ao ouvir os passos. Enéas viu a palavra do feitiço nos lábios do homem, que ergueu as mãos como se fosse fazer um gesto, e abriu um largo sorriso ao acenar para o homem como se cumprimentasse um amigo que não via há tempos.

O numetodo franziu os olhos, como se não reconhecesse o rosto diante dele. O homem abaixou as mãos e deu um sorriso hesitante como resposta. — Eu conheço...?

Foi o máximo que ele chegou a dizer. Enéas puxou o saco de couro com seixos do bolso e, com um movimento ágil, golpeou com força ao lado da cabeça do homem. O numetodo desabou inconsciente, e Enéas segurou-o com o braço ao desmoronar. Ele apoiou um braço mole sobre o ombro e levantou o sujeito pelo cinto. Riu como se estivesse bêbado, cantou desafinado ao arrastar o numetodo na direção da porta lateral do templo. Quem visse ao longe pensaria que eram dois amigos embriagados que cambaleavam pela praça. Enéas olhou pela última vez para trás ao chegar às portas; ninguém parecia estar observando. Ele puxou a porta pesada com revestimento de bronze e decorada com imagens dos moitidis e sua luta com Cénzi: isso não mudara — as portas dos templos raramente eram trancadas, ficavam abertas para aqueles que desejassem entrar para rezar ou para os indigentes que precisassem de um lugar para dormir à noite, ao custo de ouvir uma Admoestação do téni que os encontrasse de manhã. Enéas entrou de mansinho na escuridão fria do templo, que estava vazio. O som da respiração e dos passos soaram alto enquanto ele arrastava o peso morto do numetodo pela nave principal, e finalmente Enéas largou o homem apoiado no atril em frente ao coro. Ele tirou a bolsa do ombro e colocou no colo do numetodo, depois desenrolou o longo barbante. Enéas foi soltando o pavio com cuidado enquanto recuava pela nave.

Eu vou lhe mostrar seu próprio pequeno Dom, Cénzi dissera para Enéas naquela mesma tarde. Vou lhe mostrar como fazer seu próprio fogo. O cântico e os gestos vieram à mente naquele instante, e embora Enéas soubesse que era contra a Divolonté usar o Ilmodo sem ser um téni, ele sabia que esta era a vontade de Cénzi e que não seria punido por isso. Enéas entoava o cântico agora, perto da entrada do templo, e sentiu o frio do Ilmodo fluir pelas veias e o Segundo Mundo se abrir em sua mente: entre as mãos em movimento, havia um calor e luz impossíveis. Ele deixou que o fogo caísse na ponta do barbante, e o pavio começou a espocar e fumegar.

— Ei! Quem está aí? O que é isso?

Enéas viu um téni surgir de uma arcada que dava para fora do coro; era o o’téni com quem ele falara mais cedo. Enéas abaixou-se rapidamente, embora estivesse estranhamente cansado por causa do feitiço, como se tivesse trabalhado duro o dia inteiro. Ele ouviu o chamado do téni e o eco de outros passos. — Quem é? O que está acontecendo? — disse alguém enquanto o fogo no pavio afastava-se rapidamente de Enéas na direção do atril. Quando a chama estava quase lá, ele ficou de pé e correu para a porta. Viu de relance o o’téni e alguns e’ténis, que se dirigiam rapidamente para o numetodo caído e imóvel, e alguém apontou para Enéas...

... mas já era tarde demais.

Um dragão rugiu e cuspiu fogo, e a concussão alcançou Enéas, jogando-o contra as portas de bronze. Meio inconsciente, ele caiu nas lajotas de pedra e foi fustigado por fragmentos de rocha e mármore. Quando passou a chuva rápida e dura, Enéas ergueu a cabeça. Havia algo vermelho no chão à sua frente: a perna do numetodo, ainda vestida com as calças largas, notou ele com um susto. Perto da entrada do templo, alguém gritava, um longo lamento entrecortado por xingamentos. Gemendo, Enéas tentou se sentar. Ele sangrava por vários cortes e arranhões, o corpo estava dolorido pela colisão com as portas de bronze, mas, tirando isso, havia sido poupado por Cénzi. As portas do templo estavam escancaradas diante dele, e um utilino entrou correndo e passou por Enéas enquanto apitava alto. Ténis entraram correndo das alcovas. O Alto Púlpito havia desmoronado, estava quebrado, caído na nave, e havia sangue e partes de corpos por todos os lados. O numetodo... ele viu a cabeça do homem e a parte de cima do torso, que foram arrancadas e jogadas na nave. O resto dele, onde esteve a bolsa de areia negra... Enéas não conseguiu ver o resto.

Por um momento, ele sentiu náusea: isso era muito parecido com a guerra, e as memórias do que viu nos Hellins ameaçaram sobrepujá-lo. Sentiu um gosto ácido na garganta e um embrulho no estômago, mas a Voz de Cénzi estava em sua cabeça também.

Isso é o que eles merecem, aqueles que Me desafiam. Você, Enéas, será meu moitidi da morte, a arma escolhida por Mim.

Mas eu não desejo isso, Enéas queria dizer, mas assim que pensou nas palavras, sentiu a fúria de Cénzi crescer, um calor no cérebro que fez a cabeça latejar, e ele caiu de joelhos com o crânio entre as mãos.

Tudo era uma confusão. Pessoas empurraram Enéas para passar. Ele ainda ouviu o téni ferido gritar. — ... numetodo... eu o reconheço... — Enéas ouviu a palavra em meio ao caos e sorriu. Quando mais pessoas entraram aos gritos vindas da praça, ele aproveitou a oportunidade para sair de mansinho pelo lado e entrar nas sombras.

Ele saiu para a noite e sentiu-se aquecido pela presença de Cénzi.

Você está apto para a tarefa que lhe dei. Agora, vá para Nessântico, e falarei com você lá...

 

Audric ca’Dakwi

O CONSELHO DOS CA’ DE NESSÂNTICO reunia-se no primeiro andar do Grande Palácio na Ilha A’Kralji, onde os conselheiros tinham vários aposentos e um pequeno contingente de criados do palácio dedicados inteiramente às suas necessidades. O Conselho dos Ca’, durante a maior parte do reinado da kraljica Marguerite, bem como de seu filho, o kraljiki Justi, foi basicamente uma organização social, que vinha ao palácio para assinar documentos entregues a eles pelo kralji e pelo corpo de funcionários do palácio — uma tarefa que eles executavam com pouca reflexão ou discussão, de resto, passavam o tempo relaxando em seus suntuosos gabinetes privativos ou socializando nas salas de jantar e estar bem equipadas da seção do Conselho no Palácio do Kralji. Por muitas décadas, ser um “conselheiro” era, em grande parte, um posto honorário, com deveres cerimoniais e longe de serem muito exigentes, e a retribuição por servir no Conselho era generosa.

Mas com o falecimento do kraljiki Justi, e com Audric sendo menor de idade ao ascender ao Trono do Sol, o Conselho teve que assumir um papel mais ativo no governo. Foi o Conselho dos Ca’ que nomeou Sergei ca’Rudka como regente; era o Conselho que agora criava e aprovava novas legislações (até bem recentemente, com a contribuição do regente também); era o Conselho que controlava o bolso de Nessântico; era o Conselho que o regente tinha a obrigação de consultar em qualquer questão política dentro dos Domínios ou qualquer decisão diplomática que envolvesse a Coalizão, os Hellins ou quaisquer outros países dentro dos Domínios.

O Conselho foi obrigado a acordar do longo e tranquilo sono, e em grande parte acordou. A última eleição para o Conselho, há quatro anos, foi agressiva e implacável; quatro dos sete integrantes foram depostos e substituí-dos por ca’ bem mais ambiciosos.

Audric conhecia a história do Conselho; Sergei reclamava sem parar a respeito dos conselheiros, e o mestre ci’Blaylock falava a mesma coisa nas aulas. Agora sua mamatarh deu os mesmos avisos.

— Você precisa tomar cuidado, Audric. Lembre-se de que cada um dos conselheiros quer estar no seu lugar. Eles querem o anel e o cajado; querem se sentar no Trono do Sol. Os conselheiros têm inveja de você, e é preciso convencê-los de que, ao darem o que você quer, eles estarão mais próximos de seus próprios objetivos.

A mamatarh Marguerite olhava fixamente para ele enquanto Audric percorria o corredor até o salão do Trono do Sol, onde era aguardado pelo Conselho. As rodas do cavalete onde o quadro ficava apoiado estavam silenciosas hoje; ele insistiu que fossem lubrificadas por Marlon com gordura de pato antes da reunião. Os criados empurraram o cavalete pelo corredor interno do palácio na frente de Audric, com cuidado, para acompanhar seu ritmo lento e vacilante, enquanto Marlon e Seaton apoiavam o kraljiki de ambos os lados. Ele teve um péssimo dia; era um dia nublado e frio, e Audric permitiu-se tossir mesmo enquanto ouvia a voz da mamatarh confortá-lo.

— Você pode se permitir tossir, desta vez — disse ela. — Dessa vez, sua fraqueza será sua força. Mas, depois de hoje, você tem que ser mais forte. Você será mais forte.

— Eu serei, mamatarh. Serei forte depois de hoje, e a doença irá embora. — Pelo rabo do olho, Audric notou que Marlon olhava estranhamente para ele, embora o homem não dissesse nada.

Seaton gesticulou para os criados do corredor, que abriram a porta do salão e fizeram uma mesura quando Audric e sua mamatarh entraram. Lá dentro, os integrantes do Conselho levantaram-se das cadeiras diante do Trono do Sol e também fizeram uma mesura, embora a saudação tenha sido apenas uma leve inclinação de cabeças. Audric notou os olhos de Sigourney ca’Ludovici quando ela abaixou a cabeça, embora a conselheira parecesse olhar mais para o quadro de Marguerite do que para o kraljiki. Ele dirigiu-se ao Trono do Sol, foi ajudado por Marlon a subir os três degraus da plataforma, e deixou-se cair no assento estofado. Audric tossiu então — não conseguiu impedir o ataque —, no momento em que a luz brilhou nas profundezas do cristal e banhou o kraljiki de amarelo: como o Trono do Sol fazia há longas gerações sempre que um kralji se sentava ali. Audric limpou a boca na manga da bashta de seda enquanto o Conselho permanecia de pé diante dele, e Seaton empurrou o cavalete para o lado direito do trono, de maneira que Marguerite encarasse com ódio os sete ca’.

— Olhe para eles — falou a kraljica para Audric. — Veja como olham com fome o Trono do Sol. Todos imaginam como conseguirão se sentar onde você está. Comece por ser firme com eles, Audric. Mostre que você está no comando desta reunião, não os conselheiros. Então... então faça o que tem que fazer.

— Eu farei — disse Audric para Marguerite. Os ca’ já começavam a se sentar, e ele ergueu a voz para se dirigir aos conselheiros. — Não há necessidade de se sentar. Nosso assunto aqui deve tomar apenas alguns grãos de areia da ampulheta.

Interrompidos no meio do movimento, os ca’ endireitaram-se em meio a um farfalhar de bashtas e tashtas e lançaram olhares na direção de Audric que oscilavam do questionamento à quase raiva. — Perdoe-me, kraljiki — falou Sigourney ca’Ludovici —, mas as coisas podem não ser tão simples quanto o senhor imagina.

— Mas elas são simples, vajica ca’Ludovici — disse Audric. — O traidor ca’Rudka está na Bastida; o Conselho teve o tempo que a senhora pediu para que os conselheiros consultassem entre si e deliberassem. Os senhores nomearão outro regente ou permitirão que eu reine como kraljiki como deveria? Essas são as duas únicas opções diante dos senhores, que já deveriam ter tomado uma decisão. — A longa fala exigiu esforço, como ele sabia que exigiria. Ele tossiu e dobrou o corpo enquanto a mamatarh ria baixinho em sua cabeça, cobriu a boca com um lenço que rapidamente ficou sujo com manchas vermelhas. Audric amassou o pano de linho na mão, mas não tanto a ponto de eles não conseguirem ver o sangue.

Audric abriu os olhos e viu ca’Ludovici olhando fixamente para sua mão. A conselheira ergueu o olhar abruptamente e sorriu como um gato espiando um rato encurralado, depois olhou uma vez para os demais integrantes do conselho, atrás dela. — Talvez o senhor esteja certo, kraljiki. Afinal de contas, o dia está úmido e nós não deveríamos mantê-lo longe do conforto de seus aposentos.

A vajica ca’Ludovici tomou fôlego, e Audric ouviu Marguerite sussurrar para ele naquele espaço de tempo. — Agora. Diga para a conselheira o que ela quer escutar.

— Eu estou mais forte agora do que estive há anos — falou Audric, mas ele forçou uma tosse e uma pausa, como se tomasse fôlego entre as palavras. Não foi preciso muito encenação. — Mas também estou ciente da minha juventude e inexperiência, e contaria com a orientação do Conselho dos Ca’, e talvez especialmente da senhora, conselheira ca’Ludovici, como minha mentora.

Ela fez uma mesura ao ouvir isso, e era impossível não notar a satisfação no rosto de ca’Ludovici. — O senhor realmente é sábio para a idade que tem, kraljiki, o que significa que é um prazer lhe informar que todos nós deliberamos e chegamos a um acordo. Kraljiki Audric, apesar de sua idade, o Conselho dos Ca’ não nomeará um novo regente.

Ele ouviu a mamatarh rir ao ouvir a notícia, exultante, e o próprio Audric quase riu também, só não o fez porque o riso traria a tosse novamente. O kraljiki contentou-se com um gesto silencioso de agradecimento para os conselheiros. Tão fáceis de manipular. Tão previsíveis. Ele não sabia de quem era o pensamento: seu ou de Marguerite.

— Eu gostaria de agradecer ao Conselho por seus esforços. E vemos uma nova era para Nessântico, uma era em que recuperaremos tudo que perdemos e superaremos até mesmo os sonhos da kraljica Marguerite. — Audric teve que fazer uma pausa para respirar e limpar os pulmões de novo. Marlon esticou a mão para o trono a fim de entregar um novo lenço e levar embora o molhado e manchado. — Quanto ao antigo regente ca’Rudka, acho que está na hora de ele confessar seus pecados, fazer as pazes com Cénzi e pagar pelos erros de sua vida.

A vajica ca’Ludovici fez uma mesura mais uma vez, mas não antes de Audric ver mais uma vez a satisfação na expressão do rosto. Sim, ela encara ca’Rudka como um rival perigoso enquanto permanecer vivo... — Será feito como o kraljiki deseja — disse Sigourney. — Eu cuidarei disso pessoalmente.

 

Karl ca’Vliomani

A NOTÍCIA ESPALHOU-SE RAPIDAMENTE pela cidade, e como embaixador de Paeti, Karl esteve entre os primeiros a ouvi-la: o Conselho dos Ca’ declarou que o kraljiki atingiu a maioridade e que a regência de ca’Rudka chegou ao fim. Karl ouviu a notícia com um desespero desanimador, pois sabia o que ela prenunciava, e imediatamente chamou uma carruagem e mandou que o condutor cruzasse correndo a Pontica Kralji para o Velho Distrito.

Ele torceu para que já não fosse tarde demais. Se Karl fosse um homem religioso, teria rezado. De certo modo, ele tocou a concha no cordão em volta do pescoço como se fosse um talismã, como se a concha pudesse afastar as nuvens tempestuosas que Karl via em seu futuro.

Considerando que Audric conseguisse sobreviver, o menino seria agora um joguete de Sigourney ca’Ludovici e do Conselho dos Ca’. Ana e Sergei foram os escudos dos numetodos contra os elementos conservadores dentro da fé concénziana e da sociedade. Foram apenas os dois que permitiram o crescimento dos numetodos. Agora, rápido demais, os dois se foram.

Haverá corpos de numetodos pendurados para exibição nas Ponticas novamente. Karl viu os cadáveres em sua mente e o próprio rosto em um deles. Torceu para que a visão fosse causada apenas pelo medo, e não por algum presságio.

Não existem deuses. Não existem presságios. O pensamento racional não acalmou sua mente. Ele não se sentia racional; sentia medo.

Mika e Varina concordaram em se encontrar com ele na taverna de sempre no Velho Distrito. Mesmo lá, onde os frequentadores o conheciam e o cumprimentavam pelo nome, Karl imaginou que receberia olhares tortos de quem estivesse nos compartimentos e às mesas. Ele não sabia mais com quem poderia contar, a não ser com os dois. Varina sentou-se ao lado de Karl no compartimento do canto, seu corpo era uma fonte de calor providencial, e Mika ficou do outro lado da mesa.

Amigos. Karl esperava que eles continuassem sendo amigos, depois disso. — Você é o a’morce dos numetodos aqui — disse o embaixador para Mika em uma voz urgente e baixa, para que não fosse ouvido pelos frequentadores do bar. O músico no canto, que tocava um alaúde de cinco cordas e cantava baladas que já eram velhas quando sua mamatarh as ensinou para ele, ajudou a abafar a conversa. — Não peço que se envolvam, mas fiz uma promessa a ca’Rudka que pretendo cumprir. Preciso avisá-los para que... façam preparativos.

Mika deu de ombros, embora sua expressão cansada tenha deixado claro para Karl que ele estava mais preocupado do que admitiria. Mika pegou a cerveja em frente a ele e deu um grande gole, depois limpou a espuma das pontas do bigode. — Se Audric ou o Conselho estão dispostos a matar ca’Rudka, então se voltarão para os numetodos a seguir como bodes expiatórios adicionais, caso você faça ou não alguma coisa, Karl. A culpa de tudo sempre cairá sobre nós, como sempre cai.

— Você tem família aqui. Eu sei. Sinto muito.

— Sali já passou por isso antes — falou Mika. — Ela entenderá. Vou mandá-la com as crianças para sua família em Il Trebbio.

— E quanto ao menino, Nico? — perguntou Varina. — O que fazemos com ele?

— Vocês não ouviram nada de Talis ou da matarh dele? — indagou Karl, e Varina negou com a cabeça. — Então permaneça com o menino por enquanto, se quiser. Se a situação ficar muito perigosa, deixe Nico ir embora. Não tenho interesse que ele se machuque só por estar associado a nós. — Karl soltou um longo suspiro. A própria cerveja permanecia intocada sobre a mesa, e ele olhou fixamente para as bolhas que espumavam na caneca de madeira. Milhares de bolhas, todas surgem ao mesmo tempo, depois estouram e somem. Como eu. Como todos nós. Somem rápido demais e não sobra nada depois. Nada...

— Eu irei com você hoje à noite, Karl, depois que despachar Sali e as crianças — disse Mika. — Você precisará de ajuda com isso.

Karl balançou a cabeça. — Não será necessário.

— Se ca’Rudka for retirado da Bastida por magia, então todos nós sabemos quem será o culpado e quem será caçado — falou Mika. — Pelo menos uma vez, eles terão razão em culpar os numetodos, não é? Mas a reação que que se desencadeará não mudará caso você vá sozinho ou com uma dezena de nós, ou caso seja bem-sucedido ou fracasse: só a tentativa já será suficiente.

— Eu não arriscarei a vida de uma dezena de nós; levarei dois — respondeu Karl. — Eu e mais outro.

Mika deu um sorriso irônico. — Então é melhor eu garantir que você consiga. Enquanto ca’Rudka permanecer vivo, há uma chance de que ele consiga voltar ao poder, o que seria melhor para nós.

— Eu sou mais forte do que qualquer um de vocês com o Scáth Cumhacht — interrompeu Varina. — Eu vou com vocês também.

Com esta declaração, o nó no estômago de Karl ficou mais apertado. Ele imaginou Varina morta, ou pior, capturada. Karl fez uma careta e balançou a cabeça diante da dor dessa ideia. — Não há necessidade. Você tem que tomar conta de Nico.

Ela franziu os lábios e tamborilou na mesa do compartimento. — Mika — falou Varina —, acho que precisamos de mais uma rodada aqui. Importa-se de ir pegar?

Mika pestanejou, confuso. — É só chamar Mara e... — Ele fez uma pausa e arregalou um pouco os olhos. — Ah. — Mika franziu os lábios. — Certamente. Vou pegar.

Ele mal havia deixado o compartimento quando Varina virou-se no banco para encarar Karl. A voz era baixa e ameaçadora. — Karl, eu passei anos, anos, realizando pesquisas e experiências para expandir o catálogo de fórmulas mágicas que agora nós usamos regularmente. Eu me dediquei a entender a magia ocidental, como ela funciona e como podemos dominar seus costumes. Eu abri mão... — Varina parou e mordeu o lábio inferior momentaneamente. — Eu abri mão da vida que poderia ter levado em nome dos numetodos e de uma causa que achei que compartilhávamos. E agora você vai me relegar ao papel de babá? Se fizer isso, Karl, você estará dizendo que desperdicei todo aquele tempo, todo aquele esforço e todos aqueles anos. É o que está me dizendo? É isso?

A acusação de Varina cortou Karl como uma adaga afiada. Ele levantou as mãos da mesa como se estivesse magoado. — Você não entende... — Karl começou a dizer.

— O que eu não entendo? — disparou ela de volta. — Que você acha que eu não tenho utilidade alguma para você? Que eu... não me importo com você o suficiente para querer ajudar?

— Não. — Karl balançou a cabeça incontrolavelmente. — Varina, nossas chances não são boas aqui.

— E são melhores sem mim?

Karl suspirou. — Não, não foi isso o que eu disse. Eu não quero que você se machuque.

— Mas está disposto a deixar Mika se arriscar? Por que, Karl? Por que ele é tão diferente de mim? Por quê? — As perguntas foram marteladas, e Karl pensou que houvesse uma estranha urgência nas questões, como se existisse uma resposta que Varina quisesse que ele desse.

Mas Karl não tinha respostas. Ele abaixou a cabeça, encarou a caneca, as bolhas sumiam na borda, a água no fundo manchava a madeira. — Se quiser ir comigo, Varina, então eu ficarei contente com a sua ajuda. — Karl ergueu a cabeça. Ela encarava o embaixador com uma resistência frágil. — Obrigada.

Varina abriu um pouco a boca, como se fosse dizer mais alguma coisa, mas simplesmente concordou com a cabeça.

Mika voltou com mais cerveja e pousou as canecas no centro da mesa. — Tudo acertado?

— Sim — respondeu Karl. — Tudo acertado. Se isso for realmente o que vocês querem, então vamos terminar as cervejas para podermos ir aos nossos aposentos e preparar os feitiços que precisaremos hoje à noite. Mika, se você puder cuidar de espalhar a mensagem para que todos os numetodos saiam da cidade ou façam planos para ficar escondidos em um futuro próximo... — Ele finalmente pegou sua caneca, e Mika e Varina levantaram as próprias. Os três brindaram. — À sorte — falou Karl. — Vamos precisar dela.

Eles beberam as canecas simultaneamente.

 

Varina ci’Pallo

— VOCÊ PARECE TERRIVELMENTE CANSADA, Varina — disse Nico.

Ela estava mesmo. Estava exausta, tão cansada que os ossos doíam. A tarde tinha sido gasta na preparação dos feitiços, com a moldagem do Scáth Cumhacht até que o feitiço estivesse completo, depois vieram a colocação da palavra de ativação e o gestual para soltá-lo na mente. A exaustão da feitiçaria consumiu Varina — era pior agora do que quando ela era jovem, pior desde que começou a experimentar o método tehuantino. Ela tinha ido ao quartinho onde Nico era mantido a fim de buscá-lo para o jantar e ver como o menino estava.

— Eu ficarei bem em algumas viradas da ampulheta — falou Varina para Nico. — Eu só tenho que dormir um pouco para me recuperar.

— Talis também sempre ficava cansado quando fazia as coisas mágicas, especialmente com aquela tigela. Eu achava que aquilo fazia Talis parecer velho também. Como a senhora.

A honestidade brutal de uma criança. Varina tocou no cabelo cada vez mais grisalho, nas rugas profundas que surgiram no rosto nos últimos anos, e disse — Nós pagamos pela magia desta maneira. Não se consegue nada nesse mundo sem um preço. Você aprenderá isso. — Ela deu um sorriso irônico. — Desculpe. Isso parece algo que uma matarh diria.

Nico sorriu: hesitante, quase tímido. — A matarh fala assim comigo às vezes, como se estivesse falando mais com ela mesma do que comigo. Vou tentar me lembrar disso, porém.

Varina riu. Ela sentou-se na cadeira ao lado da cama do menino e inclinou-se para frente a fim de mexer no cabelo de Nico. Ele franziu a testa e recuou um pouco na cama. — Nico — disse Varina ao recolher a mão —, eu tenho que falar com você. Coisas estão acontecendo lá fora. Coisas ruins. Depois que eu descansar um pouco, terei que sair para fazer algo e, quando voltar, teremos que sair da cidade muito depressa.

— Como eu tive que sair com a matarh? — Ele recolheu ao peito as pernas dobradas quando se sentou na cama e as abraçou. Nico olhou sobre os joelhos para Varina.

— Sim, da mesma forma.

— A senhora está em apuros?

Varina teve que sorrir ao ouvir isso. — Estou prestes a estar.

Ele torceu o nariz. — É por causa daquele homem?

— Karl, você quer dizer? Pode-se dizer que sim.

Nico soltou as pernas e olhou para a comida na bandeja, mas não tocou nela. — A senhora e Karl estão...?

Varina entendeu a pergunta sem palavras. — Não. Por que você achou isso?

— A senhora age como se fossem. Quando vocês dois conversam, parecem minha matarh e Talis.

— Bem, nós não estamos... juntos. Não desta forma.

— Ele gosta da senhora, dá para dizer.

Isso fez Varina sorrir, mas o gosto foi amargo. — Ah, dá para dizer, é? Quando você passou a saber tanto sobre os costumes dos adultos?

Nico deu de ombros e repetiu — Dá para dizer.

— Não vamos falar sobre isso — disse Varina, embora quisesse. Ela perguntou-se o que Karl diria para Nico se o menino tivesse dito a mesma coisa. — Eu preciso que você coma e durma um pouco porque é bem provável que nós tenhamos que sair da cidade hoje à noite. Você precisa estar pronto para isso.

— A senhora vai me levar para a minha matarh?

— Quisera eu, Nico. De verdade. Mas eu ainda não sei para onde iremos. Vou levá-lo a um lugar seguro. Isto eu prometo. Não deixarei nada de mal acontecer com você, e tentaremos devolvê-lo para sua matarh. Entendeu?

Ele concordou com a cabeça.

— Ótimo. Então coma o jantar e tente dormir. Eu mesma vou descansar no quarto ao lado. Se precisar de mim, pode me chamar. Vá agora, prove a sopa antes que ela esfrie.

Varina observou o menino comer por alguns grãos da ampulheta até sentir as pálpebras pesadas. Quando acordou, descobriu que tinha caído no sono na cadeira ao lado da cama, e Nico também dormia, encolhido perto dela com um braço esticado para tocar sua perna. Lá fora, ouviu o ritmo da chuva no telhado e nas persianas da casa.

Varina cobrou Nico e encostou os lábios em sua bochecha. Depois deixou o menino, fechou e trancou a porta ao sair.

Ela torceu para que o visse novamente.

 

A Pedra Branca

NESSÂNTICO...

Ela nunca tinha visto a cidade antes, embora obviamente tivesse ouvido falar muito a seu respeito. Mesmo com os Domínios divididos, mesmo com o antigo kraljiki tendo sido uma pálida imagem de sua famosa matarh, e mesmo com o atual kraljiki sendo um menino frágil que, diziam os rumores, não viveria para chegar à maioridade, Nessântico mantinha o encanto.

A Pedra Branca sempre soube que viria aqui com o tempo, como qualquer pessoa com ambição deveria. A atração da cidade era irresistível, e para alguém de seu ramo de negócios, Nessântico era um campo rico e fértil a ser explorado. Mas ela não esperava vir aqui tão rapidamente ou por estes motivos.

Após o assassinato às pressas e quase malfeito do hïrzg, a Pedra Branca considerou que era perigoso demais ficar na Coalizão. Ela voltou a assumir o papel da mendiga Elzbet, escondeu-se entre os pobres que tão frequentemente eram invisíveis aos ca’ e co’, e foi de Brezno a Montbataille nas montanhas orientais que formavam a fronteira de Nessântico com Firenzcia, depois desceu o rio A’Sele até a grande cidade em si.

Enquanto interpretava o papel, a Pedra Branca instalou-se no Velho Distrito. Esta era a melhor maneira de evitar chamar atenção. Ela era apenas mais um dos pobres anônimos que perambulavam pelas ruas da maior cidade do mundo conhecido, e ninguém iria notar ou se importar muito se ela conversasse com as vozes em sua cabeça enquanto andava. Ela era apenas outra alma louca, uma mulher maluca que balbuciava e murmurava para si mesma, que percorria algum mundo interior em conflito com a realidade à volta dela.

— Você pagará por isso. Não pode me matar e não pagar. Eles encontrarão você. Eles virão ao seu encalço e matarão você.

— Quem? — perguntou ela para a voz estridente de Fynn enquanto os demais dentro da Pedra Branca riam e debochavam dele. Ela levou a mão à tashta, apalpou sob o pano a pequena bolsinha amarrada ao pescoço e, por dentro, a pedra clara que sempre mantinha consigo. — Quem virá me encontrar? Eu contei quem me contratou. Será que ela irá procurar por mim?

— Você está preocupada que outra pessoa descubra. Está preocupada que se espalhe a notícia de que a Pedra Branca também era a mulher que era amante de Jan ca’Vörl. Eles viram seu rosto; eles reconheceriam você, e o rosto da Pedra Branca não pode ser conhecido.

— Cale a boca! — ela quase gritou com Fynn, e o guincho fez cabeças se voltarem para ela. Um utilino de passagem parou no meio da ronda e virou a lanterna de luz mágica em sua direção. Ela protegeu os olhos da luz, curvou o corpo e arreganhou os dentes para o homem, no que torceu que parecesse ser um olhar de louca. O utilino fez um som de nojo e afastou a luz dela; as outras pessoas já tinham virado o rosto e dado as costas para cuidar de suas próprias vidas.

As vozes das vítimas gargalhavam e riam quando ela virou a esquina para entrar no centro do Velho Distrito. As famosas lâmpadas mágicas de Nessântico reluziam e brilhavam nos postes de ferro dispostos em volta da praça aberta. Ela olhou as placas das lojas ao longo da rua. Aqui, na grande praça, as lojas ainda estavam abertas, embora a maioria dos estabelecimentos nas transversais estivesse trancada desde que escureceu totalmente: os ténis podiam acender as lâmpadas do centro do Velho Distrito, mas não iam às ruas antigas e estreitas que afluíam do centro. Eles iluminavam o anel da Avi a’Parete pela cidade inteira, de maneira que Nessântico parecia usar um colar de esplendor amarelo, e as ruas largas da margem sul onde a maioria dos ca’ e co’ morava, mas o Velho Distrito era abandonado à noite.

A lua escondeu-se atrás de uma nuvem, e uma garoa ameaçava virar uma chuva intensa. Ela correu na direção do centro, pois sabia que o tempo mandaria todo mundo para casa e faria os comerciantes fecharem as lojas.

Ali: ela viu o almofariz e o pilão de um boticário mais à frente e arrastou os pés na direção da loja, através da multidão que rapidamente ficava menor. Manteve a cabeça baixa e as costas perto dos tijolos e das pedras dos prédios. Em um momento, um homem que passava tocou seu braço: um velho de barba grisalha, que deu um sorriso malicioso com uma boca banguela e um bafo que cheirava a cerveja e queijo. — Eu tenho dinheiro — disse ele sem preâmbulos, com o rosto molhado de chuva. — Venha comigo.

— Puta! — gritaram as vozes alegremente em deboche. — Por que não? Você aceita pagamento por outros serviços.

A Pedra Branca olhou com raiva para o homem e mostrou o cabo da faca na cintura. — Eu não sou uma puta — disse ela para o sujeito, e para as vozes. A mão agarrou a faca, e gotas de chuva caíram do manto com o movimento. — Afaste-se.

O homem sem dentes riu e espalmou as mãos. — Como quiser, vajica. Sem problemas, hein? — Então ele desviou o olhar e se afastou, os pés chapinharam nas poças. Ela observou o homem ir embora.

A Pedra Branca poderia se livrar dele, mas não dos demais. Os outros estavam sempre com ela.

Ela chegou ao boticário e olhou o interior através das persianas abertas. Não havia ninguém lá dentro, a não ser o proprietário parcialmente careca. Ela entrou, e quando o sino da porta retiniu de forma estridente, o homem ergueu os olhos dos jarros e frascos atrás do balcão.

— Boa noite. Que tempo horrível, eu já estava prestes a fechar. Como posso ajudar, vajica? — As palavras eram agradáveis, mas o tom e o olhar eram menos convidativos. O boticário parecia dividido entre sair detrás do balcão ou retornar aos preparativos interrompidos para fechar. — Uma poção para dores de cabeça? Algo para aliviar uma tosse?

A Pedra Branca teria sido firme, teria sido decidida, mas ela não era a Pedra Branca agora, era apenas uma jovem de aparência comum, sem status, que pingava no chão, uma pessoa que podia ser confundida com uma prostituta comum que andava pelas ruas ou tentava escapar do tempo por um momento.

É isso o que você realmente quer? Não tinha certeza sobre quem fez a pergunta ou se tinha sido ela mesma quem indagou. As vozes ficaram quietas enquanto ela esteve com Jan. De alguma forma, ficar com ele acalmou a confusão dentro de sua mente, e isso ao menos tinha sido parte da atração que ela sentiu por ele, tinha sido o motivo pelo o qual ela se deixou envolver mais do que deveria. Com Jan, naquele pouco tempo, ela se sentiu cicatrizando. Pensou que talvez fosse capaz de se tornar alguém além da Pedra Branca, que pudesse se tornar normal. Jan... Ela se perguntou o que ele estaria pensando agora, se achava que foi feito de bobo ou se sentia arrependimento ao pensar nela. Perguntou-se se Jan sabia quem ela era, que matara seu onczio, ou se pensava que ela fugira apenas porque fingira ser alguém que não era e fora descoberta.

— Vajica?

Ela se perguntou se Jan algum dia saberia como ela se arrependia de tudo.

A Pedra Branca tocou o estômago com delicadeza novamente, como fazia cada vez mais recentemente. Deveria ter ocorrido o sangramento mensal antes mesmo de ter matado Fynn ca’Vörl. Ela pensou que talvez o estresse o tivesse atrasado alguns dias. Mas o sangramento não veio depois da fuga; ainda não tinha ocorrido durante os dias que passou em Nessântico, e agora havia uma estranha náusea quando acordava e sensações estranhas dentro dela.

Isso é tudo o que você terá dele. Quer realmente fazer isso?

Podia ter sido sua própria voz. Podia ter sido a voz de todos eles.

— Vajica? Eu não tenho a noite toda. A chuva...

Ela balançou a cabeça e pestanejou. — Desculpe, eu... — A mão tocou o abdômen outra vez.

O boticário olhou fixamente para a mulher e para o movimento da mão na barriga. Ele empinou e abaixou o queixo, passou a mão na careca como se ajeitasse um cabelo invisível. — Eu acho que tenho o que você quer, vajica — disse o homem, com um tom mais gentil agora. — As moças da sua idade, às vezes, vêm até mim, e, como você, não sabem exatamente o que dizer. Eu tenho uma poção que trará o sangramento. É o que você precisa, não é? Mas devo dizer que não é uma poção fácil de fazer, e, portanto, não é barata.

Ela encarou o homem. Prestou atenção. Colocou a mão na gola da tashta molhada e apalpou a pedra na bolsinha de couro.

As vozes estavam caladas.

Caladas.

— Não. — A Pedra Branca recuou e ouviu o sino da porta quando o calcanhar bateu nela. — Não, não quero sua poção. Não quero.

Ela então deu meia-volta e fugiu para a praça e para o ataque violento da chuva, as luzes mágicas brilhavam à sua volta e refletiam nas ruas molhadas.

Foi quando a Pedra Branca ouviu as trompas darem um alarme por toda a cidade.


??? EVASÕES ???

Karl ca’Vliomani

Niente

Nico Morel

Varina ci’Pallo

Audric ca’Dakwi

Allesandra ca’Vörl

Enéas co’Kinnear

Niente

Sergei ca’Rudka

Karl ca’Vliomani

Jan ca’Vörl

Audric ca’Dakwi

A Pedra Branca


Karl ca’Vliomani

O PLANO ERA BEM SIMPLES — tinha que ser. Karl não tinha um exército para atacar a Bastida. Não tinha compatriotas entre os gardai para abrir os portões ou deixá-los desguarnecidos ou para dar cópias das chaves das masmorras. Não tinha a poderosa magia selvagem de Mahri quando este o tirou da Bastida, para simplesmente levar Sergei embora.

Karl tinha a si mesmo. Tinha Varina e Mika. Tinha o que o próprio Sergei lhe contou.

Ele tinha o mau tempo.

A Bastida foi originalmente projetada como um fortaleza, para proteger o A’Sele de invasores que viessem do alto do rio; mais tarde ela foi convertida em prisão. Uma parte de seu legado ainda existia, e ninguém conhecia todos os caminhos secretos, embora poucos a conhecessem melhor do que Sergei ca’Rudka, que passou muito tempo no comando do conjunto irregular e úmido de pedras negras.

O trio pegou emprestado um pequeno bote ancorado a leste da Pontica a’Brezi Nippoli. Eles entraram na embarcação a poucas viradas da ampulheta depois de ter anoitecido completamente, quando a lua e as estrelas ficaram perdidas atrás dos baluartes dos arranha-céus e uma leve chuva começou a cair. — Eu diria graças aos deuses, se acreditasse neles. — Mika deu um sorriso irônico para Karl ao ajudar Varina, e depois o embaixador, a entrar. Com água até o joelho no rio, ele empurrou e afastou o bote da margem. — Vejo vocês dois mais tarde — disse Mika.

Karl torceu para que ele estivesse certo. Ouviu Mika sair do rio chapinhando e correr na direção das casas ao longo da margem sul.

Karl e Varina não usaram os remos por medo de que as pancadas na água alertassem um dos utilinos que faziam ronda ou um transeunte curioso acima deles. Em vez disso, os dois deixaram que a lenta correnteza do A’Sele levasse o bote rio abaixo. Eles estavam vestidos com roupas escuras, os rostos foram encobertos por fuligem e cinzas, embora a chuva tenha limpado rapidamente. Assim que passaram pela Pontica a’Brezi Veste e pelas torres sinistras e melancólicas das torres da Bastida, os dois vislumbraram a luz agitada de vela no alto da torre onde ca’Rudka estava preso — o sinal de que ele ainda estava lá.

Karl conduziu o bote em silêncio até a margem. Ele e Varina saíram e pisaram na lama úmida, ignoraram o cheiro de peixe morto e de água podre e entraram rapidamente nas sombras da Bastida.

Karl encontrou a porta onde Sergei disse que ela estaria: no ponto em que a barragem de terra coberta por grama da margem do rio encontrava os flancos da torre ocidental da Bastida. A barragem foi construída por ordens da kraljica Maria IV, há um século e meio, para evitar que as enchentes do A’Sele, que ocorriam anualmente na primavera, inundassem a margem sul. A porta estava coberta por terra e grama, onde a barragem subia sobre a base de pedra da Bastida, mas a cobertura era fina e as mãos de Karl rapidamente encontraram o anel de ferro debaixo da terra. Ele puxou com cuidado. A porta cedeu de má vontade, a terra empapada de chuva caiu, mas o som das dobradiças rabugentas foi em grande parte abafado pelo barulho da chuva no rio. Karl segurou a porta aberta para Varina entrar, depois ele mesmo entrou e deixou que a porta se fechasse.

O embaixador ouviu Varina falar uma palavra mágica e luz surgiu na lanterna encoberta que os dois trouxeram: a luminosidade amarela e fria do Scáth Cumhacht. O brilho parecia reluzir com uma intensidade impossível na escuridão. Karl viu as pedras lisas de limo e as lajotas quebradas do piso, as paredes infestadas com estranhas colônias de fungos e decoradas com cortinas esfarrapadas de teias de aranha. As silhuetas marrons e sinistras de ratos fugiam da luz e guinchavam em protesto.

— Que lindo — murmurou Varina, e o sussurro pareceu ecoar com um volume impossivelmente alto. Ela chutou um rato que se aproximara demais do pé, e o animal guinchou com raiva antes de fugir.

— Melhor ratos do que gardai — falou Karl. — Venha. Sergei disse que este caminho deve levar à base da torre principal. Mantenha a lanterna bem encoberta, só para garantir.

A caminhada pelo corredor abandonado pareceu levar cerca de meia virada da ampulheta, embora Karl soubesse que não poderia ter levado mais do que algumas centenas de passos. O ar estava gelado, e ele tremia sob a roupa molhada. Os dois chegaram à outra porta, obviamente fechada há muito tempo, e Karl levou um dedo aos lábios: depois daquele ponto, dissera Sergei, eles estariam nos níveis mais baixos da Bastida, onde poderia haver gardai ou prisioneiros trancados em celas meio esquecidas. Varina tirou uma jarra de banha de cozinha da tashta, abriu e besuntou a substância nojenta nas dobradiças da porta e nas bordas. Depois afastou-se e testou puxar a maçaneta, mas a porta não se mexeu. Ela puxou com mais força. Nada. Apoiou o pé na parede. A porta estremeceu uma vez no batente, mas, tirando isso, não houve resposta. Trancada — Varina falou sem emitir som.

Ela espiou pelo buraco da fechadura com o olho direito. Balançou a cabeça, depois se acocorou ao lado do batente. Falou uma única palavra mágica e gesticulou ao mesmo tempo: a madeira estremeceu e virou serragem em volta do buraco da fechadura, o trabalho de milhares de cupins feito em um instante, o mecanismo de metal caiu no novo buraco irregular com um baque surdo. Varina pegou o ferrolho e o soltou devagar e com cuidado, depois puxou a porta mais uma vez. Dessa vez, ela cedeu, relutante, porém silenciosa, e os dois entraram de mansinho em um pavimento gasto e úmido, mal iluminado por tochas presas em anéis dispostos em intervalos compridos ao longo das paredes — pelo menos um terço já havia se apagado e deixado um rastro de fuligem negra que manchava o teto baixo acima delas. O corredor fedia a óleo, fumaça e urina.

Karl fechou a porta outra vez após os dois entrarem e examinou-a rapidamente. Alguém que passasse por acaso talvez não notasse o buraco aberto por magia na penumbra; isso teria que ser suficiente. Em silêncio, ele apontou para a direita, e os dois começaram a seguir na ponta dos pés rapidamente pelo corredor.

Todas as passagens levarão à saída à esquerda. Conte duas e entre na terceira. Foi o que Sergei disse para Karl; agora ele observava cuidadosamente enquanto eles apressavam. Primeira abertura, da qual ouviram o som de alguém gritando: um choramingo longo, estridente e melancólico que não parecia humano — Karl sentiu Varina estremecer ao seu lado. Segunda abertura: uma passagem bem iluminada e o som ao longe de vozes rudes rindo de alguma piada e berrando.

Terceira abertura. Mais à frente, em um pequeno corredor, havia uma escada gasta em caracol, e eles ouviram vozes baixas e sons de um espaço habitado. A torre...

A mão de Varina pegou o braço de Karl; ela chegou perto, o calor do corpo foi providencial ao lado do embaixador. — Devemos esperar por Mika...

— Até onde sabemos, Mika já fez a parte dele ou já foi capturado. De um jeito ou de outro...

Ela soltou o braço de Karl e concordou com a cabeça. Ele e Varina entraram no corredor e começaram a subir, no maior silêncio possível. A escada, segundo Sergei contou, dava uma volta pelo perímetro de cada andar, com um pequeno patamar em cada um deles e uma porta que levava às celas. Haveria gardai a postos em cada andar, que mudavam na Terceira Chamada. Karl já conseguia enxergar o patamar do térreo. Ouviu duas pessoas falando — se eram dois gardai, ou talvez um garda e um dos prisioneiros, ele não sabia. Karl começava a subir a escada, encostado na parede de pedra...

... e foi então que eles sentiram a torre estremecer uma vez, junto com um rugido grave e um breve clarão de luz branca que banhou a superfície das pedras. Karl e Varina encostaram-se na parede quando vozes gritaram, assustadas. Eles ouviram a porta da torre ser aberta, sentiram o toque do ar da noite e o cheiro da chuva. — O que está acontecendo aqui, pelos seis abismos? — berrou uma voz para a noite lá fora. — Aquilo foi um raio?

A resposta foi ininteligível e longa. Karl e Varina ouviram a porta ser fechada, seguida pelo rangido de uma chave em uma fechadura. — Que agitação é essa, Dorcas? — chamou alguém.

— Alguém acabou de tentar entrar pelo portão principal. O desgraçado usou o Ilmodo e derrubou ambas as portas. Eles acham que pode ter sido um numetodo. O comandante mandou interditar a prisão; devo avisar aos demais. Ninguém entra e ninguém sai enquanto co’Falla investiga e chama alguns ténis do templo para cá. Entendeu?

Veio um resmungo como resposta, e Karl ouviu passos na escada, que sumiram rapidamente.

Ele acenou com a cabeça para Varina. Os dois prosseguiram.

Um triângulo de luz amarela brilhou nas pedras do patamar; ele viu uma sombra se mover na luz. Karl fechou os olhos momentaneamente, sentiu na cabeça a agitação dos feitiços que preparara previamente. Ele saiu do patamar com as mãos já em movimento, a palavra de ativação pronta nos lábios quando Varina passou pelo embaixador e subiu correndo os degraus, na direção do próximo patamar. — Ei, o que... — disse o garda, mas Karl já havia dito a palavra, e um raio refulgiu de sua mão e jogou o homem na parede atrás dele. O garda desmoronou, inconsciente, e Karl correu à frente. Ele começou a seguir Varina, mas foi chamado por vozes de um trio de celas ali. — Vajiki! E nós? As chaves, homem, as chaves... — Mãos foram esticadas pelas janelas com barras nas sólidas portas de carvalho.

Karl hesitou, e os chamados continuaram, mais insistentes. — Solte-nos, vajiki! Não pode nos deixar aqui!

Ele balançou a cabeça. Soltar os prisioneiros só complicaria as coisas, tornaria a situação mais caótica do que já estava e possivelmente mais perigosa: nem todos os prisioneiros na Bastida eram políticos, e nem todos eram inocentes.

Karl seguiu Varina escada acima ao som de xingamentos e gritos.

Varina já havia repetido o processo no segundo andar. — Estou quase exausta — disse ela, visivelmente arrasada contra a parede. — Só tenho mais um feitiço; conjurei os encantamentos às pressas como um téni.

Karl concordou com a cabeça; o embaixador sentia a mesma exaustão, e havia pouco poder sobrando dentro dele. — Eu pego o próximo. Precisamos ter o suficiente sobrando quando chegarmos ao regente.

Juntos, os dois foram para o terceiro nível tão rápido quanto puderam. A cela de Sergei, eles sabiam, ficava no quarto nível; mas quando se aproximaram do terceiro, Karl e Varina ouviram vozes. — O comandante pediu que levássemos o senhor até ele — o tal Dorcas dizia.

— Ele disse que viria em pessoa. — Karl ouviu Sergei protestar; a voz do homem parecia assustada.

— O comandante está um tanto quanto ocupado no momento.

— Soltem minhas mãos, pelo menos. Esta escada...

— Não. O comandante disse que o senhor deveria ficar algemado...

Karl viu uma bota aparecer na curva da escada quase à altura de sua cabeça. Sentiu o agito das últimas sobras do Scáth Cumhacht e falou a palavra de ativação ao se afastar da parede; logo abaixo, ele ouviu Varina fazer a mesma coisa. Dois raios foram disparados, e os gardai que seguravam ca’Rudka desmoronaram. Sergei tropeçou, caiu na escada e quase derrubou Karl. O segundo garda — Dorcas, presumiu Karl — permaneceu em pé, no entanto; sua espada saiu sibilando da bainha, e ele protegeu Varina, que agarrou o braço e recuou. Sergei chutou o joelho do homem, que gemeu e começou a cair; o regente chutou de novo, e Dorcas caiu de cabeça pela escada. Ele não se moveu novamente; a cabeça estava dobrada em um ângulo horrível.

— Eu não achei que você viesse — disse Sergei.

— Eu cumpro minhas promessas — falou Karl. — Agora, vamos sair daqui... Varina?

Ela balançou a cabeça. Karl notou o sangue jorrando entre os dedos enquanto Varina segurava o braço. O embaixador rasgou o própria roupa para fazer uma bandagem. — Eu vou atrasar vocês — disse ela. — Vão indo. Eu seguirei o mais rápido possível.

— Eu não vou deixar você aqui. — Karl amarrou com força o ferimento com faixas de pano. O rosto de Varina estava pálido, e havia mais sangue manchando a tashta do que Karl gostaria. — Não tenho mais nada sobrando do Scáth Cumhacht. E você?

Ela fez que não. Quando Karl amarrou com mais força as bandagens, Varina fez uma careta.

Sergei estava agachado ao lado do garda. Karl ouviu o ranger de aço contra aço e o retinir de chaves, ca’Rudka tirou as algemas da mão e jogou na escada. Ele retirou um florete de um dos gardai.

— Pegue a espada do outro garda — disse Varina para Karl. — Podemos precisar.

Karl assentiu e disse — Vamos. — Eles desceram correndo a escada, com Karl ajudando Varina. Ele sentiu o corpo ficando mole e pesado em seus braços, mais lento a cada lance de degraus. Os prisioneiros gritavam e berravam enquanto os três passavam, sacudiam as barras das celas, mas Karl os ignorou. Eles chegaram ao térreo e, mais devagar, começaram a longa curva para o subsolo. Karl começou a achar que conseguiriam. Eles estavam quase lá. Com Varina arrastando os pés atrás e Sergei à frente, os três desceram correndo a pequena passagem até o corredor principal. Dois cruzamentos, outra curva e mais um pequeno corredor, e eles estariam à porta que levaria ao antigo túnel desativado e ao bote à espera.

— Não desmaie, Varina — falou Karl ao olhar para ela. — Estamos quase lá.

Os três deram mais alguns passos até que um grupo de meia dúzia de gardai armados entrou no corredor vindo do cruzamento à frente. — Lá! É o regente! — berrou um garda, e o líder, com as faixas do posto no uniforme, virou-se. Karl conhecia o homem, embora o offizier olhasse mais para Sergei do que para ele.

— Sinto muito, Sergei — disse o comandante co’Falla, então seu olhar se voltou para Karl e Varina. — Embaixador, infelizmente o senhor e sua companheira cometeram um erro muito grave aqui. Cuidarei para que ela receba o tratamento adequado para a ferida. Sergei, abaixe sua arma. Acabou.

— Eu posso dizer o mesmo para você, Aris — falou Karl. — Afinal, todos vocês sabem o que um numetodo é capaz de fazer.

— Se o senhor tivesse algum feitiço sobrando, já teria usado — respondeu co’Falla. — Ou estou errado?

Houve movimento no corredor atrás dos gardai; uma figura na penumbra das tochas. Karl sorriu. Ele espalmou bem as mãos. Notou que alguns gardai atrás do comandante se encolheram, como se esperassem a explosão de um feitiço. — Não — disse ele. — Você não está errado. Não quanto a mim.

Co’Falla acenou com a cabeça e falou — Então eu sugiro que tornemos esta situação mais fácil para todos nós.

— Eu concordo — disse Karl. Ele olhou atrás de co’Falla e dos gardai, e o comandante começou a virar o rosto. O feitiço atingiu o grupo naquele momento: o ar em volta dos gardai reluziu e se contorceu com raios. Com gritos de dor e surpresa, eles desmoronaram no pavimento de pedra, com os raios ainda ondulando, estalando e se contorcendo sobre os corpos. Atrás deles, Mika estava com as mãos estendidas. O corpo esmoreceu quando as mãos caíram.

— Regente — falou ele. — É um prazer conhecer o senhor. Agora, queiram vocês se apressar...

Varina seguiu meio cambaleante à frente. Ela pegou a espada de co’Falla com a mão boa e colocou a ponta na garganta do comandante. Olhou para Karl e disse — Ele conhece você. — Havia uma mancha de sangue na bochecha, onde ela roçou a mão no rosto cansado e pálido. — Ele falou seu nome.

— Não. — A resposta veio de Sergei. Ele se moveu como se fosse pegar o pulso de Varina, mas ela balançou a cabeça e empurrou a espada, que furou a pele e fez aparecer um ponto vermelho. Sergei olhou para Karl. — Ele é meu amigo. Se fizerem isso, eu não irei com vocês. Ficarei aqui. Vocês terão acabado com tudo.

Varina olhou fixamente para Karl, à espera. O embaixador balançou a cabeça. Ela deu de ombros e deixou a espada cair com um baque alto no pavimento. Varina cambaleou, depois se equilibrou e disse — Estamos perdendo tempo, então.

Eles passaram pelos corpos caídos dos gardai e correram.

 

Niente

NECALLI ERA O TECUHTLI desde antes de Niente nascer. Ele sabia os nomes dos antigos tecuhtlis, mas apenas porque seu vatarh e matarh falaram a respeito deles. O nome de Necalli era sempre louvado nas cerimônias do solstício nos Templos do Sol; foi Necalli quem mandou o famoso Mahri para o leste após suas visões profetizarem a ascensão dos orientais dos Domínios. Foi Necalli quem respondeu ao pedido de ajuda dos primos após o comandante dos orientais ter começado represálias contra aqueles que viviam depois das montanhas costeiras. Foi Necalli quem criou Niente para se tornar o novo nahual acima de todos os demais feiticeiros, muitos dos quais eram mais velhos que Niente e sentiam inveja de sua rápida ascensão. Foi Necalli quem concordou em permitir que Niente usasse os encantamentos profundos do X’in Ka para capturar a mente do offizier dos Domínios e mandá-lo de volta para a grande cidade dos orientais como uma arma.

O feitiço custara mais a Niente do que ele havia esperado, debilitou seus músculos de tal forma que ele não conseguia ficar de pé por muito tempo sem precisar se sentar novamente. O esforço o consumiu tanto que o rosto no reflexo da água na tigela premonitória estava enrugado e cansado como o de uma pessoa muitos anos mais velha do que ele. Niente pagou o preço, como Mahri pagou muitas vezes em sua época, mas Niente odiaria ver aquele sacrifício desperdiçado.

Agora ele se perguntava para que serviu o sacrifício. — Ataque a cabeça da fera, e ela não poderá mais feri-lo — dissera Necalli. Era o que tinha mandado Mahri fazer, mas parecia que, ao contrário, a fera havia consumido Mahri. Niente tinha receio de que este pudesse ser seu destino também.

Mais importante, Necalli era o centro do mundo tehuantino na vida da maioria dos presentes ali. Niente não conseguia imaginar seu mundo sem o tecuhtli Necalli. Todos os guerreiros deviam morrer, e com o tecuhtli não era diferente. No entanto, Necalli sobreviveu aos desafios esporádicos ao seu reinado. Niente desejava que fosse capaz de imaginar Necalli sobrevivendo a este desafio também.

Mas ele tinha pouca esperança.

Niente estava no meio da multidão presente nos flancos da cavidade verdejante do vale Amalian, um dos locais sagrados de Sakal e Axat, localizado mais a leste. Suas costas estavam apoiadas em um dos alaques de pedra entalhada do campo de jogo e mantinha as mãos sobre a ponta do cajado mágico. Niente desceu o olhar para o pátio nas sombras. Lá embaixo, o tecuhtli Necalli estava de armadura, empunhando uma reluzente espada curvada na mão velha, mas firme, enquanto encarava Zolin, supremo guerreiro das forças tehuantinas e filho do irmão morto de Necalli. O rosto do tecuhtli Necalli era escuro com as tatuagens de sua patente, que contornavam as feições como uma máscara eterna e cruel, mas ele era um velho agora, as costas estavam curvadas para frente, o cabelo era branco e ralo. Zolin, em comparação, era a imagem esculpida e perfeita de um guerreiro.

O desafio surpreendeu a todos. Citlali, ele mesmo um guerreiro supremo, estava perto de Niente, e bufou diante da cena abaixo dos dois, Necalli e Zolin começaram a se cercar lentamente, enquanto os guerreiros em volta do campo começaram um cântico ritmado, batendo nas pedras com a ponta do cabo das lanças. O som parecia com as marteladas de Sakal quando Ele entalhou o mundo no casco da Grande Tartaruga. — Necalli voltará para os deuses hoje — disse Citlali. — Que Eles estejam prontos para receber o velho abutre.

— Por quê? — perguntou Niente. — Por que Zolin desafiou o tio? O tecuhtli Necalli não perdeu uma batalha para os orientais; na verdade, ele fez com que recuassem para o Mar Interior. A Garde Civile dos Domínios não penetrou ainda nas nossas fronteiras. O tecuhtli pode ser velho, mas ainda é um mestre da estratégia.

— Zolin diz que o tecuhtli ficou tímido com a senilidade — respondeu Citlali. A própria face era cheia de linhas negras pontilhadas por círculos de um azul intenso. — Ele dança com os orientais, mas hesita em destruí-los. Tornou-se cauteloso e cuidadoso demais. Zolin não tem medo. Zolin varrerá completamente os orientais da terra de nossos primos. Ele atacará, em vez de simplesmente se defender.

— Se vencer o desafio — disse Niente.

— Ninguém é mais forte do que Zolin. Necalli certamente não; olhe, os músculos são flácidos como os de uma velha.

— Será que a força deve vencer sempre a experiência? — perguntou Niente, e Citlali riu.

— Você é o nahual — falou Citlali. — Um dia, um de seus nahualli virá até você e exigirá um desafio, e talvez você descubra a resposta por si mesmo. Diga-me, Niente, por ter sido o nahual de Necalli, você está com medo de mudar de status quando Zolin se tornar o tecuhtli?

Niente aprendeu há muito tempo que alguém nunca demonstrava medo para um guerreiro supremo. Os Tatuados já consideravam os nahualli pouco mais do que armas em forma humana e não tinham nada além de desprezo por aqueles que eles consideravam fracos. Niente deu um sorriso forçado. — Não se Zolin tiver um cérebro, além de força.

Citlali riu outra vez e disse — Ah, isso ele tem. Zolin aprendeu com o próprio Necalli. Agora é o momento de o aluno superar o mestre, de o filho substituir o irmão de seu vatarh. — Niente percebeu que o guerreiro supremo o examinava de cima a baixo com o olhar. — Você anda cansado ultimamente, e estas rugas são novas no seu rosto. Você mesmo devia tomar mais cuidado, Niente. Necalli usou você demais, assim como Mahri. É uma pena.

Niente concordou cautelosamente com a cabeça. Era o que ele mesmo pensara, mais de uma vez.

O cântico e as batidas pararam abruptamente. Eles ouviram os pássaros da floresta se acomodarem novamente. O silêncio quase incomodou os ouvidos de Niente. Necalli e Zolin estavam a dois passos um do outro, no centro do campo.

Zolin rugiu. Avançou. A espada reluziu, mas a arma de Necalli se ergueu ao mesmo tempo, e as lâminas fizeram barulho ao colidirem enquanto os guerreiros gritavam em aprovação. Por um momento, os dois homens ficaram travados nessa posição, depois Zolin empurrou Necalli, e o tecuhtli recuou.

— Viu só — falou Citlali. — Eles agem em batalha como agem aqui. Zolin ataca, enquanto Necalli aguarda.

— E se Necalli encontrar uma falha no ataque de Zolin, ou se Zolin for impaciente, então é Necalli que continuará sendo o tecuhtli. Há vantagens em esperar.

— Veremos então quem os deuses favorecem, não é? — Citlali sorriu com ironia. — Quer apostar, nahual? Três cabras que Zolin vencerá.

Niente negou com a cabeça; Citlali riu. Lá embaixo, o guerreiro supremo executou uma finta em nova investida, e Necalli quase cambaleou ao erguer a espada novamente contra o ataque esperado. Zolin foi para a direita, depois rapidamente mudou para a esquerda, e a espada desenhou uma linha reluzente no ar. Desta vez, a resposta de Necalli veio atrasada. A lâmina do guerreiro supremo acertou o corpo de Necalli no ponto onde o peitoral era amarrado às ombreiras, cortou as tiras de couro e penetrou fundo no ombro do braço que segurava a espada do tecuhtli. Necalli, para seu crédito, só fez uma careta quando Zolin arrancou sua espada, e o sangue jorrou nos dois. O guerreiro supremo cercou Necalli quando o tecuhtli cambaleou para trás, sua armadura se agitou quando ele trocou a espada para a mão esquerda. O sangue escorria pelo braço direito de Necalli e pingava dos dedos. Zolin berrou novamente e levantou poeira com as sandálias ao atacar novamente. O tecuhtli ergueu a espada, mas sua defesa era fraca, e a espada do guerreiro supremo continuou descendo, entrou ao lado do crânio desprotegido de Necalli, se enterrando no pescoço abaixo da orelha esquerda. Zolin soltou a espada quando Necalli caiu de joelhos, a arma do tecuhtli tiniu ao cair no chão. Por um longo momento, Necalli cambaleou ali. A mão esquerda apalpou o cabo da espada de Zolin, sem efeito. Os olhos estavam arregalados, como se enxergasse uma visão no céu; a boca abriu-se como se estivesse prestes a falar, mas só o sangue saiu.

Necalli oscilou para a direita e caiu. O rugido de Zolin foi combinado aos milhares de berros dos que assistiam. Ao lado de Niente, Citlali ergueu um punho cerrado no ar e berrou — Tecuhtli Zolin! Tecuhtli Zolin!

Lá embaixo, Zolin arrancou a espada do corpo de Necalli. Ele ergueu a arma no ar, e os gritos foram redobrados quando ele se virou para encarar os que assistiam. Seu olhar triunfante pareceu encontrar cada tehuantino.

Dessa vez, Niente também se juntou aos gritos. — Tecuhtli Zolin! — Ele levantou o cajado mágico para o céu, mas olhou mais para o corpo de Necalli.

 

Nico Morel

NICO ESTAVA CONFUSO e assustado com a agitação. Várias coisas estavam acontecendo rápido demais. Houve batidas furiosas na porta, e o homem que estava tomando conta de Nico fez um gesto estranho com as mãos antes de os dois ouvirem a voz do embaixador do outro lado. A porta foi escancarada, e várias pessoas entraram correndo. Elas meio que carregavam Varina, cuja tashta estava encharcada de sangue. Nico tentou correr até ela, mas alguém o empurrou de volta para a cama com um rosnado. Houve muitos gritos e gente demais na sala pequena. Sob a luz das velas, tudo era uma confusão de sombras. Ele só conseguiu ouvir trechos do que as pessoas diziam.

— ... precisamos de Karina; ela tem o talento de cura... —

— ... não podemos ficar... fomos reconhecidos... —

— ... diga aos demais para ficarem escondidos... —

— ... a Garde Kralji já deve estar à procura... —

— ...torturar e matar qualquer um de nós que encontrarem... —

— ... a criança tem que ir embora...

Nico sentou-se na cama e queria chorar, mas ficou com medo de atrair atenção para si quando não queria nada além de ser invisível. Um rosto saiu do caos e agigantou-se sobre ele: Karl. — Nós temos que sair de Nessântico. Varina lhe disse isso, não foi? Você virá comigo, Nico. Não podemos deixá-lo para trás, não sem ninguém para tomar conta de você.

— Eu posso ficar na minha velha casa — disse Nico com uma confiança que não sentia. — Minha matarh irá me procurar lá, ou Talis. E eu conheço as pessoas que moram nas outras casas. Eu ficarei lá.

— Nós deixamos uma mensagem para Talis na sua casa avisando onde você estava — disse Karl. — Ele não veio.

— Ele virá — insistiu Nico. — Ele virá.

O homem parecia ter tantas dúvidas quanto Nico tinha por dentro. — Sinto muito, Nico, mas temos que ir embora rápido, e você precisa vir conosco.

Nico olhou por cima do ombro de Karl, na direção do tumulto na sala. Havia muitas pessoas ali, e ele não conseguiu ver Varina. — Varina vai morrer? — perguntou Nico.

— Não. — O embaixador balançou a cabeça enfaticamente. — Ela foi ferida, mas não vai morrer. — O menino acenou com a cabeça. — Nico, você terá que ser muito corajoso e ficar muito quieto. Se formos descobertos, Varina vai morrer, e eu, e talvez você, também. Entendeu?

Nico concordou novamente, embora não entendesse. Ele franziu os lábios e engoliu em seco. — Muito bem, bom rapaz — disse Karl ao mexer no cabelo de Nico, como Talis às vezes fazia, e Varina também. Nico perguntou-se por que os adultos sempre faziam isso apesar de ele não gostar. O menino sabia que Karl tinha filhos e netos em Paeti; uma vez sua matarh comentou com Talis que o embaixador e a archigos Ana eram “próximos demais”, então talvez eles fossem filhos da archigos. Nico imaginou como seria uma criança que cresceu no interior escuro e cavernoso do templo, com pinturas dos moitidis em combate nos domos no alto e fogo mágico que ardia em enormes braseiros em volta do coro.

— Nico! Venha cá. — Karl gesticulou, e Nico foi até ele.

— ... os portões da cidade serão fechados a qualquer momento — dissera um homem grisalho, e Nico levou um susto ao perceber que era o regente de Nessântico: tinha que ser ele, com o nariz feito de prata que reluzia à luz das velas. O menino olhou fixamente para o nariz: ele tinha visto o regente algumas vezes em dias de cerimônias, sentado ao lado do kraljiki Audric, quando a carruagem real dava a volta pela Avi a’Parete. Nico não compreendia por que o regente estava ali ou como poderia haver perigo com sua presença. A matarh sentia arrepios quando falava a respeito dele e contou para Nico histórias sobre o regente ter sido antigamente o comandante e ter torturado pessoas na Bastida. O rosto do regente parecia mais cansado do que perigoso neste instante. — O comandante co’Falla conhece a cidade tão bem quanto eu, pois o ensinei, e isso é um problema. Ele sabe que precisamos sair, e mandará pessoas à nossa procura. — O regente bateu com o dedo no nariz. — Alguns de nós somos muitíssimo reconhecíveis.

— Então nós evitaremos os portões — falou Karl. — Se conseguirmos cruzar a Avi perto do Parque do Templo, bem, as velhas muralhas ficam por ali, e se pudermos atravessar a vizinhança ao norte e entrar nos campos agrícolas durante a noite, há uma faixa de terra com muita floresta por lá, mais ou menos cinco quilômetros adiante, onde podemos ficar durante o dia. Talvez possamos prosseguir para Azay e... — O embaixador parou e deu de ombros. — Então faremos o que for necessário. Nesse momento, estamos perdendo tempo.

— Realmente — respondeu o regente. — Varina consegue andar?

— Eu consigo — Nico ouviu Varina responder, embora a voz soasse fraca e trêmula. Ele a viu, então, sentada na cama enquanto balançava os pés na beirada. O sangue na roupa era escuro, e parecia úmido. — Estou pronta. Só me deixem trocar de roupa. — Varina abanou a mão para eles. — Andem, saiam. Esperem por mim aí fora. Só levarei uma marca da ampulheta.

— Venha, Nico. — Karl acenou para a porta com a cabeça, mas Nico fez que não e abraçou o próprio corpo.

— Deixe o menino ficar — disse Varina. — Eu o levarei comigo. Andem.

— Está certo — respondeu o embaixador, mas ele parecia incerto. — Esperaremos na antecâmara. Seja rápida.

Os homens saíram e Varina desmoronou na cama por um momento, a respiração estava acelerada e incômoda. Ela gemeu ao se sentar novamente e ao tentar desfazer os laços da tashta. — Nico, preciso da sua ajuda...

O menino foi até Varina e desfez os laços, atrapalhou-se com os nós enquanto tentava não notar o sangue que sujava os dedos. Ela abaixou a tashta até a cintura, e Nico afastou o rosto rapidamente, um pouco corado, enquanto Varina tomou impulso com uma mão para ficar de pé. Os seios sob a faixa eram menores que os da matarh, e vê-los cobertos apenas por um pano fino provocou uma sensação estranha em Nico. — Há outra tashta no baú ao pé da cama — falou Varina. — Uma azul; pode pegá-la para mim? Bom menino.

Ele vasculhou o baú, o cheiro de ervas doces dentro de sachês de linho penetrou nas narinas do menino, que entregou a tashta azul para Varina. — Vire-se um instante — falou ela, e quando Nico obedeceu, ele escutou a tashta suja deslizar completamente até o chão. Ouviu Varina vestir a nova tashta meio sem jeito com o braço machucado, e quando ela gritou de dor, o menino foi rapidamente ajudá-la, puxou com força a faixa embaixo dos seios, depois amarrou as alças e os laços das costas. — Há bandagens na última gaveta do baú — disse Varina. — Se puder trazer algumas...

Nico correu para pegá-las para ela. Quando se levantou com as faixas brancas de tecido macio nas mãos, viu Varina tirar as bandagens do braço. Ele conteve um gritinho ao ver o corte fundo e irregular, que ainda estava escancarado e vertia sangue. As bordas da ferida abriram enquanto Nico observava, era tão funda que ele pensou ter visto o osso branco no fundo. Ele engoliu em seco e sentiu enjoo. — Eu sei — falou Varina. — O corte parece sério, e preciso encontrar um curandeiro para costurá-lo. Mas, nesse momento, preciso amarrar uma nova bandagem para mantê-lo fechado. Não consigo com uma mão só. Você pode me ajudar?

Nico concordou com a cabeça e engoliu em seco. Enquanto recebia instruções, ele colocou um chumaço de bandagens dobradas em cima da ferida; depois, conforme Varina apertava as bordas do corte da melhor maneira possível, o menino enfaixou a região. — O mais apertado que você conseguir — disse ela. — Não se preocupe, você não irá me machucar. — Varina mostrou a ele como rasgar a ponta da bandagem em duas e depois amarrá-las para ficar no lugar.

Ela chorava no momento em que Nico terminou e olhava para a mão ao tentar mexer os dedos. — Vai melhorar, Varina — falou o menino. — Só precisa de tempo para sarar.

Varina riu entre as lágrimas e puxou Nico em um abraço com a mão boa. — Obrigada — sussurrou ela no cabelo do menino. — Agora, pegue um pouco de água. Eu quero tirar o sangue das minhas mãos e das suas.

Uma marca da ampulheta depois, os dois saíram do quarto, com Varina pálida, mas andando com firmeza.


Estava chovendo, estava frio, estava escuro, e Nico estava péssimo.

O menino manteve-se próximo a Varina enquanto eles atravessaram correndo a Avi a’Parete sob o aparente olhar furioso das famosas lâmpadas mágicas da cidade. O regente estava com Nico, Varina e Karl; o outro numetodo — aquele chamado Mika — deixou o grupo e foi para outra direção pela cidade. Nico viu um esquadrão da Garde Kralji correr pela Avi na direção do Portão Norte, pisando nas poças dos paralelepípedos da avenida; o regente fez o grupo parar à sombra de um prédio — a chuva caía com força das calhas entupidas sobre eles — até os gardai sumirem na curva da Avi, depois Sergei guiou-os por uma corrida no interior do aglomerado de casas ao norte da Avi. Lá, eles rapidamente trocaram as ruas principais por transversais e becos, mantiveram-se longe das poucas pessoas que estavam na rua no tempo ruim e ocasionalmente se escondiam em vielas quando ouviam outros se aproximarem. Em um momento, um trio de utilinos passou pelo grupo, e eles espremeram-se contra as pedras frias e úmidas do prédio mais próximo, prendendo a respiração enquanto os utilinos, que obviamente observavam os rostos dos transeuntes, iam embora. O grupo continuou rumo ao norte; as casas ficaram mais espaçadas, estavam separadas agora por campos e pastoreios; as luzes da cidade tornaram-se apenas um brilho nas nuvens acima deles; as ruas de paralelepípedos deram lugar a estradas enlameadas e cheias de sulcos, que finalmente viraram um caminho estreito e sujo. Quando eles pararam, Nico teve a sensação de que passou a noite correndo. Os pés e as pernas doíam, e ele ofegava pelo esforço de acompanhar os adultos. Varina desmoronou no chão assim que o grupo parou.

— Vamos descansar aqui por alguns minutos — falou o regente. — Se vier alguém, nós devemos vê-los antes que nos notem. — Os quatro estavam bem afastados de qualquer fazenda, e a chuva virou uma garoa inconstante. Nico ficou ao lado de Varina, que estava apoiada em um muro de pedra à beira do caminho. Ela fechou os olhos e segurou o braço ferido com firmeza.

— A floresta fica a mais ou menos um quilômetro e meio estrada acima; devemos alcançá-la em meia virada da ampulheta — continuou o regente. — Talvez nós devêssemos sair da estrada; se eu fosse o comandante, mandaria batedores para todos os vilarejos à nossa procura.

— Para onde? — perguntou Karl.

O regente sacudiu a água do cabelo parcialmente grisalho; gotas pingaram do nariz de prata. — Firenzcia — resmungou ele.

Karl deu uma risada que mais pareceu uma tosse. — Você está brincando, Sergei. Isso é sair do fogo para cair na brasa. Firenzcia? O archigos ca’Cellibrecca não é nada mais que uma versão mais nova de seu vatarh por casamento; eles adorariam ter o embaixador dos numetodos para torturar e pendurar em uma jaula para que todo mundo visse. Firenzcia? Lá pode ser bom para você, mas Varina e eu teremos uma chance melhor de sobreviver se tentarmos nadar pelo Strettosei até Paeti. Era melhor nós simplesmente nos rendermos à Garde Kralji agora.

Varina abriu os olhos, e Nico viu que ela assistia à discussão. O regente fungou. — Firenzcia é inimiga dos kralji. Agora, nós também. Eu conheço Allesandra desde a época que ela passou aqui; você também. Com Fynn assassinado, ela será a hïrzgin; Allesandra nos acolherá.

— A não ser que os numetodos estejam sendo convenientemente culpados pelo assassinato do hïrzg Fynn — falou o embaixador, e Varina concordou enfaticamente com a cabeça.

— Para onde mais vocês iriam? — perguntou o regente.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

— Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

— E Firenzcia não faria o mesmo? — interveio Varina.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — disse o embaixador.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — Sergei fungou novamente.

Nico ouvia a discussão enquanto se encolhia no manto. Ele não queria ir para Firenzcia, Il Trebbio, Paeti ou qualquer um desses lugares. O menino gostava de Varina e sentia muito por ela estar machucada, mas queria estar com sua matarh ou Talis. Os adultos não prestavam atenção nele; estavam muito dedicados à discussão.

Aos poucos, Nico ergueu o corpo até ficar sentado no muro. Ele virou-se, as pernas balançaram do outro lado. Ninguém notou o menino; ninguém disse nada para ele. Nico deixou-se cair na grama alta do campo. Ele ainda podia ouvir a discussão quando começou a se afastar rapidamente do outro lado do muro de pedra — de volta para Nessântico. De volta para o único lar que conhecia.

Quando Nico mal pôde escutar as vozes, ele começou a correr: noite adentro, chuva adentro, na direção do brilho da cidade ao longe.

 

Varina ci’Pallo

— PARA ONDE MAIS VOCÊS IRIAM? — falou o regente, e ela ouviu Karl escarnecer.

— Para um dos países ao norte, onde eles são mais receptivos aos numetodos. Talvez Il Trebbio.

Sergei parecia um professor ensinando um aluno lento. — Il Trebbio ainda está nos Domínios, e eles já terão recebido a mensagem de Audric para nos capturar se formos vistos.

Varina, que meio que ouvia a discussão, remexeu-se e interrompeu os dois com os olhos semicerrados. — E Firenzcia não faria o mesmo? — disparou para o regente.

— Nós poderíamos pegar um barco de Chivasso para Paeti ou sair pelo norte dos Domínios para Boail — acrescentou Karl; Varina ficou contente por ter o apoio dele.

— E quais são as chances de nós realizarmos essa longa jornada sem sermos notados? — A voz de Sergei era quase de deboche.

A discussão apenas minava a pouca força que restava a ela. Deixe Karl lidar com ele; Karl não irá para Firenzcia. Não irá... Conforme a discussão continuava, a atenção de Varina voltou-se para o cansaço do corpo e a dor latejante e insistente no braço, que dava uma pontada toda vez que ela se mexia. Varina apoiou a cabeça no muro de pedra à beira da estrada, sem se importar que o chão embaixo dela estivesse frio e encharcado, e fechou os olhos enquanto os dois continuavam a discutir. Sentia no rosto o espirro gelado ocasional das nuvens insistentes e ouvia o estrondo da voz dos dois homens como um trovão distante em sua mente. Ela estava péssima e com frio.

Varina perguntava-se se a morte não seria na verdade um benefício.

Ela não sabia o que pensar quando olhou para a direita, na direção onde o brilho da cidade pintava as nuvens baixas levadas pelo vento. Ao mesmo tempo, percebeu que o calor tênue que estivera ao seu lado foi embora.

— Nico? — Varina sentou-se e conteve o grito que queria irromper pela garganta com o movimento. Então, falou mais alto — Nico?

Karl e Sergei deixaram a discussão de lado e viraram-se. — Varina? — Karl começou a dizer, depois praguejou. — Merda! O menino sumiu. — Ele olhou sobre o muro, Varina fez o mesmo, enquanto se levantava lentamente. A grama da campina revelava o rastro escuro e pisoteado dos pés de Nico, que voltava na direção da cidade até Varina perdê-lo na escuridão.

— Eu vou atrás dele. O garoto não pode estar longe. — Ela começou a passar por cima do muro para persegui-lo e fez uma careta quando o movimento forçou o braço machucado. Mas Varina sentiu a mão de Karl no braço bom, para contê-la.

— Não — falou Karl. — Você não pode. Ele está voltando para a cidade e chegará lá antes que você o alcance. Você não pode ir lá. Eles não estão procurando por um menino, estão procurando por você.

Varina estava agitada. Ela tentou se soltar de Karl, mas estava muito fraca. Sergei assistiu, impassível, da estrada. — Nico estará sozinho lá. Não posso abandoná-lo assim. Eu prometi.

— Ele estava sozinho quando você o encontrou. O garoto é no mínimo engenhoso. — Karl apontou com o queixo para o brilho da cidade nas nuvens. — Nico acha que sua matarh ou Talis irão encontrá-lo se ficar lá. Ele pode estar certo. Deixe o menino ir, Varina. Deixe-o ir. Nós temos outras questões para nos preocupar.

Varina esmoreceu. Ela sentou-se no muro e olhou para a trilha da fuga de Nico. Karl soltou seu braço, que ela usou para abraçar o ferido. A chuva tinha recomeçado a cair; a garoa escondeu as lágrimas. — É minha culpa — disse Varina. — Minha culpa. Eu devia ter tomado conta dele. Prometi que o levaria a um lugar seguro. Prometi a ele...

— Varina. — Ela virou-se para Karl, que balançou a cabeça. — A culpa é minha. Você está ferida, precisava descansar. Eu devia ter vigiado o menino. Não você. A culpa é minha.

Varina queria poder acreditar em Karl. Fungou. Virou o rosto novamente para o rastro, que sumia. A grama da campina já se levantava e escondia a fuga de Nico.

— Fique a salvo — sussurrou Varina: para a escuridão, para a chuva, para a névoa distante tocada pela luz. — Por favor, fique a salvo.

 

Audric ca’Dakwi

VOCÊ TEM TODO O DIREITO de estar furioso. Na verdade, você tem que estar furioso, para que eles temam você.

Audric ouviu a voz da mamatarh, o espocar das palavras em sua cabeça, a raiva aparente de Marguerite. Ele viu a cara fechada no quadro à direita quando se sentou no Trono do Sol.

Eu fui a Spada Terribile, a Espada Terrível, antes de ser a Généra a’Pace, falou a kraljica em fúria. Você tem que seguir meus passos, Audric. Tem que mostrar para eles o aço, antes de dar a luva de pelica, para que saibam que o aço está sempre dentro. Escondido.

— Eu mostrarei — falou Audric em tom grave, depois se voltou para o comandante co’Falla, que estava diante dele com a cabeça baixa e uma pequena bandagem no pescoço. O Conselho dos Ca’ sussurrava em seus assentos, atrás do comandante. — Comandante? — vociferou o kraljiki, embora a rispidez da palavra tenha provocado um acesso de tosse. Ele ergueu os olhos, com o lenço de renda amassado na mão, e viu que co’Falla o encarava. — Você está me informando que o ex-regente ca’Rudka conseguiu escapar da Bastida e de minha ordem de execução? — Ele teve que parar para tomar fôlego. Ouviu o eco da voz nas pedras do salão. Abaixe a voz. Você soa estridente, como uma criança. Mostre a eles que você está à altura deles. — Eu sei — falou Audric para a mamatarh, depois se deu conta de que todos o observavam, e fingiu que começava outra sentença — ... que o regente não pôde ser encontrado em Nessântico e que provavelmente fugiu da cidade?

— Sim, kraljiki — falou o comandante irritado. Ele retesou o maxilar, os músculos encolheram-se debaixo da barba, e ele franziu os lábios depois da resposta. Co’Falla parecia conter as palavras que queria dizer.

Audric fez um gesto magnânimo na direção ao homem e falou — Prossiga. Esclareça para nós.

— Kraljiki — disse ele, e olhou para trás, para os demais. — Conselheiros. Este foi um ataque à Bastida orquestrado pelos numetodos; por quantos, ainda não temos certeza. Os portões principais foram arrancados com um feitiço, e perdi dois homens quando os suportes do lado norte caíram como resultado. Eu imediatamente mandei interditar a torre onde o regente estava preso, com medo de que um ataque direto pelos portões destruídos viesse a seguir, e despachei um mensageiro ao templo para chamar os ténis, a fim de neutralizar os feitiços numetodos. Mas, ao que parece, o ataque aos portões foi simplesmente um engodo para chamar nossa atenção. Quando não aconteceu ataque algum, eu pessoalmente levei gardai aos corredores do subsolo da Bastida, mas o embaixador ca’Vliomani e seus comparsas já haviam entrado; provavelmente muito antes do ataque ao portão.

— Você tem certeza de que o homem que viu era o embaixador ca’Vliomani? — perguntou Audric.

Co’Falla concordou com a cabeça. — Certeza absoluta, kraljiki. Quando ficou óbvio que não haveria ataque algum aos portões, eu levei um esquadrão aos corredores do subsolo, como disse. Nós confrontamos o embaixador ca’Vliomani e a numetodo Varina ci’Pallo com o prisioneiro; havia pelo menos outro numetodo nos corredores. Eles usaram feitiços contra nós. — Ele engoliu em seco. — Meus homens e eu fomos incapacitados.

Audric ergueu as sobrancelhas. — Incapacitados — falou o kraljiki demoradamente, como se saboreasse a palavra. — Mas não morto, embora, eu noto, tenha sido... ferido. Um arranhão no pescoço, que não foi pior que um cortezinho de navalha? Que sorte para todos nós!

Soaram risadas da parte dos conselheiros, com destaque para o riso debochado de Sigourney ca’Ludovici. O rosto de co’Falla ficou visivelmente vermelho.

— Kraljiki, conselheiros, eu conheço Sergei ca’Rudka desde que entrei para a Garde — disse ele. — Ele foi meu offizier superior e meu mentor. Ele me promoveu e me fez subir de patente; Sergei ca’Rudka, através de seu vatarh, kraljiki, me escalou para meu posto atual como comandante da Garde Kralji. Eu o considerava meu amigo, bem como meu superior. Eu presumo que a amizade dele é o motivo de meus homens e eu ainda estarmos vivos, kraljiki.

Audric não precisou do falatório da mamatarh para se levantar do trono ao ouvir isso. Ele apontou um dedo acusador para o comandante. — Na realidade, seu relacionamento e amizade com ele foram a causa de ca’Rudka ter escapado — rugiu o kraljiki em tom estridente ao conter a tosse. — Que conveniente que você tenha caído inconsciente exatamente na hora certa. Que conveniente que os numetodos conhecessem essa passagem secreta pelo rio. Que conveniente... — Audric não conseguiu prosseguir. Foi sobrepujado pela tosse naquele instante, e encolheu-se no Trono do Sol com o lenço de renda no rosto enquanto o corpo era acometido pelo ataque. Ele mal ouviu a ladainha de desculpas do comandante.

— Meu dever é com o kraljiki e Nessântico — insistiu co’Falla. — Isso suplanta qualquer amizade que eu possa ter com o regente. Eu lhe garanto, kraljiki, que agi exatamente como o senhor ordenou. Eu lhe garanto que teria cumprido a sua ordem de executar o regente, caso o senhor tivesse decidido que esse seria o destino dele. Vários dos meus homens foram feridos ou mortos no ataque; eu jamais, jamais teria permitido que isso acontecesse. Eu não abandonaria meu dever e juramento ao serviço militar pelo bem de uma amizade. Jamais.

Audric ainda recuperava o fôlego enquanto limpava os lábios com o lenço. Marlon, ajoelhado e inclinado para frente nos degraus do tablado do trono, ofereceu outro lenço, que Audric pegou entregando o manchado para o criado. Foi Sigourney ca’Ludovici quem respondeu a co’Falla, e Audric escutou enquanto tossia baixinho no novo lenço. — Estas são belas e nobres palavras, comandante, mas... — Ela olhou solenemente em volta do salão. — Ora, eu não vejo o regente nem o embaixador ca’Vliomani algemados diante de nós, e pelo que o senhor nos disse, todos os numetodos notórios da cidade fugiram também. Como o kraljiki disse, que conveniente que eles tenham tido tempo e oportunidade para fazer tal coisa.

— Conselheira ca’Ludovici — falou co’Falla —, eu fico ofendido diante destas acusações. Assim que recuperei a consciência, eu despachei a Garde Kralji para guardar os portões e varrer a cidade; entrei em contato com o archigos Kenne para que ele mandasse alertar os utilinos em suas rondas; mandei uma mensagem ao Guardião dos Portões e pedi que vasculhassem todos os albergues e estalagens. A senhora pode verificar essas ordens com meus offiziers.

— Mas seu amigo ca’Rudka e seus comparsas conseguiram escapar dessa bela e maravilhosa rede que o senhor colocou em torno da cidade — respondeu ca’Ludovici. — Como ele é esperto. — Novamente veio a risada dos outros conselheiros.

Audric recuperou a compostura e dobrou o lenço manchado de sangue na mão. O rosto de co’Falla estava ainda mais vermelho do que antes, e o kraljiki ergueu a mão para interromper o protesto do comandante. — Eu decreto que Sergei ca’Rudka não tem mais status algum nos Domínios. Que a Gardes a’Liste registre o nome dele simplesmente como Sergei Rudka, de agora em diante. O mesmo para o embaixador ca’Vliomani; ele perdeu o status diplomático e agora é conhecido apenas como Karl Vliomani, sem nenhum posto aqui. Quando forem encontrados, a pena para eles será a morte imediata.

Audric ouviu o murmúrio de prazer da mamatarh e os sussurros dos conselheiros, que concordaram. — Quanto a você, comandante co’Falla — falou ele, e co’Falla ajeitou os ombros e pareceu olhar além do kraljiki —, também é necessário haver julgamento.

— Kraljiki — disse co’Falla, de queixo empinado e com olhos ocultos —, eu tenho família aqui e presto serviço leal ao Trono do Sol desde minha décima-sexta temporada. Eu peço aos senhores que considerem isso.

— Nós consideramos — falou Audric. — Nós também consideramos que você falhou com seu juramento e falhou com seu kraljiki. — Mostre a eles. Mostre a eles que você também pode ser a Spada Terribile. Mostre sua força e sua determinação. Audric levantou-se do Trono do Sol e enfiou o lenço de renda na manga da bashta azul e dourada. Ele deu alguns passos para ficar na frente de co’Falla e sentiu o olhar de aprovação de Marguerite as suas costas. Sua cabeça bateu na altura do peito do comandante; ele teve que erguê-la para ver o rosto do homem e ficou furioso por causa disso. — Nós exigimos a espada de seu cargo, comandante. — O kraljiki estendeu a mão.

A expressão de co’Falla ficou séria e vazia. Ele soltou o cinto da bainha, e os fechos de metal tilintaram como uma música. Co’Falla colocou a arma na mão estendida de Audric. O kraljiki pensou ter visto um leve traço de satisfação no rosto do homem quando o peso inesperado do aço quase fez Audric deixar a espada cair, a mão caiu e o cinto de couro da bainha enroscou-se sobre o piso de mármore do salão. O kraljiki virou-se de lado para co’Falla e sacou a lâmina da bainha. O aço retiniu: era a arma de um guerreiro, não um objeto de enfeite lustroso, entalhado e cravejado de joias que a maioria do Conselho dos Ca’ portava. Audric ergueu a lâmina com admiração e viu os pequeninos arranhões onde o gume fora recentemente afiado, o brilho da cobertura de óleo na superfície. A espada de um guerreiro. A espada que dava sinal de ter tido muito uso e muita morte.

Audric sorriu.

Sem aviso prévio, ele empunhou a arma na horizontal e girou o corpo rapidamente, enfiando fundo a ponta afiada e triangular da espada no estômago de co’Falla, e gemeu diante da resistência inesperada do tecido e dos músculos. O comandante ofegou, ficou boquiaberto e arregalou os olhos. As mãos de co’Falla pegaram a lâmina enquanto Audric continuava a empurrar com toda força e a enterrar a espada fundo na barriga do homem. O sangue espalhou-se rapidamente e fluiu pela calha central na direção do punho que o kraljiki segurava. Co’Falla tomou fôlego pela segunda vez e verteu sangue pela boca aberta, seus joelhos cederam, o homem caiu e arrancou a espada da mão de Audric. O kraljiki ouviu os conselheiros ficarem de pé ao mesmo tempo, horrorizados.

A mamatarh riu dentro de sua cabeça.

Muito benfeito, disse ela para o neto. Benfeito mesmo!

Audric foi até o corpo que estrebuchava, olhou nos olhos do moribundo e falou — Agora nós realmente não temos que nos preocupar com sua incompetência. — Ele tossiu violentamente pelo esforço, mas não se importou com as gotículas vermelhas que caíram sobre o rosto e o peito do homem. Co’Falla olhou Audric fixamente e pestanejou. O kraljiki arrancou a espada do estômago do sujeito e colocou a ponta sobre o peito, sentiu quando ela entrou entre as costelas. — E lhe concedemos um último favor: uma morte rápida. — Audric colocou todo o peso no cabo e empurrou. Mais sangue jorrou da boca de co’Falla, e o homem ficou imóvel.

Excelente! Você é realmente meu verdadeiro herdeiro, muito mais forte que seu vatarh...

Audric voltou-se para o Conselho dos Ca’ e espalmou as mãos ensanguentadas. O rosto de Sigourney ca’Ludovici ficou pálido, e ela olhava mais para o cadáver de co’Falla do que para o kraljiki.

— Parece que precisamos de um novo comandante — disse Audric para os conselheiros.

 

 

Allesandra ca’Vörl

— ISSO NÃO ERA O QUE EU QUERIA, matarh. Fynn deveria ser o hïrzg, e caso não fosse ele, então a senhora. Não eu.

Allesandra tirou fios imaginários dos ombros da bashta com apliques dourados que Jan usava, com a faixa do cargo de hïrzg sobre o tecido preto e prateado. Ela tocou a bochecha do filho e sorriu. Ele já tinha ficado mais alto do que a matarh nos últimos dois anos; Jan ficaria ainda mais alto. — É melhor assim — disse Allesandra. — Firenzcia terá um hïrzg forte por muitas décadas, que é o que precisamos.

— Eu não entendo. — Jan olhou para ela, com a cabeça ligeiramente inclinada. — Por que a senhora fez isso? Por que abdicou de ser a hïrzgin? Todas aquelas histórias sobre o vavatarh ter tirado este direito da senhora, de tê-la ignorado em favor do onczio Fynn...

— Eu não queria. — Allesandra viu o espanto no rosto do filho. Jan sempre foi uma criança que revelava os pensamentos pelas expressões. Vou ter que trabalhar essa questão com ele. É algo que Jan precisa aprender. Ela sorriu e tocou a bochecha do rapaz. — É verdade, querido. Realmente. Agora, vamos: os ca’ e co’ vieram encontrar seu novo hïrzg, e não podemos fazê-los esperar.

Allesandra acenou com a cabeça para o comandante Helmad co’Göttering da Garde Hïrzg, que esperava pacientemente a uma passada e meia de distância dos dois trajando uniforme de gala. O homem prestou continência e ergueu a mão. Em resposta, Roderigo, que se tornou o assistente de Jan, gesticulou para os criados, que correram para seus postos. O som das cornetas ecoou pelo ar agradável da noite quando os atendentes abriram as portas duplas que levavam ao salão principal. Jan fez uma pausa e não se mexeu; Allesandra gesticulou para ele e disse — Você primeiro. É você que eles querem ver.

Quando Jan entrou, os aplausos surgiram e se avolumaram, entremeados por berros de comemoração e gritos de “hurra, hïrzg Jan!”. Ele parou na porta como se estivesse preso ao lugar pela aclamação e ergueu os braços lentamente, quase arrependido, para aceitá-la. — Ande — sussurrou Allesandra ao ver que o filho continuava parado ali. — Vá até eles.

Jan olhou para trás. — Com a senhora, matarh — falou e ofereceu o braço. Ela deu um passo à frente para aceitá-lo e sorriu quando pousou a mão no braço ao filho. Os aplausos aumentaram e envolveram os dois.

Allesandra olhou para a multidão radiante. As cores preto e prata predominavam, como em todas as comemorações firenzcianas, refletindo as cores dos estandartes pendurados no alto das paredes. Luzes mágicas reluziam intensamente nos candelabros e iluminavam os ca’ e co’ de Brezno, todos reunidos e voltados para os dois. Os rostos mostravam sorrisos, alguns genuínos, mas muitos escondendo preocupação, incerteza e desconfiança. Ninguém conseguiria deixar de ver o número de homens da Garde Hïrzg postados nas laterais do salão que andavam cuidadosamente entre a multidão, com olhares sérios e atentos, nem o comandante co’Göttering, que entrou no salão imediatamente atrás de Jan e Allesandra, nem a presença chamativa do starkkapitän ca’Damont, bem como seus vários offiziers chevarittai. Firenzcia tinha perdido dois hïrzg em menos de um ano agora, e os ca’ e co’ sabiam que a a’hïrzg passara o cajado e a espada para o filho, que eles conheciam pouco, apesar do recente destaque. Era óbvio que Firenzcia planejava não sofrer mais perdas.

Firenzcia estava acostumada a mudanças: na vida de muitos que aplaudiam a entrada de Allesandra e Jan, eles vivenciaram uma grande batalha perdida para Nessântico; viram a própria Allesandra ser feita de refém; testemunharam seu querido vatarh abandoná-la em nome do irmão mais novo; tremeram quando o velho hïrzg Jan separou-se dos Domínios e criou a Coalizão; testemunharam a separação da própria fé concénziana, com a rebelião do archigos ca’Cellibrecca contra o velho trono em Nessântico e a ascensão da archigos Ana; vibraram com o fortalecimento da Coalizão a cada ano que passava, pois parecia que um dia poderia até mesmo ofuscar os Domínios.

Na vida dos ca’ e co’, Firenzcia passou de criado dos Domínios a seu maior rival. A luz de Brezno agora rivalizava com a da própria Nessântico.

Eles sentiam-se otimistas a respeito de Firenzcia e do ramo breznoniano da fé concénziana, mas este ano acabou com muito daquele otimismo. Allesandra sabia que os ca’ e co’ vibravam agora mais pela esperança que o novo hïrzg Jan representava do que pelo próprio Jan.

Se eles soubessem o que ela planejou... Allesandra perguntou-se que caras os ca’ e co’ fariam e se conseguiriam sorrir de alguma maneira.

Semini estava na frente do público, com a equipe de ténis vestidos de verde atrás. Allesandra segurou na mão de Jan quando os dois desceram os degraus. Conforme a multidão começava a se juntar em volta de Jan, muitos com filhas jovens e solteiras a tiracolo, Allesandra apertou o braço do hïrzg e sussurrou — Seja educado com seus súditos. Você nunca sabe de qual deles poderá precisar como aliado... ou como esposa.

— Aonde você vai, matarh? — sussurrou Jan de volta, e ela ouviu apreensão em sua voz.

— Não se preocupe; eu estarei aqui e resgatarei você se notar algo estranho. Preciso falar com o archigos ca’Cellibrecca. — Allesandra acenou com a cabeça para os ca’ e co’ enquanto estes se reuniram em volta de Jan, escapou no meio da multidão e cumprimentou aqueles por quem passava. A música havia recomeçado, mas a maioria no salão ignorava o chamado para dançar a fim de ter um momento com o novo hïrzg. — Archigos — disse ela ao chegar a Semini, que estava do lado do público. Seus o’ténis assistentes, que sorriram e fizeram o sinal de Cénzi para Allesandra, afastaram-se quando ela chegou e retornaram cuidadosamente às próprias conversas.

Semini acenou com a cabeça para Allesandra e fez o sinal de Cénzi, depois ofereceu as mãos para ela. Allesandra as segurou e apertou os dedos por um instante antes de soltá-las. Eles não tiveram uma oportunidade de ficar juntos desde o encontro na Encosta do Cervo, há mais de um mês, mas houve cartas e recados cuidadosamente elaborados. Ela sabia como queria que esta noite acabasse. Os preparativos já tinham sido feitos: Semini iria aos aposentos de Allesandra após a recepção. Ela sorriu. — É tão bom vê-lo novamente, archigos. Como vai sua esposa na noite de hoje? Eu esperava ver Francesca com você. — Sempre educada em público, sempre dizendo as coisas certas.

— Ela não está... se sentindo bem e pede desculpas à senhora e ao hïrzg. Na verdade, Francesca não vem se sentindo bem há algum tempo, eu cuidei para que ela fosse para as estâncias de Kishkoros. Francesca ficará lá mais uma semana; eu soube que as estâncias são bem revigorantes e renovadoras.

Allesandra concordou, contente com a notícia: isso remove um empecilho para nosso caso. — São sim. Tenho certeza de que o descanso fará maravilhas para a saúde de Francesca, embora eu espere que isso não lhe deixe muito solitário. — Ela apertou a mão de Semini novamente.

Ele deu um sorriso ao ouvir isto, talvez largo demais. Allesandra viu um dos o’ténis erguer as sobrancelhas na direção dos dois e soltou as mãos do archigos. — Tenho certeza de que o trabalho me impedirá de sentir muita falta de Francesca. Há muita coisa que a Fé pode fazer para ajudar o novo hïrzg, não acha?

— Eu sei que Jan ficará muito grato a você, archigos. Assim como eu. — Ela deu uma olhadela para a aglomeração de gente em volta de Jan. Ele sorria abertamente, cumprimentava mãos e tocava em ombros, e havia jovens reunidas ao seu redor. Apesar da apreensão mais cedo, Jan parecia estar se divertindo. O nó no estômago de Allesandra afrouxou um pouco. O comandante co’Göttering permanecia ao lado do hïrzg e observava atentamente, com a mão nunca longe da espada ao lado. Allesandra suspeitava que, apesar da elegância dourada do cabo, a lâmina do comandante era bem útil. Aliás, ela sabia que o próprio Semini era um excelente téni-guerreiro e não tinha dúvidas de que os outros ténis com ele eram o mesmo.

Jan estava a salvo aqui. Allesandra poderia aproveitar a noite e ver as manobras sociais dos ca’ e co’ que foram convidados. — Uma vez que a conselheira ca’Cellibrecca não pôde estar aqui — disse ela para Semini —, talvez você possa dançar comigo mais tarde?

Os dentes brancos reluziram sob a barba grisalha; ele abaixou levemente a cabeça. — Eu adoraria muitíssimo. Gostaria de caminhar comigo, a’hïrzg? Meus ténis montaram um belo arranjo no jardim, e eu gostaria de mostrá-lo para a senhora. — Semini ofereceu o braço para Allesandra, que hesitou um momento; os ca’ e co’ podiam não estar prestando tanta atenção a ela quanto ao filho, mas notariam. Eles sempre notavam. Mas Allesandra deu a mão ao braço oferecido e deixou que Semini a conduzisse a uma das sacadas no mezanino do salão. Os o’ténis do archigos, notou ela, se posicionaram cuidadosamente nas portas da sacada quando os dois passaram e ficaram voltados para o salão, de maneira que, quando Allesandra olhou para trás, não viu nada além de costas vestidas de verde, embora as portas permanecessem educadamente abertas.

— Eles são bem treinados — disse ela, e Semini sorriu.

— E são bem discretos. Veja. — O archigos se dirigiu para o lado esquerdo da sacada, onde mesmo que alguém tentasse olhar do salão sobre a parede de o’ténis não conseguiria ver facilmente os dois. Lá embaixo, os jardins do Palácio de Brezno estavam acesos com bolas de luz brilhante que flutuavam suavemente nas alamedas: tons intensos de púrpura e azul, vermelhos reluzentes, verdes da cor da grama na primavera, amarelos mais fortes do que girassóis. A noite estava fresca e agradável, e as estrelas imitavam o jardim em um céu decorado com nuvens prateadas. Os casais na recepção perambulavam pelo labirinto dos jardins, de mãos dadas.

O calor de Semini cobria as costas de Allesandra, ele estava com os braços em volta dela e apertava o corpo contra o seu. — Eu senti sua falta, Allesandra.

— Semini... — Ela recostou-se no abraço e sentiu o desejo aumentar dentro de si. Ele tinha cheiro de sabonete, de óleo no cabelo e almíscar. Allesandra imaginou-se montada em Semini, movendo-se com ele.

Ela virou-se nos braços do archigos e empinou o rosto. Eles beijaram-se, e Allesandra sentiu os pelos macios da barba em sua bochecha e o ímpeto da língua na boca, as mãos do archigos desceram para pegar suas nádegas e apertá-la contra ele. A a’hïrzg entregou-se ao beijo, fechou os olhos e se permitiu sentir, notar o calor que passava por ela como uma maré lenta e implacável. Allesandra afastou-se, relutante, o fôlego era quase um lamento, e virou-se novamente para relaxar contra o corpo do archigos. Ela olhou para a luz, para os amantes furtivos em momentos secretos no jardim lá embaixo. — Semini... — Allesandra começou a falar...

... Mas o aumento do barulho no interior do salão afastou Allesandra do archigos, cheia de culpa. Eles ouviram gritos, e no momento em que a a’hïrzg virou-se, preocupada, ela ouviu um dos o’ténis falar alto demais: — ... deixe-me buscar o archigos para o senhor...

O comandante co’Göttering empurrou a porta da sacada e irrompeu noite afora, seguido por um trio de inúteis o’ténis. — A’hïrzg, archigos — falou o homem. Quaisquer que fossem os pensamentos que ele possa ter tido ao ver os dois próximos e sozinhos na sacada foram cuidadosamente dissimulados. — A sua presença é exigida no salão.

— Qual é o problema, comandante? — perguntou Allesandra. — Eu ouvi gritos. Jan está...?

— O hïrzg está bem. Há notícias e... um convidado. Por favor... — Co’Göttering gesticulou para a porta; Allesandra e Semini seguiram o comandante em direção à claridade do palácio e da escada do mezanino. A a’hïrzg viu um quarteto de homens da Garde Hïrzg em volta de Jan, enquanto os ca’ e co’ ficavam boquiabertos, e com eles um homem sujo de viagem. No meio da escada, o sujeito se virou e, na luz, Allesandra viu o brilho de metal no rosto: um nariz feito de prata reluzente. E o rosto...

Allesandra ficou sem fôlego. Ela conhecia o homem. Conhecia muito bem, e parecia impossível que ele estivesse aqui em Brezno.

 

Enéas co’Kinnear

NESSÂNTICO...

Enéas quase chorou quando viu as torres e domos dourados novamente, quando vislumbrou a faixa perolada da Avi a’Parete brilhando à noite, quando ouviu as trompas do Templo do Archigos que anunciavam, em tom de lamúria, as Chamadas para a prece. A grande cidade, a maior de todas as cidades: ela era uma visão que, por muitas vezes quando serviu nos Hellins, ele duvidou que tivesse permissão para ver de novo.

E Enéas não teria tido o prazer se não tivesse sido abençoado com a graça de Cénzi. Disso, ele tinha certeza — não, ele teria morrido nos Hellins. Deveria ter morrido lá. Enéas parou a carruagem no Morro Corcunda, do lado de fora da cidade ao longo da Avi a’Sutegate, desceu e gesticulou para o condutor prosseguir. Enquanto a carruagem descia o morro se sacolejando, na direção do Portão Sul e de pontos de referência conhecidos, Enéas ficou em um joelho só, com as mãos entrelaçadas na testa, e rezou para agradecer a Cénzi.

Ainda há uma tarefa que resta você fazer, Enéas ouviu a resposta de Cénzi enquanto olhava o cenário maravilhosamente familiar diante dele: o rio A’Sele, que reluzia ao abraçar a Ilha A’Kralji, com as quatro pontes arqueadas sobre as águas. Então sua dívida Comigo estará realmente paga, e eu lhe aceitarei plenamente nos Meus braços...

Enéas sorriu, levantou-se e desceu devagar em direção à cidade que amava.

Naquela noite, ele deu os papéis do comandante ca’Sibelli e seu próprio relatório verbal ao gabinete da Garde Civile, embora o e’offizier presente parecesse distraído e nervoso. — Há notícias dos Hellins? — perguntou Enéas. — Mais recentes do que as que eu contei?

O e’offizier fez que não com a cabeça. — O seu é o último relatório que recebemos, o’offizier. — Ele abaixou a voz num sussurro conspiratório. — Cá entre nós, eu sei que o comandante co’Ulcai está muito preocupado; ele esperava receber mensagens expressas dos Hellins nas últimas semanas, mas elas não vieram. Quanto aos eventos aqui na cidade, bem... — O homem falou da fuga do regente, da participação dos numetodos e da execução do comandante co’Falla da Garde Kralji como punição. Ele inclinou-se para frente a fim de sussurrar para Enéas. — Vá à Pontica a’Brezi Veste e o senhor verá o corpo do comandante pendurado para servir de comida para os corvos. Cá entre nós, isso deixou o comandante co’Ulcai preocupado, uma vez que ele e co’Falla eram protegidos do regente e indicados pelo próprio. O kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, pode vir a desconfiar daqueles que tenham um tiquinho de lealdade pelo velho regente. Só podemos torcer para que o kraljiki Audric acabe sendo tão forte e sábio quanto sua mamatarh, mas... — O e’offizier deu de ombros e recostou-se na cadeira. — Só Cénzi sabe.

— Realmente — respondeu Enéas. — Só Cénzi sabe. Essa é a única verdade.

O offizier carimbou a papelada e informou que a agenda de co’Ulcai estava cheia no dia de hoje, mas que o comandante poderia chamar Enéas para dar o relatório em pessoa, e que ele estava liberado de outras tarefas na próxima semana. Enéas recebeu uma chave e um quarto, onde colocou a mochila com cuidado, longe do fogo na lareira e da janela, onde o calor do sol poderia alcançá-la.

Depois, ele seguiu pela Avi a’Parete para a praça onde ficava o Templo do Archigos, cheia de pombos sobre as lajotas ou voando com precisão militar em esquadrões no céu, que depois pousavam onde alguém talvez tivesse deixado comida cair. Enéas andou devagar e apreciou as vistas e os odores da cidade, sentiu o gosto do ar carregado na boca. A presença da cidade abraçou Enéas como uma matarh, ele foi completamente envolvido pelo miasma perfumado e quase soluçou pelo puro alívio da sensação. Vindas da Avi, as pessoas entravam aos borbotões na praça, e Enéas percebeu que era quase a Segunda Chamada, bem no momento em que as trompas começaram a soar nos grandes domos dourados. Ele juntou-se às pessoas que entravam no templo. Algumas reconheceram seu uniforme, com a faixa vermelha dos Hellins proeminente na transversal, e sorriram para Enéas, gesticulando para que ele entrasse na fila. — Obrigado por servir ao país, offizier — disseram para ele. — Nós reconhecemos tudo o que o senhor está fazendo por lá. — Enéas devolveu o sorriso ao passar pelas grandes portas de bronze, com os corpos emaranhados dos moitidis que jorravam do peito dilacerado de Cénzi, e entrou na penumbra fria e com cheiro de incenso do templo.

Ele sentou-se perto do coro, logo abaixo do Alto Púlpito, e jogou a cabeça para trás para ver o telhado distante, cheio de vigas. Através do vitral bem acima de Enéas, a luz radiante trespassava a penumbra. Ele ouviu o cântico dos acólitos nas alcovas quando as trompas se calaram e a procissão de ténis entrou no coro pela porta dos fundos. Enéas ficou com o resto da congregação e sorriu com prazer ao se dar conta de que seria o próprio archigos a dar a Admoestação e a Bênção hoje. Cénzi realmente o recompensou. Quando ele foi embora de Nessântico, há tanto tempo, tinha sido a archigos Ana que dera a Bênção ao batalhão prestes a partir, aqui neste mesmo espaço.

Agora seria o sucessor da archigos que o abençoaria novamente, quando Enéas tinha uma nova e mais importante missão a cumprir.

Ele escutou pacientemente à Admoestação do archigos. Ela foi permeada por um pedido de tolerância, o que soou estranho para Enéas, e o archigos Kenne citou versículos do Toustour que falavam do respeito por visões diferentes. Ele aconselhou os presentes no templo a não fazer julgamentos precipitados: — Às vezes, a verdade está escondida até mesmo daqueles que estão mais próximos. Deixem Cénzi julgar os outros, não nós. — Este, pelo menos, era um conselho que Enéas podia seguir, sendo guiado pela voz de Cénzi.

Após a cerimônia, ele foi até o parapeito com os demais suplicantes. O archigos Kenne percorreu a fila lentamente e parou para falar com cada um deles. Aos olhos de Enéas, o velho téni parecia cansado e abatido. Sua voz era fraca e estridente, o que indicou para Enéas que ela foi aprimorada com o Ilmodo pelo archigos (ou por um dos outros ténis) para que soasse forte e confiante ao dar a Admoestação. Enéas abaixou a cabeça e fez o sinal de Cénzi quando o archigos, com um cheiro de incenso entranhado no robe, parou diante dele. — Ah, um offizier da Garde Civile — falou o archigos. — E com uma faixa das Terras Ocidentais, ainda por cima. Nós lhe devemos gratidão pelo seu serviço ao país, o’offizier. Por quanto tempo o senhor serviu lá?

— Por mais tempo do que eu gostaria de lembrar, archigos. Retornei hoje à Nessântico.

A mão enrugada e seca do archigos roçou na cabeça baixa de Enéas, e os dedos encostaram no cabelo oleoso. — Então deixe que a Bênção de Cénzi lhe dê boas-vindas à cidade. Há alguma bênção específica que eu possa lhe oferecer, o’offizier?

Enéas levantou a cabeça. Os olhos do archigos eram de um tom cinza esbranquiçado e começavam a dar sinais de catarata; a cabeça tremia de leve, sem parar, mas o sorriso parecia genuíno, e Enéas viu-se devolvendo o sorriso, dizendo — Eu sou um simples guerreiro. Um offizier serve às ordens que recebe. Eu tirei muitas vidas, archigos, mais do que sou capaz de contar, e com certeza tomarei mais até parar de servir.

— E o senhor quer o perdão de Cénzi por isso? — perguntou o archigos, cujo sorriso aumentou. — O senhor estava apenas cumprindo seu dever e...

— Não. — Enéas interrompeu e balançou a cabeça. — Eu não me arrependo do que fiz, archigos.

O sorriso sumiu, incerto. — Então o que...?

— Eu gostaria de me encontrar com o kraljiki. Ele tem que saber o que está acontecendo nos Hellins. O que está acontecendo de verdade.

— Eu tenho certeza de que o kraljiki se informa através do comandante... — O archigos começou a dizer, mas Cénzi falava com Enéas, e ele repetiu as palavras que ouviu na cabeça.

— A essa altura, o comandante ca’Sibelli está morto — falou Enéas em voz alta. — Pergunte ao kraljiki que notícias chegaram dos Hellins. Ele não terá ouvido nada, archigos. Não há notícias dos Hellins porque simplesmente não sobrou ninguém para enviá-las. Acabou. Pergunte ao kraljiki, e quando ele responder que os navios expressos não vieram, diga que eu posso dar o relatório que o kraljiki precisa ouvir. Eu sou a única pessoa capaz disso. Aqui... — Ele colocou um cartão de visitas com seu nome e atual endereço no parapeito. — Por favor, pergunte a ele quando o senhor o vir novamente. Esta é a dádiva e a bênção que peço ao senhor, archigos. Apenas isso. E Cénzi também faz esse pedido ao senhor. Escutou? Não ouviu Sua voz? Ouça, archigos. Ele chama o senhor através de mim.

— Meu filho... — O archigos começou a falar, mas foi interrompido por Enéas.

— Eu não sou um soldado com a mente perturbada pelo que viu, archigos. Fui salvo por Cénzi para trazer esta mensagem ao kraljiki. Eu ofereço minha mão ao senhor quanto a isso. — Enéas estendeu a braço para o archigos e ouviu a voz grave de Cénzi em sua cabeça ao tocar o pulso do velho. — Dê ouvidos a ele. Eu ordeno. — E o archigos arregalou os olhos como se tivesse escutado a voz também. Ele puxou a mão, e a voz morreu.

— Pergunte ao kraljiki por mim — falou Enéas. — É tudo o que eu peço. Pergunte a ele. — Enéas sorriu para o archigos e ficou de pé. Os outros suplicantes e os ténis presentes olharam fixamente para o offizier. O archigos Kenne ficou boquiaberto enquanto olhava para a própria mão, como se ela fosse um corpo estranho.

Enéas fez o sinal de Cénzi para todos e saiu do templo, as botas ecoaram alto no silêncio.

 

Niente

As forças do tecuhtli Zolin e o exército tehuantino estavam dispostas à cautelosa distância de um tiro de flecha das grossas muralhas de defesa de Munereo.

Três dias de batalha fizeram a Garde Civile recuar para dentro das muralhas. O tecuhtli Zolin foi ao mesmo tempo agressivo e impiedoso no ataque. O comandante ca’Sibelli mandou um grupo de negociação para o acampamento tehuantino depois do primeiro dia de batalha, quando Zolin fez a Garde Civile fugir dos campos altos e amplos ao sul da cidade. Niente estava lá no momento em que o grupo de negociação chegou com a bandeira branca; ele viu Zolin ordenar que seus guardas pessoais matassem os negociadores e mandassem as cabeças decepadas para o comandante ca’Sibelli como resposta.

Eles atacaram a força principal da Garde Civile na alvorada da manhã seguinte; naquela noite, os tehuantinos avistavam as muralhas de Munereo e o porto, onde estava ancorada a frota dos Domínios.

Agora era alvorada de novo, e o tecuhtli Zolin havia convocado Niente. Zolin reclinou-se em um amontoado de travesseiros coloridos; os guerreiros supremos Citlali e Mazatl também estavam com ele. Atrás do tecuhtli, havia um artista debruçado sobre a cabeça recém-raspada de Zolin; perto do homem havia uma mesinha coberta por agulhas em formato de unha de dragão e potes de tinta. O escalpo de Zolin fora pintado com a águia de asas abertas que era a insígnia do tecuhtli; agora o tatuador se preparava para marcar a pele permanentemente. Ele pegou uma agulha, mergulhou no pigmento vermelho e pressionou no escalpo de Zolin: o guerreiro fez uma careta sutil. — Os preparativos dos nahualli estão prontos? — perguntou o tecuhtli para Niente, enquanto o tatuador rapidamente mergulhava a agulha novamente e pressionava na cabeça de Zolin, sem parar. O sujeito limpava com um pano o sangue que gotejava e escorria.

— Sim, tecuhtli — respondeu Niente. — Nossos cajados mágicos foram renovados, por outros saudáveis o suficiente para realizar a tarefa. — Ele ergueu o próprio cajado e mostrou as águias entalhadas que davam voltas abaixo da cabeça lustrosa e grossa. — Nós perdemos dois punhados de nahualli na batalha; outro punhado e um estão feridos demais para serem úteis hoje. Todo o resto está pronto. — Niente acenou com a cabeça para os dois guerreiros supremos. — Eu dispus os nahualli conforme Citlali e Mazatl pediram.

— E a areia negra?

— Foi preparada — falou Niente. — Eu mesmo supervisionei.

— A tigela premonitória? O que ela lhe disse?

Niente passou a maior parte da noite olhando as águas, que lhe renderam apenas visões turvas e enevoadas, bem como exaustão e uma face e mãos que pareciam ter adquirido mais uma teia de finas rugas da noite para o dia. Ele ficou confuso pelos rápidos vislumbres de futuros possíveis, mas sabia o que Zolin queria escutar e sacou da mente uma daquelas visões efêmeras. — Eu vi o senhor dentro da cidade, tecuhtli, e o comandante dos Domínios a seus pés.

Zolin abriu um largo sorriso e disse — Então é chegado o momento. — Ele levantou-se e quase derrubou o tatuador, que deu um passo rápido para trás quando o tecuhtli pegou sua espada. Zolin deu tapinhas na cabeça que sangrava e sorriu. — Isso pode ser terminado depois. A batalha não pode esperar.

Quando eles saíram da tenda, os guardas entraram em posição de sentido. Do pequeno morro onde a tenda do tecuhtli ficava, eles podiam ver o exército espalhado lá embaixo e a névoa das fogueiras sendo levada pela brisa na manhã serena. As muralhas de Munereo surgiam altas mais ao longe na descida da encosta, e o sol cintilava na água da baía do outro lado, à direita. Zolin gesticulou, e um trio de trompas de guerra soou um chamado que foi repetido por outras trompas ao longo do acampamento, e Niente viu todo o exército se agitar como um formigueiro cutucado com um graveto. As fileiras de batalha começaram a se formar; os supremos guerreiros em seus cavalos encorajavam as tropas. Nas muralhas de Munereo, o sol nascente era refletido nos elmos de metal e nas pontas das flechas enquanto as tropas dos Domínios esperavam pelo ataque.

Seus próprios cavalos foram trazidos, e eles montaram. Citlali e Mazatl prestaram continência a Zolin, cutucaram os animais e dispararam a galope. — Você fica comigo, nahual — falou Zolin. — Agora! — Ele também cutucou o cavalo com o pé, e Niente seguiu o galope do tecuhtli morro abaixo, na direção onde as tropas esperavam na encosta, quase niveladas com o topo das muralhas de Munereo. Os soldados abriram espaço rapidamente para deixá-los passar e soltaram gritos de apoio e admiração.

Antes do encantamento profundo realizado no oriental, Niente teria sido capaz de cavalgar o dia inteiro com qualquer pessoa. Agora, a batida dos cascos do cavalo no chão atingiu o corpo como marteladas. O máximo que conseguiu fazer foi se firmar às costas do animal com joelhos trêmulos. Zolin cavalgou até o centro da linha de frente das forças tehuantinas, onde a bandeira da águia fora plantada no meio da estrada tortuosa que descia até o portão ocidental de Munereo. Lá, um punhado de dragões de cerco aguardava. Zolin, de cima do cavalo, deu um tapinha na enorme cabeça pintada e entalhada de um dos dragões. — Os deuses nos prometeram vitória hoje! — berrou ele para quem estava em volta. Zolin apontou para a cidade à espera, morro abaixo. Os rostos marcados dos guerreiros estavam erguidos para ele, e os homens vibraram. Niente tinha que admitir que Zolin tinha o carisma que faltava ao tecuhtli Necalli: a expressão no rosto dos soldados indicava que eles o seguiriam até mesmo nas profundezas de uma das montanhas fumegantes. — Hoje, faremos um banquete onde os orientais jantaram, levaremos suas riquezas e os sobreviventes de volta para nossas cidades, e esta terra será devolvida aos nossos primos, que já foram seus donos!

Eles vibraram novamente, mais alto que antes. Zolin soltou uma gargalhada alta e deu tapinhas no dragão de cerco outra vez. — Está na hora! — berrou. — Hoje, vocês encontrarão a vitória ou a paz com os deuses!

Zolin gesticulou, e as trompas de guerra soaram a ordem para avançar. As fileiras estremeceram e começaram a avançar, e o tecuhtli Zolin, ao contrário de Necalli, Niente teve que admitir novamente, cavalgou bem à frente, sem penas na cabeça, para que todos pudessem ver a águia no crânio. O avanço começou lento, os soldados prosseguiram em ritmo de caminhada. Conforme desciam a encosta, as muralhas de Munereo pareciam se elevar, ficavam cada vez mais altas enquanto os tehuantinos se aproximavam até estarem sob sua longa sombra. Os dragões de cerco, montados em carroças, rangeram e gemeram quando começaram a descer a estrada, reclamaram ao serem empurrados encosta abaixo na direção das muralhas e dos enormes portões com barras. Zolin parou, Niente fez o mesmo: havia uma movimentação nas muralhas, de repente, uma chuva de flechas diminuiu a luz do sol e fez um arco no ar que foi seguido momentaneamente pelo estalo de mil cordas de arcos. — Escudos! — berrou Zolin, e os guerreiros ao redor ergueram os escudos de madeira para formar um teto temporário, vários levantaram o bastante para proteger tanto Zolin quanto Niente em seus cavalos. A chuva de flechas caiu furiosa e cravou as tábuas de madeira pintadas e presas com tiras de couro, algumas flechas passaram entre os escudos e pegaram alguns guerreiros azarados, mas a maioria bateu na madeira inofensivamente. — Abaixar! — gritou Zolin, e a parede de escudos foi abaixada, os soldados golpearam as hastes com as espadas. O chão ficou repleto de flechas quebradas.

Agora o avanço acelerou. Niente ergueu o cajado mágico no alto, pois sabia o que viria a seguir e berrou — Nahualli! Preparam-se! — Ele ouviu o cântico ao longe e sentiu a agitação da energia do X’in Ka quando os ténis-guerreiros dos Domínios lançaram os próprios encantamentos. Bolas de fogo irromperam sobre as muralhas de Munereo e se lançaram estridentes na direção dos tehuantinos em um rastro de fumaça. Niente sacudiu o cajado mágico apontado para a bola de fogo mais próxima e falou a palavra de ativação: ela explodiu enquanto ainda estava no ar e diante dos tehuantinos, o fogo assobiou ao morrer em fagulhas reluzentes que caíram sobre eles. Outra bola de fogo caiu ilesa nas forças tehuantinas à direita de Niente, e, mesmo ao longe, o calor e o impacto da explosão eram assustadores. Onde as bolas de fogo caíam, guerreiros gritavam ao morrer. Elas abriam sulcos nas fileiras em avanço, mas os espaços eram rapidamente preenchidos por guerreiros das fileiras seguintes. Zolin fez a fileira correr devagar, os dragões de cerco pareciam gritar conforme as rodas de madeira davam solavancos no solo irregular.

— Empurrem! — rugiu Niente para os guerreiros em volta dos dragões de cerco. — Andem! — Agora ele finalmente foi tomado pela empolgação da batalha e não se sentia mais um velho prematuro. Seu sangue ferveu e o vento cantou em seus ouvidos. O punhado de dragões de cerco ganhou velocidade e começou a descer morro abaixo por conta própria. Os guerreiros ao redor não precisaram mais empurrá-los; os dragões tinham o próprio ímpeto agora, já passavam da linha de frente do inimigo. Flechas caíam sem parar e o teto de escudos era formado a cada ataque, como resposta, mas Niente mal notava. Ele observava os dragões de cerco, que agora voavam pela terra batida da estrada, com as mandíbulas pintadas e escancaradas ao correr na direção dos portões. Bolas de fogo avançavam em arcos, e novamente Niente e os outros nahualli dispararam feitiços para detê-las. Ele ouviu Zolin gritar ordens para os homens.

Os dragões de cerco voaram, os controladores ficaram bem para trás e gritavam conforme as carroças avançavam, rolando por conta própria. Três dragões acertaram a base das muralhas em ambos os lados dos portões, e dois bateram nos próprios portões.

As cabeças dos dragões estavam repletas de areia negra — mais do que Niente e os outros nahualli já haviam preparado antes. Bastões mágicos foram enfiados nos focinhos para responder com fogo ao impacto. Niente viu os bastões entrarem em chamas, e então...

Houve um estrondo, como se uma das montanhas de fogo da terra natal de Niente tivesse entrado em erupção, e a seguir veio um clarão de pura luz que fez o nahual erguer a mão aos olhos com atraso. Pedras do tamanho de cavalos saíram voando, algumas caíram sobre os tehuantinos mais próximos, mas houve gritos mais altos vindos do interior de Munereo. Havia um turbilhão de fumaça na cena que tornava impossível ver, mas quando ela se dissipou, lentamente, as forças tehuantinas soltaram um grito mudo.

Os portões foram rompidos. Onde eles estiveram, havia apenas um buraco enorme, e as grossas muralhas de apoio em volta desmoronaram. Enquanto os tehuantinos observavam, um trecho dos parapeitos entrou em colapso à direita, derrubando os defensores a 15 metros do chão. — Avante! — berrava Zolin. — Avante! — O exército tehuantino avançou em uníssono na direção da cidade, sem se importar com as flechas ou o fogo dos ténis-guerreiros. O próprio Niente viu-se avançando com eles, com o cajado de prontidão e a garganta rouca pelos gritos de exaltação.

Os tehuantinos entraram aos borbotões pelas muralhas quebradas de Munereo.


Nas ruas da cidade, a batalha foi acirrada, violenta e caótica. Assim que o exército tehuantino entrou, a população nativa rebelou-se em conjunto e usou como arma qualquer coisa que estivesse à mão para matar e saquear alegremente os responsáveis por sua escravidão. Os defensores orientais de Munereo viram-se atacados tanto pela frente quanto pela retaguarda.

Ao perceber a derrota, os remanescentes da força dos Domínios tentaram recuar para os navios na baía, mas Zolin despachara naus de guerra dos tehuantinos para a boca da baía, cada uma com um nahualli a bordo, e eles dispararam fogo mágico para queimar as velas e os mastros das embarcações dos Domínios; nenhuma escapou do porto da baía de Munereo.

Foi dito mais tarde que era possível ir andando dos destroços dos navios dos Domínios até a praia sobre os corpos dos mortos, e que a baía inteira ficou vermelha por uma semana por causa do sangue despejado das ruínas de Munereo.

Os tehuantinos encontraram o comandante ca’Sibelli encolhido de medo a bordo da nau capitânia da frota e levaram o oriental de volta às ruínas fumegantes da cidade. O tecuhtli Zolin mandou que o homem fosse arrastado para o interior do principal templo de Munereo e amarrado ao altar ali, o próprio Niente preparou uma garra de águia para o homem, e encheu o tubo curvo de osso com areia negra. Ele pronunciou o encantamento enquanto trabalhava: tudo que seria preciso era dar uma virada no chifre de marfim e apertar o gatilho no punho de madeira para riscar a pederneira e acender o pó negro. Niente levava a garra da águia enquanto acompanhava o tecuhtli Zolin ao templo, que estava lotado de guerreiros supremos e nahualli; ele viu Citlali e Mazatl ali, sentados na frente. Todos estavam cobertos de sangue, mas a maior parte não era deles. Zolin estava diante de ca’Sibelli, despido até a cintura e amarrado ao altar. O homem grisalho parecia aterrorizado ao ver o tecuhtli e gemeu. — Eu entreguei a cidade para o senhor... — disse o comandante na língua oriental. — O regente e o Conselho dos Ca’ pagarão meu resgate, o que o senhor pedir...

— Silêncio — falou Niente na mesma língua. — Agora é hora de rezar para o seu deus, se quiser.

— O que ele disse? — perguntou Zolin para Niente, que respondeu. O tecuhtli soltou uma gargalhada alta e falou — É assim que os orientais brincam de guerra? Eles compram e vendem seus prisioneiros? Será que os deuses dos orientais são tão fracos assim? Não me admira que eles fujam diante de nós. — Zolin fez um gesto de desdém para o homem. — Eles mal valem o sacrifício. Sakal e Axat ficarão mal alimentados com eles.

— O que ele está dizendo? — perguntou ca’Sibelli, que ergueu a cabeça e fez força contra as cordas que o prendiam. — Diga a ele que eu sei onde fica o tesouro. Há muito ouro.

Niente tirou a garra de águia da bolsa. Ca’Sibelli ficou calado ao olhar para ela. O comandante lambeu os lábios rachados e ensanguentados. — O que... o que é isto?

— É a sua morte — disse Niente. — Sakal e Axat exigem sua presença como líder.

— Não! — berrou o homem. A boca espumava saliva. — Vocês não podem fazer isto. Eu sou seu prisioneiro, seu refém. Peça por resgate...

Niente chegou perto do homem, que se contorcia. Ele sentiu o terror do oriental e falou com a maior delicadeza possível. — Isso vai acabar com a matança aqui na sua cidade. Sua morte paga pela morte de todos os seus soldados que capturamos, e eles serão poupados. Se você for bravo, comandante, se mostrar a Axat e Sakal que merece, será levado a Eles e viverá eternamente Neles. Eternamente. É uma dádiva o que oferecemos para você aqui. Uma dádiva.

O homem ficou boquiaberto, sem conseguir acreditar, mas o cântico de sacrifício tinha começado, baixo e sonoro, e ecoava na câmara. Os guerreiros e nahualli se agitaram com a prece. Ca’Sibelli virou a cabeça e olhou fixamente para eles, nervoso. O tecuhtli Zolin acenou com a cabeça para Niente, que tirou a garra de águia do cinto. Ca’Sibelli arregalou os olhos quando Niente girou o chifre de marfim até fazer um clique ao ficar no lugar.

Niente ficou ao lado do comandante e disse — Você deveria estar rezando. — A cabeça de ca’Sibelli balançava violentamente de um lado para o outro, como se pudesse negar o momento. O nahual pressionou a ponta do tubo curvo no estômago do homem enquanto ca’Sibelli se debatia freneticamente nas amarras. Niente suspirou; esta não seria uma boa morte. — Axat, Sakal, nós entregamos este inimigo aos Senhores — falou ele na própria língua. — Aceitem esta oferta como um sinal da Sua vitória.

Niente apertou o gatilho. Houve um clique, uma fagulha e depois uma explosão de carne e sangue.

 

Sergei ca’Rudka

SERGEI NÃO FICOU SURPRESO que tivessem retirado sua espada. Na verdade, ele perguntava-se se de alguma maneira sobreviveria a essa reunião.

A sala era pequena e excessivamente quente, decorada em típico estilo firenzciano, com tapeçarias escuras e pinturas simples com temas marciais, todas em homenagem a hïrzgai há muito tempo falecidos. O novo hïrzg Jan estava sentado em uma cadeira estofada ao lado da lareira, mas era óbvio que Allesandra, sentada à direita do filho, era o personagem principal aqui, em vez de o jovem hïrzg, que olhava fixamente para o nariz de Sergei, com a atenção presa ali. O archigos ca’Cellibrecca agigantava-se como um semideus ursino atrás do espaldar alto da cadeira do hïrzg, com a cara fechada. Os gardai que trouxeram Sergei foram dispensados (após outra revista minuciosa à roupa do regente, para garantir que estivesse desarmado; eles pegaram duas facas e só não notaram uma pequena lâmina fina, enfiada no salto e sola soltos da bota). Ao longe, Sergei ouvia os músicos tocarem uma gavota no salão lá fora, embora ele duvidasse que muitas pessoas na festa ainda dançassem. A maioria estaria conversando e fofocando, imaginado o que o regente de Nessântico fazia aqui em Brezno.

Ele tinha certeza de que os presentes na sala se perguntavam a mesma coisa.

— Hïrzg Jan — falou Sergei ao se curvar diante do jovem que tanto parecia com sua matarh. — Eu lhe agradeço por acolher um pobre refugiado e ofereço meus serviços como gratidão.

— Seus serviços, regente ca’Rudka? — Foi Allesandra quem falou. — O que aconteceu em Nessântico, regente, que agora você oferece serviços para aqueles com quem lutou como inimigo?

Sergei não via Allesandra há quase 16 anos; ela deixou o confinamento em Nessântico quando era pouco mais velha que o filho agora. Allesandra virou uma mulher adulta nesse meio tempo. Sergei ainda conseguia enxergar a jovem entusiasmada no rosto, mas havia uma nova austeridade ali, e rugas adquiridas por experiências que ele não tinha como saber. Não presuma que ela ainda é a mesma pessoa que você conheceu...

— Traições e maus bocados — respondeu Sergei, que resumiu os eventos dos últimos meses, incluindo a própria fuga da Bastida há dias. — Eu duvido que o kraljiki sobreviva por muito tempo — finalizou. — Suspeito que Sigourney ca’Ludovici será a kraljica dentro de um ano, talvez dois. — Ele olhou intensamente para Allesandra, que havia desviado o olhar contemplativo em meio à história. — Ela não tem mais direito ao Trono do Sol que algumas pessoas aqui — falou Sergei. Allesandra acenou levemente com a cabeça; Sergei achou que Jan olhou estranhamente para a matarh diante do gesto.

— Onde estão esses numetodos que o senhor diz que lhe ajudaram a escapar? — rosnou ca’Cellibrecca. — Também trouxe os hereges aqui?

Sergei deu uma olhadela lânguida para o archigos. — Eles recusaram-se a me seguir, dada a recepção que esperavam receber, archigos. A atitude de Brezno para com os numetodos foi... bem demonstrada. — Ele deu um sorriso gentil, e ca’Cellibrecca contorceu a boca em uma expressão de desdém.

— Assim como Nessântico, e nós vimos o que a cidade ganhou com isso — respondeu o archigos. — Ter sido resgatado da Bastida pelos numetodos, regente, indicaria que suas próprias opiniões são hereges também. O senhor se tornou um numetodo?

— Minha crença em Cénzi e nos ensinamentos do Toustour permanece tão firme como sempre, archigos. — Ele fez o sinal de Cénzi para o homem. — Eu descobri que pode-se discordar até mesmo dos amigos e ainda assim permanecer amigo. Eu tive muitas discussões interessantes com o embaixador ca’Vliomani ao longo dos anos, muitas delas acaloradas, mas nenhum de nós dois conseguiu mudar significativamente as opiniões um do outro. Nem acho que isso seja necessariamente uma coisa ruim. O embaixador ca’Vliomani era meu amigo e agiu para me ajudar, embora nossas opiniões sobre religião sejam completamente discordantes. Minha alma não tem nada a temer. — Ele fez uma pausa e voltou a olhar para Allesandra. — Amigos e aliados podem ser encontrados onde menos se espera. Eu estaria errado, a’hïrzg ca’Vörl, em dizer que a senhora passou a considerar a archigos Ana uma amiga, embora ela tenha lhe tirado de seu vatarh?

Ca’Cellibrecca chiou alto ao ouvir isso, e o hïrzg Jan ergueu as sobrancelhas, mas Allesandra deu um leve sorriso. — Ah, regente, você sempre duelou tão bem com palavras quanto com sua espada.

Sergei fez uma nova mesura para ela.

— Sim — continuou Allesandra —, eu passei a considerar a archigos Ana, se não uma amiga, então como alguém em quem podia confiar diante do destino incerto que meu vatarh me relegou. Eu fiquei genuinamente horrorizada ao saber que ela foi assassinada, nem acreditei quando ouvi quem foi o responsável, por conhecer a archigos Ana e ca’Vliomani. Sofri e rezei por ela desde então. E, sim, entendo o que você está querendo dizer por trás da pergunta. Tenho certeza de que o hïrzg Jan ficará satisfeito em aceitar seus serviços e falar mais com você a respeito do que pode fazer pela Coalizão Firenzciana.

O garoto ajeitou-se subitamente na cadeira ao ouvir a menção do próprio nome e deu uma olhadela para a matarh. — Sim — falou Jan para Sergei. — Eu... nós ficaremos satisfeitos. — A voz era tão duvidosa quanto o olhar que ele lançou para Allesandra. Então as feições de Jan relaxaram, e ele soou mais adulto. — Firenzcia pode lhe oferecer asilo, regente ca’Rudka, e tenho certeza de que poderemos encontrar uma utilidade para seu conhecimento e suas habilidades.

— Obrigado, hïrzg Jan — respondeu Sergei, que ficou em um joelho só. — Falou bem. Eu ofereço livremente ao senhor e à Firenzcia a lealdade que Nessântico desprezou e darei qualquer conselho e ajuda que puder.

O jovem pareceu excessivamente contente com a declaração, como se, de certo modo, a tivesse arrancado a contragosto do próprio Sergei. Ele era jovem e inexperiente, Sergei percebeu, mas parecia suficientemente inteligente, e tinha uma excelente professora na matarh. O hïrzg aprenderia rápido. O archigos estava carrancudo, obviamente descontente com a decisão. Haveria pouca solidariedade com Sergei aqui — ele teria que ficar de olho em ca’Cellibrecca e encontrar qualquer vantagem que pudesse usar contra o homem.

Quanto a Allesandra... A mulher o encarava com cautela. Pensativa. Havia ambição ali e uma inteligência que faltou ao vatarh de Allesandra. Sergei podia facilmente imaginá-la no Trono do Sol. Podia vê-la tomar decisões que protegeriam os Domínios e cicatrizariam as feridas que Justi e agora seu filho abriram na cidade e no império aos quais Sergei servia.

Será que ela seria a kraljica que rivalizaria com Marguerite?

Ele descobriria. E agiria.

 

Karl ca’Vliomani

ELE RASPOU a barba. Escureceu o cabelo com essência de granito e deixou as feições ficarem obscuras com a sujeira da estrada. Doou as bashtas elegantes na mochila em troca das roupas rasgadas e cheias de pulgas de um mendigo. Karl cheirava mal, e só o fedor já era suficiente para as pessoas evitarem olhar para ele.

Karl perguntava-se onde Sergei estaria, se conseguira chegar a Firenzcia e como teria sido recebido lá.

A intenção original de Karl era voltar à Ilha de Paeti. Ele descansou o suficiente para usar o Scáth Cumhacht a fim de curar a pior parte do ferimento de Varina. Depois, Karl e ela acompanharam Sergei até as florestas ao norte da cidade, mas lá eles se separaram; Sergei tomou a direção leste para Azay a’Reaudi, enquanto o embaixador e Varina seguiram o limite da floresta para o oeste. Os dois cruzaram a Avi a’Nortegate depois de Tousia, dali rumaram para o sudeste na direção da Avi a’Nostrosei, na esperança de seguir a estrada até Sforzia e de lá conseguir passagem em um navio para Paeti ou para um dos países ao norte. Eles chegaram à Avi em Ville Paisli quatro dias depois, a apenas um dia de jornada a pé das muralhas de Nessântico.

Karl pretendia que eles passassem um dia, não mais do que isso. Ele e Varina pegaram um quarto na única estalagem do vilarejo e deram nomes falsos, como se fossem um casal a caminho de Varolli na esperança de encontrar emprego. A mulher mais velha que mostrou o quarto acenou ao pegar o dinheiro e enfiou as moedas em um bolso embaixo do avental que ela usava sobre uma tashta manchada, que parecia duas décadas fora de moda. O rosto e o corpo davam sinais de anos dando à luz e trabalhando duro. — Eu sou Alisa Morel — falou ela. Karl ouviu Varina respirar fundo ao ouvir o nome. — Meu marido e eu somos donos da estalagem e da taverna, e ele é o ferreiro do vilarejo. Se quiserem um banho... — o que foi dito com um olhar significativo e um nariz torcido que sugeriam que a ideia era boa — ... há um pequeno cômodo para isso lá embaixo, e eu posso mandar meus filhos encherem duas banheiras com água quente. O jantar sai uma virada da ampulheta depois do pôr do sol.

A mulher foi embora, Varina ergueu as sobrancelhas para Karl e disse — Morel... Nico disse que tinha fugido da tantzia e do onczio. Será que ela...?

— Morel é um nome bem comum em Nessântico. — Ele deu de ombros. — Mas obviamente há algumas perguntas que podemos fazer. Se ainda estivéssemos com o menino...

Karl já estava certo de que havia conexão ali, embora não soubesse dizer por quê. Ele percebeu pela expressão de Varina que ela pensava a mesma coisa. Se ele realmente acreditasse em algum deus, teria achado que os dois foram conduzidos a esse lugar pela providência divina.

Naquela noite, após aceitarem a oferta de banho feita pela mulher, para tirar o grosso da fedentina da estrada, ele e Varina jantaram no salão comunal da taverna, tanto para evitar suspeitas como para conseguir ouvir qualquer fofoca que tivesse chegado ao vilarejo a respeito da fuga do regente da Bastida. O salão estava — como ele suspeitava pela aparência estressada de Alisa, pelas crianças que trabalhavam como serventes, e pelo marido, Bayard, atrás do pequeno bar perto da porta da cozinha — mais cheio do que o usual, e a conversa era predominantemente sobre os eventos em Nessântico, cujas notícias pareciam ter chegado ao vilarejo há apenas alguns dias.

— Eu mesmo falei com o offizier do destacamento de busca — dizia Bayard Morel em voz alta para uma plateia de meia dúzia de aldeões. — O cavalo tinha perdido a ferradura, então ele me pediu para ferrar o bicho. O offizier disse que o kraljiki Audric, que Cénzi o abençoe, despachou cavaleiros para cada estrada da cidade a fim de pegar o traidor e os hereges numetodos que estão com ele. O destacamento vasculharia a estrada até Varolli, se necessário. O offizier me disse que os numetodos mataram três dezenas de homens da Garde Kralji na Bastida com sua magia terrível e blasfema, mataram sem pensar, embora alguns dos gardai ainda estivessem em suas camas. Os numetodos deixaram em ruínas a torre onde ca’Rudka estava, nada além de pedras enormes espalhadas por todo o chão. Eles cuspiram fogo ao fugir a cavalo, um fogo azul horrível, disse o offizier, que matou gente pela Avi quando os numetodos passaram, e depois, com um grande estouro... — nesse momento Bayard subitamente abriu bem as mãos e derrubou a caneca mais próxima de cerveja, o que fez a plateia recuar aterrorizada, de olhos arregalados — ... eles desapareceram em uma nuvem negra e fedorenta. Assim, do nada. Ao todo, tem mais de cem mortos na cidade. Eu estou dizendo, a morte é um destino bom demais para o regente. Eles deviam arrastá-lo vivo pelas ruas e deixar as pedras da Avi arrancarem a carne dos ossos e aquele nariz de prata dele enquanto berra.

As pessoas no salão murmuraram ao concordar com a opinião. Varina inclinou-se na direção de Karl e fez uma careta quando o movimento repuxou a ferida no braço, que cicatrizava. — Na semana que vem, ele dirá que foram mil mortos. Pelo menos, parece que os gardai já passaram por aqui e foram embora. Estamos atrás dele. Isso é bom, certo? — Ela vasculhou o rosto de Karl com olhos ansiosos, e ele concordou com um grunhido, embora não tivesse tanta certeza assim.

Enquanto observava o salão, Karl notou outra mulher que ajudava a servir os clientes: ela tinha uma aparência azeda e cansada e nunca sorria. A mulher parecia muitos anos mais jovem que Alisa, mas havia uma semelhança familiar entre as duas: nos olhos, no nariz fino, no conjunto dos lábios. Ela parecia ser velha demais para ser filha de Alisa, pois os filhos da estalajadeira ainda eram pequenos. Quando um deles, um menino mal-humorado à beira da puberdade, colocou um prato de pão fatiado na mesa, Karl apontou para ela. — Aquela mulher ali... quem é?

O garoto fungou e fez uma cara feia. — Aquela é a minha tantzia Serafina. Ela mora com a gente agora.

— Ela parece infeliz.

— Ela está assim há um tempo, desde que Nico fugiu.

Karl olhou para Varina. — Quem é Nico?

— O filho dela — falou o menino, que fechou mais a cara. — Um bastardo. Eu não gostava dele, de qualquer forma. Sempre falava besteira sobre os ocidentais e feitiços e tentava fingir que podia fazer magia como se fosse um téni. Todo mundo teve que perder três dias procurando por Nico depois que ele fugiu, e meu vatarh cavalgou até Certendi, mas ninguém jamais o encontrou. Acho que provavelmente está morto. — Ele parecia excessivamente satisfeito com essa conclusão, uma satisfação que torceu o canto da boca.

— Ah. — Karl concordou com a cabeça. — Você provavelmente está certo. O mundo lá fora não é fácil. Eu só estava me perguntando por que ela parecia tão triste. — Varina desviou o olhar nesse momento, encarava Serafina e mordia os nós dos dedos. O garoto arrastou os pés no assoalho de madeira rústica, fungou o nariz e passou o braço para limpá-lo, depois voltou para a cozinha.

— Pelos deuses, é ela. — Varina balançou a cabeça quase imperceptivelmente. — O que faremos, Karl? Aquela é a matarh de Nico.

Karl pegou um pedaço de pão do prato que o menino trouxe. Ele arrancou um naco do pão preto, enfiou na boca e mastigou, pensativo. — Se pudéssemos entregar Nico para ela — falou Karl depois de engolir —, será que ela nos entregaria Talis de volta?

 

Jan ca’Vörl

JAN GESTICULOU PARA OS GARDAI do lado de fora da porta e falou — Deixem-me entrar. — Os dois homens entreolharam-se uma vez, rapidamente, antes que um deles abrisse a porta. Assim que Jan entrou, um garda começou a segui-lo. O hïrzg meneou a cabeça para o homem e disse — Sozinho. — O garda hesitou antes de concordar e prestar continência. A porta foi fechada atrás de Jan.

— O senhor é corajoso por entrar em um aposento sozinho com seu inimigo. E aquele garda reportará ao comandante co’Göttering que o senhor veio me visitar. Co’Göttering sem dúvida informará sua matarh.

A luz de velas refletiu no nariz de prata quando Sergei se virou para encarar Jan. O homem foi instalado em um dos aposentos interiores do Palácio de Brezno, a comida foi posta diante dele em uma mesa coberta de damasco, a lareira estalava para afastar o frio da noite, e havia uma cama macia e confortável com travesseiros de plumas e cobertores. Ele usava uma nova bashta limpa e tinha evidentemente tomado banho, e seu cabelo grisalho estava empastado com óleo.

Sergei estava em uma prisão feita de seda.

— Eu não me importo que co’Göttering saiba, nem minha matarh. Você é tão perigoso assim, regente ca’Rudka? — perguntou Jan do outro lado da mesa.

Em resposta, Sergei meteu a mão no salto da bota: devagar, para que Jan pudesse vê-lo. Ele retirou uma lâmina chata, fina e com um cabo curto entre a sola e o couro, colocou a arma sobre a mesa e empurrou na direção de Jan. — Sempre, hïrzg Jan — respondeu o homem com um leve sorriso. — Seu vavatarh teria lhe dito isso. Sua matarh também. Se eu quisesse o senhor morto, o senhor já estaria.

Jan olhou fixamente para a lâmina. Ele viu os gardai revistarem Sergei à procura de armas, ouviu a declaração de que o regente estava desarmado. — Acho que precisarei falar com o comandante co’Göttering sobre o treinamento de seus homens. — O hïrzg esticou a mão para tocar o cabo com o dedo, mas não pegou a faca. — O que mais eles deixaram passar?

Sergei apenas sorriu. Jan colocou a mão na faca e empurrou-a novamente sobre a mesa para Sergei, que embainhou a lâmina na bota novamente. — Então, hïrzg Jan, a que devo o prazer?

O próprio Jan não tinha certeza. Ele ficou incomodado com a reunião inicial com Sergei, por ter ouvido a matarh e o archigos ca’Cellibrecca, por saber que eles dominaram a ocasião. Na verdade, Jan sentia-se sobrepujado pelo caráter repentino dos acontecimentos: o assassinato de Fynn, a fuga de Elissa, as notícias dos Domínios, a chegada do regente. Seu vatarh deixara Brezno correndo, furioso; sua matarh e o archigos eram íntimos, de maneira suspeita. Era como se ele estivesse sendo levado sem controle por uma enchente que não tinha visto, nem previsto. Jan sentia-se perdido e cheio de dúvidas, ficava remoendo essa situação por longas viradas da ampulheta, incapaz de se soltar na alegria agora forçada das festas, nas distrações das jovens que flertavam com ele ou nas especulações urgentes que irrompiam a sua volta.

Jan queria falar com alguém. E não queria que essa pessoa fosse sua matarh.

Jan não se sentia como um hïrzg. Sentia-se como um impostor. — Eu quero saber o que eu ganho ao lhe dar asilo, regente.

— Está mudando de ideia? — Sergei empurrou a cadeira da mesa. — Ou pensa que outra pessoa tomou esta decisão pelo senhor?

Jan devia ter ficado furioso com isso, mas, ao contrário, apenas ergueu um ombro e deixou que caísse novamente. — Ah, eu entendo — falou Sergei. — Assim como o pobre Audric, creio eu. Deixe-me lhe dizer uma coisa, hïrzg Jan: eu conheci vários kralji na minha vida, e apesar do que o senhor possa pensar sobre eles, a verdade é que nenhum jamais tomou uma decisão fácil. Tudo o que se faz como kralji, ou hïrzg, afeta milhares de pessoas, algumas vezes de uma maneira boa, em outras, de maneira adversa. Fique feliz por estar cercado por bons conselheiros e dê ouvidos a eles. Isso pode lhe poupar de tomar decisões realmente horrorosas. — Ele então deu um sorriso cruel. — E se uma delas der bons resultados, apesar de suas boas intenções, bem, o senhor sempre pode culpar o péssimo conselho.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.

O sorriso de Sergei se ampliou. — Não respondi, não é mesmo? — Ele colocou as mãos sobre a mesa, com as palmas voltadas para cima. — Tudo o que tenho a lhe oferecer sou eu, hïrzg. Meu conhecimento, minha experiência, meu ponto de vista. Por acaso, eu acho que esse é um recurso potencialmente valioso para o senhor, mas tenho que admitir que sou meio suspeito para falar. — Ele franziu a pele em volta do nariz falso, mas o nariz em si não se mexeu, o que pareceu perturbador aos olhos de Jan. O gesto deixou o hïrzg incomodado, mas ele achou difícil desviar o olhar do rosto de Sergei.

— Eu tenho o conhecimento, a experiência e o ponto de vista da minha matarh; também tenho os do archigos. E tenho os dos comandantes e dos outros chevarittai da Coalizão.

— Tem sim — respondeu Sergei. — Sua matarh foi refém nos Domínios por grande parte da juventude. O archigos é um oponente jurado do ramo da fé concénziana de Nessântico. Os comandantes e chevarittai também são oponentes dos Domínios. Nenhum deles conhece os Domínios, e todos têm razões para odiá-los. O ódio pode cegar às vezes. Quanto a mim, bem, a segurança dos Domínios tem sido a minha vida.

— O que é outra razão para desconfiar de você.

— Então deixe que esse seja meu primeiro conselho para o senhor, hïrzg Jan. O senhor deve desconfiar de mim. Um hïrzg tem que duvidar de todos os conselhos que recebe, porque os conselhos de todo mundo são pintados com as cores de seus próprios interesses, os meus não menos do que os conselhos de qualquer pessoa. Mas... eu sou um velho espadachim, hïrzg, e eu diria que é mais fácil derrotar um inimigo cujos movimentos são conhecidos e previsíveis do que um inimigo completamente desconhecido. — Sergei recostou-se na cadeira. — Eu conheço os movimentos dos Domínios. Conheço todos. O senhor precisa de mim.

— Você parece muito confiante.

— Eu conheço meu inimigo, hïrzg. Se não conhecesse, por acaso eu teria lhe dado a minha faca? — Ele abaixou a mão e deu um tapinha na bota. — Todo mundo corre riscos, hïrzg. O truque é ter confiança no resultado.

— E se seu tivesse ficado com a faca? — perguntou Jan.

Sergei deu um risinho. — Então eu teria que fingir que isso era o que eu esperava. O senhor ainda gosta da sua decisão, hïrzg?

Jan sorriu com os lábios fechados e disse — Era o que eu esperava, regente. E isso vai ter que ser suficiente, não é?

 

Audric ca’Dakwi

A O’TÉNI AJOELHADA ao lado da cama de Audric abriu os olhos, com o rosto abatido e cansado, e deu uma olhadela para o archigos Kenne. — Eu terminei minhas... — Ela hesitou, e Audric viu o olhar da o’téni desviar-se do archigos para a conselheira Sigourney ca’Ludovici, que estava perto da lareira e olhava para o retrato da kraljica Marguerite, apoiado ao lado do fogo no cavalete portátil. Acima da lareira, Audric viu o retângulo desbotado onde o quadro esteve pendurado por tanto tempo. Nos recônditos escuros do quarto, Marlon e Seaton estavam à espreita, à espera para correr à frente caso fosse necessário.

— ... preces — concluiu a o’téni.

O archigos dissera para Audric que esta téni viera do templo de Chiari e que era alguém “cujas preces tinham uma afinidade especial com os doentes”. Isso talvez pudesse ser verdade; ele certamente se sentia um pouco melhor, os pulmões doíam menos ao se mexer. A tosse insistente cedeu, embora Audric ainda sentisse um pouco de aperto no peito; talvez ele realmente tivesse sido abençoado por Cénzi na noite de hoje. A melhora não era tão marcante quanto nas ocasiões em que a archigos Ana fizera “preces” pelo kraljiki, mas bastaria. Ele torcia para que durasse tanto quanto a ajuda da archigos Ana durava.

— Obrigado, o’téni — falou o archigos enquanto fazia o sinal de Cénzi para a mulher. — Agradecemos seus esforços. Você pode retornar ao templo agora. Diga ao u’téni co’Magnaoi que estarei lá em breve, por gentileza.

Ela concordou com a cabeça e ficou em pé cambaleando, como se tivesse ficado ajoelhada por muito tempo e as pernas tivessem adormecido. Enquanto Audric observava, a o’téni levou as mãos à testa, depois às pernas e saiu arrastando os pés com cuidado até a porta do quarto. Marlon correu para abri-la para a mulher. — Estranho — comentou Sigourney sem desviar o olhar do quadro —, eu nunca fiquei tão cansada depois de uma simples prece.

Audric viu Kenne contrair o rosto encarquilhado à luz das velas diante da acusação nada sutil. O archigos ignorou o comentário e perguntou — Está se sentindo melhor, kraljiki?

A mamatarh de Audric encarou o neto com preocupação sobre o ombro de ca’Ludovici. — Não há nada de errado comigo — falou o kraljiki para o archigos. Ele viu sua mamatarh concordar com um aceno no limite de seu campo de visão. Não deixe que eles saibam como você realmente se sente, não quando podem considerar uma fraqueza. — Eu sei — disse Audric para Marguerite, depois se voltou novamente para o archigos. — Estou me sentindo muito bem. — Kenne pareceu aliviado de uma maneira quase cômica. — Agora, você disse que tinha um favor para pedir, archigos.

— Eu tenho, kraljiki. Eu tive um encontro estranho na manhã de hoje, no templo. Havia um homem, um o’offizier da Garde Civile: Enéas co’Kinnear. Ele veio à Bênção de Cénzi e tinha uma faixa dos Hellins sobre o uniforme. Um jovem bonito, com uma expressão séria. Ele me disse que havia acabado de voltar da guerra.

— Sim, sim — falou Audric com impaciência e fez um gesto para calar o homem. O archigos seria capaz de divagar assim por uma virada da ampulheta e contar cada detalhe interminável do encontro. Ele ouviu ca’Ludovici rir ao fundo. — Onde você quer chegar, archigos?

Kenne não conseguiu esconder completamente sua irritação, mas forçou um sorriso e abaixou a cabeça para Audric. — O o’offizier co’Kinnear disse que tinha uma informação vital para o senhor, a respeito dos Hellins, kraljiki. Falou que o senhor não teria ouvido essas notícias porque os navios expressos não teriam chegado. Eu verifiquei, e é verdade. Também mandei minha equipe investigar este co’Kinnear, e eles descobriram que o comandante ca’Sibelli — ao dizer isso, o archigos acenou com a cabeça na direção de Sigourney — recomendou que ele fosse nomeado chevaritt, e os relatórios sobre o homem foram unânimes na alta estima que ele goza como uma pessoa de fé e um offizier. Na verdade, eu descobri que antigamente co’Kinnear era considerado como candidato a acólito e mostrava sinais do Dom de...

— Certo. — Audric interrompeu novamente e suspirou. — Tenho certeza de que esse co’Kinnear é um bom homem. — Ele fechou os olhos. Era tão cansativo ter que ouvir as besteiras de gente inferior e fingir que prestava atenção ou se importava. É a maldição de todos os kralji, Audric ouviu a mamatarh e deu um sorriso compreensivo para ela. — É verdade — falou o kraljiki para Marguerite. — É bem verdade. — Agora ele queria jantar e talvez jogar uma rodada de cartas com algumas jovens dos ca’ e co’, e, quem sabe, flertar, pois se sentia melhor.

Você tem que tomar cuidado com isso, Audric, ele ouviu a mamatarh reclamar. Casamento é uma arma que só pode ser usada uma ou duas vezes; você deve escolher o momento certo e a arma certa.

— Não me canse — disse Audric para a mamatarh.

Sigourney manifestou-se. — Se me dá licença, kraljiki? — Audric gesticulou para ela. A mulher era uma chata; não tinha humor algum, tudo o que a interessava eram assuntos de estado. Sigourney era seca como torrada velha. — Archigos, se esse co’Kinnear tem uma informação tão vital, por que não contou aos offiziers superiores e passou pela cadeia de comando?

— Isto eu não sei, conselheira — respondeu o archigos. — Mas havia alguma coisa... Eu pensei... Quando co’Kinnear me pediu para falar com o senhor, kraljiki Audric, eu pensei ter ouvido a Voz de Cénzi me dizer que eu deveria escutar. Eu podia ter jurado... — O velho balançou a cabeça, e Audric suspirou com impaciência novamente. — Que mal faria ouvir o sujeito por alguns instantes? Daqui a duas semanas será o segundo cénzidi do mês; se ele puder ser colocado na lista de suplicantes para a sua audiência de sempre, kraljiki...

Presa na pintura, Marguerite pareceu dar de ombros à luz de velas. Audric jogou as pernas para fora da cama. Seaton correu para ajudá-lo a ficar de pé, mas ele dispensou o criado com um gesto e falou — Certo. Combine com Marlon, archigos. Verei este modelo de perfeição da Garde Civile no segundo cénzidi, mas só se nenhum navio expresso chegar nesse meio tempo com notícias mais atuais dos Hellins. Essa é uma solução satisfatória?

O archigos fez uma mesura e o sinal de Cénzi para Audric, depois para a conselheira. Ca’Ludovici pareceu abafar um riso. — Agora — disse o kraljiki —, eu estou com fome, e há compromissos aos quais pretendo comparecer na noite de hoje, então, se não houver mais assuntos...

 

A Pedra Branca

O AR ESTAVA TOMADO por sussurros e imprecações, e eles não vinham apenas das vozes na mente da Pedra Branca. Nessântico estava abalada pelos acontecimentos da última semana, com a fuga do regente e a traição dos numetodos. Ela viu os esquadrões passarem com raiva e desconfiança pelas alamedas e becos do Velho Distrito; ela tinha sido questionada duas vezes, arrastada e interrogada como se pensassem que ela pudesse ser um dos numetodos. A Pedra Branca teve o bom senso de demonstrar a dose certa de medo; o suficiente para acalmá-los, mas não o bastante para alimentar as suspeitas. Outras pessoas não tiveram a mesma sorte; a Pedra Branca viu dezenas sendo levadas para um interrogatório detalhado na escuridão cruel da Bastida, e não sentiu inveja delas.

Teria sido tão mais fácil para eles se tivessem contratado a Pedra Branca. A vida do regente; a vida do embaixador; ela teria apagado os dois como uma vela extinta à luz do dia — vidas que não eram mais necessárias ou desejadas. Ela poderia ter colocado suas almas na pedra que levava entre os seios.

Mais loucura para você sofrer... As vozes riram diante da ideia. Você vai se perder completamente entre nós...

Em breve...

Em breve...

O refrão era uma batida forte de tambor em sua cabeça. A voz furiosa de Fynn era a mais alta de todas.

Em breve...

Em breve...

— Talvez não — disse ela para as vozes. — Eu sou mais forte do que vocês pensam. Afinal, eu matei todos vocês. — ela disse as palavras em voz alta, e as pessoas próximas nas ruas olharam para ela com pena, irritação ou medo. A Pedra Branca não se importava com esse tipo de reação.

O sol da manhã se levantou sobre a estátua do kraljiki Selida II no chafariz do centro do Velho Distrito; o globo ardia como se a ponta da espada erguida do kraljiki pegasse fogo. À direita da praça estava a enorme estátua de Henri VI, que também lançava uma sombra comprida. A náusea matinal que a atormentava todo dia sempre que acordava tinha ido embora, e o cheiro de croissants amanteigados da padaria a algumas portas de distância provocou sua fome novamente. Ela esfregou a barriga; podia sentir o inchaço no estômago debaixo da tashta; em breve, não conseguiria esconder a gravidez de maneira alguma.

Em breve...

— Calem-se! — berrou a Pedra Branca, e a voz fez os pombos saírem voando do chão da praça, para depois pousarem novamente a alguns passos de distância. Alguém riu ali perto, presente em um grupo de rapazes que apontavam para ela, e a Pedra Branca respondeu com um gesto obsceno que só fez aumentar a gargalhada.

Em breve...

Vou destruí-la como você me destruiu. Este era Fynn. Em breve...

Com a cara fechada, ela foi empurrando as pessoas até chegar à padaria e jogou uma se’folia de bronze no balcão. — Croissants — disse.

Ela já tinha comido dois croissants antes de chegar à casa que ocupava, a alguns quarteirões do centro. O pão doce e molhado aplacou a dor na barriga e baniu as vozes. Ela estava pegando a chave do quarto quando ouviu barulho: algo sendo arrastado, uma respiração. Ela parou, pousou o saco com os croissants que tinham sobrado e levou a mão ao cabo da faca enfiada na faixa da tashta. O som vinha de um pequeno espaço entre sua casa e o prédio ao lado. Ela espiou as sombras púrpuras e viu uma silhueta que tremia, encolhida contra a lateral da casa.

— Eu estou vendo você aí — falou ela. — Saia.

Ela esperava que a pessoa corresse, que fugisse para o outro lado, na direção da viela atrás da casa. Mas a silhueta apenas se mexeu e ficou em pé devagar, e sob a luz fraca do céu que clareava, ela notou que era uma criança. Ele saiu lentamente, arrastou os pés e manteve as costas voltadas para a parede da estrutura, os olhos arregalados espiaram a Pedra Branca e desviaram o olhar novamente. O rosto estava sujo de lama, o cabelo totalmente desgrenhado.

— O que foi? Está com medo de mim?

— Você é a mulher maluca — respondeu o menino, e as vozes vibraram de alegria, a de Fynn a mais alta de todas. Viu só? Eles já sabem. Em breve...

— O que você está fazendo aqui? — perguntou ela.

O menino deu de ombros. — Esperando.

— Esperando o quê?

Ele repetiu o gesto. — Nada.

— Só um idiota espera por nada, menino. O que você está escondendo? — A Pedra Branca ergueu o dedo e deteve o menino quando ele ia dar de ombros novamente. — Não minta para mim, menino. Eu sou a mulher maluca, lembra-se? Eu posso ouvir o que você está pensando. — Ela bateu com o dedo na testa. As vozes vibraram novamente. Mentirosa! Charlatã! — Então é melhor que me conte a verdade: de quem você está se escondendo?

O menino olhou para ela com desconfiança e inclinou a cabeça de lado, como se tivesse escutado as vozes. — Os soldados. Aqueles de azul e dourado.

— A Garde Kralji? — Ela cuspiu no chão entre os dois. — Eu os conheço. Ah, eu os conheço bem. Mas por que você está se escondendo deles? Os soldados não estão procurando por você, menino, a não ser que seja um numetodo. — Ele torceu a cara de um jeito esquisito ao ouvir isso, e ela olhou de soslaio para o menino enquanto esfregava o estômago. Havia uma agitação estranha ali, e se perguntou se ficaria enjoada novamente ou se sentia a criança pela primeira vez. — Você é um numetodo? É por isso?

— Não — disse ele, rapidamente, mas a Pedra Branca já tinha visto muitas mentiras e falsidades na vida e sabia que o menino dizia menos do que podia. Ela observou com mais atenção, viu a roupa suja e o cabelo emaranhado. Notou os ossos das bochechas.

— Quando foi a última vez que você comeu?

O menino deu de ombros novamente.

— Você mora aqui perto?

Ele fez uma careta. — Eu... eu morava. Logo ali. — Apontou para a viela. — Mas... eu não sei... — Ele parou, e a Pedra Branca viu o lábio do menino tremer. Ele fungou e passou a manga rapidamente pelos olhos, fechou bem a boca. A resistência, a recusa em deixar que ela visse como ele estava assustado e amedrontado tomaram a decisão pela Pedra Branca. Ela sorriu para o menino ao se agachar em sua frente. Deveria ter sido um movimento fácil, mas a cintura mais larga fez com que ela sentisse como se seu corpo fosse de outra pessoa.

— Você tem um nome? — perguntou ela.

— Nico. Meu nome é Nico.

— Então por que você não vem comigo, Nico? Eu tenho alguns croissants e um pouco de manteiga. Talvez eu consiga achar uma fatia ou duas de carne. Não parece bom? — A Pedra Branca ofereceu a mão para o menino, que aceitou com hesitação, e ficou de pé. As vozes riram dela, debocharam. A Pedra Branca ficou mole como lama...

Ela as ignorou e andou com Nico até sua casa.

 

 


CONTINUA